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Armadilhas da erudição: o autodidata e a vacuidade existencial, segundo Sartre
Renato Nunes Bittencourt
Resumo: Neste artigo, analisamos a extravagante figura denominada como “Autodidata” no romance
A Náusea, de Jean-Paul Sartre, enfatizando a sua relação com uma espécie de disposição erudita estéril
para a absorção de informações intelectualmente desconexas, cujo único intuito talvez seja preencher o
vazio de uma existência desprovida de sentido.
Palavras-Chave: Erudição. Vazio Existencial. Sartre.
Abstract: In this article we analyze the fancy figure called “Self-taught” in the romance Nausea, by
Jean-Paul Sartre, emphasizing its relation with a species of barren erudite disposal for the absorption
of intellectually disconnected information, whose only intention perhaps is to fill the emptiness of an
existence unprovided of signification.
Keywords: Erudition; Existential Emptiness; Sartre.
Introdução
No decorrer deste artigo, pretendemos expor a leitura sartriana acerca do problema do
excesso de conhecimento na vida humana, e as implicações que essa exacerbação poder vir a
motivar na existência do homem, sobretudo quando essa busca pela aquisição desenfreada por
conhecimento ocorre de maneira destituída de um sentido condutor dos valores da própria
vida. Conforme veremos no decorrer destas linhas, a erudição não significa necessariamente
sabedoria, tampouco conhecimento prático, e, de maneira alguma, é garantia para a aquisição
de felicidade e progresso cultural autêntico, por justamente mascarar. em diversas
circunstâncias, o autêntico significado de ambas em prol da absorção das informações mais
heteróclitas possíveis.
1 - O eruditismo como expressão da decadência do pensamento
A problemática do eruditismo, a busca desmedida pelo conhecimento que se torna
muito mais um processo informativo, é um tema recorrente em diversos pensadores de grande
importância para a tradição filosófica ocidental. Schopenhauer, ao criticar o modelo de
conhecimento existente nos meios acadêmicos de sua época (que vivia sob a égide da filosofia
idealista hegeliana), criticava severamente os academicistas que, em vez de pretenderem
alcançar o conhecimento como meio de formação do próprio pensamento singular, concedem
ao processo de assimilação dos conteúdos dos livros e dos arquivos muito mais importância
do que o próprio exercício de pensamento na sua eterna busca pela verdade: o mais
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conveniente é estudar a obra de um autor por apenas um curto período, para que se possa
assim conceder espaço intelectual para a reflexão pessoal (SCHOPENHAUER, 2001, p. 92).
Schopenhauer também se preocupava com a metodologia do ensino de filosofia que
deveria ser aplicada nas instituições de ensino, de modo muito distante do sistema que estava
então em voga e que se pautava acima de tudo pela interpretação historiográfica dos conceitos
do filósofo analisado; mais ainda, considerava que o ensino de filosofia deveria ser ministrado
como caráter introdutório, no qual o professor transmitiria as ideias gerais de um grande
pensador, de modo que, a partir desse momento, o próprio estudante se esforçasse para
desvendar o sistema de pensamento desse filósofo, trilhando o seu próprio caminho
intelectual sem depender da constante intervenção da autoridade do professor. Desse modo se
evitaria formar futuros imitadores de uma corrente de pensamento já estabelecida. A educação
livresca, para Schopenhauer, é algo a ser evitado por qualquer estabelecimento educacional
que se proponha a promover de fato as faculdades superiores do ser humano
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 92). Esse sistema eruditista excluiria um dos elementos mais
importantes no processo desempenhado pelo ser humano na sua tentativa de desvelar o
sentido da existência: pensar por conta própria, independente de qualquer autoridade do saber.
A função básica das academias deveria ser a de motivar o homem a pensar por si
mesmo, jamais fornecer de modo não problematizado o saber dos grandes nomes da tradição
cultural estabelecida, uma vez que tal procedimento retiraria a possibilidade do homem
comprometido com a busca pela verdade vir a alcançá-la (SCHOPENHAUER, 2001, p. 4).
Conforme Schopenhauer argumenta, a autêntica Filosofia é comprometida incondicionalmente
com o ato de buscar a verdade que revele o sentido do mundo para o homem, suprindo assim os
caracteres mais angustiantes da carência metafísica comum em todo todos (SCHOPENHAUER,
2001, p. 4). Entretanto, não era isso que ocorria usualmente nas universidades modernas, mas
apenas um mecanismo corporativista no qual os professores se promoviam mutuamente, de modo
a conquistarem o reconhecimento do mundo acadêmico e assim enriquecerem através da
especulação cultural.
Nietzsche, por sua vez, fora também um grande crítico do modelo pedagógico das
instituições de ensino oitocentistas, de maneira que, ao longo de sua atividade filosófica,
dedicou importantes reflexões sobre a metodologia educacional dos estabelecimentos de
formação dos jovens, objetando severamente o método acadêmico de ensino então vigente:
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Eles talvez julguem que essa cultura teria sido somente um tipo de saber
sobre a cultura, e, além disto, um saber efetivamente falso e superficial.
Falso e superficial, em verdade, porque se sustentou a contradição entre vida
e saber, porque não se viu absolutamente o característico na formação de
verdadeiros povos aculturados: que a cultura só pode crescer e florescer a
partir da vida, enquanto ela foi abandona pelos alemães como uma flor de
papel ou lançada sobre eles como uma cobertura de açúcar e, por isto, deve
permanecer sempre mendaz e infrutífera (NIETZSCHE, 2003b, p.91).
Nietzsche considera que o modelo educacional existente na Alemanha oitocentista, em
vez de motivar o estudante a buscar o conhecimento como recurso potencializador da vida,
criava efetivamente uma terrível ruptura justamente entre o conhecimento e a existência.
Conforme Nietzsche destacaria de forma ácida no Ecce Homo,
O erudito que no fundo não faz senão “revirar” livros – o filólogo uns
duzentos por dia, em cálculo modesto – acaba por perder totalmente a
faculdade de pensar por si. Se não revira, não pensa. Ele responde a um
estímulo (- a um pensamento lido), quando pensa – por fim reage somente. O
erudito dedica sua inteira energia ao aprovar e reprovar, à crítica ao já
pensado – ele próprio já não pensa... O instinto de autodefesa embotou-se
nele; de outro modo se protegeria dos livros. O erudito – um décadent
(NIETZSCHE, 2001, p. 47).
Na sua perspectiva, um dos grandes responsáveis por esse problema grave, que
assolava a autêntica cultura alemã (podemos também estender tal circunstância aos europeus
de uma forma geral), consistia na figura do erudito, o tipo de homem severamente
caracterizado acima de tudo pelo fato de vislumbrar a aquisição desenfreada de conhecimento,
desmedida essa que poderia motivar o declínio da própria vitalidade. Afinal, Nietzsche
considera que o conhecimento se torna importante para a vida quando ele é utilizado para
proporcionar a formação do gênio criativo, da singularidade, pois não é o conhecimento o
elemento primordial da existência, mas a própria vida, considerada como o valor maior:
Será então que a vida deve dominar o conhecimento, a ciência, ou será que o
conhecimento deve dominar a vida? Qual destes dois poderes é o mais
elevado e decisivo? Ninguém duvidará: a vida é a mais elevada, o poder
dominante, pois um conhecer que aniquila a vida aniquilaria ao mesmo
tempo a si mesmo. O conhecer pressupõe a vida: ele tem, portanto, o mesmo
interesse na conservação da vida que todo e qualquer ser tem na continuação
de sua própria existência (NIETZSCHE, 2003a, p. 96).
Para Nietzsche, o conhecimento autêntico está associado imediatamente com a
promoção da vida e das qualidades singulares dos indivíduos criativos, de modo que o sistema
de ensino deveria favorecer a afirmação dos mesmos. No decorrer de O nascimento da
Tragédia, Nietzsche denunciara a diluição da experiência trágica de mundo entre os gregos
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antigos a partir da formação do ideário gnosiológico do “homem teórico”, o indivíduo que
realiza um divórcio maléfico entre o pensamento e a vida, posto que era movido pelo anseio
de se livrar das contradições da existência por meio do conhecimento abstrato. O pensamento
socrático-platônico se configura como a expressão filosófica mais acabada desse projeto
metafísico, gnosiológico e moral, pois a racionalidade abstrata é privilegiada em relação ao
caráter imanente dos instintos.
O tipo erudito, que na concepção nietzschiana é das manifestações modernas do
“homem teórico”, busca a aquisição do conhecimento para a revelação do sentido teleológico
da existência, para a justificação moral do mundo, ou seja, de modo algum para a afirmação
incondicional do existir. Nesse procedimento, o homem movido pelo ímpeto eruditista abdica
de viver plenamente a sua existência, interagir com a pujança de forças do mundo em prol da
clausura dos gabinetes e das bibliotecas, espaços que ele considera como os centros por
excelência do saber. Nessas condições, o mundo é considerado apenas como uma fonte
secundária de saber, e não a sua expressão maior.
Gostaria de ressaltar que utilizei estas explanações gerais acerca do problema da
erudição noutros importantes filósofos que versaram acerca deste tema para poder adentrar de
forma mais profunda no autor em questão, Sartre, justamente por considerar que os
comentários anteriores enriquecem de maneira considerável o presente texto, assim como
demonstram a importância sobre a reflexão acerca do estatuto de conhecimento na vida
humana. Pretendo focalizar a atenção em especial no célebre romance A Náusea, no
personagem que Sartre denomina como “O Autodidata”, uma excelente caricatura do tipo de
homem erudito, provido, todavia, de sentimentos e de uma vida interior tal como a nossa; por
conseguinte, “O Autodidata” manifesta afinidades eletivas com qualquer um de nós. Afinal,
vivemos em uma estrutura social que exige a contínua assimilação de informações para que
possamos aparentemente manter um padrão de vida bem situado acerca dos problemas
corriqueiros da cotidianidade e atuar convenientemente no sistema de alienação produtiva
próprio do regime capitalista, que requer especialistas máximos do mínimo. Mas será que tais
“saberes” promovem uma autêntica elevação humana e uma transformação das suas
condições valorativas e existenciais inerentemente medíocres?
2 - História, conhecimento e erudição
A temática central de A Náusea consiste no empreendimento de um escritor, Antoine
de Roquentin, em redigir uma extensa e minuciosa biografia sobre uma personalidade
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histórica contemporânea aos acontecimentos da Revolução Francesa, o Marquês de Rollebon.
Para concretizar esse intento, o protagonista do romance sartriano consulta as mais diversas
fontes bibliográficas em uma pequena cidade francesa fictícia, Bouville pretendendo
justamente recolher um bom material acerca do tema de sua extenuante pesquisa.
Em uma dessas investigações documentais, Roquentin, ao frequentar a biblioteca da
cidade, trava contato com a curiosa figura de um pesquisador, um homem muito erudito, a
quem Sartre, através do protagonista da obra, denomina jocosamente como “O Autodidata”.
Aliás, de acordo com o registro do diário de Roquentin, datado de segunda-feira, 19 de janeiro
de 1932, Sartre diz que o nome desse estranho indivíduo é Ogier P..., e sua profissão era a de
escrevente de escriturário de justiça (SARTRE, 1983, p. 18).
Conforme o autor representa tal personagem ao longo da obra, esse tipo erudito adota
o estranho costume de ler os extensos volumes dessa biblioteca em ordem alfabética, sem se
importar de forma alguma com a significação orgânica e intelectual desses conteúdos. O
somatório anárquico de informações heteróclitas, em vez de lhe favorecer o estímulo efetivo
para a ação, em verdade lhe causa a inação, pois esse exercício de assimilação “mórbida” de
informações a partir de um formalismo pedagógico vazio o torna dependente intelectualmente
de um sistema educacional arruinador das capacidades criativas do pensamento humano.
O “método pedagógico” estabelecido pelo Autodidata representa, de forma crua, a
impotência existencial e o ridículo de projeto educacional livresco próprio da sociedade
moderna, disciplinando a vida do estudante a partir da sua submissão a um parâmetro
acadêmico de traços normativos que impede qualquer autonomia crítica e criativa;
concedendo pouco espaço para a análise e muita importância para a assimilação e
decodificação de conteúdos. Por conseguinte, o ato de estudar se torna um mero assimilar,
absorver, e quem realiza tal função é a mente humana, tal como uma esponja que retém
momentamente um líquido para que, em seguida, após ser espremida, venha a perder grande
parte do seu conteúdo. Através dessa prática de leitura empreendida pelo Autodidata, a
primeira idéia que surge seria a seguinte: esse homem não busca o conhecimento para que
este possibilite a afirmação de sua vida, o desvelamento do sentido da existência, mas apenas
uma extenuante ocupação que vulgariza o próprio ato de busca pelo conhecimento. Afinal, o
conhecimento autêntico, que proporciona a elevação do homem, é seleto de forma que não se
encontra, portanto, em qualquer obra. O Autodidata, em vez de direcionar sua pesquisa por
um viés qualitativo, sabendo selecionar adequadamente aquilo que é pertinente ou não de ser
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apreendido pelo intelecto, busca o conhecimento numa perspectiva quantitativa, pretendendo
ler tudo aquilo que se encontra disponível, para ampliar o seu acúmulo de informações.
Conforme é expresso no romance, o Autodidata, segundo Sartre:
Passou brutalmente do estudo dos coleópteros para o da teoria dos quanta, de
uma obra sobre Tamerlão a um panfleto católico contra o darwinismo: em
momento alguma se desconcertou. Leu tudo; armazenou em sua cabeça a
metade do que se sabe sobre a partenogênese, a metade dos argumentos
contra a vivissecção. Atrás dele, diante dele, há um universo. E se aproxima
o dia em que dirá, fechando o último volume da última prateleira da extrema
esquerda: “E agora?” (1983, p. 53-54).
A indagação final representa o sentimento de vazio existencial decorrente da
impossibilidade de uma figura intelectualmente constituída como o Autodidata vir a obter
mais informações no estudo livresco, conduzindo-lhe a um sufocante niilismo, pois toda a sua
instrução, apesar de lhe conceder um razoável grau de retenção de informações, não se
traduziu em conhecimento capaz de transformar as condições de sua vida. Dessa maneira,
esse acúmulo de conhecimento inócuo exclui qualquer possibilidade desse homem excêntrico
realizar aquilo que é mais importante na vida de um homem sábio, de um autêntico
pesquisador: utilizar o conhecimento legado pelos outros como um estímulo para a formação
das suas próprias ideias e concepções, e não uma atividade insana que retira justamente essa
oportunidade imprescindível para o desenvolvimento da genialidade; tanto pior, se porventura
um dia os livros acabassem, a vida do Autodidata se tornaria desprovida de sentido. Essa
extravagante metodologia empregada pelo personagem apenas preenche a vacuidade da sua
mente com uma enorme carga de informações, sem que, todavia, venha a lhe proporcionar o
ato de pensar de maneira autônoma, isto é, uma apropriação de forma crítica de todos os
conteúdos assimilados em sua voraz sede de leitura.
Talvez o vazio da mente desse homem decorra justamente da sua inaptidão para o
exercício do pensamento, uma vez que, pelo fato de não ter desenvolvido uma mente dotada
de senso crítico, o Autodidata acredita que qualquer tipo de informação e de conhecimento
adquirido pelos livros se tornaria pertinente para a sua formação intelectual, sendo assim um
procedimento epistemologicamente válido a ser desenvolvido. Perpetuando uma mente inerte,
que não pensa por conta própria, o erudito Autodidata vislumbra preencher o seu tempo
ocioso através de intermináveis estudos, sem que, todavia, venha a alcançar qualquer
satisfação existencial mais profunda, justamente porque esse tipo de informação não é dotada
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de uma significação autêntica para a sua vida, não é capaz de afetá-lo adequadamente
estimulando-ao ao agir. Em um dado momento da narrativa sartriana, encontramos uma
esclarecedora revelação feita pelo Autodidata ao seu atencioso colega Roquentin:
Quando tiver terminado minha instrução (faltam ainda seis anos para isso),
me juntarei, se me permitirem, aos estudantes e professores que fazem um
cruzeiro anual ao Oriente Próximo. Gostaria de tornar alguns conhecimentos
mais exatos – diz com unção – e gostaria também que me acontecessem
coisas inesperadas, coisas novas, aventuras, para ser verdadeiro (SARTRE,
1983, p. 61).
Percebemos que o paulatino processo de absorção de informações e a pretensa
instrução do Autodidata o impedem, no presente, de dar vazão aos seus projetos mais
libertários. Por que não viajar agora rumo ao desconhecido? Por qual motivo são ainda
necessários seis anos para obter a dita instrução esperada? Não seria talvez uma fabulação de
sua mente, como uma espécie de disciplina intelectual que ele próprio se impõe para depois
poder gozar um momento de prazer, de liberdade?
Podemos então considerar que esse excêntrico exercício de aquisição de
conhecimento realizado pelo Autodidata se assemelharia ao arquivamento de informações
totalmente desvinculadas da sua vida, uma vez que, dentre uma vastidão de saberes e
informações criados pelo homem ao longo de sua história, apenas uma ínfima parte realmente
pode proporcionar uma genuína formação de pensamento. Por exemplo, é praticamente
impossível um pesquisador conhecer profundamente todos os sistemas de pensamento da
Filosofia, uma vez que se trata de um imenso legado intelectual em constante processo de
crítica e reformulação. Por isso, o pesquisador costuma privilegiar um direcionamento de
pensamento, e a partir daí alcançar as suas próprias hipóteses e teorias. Contudo, o Autodidata
demonstra não se importar com tal questão: para ele, o conhecimento deve ser buscado por si
mesmo, independentemente de qualquer consideração sobre o mundo circundante, pois este
pode, segundo o seu confuso juízo, ser perfeitamente representado pelos arquivos
bibliográficos.
A atividade maior do pesquisador erudito consiste apenas em saber, não importa o que
seja, mas efetivamente saber. O livro, o documento, não se torna um objeto de interação
intelectual com o autor, mas apenas um prato a ser devorado vorazmente. Esse procedimento
mata lentamente a força vital de sociedade do ponto de vista cultural, pois impede o livre
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fluxo do exercício de pensamento, ou seja, o questionamento, a reflexão, as dúvidas, dentre
outras possibilidades. Um pesquisador autêntico deve reservar uma parte do seu tempo para
que os pensamentos possam afluir na sua mente, pois, caso contrário, ele se torna não um
cérebro pensante, mas uma espécie de máquina de conhecer. Conhecer, no entanto, na pior
acepção possível da palavra, pois essa atitude praticada pelo autodidata, conforme citado
anteriormente, não decorre do sentimento criador, mas de uma tentativa de preencher o
enorme espaço disponível de sua mente com o acúmulo dessas informações.
Após o levantamento dessas questões, podemos, de acordo com o texto de Sartre,
pensar acerca dos motivos que levaram esse homem erudito a passar a maior parte do seu
tempo de vida nessa curiosa dedicação aos estudos. Esse personagem, ávido pela aquisição do
conhecimento, de tão envolvido nessa tarefa, certamente não dedica tempo para o
questionamento do significado de sua existência, uma reflexão sobre os seus valores
cotidianos e a sua própria pessoa. Nessas condições, o Autodidata acaba vivendo numa
compreensão medíocre do real, pois sua vida fica desvinculada dos acontecimentos, das
interações humanas, em favor desse recolhimento intelectual, o qual, todavia, decorre não de
uma tentativa de se descobrir a essência da intimidade, mas a fuga desta. Esse exercício
desmedido de erudição, ainda que venha a obrigatoriamente isolar esse homem da
mundanidade do mundo, não serve como uma possibilidade de reflexão autêntica acerca da
existência. Podemos considerar que, talvez, a atitude de buscar o conhecimento de forma
exacerbada empreendida pelo Autodidata ocorra não em função de uma tentativa de
compreender adequadamente o sentido da existência, mas como uma maneira ardilosa de se
distanciar da compreensão do significado existencial do mundo.
Mantendo sua mente ocupada com os projetos de pesquisa e ampliação do
conhecimento, esse personagem evita dedicar seu tempo acerca de considerações realmente
importantes na existência humana, tais como o sentido da vida, o problema da finitude, a idéia
de livre-arbítrio, dentre outras questões de âmbito existencial e filosófico. Certamente essas
questões afligem a mente de um homem tal como o Autodidata, de maneira que para ele se
torna supostamente muito mais vantajoso pensar em futilidades intelectuais do que tomar
coragem de pensar acerca de temas realmente relevantes para a condição humana.
Conforme vimos anteriormente, a erudição desmedida, descomprometida em relação a
qualquer tipo de desvelamento do sentido da vida, se torna prejudicial por justamente alienar
o homem de seu estar situado no mundo, fornecendo apenas um conjunto de informações
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inócuas guiadas por um instinto mórbido de tudo conhecer. A forma jocosa como Roquentin
se refere ao modo de agir desse homem somente justifica o que uma personalidade de tal
quilate representa numa sociedade: um peso inerte, pois não proporciona nenhum tipo de
crescimento, de produtividade efetiva que venha a beneficiar aos demais. Todavia, ao mesmo
tempo, encontramos um profundo sentimento de simpatia entre Roquentin e o Autodidata,
pois este faz de sua vida medíocre uma experiência de contínua instrução, enquanto aquele se
dedica durante muito tempo ao exercício de narração biográfica de uma figura histórica sem
qualquer relação com a sua própria vida.
O Autodidata, apesar de ser um indivíduo imerso no vácuo da existência, encontra, na
absorção de informações livrescas, uma forma de contornar a experiência de desamparo do
niilismo. Por sua vez, o que a grande massa social faz em sua existência ordinária? Submetese graciosamente aos imperativos da moda, aos apelos sedutores da publicidade do consumo,
regozija-se voluptuosamente na realidade espetacular projetada pelas imagens da televisão,
embota a sua mente com programas televisivos de baixo nível cultural, dentre outras mazelas
que, de certo modo, tornam-se recursos para se evitar a corrosão existencial mediante a
constatação da diluição simbólica da vida. Nessas condições, o Autodidata, apesar de
impossibilitado de enfrentar de forma heróica o vazio da vida através da construção de um
sentido existencial que lhe permita se tornar mais criativo, ao menos consegue se emancipar
da normativa moralidade de rebanho secularizada na contemporaneidade pela submissão aos
ditames imagéticos das grandes corporações. Talvez seja por isso que, apesar de sua caricata
extravagância, a personalidade do Autodidata encontre no leitor certa admiração e mesmo
respeito, pois sua vida, apesar de existencialmente vazia, ao menos se constituiu sob os signos
da singularidade.
Considerações Finais
Este texto não deve de modo algum ser compreendido como uma suma do riquíssimo
pensamento sartriano, tampouco objetivou apresentar de forma sistemática os seus conceitos
fundamentais; tal pretensão jamais se viabilizaria em tal escrito. Nosso propósito não foi nem
mesmo o de analisarmos a totalidade das questões filosóficas contidas no romance A Náusea,
mas sim um aspecto que, em meu caso particular, despertara o foco de minha atenção,
precisamente o problema da disposição eruditista, caricatura apresentada de forma tão precisa
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pela genialidade de Sartre. Considero que tal problema de forma alguma é um tema
secundário no escrito sartriano, mas um elemento crucial para compreendermos detidamente a
experiência do vazio existencial, que encontra uma frustrada tentativa de ser preenchido pelo
enfoque das capacidades cognitivas humanas no exercício desmedido da erudição.
Referências
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
___________. O nascimento da Tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. de J. Guinsburg. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
_____________. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a
vida. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003a.
___________. “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensin” / Terceira Consideração
Intempestiva: Schopenhauer educador. In: Escritos sobre Educação. Trad. de Noéli Correia de Melo
Sobrinho. Rio de Janeiro: Loyola/PUC-Rio, 2003.
SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Trad. de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Filosofia Universitária. Trad. de Maria Lúcia Mello Oliveira
Cacciola e Márcio Suzuki. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Especialização em Pesquisa de
Mercado e Opinião Pública da UERJ. E-mail: [email protected]
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