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Status jurídico da mulher brasileira no século XIX
Taís Elaine do Nascimento Vieira *
Resumo: O texto aborda, em linhas gerais, a condição da mulher no século XIX,
especificamente na Cidade do Rio de Janeiro, destacando o quanto a escravaria dispunha de
uma legislação mais complexa do que a referente à mulher. Outrossim, aborda o impacto do
sistema patriarcal na constituição sociopolítica no Brasil Império.
Palavras-chave: Patriarcalismo – mulher – escravidão – legislação – ordenação.
O presente texto faz parte do primeiro capítulo da minha monografia intitulada
Considerações sobre a situação da mulher no ideal de ordem da cidade do Rio de
Janeiro do século XIX, apresentada como exigência final do Curso de Especialização
em Sociologia Urbana ao Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Vive-se na sociedade brasileira sob o manto de uma igualdade jurídicoconstitucional apenas formal. Ainda mantêm-se não só a desigualdade econômica,
político e social entre homens e mulheres, mas, também, inúmeras normas
discriminatórias e antigas concepções em relação à subalternidade do sexo feminino. O
Estado, por mais que tente modificar as leis, não consegue alterar os conceitos sociais, o
que somente a própria sociedade pode fazer. Não de forma brusca, mas paulatinamente
no decorrer da sua história. Isto significa grande desvantagem para as mulheres
brasileiras que enfrentam a herança de uma sociedade patriarcal, consequentemente,
fundada nos interesses masculinos.
Nos primórdios de nossa colonização, a legislação que vigorava no Brasil era a
portuguesa. Os primeiros documentos jurídicos foram os forais, tipicamente
peninsulares, variando de um local para o outro, em que o costume era a base e a regra
da experiência. No caso brasileiro, as cartas de foral estabeleciam os direitos e deveres
dos capitães donatários, representando a lei local. E as leis gerais eram as Ordenações
do Reino, corpo de leis, ou compilação de leis adotadas como princípios e regras
jurídicas obrigatórias, denominação dada às Ordenações Afonsinas datadas de 1446, a
Manuelina de 1521 e Filipina, de 1603. Em toda essa legislação imperava o espírito
patriarcal, daí a incapacidade da mulher ser tomada como um fato natural.
As Ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil até 1830 em matéria penal,
até 1831 em matéria processual penal, até 1850 em matéria comercial e até 1917 em
matéria civil, relegavam a mulher ao papel exclusivo de mãe. Condenada a ser somente
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mãe, a mulher não tinha nenhum outro direito sobre os filhos. O exercício de o pátrio
poder era incontestavelmente exclusivo do pai. O poder marital submetia a mulher as
mais extremas brutalidades, a que não foram estranhas as Ordenações, que permitiam ao
marido castigar sua mulher. Segundo o jurista Alfredo Farhat, foram derrogadas pelo
Código Criminal do Império no seu artigo 14 § 6o as punições maritais (FARHAT,
1971). Diferentemente da concepção do jurista, a socióloga Sandra Lauderdale Graham
afirma que o direito de castigar era reafirmado na lei criminal brasileira justamente no
mesmo dispositivo legal (GRAHAM, 1992).
As mulheres do século XIX, do período analisado no presente trabalho, eram
praticamente anuladas da vida jurídica, sofriam inúmeras restrições como a postulação
em juízo, a admissão em funções públicas e outras limitações. Sobre as mulheres
recaíam todos os pesos do domínio do macho, do patriarca, da família tradicional, do
discurso da Igreja, da ciência e da moral. O tratamento jurídico dispensado à mulher
talvez seja o que melhor ilustra o caráter profundamente segmentado e tradicionalista da
referida sociedade. Num Brasil totalmente contraditório e hierarquizado, apenas o
tratamento do homem contra a mulher era semelhante em todos os meios sociais: seja o
religioso, o familiar ou o comunitário.
A situação da mulher brasileira até o século XIX era equivalente a do escravo e a
da criança em relação à completa submissão ao homem. Segundo o Prof. Marcelo
Mello, constituía até mesmo uma condição inferior à questão escravocrata em termos de
sua importância nos debates públicos e denunciava um atraso sociopolítico maior, já
que as leis se aplicavam, em sua maior parte, aos escravos. Algumas das leis criadas
para os escravos os tratavam como sujeitos de direitos e obrigações, enquanto que a
situação jurídica da mulher a anulava como pessoa jurídica ao legitimar sua
dependência quase total das figuras masculinas da famílias: quando solteira o pai,
depois do casamento o marido (MELLO, 1999).
Os juristas do século XIX, movidos pelo ideal liberal de defesa da liberdade
humana como direito natural, sentiam enorme constrangimento ao ter que enfrentar a
questão dos escravos. Existiam inúmeras advertências no projeto da Consolidação das
Leis Civis elaborada por Teixeira de Freitas, com o fim de justificar a exclusão das
relações de escravidão (MELLO, 1999). Entretanto, não há qualquer preocupação ou
referência à situação da mulher. A inferioridade legal feminina continuava como um
aspecto normal da legislação porque era concebida como decorrência natural do gênero.
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Existia uma ordem régia de 1726 coibindo a influência excessiva do homem de cor na
vida da colônia, vedando aos mulatos até à quarta geração o exercício de cargos
municipais em Minas Gerais. Também essa proibição estendia-se aos brancos casados
com mulheres de cor. Para Sérgio Buarque de Holanda (1971), resoluções como esta
estavam condenadas a ficar no papel e não perturbavam seriamente a tendência da
população para abandono de todas as barreiras sociais, políticas e econômicas entre
brancos e homens de cor, livres e escravos.
Nesse sentido, ele cita um exemplo em que um governador de Pernambuco
expediu ordem, em 1731, para que um mulato tomasse posse de ofício de procurador,
baseado na ordem de D. João V em que se considera reparado o defeito de ser pardo por
ser um bacharel formado.1 No entanto, não foi possível encontrar nenhum registro de
mulher apossada em cargo público. Todo discurso científico da época convergia para a
afirmação da incapacidade natural das mulheres para realizarem funções públicas, fora
da esfera da administração doméstica. Observa-se como a mulher era subjugada ao
espaço doméstico através da descrição de Saint-Hilaire, que nos visitou em 1816 e
1822, sobre o espaço da casa anotou o seguinte:
O interior das casas, reservado às mulheres, é um santuário em que o
estranho nunca penetra, e pessoas que me demonstravam a maior
confiança jamais permitiram que meu criado entrasse na cozinha para
secar o papel necessário de minhas plantas; era obrigado a acender o
fogo fora, nas senzalas ou em algum alpendre. Os jardins situados por
trás das casas são para as mulheres uma fraca compensação de seu
cativeiro, e, como as cozinhas, são escrupulosamente interditados aos
estrangeiros (HILAIRE, 1975).
As mulheres antes do casamento eram resguardadas do ambiente público pelos
seus pais para manterem intacta sua honra. Ao se casarem perdiam a identidade jurídica
que nunca possuíram, porque quando crianças e adolescentes eram consideradas
menores e incapazes para os atos da vida jurídica, e deviam ser representadas ou
assistidas pela figura do pai, pois eram vistas como unidade sob o comando do homempai. Com o casamento a situação jurídica da mulher continuava nula; qualquer ato da
vida civil deveria ser praticado com a assistência do marido.
O Código Criminal de 1830, apesar de representar um avanço do ponto de vista
da racionalização das normais penais, legitimou diversas arbitrariedades não só contra
1
Pág. 25 - "Sobre dar posse ao Doutor Antonio Ferreira Castro do Offício do Procurador da Coroa, pelo
Mulatismo lhe non servir de impedimento" Anais da Biblioteca Nacional do RJ XXVIII (RJ. 1908, pág.
352)". Um detalhe importante: esta passagem serve para ilustrar o quanto a escravidão foi complexa ao
longo da história do Brasil, impactada pelos aspectos econômicos, geográficos, políticos, regionais etc.
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as mulheres, mas também em relação aos cidadãos mais necessitados. Tal legislação
reafirma concepções “patriarcais” e discriminatórias contra as mulheres como:
repressão à sexualidade feminina, denegação de qualquer participação na vida pública,
entre outras.
Após as primeiras tentativas de consolidar as leis civis que datam de 1858 pelo
jurista Teixeira de Freitas, novas tentativas se sucederam até que, em 1899, Clóvis
Beviláqua teve a incumbência de organizar o novo projeto do Código Civil. Outros
juristas consagrados participaram da elaboração e discussão da lei civil, e eles se
dividiam em conservadores e reformistas. A corrente conservadora tentava manter
algumas tradições e costumes do passado, enquanto a reformista dava o avanço
necessário à evolução social da época. Clóvis Beviláqua era considerado um jurista de
ideias avançadas e seu projeto não consagrava expressamente a incapacidade da mulher,
mas a comissão revisora não aceitou a inovação e recusou-a sem maiores discussões. O
primeiro Código Civil Brasileiro é uma codificação do século XIX, e embora tenha
entrado em vigor em 1917, possuía a concepção patriarcal da família.
Apesar de a ênfase maior ser em torno da legislação brasileira, é importante
ressaltar a impossibilidade de a sociedade brasileira ser entendida de modo unitário.
Nesse sentido, Roberto Da Matta assevera que a sociedade brasileira não pode ser
compreendida na base de uma só causa ou princípio social (DA MATTA, 1991), para
ele existem diversos domínios tomados por uma lógica comum pelos quais devemos
passar para analisar a sociedade brasileira. Não podemos ter a pretensão de que da lei,
do centro, podemos atingir tudo. Apesar de a inferioridade feminina ser legitimada pelos
registros legais, não podemos dizer que tal preconceito foi necessariamente criado pelo
Estado e nem mesmo que foi absorvido por este. Nesse caso, também se posicionou
Adriana de Resende que, embora considere a legislação sempre como uma referência
importante ao longo do seu trabalho, optou por privilegiar outro tipo de material, porque
privilegiar a esfera legal não possibilitaria a percepção das diferenças que atravessam o
conjunto de indivíduos analisados por ela (VIANNA, 1999). 2
2
A autora Adriana Resende analisa a construção da identidade do menor. O termo menor produz uma
população e ainda outro personagem que é a polícia. Ela trabalha com classificações, como a lei define
contornos gerais muito abrangentes, seu objetivo é trabalhar as classificações sobre os espaços em que
essas categorias são postas em ação. As categorias são produzidas para estruturar a realidade, sendo o
lugar mais rico para trabalhar onde o poder encontra seu ponto de atuação. Se Adriana partisse da lei para
estudar o menor, acreditaria que as práticas policiais eram mera aplicação da lei. Na lei a categoria e o
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Referências Bibliográficas:
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua - Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1991.
FARHAT, Alfredo. A Mulher perante o Direito. São Paulo: LEUD, 1971.
DE SAINT HILAIRE, Auguste. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas
Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Itatiaia, 1975.
HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros nº1,
6a ed., Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1971.
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio
de janeiro de 1910. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 1992.
MELLO, Marcelo Pereira. A Situação Legal da Mulher Brasileira no Século XIX: A
Representação Jurídica da Mulher no Código Civil do Brasil Monárquico. Revista da
Faculdade de Direito da UFF, Niterói, v.3, págs. 193 a 208, 1999.
______. Código Civil. Esboço por Teixeira de Freitas. Rio de Janeiro, Ministério da
Justiça e Negócios Interiores/ Serviço de Documentação, 1952. (Introdução) quoted in,
op.cit. 1999.
VIANNA, Adriana de Resende Barreto. O Mal que se Adivinha: Polícia e Menoridade
no Rio de Janeiro, 1910 - 1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.
* A autora é bacharel em Direito pela UNIGRANRIO e Ciências Sociais pela UFF,
especialista em Sociologia Urbana pelo IFCH–UERJ e mestra em Sociologia Jurídica
pela UFF. Leciona Sociologia no Ensino Médio da Rede Estadual de Educação – RJ.
Leciona as disciplinas Fundamentos das Ciências Sociais e Sociologia Jurídica no Curso
de Direito UNESA no Campus Cabo Frio, de onde é Coordenadora de Atividades
Complementares, além de pertencer ao NPCJS.
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objeto não se confrontam. Como ela utilizou os registros policiais conseguiu descobrir que a identidade
menor foi criada pela atuação policial e posteriormente utilizada na legislação.
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