TROVADORISMO O Trovadorismo é a primeira manifestação literária da Língua Portuguesa. Seu surgimento ocorreu no mesmo período em que Portugal começou a despontar como nação independente, no século XII. Os textos foram escritos em galego-português, em virtude da integração cultural e linguística que existia, na época, entre Portugal e Galícia, região que hoje pertence à Espanha. É o período literário que reúne basicamente os poemas feitos pelos trovadores para serem cantados em feiras, festas e nos castelos durante os últimos séculos da Idade Média, uma vez que a escrita era pouco difundida na época. A poesia não era escrita para ser lida por um leitor solitário. Eram poemas cantados e acompanhados de instrumentos musicais e de danças. Por esse motivo, foram denominados CANTIGAS. Os autores dessas cantigas eram os trovadores (pessoas que compunham as poesias, as melodias, faziam trovas e rimas). A designação "trovador" aplicava-se aos autores de origem nobre ou clero, sendo que os autores de origem vilã (camada popular) tinham o nome de jogral, cantavam e executavam as canções, mas não as criavam. As cantigas foram manuscritas em cadernos de apontamentos, que mais tarde foram postas em coletâneas de canções chamadas Cancioneiros (livros que reuniam grande número de trovas). Uma quantidade razoável de cantigas chegaram até nossos dias graças às obras que reuniram parte dessas produções . Existem três cancioneiros importantes: Cancioneiro da Ajuda (compilado provavelmente no século XIII), Cancioneiro da Vaticana (cópia de cantigas provavelmente no século XV) e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa ou Cancioneiro Colocci - Brancutti (compilado possivelmente no século XIV). A cantiga mais antiga que se tem registro é a Cantiga da Ribeirinha ou Cantiga de Guarvaia (Cantiga de Amor), de Paio Soares de Taveirós, de 1189 ou 1198. Cantiga da Ribeirinha No mundo non me sei parelha mentre me for como me vai, ca ja moiro por vós e ai! mia senhor branca e vermelha, queredes que vos retraia quando vos eu vi em saia. Mao dia me levantei que vos entom nom vi fea! E, mia senhor, des aquelha me foi a mi mui mal di’ai! E vós, filha de Dom Paai Moniz, e bem vos semelha d’aver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d’alfaia nunca de vós ouve nem ei valia d’ua correa. Glossário: non me sei parelha: não conheço ninguém igual a mim. mentre: enquanto.ca: pois. branca e vermelha: a cor branca da pele, contrastando com o rosado do rosto. retraia: pinte, retrate, descreva. en saia: sem manto. que: pois dês: desde semelha: parece d’aver eu por vós: receber por seu intermédio. guarvaia: manto luxuoso, provavelmente vermelho, usado pela nobreza. alfaia: presente valia d’un correa: objeto de pequeno valor. TRADUÇÃO – CANTIGA DA RIBEIRINHA No mundo não conheço outro como eu, enquanto me acontecer como me acontece: porque já morro por vós, e ai!, minha senhora branca e vermelha, quereis que vos censure quando vos eu vi em saia? (em corpo bem feito) Mau dia me levantei que vos então não vi feia! E, minha senhora, desde então, passei muitos maus dias, ai! E vós, filha de D. Paio Moniz, parece-vos bem ter eu de vós uma garvaia? (manto) Pois eu, minha senhora, de presente nunca de vós tive nem tenho nem a mais pequenina coisa. LITERATURA MEDIEVAL Classificação das cantigas Com base na maioria das cantigas reunidas nos cancioneiros, podemos, classificá-las da seguinte forma: GÊNERO LÍRICO Cantigas de Amor Cantigas de Amigo GÊNERO SATÍRICO Cantigas de Escárnio Cantigas de Maldizer AS CANTIGAS LÍRICAS Cantiga de amor: tem raízes na poesia provençal (região de Provença – França), nos ambientes finos e aristocráticos das cortes. Este tipo de cantiga tematiza a confissão amorosa do homem em relação a uma mulher geralmente lamentando o seu sofrimento de amor diante da indiferença da mesma . O eu-lírico é um homem, perdidamente apaixonado por uma mulher inatingível (de classe social superior e/ou comprometida com outro homem) – amor cortês. Perguntar-vos quero por Deus Senhor fremosa, que vos fez mesurada e de bon prez, que pecados foron os meus que nunca tevestes por ben de nunca mi fazerdes ben. Pero sempre vos soub'amar des aquel dia que vos vi, mays que os meus olhos en mi, e assy o quis Deus guisar, que nunca tevestes por ben de nunca mi fazerdes ben. Des que vos vi, sempr'o maior ben que vos podia querer vos quigi, a todo meu poder, e pero quis Nostro Senhor que nunca tevestes por ben de nunca mi fazerdes ben. Mays, senhor, ainda con ben se cobraria ben por ben. Cantiga de amigo: tem raízes nas tradições da península Ibérica, em suas festas rurais e populares, em sua música e música. Apresentam normalmente ambientação rural, linguagem e estrutura simples; seu tema mais frequente é o lamento da moça pela ausência do amado. O eu-lírico é uma mulher (mas o autor era masculino, devido à sociedade feudal e o restrito acesso ao conhecimento da época), que canta seu amor pelo amigo (amigo = namorado). Também destacam-se, como características, o paralelismo (refrão), a presença da natureza e o amor NÃO cortês. Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo! ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi há jurado! ai Deus, e u é? DIFERENÇA ENTRE AS CANTIGAS DE AMIGO E AS DE AMOR: CANTIGAS DE AMIGO CANTIGAS DE AMOR Eu lírico feminino Presença de paralelismo Predomínio da musicalidade Assunto principal é o lamento da moça cujo namorado partiu Amor natural e espontâneo Ambientação popular rural ou urbana Influência da tradição oral ibérica Eu lírico masculino Ausência de paralelismo de par e estrofes Predomínio das idéias Assunto principal é o sofrimento amoroso do eu lírico perante uma mulher idealizada e distante Amor cortês; convencionalismo amoroso Ambientação aristocrática das cortes Forte influência provençal A NOVELA DE CAVALARIA E O AMOR CORTÊS As novelas de cavalaria, representantes da prosa medieval, evocavam ideais como amizade incondicional, respeito às damas, prontidão em ajudar os necessitados, honra à cristandade e obediência ao código como um todo. É nesse contexto que se inserem os textos do ciclo arturiano. Além dessas características, é fundamental também a presença do chamado amor cortês. Amor cortês foi um conceito europeu medieval de atitudes, mitos e etiqueta para enaltecer o amor, e que gerou vários gêneros de literatura medieval, incluindo o romance. Ele surgiu nas cortes ducais e principescas das regiões onde hoje se situa a França meridional, em fins do século XI (o “Tratado do Amor Cortês” foi escrito por um religioso do século 12 e define de modo rigoroso as regras para o amor nobre elevado ). Em sua essência, o amor cortês era uma experiência contraditória entre o desejo erótico e a realização espiritual, "um amor ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e auto-disciplinado, humilhante e exaltante, humano e transcendente". A expressão "amor cortês" foi popularizada no século XIX. Sua interpretação, origens e influência continuam a ser assunto de discussão. Por exemplo, um ponto de contínua controvérsia é se o amor cortês era puramente literário ou se era realmente praticado na vida real. No amor cortês, um homem devota uma grande paixão a uma mulher casada ou comprometida com outro. A ligação entre homem e mulher não é apenas carnal; havia entre os dois certa identificação, intimidade que não havia no casamento. Por causa do costume medieval - quase todos os casamentos eram feitos por interesse -, o amor cortês funcionava como o único e verdadeiro sentimento na vida da maioria das pessoas. Mais do que a conquista do objeto, da mulher amada, são importantes a relação de vassalagem, o período de espera e pequenas recompensas (o guerredon) e o sentimento de coita. Embora as regras do amor cortês contrariem a moral cristã, foi a própria a Igreja que colaborou, de certa forma, para que amores assim existissem, uma vez que o casamento religioso imposto nada mais era do que um sacramento instituído, sem muita consulta à vontade dos cônjuges. O amor cortês, assim, era como uma “perfeição do espírito” que não era possível por meio do casamento. REGRAS DO JOGO DO AMOR CORTÊS Submissão absoluta à dama. Vassalagem humilde e paciente. Promessa de honrar e servir a dama com fidelidade. Prudência para não abalar a reputação da dama, sendo o cavaleiro, por essa razão, proibido de falar diretamente dos sentimentos que tem por ela. A dama é vista como a mais bela de todas as mulheres. Pela amada o trovador despreza todos os títulos, as riquezas e a posse de todos os impérios. AS CANTIGAS SATÍRICAS Cantigas de escárnio: Esta cantiga é uma composição satírica em que se critica alguém através da zombaria do sarcasmo , traço típico da sátira . A cantiga de escárnio exige unicamente a alusão indireta e cheia de duplos sentidos, para que o destinatário não seja reconhecido, estimula a imaginação do poeta e sugere-lhe uma expressão irônica, embora, por vezes, bastante mordaz. Na cantiga de escárnio, o eu-lírico faz uma sátira a alguma pessoa. As cantigas de escárnio definem-se, pois, como sendo aquelas feitas pelos trovadores para dizer mal de alguém, por meio de ambigüidades, trocadilhos, ironias e sutilezas. Un cavalo non comeu á seis meses nen s’ergueu mais prougu’a Deus que choveu, creceu a erva, e per cabo si paceu, e já se leva! [foi embora] Seu dono non lhi buscou cevada neno ferrou: mai-lo bon tempo tornou, creceu a erva, e paceu, e arriçou, e já se leva! Seu dono non lhi quis dar cevada, neno ferrar; mais, cabo dum lamaçal creceu a erva, e paceu, e arriç’ar, e já se leva! Cantigas de maldizer: Esse tipo de cantiga traz uma sátira direta e sem duplos sentidos. É comum a agressão verbal à pessoa satirizada, e muitas vezes, são utilizados até palavrões. O nome da pessoa satirizada costuma ser identificado. As críticas referem-se a comportamentos políticos , sexuais , a nobres traidores , a compositores incapazes , a rivais amorosos , a mulheres de hábitos feios ou imorais , a pessoas , profissionais ou proprietários pretensiosos . A linguagem é mais grosseira e até obscena. "Ai dona fea! Foste-vos queixar Que vos nunca louv'en meu trobar Mais ora quero fazer un cantar En que vos loarei toda via; E vedes como vos quero loar: Dona fea, velha e sandia! Ai dona fea! Se Deus mi pardon! E pois havedes tan gran coraçon Que vos eu loe en esta razon, Vos quero já loar toda via; E vedes qual será a loaçon: Dona fea, velha e sandia! Dona fea, nunca vos eu loei En meu trobar, pero muito trobei; Mais ora já en bom cantar farei En que vos loarei toda via; E direi-vos como vos loarei: Dona fea, velha e sandia!" Joan Garcia de Guilhade DIFERENÇA ENTRE AS CANTIGAS DE ESCÁRNIO E AS DE MALDIZER: CANTIGAS DE ESCÁRNIO indiretas; uso da ironia e do equívoco. CANTIGAS DE MALDIZER diretas, sem equívocos; intenção difamatória; palavrões e xingamentos Trovador da lírica medieval Escrita Medieval Iluminura do Cancioneiro da Ajuda Iluminura de trovadores nas Cantigas de Santa Maria, século XIII-XIV Canção de amor Quer’eu em maneira de proença! fazer agora um cantar d’amor e querrei muit’i loar lmia senhor a que prez nem fremosura nom fal, nem bondade; e mais vos direi ém: tanto a fez Deus comprida de bem que mais que todas las do mundo val. Ca mia senhor quizo Deus fazer tal, quando a faz, que a fez sabedord e todo bem e de mui gram valor, e com tod’est[o] é mui comunal ali u deve; er deu-lhi bom sém, e desi nom lhi fez pouco de bem quando nom quis lh’outra foss’igual D. Dinis Ca mia senhor nunca Deus pôs mal, mais pôs i prez e beldad’e loor e falar mui bem, e riir melhor que outra molher; desi é leal muit’, e por esto nom sei oj’eu quem possa compridamente no seu bem falar, ca nom á, tra-lo seu bem, al. Tradução: Quero à moda provençal fazer agora um cantar de amor, e quererei muito aí louvar minha senhora a quem honra nem formosura não faltam nem bondade; e mais vos direi sobre ela: Deus a fez tão cheia de qualidades que ela mais que todas do mundo. Porque em minha senhora nunca Deus pôs mal, mas pôs nela honra e beleza e mérito e capacidade de falar bem, e de rir melhor que outra mulher também é muito leal e por isto não sei hoje quem possa cabalmente falar no seu próprio bem pois não há outro bem, para além do seu. Pois Deus quis fazer minha senhora de tal modo quando a fez, que a fez conhecedorad e todo bem e de muito grande valor, e além de tudo isto é muito sociável quando deve; também deu-lhe bom senso, e desde então lhe fez pouco bem impedindo que nenhuma outra fosse igual a ela Canção de amigo Martim Codax Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo? E ai Deus, se verra cedo! Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro? E ai Deus, se verra cedo! Ondas do mar levado, se vistes meu amado? E ai Deus, se verra cedo! Se vistes meu amado, por que ei gran coitado? E ai Deus, se verra cedo! Tradução: Acaso vistes meu amigo Ondas do mar de Vigo, aquele por quem suspiro? acaso vistes meu amigo? Queira Deus que ele venha cedo! Queira Deus que ele venha cedo! Acaso vistes meu amado, Ondas do mar agitado, por quem tenho grande cuidado (preocupado) ? acaso vistes meu amado? Queira Deus que ele venha cedo! Queira Deus que ele venha cedo! CANTIGAS DE ESCÁRNIO Pero Larouco De vós, senhor, quer’eu dizer verdade e nom ja sobr’[o] amor que vos ei: senhor, bem [moor] é vossa torpicidade de quantas outras eno mundo sei; assi de fea come de maldade nom vos vence oje senom filha dum rei [Eu] nom vos amo nem me perderei, u vos nom vir, por vós de soidade[...] Tradução: Sobre vós, senhora, eu quero dizer verdade e não já sobre o amor que tenho por vós: senhora, bem maior é vossa estupidez do que a de quantas outras conheço no mundo tanto na feiúra quanto na maldade não vos vence hoje senão a filha de um rei Eu não vos amo nem me perderei de saudade por vós, quando não vos vir. CANTIGA DE MALDIZER João Garcia de Ghilhade Ai, dona fea, fostes-vos queixar que vos nunca louv[o] em meu cantar; mais ora quero fazer um cantar Dona fea, nunca vos eu loei em que vos loarei toda via; em meu trobar, pero muito trobei; e vedes como vos quero loar: mais ora ja um bom cantrar farei, dona fea, velha e sandia! em que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: Dona fea, se Deus mi pardom, dona fea, velha e sandia! pois avedes [a]tam gram coraçom que vos eu loe, em esta razom vos quero ja loar toda via; e vedes qual sera a loaçom: dona fea, velha e sandia! Tradução: Ai, dona feia, foste-vos queixar que nunca vos louvo em meu cantar; mas agora quero fazer um cantar em que vos louvares de qualquer modo; Dona feia, eu nunca vos louvei e vede como quero vos louvar em meu trovar, embora tenha trovado muito; dona feia, velha e maluca! mas agora já farei um bom cantar; em que vos louvarei de qualquer modo; Dona feia, que Deus me perdoe, e vos direi como vos louvarei: pois tendes tão grande desejo dona feia, velha e maluca! de que eu vos louve, por este motivo quero vos louvar já de qualquer modo; e vede qual será a louvação: dona feia, velha e maluca! Mãos de afeto (Ivan Lins e Vitor Martins) Preparei minhas mãos de afeto Pra esse rapaz encantado Pra esse rapaz namorado. O mais belo capataz de todos Os cafezais O mais belo vaqueiro de todos Os cerrados O mais belo vaqueiro de todos Os cerrados Eu tinha um ombro de algodão Pra ajeitar seu sono Eu tinha uma água morna Pra lavar o seu suor E o meu corpo uma fogueira Pra esquentar seu frio E minha barriga livre Pra gerar seu filho Preparei minhas mãos de afeto Pra esse rapaz encantado Pra esse rapaz namorado Que partiu pra nunca mais Traído nos cafezais E os seus olhos roubaram o verde dos cerrados E os meus olhos lavaram todos os seus pecados Pero Rodrigues, da vossa mulher, não acrediteis no mal que vos digam. Tenho eu a certeza que muito vos quer. Quem tal não disser quer fazer intriga. Sabei que outro dia quando eu a fodia, enquanto gozava, pelo que dizia, muito me mostrava que era vossa amiga. Se vos deu o céu mulher tão leal, que vos não agaste qualquer picardia, pois mente quem dela vos for dizer mal. Sabei que lhe ouvi jurar outro dia que vos estimava mais do que a ninguém; e para mostrar quanto vos quer bem, fodendo comigo assim me dizia.