P á g i n a | 31 Armadilhas da erudição: o autodidata e a vacuidade existencial, segundo Sartre Renato Nunes Bittencourt Resumo: Neste artigo, analisamos a extravagante figura denominada como “Autodidata” no romance A Náusea, de Jean-Paul Sartre, enfatizando a sua relação com uma espécie de disposição erudita estéril para a absorção de informações intelectualmente desconexas, cujo único intuito talvez seja preencher o vazio de uma existência desprovida de sentido. Palavras-Chave: Erudição. Vazio Existencial. Sartre. Abstract: In this article we analyze the fancy figure called “Self-taught” in the romance Nausea, by Jean-Paul Sartre, emphasizing its relation with a species of barren erudite disposal for the absorption of intellectually disconnected information, whose only intention perhaps is to fill the emptiness of an existence unprovided of signification. Keywords: Erudition; Existential Emptiness; Sartre. Introdução No decorrer deste artigo, pretendemos expor a leitura sartriana acerca do problema do excesso de conhecimento na vida humana, e as implicações que essa exacerbação poder vir a motivar na existência do homem, sobretudo quando essa busca pela aquisição desenfreada por conhecimento ocorre de maneira destituída de um sentido condutor dos valores da própria vida. Conforme veremos no decorrer destas linhas, a erudição não significa necessariamente sabedoria, tampouco conhecimento prático, e, de maneira alguma, é garantia para a aquisição de felicidade e progresso cultural autêntico, por justamente mascarar. em diversas circunstâncias, o autêntico significado de ambas em prol da absorção das informações mais heteróclitas possíveis. 1 - O eruditismo como expressão da decadência do pensamento A problemática do eruditismo, a busca desmedida pelo conhecimento que se torna muito mais um processo informativo, é um tema recorrente em diversos pensadores de grande importância para a tradição filosófica ocidental. Schopenhauer, ao criticar o modelo de conhecimento existente nos meios acadêmicos de sua época (que vivia sob a égide da filosofia idealista hegeliana), criticava severamente os academicistas que, em vez de pretenderem alcançar o conhecimento como meio de formação do próprio pensamento singular, concedem ao processo de assimilação dos conteúdos dos livros e dos arquivos muito mais importância do que o próprio exercício de pensamento na sua eterna busca pela verdade: o mais Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 32 conveniente é estudar a obra de um autor por apenas um curto período, para que se possa assim conceder espaço intelectual para a reflexão pessoal (SCHOPENHAUER, 2001, p. 92). Schopenhauer também se preocupava com a metodologia do ensino de filosofia que deveria ser aplicada nas instituições de ensino, de modo muito distante do sistema que estava então em voga e que se pautava acima de tudo pela interpretação historiográfica dos conceitos do filósofo analisado; mais ainda, considerava que o ensino de filosofia deveria ser ministrado como caráter introdutório, no qual o professor transmitiria as ideias gerais de um grande pensador, de modo que, a partir desse momento, o próprio estudante se esforçasse para desvendar o sistema de pensamento desse filósofo, trilhando o seu próprio caminho intelectual sem depender da constante intervenção da autoridade do professor. Desse modo se evitaria formar futuros imitadores de uma corrente de pensamento já estabelecida. A educação livresca, para Schopenhauer, é algo a ser evitado por qualquer estabelecimento educacional que se proponha a promover de fato as faculdades superiores do ser humano (SCHOPENHAUER, 2001, p. 92). Esse sistema eruditista excluiria um dos elementos mais importantes no processo desempenhado pelo ser humano na sua tentativa de desvelar o sentido da existência: pensar por conta própria, independente de qualquer autoridade do saber. A função básica das academias deveria ser a de motivar o homem a pensar por si mesmo, jamais fornecer de modo não problematizado o saber dos grandes nomes da tradição cultural estabelecida, uma vez que tal procedimento retiraria a possibilidade do homem comprometido com a busca pela verdade vir a alcançá-la (SCHOPENHAUER, 2001, p. 4). Conforme Schopenhauer argumenta, a autêntica Filosofia é comprometida incondicionalmente com o ato de buscar a verdade que revele o sentido do mundo para o homem, suprindo assim os caracteres mais angustiantes da carência metafísica comum em todo todos (SCHOPENHAUER, 2001, p. 4). Entretanto, não era isso que ocorria usualmente nas universidades modernas, mas apenas um mecanismo corporativista no qual os professores se promoviam mutuamente, de modo a conquistarem o reconhecimento do mundo acadêmico e assim enriquecerem através da especulação cultural. Nietzsche, por sua vez, fora também um grande crítico do modelo pedagógico das instituições de ensino oitocentistas, de maneira que, ao longo de sua atividade filosófica, dedicou importantes reflexões sobre a metodologia educacional dos estabelecimentos de formação dos jovens, objetando severamente o método acadêmico de ensino então vigente: Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 33 Eles talvez julguem que essa cultura teria sido somente um tipo de saber sobre a cultura, e, além disto, um saber efetivamente falso e superficial. Falso e superficial, em verdade, porque se sustentou a contradição entre vida e saber, porque não se viu absolutamente o característico na formação de verdadeiros povos aculturados: que a cultura só pode crescer e florescer a partir da vida, enquanto ela foi abandona pelos alemães como uma flor de papel ou lançada sobre eles como uma cobertura de açúcar e, por isto, deve permanecer sempre mendaz e infrutífera (NIETZSCHE, 2003b, p.91). Nietzsche considera que o modelo educacional existente na Alemanha oitocentista, em vez de motivar o estudante a buscar o conhecimento como recurso potencializador da vida, criava efetivamente uma terrível ruptura justamente entre o conhecimento e a existência. Conforme Nietzsche destacaria de forma ácida no Ecce Homo, O erudito que no fundo não faz senão “revirar” livros – o filólogo uns duzentos por dia, em cálculo modesto – acaba por perder totalmente a faculdade de pensar por si. Se não revira, não pensa. Ele responde a um estímulo (- a um pensamento lido), quando pensa – por fim reage somente. O erudito dedica sua inteira energia ao aprovar e reprovar, à crítica ao já pensado – ele próprio já não pensa... O instinto de autodefesa embotou-se nele; de outro modo se protegeria dos livros. O erudito – um décadent (NIETZSCHE, 2001, p. 47). Na sua perspectiva, um dos grandes responsáveis por esse problema grave, que assolava a autêntica cultura alemã (podemos também estender tal circunstância aos europeus de uma forma geral), consistia na figura do erudito, o tipo de homem severamente caracterizado acima de tudo pelo fato de vislumbrar a aquisição desenfreada de conhecimento, desmedida essa que poderia motivar o declínio da própria vitalidade. Afinal, Nietzsche considera que o conhecimento se torna importante para a vida quando ele é utilizado para proporcionar a formação do gênio criativo, da singularidade, pois não é o conhecimento o elemento primordial da existência, mas a própria vida, considerada como o valor maior: Será então que a vida deve dominar o conhecimento, a ciência, ou será que o conhecimento deve dominar a vida? Qual destes dois poderes é o mais elevado e decisivo? Ninguém duvidará: a vida é a mais elevada, o poder dominante, pois um conhecer que aniquila a vida aniquilaria ao mesmo tempo a si mesmo. O conhecer pressupõe a vida: ele tem, portanto, o mesmo interesse na conservação da vida que todo e qualquer ser tem na continuação de sua própria existência (NIETZSCHE, 2003a, p. 96). Para Nietzsche, o conhecimento autêntico está associado imediatamente com a promoção da vida e das qualidades singulares dos indivíduos criativos, de modo que o sistema de ensino deveria favorecer a afirmação dos mesmos. No decorrer de O nascimento da Tragédia, Nietzsche denunciara a diluição da experiência trágica de mundo entre os gregos Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 34 antigos a partir da formação do ideário gnosiológico do “homem teórico”, o indivíduo que realiza um divórcio maléfico entre o pensamento e a vida, posto que era movido pelo anseio de se livrar das contradições da existência por meio do conhecimento abstrato. O pensamento socrático-platônico se configura como a expressão filosófica mais acabada desse projeto metafísico, gnosiológico e moral, pois a racionalidade abstrata é privilegiada em relação ao caráter imanente dos instintos. O tipo erudito, que na concepção nietzschiana é das manifestações modernas do “homem teórico”, busca a aquisição do conhecimento para a revelação do sentido teleológico da existência, para a justificação moral do mundo, ou seja, de modo algum para a afirmação incondicional do existir. Nesse procedimento, o homem movido pelo ímpeto eruditista abdica de viver plenamente a sua existência, interagir com a pujança de forças do mundo em prol da clausura dos gabinetes e das bibliotecas, espaços que ele considera como os centros por excelência do saber. Nessas condições, o mundo é considerado apenas como uma fonte secundária de saber, e não a sua expressão maior. Gostaria de ressaltar que utilizei estas explanações gerais acerca do problema da erudição noutros importantes filósofos que versaram acerca deste tema para poder adentrar de forma mais profunda no autor em questão, Sartre, justamente por considerar que os comentários anteriores enriquecem de maneira considerável o presente texto, assim como demonstram a importância sobre a reflexão acerca do estatuto de conhecimento na vida humana. Pretendo focalizar a atenção em especial no célebre romance A Náusea, no personagem que Sartre denomina como “O Autodidata”, uma excelente caricatura do tipo de homem erudito, provido, todavia, de sentimentos e de uma vida interior tal como a nossa; por conseguinte, “O Autodidata” manifesta afinidades eletivas com qualquer um de nós. Afinal, vivemos em uma estrutura social que exige a contínua assimilação de informações para que possamos aparentemente manter um padrão de vida bem situado acerca dos problemas corriqueiros da cotidianidade e atuar convenientemente no sistema de alienação produtiva próprio do regime capitalista, que requer especialistas máximos do mínimo. Mas será que tais “saberes” promovem uma autêntica elevação humana e uma transformação das suas condições valorativas e existenciais inerentemente medíocres? 2 - História, conhecimento e erudição A temática central de A Náusea consiste no empreendimento de um escritor, Antoine de Roquentin, em redigir uma extensa e minuciosa biografia sobre uma personalidade Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 35 histórica contemporânea aos acontecimentos da Revolução Francesa, o Marquês de Rollebon. Para concretizar esse intento, o protagonista do romance sartriano consulta as mais diversas fontes bibliográficas em uma pequena cidade francesa fictícia, Bouville pretendendo justamente recolher um bom material acerca do tema de sua extenuante pesquisa. Em uma dessas investigações documentais, Roquentin, ao frequentar a biblioteca da cidade, trava contato com a curiosa figura de um pesquisador, um homem muito erudito, a quem Sartre, através do protagonista da obra, denomina jocosamente como “O Autodidata”. Aliás, de acordo com o registro do diário de Roquentin, datado de segunda-feira, 19 de janeiro de 1932, Sartre diz que o nome desse estranho indivíduo é Ogier P..., e sua profissão era a de escrevente de escriturário de justiça (SARTRE, 1983, p. 18). Conforme o autor representa tal personagem ao longo da obra, esse tipo erudito adota o estranho costume de ler os extensos volumes dessa biblioteca em ordem alfabética, sem se importar de forma alguma com a significação orgânica e intelectual desses conteúdos. O somatório anárquico de informações heteróclitas, em vez de lhe favorecer o estímulo efetivo para a ação, em verdade lhe causa a inação, pois esse exercício de assimilação “mórbida” de informações a partir de um formalismo pedagógico vazio o torna dependente intelectualmente de um sistema educacional arruinador das capacidades criativas do pensamento humano. O “método pedagógico” estabelecido pelo Autodidata representa, de forma crua, a impotência existencial e o ridículo de projeto educacional livresco próprio da sociedade moderna, disciplinando a vida do estudante a partir da sua submissão a um parâmetro acadêmico de traços normativos que impede qualquer autonomia crítica e criativa; concedendo pouco espaço para a análise e muita importância para a assimilação e decodificação de conteúdos. Por conseguinte, o ato de estudar se torna um mero assimilar, absorver, e quem realiza tal função é a mente humana, tal como uma esponja que retém momentamente um líquido para que, em seguida, após ser espremida, venha a perder grande parte do seu conteúdo. Através dessa prática de leitura empreendida pelo Autodidata, a primeira idéia que surge seria a seguinte: esse homem não busca o conhecimento para que este possibilite a afirmação de sua vida, o desvelamento do sentido da existência, mas apenas uma extenuante ocupação que vulgariza o próprio ato de busca pelo conhecimento. Afinal, o conhecimento autêntico, que proporciona a elevação do homem, é seleto de forma que não se encontra, portanto, em qualquer obra. O Autodidata, em vez de direcionar sua pesquisa por um viés qualitativo, sabendo selecionar adequadamente aquilo que é pertinente ou não de ser Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 36 apreendido pelo intelecto, busca o conhecimento numa perspectiva quantitativa, pretendendo ler tudo aquilo que se encontra disponível, para ampliar o seu acúmulo de informações. Conforme é expresso no romance, o Autodidata, segundo Sartre: Passou brutalmente do estudo dos coleópteros para o da teoria dos quanta, de uma obra sobre Tamerlão a um panfleto católico contra o darwinismo: em momento alguma se desconcertou. Leu tudo; armazenou em sua cabeça a metade do que se sabe sobre a partenogênese, a metade dos argumentos contra a vivissecção. Atrás dele, diante dele, há um universo. E se aproxima o dia em que dirá, fechando o último volume da última prateleira da extrema esquerda: “E agora?” (1983, p. 53-54). A indagação final representa o sentimento de vazio existencial decorrente da impossibilidade de uma figura intelectualmente constituída como o Autodidata vir a obter mais informações no estudo livresco, conduzindo-lhe a um sufocante niilismo, pois toda a sua instrução, apesar de lhe conceder um razoável grau de retenção de informações, não se traduziu em conhecimento capaz de transformar as condições de sua vida. Dessa maneira, esse acúmulo de conhecimento inócuo exclui qualquer possibilidade desse homem excêntrico realizar aquilo que é mais importante na vida de um homem sábio, de um autêntico pesquisador: utilizar o conhecimento legado pelos outros como um estímulo para a formação das suas próprias ideias e concepções, e não uma atividade insana que retira justamente essa oportunidade imprescindível para o desenvolvimento da genialidade; tanto pior, se porventura um dia os livros acabassem, a vida do Autodidata se tornaria desprovida de sentido. Essa extravagante metodologia empregada pelo personagem apenas preenche a vacuidade da sua mente com uma enorme carga de informações, sem que, todavia, venha a lhe proporcionar o ato de pensar de maneira autônoma, isto é, uma apropriação de forma crítica de todos os conteúdos assimilados em sua voraz sede de leitura. Talvez o vazio da mente desse homem decorra justamente da sua inaptidão para o exercício do pensamento, uma vez que, pelo fato de não ter desenvolvido uma mente dotada de senso crítico, o Autodidata acredita que qualquer tipo de informação e de conhecimento adquirido pelos livros se tornaria pertinente para a sua formação intelectual, sendo assim um procedimento epistemologicamente válido a ser desenvolvido. Perpetuando uma mente inerte, que não pensa por conta própria, o erudito Autodidata vislumbra preencher o seu tempo ocioso através de intermináveis estudos, sem que, todavia, venha a alcançar qualquer satisfação existencial mais profunda, justamente porque esse tipo de informação não é dotada Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 37 de uma significação autêntica para a sua vida, não é capaz de afetá-lo adequadamente estimulando-ao ao agir. Em um dado momento da narrativa sartriana, encontramos uma esclarecedora revelação feita pelo Autodidata ao seu atencioso colega Roquentin: Quando tiver terminado minha instrução (faltam ainda seis anos para isso), me juntarei, se me permitirem, aos estudantes e professores que fazem um cruzeiro anual ao Oriente Próximo. Gostaria de tornar alguns conhecimentos mais exatos – diz com unção – e gostaria também que me acontecessem coisas inesperadas, coisas novas, aventuras, para ser verdadeiro (SARTRE, 1983, p. 61). Percebemos que o paulatino processo de absorção de informações e a pretensa instrução do Autodidata o impedem, no presente, de dar vazão aos seus projetos mais libertários. Por que não viajar agora rumo ao desconhecido? Por qual motivo são ainda necessários seis anos para obter a dita instrução esperada? Não seria talvez uma fabulação de sua mente, como uma espécie de disciplina intelectual que ele próprio se impõe para depois poder gozar um momento de prazer, de liberdade? Podemos então considerar que esse excêntrico exercício de aquisição de conhecimento realizado pelo Autodidata se assemelharia ao arquivamento de informações totalmente desvinculadas da sua vida, uma vez que, dentre uma vastidão de saberes e informações criados pelo homem ao longo de sua história, apenas uma ínfima parte realmente pode proporcionar uma genuína formação de pensamento. Por exemplo, é praticamente impossível um pesquisador conhecer profundamente todos os sistemas de pensamento da Filosofia, uma vez que se trata de um imenso legado intelectual em constante processo de crítica e reformulação. Por isso, o pesquisador costuma privilegiar um direcionamento de pensamento, e a partir daí alcançar as suas próprias hipóteses e teorias. Contudo, o Autodidata demonstra não se importar com tal questão: para ele, o conhecimento deve ser buscado por si mesmo, independentemente de qualquer consideração sobre o mundo circundante, pois este pode, segundo o seu confuso juízo, ser perfeitamente representado pelos arquivos bibliográficos. A atividade maior do pesquisador erudito consiste apenas em saber, não importa o que seja, mas efetivamente saber. O livro, o documento, não se torna um objeto de interação intelectual com o autor, mas apenas um prato a ser devorado vorazmente. Esse procedimento mata lentamente a força vital de sociedade do ponto de vista cultural, pois impede o livre Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 38 fluxo do exercício de pensamento, ou seja, o questionamento, a reflexão, as dúvidas, dentre outras possibilidades. Um pesquisador autêntico deve reservar uma parte do seu tempo para que os pensamentos possam afluir na sua mente, pois, caso contrário, ele se torna não um cérebro pensante, mas uma espécie de máquina de conhecer. Conhecer, no entanto, na pior acepção possível da palavra, pois essa atitude praticada pelo autodidata, conforme citado anteriormente, não decorre do sentimento criador, mas de uma tentativa de preencher o enorme espaço disponível de sua mente com o acúmulo dessas informações. Após o levantamento dessas questões, podemos, de acordo com o texto de Sartre, pensar acerca dos motivos que levaram esse homem erudito a passar a maior parte do seu tempo de vida nessa curiosa dedicação aos estudos. Esse personagem, ávido pela aquisição do conhecimento, de tão envolvido nessa tarefa, certamente não dedica tempo para o questionamento do significado de sua existência, uma reflexão sobre os seus valores cotidianos e a sua própria pessoa. Nessas condições, o Autodidata acaba vivendo numa compreensão medíocre do real, pois sua vida fica desvinculada dos acontecimentos, das interações humanas, em favor desse recolhimento intelectual, o qual, todavia, decorre não de uma tentativa de se descobrir a essência da intimidade, mas a fuga desta. Esse exercício desmedido de erudição, ainda que venha a obrigatoriamente isolar esse homem da mundanidade do mundo, não serve como uma possibilidade de reflexão autêntica acerca da existência. Podemos considerar que, talvez, a atitude de buscar o conhecimento de forma exacerbada empreendida pelo Autodidata ocorra não em função de uma tentativa de compreender adequadamente o sentido da existência, mas como uma maneira ardilosa de se distanciar da compreensão do significado existencial do mundo. Mantendo sua mente ocupada com os projetos de pesquisa e ampliação do conhecimento, esse personagem evita dedicar seu tempo acerca de considerações realmente importantes na existência humana, tais como o sentido da vida, o problema da finitude, a idéia de livre-arbítrio, dentre outras questões de âmbito existencial e filosófico. Certamente essas questões afligem a mente de um homem tal como o Autodidata, de maneira que para ele se torna supostamente muito mais vantajoso pensar em futilidades intelectuais do que tomar coragem de pensar acerca de temas realmente relevantes para a condição humana. Conforme vimos anteriormente, a erudição desmedida, descomprometida em relação a qualquer tipo de desvelamento do sentido da vida, se torna prejudicial por justamente alienar o homem de seu estar situado no mundo, fornecendo apenas um conjunto de informações Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 39 inócuas guiadas por um instinto mórbido de tudo conhecer. A forma jocosa como Roquentin se refere ao modo de agir desse homem somente justifica o que uma personalidade de tal quilate representa numa sociedade: um peso inerte, pois não proporciona nenhum tipo de crescimento, de produtividade efetiva que venha a beneficiar aos demais. Todavia, ao mesmo tempo, encontramos um profundo sentimento de simpatia entre Roquentin e o Autodidata, pois este faz de sua vida medíocre uma experiência de contínua instrução, enquanto aquele se dedica durante muito tempo ao exercício de narração biográfica de uma figura histórica sem qualquer relação com a sua própria vida. O Autodidata, apesar de ser um indivíduo imerso no vácuo da existência, encontra, na absorção de informações livrescas, uma forma de contornar a experiência de desamparo do niilismo. Por sua vez, o que a grande massa social faz em sua existência ordinária? Submetese graciosamente aos imperativos da moda, aos apelos sedutores da publicidade do consumo, regozija-se voluptuosamente na realidade espetacular projetada pelas imagens da televisão, embota a sua mente com programas televisivos de baixo nível cultural, dentre outras mazelas que, de certo modo, tornam-se recursos para se evitar a corrosão existencial mediante a constatação da diluição simbólica da vida. Nessas condições, o Autodidata, apesar de impossibilitado de enfrentar de forma heróica o vazio da vida através da construção de um sentido existencial que lhe permita se tornar mais criativo, ao menos consegue se emancipar da normativa moralidade de rebanho secularizada na contemporaneidade pela submissão aos ditames imagéticos das grandes corporações. Talvez seja por isso que, apesar de sua caricata extravagância, a personalidade do Autodidata encontre no leitor certa admiração e mesmo respeito, pois sua vida, apesar de existencialmente vazia, ao menos se constituiu sob os signos da singularidade. Considerações Finais Este texto não deve de modo algum ser compreendido como uma suma do riquíssimo pensamento sartriano, tampouco objetivou apresentar de forma sistemática os seus conceitos fundamentais; tal pretensão jamais se viabilizaria em tal escrito. Nosso propósito não foi nem mesmo o de analisarmos a totalidade das questões filosóficas contidas no romance A Náusea, mas sim um aspecto que, em meu caso particular, despertara o foco de minha atenção, precisamente o problema da disposição eruditista, caricatura apresentada de forma tão precisa Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 40 pela genialidade de Sartre. Considero que tal problema de forma alguma é um tema secundário no escrito sartriano, mas um elemento crucial para compreendermos detidamente a experiência do vazio existencial, que encontra uma frustrada tentativa de ser preenchido pelo enfoque das capacidades cognitivas humanas no exercício desmedido da erudição. Referências NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ___________. O nascimento da Tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. _____________. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003a. ___________. “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensin” / Terceira Consideração Intempestiva: Schopenhauer educador. In: Escritos sobre Educação. Trad. de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Loyola/PUC-Rio, 2003. SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Trad. de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Filosofia Universitária. Trad. de Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola e Márcio Suzuki. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Especialização em Pesquisa de Mercado e Opinião Pública da UERJ. E-mail: [email protected] Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 07, 2015, pp. 31-40, ISSN 2318-9614