ENTIDADE MANTENEDORA INSTITUTO FILADÉLFIA DE LONDRINA Sra. Ana Maria Moraes Gomes Sra. Edna Virginia C. Monteiro De Mello Presidente Vice-presidente Sr. Edson Aparecido Moreti Secretário Sr. José Severino Tesoureiro Dr. Osni Ferreira (Rev) Chanceler Dr. Eleazar Ferreira Reitor Dr. Eleazar Ferreira Pró-Reitor de Ensino de Graduação Prof.º Ms. Lupercio Fuganti Luppi Coordenadora de Controle Acadêmico Esp. Alexsandra Pires Lucinger Coordenador de Ação Acadêmica Prof.º Ms. Lupercio Fuganti Luppi Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Profª. Dra. Damares Tomasin Biazin Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Prof.º Dr. Mario Antônio da Silva Coordenadora de Extensão e Assuntos Comunitários Prof.º Drª. Valéria Maria Barreto Motta dos Santos Coordenador de Pesquisa e Publicações Científicas Prof.º Dr. Fernando Pereira dos Santos Coordenadora de Projetos Especiais e Assessora do Reitor Josseane Mazzari Gabriel Coordenador Geral Acadêmico da UniFil VIRTUAL Prof. Dr. Leandro Henrique Magalhães Reitor Coordenadores de Cursos de Graduação • Administração - Prof.ª Esp. Denise Dias Santana • Agronomia - Prof.º Dr. Fabio Suano de Souza • Arquitetura e Urbanismo - Prof.º Ms. Ivan Prado Junior • Biomedicina - Prof.ª Ms.Karina de Almeida Gualtieri • Ciências Biológicas - Prof.º Dr. João Antônio Cyrino Zequi • Ciência da Computação - Prof.º Ms.Sergio Akio Tanaka • Ciências Contábeis - Prof.º Ms. Eduardo Nascimento da Costa • Direito - Prof.º Dr. Osmar Vieira da Silva • Educação Física - Prof.ª Ms. Joana Elisabete Ribeiro Pinto Guedes • Enfermagem – Prof.ª Ms. Rosângela Galindo de Campos • Engenharia Civil - Prof.º Dr. Paulo Adeildo Lopes • Estética e Cosmética - Prof.ª Esp. Mylena C. 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Denise Hernandes Tinoco • Sistema de Informação – Prof.º Dr. Rodrigo Duarte Seabra • Teologia – Prof.º Dr. Mário Antônio da Silva REVISTA JURIDICA DA UNIFIL ANO XI – No. 11 – 2014 Órgão de divulgação científica do Curso de Direito da UNIFIL Centro Universitário Filadélfia COORDENADOR DO COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA Prof. Ms. Henrique Afonso Pipolo PRESIDENTE DO CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva SUPERVISORES EDITORIAIS Prof. Dr. Artur Cesar de Souza Prof. Ms. Antonio Carlos Lovato Profa. Ms. Ana Paula Sefrin Saladini REVISORA Profa. Ms. Cíntia Patrícia Romanholi BIBLIOTECÁRIA Thais Fauro Scalco CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Artur Cesar de Souza Prof. Dr. Osmar Vieira da Silva Prof. Dra. Léia Aparecida Veiga Prof. Dr. Adilson Vieira de Araújo Prof. Ms. Marco Antonio Rossi Prof. Ms. Antonio Carlos Lovato Profa. Ms. Ana Karina Ticianelli Möller Profa. Ms. Ana Paula Sefrin Saladini Prof. Ms. Douglas Bonaldi Maranhão Prof. Ms. Henrique Afonso Pipolo Prof. Ms. Luciana Mendes Pereira Prof. Ms. Anderson de Azevedo Prof. Ms. Mario Sergio Lepre Prof. Ms. Renata Cristina Oliveira Alencar Silva Profa. Ms. Cintia Patricia Romanholi Prof. Ms. Sandra Cristina M. N. Guilherme de Paula Prof. Ms. Denise Américo de Souza Profa. Dra. Bernadete Lema Mazzafera Prof. Ms. Rodrigo Brun Silva Profa. Ms. Schirley Heritt Prof. Ms. Rafael de Souza Silva Prof. Ms. José Valdemar Jaschke Prof. Ms. Adyr Garcia Ferreira Netto CONSELHO CONSULTIVO Min. José Augusto Delgado (UFRN) Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Prof. Dr. Arnaldo de Moraes Godoy (UCB-DF) Prof. Dr. Gilberto Giacóia (UNESPAR) Prof. Dr. Luiz Fernando Bellinetti (UEL) Profª. Drª. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (USP) Profª. Drª. Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira (UNIPAR) Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro (UNIMAR) CATALOGAÇÃO ELABORADA PELA DIVISÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS DA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Revista jurídica da UniFil / Centro Universitário Filadélfia. Colegiado do Curso de Direito. – v. 11 n.11 (2014) – Londrina : UniFil, 2014. 1 v. : il. Anual. Descrição baseada em: v. 1 n.1 (2004). ISSN 1087-1627 1. Direito – Pesquisa – Periódicos. 2. Pesquisa jurídica – Periódicos. 3. Direito – Estudo e ensino – Periódicos. I. Centro Universitário Filadélfia. CDU 34(05) SUMÁRIO ARTIGOS A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO Aline Fernanda Rodrigues Luciana Mendes Pereira DO MEIO AMBIENTE COMO PRINCÍPIO DA ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Ana Karina Ticianelli Moller Nathalia Favaro de Carvalho O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO E RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS NO PROCESSO CIVIL Beatriz da Silva Oliveira Osmar Vieira da Silva A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA PETIÇÃO INICIAL Bernadete Lema Mazzafera Adilson Vieira De Araújo A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE Bruna Valone Esteves Luciana Mendes Pereira O BATER DE ASAS DE UMA BORBOLETA E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. O CARÁTER SISTÊMICO DO ATO ADMINISTRATIVO Celso Zamoner CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL Denise Américo de Souza Léia Aparecida Veiga REMIÇÃO DE PENA À LUZ DAS ALTERAÇÕES REALIZADAS PELA LEI 12.433/2011 Douglas Bonaldi Maranhão A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Douglas Rocha Paixão Eric Linhares Nozawa Igor Nogueira Lunardelli Cogo Otávio Goes de Andrade Vinicius Ferreira Ramalho Talita Cristina Fidelis Pereira Biagi A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DAS ASSOCIAÇÕES - PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO COM FINS NÃO ECONÔMICOS – UMA ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE JURÍDICA Henrique Afonso Pipolo A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO João Alves Dias Filho Pedro Lucas Crispim Rodrigues A SÚMULA N.º 277 DO TST E A APROXIMAÇÃO DA IDEIA DE USOS LABORAIS DO DIREITO PORTUGUÊS: SÚMULAS COMO FONTE DE DIREITO IMEDIATA Renato Lovato Neto (IN)APLICABILIDADE DA MAJORANTE DE EMPREGO DE ARMA NO CRIME DE ROUBO, QUANDO DA UTILIZAÇÃO DE SIMULÁCRO Vinícius Victor Vieira da Silva PARECER PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE E INELEGIBILIDADES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO Carlos Eduardo Thompson Flores EDITORIAL Apreender e multiplicar conhecimento é mais do que um direito fundamental; acima de tudo corresponde a um dever de todos os cidadãos para a consolidação de uma sociedade mais justa e solidária . A construção de uma sociedade livre, igualitária e democrática é fruto do constante do aprendizado e da multiplicação do conhecimento. Sem o constante compartilhamento do conhecimento não há democracia, sem conhecimento não há liberdade, muito menos igualdade. A Unifil, ciente do seu papel na sociedade brasileira, oferece esse espaço cultural e científico para todos aqueles que desejam compartilhar aprendizado e conhecimento, a fim de cumprir com o seu papel de cidadão. A Revista Jurídica da Unifil é um importante instrumento de disseminação e frutificação do conhecimento, possibilitando o intercâmbio da ciência jurídica com as demais ciências afins. Por meio desse intercâmbio da construção do conhecimento, permite-se que os diversos ramos cognitivos de uma Universidade possam sedimentar-se num conhecimento amplo e global, corrigindo rumos e acertando marcos divisórios. Venha participar você também dessa construção e multiplicação do conhecimento, cumprindo com o seu papel de cidadão e contribuindo para a sedimentação de uma sociedade brasileira mais democrática. Conselho Editorial MENSAGEM DA REITORIA No mês de julho desse ano, o Curso de Direito da Unifil completou 13 anos e a Revista Jurídica da Unifil, com o lançamento desse volume, completa sua 11ª edição. Esse tempo de amadurecimento efetivamente tem consolidado mais um importante veículo de divulgação e socialização do conhecimento na Unifil. Sempre fiel à missão institucional da Mantenedora e às suas Linhas de Pesquisa que norteiam a Revista, os artigos publicados nesses onze anos trataram de vários temas, das mais variadas áreas do Direito, de forma a permitir ao leitor uma didática e contextualizada análise dos assuntos propostos. Com essa edição, a Unifil, através do seu Curso de Direito, mais uma vez, cumpre seu relevante papel institucional de fomentar a cultura jurídica, permitindo que seus alunos e a comunidade jurídica em geral tenham acesso a textos jurídicos da mais alta qualidade. Lembramos que a revista tem divulgação simultânea por meio impresso e eletrônico na Internet, em modo de acesso aberto, dando maior visibilidade à Revista Jurídica da Unifil. Cumprimentando os Conselhos Editorial e Consultivo, os Supervisores e Revisores, o Departamento de Marketing, a Editora Unifil e os Autores que figuram nessa Revista por tão esmerada elaboração, agradecemos a efetiva participação e desejamos uma excelente leitura a todos. Londrina, primavera de 2014. Dr. Eleazar Ferreira – Reitor. A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO Aline Fernanda Rodrigues1 Luciana Mendes Pereira2 RESUMO O presente artigo tem como objetivo aprofundar o estudo da hermenêutica jurídica, no que concerne a atribuição dos significados dos textos jurídicos, na interpretação dos negócios jurídicos em geral, zelar pelos os princípios da boa-fé e da função social do contrato, analisar a vulnerabilidade do consumidor conforme propõe a legislação consumerista, bem como estabelecer a harmonia e coordenação entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor, de modo que se alcance a melhor interpretação aos contratos de adesão. PALAVRAS-CHAVE: Interpretação. Consumidor. Contratos de Adesão. ABSTRACT The present article has as objective enhance the study of legal hermeneutics: from the understanding of legal texts and the legal transactions in general, the zeal for principles of good will and the social function of the contract, from the analyze of the vulnerability of consumer as proposed by the consumerist legislation and finally, how to establish harmony and coordination between the 2002 Brazilian Civil Code and the Code of Consumer Protection, in order of reaching the best interpretation of unequal treatment in relations guided by adhesion contracts. KEYWORDS: Interpretation.Consumer. Adhesion contracts. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO. 2.1 INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS JURÍDICOS. 2.2 INTERPRETAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS. 2.3 INTERPRETAÇÃO E BOA-FÉ. 2.4 INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 2.5 INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO E A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR. 2.6 A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO E A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR. 2.6.1 A INTERPRETAÇÃO E A APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL COMO LEI GERAL DAS RELAÇÕES DE DIREITO PRIVADO. 2.6.2 A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO REGULADA PELO ART. 47 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 3 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 Acadêmica do 5º ano de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Docente da Universidade Estadual de Londrina – UEL e Centro Universitário Filadélfia – UniFil. Mestre em Direito Negocial - UEL. Doutoranda em Estudos da Linguagem - UEL. 2 1 INTRODUÇÃO O contrato de adesão é uma espécie de negócio jurídico bilateral muito utilizado no mercado de consumo, já que este é capaz de regular as relações negociais de forma econômica, prática e segura, isto é, garante o menor tempo possível no tempo da contratação, além de facilitar ao fornecedor o atendimento da maior demanda dos consumidores que a ele se dirige. Tendo em vista a grande utilidade deste contrato nas relações cotidianas,este artigo pretende abordar acerca da sua interpretação, bem como demonstrar o trabalho dos criadores do Direito para alcançar a sua finalidade de modo que não gere vantagem ou desvantagem para nenhum dos contratantes. 2 INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO 2.1INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS JURÍDICOS Custódio Piedade Ubaldino Miranda (2002, p. 225) ensina que a interpretação dos textos jurídicos não consiste em apenas atribuir um significado ou um entendimento linguístico ao seu conteúdo, deve-se apurar em função do contexto do caso concreto, qual a norma deve ser aplicada, prescrita em lei ou negócio jurídico. Acrescenta que ao ingressar no plano de conteúdo do texto para ter acesso à mensagem legislada, que é a determinação do sentido de uma disposição legal ou uma determinação querida pelo seu autor, o intérprete realiza uma atividade hermenêutica. A partir disso, o autor elucida que em função de interesses conflitantes das partes de uma relação jurídica, o destinatário almeja um determinado comportamento daquele que elabora o texto jurídico, pois além de estar em acordo com a ordem legal ou os preceitos negociais, espera-se uma linguagem acessível ao interprete. Frisa ainda que, além de se esperar um comportamento daquele que redigiu o conteúdo, aquele que exerce a atividade hermenêutica deve estar inserido no mesmo contexto jurídico, a fim de se compreender o sentido do texto. Aurora Tomazini de Carvalho (2009, p. 181) explica que deve haver uma comunicação jurídica entre o legislador e o intérprete, tal deve ser estabelecida por ambos vivenciarem a mesma língua, a mesma cultura, por estarem inseridos no mesmo contexto histórico. Custódio da Piedade Ubaldino Miranda (2002, p. 226) pressupõe que deve haver um prévio quadro de ideias, presentes no espírito de quem o interpreta, ou seja, este deve carregar certa bagagem ou cultura intelectual que lhe proporciona uma rápida visão mental do objeto (o texto) da interpretação, de modo a compreendê-los no espírito de quem o interpreta. Nesse mesmo sentido, Heidegger ensina que (1989 apud TOMAZINI, 2009, p. 181) a referência objetiva do diálogo, que guia o processo de entendimento mútuo, deve sempre se dar no solo de um consenso prévio, produzido por tradições comuns. Portanto, a interpretação jurídica não supõe apenas desvendar o sentido linguístico do teor do texto, tal atividade não está somente ligada ao compreender e explicar. Deve-se ter também uma referência extralinguística, que pode ser captada a partir de um contexto material ou de experiência no mundo jurídico. 2.2 INTERPRETAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS Interpretar a lei ou interpretar o negócio jurídico não são atividades distintas, pois em ambas as situações se busca o verdadeiro sentido da manifestação da vontade. A diferença ocorre no sentido de que a lei favorece um número indeterminado de pessoas, enquanto o negócio jurídico é particular, dirigido apenas aos contratantes. Maria Helena Diniz (2012, p. 80) pondera: [...] Infere-se daí a grande semelhança entre contrato e lei: ambos decorrem de atos volitivos e ambos são normas de direito, gerando efeitos análogos, distintos apenas pela sua extensão. A doutrinadora ainda elucida que a interpretação do contrato, assim como da lei, é voltada na possibilidade de existir alguma cláusula de cunho duvidoso ou qualquer ponto que esteja obscuro ou controvertido, pois são originados de declaração de vontade. Nessa linha, o intérprete ao analisar o negócio jurídico, deverá examinar a intenção comum das partes contratantes, além compreender quais os elementos exteriores, que envolveram a formação do contrato, elementos sociais e econômicos, bem como negociações preliminares, minuta elaborada, conteúdo de oferta, troca de correspondências, ou seja, todos os fatores que permitam fixar a vontade contratual. Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 389) compreende que a declaração de vontade é constituída por dois elementos, o elemento externo, que seria a declaração propriamente dita e o elemento interno, que seria a vontade real das partes. A declaração de vontade se manifesta por meio de palavras, que seria a garantia das partes, por outro lado, se tem a intenção do agente, que deve estar correspondida no texto literal do negócio, de modo a afastar qualquer dúvida que possa afetar a interpretação do aplicador do direito. O Código Civil ditou o princípio geral quanto às declarações de vontade no seu Art. 112, in verbis: Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Verifica-se que o Código Civil propendeu para a busca da vontade, ao sentido da linguagem. Custódio Piedade Ubaldino Miranda (2002, p. 234) ainda sob a análise do Código Civil de 1916, em relação ao seu Art. 85 (que apresenta o mesmo texto do Art. 112 do Código Civil de 2002), explica que tal disposição não pretende desprezar o conteúdo literal, mas que ao percorrer o caminho da linguagem, baseado na declaração, não se deve prender totalmente a esta. Assim, o autor ensina que a interpretação deverá partir da declaração de vontade, ou seja, do sentido literal da linguagem e, assim, se houver alguma divergência ao sentido, atribuído pelas partes, entender qual é a vontade real alcançaria a obscuridade ou a contradição que levou o negócio jurídico a um possível desfavorecimento para um dos contratantes. Nesse sentido, para ele a interpretação irá exercer, concomitantemente, as funções subjetivas e objetivas. A primeira equivale a uma corrente voluntarista da manifestação da vontade, no qual o intérprete deverá investigar a vontade comum dos contratantes. Já a segunda corresponde à teoria da declaração, em razão de se analisar a vontade manifestada. Sendo assim, essas posições não podem ser analisadas de forma isoladas e extremadas, pois caso o juiz se comporte neste sentido, tal procedimento poderá acatar interpretações confusas, ou até mesmo injustas. Devendo-se, portanto, exercitá-las de forma conjunta, de modo que essas possam ser analisadas e aplicadas, a fim de estabelecer a justiça contratual. 2.3 INTERPRETAÇÃO E BOA-FÉ O Código Civil de 2002, dentro de um sistema aberto, trouxe ao estudo dos negócios jurídicos uma importante evolução. De modo a preencher a lacuna do Código Civil de 1916, legislação essencialmente patrimonial e individualista, trouxe a boa-fé objetiva como princípio norteador da hermenêutica. O princípio da boa-fé decorre do comportamento leal e honesto das partes em determinada relação jurídica obrigacional, além de evitar que se estabeleça entre as partes qualquer desvantagem. Sabe-se que no Código Civil, os Arts. 113 e 422 dispõem que contratos são regidos pelo princípio da boa-fé. No tocante às relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor reafirma que os contratos que envolvam relação de consumo devam ser pautados pela boa-fé, conforme expõe o Art. 4º, III: 4º. III- Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; Nessa linha de raciocínio, Ripert (1949 apud ANDRADE, 2006, p. 285) expõe que a boa-fé é um dos meios utilizados pelo legislador e pelos tribunais para fazer penetrar a regra moral no direito positivo. Sendo assim, o magistrado, por meio do princípio da boa-fé, deve identificar na manifestação de vontade de expressada no negócio jurídico, se houve a boa-fé das partes, quais foram os deveres e os direitos decorrentes daquela relação em especial. É necessário visualizar todos os fatores exteriores ao ato, como as práticas utilizadas para a contratação, a publicidade vinculada, o comportamento anterior ou durante à realização do contrato, ou seja, todos os aspectos objetivos, haja vista que analisar os aspectos subjetivos dificilmente poderá se apreciar. Portanto, o magistrado deve repelir qualquer conduta que desvie a boa-fé objetiva do vínculo obrigacional. Essa regra de interpretação é muito adotada pelos tribunais. Cite-se, por oportuno, a ementa do STJ indicando que este tribunal superior acata a boa-fé objetiva como tratamento adequado para a interpretação das relações de consumo: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. PLANO DE SAÚDE. ALTERAÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO. INTERNAÇÃO EM HOSPITAL NÃO CONVENIADO. CDC. BOA-FÉ OBJETIVA. 1. A operadora do plano de saúde está obrigada ao cumprimento de uma boa-fé qualificada, ou seja, uma boa-fé que pressupõe os deveres de informação, cooperação e cuidado com o consumidor/segurado. 2. No caso, a empresa de saúde realizou a alteração contratual sem a participação do consumidor, por isso é nula a modificação que determinou que a assistência médico hospitalar fosse prestada apenas por estabelecimento credenciado ou, caso o consumidor escolhesse hospital não credenciado, que o ressarcimento das despesas estaria limitado à determinada tabela. Violação dos arts. 46 e 51, IV e § 1º do CDC. 3. Por esse motivo, prejudicadas as demais questões propostas no especial. 4. Recurso especial provido (STJ - REsp: 418572 SP 2002/0025515-0, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 10/03/2009, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/03/2009) Observa-se no caso concreto que uma das partes extrapolou os limites à liberdade contratual, isto é, realizou alteração contratual sem o conhecimento do consumidor, o que resultou na inserção de cláusulas que ferem a boa-fé, que violam o direito e ofende a ordem pública. É importante frisar ainda que, a ofensa à boa-fé pode ser identificada na conduta posterior a conclusão do contrato, ou seja, uma das partes pode descumprir determinada cláusula, mesmo que de forma omissa, de modo que prejudique a boa-fé do contratante bem intencionado. Verifica-se em recente decisão proferida pela 12ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP: CONTRATOS BANCÁRIOS. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C.C. REPARAÇÃO DE DANOS. COBRANÇA DE TARIFAS E ENCARGOS EM CONTA BANCÁRIA INATIVA. OMISSÃO DO RÉU EM COMUNICAR O CONSUMIDOR. CONDUTA QUE VIOLA A BOA-FÉ OBJETIVA. DANO MORAL CONFIGURADO. Diante do encerramento formal e da inatividade da conta, a boa-fé objetiva exigia que o réu comunicasse formalmente o autor a respeito de eventuais lançamentos pendentes. Porém, somente comunicoulhe que sua conta estava ativa quando já havia passado mais de dois anos do encerramento. Com sua conduta omissa, permitiu que a conta, mesmo inativa, criasse saldo devedor, de modo que a inscrição do nome do autor no rol dos devedores contumazes foi mesmo indevida. O dano ora tratado é presumido (in re ipsa), e o valor da reparação fixado na r. sentença (R$ 5.000,00) mostra-se adequado, à luz da razoabilidade, e não comporta redução. Apelação não provida. (TJ-SP - APL: 90741724220098260000 SP 9074172-42.2009.8.26.0000, Relator: Sandra Galhardo Esteves, Data de Julgamento: 20/03/2013, 12ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/03/2013) Portanto, a interpretação dos negócios jurídicos pautada na boa-fé objetiva pretende analisar se houve a lealdade das partes, no sentido de que ambas devam estar bem intencionadas ao estabelecer e compreender as condições do contrato e, ocorrendo a violação de uma das partes, esta sofrerá as consequências cabíveis de acordo com os prejuízos decorrentes para a outra parte, bem como com o uso da má-fé na relação contratual. 2.4 INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERAL A interpretação conforme a Constituição Federal não é só no sentido de que o processo interpretativo não possa violar os preceitos constitucionais, mas também de que o intérprete deve ter em mente a questão da função social do contrato, a que se refere implicitamente a Constituição Federal nos seus Arts. 1º, III, 3º, I e 170, “caput”. Assim, o contrato não deve se ater apenas aos interesses privados, de pessoas determinadas na obrigação, mas deve levar em conta os interesses da coletividade, de modo que os efeitos do negócio jurídico não possam por em risco os fins sociais. No que concerne ao contrato de adesão, todo o preceito deverá ser obrigatoriamente analisado sob o prisma do bem comum, até porque este contrato não será destinado a apenas um contratante, mas a um número indeterminado de pessoas. O TJPR em decisão proferida na 8ª Câmara Cível se posicionou neste sentido: APELAÇÃO CÍVEL - REVISIONAL DE CONTRATO DE SEGURO DE VIDA CONTRATO DE LONGA DURAÇÃO - PRORROGAÇÃO AUTOMÁTICA NEGATIVA DE RENOVAÇÃO PELA SEGURADORA - CLÁUSULA DISCRICIONÁRIA E ABUSIVA APLICAÇÃO DO CDC DESCARACTERIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO EXCESSIVA ONEROSIDADE PARA O SEGURADO - MANUTENÇÃO DO CAPITAL SEGURADO - PRÊMIO QUE DEVE SOFRER OS REAJUSTES LEGAIS - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. I. Por se tratar de contrato prorrogado automaticamente, o procedimento da seguradora de não renoválo, para aumentar o valor do prêmio e readequar a carteira à nova legislação, é abusivo e fere as normas preconizadas pelo CDC. II. Prática da seguradora que contraria a finalidade primordial dos contratos, que é de conferir segurança, tranqüilidade e estabilidade jurídica aos segurados. III. Correta a sentença que declara nula cláusula que possibilita rescisão unilateral, determinando a manutenção do capital segurado e demais garantias contratuais nos termos anteriormente avençados. ApCv 696392-6 8ª CCV (TJ-PR - AC: 6963926 PR 0696392-6, Relator: João Domingos Kuster Puppi, Data de Julgamento: 30/09/2010, 8ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 499) Nesta decisão identifica-se que a seguradora não renovou contrato de seguro de vida, prática que deveria ser prorrogada automaticamente tendo em vista o caráter do contrato em espécie. Tal conduta viola a finalidade primordial dos contratos, que é de conferir segurança, tranquilidade e estabilidade nos contratos, o que necessariamente viola o caráter social dos contratos, pois interfere nos interesses de pessoas que contrataram ou que contratariam com esta seguradora. Logo, assim como no caso apresentado, o aplicador do direito também deve observar se o contrato está sob a égide da função social, a fim de que os interesses sociais não sejam prejudicados pelos efeitos da relação jurídica estabelecida. 2.5 A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO E A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR O Código de Defesa do Consumidor foi elaborado com base no Art. 5º, XXXII da Constituição Federal que dispõe acerca da proteção do consumidor e que alçou a defesa consumerista à categoria de direito fundamental do homem. Verifica-se que o Estado reconheceu a situação de hipossuficiência e vulnerabilidade do consumidor ao tutelá-lo de maneira especial, em razão deste ser parte fragilizada ante o poderio do fornecedor e das grandes empresas monopolizadoras do mercado de consumo. Esta visão do legislador, em estabelecer uma proteção especial ao consumidor, adveio de um consenso universal estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1.969, por meio da Resolução 2.542/69, que dispunha sobre a necessidade de proteção ao consumidor, tal qual mais em 1985 foi aprofundado pela Resolução 39/248, com o propósito específico de orientar países membros. A justificativa era de que o novo cenário mundial que havia se estabelecido no século XX fez com que os consumidores se deparassem com o desequilíbrio econômico, educacional e aquisitivo, o que conflita com o direito de acesso a produtos e serviços seguros. Assim, por meio desse reconhecimento mundial acerca da vulnerabilidade do consumidor, este é protegido pelo Texto Constitucional de 1988, bem como pelo CDC, que inclusive menciona expressamente acerca da sua fragilidade no seu Art. 4º, I: “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”. A presunção de vulnerabilidade se dá em razão do consumidor não participar da elaboração do conteúdo das cláusulas, portanto, é importante garantir um controle de equidade de cláusulas de prestações e contraprestações nos contratos de adesão, pois apenas o fornecedor é quem tem o acesso pleno ao contrato e às informações do objeto ou da prestação de serviço oferecida. Ronaldo Alves de Andrade (2006, p. 284) elucida que esse tratamento desigual estabelecido pela lei possui o escopo de tornar o consumidor igual ao fornecedor, não em relação a uma igualdade retórica, no sentido de as partes são livres para contratar, mas com imposição de cláusulas obrigatórias, proibição de cláusulas com conteúdo abusivo, seria uma igualdade real. Luis Antonio Rizzato Nunes (2008, p. 603) explica que esse reconhecimento acerca da fragilidade do consumidor é uma primeira medida de realização do princípio constitucional da isonomia. Defende também que essa fraqueza decorre de dois aspectos, um de ordem técnica e outra de ordem econômica. O aspecto técnico, na opinião do autor, não se limita ao fato de que o fornecedor é detentor dos meios de produção, quanto à fabricação dos produtos e prestação de serviços, mas também ao conhecimento técnico que a parte considerada mais forte possui, de modo que estabelece em contrato visando seus interesses econômicos. Por outro lado, o aspecto econômico refere-se a maior capacidade econômica que o fornecedor possui em relação ao consumidor, muito embora alguns consumidores individuais apresentarem boa capacidade econômica, ou até superior à de pequenos fornecedores. Vale frisar que o entendimento em relação à fragilidade do consumidor é pacificado nos tribunais. Cite-se, por oportuno, recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconhecendo a condição de vulnerabilidade de consumidor que foi lesado por ter adquirido produto eivado de vícios: RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. COMPRA DE COMPUTADOR PELA INTERNET. ENTREGA EFETIVADA, PRODUTO COM VÍCIO. DEMORA NA SOLUÇÃO DO PROBLEMA DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL E DESCASO COM A FIGURA DO CONSUMIDOR, CONTRATANTE VULNERÁVEL NA RELAÇÃO JURÍDICA. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO MAJORADO. 1. Tendo em vista que o produto adquirido pelo autor foi entregue contendo vícios, bem como, consideradas as inúmeras tentativas de resolução do problema por parte do consumidor em evidente descaso por parte da requerida, há descumprimento contratual (dano circa rem) e, excepcionalmente, danos morais indenizáveis (dano extra rem). 2. A empresa ré tentou eximir-se da responsabilidade pelos danos causados ao autor e, por fim, recolheu o bem sem a devida restituição dos valores pagos por ele. 3. A sentença condenou a ré a restituir ao autor o valor investindo no bem e condenou-a ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$500,00. 3. Nessa hipótese, há danos morais indenizáveis, em razão do agravamento da condição de vulnerabilidade do consumidor, pelo fornecedor, que deveria se preocupar em resolver prontamente o problema. 4. Quantum indenizatório fixado na sentença (R$ 500,00) que deve ser majorado para R$ 1.500,00 a fim de se adequar aos parâmetros utilizados pelas Turmas Recursais do Rio Grande do Sul em casos análogos. RECURSO PROVIDO. (Recurso Cível Nº 71004378873, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Fabio Vieira Heerdt, Julgado em 12/12/2013) (TJ-RS - Recurso Cível: 71004378873 RS , Relator: Fabio Vieira Heerdt, Data de Julgamento: 12/12/2013, Terceira Turma Recursal Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 17/12/2013) A partir disso, o intérprete ao analisar a relação jurídica, compreendida nos contratos de adesão, deve ter em mente a presunção de vulnerabilidade do consumidor. Esse tratamento é uma forma de reestabelecer o equilíbrio entre as partes, em razão de não estarem situadas no mesmo patamar e, assim, alcançar a justiça contratual por meio do tratamento desigual instituído pela lei. 2.6 A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO E O DIÁLOGO DAS FONTES A expressão “diálogo das fontes” foi criada por Erik Jayme (1995, apud MARQUES, 2012, p. 692), o qual ensinava que em face do atual “pluralismo pós-moderno” de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo. É uma tentativa de aplicar de forma conjunta normas que pertencem a um mesmo sistema jurídico e que disciplinam acerca do mesmo conteúdo, com o escopo de não só procurar uma eficiência hierárquica, mas funcional do ordenamento como um todo, de modo que se evitem as antinomias, incompatibilidades ou a não coerência. Nessa linha, verifica-se que a finalidade do diálogo é estabelecer a harmonia e a coordenação entre normas do ordenamento jurídico. Não se pretende uma solução pautada em apenas uma lei, de modo que outra seja revogada. Busca-se uma solução conjunta a fim de que se alcance de a melhor interpretação para o tratamento dos desiguais. Essa teoria criada por Erik Jayme é um modo de se evitar o conflito de leis no tempo, em que duas leis estariam em conflito por tratar da mesma matéria, no entanto somente uma delas poderia permanecer no sistema, o que ensejaria a exclusão da outra por meio da abrogação (revogação total) ou pela derrogação (revogação de algumas disposições). Essa questão começou a ser discutida no Brasil principalmente com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, pois este é considerado lei geral que regula o Direito Privado, além de ser uma lei posterior ao Código de Defesa do Consumidor de 1990. Ocorre que o Código Civil deixou de incorporar a figura do consumidor, já que é um código que trata das relações entre iguais, relações entre civis e relações entre empresários. É um Código que respeita as leis especiais não incorporadas em seu texto, conforme preceitua o art. 2.043: Art. 2.043. Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este Código. As hipóteses as quais a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro considera revogadas as leis que conflitam no tempo são: Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. § 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência. Verifica-se então que o Código de Defesa do Consumidor, muito embora seja uma legislação especial anterior ao CC, não foi retirado do ordenamento jurídico. Além do mais, o próprio Código Civil expressa no em seu art. 2.045 quais os Códigos e microssistemas que ficam revogados com a sua vigência, é o caso do Código Civil de 1916 e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei nº 556, de 25 de junho de 1850. Neste aspecto, o Código Civil brasileiro de 2002 é a base geral e central em que o Código de Defesa do Consumidor deve estar inserido. Os princípios que permeiam nas relações entre iguais, ligados a noção de equidade, devem obrigatoriamente estar inseridos nas relações de consumo. Assim ocorre também com os princípios da boa-fé e da função social do contrato, como já estudados neste trabalho. Cláudia Lima Marques (2012, p. 720) aponta três tipos de “diálogo” entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor: [...] 1) Na aplicação simultânea de duas leis, uma lei pode servir de base conceitual para a outra (diálogo sistemático de coerência), especialmente se uma lei é geral e a outra é especial, se uma lei é central do sistema e a outra um microssistema específico, não completo materialmente, apenas com completude subjetiva de tutela de um grupo da sociedade; 2) na aplicação coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a aplicação da outra, a depender da sua aplicação no caso concreto (diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais), a indicar a aplicação complementar tanto de suas normas, quanto de seus princípios, no que couber, no que for necessário ou subsidiariamente; 3) ainda há o diálogo das influências recíprocas sistemáticas, como no caso de uma possível redefinição do campo de aplicação de uma lei (assim, por exemplo, as definições de consumidor stricto sensu e de consumidor equiparado podem sofrer influências finalísticas do Código Civil, uma vez que esta lei vem justamente para regular as relações entre iguais, dois iguais-consumidores ou dois iguaisfornecedores entre si – no caso de dois fornecedores, trata-se de relações empresariais típicas, em que o destinatário final fático da coisa ou do fazer comercial é um outro empresário ou comerciante –, ou, como no caso da possível transposição das conquistas do Richterrecht (direito dos juízes), alçadas de uma lei para outra. É a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de double sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática). Portanto, em que pese o Código Civil não tratar dos consumidores em seu conteúdo, o Código de Defesa do Consumidor deve visualizá-lo como base, em razão de todos os princípios contratuais permeados pela equidade, estarem fundamentados na legislação geral. Outro aspecto citado por Cláudia Lima Marques (2012, p. 722) é que nas relações de consumo, o Código Civil também pode ser utilizado a fim de ser aplicado em casos que forem identificadas as antinomias, assim, por meio de seus princípios ou normas, estaria cumprindo o papel de aplicação complementar no que for necessário. Por fim, fala-se na influência recíproca sistemática, na qual pode haver uma possível redefinição de um conceito no campo de aplicação de uma das leis. Cite-se, por oportuno, decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que houve a aplicação simultânea do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor por meio do diálogo das fontes: DIREITO CIVIL CONSUMIDOR APELAÇÃO CÍVEL RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL - RELAÇÃO JURÍDICA DE CONSUMO (ARTIGOS 2º E 3º DA LEI 8078/90) DIÁLOGO DAS FONTES NORMATIVAS (CDC E CC/2002)- ATO ILÍCITO - DESCONTO DE FATURA DE CARTÃO DE CRÉDITO SEM AUTORIZAÇÃO DO CORRENTISTA DEVERES DE INFORMAÇÃO, COOPERAÇÃO E PROTEÇÃO NÃO OBEDECIDOS PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA NA CONCLUSÃO E EXECUÇÃO DO CONTEÚDO DO INSTRUMENTO DE TRÂNSITO JURÍDICO (ARTIGO 6º DO CDC E ARTIGOS 112; 113 E 421 E 422 DO CC/2002)- DEVER DE INDENIZAR - DANOS MORAIS - PRESUNÇÃO FACTI - MAJORAÇÃO DO QUANTUM NECESSÁRIA CRITÉRIO RETRIBUTIVO E COMPENSATÓRIO - JUROS MORATÓRIOS E CORREÇÃO MONETÁRIA MANUTENÇÃO DA DECISÃO OBJURGADA. APELAÇÃO 1 CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA. APELAÇÃO 2 CONHECIDA E NÃO PROVIDA. 1. Na atual sistemática contratual, os contratantes devem guardar na conclusão e execução do conteúdo contratual a boa-fé objetiva princípio ínsito a todas as relações jurídicas privadas, cumprindo ainda, com os deveres acessórios de informação, proteção e cooperação (artigo 6º do CDC c/c os artigos 112; 113 e 421 e 422 do Código Civil). O contrato atualmente visto sob o critério funcionalizante da dignidade da pessoa humana exige o caminhar em direção de sua função social. 2. Trata-se de direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. (TJ-PR - AC: 4150272 PR 0415027-2, Relator: Astrid Maranhão de Carvalho Ruthes, Data de Julgamento: 08/11/2007, 10ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 7507) Sendo assim, é possível dizer que o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor caminham lado a lado na aplicação do direito nas relações de consumo. O CDC de alguma forma está vinculado ao Código Civil, pois este fornece os princípios que devem reger os contratos de um modo geral, além de ser uma legislação geral que regulamenta as relações do direito privado. 2.6.1 A INTERPRETAÇÃO E A APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL COMO LEI GERAL DAS RELAÇÕES DE DIREITO PRIVADO Para Miguel Reale (2003, p. 9) o Código Civil de 2002 é “[...] a constituição do homem comum”, em razão de estabelecer as regras de conduta de todos os seres humanos. A proposta do Código Civil, além de acompanhar as mudanças sociais, busca inserir certos valores considerados como essenciais, tais como o de eticidade, que se refere à inserção de valores éticos no ordenamento jurídico, de socialidade, como uma forma estar em sintonia à função social estabelecida pela Constituição Federal e de operabilidade, de modo a facilitar a interpretação e aplicação do operador do Direito. Desse modo, verifica-se então que a norma geral do direito privado inseriu novas diretrizes a fim de que o legislador e o aplicador do Direito pudessem utilizá-las para alcançarem a busca concreta dos princípios atinentes à dignidade humana. Nessa linha de raciocínio, o juiz ao interpretar os contratos de adesão, deve também tomar como parâmetro os valores inseridos nos Código Civil, haja vista que se trata de norma geral. Vale frisar que, embora o Código não se refira explicitamente ao consumidor, dois de seus artigos tratam dos contratos de adesão, in verbis: Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio. Observa-se, que em ambos os casos o Código rejeita as cláusulas de conteúdo abusivo, pois a liberdade de contratar deve ser protegida em razão da função social e da boafé. Assim, cláusulas com o conteúdo abusivo estariam atingindo esses princípios, causando o desequilíbrio contratual. Quanto ao teor do Art. 423, em que o legislador adotou a interpretação mais favorável ao aderente quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, o Projeto de Lei 6.960/2002 (autal Projeto de Lei 699/2011), pretende alterar este artigo, no sentido de especificar que: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente por um dos contratantes, sem que o aderente possa modificar substancialmente seu conteúdo”. O Projeto de Lei objetiva demonstrar que existe uma desigualdade entre as partes e, não uma autonomia da vontade, preponderando assim à situação do ofertante, já que a proposta não pode ser discutida. Referido projeto ainda sustenta que o artigo deve incluir no seu §1º que: “Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo aderente”. O Parecer do deputado Vicente Arruda rejeitou essa proposta, pela manutenção do texto que dispõe o Art. 423, pois entendeu que já havia jurisprudências, doutrinas e legislação (Código de Defesa do Consumidor) que tratavam acerca destes assuntos. Note-se que este artigo não implicaria em uma interpretação diferente, até porque o Código Civil por meio do diálogo das fontes caminha ao lado do Código de Defesa do Consumidor. Em decisão proferida no Tribunal de Justiça de São Paulo é possível verificar o diálogo entre o Art, 423 do CC e o Art. 47 do CDC: RECURSO - Apelação - Interposição antes do julgamento dos embargos de declaração oferecidos contra a mesma sentença - Ausência de reiteração ou ratificação do apelo após o julgamento dos embargos de declaração Intempestividade por interposição prematura -Precedentes do Eg. STJ - Recurso não conhecido.CONTRATO BANCÁRIO - Nula a previsão contratual de pagamento do financiamento em 36 parcelas, visto que prevalece o ajuste de pagamento em 24 parcelas - Prova produzida gera o convencimento de que o contrato de financiamento, com natureza jurídica do contrato de adesão, entabulado pelas partes, foi pactuado com previsão de pagamento de 24 parcelas mensais fixas e sucessivas, conforme constava de via do contrato assinada pelo consumidor aderente, daí por que deve prevalecer sobre a consignada, na via do contrato que estabelece o pagamento de 36 parcelas, também por ele assinada, mas com este campo preenchido a tinta em momento posterior, não só porque esta previsão contratual é abusiva, por ofender a cláusula geral da boa fé (CDC, art. 51) e por estar em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor (CDC, art. 51, XV), com bem deliberado pela r. sentença recorrida, mas também porque, além de abusiva a prática de preenchimento posterior do contrato (CDC, art. 39, caput), cláusulas ambíguas ou contraditória,em contratos de adesão, interpretam-se em favor do consumidor e do aderente, no caso o apelado,por força dos arts. 47, do CDC, e 423, do CC/2002 Responsabilidade solidária dos réus, o banco e sua representante e intermediária, uma (TJ-SP - APL: 12072920088260495 SP 0001207-29.2008.8.26.0495, Relator: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 15/08/2011, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/08/2011) Sendo assim, a alteração do Art. 423 não implicaria em mudanças relevantes acerca do reconhecimento da desigualdade das partes nos contratos de adesão, em razão do Código Civil de 2002 estar em harmonia com Código de Defesa do Consumidor, isto é, existe uma conexão entres as duas legislações de modo que se aplique a interpretação mais justa nos contratos de adesão. 2.6.2 A INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DE ADESÃO REGULADA PELO ART. 47 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR O Art. 47 do Código de Defesa do Consumidor dispõe que: “As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. No entanto, tal dispositivo não pode ser tratado de forma simplesmente gramatical, de modo que em qualquer caso deva ser aplicada a interpretação mais favorável ao consumidor. Sabe-se que é regra básica do direito dos negócios jurídicos buscar a vontade real a partir do conteúdo literal da linguagem, ressaltando o elemento subjetivo dos contratantes (Art. 112 do CC), bem como analisar os contratos conforme boa-fé objetiva na interpretação dos contratos (Art. 113 do CC). Vidal Serrano Nunes Júnior e Yolanda Alves Pinto Serrano (2003, p. 149) expõem que a real vontade pretendida no Direito Civil não pode ser utilizada como enfoque nas interpretações dos contratos que envolvem Direito do Consumidor, em razão destes contratos consumeristas elevarem as questões atinentes aos aspectos objetivos. Assim, quando da interpretação dos contratos de adesão, deve-se analisar o caso concreto para então aplicar o Art. 47 do CDC. De acordo com essa proposição, Custódio Píedade Ubaldino Miranda (2002, p. 240) sustenta: [...] A lei refere-se no art. 47 ao consumidor. Trata-se de um preceito que se destina a disciplinar as relações de consumo que, como já disse, são de gênero, de que as decorrem dos contratos de adesão são a espécie, por isso mesmo podendo esse dispositivo ser objeto, quando a eles aplicável, de interpretação restritiva, de acordo com as circunstâncias concretas. Deve-se levar em conta também que, esse artigo privilegia o consumidor em virtude da vulnerabilidade reconhecida constitucionalmente e na legislação consumerista, além de ser compatível com o direito básico de proteção contra cláusulas abusivas ou impostas, conforme preceitua o Art. 6º, IV do CDC. Dessa maneira, o intérprete deve analisar todas as condições que foram impostas ao consumidor no momento da contratação. O aplicador do Direito deve levar em consideração a fase pré- contratual. O CAPÍTULO V do Código de Defesa do Consumidor estabelece algumas das práticas que envolvem o momento anterior à contratação. É a partir desta fase que o consumidor é atraído para adquirir o produto ou o serviço, em que pode constatar a má-fé do fornecedor nos casos que utilizam do induzimento para levar o comprador ao erro. Neste aspecto, destaca-se a publicidade e oferta estabelecidas nos arts. 30 e 48 do CDC, tais devem estar vinculadas ao efetivo contrato, nestes termos preceituam: Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado. Art. 48. As declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e précontratos relativos às relações de consumo vinculam o fornecedor, ensejando inclusive execução específica, nos termos do art. 84 e parágrafos. Deste modo, toda a oferta e propaganda divulgada pelo fornecedor, além dos escritos particulares, recibos e pré-contratos, produzem efeitos jurídicos, vinculam o empresário, além de constituírem como cláusula contratual e, o seu não cumprimento acarreta execução específica. Além de se observar a fase pré-contratual, o juiz deve se ater ao conteúdo das cláusulas, se apresentam conteúdo abusivo, bem como se não atende aos princípios da boa fé e se afrontam as normas de proteção ao consumidor. O legislador elencou no Art. 51 quais são as formas que as cláusulas abusivas podem ser apresentadas no texto do contrato, sancionando elas com a nulidade absoluta, in verbis: Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código; III - transfiram responsabilidades a terceiros; [...] Antonio Carlos Efing (2004, p. 226) conceitua as cláusulas abusivas como aquelas que são redigidas pelo predisponente do contrato de adesão, no caso de causarem dano ao aderente. Fonseca (1993, apud EFING, 2004, p. 226) expõe que também será considerada cláusula abusiva quando afrontar aos bons costumes, ou quando ela se desviar do fim social ou econômico que lhe fixa o direito. Cite-se, por oportuno, decisão do Supremo Tribunal Federal também se posiciona acerca da vulnerabilidade do consumidor, decretando como nula qualquer cláusula que cause exagerada desvantagem ao consumidor: DECISÃO: Trata-se de agravo de instrumento contra decisão de inadmissibilidade de recurso extraordinário que impugna acórdão assim do: “DIREITO DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO DOMICILIAR. PREVISÃO. CONSUMIDOR. DESVANTAGEM. ART. 47, DO CDC. BOA-FÉ. 1. A cláusula que, em contrato de assistência à saúde, prevê as hipóteses de encerramento do atendimento médico domiciliar – quando a crise de saúde estiver estabilizada ou quando o beneficiário do programa permanecer sob os cuidados do hospital para onde foi levado – deve ser interpretada restritivamente, à luz do art. 47, do CDC, com o fito de se restabelecer o equilíbrio da relação contratual de consumo estabelecida entre as partes, especialmente quando o tratamento é indispensável à sobrevivência do beneficiário, contratante de boa-fé.2. Apelo não provido. Sentença mantida. ” (fl. 57) Nas razões recursais, alega-se violação ao artigo 93, IX,, da Constituição Federal. O recurso não merece prosperar. No caso, o acórdão recorrido decidiu que:“Não restam dúvidas na jurisprudência e, tampouco, na doutrina, de que são aplicáveis aos contratos de assistência à saúde as normas do Código de Defesa do Consumidor. Destarte, as cláusulas contratuais que levem o segurado a uma situação exageradamente desvantajosa em relação à seguradora devem ser tidas como nulas, conforme inteligência do art. 51 do CDC. Demais disso, as cláusulas contratuais excludentes do seguro devem ser analisadas de forma restritiva, posto que inseridas em contrato de adesão, devendo, em casos de dúvida, ser interpretadas da forma mais favorável ao segurado, com fulcro no art. 47 do CDC.Para se entender de forma diversa, seria necessária a prévia análise de fatos e provas, de cláusulas contratuais (Súmulas 279 e 454) e da legislação infraconstitucional aplicável à espécie, procedimento incabível na via extraordinária. Nesse sentido, cito o RE 575.811, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 25.4.2008, e o AI 821.174, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 22.11.2010.Ante o exposto, nego seguimento ao recurso (arts. 21, § 1º, do RISTF e 557 do CPC).Publique-se. Brasília, 26 de abril de 2011.Ministro G ILMAR M ENDES Relator Documento assinado digitalmente (STF - AI: 843946 DF , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 26/04/2011, Data de Publicação: DJe-081 DIVULG 02/05/2011 PUBLIC 03/05/2011). Portanto, a análise do intérprete com relação ao Art. 47 deve considerar a vulnerabilidade do consumidor, analisando todos os aspectos que envolveram a formação do contrato, de modo que se analise o momento anterior à contratação (no caso da oferta e da publicidade), bem como todo conteúdo abusivo que pode estar inserido nas cláusulas dos contratos de adesão, de modo que o consumidor não possa identificar, em razão da sua presunção de vulnerabilidade. 3 CONCLUSÃO Diante do exposto, é notório frisar que inicialmente para se interpretar um contrato de adesão, o criador do Direito deve carregar uma bagagem intelectual de modo que compreenda o sentido do texto, para então identificar qual o fim a ser atingido. Outro aspecto a ser levado em consideração na atividade interpretativa dos contratos de adesão é a interpretação dos negócios jurídicos, pois esta é fundamental para que se compreenda o sentido literal do texto, bem como a vontade real dos contratantes. Assegurar os princípios da boa-fé e da função social, que estão previstos no ordenamento jurídico, é de extrema relevância para que o intérprete possa identificar a lealdade das partes, bem como analisar o contrato sob o prisma do bem comum. Quanto ao diálogo das fontes, o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor devem caminhar lado a lado na interpretação destes contratos, já que de alguma forma a legislação consumerista está interligada à legislação geral por meio dos princípios que regem os contratos. Por fim, a presunção de vulnerabilidadeé outro elemento que o intérprete deve se ater ao analisar estes contratos, pois diferente dos contratos em geral, as partes nos contratos de adesão não estão em situação equânime, assim, a fim de estabelecer a igualdade, o aplicador do direito se utilizará das legislações vigentes para assegurar a interpretação mais favorável ao consumidor, como dita o Art. 47 do Código de Defesa do Consumidor, bem como o Art. 423 do Código Civil. REFERÊNCIAS ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de direito do consumidor. Barueri, SP: Manole, 2006. ARRUDA, Vicente. Comissão de Constituição e Justiça e de redação. Projeto de lei nº 6960, DE 2002. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/196514.pdf> Acesso em: 02 de abril de 2014. BENJAMIN, Antonio Herman V. MARQUES, Cláudia Lima. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 4. ed. rev., atual. e. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito – O Constructivismo Lógico-Semântico. São Paulo: Noeses, 2009. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 22. ed., rev.e atual.de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 101-2002) e o Projeto de Lei n. 6.960/2002. São Paulo: Saraiva, 2006. EFING, Antônio Carlos. Fundamento do direito das relações de consumo. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2004. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. MIRANDA, Custodio da Piedade Ubaldino. Contrato de Adesão. São Paulo: Atlas, 2002. Novo código civil brasileiro: lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002: estudo comparativo com o código civil de 1916, Constituição Federal, legislação codificada e extravagante/ obra coletiva de autoria da Editora Revista dos Tribunais, com a coordenação de Giselle de Melo Braga Tapai; prefácio prof. Miguel Reale. 33. Ed. Ver. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. NUNES, Luis Antonio Rizzato. Curso de direito do consumidor. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; SERRANO, Yolanda Alves Pinto. Código de defesa do consumidor interpretado. São Paulo: Saraiva, 2003. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 1. DO MEIO AMBIENTE COMO PRINCÍPIO DA ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Ana Karina Ticianelli Moller3 Nathalia Favaro de Carvalho4 RESUMO O presente trabalho analisa o meio ambiente como princípio essencial da ordem economia brasileira. Estuda a evolução da ordem econômica no contexto histórico. Aponta sua previsão na atual Constituição e expõe seus princípios gerais descritos no artigo 170. Enfatiza o meio ambiente como um dos princípios e sua importância no desenvolvimento econômico. Coloca a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado e a sadia qualidade de vida como bem difuso e indisponível. Destaca a real necessidade de preservação dos recursos naturais para a manutenção do desenvolvimento econômico. Ressalta o dever do Poder público e de toda a coletividade à preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Por fim, reafirma a importância do equilíbrio entre o meio ambiente sadio e o desenvolvimento econômico. PALAVRAS-CHAVE: Constituição Federal. Meio Ambiente. Ordem Econômica. Princípios. ABSTRACT This paper analyses the environment as a Brazilian economy’s key principle, while studying the evolution of economic policies in an historical context. Then, the article looks at the current Constitution exposing its general principles described in Article 170 and emphasizing the environment as one of the principles and their importance in economic development. Analysing the quality of life, it shows how important is the protection of ecologically balanced environment and a healthy life. Highlights the real need for conservation of natural resources for sustaining economic development. Also, it records the duty of the public authority and the entire community to preserve the environment for present and future generations. Finally, it ascertains the importance of a balance between a healthy environment and an economic development. KEYWORDS: Federal Constitution. Environment. Economic Order. Principles. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 DA ORDEM ECONÔMICA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA. 2.1 DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ORDEM ECONÔMICA NA CF/88. 3 DO MEIO AMBIENTE COMO UM DOS PRINCIPIOS GERAIS DA ORDEM ECONÔMICA. 3.1 DO 3 MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE SADIO E EQUILIBRADO. Advogada. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos no Centro Universitário Filadélfia. E-mail: [email protected] 4 Advogada. Pós-graduanda em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] 4 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO O Título VII da Constituição Federal de 1988 dispõe acerca da ordem econômica e financeira, determinando seus princípios gerais, a exploração da atividade econômica, o Estado como agente normativo e regulador, a política urbana e agrícola e o sistema financeiro nacional, dispostos entre os artigos 170 e 192. A ordem econômica, com base no art. 170, deve garantir existência digna a todas as pessoas pela valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, observando os princípios gerias da soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor e do meio ambiente, redução das desigualdades sociais e regionais, busca do pleno emprego e tratamento diferenciado para empresas de pequeno porte. Contudo não há que se falar em existência humana digna sem a existência de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio. O próprio legislador pensou nisto ao estabelecer o meio ambiente como um dos princípios gerais da ordem econômica a ser respeitado, bem como instituiu um capítulo específico a ele. O meio ambiente foi tardiamente previsto como direito constitucional, sendo apenas tutelado na Constituição de 1988 e defendido para as presentes e futuras gerações, cabendo ao Poder Público e à coletividade sua preservação. É dele que vem todos os recursos naturais e sua manutenção é importante e essencial não apenas para proporcionar uma boa qualidade de vida, mas para garantir um equilíbrio na atividade econômica. Diante disso foi desenvolvido um trabalho explicativo, que tem relevância no atual contexto social e faz-se necessário seu estudo para ser apresentado função do meio ambiente e sua essencialidade no desenvolvimento econômico, bem como a conscientização que é papel de todos a sua preservação. 2 DA ORDEM ECONÔMICA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA Ordem, segundo o ilustre doutrinador João Bosco Leopoldino da Fonseca (2007) remete a ideia de organização de elementos harmônicos entre si, visando o futuro direcionados a uma teleogia. Econômica ou economia é o estudo de processo de formação, disposição, acumulação e utilização dos bens materiais, neste caso, de bens e recursos públicos. Portanto, pode-se dizer que é uma organização por parte do poder público de seus recursos e bens para melhor produção, distribuição e consumo de seus bens. O notável ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau (2008, p. 85) explica que o [...] conceito de ordem econômica constitucional não permite, não enseja, não viabiliza a aplicação de normas jurídicas [...]. Presta-se unicamente a indicar, topologicamente, no texto constitucional, disposições que, em seu conjunto, institucionalizam a ordem econômica. Para Cristiane Derani (2008) a ordem econômica atinge a ordem de mercado que alcança a todos, estando presentes fatores essenciais de uma ordem econômica como orientação político-econômica, podendo ser traçadas pelos princípios da concorrência e da livre iniciativa, tudo para a preservação do equilíbrio da economia global. Alexandre Walmott Borges (2003) coloca que a abordagem da ordem econômica na Constituição, evidencia normas fundamentais da economia, que viabilizará o sistema econômico do Estado, como o modo de produção, distribuição do poder econômico, programas de execução e realização de política econômica. Por essa razão, Constituição econômica é o conjunto de normas que regulamentam a atividade econômica, diretamente ligada à Constituição política, pois na visão norteamericana, não seria possível a liberdade plena dos cidadãos, sem a liberdade econômica. Ambas Constituições se relacionam no texto constitucional, posto que seus princípios se misturam e se integram. Tudo isso ocorre pelo Estado de Direito adotado, qual seja, o Estado Liberal. Nesse sistema, segundo Pedro Lenza (2013), o Estado deve agir de maneira mínima e não intervencionista, dissociando do Estado Absolutista, no qual a figura do monarca se fundiu à imagem do Estado e com isso a alta intervenção na economia e vida privada. Com o crescimento e enriquecimento da burguesia que defendiam a liberdade contratual como um direito natural do indivíduo, o Estado Liberal passou a ter espaço. Importante ressaltar Alexandre de Moraes (2010) que defende que a Revolução Francesa e as ideias de Adam Smith, influenciaram o Estado Liberal. Ainda com o advento do Estado Liberal, foi necessário abordar a questão social advinda do Estado Social, que deu origem aos direitos sociais. Trata-se de assistência prestada pelo Estado do bem-estar social como um direito político, assim como defende Lenza (2013). A isso Moraes (2010) deu o nome de constitucionalização do Estado Social de Direito. Lenza (2013) e Derani (2008), elucidam que os sob os fundamentos do direito de propriedade privada e da liberdade econômica (ou autonomia da vontade) justifica-se a atividade econômica e conduziram à composição do direito positivo econômico. Assim, Moraes (2010) define como Constituição Econômica previsão expressa nas diversas constituições da regulamentação da intervenção na economia. Lenza (2013) aborda como constitucionalização da economia, que se originou a partir do abuso do poder econômico. Dessa feita, Fonseca (2007, p. 90-91) complementa: [...] para que possa surgir a norma jurídica direcionadora do fenômeno econômico, haver a previa consideração da realidade econômica, apreendendo-se a sua natureza móvel e mutável. É preciso que o legislador compreenda que o fato econômico não se deixa compreender nem dominar por completo pela norma jurídica [...]. O termo “ordem econômica” é usada para referir a um segmento da ordem jurídica, que é composto posto pela ordem pública, ordem privada, ordem social e a própria ordem econômica. Garante que a expressão “ordem econômica” foi incorporada ao direito a partir da primeira metade do século XX e que a Constituição de Weimar (1919) foi importante colaboradora (GRAU, 2008). A Constituição de Weimar (1919) apresentou-se como modelo para várias outras constituições pós-guerra por ser tecnicamente reconhecida por consagrar a democracia liberal e ter previsão de direitos sociais (Moraes, 2012). As Constituições elaboradas no século passado, têm normas dedicas à política econômica do Estado. No Brasil, a Constituição Federal 1934 foi a primeira a adotar a denominação de ordem econômica. Complementa afirmando que [...] há a necessidade de considerar, sob este prisma, a seção de normas consagradoras de política econômica estatal também como as normas fundamentais, normas de base da organização econômica do Estado (BORGES, 2003, p. 213-214). Foi a partir da Constituição de 1934, com as concepções sociais e econômicas foram relacionadas na forma de direitos do trabalhador (SILVA, 2004). As Constituições de 1934 e 1967 (e EC nº 1 de 1969) abordaram a expressão ordem econômica e social, salvo a de 1937 que chamou apenas de ordem econômica (GRAU, 2008). A Constituição Federal de 1988 tratou de duas ordens separadas: a ordem econômica e a ordem social. Importante ressaltar que as primeiras Constituições brasileiras foram influenciadas por fontes políticas e filosóficas. A primeira é marcada pela Declaração de direitos da Virginia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Já a como fontes filosóficas tem-se o iluminismo. Tais fontes expressam o valor da pessoa humana como portadora de direitos atribuídos pela própria natureza. A Constituição de 1824, como relara Fonseca (2007) teve a visão da economia como fenômeno cujas leis foram atribuídas pela natureza e o Estado tem a função de garantir o comprimento natural dessas leis. Não cabia ao Estado gerir a economia por meio de leis. A Constituição de 1891 trouxe modificação política, mas na ordem econômica manteve-se imutável, continuando com a mesma ideia da antecessora (FONSECA, 2007). 2.1 DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ORDEM ECONÔMICA NA CF/1988 Na visão de Grau (2008, p. 173), o art. 170 estabeleceu nova ordem econômica, aliada a “plano global normativo, do Estado e da sociedade”. As normas referentes à ordem econômica e financeira estão previstas a partir do art. 170, situada no Título VII e subdividida em quatro capítulos: dos princípios gerais da atividade econômica; da política urbana; da política agrícola e da reforma agraria; e do sistema financeiro nacional. Os princípios gerais da atividade financeira estão previstos no art. 170, que in verbis: Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Certifica Grau (2008) que, embora o artigo acima defina os princípios gerais, há outros dispositivos constitucionais explícitos que também pertencem a eles, como é o caso dos art. 7º, 201 e 202. Fonseca (2007) ratifica e complementa afirmando que a Constituição Econômica não se restringe apenas no título VII, mas no longo do texto constitucional, como no art. 3º e princípios do art. 4º. Ressalta-se ainda a existência de dois importantes fundamentos, também denominados princípios na Constituição vigente. O primeiro tem a finalidade de garantir a convivência entre as pessoas e se refere a bens imprescindíveis à existência da sociedade, intitulados princípios-essência, dispostos no caput do art. 170 e nos incisos de I a V do artigo 1º, ou seja, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. (DERANI, 2008). O segundo é de cunho basilar, chamados de princípios-base, definido como primordial para o desenvolvimento de determinadas atividades que estruturam a organização de um Estado como é o caso dos incisos do art. 170. Pelo caput é possível saber que a ordem econômica tem o fim de assegurar a todos a existência digna, conforme regras da justiça social. Tem o objetivo de estruturar a organização da sociedade e garantir o seguimento do sistema produtivo (DERANI, 2008). Fonseca (2007, p. 126) corrobora com o assunto e é mais claro ao explicar O artigo 170 traça a estrutura geral do ordenamento jurídico econômico. Este tem com fundamento a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Aceitos tais fundamentos, a Constituição estabelece a finalidade de toda a atuação através de políticas econômicas, qual seja a de assegurar a tosos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Para que os fundamentos sejam concretizados e para que os fins sejam alcançados, necessário se faz adotar alguns princípios norteadores da ação do Estado. A ordem econômica adotou o modo capitalista de produção, cuja principal característica é a livre iniciativa. Elucida Moraes (2010) que pela análise do texto constitucional acerca de seus princípios, ele mesmo dá abertura de intervenção na economia por parte do Estado e não apenas em casos extraordinários. Essa averiguação levou Raul Machado Horta (apud Moraes, 2010, p. 817) a concluir que a Constituição, no que se refere à ordem econômica, está impregnada de princípios e soluções contraditórias. Ora reflete no rumo do capital neoliberal, consagrando os valores fundamentais desse sistema, ora avança no sentido do intervencionismo sistemático e do dirigismo planificador, com elementos socializadores. E complementa Moraes (2010) que a atual Carta Magna reconheceu uma economia descentralizada de mercado, no qual o Estado, dotado de caráter normativo e disciplinador, pode utilizar da atividade econômica quando lhe for conveniente, seja nos casos de segurança nacional, ou no interesse coletivo. Realizando tal intervenção, o Estado estará exercendo suas funções de fiscalização, incentivo e de planejamento. Sobre o artigo 170, Lenza (2013) ratifica a admissão da intervenção do Estado na economia, para cumprir a finalidade da ordem econômica prevista no referido dispositivo, qual seja, assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. Afirma ainda que q intervenção pode ser de forma direta quando o próprio Estado age na economia por meio de monopólio ou de participação com empresas do setor privado, ou de modo indireto, fazendo vigorar o princípio da livre iniciativa a fim de evitar oligopólio, cartel, truste, entre outros. Derani (2008) relata que a Constituição de 1988 ainda trouxe princípios de incentivo ao desenvolvimento econômico, com base nas normas do Estado, reproduzidos pela consolidação e crescimento da produção, desenvolvimento da tecnologia, ampliação de empregos e quantidade e variedade de produtos. Assim, o desenvolvimento sustentável deve englobar o uso sustentável e responsável dos recursos naturais, com o fim de proporcionar uma melhor qualidade de vida e não apenas favorecer um potencial aumento de consumo. José Afonso da Silva (2004) prega a necessidade do desenvolvimento nacional equilibrado, que não consiste apenas no crescimento econômico, mas juntamente com um conjunto de ações progresso social, maiores níveis de educação, melhor padrão de vida, melhoria na saúde da população, ampliação de vagas de trabalho digno, dentre outros. Orienta Lenza (2013) que ainda com a geração de riqueza, o meio ambiente deve estar tutelado pela atividade econômica. 3 DO MEIO AMBIENTE COMO UM DOS PRINCIPIOS GERAIS DA ORDEM ECONÔMICA A atual Constituição Federal do Brasil, promulgada em outubro de 1988, trouxe novidades em seu texto, tendo como a mais significativa a expressa previsão e defesa do meio ambiente no art. 225 e defendido como um dos princípios da ordem econômica, no inciso VI do art. 170. A Carta Magna introduziu pela primeira vez a defesa do meio ambiente como princípio da ordem econômica consagrando-o, no entendimento de Borges (2003), como direito constitucional. Aponta Fonseca (2007) ser esse princípio um limitador do uso da propriedade e que a previsão constitucional foi reflexo das discussões ao redor do mundo sobre o tema meio ambiente, como a Conferência de Estocolmo (1972) e o P.N.U.M.A. (Programa Nas Nações Unidas para o Meio Ambiente, 1985). A Constituição Federal de 1988 foi inovadora e trouxe em seu texto, pela primeira vez, previsão expressa sobre a defesa do meio ambiente em um capitulo destinado apenas a ele: CAPÍTULO VI: DO MEIO AMBIENTE Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. O art. 225 não pode ser visto isoladamente sem o art. 170. Os fundamentos daquele dispositivo não podem ser separados deste, ao passo que o capítulo do meio ambiente aborda um fator precípuo da atividade econômica, qual seja, o fator natureza e discorre sobre sua tutela e apropriação e segundo Derani (2008, p. 237) “[...] o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, é um dos elementos que compõem a dignidade a existência, princípio-essência apresentado no art. 170.” Tais dispositivos são indissociáveis ao passo em que a atividade econômica é formada pelo trabalho humano, recursos e capital. Assim, o meio ambiente é recurso natural gerador de riqueza. A defesa do meio ambiente como princípio geral da ordem econômica é tratada, na visão de Canotilho e Grau (2008, p. 249) como direito constitucional impositivo, que possui dupla função: “[...] instrumento para a realização do fim de assegurar a todos a existência digna e objetivo particular a ser alcançado [...]”, sendo esta última função dotada de caráter diretriz, com caráter constitucional conformador, o que justifica a prática de políticas públicas. Esclarece Lenza (2013) a Emenda Constitucional nº 42/2003 alterou e acrescentou texto no art. 170, dentre eles a possibilidade de tratamento diferenciado sobre o impacto ambiental. Com isso lhe é razoável a concessão de incentivos fiscais para empresas que atual e ajudam diretamente na preservação do meio ambiente e geram baixo impacto ambiental. Com o passar do tempo os países foram usando de maneira exacerbada os recursos naturais, levando à degradação do meio ambiente e que se constatarem a realidade há tempo, é possível conseguir conciliar o desenvolvimento econômico e meio ambiente. Assim, ela assegura que “primeiramente a humanidade precisa redefinir a relação homem-natureza. Torna-se cada vez mais atual o desafio de representar o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental sob a ordem jurídica internacional” (SOARES, 2005, p. 50). Tal afirmação confirma a previsão constitucional do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e justifica sua tutela como princípio geral da ordem econômica. 3.1 DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE SADIO E EQUILIBRADO A Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) define meio ambiente como o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. O conhecido doutrinador Luís Paulo Sirvinskas (2005) garante que a definição feita pela Lei 6.938/1981 não é apropriada, por se tratar de caráter restritivo e não tutelar todos os bens jurídicos tutelados. Por fim, o ilustre Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2009) aponta que o legislador optou pelo conceito vago de meio ambiente com o propósito de instituir um espaço para ocorrência da norma. Um dos mais importantes constitucionalista José Afonso da Silva (2004, p. 20) define o meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. Está pacificado na doutrina que há quatro espécies para o gênero meio ambiente: meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho e que ainda com essa divisão, trata-se de unidade ambiental. O próprio caput do art. 225 estabelece a proteção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e não de um meio qualquer, direito de todos e bem de uso comum do povo. Nesse parâmetro, o referido dispositivo não faz distinção do titular de direito entre brasileiro nato, naturalizado ou o estrangeiro. Desta forma entende-se que o destinatário do meio ambiente pode ser toda e qualquer pessoa, inclusive o estrangeiro a passeio no país. Derani (2008) defende o meio ambiente como direito transtemporal, haja vista sua previsão para as futuras gerações, apresentando-se através do tempo. Não pode ser separado em fração individual e deve ser aproveitada por toda a coletividade. Evidencia o excelente autor Édis Milaré (2009) que não se trata de qualquer ambiente, mas o equilíbrio ecológico do ambiente, levando em consideração não apenas a vida humana, mas o tipo e qualidade de vida de todas as formas. Fiorillo (2009) ressalta que a sadia qualidade de vida apontada no art. 225 deve ser combinada com o art. 6º da Constituição, cujo dispositivo preceitua o mínimo vital necessário para cada pessoa. Um dos princípios fundamentais que defende esse mínimo para a vida é o da dignidade da pessoa humana. Com efeito, para que um indivíduo tenha a defesa mínima de seus direitos ajustado ao direito ambiental, é necessário a concessão de outros valores, como culturais, fundamentais para a vida nos conformes do texto constitucional. Complementa Silva (2004) que há dois objetos tutelados: um imediato e outro mediato. O primeiro consiste no próprio meio ambiente e o segundo estão condensadas à terminologia “qualidade de vida”, que corresponde à saúde, ao bem estar, dentre outros. Embora a “sadia qualidade de vida” não esteja prevista explicitamente no artigo 5º da Constituição, trata-se de um direito fundamental, cujos tutores são o poder público e a coletividade (SIRVINSKAS, 2005). Para assegurar esse direito, é outorgado ao Poder Público, dentre outras obrigações, a promoção da educação ambiental e a conscientização para a preservação do meio ambiente e proteção da flora e da fauna, conforme §1º, art. 225. Segundo Derani (2008) a expressão “qualidade de vida” é sinônima de “bem-estar”, podendo utilizar qualquer uma delas para falar sobre o meio ambiente. Acrescenta uma terceira locução “bem viver” tirada da obra de Aristóteles, na qual se pode interpretar como a possibilidade real dos indivíduos em desenvolverem suas potencialidades. Afirma ainda que as normas para obtenção de melhorar a qualidade de vida, assemelham-se com o “bem viver” de Aristóteles. Da mesma maneira assegura o brilhante doutrinador Paulo Affonso Leme Machado (2005, p. 120): “a sadia qualidade de vida só pode ser conseguida e mantida se o meio ambiente estiver ecologicamente equilibrado. Ter uma sadia qualidade de vida é ter um meio ambiente não-poluído” (destaque original do texto). A atual Constituição orientou em seu texto a criação da natureza jurídica de um novo bem, o bem difuso. Foram criados dispositivos modernos com conteúdos de interesses difusos, assumindo característica de direito transindividual, com natureza indivisível, sendo pessoas indeterminadas seus titulares (FIORILLO, 2009). Esse é o mesmo pensamento do ilustre Rui Carvalho Piva (2000), ao passo que classifica bem ambiental como um novo bem, que não é público nem privado, mas bem pertencente à coletividade, sendo ele difuso. O texto constitucional também assegurar que as próximas gerações tenham as mesmas condições que gozam as presentes. Fiorillo (2009) mostra que é a primeira vez que a Constituição se refere a um direito futuro. Trata-se de um bem constitucional que deve ser guardado não apenas aos que estão vivos, mas também aos que virão. Importante aqui destacar a necessidade de reciprocidade das pessoas no espaçotempo, ou seja, como o meio ambiente é direito de todos, inclusive dos que ainda não nasceram, a presente geração deve agir com liberdade para empreender e ao mesmo tempo garantir que haverá um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio para o desfruto das gerações seguintes. A essência da ordem econômica está relacionada à existência digna de todos, que é seu fim. É possível adquirir isso, ao menos pela parte ambiental, por meio do meio ambiente sadio e equilibrado, posto que é direito fundamental e imprescindível para uma vida digna. Derani (2008) associa a boa qualidade de vida com o modo em que a sociedade utiliza e assimila seus recursos, inclusive os naturais e, consequentemente, com sua atividade econômica. 4 CONCLUSÃO A ordem econômica é essencial para a segurança no desenvolvimento de uma nação, posto que regula, com base no interesse nacional, o modo de exploração da atividade econômica, sempre com base nos princípios gerais já definidos pela Constituição. O constituinte preocupou-se com a defesa do meio ambiente ao determina-lo como um dos princípios a ser respeitados por todos, inclusive por aqueles que o utilizam como meio natural para atingir seus objetivos financeiros e movimentar a economia. Vale lembrar que os recursos naturais são finitos e por isso tamanha necessidade de sua proteção. Contudo, para que seja possível uma existência digna da pessoa humana em conformidade com as regras da justiça social é essencial estar num meio ambiente ecologicamente sadio e equilibrado, que proporcione uma melhor qualidade de vida. O meio ambiente é direito transtemporal, ou seja, que vai além do tempo atual, isto porque o legislador originário determinou sua preservação para as gerações futuras. O que se espera, assim, é que as próximas gerações tenham, ao menos, as mesmas condições da atual, tendo condições de possuírem os recursos naturais a fim de manterem e perenizarem a ordem econômica. Desta feita, ressalta-se a necessidade de haver uma relação equilibrada entre desenvolvimento industrial e a utilização dos recursos naturais, devendo as políticas econômicas precaver o desenvolvimento da atividade econômica e pela conservação do meio ambiente. REFERÊNCIAS BORGES, Alexandre Walmott. Preâmbulo da constituição e a ordem econômica. Curitiba: Juruá, 2003. BRASIL. Constituição da república federativa do brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei nº 6.938 de 31 de agosto de 1981. Política Nacional do Meio Ambiente. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet <http://planalto.gov.br> Acesso em julho 2014. DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10. ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Mallheiros, 2008. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 17 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: A gestão ambiental em foco. 6. ed, atual. ampl. 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O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO E RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS NO PROCESSO CIVIL Beatriz da Silva Oliveira5 Osmar Vieira da Silva6 RESUMO O presente trabalho trata de analisar e estudar o Princípio da Cooperação e a teoria da Racionalidade Comunicativa de Habermas e se é possível aplicar ambas ao Processo Civil pátrio, pois o atual cenário nos tribunais brasileiros é de milhares de processos sem resolução e previsão para a entrega jurisdicional. Através da Cooperação e da Racionalidade Discursiva verifica-se que é possível criar uma comunidade de trabalho entre os sujeitos processuais que se comunique e que trabalhe para que haja efetivamente um processo pautado na democracia. Um processo que seja breve, eficaz, isonômico e que componha a justa composição do litígio. PALAVRAS-CHAVE: Comunidade de Trabalho. Comunicação. Efetividade. ABSTRACT The present paper work analyses and study the Principle of Cooperation and Haberma's theory of Comunicative Rationality and, if possible, applies them to paternal Civil Process, becouse the current cenario at brasilian courts is of thousands of processes without resolution or forecast of jurisdictional delivery. Through Discursive Rationality Cooperation we can see that is possible to create a community of work between processual subjects that communicate and work ao there can be actually a process based on democracy. A process that is at the same time brief, effective, isonomic and that draw up the fair composition of litigation. KEYWORDS: Work Community. Communication. Effectivity. SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS. 2 DOS PRINCÍPIOS. 2.1 DEFINIÇÕES. 2.2 O PORQUÊ DA APLICAÇÃO E A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS. 3 DO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. 3.1 DEFINIÇÃO. 3.2 MODELO DE PROCESSO COOPERATIVO. 3.3 COOPERAÇÃO INTERSUBJETIVA E “COMUNIDADE DE TRABALHO”. 3.4 DO CARÁTER DIALÓGICO DO PROCESSO COOPERATIVO E A DEMOCRATIZAÇÃO DO PROCESSO. 4 A RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS. 4.1 A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL E A RACIONALIDADE COMUNICATIVA. 4.2 DA IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM. 5 DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA 5 Discente do último ano do Curso de Direito do Centro Universitário Filadélfia – Unifil. Docente da Unifil. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito Negocial pela UEL. E-mail: [email protected] 6 COOPERAÇÃO E DA RACIONALIDADE COMUNICATIVA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO. 5.1 O PROCESSO COOPERATIVO E A RACIONALIDADE COMUNICATIVA. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente trabalho tratará de analisar o Princípio da Cooperação e a Racionalidade Discursiva de Habermas aplicada ao Processo Civil brasileiro. Verificar-se-á a importância dos princípios para o ordenamento pátrio, o conceito e vertentes do Princípio da Cooperação. Será estudada a Racionalidade Comunicativa proposta pelo filósofo Jurgen Habermas e se ambas poderão ser aplicadas ao Processo Civil. A necessidade de estudar tal tema vem do anseio de fazer com que o Processo Civil seja mais ágil, menos burocrático e mais eficiente. Sabe-se que o judiciário está abarrotado de processos sem nenhuma previsão de julgamento por não haver mecanismos que aperfeiçoem o trabalho dos sujeitos processuais e dos tribunais. Neste sentido, será analisado se o Princípio da Cooperação atrelado a Racionalidade Comunicativa poderá contribuir para um processo que atenda a realidade forense e alcance a efetividade tão almejada pelos operadores processuais e pela sociedade. 2 DOS PRINCÍPIOS Antes de adentrar ao tema propriamente dito, é necessário compreender a definição de princípios, o porquê de sua aplicação e a sua importância no ordenamento jurídico. Além disso, vale entender os princípios processuais para que em seguida seja entendido o Princípio da Cooperação e como ele poderá contribuir para um processo mais justo e célere. 2.1 DEFINIÇÕES Verifica-se que o termo princípio não é de fácil definição, pois cada ciência busca defini-lo de acordo com seus interesses e cada qual sob a sua ótica. Na seara jurídica, por sua vez, há diversas definições que demonstram o valor dos princípios no ordenamento jurídico e como estes contribuem significativamente para tornar o sistema harmônico. Segundo José Cretella Junior (1999, p. 35) “[...] princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais típicas que condicionam todas as estruturações subsequentes”. Para este autor os princípios são fundamentos básicos que interferem e manifestam influência sobre as estruturas que serão formadas posteriormente. Já a definição proposta por Celso Antônio Bandeira de Mello (2000, p. 747-48) expõe princípio como mandamento nuclear, veja-se: Princípio […] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (sem grifo no original) Justo e memoroso significado atribuído a princípios pelo jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, pois demonstra que princípio é utilizado como critério para compreensão do sistema normativo. É ele que traz harmonia ao sistema. O doutrinador Paulo Bonavides (2009, apud Luís-Diéz Picazo, 1983, p. 1267 e 1268) explica que a ideia de princípio deriva da linguagem da geometria, “onde designa as verdades primeiras”. Continua Bonavides (2009, apud F. de Clemente, p. 290) elucidar ao afirmar que “princípio de direito é pensamento diretivo que domina e serve de base à formulação das disposições singulares de Direito de uma instituição jurídica, de um Código ou de todo direito positivo”. Define ele (2009, p. 290) princípios, como: Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, norma das normas. (sem grifo no original) Constata-se que todos os juristas que definiram princípios, chegaram a mesma conclusão: que este representa a norma de maior relevância no ordenamento jurídico, pois é utilizado como parâmetro, base, fundamento e núcleo do sistema jurídico. É ele que dá sentido e harmonia para todo o sistema legal. Extrai-se de suas definições a imprescindível aplicação e utilização dos princípios pelos juristas em casos concretos. 2.2 O PORQUÊ DA APLICAÇÃO E A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS Ao iniciar o trabalho com a definição de princípios e suas vertentes, quer-se conscientizar e explanar que os princípios são muito importantes para a construção e aplicação do direito. Concorda-se com o porquê da aplicação e a importância dos princípios disposta no trecho escrito por Canotilho (2003, p. 1163), a saber: O sistema jurídico necessita de princípios (ou valores que eles exprimem) como os da liberdade, igualdade, dignidade, democracia, Estado de direito; são exigências de optimização abertas a várias concordâncias, ponderações, compromissos e conflitos. Em virtude de sua referência a valores ou da sua relevância ou proximidade axiológica (da justiça, da ideia de direito, dos fins de uma comunidade), os princípios têm uma função normogenética e uma função sistêmica: são o fundamento de regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhe permite ligar ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional. Esta perspectiva teorético-jurídica do sistema constitucional, tendencialmente principialista, é de particular importância, não só porque fornece suportes rigorosos para solucionar certos problemas metódicos (cfr. Infra colisão de direitos fundamentais), mas também porque permite respirar, legitimar, enraizar e caminhar o próprio sistema. (sem grifo no original) O porquê da aplicação é que eles, os princípios, são fundamentos capazes de unir o sistema jurídico, estes, legitimam e consagram valores, podem ser aplicados através de instrumentos processuais e procedimentos para a concretização dos valores e anseios que eles mesmos exprimem, podem ser aplicados de maneira prática, porque são as normas das normas. A partir do próximo tópico, será estudado de forma minuciosa o Princípio da Cooperação. O que foi explanado até agora, demonstra a importância dos princípios e a possibilidade de sua aplicação pelos operadores do direito. O princípio que será analisado posteriormente pode ser entendido como nova forma de entender o Processo Civil e de fato repensar as nossas bases ideológicas propostas através deste princípio. 3 DO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO O cerne do presente trabalho é este tópico, pois ele trará subsídios e elucidará a aplicação do Princípio da Cooperação no Processo Civil Brasileiro, que é por vezes, moroso, não resolve de maneira efetiva o litígio e possui bases muito formais. Verifica-se que há necessidade de uma mudança de mentalidade quanto à condução do processo pelos operadores do direito. Vale trazer um trecho contido na obra de Lúcio Grassi de Gouveia (2009), que vai de encontro ao anseio de uma reforma no Processo Civil, a saber: o que se espera da legislação processual civil é que ela permita uma rápida realização do direito material através dos tribunais e, quando for o caso, uma adequada solução dos litígios e um pronto restabelecimento da paz jurídica, pelo que uma reforma no processo civil nos tempos atuais deve orientar-se pelos seguintes objetivos gerais: a efetividade da justiça administrada pelos tribunais através de uma decisão rápida, oportuna e legitimada pelo consenso das partes e do público em geral sobre a sua adequação à composição do litígio concreto: – o aumento da operacionalidade dos sujeitos processuais através da subordinação da atividade processual das partes e do tribunal a um princípio de colaboração ou de cooperação. (apud Miguel Teixeira de Souza 1995, p. 355) (sem grifo no original) É notável que o autor aponta o Princípio da Cooperação como objetivo a ser alcançado para uma rápida e adequada solução do litígio, que trará paz jurídica. É nesse sentido que se pretende explicar o referido princípio e a atuação de cada sujeito processual para alcançar o fim almejado por todos – a solução do litígio. 3.1 DEFINIÇÃO Para que haja o nítido entendimento quanto ao princípio apresentado, é necessário entender sua origem e conceito. Ao entender de maneira clara, poder-se-á aplicá-lo ao Processo Civil de maneira satisfatória. Segundo Fredie Didier Junior (2005, p. 75), no direito estrangeiro se prestigia o Princípio da Cooperação na Alemanha, França e Portugal. O citado princípio é relativamente novo em nosso Direito Pátrio, no entanto, é possível verificar que há vários autores que o estudam e trazem grandes contribuições para a verdadeira compreensão do sentido cooperação no processo. Lúcio Grassi de Gouveia (apud Aurélio Buarque de Holanda, 1986, p.472) explica que “cooperação (do latim cooperacione) significa ato ou efeito de cooperar. Cooperar (do latim cooperare, por cooperari) significa operar ou obrar simultaneamente; trabalhar em comum, colaborar, ajudar, auxiliar”. Artur César de Souza (2013, p. 67) define-o: O princípio da cooperação é um princípio orientador do direito processual civil, o qual determina que as partes e juízes devem cooperar entre si para que o processo realize sua função num prazo razoável e segundo as diretrizes de um processo justo e équo. O autor ainda afirma que (2013, p. 66): [..] as partes têm de participar ativamente do processo, cooperando com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas urgentes. Para Fredie Didier Junior (2005, p. 75-76) o princípio da cooperação “orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do processo, de participante ativo do contraditório e não mais a de um mero fiscal de regras”. Segundo o doutrinador Daniel Mitidiero (2011, p. 56-58) “propicia que juízes e mandatários cooperem entre si, de modo a alcançar-se, de uma feição ágil e eficaz, a justiça no caso concreto”. Para ele, a colaboração é: um modelo de processo civil que visa a organizar o papel das partes e do juiz na conformação do processo. Em outras palavras: visa a dar feição ao formalismo do processo, dividindo de forma equilibrada o trabalho entre todos os seus participantes. Como modelo, a colaboração rejeita a jurisdição como polo metodológico do processo civil, ângulo de visão evidentemente unilateral do fenômeno processual, privilegiando em seu lugar a própria ideia de processo como centro da teoria, concepção mais pluralista e consentânea à feição democrática ínsita ao Estado Constitucional. Diante de todas essas definições, pode-se entender por cooperação um modelo de processo que orienta juiz e as partes a colaborar para que o processo seja ágil e eficaz e cumpra a justiça no caso concreto. Em suma, verifica-se que o Princípio da Cooperação é um modelo de processo que é pautado na busca da verdade e tem como pressuposto a boa-fé e que depende da cooperação entre os participantes da relação processual para a busca da justa e rápida resolução do litígio. 3.2 MODELO DE PROCESSO COOPERATIVO Esse modelo de processo muda totalmente o enfoque do processo, como explica sabiamente Fredie Didier Junior (2011, p. 219) Esse modelo caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual, e não mais como um mero espectador do duelo das partes. O contraditório volta a ser valorizado como instrumento indispensável ao aprimoramento da decisão judicial, e não apenas como uma regra formal que deveria ser observada para que a decisão fosse válida. (sem grifo no original) Segundo Artur César de Souza (2013, p. 67) explica sabiamente o sentido de processo cooperativo, a saber: Havendo no processo jurisdicional uma relação jurídica de mútua colaboração, afasta-se aquela ideia de que o processo seria um jogo, uma disputa, um incessante confronto entre autor e réu. Essa perspectiva também sugere uma forte reação ao juiz autoritário, pois coloca juiz e partes numa posição de igualdade, de mutua colaboração. Quando se diz que no processo haverá uma efetiva cooperação entre as partes e o juiz para a construção de uma decisão final justa, isso significa dizer que, apesar dos interesses divergentes que possam existir no confronto de pretensões, o certo, é que todos devem pautar a sua efetiva participação processual como colaboradores, agindo de forma leal e com boa-fé, fornecendo ao juiz subsídios para a construção de uma decisão équo e justa. (sem grifo no original) Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (p.8) também traz sua contribuição para maior entendimento do princípio, veja-se: Ora, a idéia de cooperação além de implicar, sim, um juiz ativo, colocado no centro da controvérsia, importará senão o restabelecimento do caráter isonômico do processo pelo menos a busca de um ponto de equilíbrio. Esse objetivo impõe-se alcançado pelo fortalecimento dos poderes das partes, por sua participação mais ativa e leal no processo de formação da decisão, em consonância com uma visão não autoritária do papel do juiz e mais contemporânea quanto à divisão do trabalho entre o órgão judicial e as partes. (sem grifo no original) Lúcio Grassi de Gouveia (2009, p. 36-37) demonstra em um trecho de seu artigo como o processo cooperativo deve ser conduzido pelos sujeitos processuais: O processo deverá orientar-se pelo diálogo e comunicação entre os sujeitos processuais, privilegiando tais aspectos em detrimento de um enfoque estratégico ou duelístico. Tal aspecto, acrescido da oralidade ao aumento da atividade do juiz que deixa de ser um mero espectador de uma disputa das partes, da possibilidade de adequação das regras processuais quando inadequadas para a justa composição do litígio, da atenuação da preclusão na alegação de fatos (apesar de o processo civil brasileiro ser dotado de forte carga de preclusividade) e na prevalência do mérito sobre a forma demonstram uma completa modificação de paradigmas, que afasta uma concepção de processo civil nos termos de um liberalismo clássico burguês, criando uma legislação sintonizada com a ideia de um Estado Social de Direito. Prestigia-se a ideia de instrumentalidade do processo, evitando a supervalorização das regras técnicas em detrimento dos princípios fundamentais do direito processual, buscando uma humanização do processo, de modo a que se consiga ser para todos os membros da sociedade um eficiente meio ético e técnico de pacificação social, dotado de efetividade, que é obtida através da cooperação entre os sujeitos processuais para a busca do que se convencionou chamar de verdade real, se bem que entendamos que nenhum processo garante a descoberta da referida verdade. (sem grifo no original) Depreende-se de todas essas exposições que o processo cooperativo é diferente do processo dispositivo e inquisitivo. Não há função predominante de nenhum dos sujeitos, todos estes cooperam através do diálogo e comunicação, todos participam ativamente da humanização do processo para alcançar a paz social e a efetividade processual. 3.3 COOPERAÇÃO INTERSUBJETIVA E “COMUNIDADE DE TRABALHO” Lúcio Grassi de Gouveia (2009, p. 35) define cooperação intersubjetiva e é de suma importância apresentá-la, a saber: Cooperação intersubjetiva em direito processual significa trabalho em comum, em conjunto, de magistrados, mandatários judiciais e partes, visando a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio. Elevada à categoria de princípio, a cooperação intersubjetiva deverá orientar não só a atividade do intérprete-aplicador do Direito, mas a de todos os sujeitos processuais, posto que como tal interferirá inclusive na interpretação dos demais dispositivos legais contidos na legislação processual civil […] este sistema jurídicoprocessual é regido e orientado, dentro outros princípios e em harmonia com os mesmos, pelo princípio da cooperação. (sem grifo no original) Da definição acima, depreende-se que no processo civil, o intérprete-aplicador do direito e os demais sujeitos processuais, devem obrar para que haja justa composição e brevidade na prestação jurisdicional. O mesmo autor (2009, p. 36), entende que o princípio da cooperação é trave mestra do processo civil e este princípio inevitavelmente está intimamente ligado a uma ideia de “comunidade de trabalho” entre as partes e o tribunal para a realização e concretização da função processual. Destina-se, segundo ele, “transformar o processo civil numa ‘comunidade de trabalho’ e a responsabilizar as partes e o tribunal pelos seus resultados”. 3.4 DO CARÁTER DIALÓGICO DO PROCESSO COOPERATIVO E A DEMOCRATIZAÇÃO DO PROCESSO Há inúmeras citações realizadas anteriormente que enaltecem o diálogo como base do princípio da cooperação. Diante desse fato, é importante trazer argumentos de doutrinadores que corroboram com o entendimento de que sem o diálogo não é possível um processo cooperativo. Lúcio Grassi de Gouveia (2009, p. 46) demonstra a importância do caráter dialógico do processo: Acentua-se assim o caráter dialógico do processo, relativizando-se a contraposição entre o processo inquisitório o processo dispositivo. As partes têm assim a oportunidade de participar de modo crítico e construtivo, de interferir diretamente no andamento do processo, participando da elaboração da decisão do tribunal. O método dialético amplia o quadro de análise, obriga ao confronto, atenua o perigo de opiniões preconceituosas e favorece a formação de julgamento mais aberto e ponderado. É o diálogo que corrige continuamente a lógica e não a lógica que controla o diálogo. (sem grifo no original) O diálogo é a forma mais simples de se chegar a um acordo e a uma conclusão comum. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (2014, p. 9-10) explica que é necessário deixar a investigação solitária do órgão judicial, que é baseada na inadequada investigação pelo judiciário de maneira só e adotar-se o diálogo. Segundo o próprio autor, quando se adota o princípio da cooperação faz o princípio da dignidade da pessoa humana também é respeitado (2014, p. 9-10), a saber: A faculdade concedida aos litigantes de pronunciar-se e intervir ativamente no processo impede, outrossim, sujeitem-se passivamente à definição jurídica ou fática da causa efetuada pelo órgão judicial. E exclui, por outro lado, o tratamento da parte como simples "objeto" de pronunciamento judicial, garantindo o seu direito de atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado, desenvolvendo antes da decisão a defesa das suas razões. A matéria vincula-se ao próprio respeito à dignidade humana e aos valores intrínsecos da democracia, adquirindo sua melhor expressão e referencial, no âmbito processual, no princípio do contraditório, compreendido de maneira renovada, e cuja efetividade não significa apenas debate das questões entre as partes, mas concreto exercício do direito de defesa para fins de formação do convencimento do juiz, atuando, assim, como anteparo à lacunosidade ou insuficiência da sua cognição. (sem grifo no original) A possibilidade das partes agirem ativamente no processo faz com que sejam garantidos seus direitos – que é a própria dignidade da pessoa humana e a democracia. O autor ainda continua (2014, p. 13): O diálogo judicial e a cooperação, acima preconizada, tornam-se, no fundo, dentro dessa perspectiva, autêntica garantia de democratização do processo, a impedir que o poder do órgão judicial e a aplicação da regra iura novit curia redundem em instrumento de opressão e autoritarismo, servindo às vezes a um mal explicado tecnicismo, com obstrução à efetiva e correta aplicação do direito e à justiça do caso. (sem grifo no original) Através da cooperação baseada no diálogo, lograr-se-á um processo efetivo, justo e que efetivamente as partes participam do resultado como agentes de formação do provimento jurisdicional. 4 A RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS 4.1 A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL E A RACIONALIDADE COMUNICATIVA É necessário distinguir a racionalidade instrumental da comunicativa para entender o cerne da teoria proposta por Habermas. Segundo Lucia Maria de Carvalho Aragão (1997, p. 25), a razão instrumental é: A razão que se depreende da atividade do sujeito cognoscente e agente, ele caracteriza como subjetiva e instrumental, porque centrada na noção de subjetividade e voltada para o domínio teórico e/ou prático dos objetos. Segundo a mesma autora, razão comunicativa é: Já a razão que pode ser descoberta pela análise da atividade dos sujeitos linguísticos é uma razão intersubjetiva e não instrumental, porque a prática linguística envolve pelo menos dois participantes (ou sujeitos) e tem como único objetivo o entendimento. A diferença entre ambas pode ser explicada por Alessandro Pinzani (2009, p. 100): Aos dois tipos de racionalidade correspondem as duas formas de agir: o agir comunicativo e o agir instrumental. O primeiro distingue-se do segundo pelo fato de ser orientado pelo entendimento: sujeitos que agem de maneira comunicativa querem entender-se sobre algo. Em segundo lugar, ele é caracterizado por uma concepção de linguagem que vê nela um meio para o entendimento: ela pode servir para outras finalidades e o agente pode visar simplesmente impor uma opinião subjetiva, manipular outros sujeitos ou trata-los como meios para os seus próprios fins (isso é chamado por Habermas de agir estratégico) ou alcançar uma determinada meta. O telos implícito da racionalidade nesse caso, é a “manipulação instrumental” e não como no primeiro caso, o “entendimento comunicativo”. (sem grifo no original) Verifica-se, portanto, a diferença entre as racionalidades. Enquanto a racionalidade instrumental é subjetiva e voltada para o domínio teórico ou prático dos objetos com a finalidade implícita de manipulação, a racionalidade discursiva é intersubjetiva e possui como único objetivo o entendimento através da comunicação entre os próprios sujeitos. A racionalidade discursiva, como se constatará, está intimamente ligada à linguagem. 4.2 DA IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM A racionalidade comunicativa está intimamente ligada à linguagem. Para Alessandro Pinzani (2009, p. 100): A linguagem é, portanto, central para definir a racionalidade. Por meio da linguagem os seres humanos formam seu mundo comum […]; por meio da linguagem eles verificam as pretensões de validade ligadas a afirmações, normas e formas expressivas subjetivas; por meio da linguagem eles se entendem sobre os critérios com base nos quais suas ações são avaliadas. Segundo Lucia Aragão (1997, p. 32-33): Há, portanto, […] motivo para que seja a linguagem, e não o conhecimento ou a ação, o melhor médium através do qual se revela, somente através da linguagem podemos ter acesso a uma forma de razão não-instrumental e não-subjetiva, isto é, a uma razão “comunicativa”, essencialmente intersubjetiva, cujo único critério é promover o acordo racional entre os sujeitos, o que exclui, imediatamente, o uso de qualquer forma de coerção, externa ou interna. […] A racionalidade comunicativa, porque apoiada no paradigma da linguagem, tem que ampliar seu enfoque, buscando abranger todas as formas de manifestação linguísticas do ser humano, que inclui além do aspecto cognitivo-instrumental, os aspectos prático-moral e prático-estético. (sem grifo no original) Continua a lecionar Aragão (1997, p. 50-52): A linguagem é, pois, o médium de constituição e reprodução das estruturas do mundo-da-vida, e tem como funções básicas fomentar o entendimento mútuo, permitir a coordenação das ações e promover a socialização. A linguagem é o verdadeiro traço distintivo do ser humano, pois lhe atribui a capacidade de tornar-se um ser individual, social e cultural, fornecendo-lhe uma identidade e possibilitando-lhe partilhar estruturas de consciência coletiva. É por isso que Habermas afirma que a linguagem é exatamente aquela aptidão do ser humano que o distingue dos animais, sua verdadeira característica antropológica: “O que nos distingue da natureza é, na verdade, a única coisa que, por natureza, podemos conhecer, a saber, a linguagem”. (Habermas 1973 a, p. 156) Além do mais, através da utilização da linguagem enquanto forma de comunicação que busca o entendimento, os homens assumem um papel duplo; são, ao mesmo tempo, falantes e atores. (sem grifo no original) Através de todas as explicações é nítida a importância da linguagem e da comunicação entre os sujeitos racionais. Só através da linguagem o sujeito poderá ser ator e falante ao mesmo tempo e com isso buscar o entendimento mútuo. 5. DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO E DA RACIONALIDADE COMUNICATIVA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO Não há nenhum livro, artigo ou publicação que atrele o Princípio da Cooperação à Racionalidade Comunicativa aplicada ao Processo Civil Brasileiro, mas ao estudar as bases e fundamentos expostos neste trabalho, verifica-se que é totalmente possível utilizá-los no processo civil pátrio. 5.1 O PROCESSO COOPERATIVO E A RACIONALIDADE COMUNICATIVA É importante relembrar os fundamentos do processo cooperativo e da racionalidade discursiva para que haja total entendimento da possibilidade de unir tais teorias em prol do processo civil. O processo cooperativo deve segundo Lúcio Grassi de Gouveia (2009, p. 36-37): orientar-se pelo diálogo e comunicação entre os sujeitos processuais, privilegiando tais aspectos em detrimento de um enfoque estratégico ou duelístico. Tal aspecto, acrescido da oralidade ao aumento da atividade do juiz que deixa de ser um mero espectador de uma disputa das partes, da possibilidade de adequação das regras processuais quando inadequadas para a justa composição do litígio, da atenuação da preclusão na alegação de fatos (apesar de o processo civil brasileiro ser dotado de forte carga de preclusividade) e na prevalência do mérito sobre a forma demonstram uma completa modificação de paradigmas, que afasta uma concepção de processo civil nos termos de um liberalismo clássico burguês. (sem grifo no original) Assim, o processo pautado na cooperação tem um caráter dialógico, há comunicação entre os sujeitos e estes trabalham em comum, realizam uma comunidade de trabalho para que realmente ocorra a cooperação. A Racionalidade Comunicativa proposta pelo filósofo Habermas vem totalmente de encontro aos ideais do processo cooperativo. Racionalidade pressupõe sujeitos linguísticos que se comunicam e que agem de maneira comunicativa. Vejamos, segundo Alessandro Pinzani (2009, p. 100): o agir comunicativo […] orientado pelo entendimento: sujeitos que agem de maneira comunicativa querem entender-se sobre algo. Em segundo lugar, ele é caracterizado por uma concepção de linguagem que vê nela um meio para o entendimento. (sem grifo no original) A linguagem e a comunicação são primordiais para a Racionalidade Comunicativa, como explica Aragão (1997, p. 50-52): A linguagem é, pois, o médium de constituição e reprodução das estruturas do mundo-da-vida, e tem como funções básicas fomentar o entendimento mútuo, permitir a coordenação das ações e promover a socialização. […] através da utilização da linguagem enquanto forma de comunicação que busca o entendimento, os homens assumem um papel duplo; são, ao mesmo tempo, falantes e atores. (sem grifo no original) Diante disso, é notável que o processo cooperativo atrelado a Racionalidade Comunicativa é totalmente possível ser aplicado ao processo civil, pois ambos utilizam a comunicação como meio de resolução de conflitos e controvérsias. Somente através da linguagem e da comunicação haverá verdadeiramente a racionalidade que fará com que os sujeitos processuais cooperem. 5.2 DA POSSÍVEL APLICABILIDADE DA COOPERAÇÃO E DA RACIONALIDADE COMUNICATIVA AO PROCESSO CIVIL Nos último tópico, demonstrou-se que o Princípio da Cooperação aliado a Racionalidade Comunicativa poderão ser introduzidos no Processo Civil brasileiro. Entendeu-se que a Racionalidade Comunicativa tem um viés totalmente dialógico e comunicativo como também a Cooperação o tem. O processo que se pauta na cooperação utilizará muito diálogo entre os sujeitos processuais e assim consequentemente utilizará a racionalidade discursiva para chegar a um entendimento. O único problema que pode ser apresentado é se os operadores do processo não utilizarem o princípio e a racionalidade como base de suas relações processuais – acabando por prejudicar todo o sistema, todo o trâmite processual – continuando a adotar um processo que não visa o entendimento. Infelizmente o processo civil brasileiro, continuará a ser arcaico, moroso e não entregará a efetiva tutela jurisdicional como na maioria dos casos. Artur César de Souza (2013, p. 80) explica que a lei não cumprirá seu papel se não houver a mudança de pensamento daqueles que a manejam: Diante dessas considerações, pode-se afirmar que não basta uma salutar mudança dos regramentos jurídicos norteadores do processo civil brasileiro, especialmente o da expressamente introdução em nosso ordenamento jurídico do princípio da cooperação, se essa mudança também não alcançar o pensamento daqueles que são responsáveis pela aplicação e interpretação dessas modificações processuais. (sem grifo no original) Chega-se a conclusão, portanto, que o Princípio da Cooperação e a Racionalidade Comunicativa são totalmente compatíveis com o Processo Civil brasileiro e podem ser aplicados para que o processo seja mais democrático, isonômico, breve, eficaz e que ocasione a justa composição do litígio, desde que bem compreendido pelos operadores. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao estudar todos os temas propostos, verificou-se que os princípios são diretrizes e bases para o sistema legal brasileiro, que estes são mandamentos nucleares que harmonizam o sistema e que impõem deveres a todos os operadores do direito, sendo de observância obrigatória por estes. Diante desse fato, passou-se a estudar o Princípio da Cooperação e constatou-se que com a aplicação deste princípio há aumento da operacionalidade dos sujeitos processuais. Há um trabalho em comum, todos cooperam para alcançar uma feição ágil e eficaz que traga justiça ao caso concreto. Que através do processo cooperativo todos os sujeitos processuais trabalham de maneira participativa por resultados eficazes. Este processo é orientado pelo diálogo e pela comunicação. Compreendeu-se que a Racionalidade Comunicativa de Habermas é atividade linguística dos sujeitos para alcançar entendimento e que estes devem agir de maneira comunicativa para entender-se sobre algo. Os operadores agem para alcançar entendimento e tudo ocorre através da comunicação e da linguagem. Ao considerar todos estes aspectos, é possível constatar que o processo cooperativo e a racionalidade comunicativa utilizam a comunicação como meio de resolução de conflitos. Através da linguagem e da comunicação os sujeitos poderão ser racionais e cooperar para que haja efetivamente um processo célere, mais democrático e que atenda a sua verdadeira finalidade – pacificar conflitos. O Princípio da Cooperação e a Racionalidade Comunicativa são totalmente compatíveis, pois utilizam a comunicação e o diálogo como meio eficaz para entender-se sobre algo e alcançar o efetivo entendimento. Chega-se a conclusão que a cooperação e a racionalidade comunicativa podem ser aplicadas ao processo civil brasileiro e que se compreendidas de maneira correta pelos sujeitos processuais e pelos tribunais brasileiros poderá minimizar muitos problemas que o Poder Judiciário tem enfrentado, como número excessivo de processos sem resolução e sem a mínima noção de tempo para julgamento. Através da cooperação e da racionalidade comunicativa o processo civil brasileiro poderá ser menos burocrático, mais isonômico, breve, justo, democrático, eficaz e atenderá a justa composição do litígio, basta a mudança de mentalidade. REFERÊNCIAS ARAGÃO, Lucia Maria de Carvalho. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jurgen Habermas. – 2. Ed. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1997. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros 2009. 827 p. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. 1522 p. CRETELLA JÚNIOR, José. Filosofia do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1999. 254 p. DIDIER JÚNIOR, Fredie. O princípio da cooperação: uma apresentação. Revista de Processo, São Paulo, v. 30, n. 127, p. 75-79, set. 2005 DIDIER JUNIOR, Fredie. Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo. Revista de Processo, São Paulo, v. 198, n. 544, p. 213-225, ago. 2011. GOUVEIA, Lúcio Grassi de. A função legitimadora do princípio da cooperação intersubjetiva no processo civil brasileiro. Revista de Processo, São Paulo, v. 172, n. 388, p. 32 - 53, jun. 2009. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 2000. MITIDIERO, Daniel. Cooperação no processo civil como prêt-à-porter? Um convite ao diálogo para Lenio Streck. Revista de Processo, São Paulo, v. 194, p. 55-68, abr. 2011. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e a visão cooperativa do processo I. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Carlos%20A%20A%20de%20Oliveira%20(8)%20formatado.pdf >. Acesso em: 02 abr. 2014. PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: Artmed, 2009. A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA PETIÇÃO INICIAL Bernadete Lema Mazzafera7 Adilson Vieira De Araújo8 RESUMO A argumentação jurídica é a materialização do discurso proferido pelos operadores do direito em atividades jurídicas. Existe um interesse crescente no conhecimento das teorias que possam respaldar um processo argumentativo jurídico, visto que argumentos como meios de sustentar ideias são utilizados na prática jurídica onde nada se faz sem explicação e fundamentação. Este estudo teve como objetivo descrever o processo de argumentação jurídica na petição inicial. Este estudo foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica. Foi possível verificar que a petição inicial denominada por Campestrini e Florense (2009, p.1) “documento indispensável à propositura da ação” apresenta argumentos, para que o cidadão reivindique, na justiça, um direito, construído por meio de uma organização racional das idéias, onde há a valorização do diálogo presente no processo, que respeita seu interlocutor e o contexto de suas colocações e se necessário incorpora outros campos do saber. O campo do direito atualmente se dá em termos de gradações, níveis e camadas, para além de uma visão lógica formal de existência de verdades absolutas e de “certo” e “errado”. A transformação do direito ao longo do tempo traz a marca do momento histórico vivido e representa a sociedade. A importância e os estudos da argumentação jurídica nos dias atuais representam e contribuem para a mudança do direito. PALAVRAS-CHAVE: Argumentação. Linguagem jurídica. Petição Inicial. ABSTRACT The legal argument is the embodiment of the speech delivered by the law enforcement officersin legal activivities.There is increasing interest in theories of knowledge that can support an argumentative legal process, since arguments as a mean of sustaining ideas are used in legal practise where nothing is done without explanstion and justification. This study aimed to describe the processo of legal reasoning in the application. This study was conducted though a literature research. It was verified that the aplication is called by Campestrini e Florense (2009, p. 1)“essential document for filing the lawsuit” presentes arguments to claim that citizens, justice, rights, built by means of a rational organization of ideas, where there is appreciation of the current dialogue process that respects the speaker and the contexto of your statements and if necessary incorporate other fields. The field of law today is in terms of grades, levels and layers, in addition to a formal logical view of the existence of absolute thuths and “right” and “wrong”. The transformation of the rght over time bears the mark of the historical moment lived and representes the society. The importance of the studies about legal arguments represent and contibute to changing the law. KEYWORDS: Argumentation. Legal language. Complaint. 7 Graduada em Fonoaudiologia e Direito. Mestre em Fonoaudiologia PUC-SP. Doutora em Linguística USP-SP. Docente da UNIFIL e da Faculdade Arthur Thomas. 8 Graduado em Economia e Direito. Mestre em Direito UEL-PR. Doutor em Processo Civil PUC-SP. Docente da UNIFIL e da Faculdade Arthur Thomas. Advogado. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO. 3 O PROCESSO DE ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA. 3.1 ÂMBITO DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA. 3.2 LÓGICA JURÍDICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA. 3.3 TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO. 3.3.1 A TÓPICA JURÍDICA. 3.3.2 PERELMAN E A NOVA RETÓRICA. 4 A PETIÇÃO INICIAL. 4.1 A LINGUAGEM DA PETIÇÃO INICIAL. 4.2 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM NA PETIÇÃO INICIAL. 4.3 CLASSIFICAÇÃO DA ARGUMENTAÇÃO NA EXORDIAL. 4.4 A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA PETIÇÃO INICIAL. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO A argumentação jurídica é a materialização do discurso proferido pelos operadores do direito em atividades jurídicas. Existe um interesse crescente no conhecimento das teorias que possam respaldar um processo argumentativo jurídico, visto que argumentos como meios de sustentar ideias são utilizados na prática jurídica onde nada se faz sem explicação e fundamentação. Não se formula um pedido a um juiz sem que se explique o porquê deste pedido, caso contrário diz-se que o pedido é desarrazoado, sem motivação e fundamentação. Da mesma forma, nenhum juiz pode proferir uma decisão sem explicar os motivos dela, e para isso constrói um raciocínio argumentativo. 9 A argumentação está presente na petição inicial, “documento indispensável para a propositura da ação”10. Este estudo tem como objetivo descrever o uso da argumentação jurídica na petição inicial. Para responder a questão proposta inicia-se o estudo com fundamentos teóricos da argumentação jurídica, destaca-se a nova retórica de Chaim Perelman. Além disso, são descritos conceitos referentes ao uso da linguagem no Direito e critérios para que se possa desenvolver uma boa argumentação na petição inicial. 2 PROCEDIMENTO METODOLÓGICO Método é o “conjunto das atividades sistemáticas e racionais, que com maior 9 RODRÍGUEZ, V. G. Argumentação Jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.6-7 10 CAMPESTRINI, H.; FLORENSE, R. C. B. Como redigir petição inicial. 2 ed. Ver. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p.1 segurança e economia, permite alcançar o objetivo”.11 Para responder às questões a investigar neste estudo, optou-se por conduzir uma pesquisa bibliográfica. A pesquisa se iniciou pela revisão de literatura, que pode ser compreendida como pesquisa bibliográfica e segundo Marconi e Lakatos12 “compreende oito fases distintas: escolha do tema; elaboração de plano de trabalho; identificação; localização; compilação; fichamento; análise e interpretação e redação”. Após a compilação dos dados obtidos por meio da revisão de literatura foram elaborados os pressupostos teóricos que sustentam, justificam e respondem aos objetivos propostos desenvolvidos ao longo das seções deste estudo. A análise dos dados é qualitativa e o referencial teórico que subsidia a análise é proveniente da argumentação jurídica e do Direito. 3 O PROCESSO DE ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA “Os argumentos consistem em meios pelos quais os indivíduos sustentam as suas ideias no intuito de captar a audiência ou o assentimento do seu interlocutor para persuadi-lo, convencê-lo e interagir com ele”.13 As ideias são sustentadas por meio do discurso proferido em uma determinada situação. Segundo Weston 14 “os argumentos são tentativas de sustentar certos pontos de vista com razões”. A argumentação jurídica é a materialização do discurso proferido pelos operadores do direito em atividades jurídicas e se dá por meio de regras advindas da linguagem. Atienza15 alerta para o fato de que “uma das primeiras distinções que se deve ter em mente é que o direito não se reduz à argumentação, mas, por certo, uma boa argumentação é elemento essencial para o alcance de uma boa prática jurídica ou mesmo para uma boa teoria”. O autor destaca que todos concordam que a prática do Direito consiste em argumentar e que um bom jurista se constrói a partir de sua capacidade de elaborar argumentos, mas ressalta que pouquíssimos juristas leram sobre algo próximo de uma teoria de argumentação 11 MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de Metodologia científica. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.83 12 Ibid, p.44 13 PERELMAN, C. apud OLIVEIRA,E. C. A nova retórica da “regra da justiça ao ad hominem 2007 . 224f.Tese (doutorado em Filosofia) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. .Campinas, S.P. p.193 Disponível em:< http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/FILOSOFIA/Teses/Oliveira_Eduardo Chagas.pdf> acesso 4 jul 2014. 14 WESTON, A. A arte de argumentar. trad. Desidério Murcho. Portugal: Gradiva, 1996.p.26 15 ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006. p. 19 jurídica. 3.1 O ÂMBITO DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Podem-se distinguir três campos de atuação da argumentação jurídica: produção ou estabelecimento de normas jurídicas (que dividem-se em fases pré-legislativa e legislativa e que segundo o autor não são discutidas nas teorias de argumentação); aplicação das normas a solução de casos, exercido por juízes, por órgãos administrativos e por simples particulares e um terceiro campo, o da dogmática jurídica que teria as seguintes funções: “fornecer critérios para a produção do Direito nas diversas instâncias” em que ocorre; oferecer um critério para a aplicação do Direito; ordenar e sistematizar um setor do ordenamento jurídico”16. Para o autor enquanto o órgão aplicador se ocupa de resolver casos concretos, o dogmático do Direito se ocupa de casos abstratos (como exemplos: o limite do direito a vida e a liberdade pessoal). Apesar de se compreender que nem sempre a divisão é taxativa, pois tribunais criam jurisprudências e a decisão passa a ter caráter geral e abstrato e consequentemente passa a valer para os casos futuros.17 A partir do conhecimento do campo de atuação da argumentação jurídica torna-se imprescindível abordar a forma como esta se desenvolve. 3.2 LÓGICA JURÍDICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA A argumentação jurídica vai além da lógica formal, para Bobbio18 seria o somatório da lógica do Direito, que se concentra na análise da estrutura lógica das normas e ordenamento jurídico e na lógica dos juristas, que estuda os diversos raciocínios de argumentação utilizados pelos juristas teóricos e práticos e esses dois campos não se separam de forma taxativa.19 Para uma melhor compreensão da argumentação jurídica perpassa-se por teorias de argumentação que deram origem aos pressupostos teóricos que discutem a argumentação jurídica nos dias atuais. 16 ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006.p.10 17 ATIENZA, op. Cit. 18 1965 apud ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006, p. 21 19 ATIENZA, op.cit., p.20 3.3 TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO “Na filosofia da ciência costuma-se distinguir o contexto de descoberta com o de justificação”. De um lado descobre-se e enuncia-se uma teoria e segundo a opinião geral, “esta fase não é suscetível de análise do tipo lógica”- neste plano mostra-se como se gera e se desenvolve o conhecimento- tarefa do sociólogo e historiador da ciência.20 De outro lado há o procedimento que consiste em justificar ou validar a teoriaconfrontá-las com os fatos para mostrar sua validade. Este último procedimento exige uma análise do tipo lógica e rege-se pelas regras do método científico.21 Desta forma, uma coisa é o procedimento mediante o qual se estabelece uma determinada premissa ou conclusão e outra coisa é o procedimento que consiste em justificar essa premissa ou conclusão. A argumentação jurídica se enquadra nas teorias que pretendem explicar como se argumenta no contexto da justificação das argumentações.22 3.3.1 A TÓPICA JURÍDICA As obras dos anos 50 compartilham entre si a rejeição da lógica formal como instrumento para analisar os raciocínios jurídicos.23 O primeiro autor Viehweg publicou seu trabalho em 1953, a contraposição entre lógica e tópica é um dos debates principais da obra do autor que se assemelham a vários textos publicados em 1951 –inclusive a obra de Edward H.Levi publicada em 1951. Para Levi o processo de raciocínio jurídico se assemelha ao do raciocínio por exemplos – raciocínio de caso a caso “é um processo que se compõe de três passos, caracterizado pela doutrina de precedente”, 24se descobre semelhanças entre os casos, depois se exprime a regra de direito implícita no primeiro e ela é aplicada no segundo. Ao se pensar no Direito como um sistema aberto e não fechado – o conceito deve ser construído à medida que aparecem os casos lembrando que “as palavras mudam para receber o conteúdo que a comunidade lhes confere”. 25 Viehweg caracteriza a tópica por três elementos: o objeto que é uma técnica de pensamentos problematizados; o ponto de vista do instrumento que opera, seria o lugar 20 Ibid, p.20 ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006. p.20 22 Ibid,p. 20 23 ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006, p.49 24 Ibid , p.47 25 Trad Carrió, 1964, p. 132. Ibid., p. 50 21 comum e o ponto de vista da atividade, a busca e exame de premissas ou um modo de pensar que tem ênfase nas premissas. Viehweg sustenta que a jurisprudência na Roma antiga e durante a idade média foi essencialmente uma jurisprudência tópica – se baseava na proposição de um problema para o qual se tratava de encontrar argumentos e não na elaboração de um sistema conceitual. O objetivo principal era uma coleção de regras, de tópicos que se legitimavam quando eram aceitas por homens notáveis, de prestígio. Este estilo de ensino era baseado na discussão de problemas, aduzindo-se argumentos a favor e contra as suas possíveis soluções sem que se criasse um sistema. Viehweg afirma que “a cultura ocidental abandonou a tópica e a substituiu pelo método axiomático dedutivo”- que parte de uma série de princípios e axiomas e para ele isso seria impossível de se aplicar nas jurisprudências.26 De acordo com Viehweg a estrutura da jurisprudência só pode ser determinada a partir do problema- o justo é o aqui e o agora; as partes na jurisprudência se ligam ao problema, e se vinculam ao mesmo.27 Para Atienza a tópica não permite ver o papel importante da lei, da dogmática e do precedente no raciocínio jurídico, para Atienza, Viehweg aborda essas questões de forma generalista.28 3.3.2 PERELMAN E A NOVA RETÓRICA Chaim Perelman (1912-1984), professor universitário, nasceu em Varsóvia em 1912, emigrou para Bruxelas em 1925. Uma de suas obras mais importantes foi escrita com Lucie Olbrechts-Tyeca “O tratado da argumentação: a nova retórica”. Michel Meyer 29 no prefácio da obra descreve “ entre o tudo é permitido” e “a racionalidade lógica é a própria racionalidade”, surgiu a Nova retórica e, de um modo geral toda a obra de Perelman. [...] “A retórica é este espaço de razão, onde a renúncia ao fundamento, tal como a concebeu a tradição, não se identificará forçosamente à desrazão.” O Objetivo principal de Perelman é ampliar a forma de raciocinar nas ciências humanas, no Direito e na Filosofia. O que interessa a ele é a estrutura da argumentação30, a 26 ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006 , p. 51 27 ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006, p.52 28 Ibid., p.53 29 MEYER, M . Prefácio In: PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYECA, L Tratado de argumentação: A Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. XX 30 ATIENZA, M. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006 ,p. 61 sua lógica. Até então a razão cartesiana era o critério principal para desempatar teses opostas Daí que Perelman venha dizer-nos que ao lado da prova para a lógica tradicional, dedutiva ou indutiva, impõe-se considerar também outro tipo de argumentos, os dialéticos ou retóricos.[...] a prova retórica manifesta-se pela força do melhor argumento, que se mostrará mais forte ou mais fraco, mais ou menos pertinente ou mais ou menos convincente, mas que, pela sua natureza, afasta, à partida, qualquer possibilidade de poder ser justificado como correto ou incorreto 31 A argumentação se move no terreno do plausível. Os argumentos retóricos não estabelecem verdades evidentes e provas demonstrativas, mas mostram o caráter razoável de uma opinião ou decisão.32 Para o autor na argumentação pode-se distinguir três elementos: o discurso; o orador e o auditório. A Nova retórica traz uma racionalidade que não evita os debates, propõe-se a analisar os argumentos das decisões. Para Meyer procura não privilegiar tão somente a linguagem, mas aceita o pluralismo presente nos valores morais e nas opiniões.33 Perelman centrou-se na argumentação, baseada no raciocínio sem coação, que não renuncia a razão. 34 Pereleman e Olbrechts- Tyteca 35 ao utilizarem a palavra retórica em detrimento de dialética na proposta assentam-se no fato de que o raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio analítico, trata do verossímil e não de proposições necessárias. Há proposição que a dialética coaduna com opiniões, teses, ideias as quais se adere com uma intensidade variável. Os autores explicam que se afastam da antiga retórica, pois o objeto da mesma era a arte de falar em público de modo persuasivo diante de uma praça pública, com o intuito de obter a adesão do público a tese apresentada. Pereleman e Olbrechts- Tyteca36 destacam que a meta da oratória é a adesão do espírito como em qualquer oratória, mas que em sua obra pretendem ir além da argumentação oral. Os autores em sua obra mantém a ideia de um auditório, mesmo para textos escritos, porque compreendem que todo o discurso dirige-se a um auditório. O “tratado de argumentação” versa sobre recursos discursivos para se obter a adesão dos espíritos. Relatam-se algumas ideias dos autores para que se compreenda o pressuposto teórico 31 SOUSA, A. de A persuasão: estratégias da comunicação influente. Covilhã: Universidade da Beira Interior . 2001. p. 40.Disponível em:< http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-americo-persuasao-0.pdf> acesso em 14 nov 2011 32 Op.cit.,p. 61 33 MEYER, M . Prefácio In: PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYECA, L Tratado de argumentação: A Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. XX 34 PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYECA, L Tratado de argumentação: A Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, passim 35 Ibid, passim 36 PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYECA, L Tratado de argumentação: A Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, passim que destaca a necessidade de adesão dos espíritos a uma tese defendida. Para a formação de uma comunidade efetiva de espíritos, deve haver uma linguagem em comum, uma técnica que possibilite a comunicação. Além disso, deve haver “apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental ”. 37 Segundo os autores “Não basta falar ou escrever, cumpre ainda ser ouvido, ser lido.[...] ouvir alguém é mostrar-se disposto a aceitar-lhe eventualmente o ponto de vista”.38 As pessoas a quem se pretende a adesão são intituladas de auditório que “é o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” e o conhecimento dessas pessoas é condição prévia para qualquer argumentação, para que se possa adaptar o discurso ao auditório. 39 Os autores apresentam uma distinção entre persuadir e convencer. A persuasão seria válida para um auditório particular e o convencimento valeria para qualquer auditório, todos os seres dotados de razão, o auditório universal. Eles admitem que a nuance é estreita e embora próxima da concepção Kantiana distingue-se da mesma onde convicção funda-se na verdade de seu objeto e por isso é válida para qualquer ser racional e a persuasão tem alcance individual. A distinção terminológica se daria, sobretudo pela distinção existente entre a natureza dos diferentes auditórios. Desta forma distinguem três auditórios: o auditório universal constituído por todos os homens adultos e normais; o interlocutor formado, no diálogo, por aquele a quem nos dirigimos e o próprio sujeito quando ele delibera ou figura as razões de seus atos. Uma argumentação só é possível quando supomos certo número de fatos e verdades. Esses fatos e verdades servem de ponto de partida para novos acordos posteriores, mas também pode acontecer de serem contestados e a discussão ser orientada para a justificação desses fatos e verdades. Para que a argumentação prossiga, entretanto, é mister garantir algum lugar-comum (um acordo que sirva de ponto de partida) para que o auditório não vire as costas ao orador. Não se deve olvidar que um auditório é, na maioria das vezes, um auditório particular, específico e contingente, ainda que produza para si a imagem de um auditório universal. O orador precisará, então, fixar algum ponto de acordo com seu interlocutor para que sua argumentação surta algum efeito. 40 “O raciocínio jurídico para Perelman, não é nem uma simples dedução lógica nem uma busca pela solução equitativa, mas é uma síntese na qual devem-se levar em conta o valor da solução e sua conformidade com o direito.” 41 37 Ibid, p.17 Ibid,p.19 39 Ibid, p.22-28 40 ANDRADE, R. H. R. Verdade e Retórica em Chaim Perelman. 2009. 98f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA –BAHIA. p.63 Disponível em:< http://www.ppgf.ufba.br/dissertacoes/Ricardo_Andrade.pdf> Acesso em 5 set 2011 41 CADEMARTORI, L.H. U.; DUARTE, F.C. Hermenêutica e argumentação jurídica neoconstitucional. São 38 A argumentação é, por definição, diálogo de ideias entre dois sujeitos; a demonstração é, pelo contrário, um exercício racional monologado ou impessoal. No primeiro caso, prevalece uma relação entre um Eu e o Outro a quem se tenta influenciar de algum modo; no segundo caso, subsiste a relação de um Eu com as leis da lógica.42 A partir destas colocações apresentam-se a petição inicial e a argumentação na peça jurídica. 4 A PETIÇÃO INICIAL A petição inicial é denominada “documento indispensável à propositura da ação”, para Campestrini e Florense43 a petição inicial é “o documento utilizado pelo cidadão para reivindicar, na justiça, um direito.” Conforme art. 283 do CPC (Código de Processo Civil) deve apresentar os seguintes requisitos44: o juiz ou tribunal a que é dirigida; os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência das partes; o fato e os fundamentos jurídicos do pedido (causa petendi ou causa de pedir); o pedido com suas especificações; o valor da causa; as provas com que o autor pretende demonstrar os fatos alegados; e o requerimento para a citação do réu.45 Segundo Marinoni46 “o autor deve afirmar um fato e apresentar o seu nexo com efeito jurídico. O autor, em outras palavras, narra o fato que constitui o direito por ele afirmado”. No desenvolvimento da petição inicial a argumentação jurídica se dá por meio da linguagem. 4.1 A LINGUAGEM DA PETIÇÃO INICIAL Argumentar é sempre uma ação condizente com a linguagem, quer seja oral ou escrita, seu sentido é defender ou rechaçar uma tese, com justificativas. O exercício do direito pressupõe a existência de uma linguagem técnica e específica, com destaque aos aspectos semânticos das palavras nas peças jurídicas. Apresentam-se alguns conceitos provenientes da Paulo: Atlas, 2009. p.75 42 CEIA, C.. Argumentação. E- dicionário de termos literários. Disponível em:< http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/A/argumentacao.htm> Acesso em 1 fev 2011. 43 CAMPESTRINI, H.; FLORENSE, R. C. B. Como redigir petição inicial. 2 ed. Ver. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.p. 1 44 MARINONI, L.G. A Petição Inicial. In:_________ Processo de Conhecimento. 7 ed. Ver. E atual. 3. Tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 72. 45 Ibid., p. 73 46 Ibid.,p. 74 linguística para que se possa compreender onde se insere a semântica nos estudos da linguagem. A linguística é a ciência da linguagem que estuda os fenômenos linguísticos. O termo linguagem tem um uso mais amplo do que o uso da língua oral para nos comunicarmos, pode se falar em linguagem de animais, música, e danças como linguagens. A linguagem verbal é a matéria do pensamento e o veículo da comunicação social, não existindo sociedade sem linguagem, nem sociedade sem comunicação.47 Peter relata que “como realidade material organizações de sons, palavras, frases - a linguagem é relativamente autônoma; e conclui “como expressão de emoções, ideias, propósitos, ela é orientada pela visão de mundo, pelas injunções da realidade social, histórica e cultural de seu falante”.48 Cabe ressaltar que a linguística detém-se apenas ao estudo científico da linguagem verbal humana.49 A linguística é uma parte dessa ciência geral que estuda a principal modalidade dos sistemas sígnicos, as línguas naturais. Todas as linguagens são sistemas de signos usados para comunicação. Para Saussure a língua é um sistema de signos, um conjunto de unidades que se relacionam de forma organizada dentro de um todo. A linguagem possui uma função social que necessita ser respeitada no uso do código para que possa ser compreendida pelos interlocutores. Para que a linguagem cumpra sua função social é necessário que cada palavra possua um conceito, dentro de cada língua.50 4.2 CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM NA PETIÇÃO INICIAL Os aspectos semânticos da linguagem dizem respeito ao vocabulário utilizado. O direito opera em termos de conceitos fundamentais na aplicação da norma51. As seguintes estratégias devem ser consideradas pelo bom argumentador para facilitar a compreensão dos fatos e pedidos presentes na petição inicial: -“Deve-se buscar conferir as palavras um sentido direto e não figurado, a linguagem 47 Petter (2002) apud MAZZAFERA, B.L. Interferências na aquisição e desenvolvimento da linguagem oral In: VII Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas/UEL, 2008, 2008, Londrina. Anais do Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas. Londrina: EDUEL, 2008. v.01. p.1 – 12 48 Peter (2002, p 11) apud MAZZAFERA, B.L. Interferências na aquisição e desenvolvimento da linguagem oral In: VII Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas/UEL, 2008, 2008, Londrina. Anais do Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas. Londrina: EDUEL, 2008. v.01. p.1 – 12 49 FIORIN, J. L.(org.). Prefácio In:_______(org.) Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2002. 50 FERNADES, E. Teorias de aquisição da linguagem. In :GOLDFELD,M. Org. Fundamentos de Fonoaudiologia: linguagem. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan;1998.p.1-13. 51 ASENSI, F. D. Curso Prático de Argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010,p. 119 no direito pressupõe a literalidade, então se deve evitar a utilização de palavras polissêmicas.”52 Cada palavra deve ter um sentido próprio ou mais facilmente reconhecido pela comunidade de falantes do idioma; - Além disso, “deve-se evitar o uso de analogias e metáforas” que podem não ser compreendidas pelo interlocutor.53 A analogia é uma relação de equivalência entre duas relações Ex: A está para B assim como C está para D e “a metáfora consiste em retirar uma palavra de seu contexto convencional (denotativo) e transportá-la para um novo campo de significação (conotativo), por meio de uma comparação implícita, de uma similaridade existente entre as duas”54 - Preconiza-se nas peças jurídicas o uso da linguagem formal, quando necessário emprega-se o vocabulário jurídico, mas apesar de ser endereçada ao juiz a petição inicial destina-se também à outra parte 55; - A concisão, nas peças jurídicas trabalha com a síntese, o essencial, não se admitindo palavras ou expressões redundantes56; - A linguagem deve ser específica e objetiva por meio de uma exposição lógica e coerente que expresse sentido exato, evitando-se expressões que denotem subjetividade, tais como: opino, acho, salvo melhor juízo57; - A clareza se opõe a ambiguidade e “o Código de Processo Civil, no inciso II do parágrafo único do art. 295, considera inepta a petição inicial, quando da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão”.58 Não basta alegar fatos e descrever normas na peça vestibular, a exposição deve respeitar o vocabulário utilizado pela comunidade linguística em que se insere, no caso, o mundo do direito com normas, procedimentos e vocabulário específico. 4.3 CLASSIFICAÇÃO DA ARGUMENTAÇÃO NA EXORDIAL Destaca-se a seguir, segundo Santos59, uma possibilidade de classificação utilizada 52 ASENSI, F. D. Curso Prático de Argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010 p.119 ASENSI, F. D. Curso Prático de Argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010,p. 119 54 MARQUARDT, E. Metáfora. Campinas: Digital Educacion, 2011. Disponível em: <http://de.neweducation.com.br/admin/modulo.php?idModulo=51.> Acesso em 2 jul 2014 55 CAMPESTRINI, H.; FLORENSE, R. C. B. Como redigir petição inicial. 2 ed. Ver. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. 56 Ibid, p. 12 57 Ibid, .p. 21 58 Ibid,. p. 32 59 SANTOS, A. MARQUES dos. Argumentação jurídica: os melhores e os piores argumentos na retórica forense. Disponível em: <http://albertodossantos.wordpress.com/artigos-juridicos/argumentacao-forense/>. 53 nas argumentações inseridas em peças jurídicas. Quadro 1: Tipos de Argumentos Classificação Definição 1. Argumento de Consiste em sustentar uma autoridade tese com base na adesão ou (ab auctoritatem; testemunho de determinada - a judicato pessoa ou órgão. - ad verecundiam. Exemplos e/ou Críticas Crítica: Da jurisprudência já se disse que é “um travesseiro ilusório e cômodo”, metáfora utilizada pelo Ministro Carlos Maximiliano. Santos (2010) atenta para o fato da utilização não se tornar um “Alvará para não pensar” 2. Argumento a pari Argumento fundado na - argumento a simile analogia, defende que dois ou a pari ratione casos merecem a mesma solução porque são similares. Funda-se no brocardo ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio (princípio da semelhança) - Tem esteio forte na regra constitucional da isonomia (duas situações iguais devem receber tratamentos iguais). 3. Argumento a fortiori Esse argumento se baseia - argumento a minori numa espécie de analogia, ad majus semelhante ao argumento a pari. A diferença está em que não se apontam as duas hipóteses como simplesmente análogas, mas se afirma que a hipótese proposta é uma forma “maior” da hipótese paradigma. Não é, portanto, um argumento puramente lógico, mas sim axiológico (que pondera valores) 4. Argumento a majori Esse argumento parte da ad minus premissa de que a solução ou regra aplicável ao todo é também aplicável às suas partes. Ou, em outras Acesso em: 10 ago 2010. Exemplo:Com freqüência se argumenta a fortiori na análise da credibilidade dos testemunhos, com base na frase bíblica “quem é infiel no pouco, também o é no muito”. P.ex.: estando demonstrado que a testemunha X mentiu sobre a cor do carro acidentado, a fortiori também não merece crédito quanto à culpa na causa do acidente. Exemplo: se X foi condenado criminalmente pelo fato, então também deve responder civilmente pelas consequências do 5. Argumento contrario sensu 6. Argumento absurdum 7. Argumento concessis palavras, o argumento a majori ad minus defende que a regra que impõe ou exige o mais também exige ou impõe o menos. É, também, um argumento axiológico. Para alguns, é subespécie do gênero a fortiori. Não há, mesmo, como não reconhecer a similitude entre este argumento e o a minori ad majus: são como duas faces da mesma moeda, porque usam a mesma forma de raciocínio, partindo de pontos opostos (o menor ou o maior). a Consiste em concluir que há uma oposição nas conseqüências com base numa oposição nas hipóteses fato. Ex: se a posse da cártula pelo devedor faz presumir seu pagamento, a contrário sensu a posse da promissória pelo credor só pode gerar presunção de que não foi paga”. ab Trata-se de demonstrar a Ex: Pratica-se a prova pelo falsidade de uma afirmação ou a invalidade de uma idéia mostrando que seus efeitos, desdobramentos ou aplicações práticas contradizem essa mesma idéia, ou conduzem ao impossível, ao inadmissível ou ao antinômico ex Trata-se de conceder parte de razão à tese contrária, como ponto de partida para sustentar a própria tese. 8. Argumento a posteriori - Também chamado per efectum ou ab effectis. Essa argumentação propõe comprovar a validade de uma tese pelas conseqüências da sua aplicação. Remonta das conseqüências conhecidas aos princípios ou causas eventualmente desconhecidas. absurdo aceitando, provisoriamente – ad argumentandum tantum, como alguns gostam de dizer –, a tese que se quer combater, e desenvolvendo-a até demonstrar seus efeitos absurdos. Ex: “matou, sim, mas em legítima defesa”; “emitiu, sim, o cheque de fls., para como garantia de uma dívida inflada por juros abusivos de agiotagem”. Ex O réu é acusado de ter praticado um estelionato milionário contra o erário público, mas hoje, seis anos depois, é um homem pobre, sem nenhum patrimônio, a ser defendido dativamente: logo, ab effectis se percebe que não pode ter praticado aquele crime, porque se o tivesse feito seria rico. 9. Argumento a priori Também chamado de argumento a causa. É o método oposto ao argumento a posteriori. Parte das causas para os efeitos, baseado na razão, na razoabilidade. É um raciocínio dedutivo, que parte do geral (a regra ou hipótese abstrata) para o particular (o caso concreto, ou os efeitos). P.ex.: X é o mais provável suspeito da morte de Y, porque é o único que tinha motivos para querê-lo morto. Fonte: adaptação do Estudo de Marques Santos (2010, on line) Para Carnielli e Epstein60 um argumento é uma coleção de afirmações, apesar de nem todas as coleções de afirmações serem argumentos. Os autores sugerem que “para termos um argumento, temos de querer ligar as premissas à conclusão”. As premissas devem sustentar ou conduzir à conclusão. Segundo os autores o bom argumento “é aquele que nos dá boas razões para acreditar que a conclusão é verdadeira.”61, ou seja, premissas plausíveis que conduzam ou sustentem as conclusões. Os argumentos podem ser classificados em fortes quando produzem uma conclusão convincente, construída a partir da escolha de premissas verdadeiras, ou argumentos fracos porque construídos por premissas falsas ou difíceis de serem verificadas. Apesar de ser possível compreender a importância da escolha das premissas para o desenvolvimento de um bom argumento, ressalta-se a ideia que a argumentação no direito estende-se para além do desenvolvimento de um raciocínio lógico formal. Nos dizeres de Rudolf Jhering “Explicar uma regra do direito não é provar que ela é verdadeira, mas mostrar que ela é útil para alguma coisa, que se ajusta bem ao propósito a que deveria atender”62. A construção de argumentos jurídicos plausíveis e aceitáveis socialmente, não se reduz a um exercício classificatório e lógico formal, estende-se para além do silogismo e do raciocínio meramente dedutivo. A classificação de um argumento contribui para o entendimento das formas de raciocínio utilizadas por quem os elaborou, pois é um exercício crítico. 4.4 A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA PETIÇÃO INICIAL 60 CARNIELLI, W.A; EPSTEIN, R,L Pensamento crítico: o poder da lógica e da argumentação.2 ed. São Paulo: Rideel, 2010. 61 Ibid, p.53 62 JHERING, R. apud DURKHEIM, E. Ética e a sociologia da moral. Trad Paulo castanheira. São Paulo : Landy. 2003 p. 44 O debate sobre a argumentação no direito traz à tona que apesar de muitos temas serem discutidos no interior do campo do direito, não são exclusivamente questões jurídicas. 1 “O sistema jurídico é autônomo , mas não isolado dos demais sistemas, tais como os da [...] religião, política, economia entre outros. Ele deve se acoplar ou interagir com os demais para, através da troca de informações adequar as normas jurídicas”. 63 A argumentação que se dá no interior das peças jurídicas extrapola os mecanismos jurídicos em função da complexidade dos assuntos e das pessoas envolvidas.64 Podem-se destacar três características citadas por Asensi, presentes nos processos argumentativos relevantes para o direito: servir como critério de razoabilidade; valorizar o diálogo e conduzir a transformação do direito. Assim há a compreensão que na argumentação jurídica não se parte do princípio da existência de verdades absolutas, o embate entre as partes possibilitará a definição do argumento que irá prevalecer diante do caso concreto 65. O argumento que prepondera é o mais razoável, como citado por Perelman, o que recebe maior adesão por parte dos interlocutores. A segunda característica associada à primeira é a valorização do diálogo, por meio das colocações das partes envolvidas no processo, pretende-se o alcance de consensos, mediados pelo juiz- estado. Este diálogo acontece por meio da linguagem. A linguagem é uma característica eminentemente humana e, durante o processo judicial, é oral ou escrita. Para que a linguagem cumpra mais esta função social é necessário que ela possua um conceito entendido pelos falantes do idioma. A Linguística chama signo a essa combinação de conceito e palavra (escrita ou falada), o signo linguístico utiliza um elemento material –sons concretoschamado significante e o elemento da palavra que produz a imagem mental, o conceito, chamado significado. A evolução deste conceito ao longo do tempo pode ser expressa pelo quadro 1, ou seja, as palavras são constituídas de corpo (significante) e alma (significado); são signos sociais, já que usadas por uma comunidade linguística [...] mas devem ser levadas em consideração, no contexto linguístico (frase, expressão ou texto) em que se encontram [...], são também, signos individuais, pois cada indivíduo, baseado no aspecto social (referência comum a todos os usuários da língua), infere suas próprias relações psico-sócio culturais [...] e sua capacidade de compreensão relativa ao estágio de maturação de seu desenvolvimento cognitivo. 66 63 CADEMARTORI, L.H. U.; DUARTE, F.C. Hermenêutica e argumentação jurídica neoconstitucional. São Paulo: Atlas, 2009. p.74 64 ASENSI, F. D. Curso Prático de Argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010 passim. 65 Ibid, p. 6-8 66 FERNADES, E. Teorias de aquisição da linguagem. In :GOLDFELD,M. Org. Fundamentos de Fonoaudiologia: linguagem. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan;1998.p.4 Quadro 2: Evolução do conceito de signo linguístico Autor Saussure Signo Social Significante Vocábulo Peirce Social individual Social individual Vocábulo Vocábulo Vocábulo Vocábulo Social individual Vocábulo Vocábulo Pottier Vygotsky Significado Sentido objetivo imutável Sentido objetivo interpretante Sentido objetivo +contexto Interpretação +contexto Sentido objetivo Mutável de acordo com processos cognitivos Fonte: Fernandes (1998, p.4) O discurso é a linguagem em movimento. O discurso produzido por operadores do direito representa o momento histórico vivido pelos mesmos, é orientado pela visão de mundo. Desta forma, o discurso produzido por falantes de um mesmo idioma, carrega impressões do mundo vivido e do lugar ocupado pelo mesmo, identifica-o, mas não é o mesmo, nem se analisado o discurso da mesma pessoa em momentos e lugares diferentes. Assim como a ciência, o discurso é verdade provisória, válida ao ser proferida diante daqueles envolvidos no discurso, e sua interpretação e aceitação dependem da compreensão de mundo e do domínio da linguagem que perpassa pelo intérprete e isto não pode ser esquecido na busca incessante do diálogo e do consenso dentro do processo. A terceira característica presente na argumentação é a condução da transformação do direito.67 O campo do direito nos dias atuais passou a ser pensado em termos de gradações, níveis e camadas, para além de uma visão lógica formal de existência de verdades absolutas e de “certo” e “errado”. A transformação do direito ao longo do tempo traz a marca do momento histórico vivido e representa a sociedade. A importância e os estudos da argumentação jurídica nos dias atuais representam e contribuem para a mudança do direito ao longo do tempo. Numa peça jurídica o bom argumentador deve compreender que a argumentação jurídica não compreende uma argumentação sobre o direito, as discussões no interior do campo do direito não são exclusivamente jurídicas.68 Em função da temática abordada é essencial que o advogado incorpore outros campos do saber, que consiga articular aspectos sociais, culturais, políticos e jurídicos de forma original e convincente. 67 68 ASENSI, F. D. Curso Prático de Argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p.9 ASENSI, F. D. Curso Prático de Argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, passim. O conhecimento do outro e das circunstâncias é outra abordagem que não pode ser esquecida na argumentação presente na peça jurídica. O argumentador deve conhecer o perfil dos interlocutores que fazem parte do processo. A insensibilidade em relação às pessoas e ao contexto envolvido pode resultar numa argumentação indiscriminada e inconsistente porque ignora o próprio conhecimento da linguagem de seu interlocutor. Além disso, o argumentador, no interior da peça jurídica, deve ser capaz de oferecer uma organização racional de ideias “[...] que diga respeito ao procedimento de interpretação e de exposição do argumento, assim como um conjunto de critérios ou diretrizes para ampliar a adesão por parte dos interlocutores”.69 Os argumentos jurídicos presentes nas peças jurídicas devem se pautar pela organização das ideias que respeita os procedimentos e as partes no litígio, construídos de forma dialógica, contextualizada a cada momento durante o processo. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A petição inicial significa o primeiro movimento feito pelo cidadão que busca a solução do litígio pelo Estado, representado ou assistido por seu advogado, responsável pela argumentação jurídica durante o processo judicial. O argumentador jurídico deve compreender que no direito o argumento que prepondera é o mais razoável, construído por meio de uma organização racional das idéias. Neste argumento há a valorização do diálogo presente no processo, que respeita seu interlocutor e o contexto de suas colocações e se necessário incorpora outros campos do saber. O campo do direito atualmente não se limita a percepção de existência de uma verdade absoluta e estática. A transformação do direito ao longo do tempo traz a marca do momento histórico vivido e representa a sociedade. Os estudos da argumentação jurídica nos dias atuais representam e contribuem para a mudança do direito. Num estado democrático de direito, as decisões jurídicas tem por objetivo buscar a pacificação do conflito que não pode ser resolvido pelos indivíduos e que, portanto, buscam a solução por meio do Estado – mediador. O Estado democrático pressupõe a existência de uma lógica argumentativa na fundamentação de suas decisões e atos judiciais até mesmo pela publicidade e necessária transparência das decisões, submetidas à apreciação da população. Como aborda Golding70 69 Ibid, p. 31 1984 apud ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006, p.22 70 compreende-se que justificar decisões em peças judiciais é uma necessidade numa sociedade pluralista que não aceita mais o consenso porque foi proferido por uma autoridade. Justificar diante de um caso difícil não pode ser mero exercício dedutivo, ou seja, extrair conclusão a partir de premissas normativas ou fáticas. A lógica é necessária, mas insuficiente para o controle dos argumentos jurídicos em muitos casos concretos. Cabe ao argumentador contribuir, a partir da petição inicial, para que as melhores decisões sejam tomadas pelo Estado em benefício do cidadão que representa. REFERÊNCIAS ANDRADE, R. H. R. Verdade e Retórica em Chaim Perelman. 2009. 98f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) Universidade Federal da Bahia –BAHIA Disponível em:< http://www.ppgf.ufba.br/dissertacoes/Ricardo_Andrade.pdf> Acesso em 5 set 2011. ASENSI, F. D. Curso Prático de Argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. ATIENZA, M. As razões do direito:teorias da argumentação jurídica. Trad Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006. CADEMARTORI, L.H.U.; DUARTE, F.C. Hermenêutica e argumentação jurídica neoconstitucional. São Paulo: Atlas, 2009. CAMPESTRINI, H.; FLORENSE, R. C. B. Como redigir petição inicial. 2 ed. Ver. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. CARNIELLI, W.A; EPSTEIN, R,L Pensamento crítico :o poder da lógica e da argumentação.2 ed. São Paulo: Rideel, 2010. CEIA, C. Argumentação. 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Interferências na aquisição e desenvolvimento da linguagem oral In: VII Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas/UEL, 2008, 2008, Londrina. Anais do Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas. Londrina: EDUEL, 2008. v.01. p.1 – 12. MEYER, M. Prefácio In: PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYECA, L Tratado de argumentação: A Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. XX. OLIVEIRA, E. C. A nova retórica da “regra da justiça ao ad hominem. 2007. 224 f. Tese (doutorado em Filosofia) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, S.P. Disponível em:< http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/FILOSOFIA/Teses /Oliveira_EduardoChagas.pdf> acesso 4 jul 2014. PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYECA, L Tratado de argumentação: A Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. RODRÍGUEZ, V. G. Argumentação Jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SANTOS, A. MARQUES dos. 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ABSTRACT The present paper aim to bring out the discussion about social function of ownership. It was written about the social function of property and ownership as fundamental rights guaranteed by the Constitution of 1988 and the prevalence of functionalized possession when confronted with desfunctionalized property were observed. KEY WORDS: Ownership. Property. Fundamental Rights. Social Function. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 FUNÇÃO SOCIAL. 2.1 FUNÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 2.2 FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE COMO DIREITO FUNDAMENTAL. 3 PREVALÊNCIA PROPRIEDADE DA POSSE FUNCIONALIZADA DESFUNCIONALIZADA. 4 EM DETRIMENTO PROTEÇÃO DA DA POSSE FUNCIONALIZADA ALÉM DA USUCAPIÃO. 5 CONCLUSÃO. REFERÊCIAS 1 INTRODUÇÃO A funcionalização dos diversos institutos e instituições de direito decorrem de uma nova perspectiva jurídica da contemporaneidade que entende que os sujeitos de direito devem exercê-los não apenas em benefício próprio, mas de acordo com os interesses sociais e da coletividade. A Constituição Federal de 1988 elenca em seu Art. 5º, XXII que a propriedade 71 Discente do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Docente na Universidade Estadual de Londrina- UEL e no Centro Universitário Filadélfia – UniFil. Mestre em Direito Negocial – UEL. Doutoranda em Estudos da Linguagem - UEL. 72 privada é um direito fundamental e logo em seguida, no inciso XXIII garante que a função social da propriedade também é uma garantia fundamental. Além disso, explicita os contornos da função social da propriedade urbana em seu Art. 182, § 2º e da rural no Art. 186 com vistas ao respeito à dignidade da pessoa humana, à erradicação da miséria e eliminação das desigualdades sociais. A função social da posse, por sua vez, é matéria mais recente no ordenamento jurídico brasileiro e fonte de divergências doutrinárias. A presente presquisa versa acerca a evolução histórica da função social, sobre a função social na Constituição Federal de 1988, sobre a possibilidade de a função social da posse figurar como um direito fundamental implícito no Art. 5º da Constituição Federal de 1988 e sobre a prevalência da posse cumpridora da função social em detrimento da propriedade desfuncionalizada. O presente trabalho encotra relevância quanto possibilidade de proteger a posse mesmo que não tenha sido completado o tempo para adquirí-la por meio da usucapião nos casos em que o litígio decorrer do confronto entre posse funcionalizada e propriedade desfuncionalizada. 2 FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE 2.1 FUNÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição Federal de 1988 adotou um modelo econômico capitalista, tanto o é, que a propriedade privada é um direito fundamental previsto no Art. 5º, XXII e no Art. 170, II. Consta no Art. 5º, XXII da CF/88 que a propriedade é um direito fundamental e o inciso XXIII prevê que a função social da propriedade também é um direito fundamental. Ambos, por força do § 1º do mesmo artigo, garantem que sua aplicação é imediata. Conforme leciona Marmelstein (2009, p. 137) a presença da garantia da propriedade privada é fruto do caráter capitalista acolhido pela Constituição Federal e fundamenta o caráter liberal do vigente sistema constitucional do Brasil. No entanto, a propriedade não tem mais a proteção absoluta e inviolável que tinha em tempos passados. Tal ideia não mais subsiste com o novo objetivo do Estado Democrático de Direito, qual seja o de promover os direitos sociais. Diante disso, Marmelstein (2009, p. 138) assegura que o direito à propriedade privada passou de absoluto, ilimitado e exclusivo para relativo, limitado e condicionado ao comprimento de sua função social. Requer-se que o titular do bem lhe dê destinação conforme os ditames da função socioambiental desejada pelo Estado. Comparato (2003, apud MARMELSTEIN, 2009, p. 140), defende que: Diante do descumprimento, pelo proprietário, do dever fundamental de dar aos bens uma destinação social, incumbe ao Estado, entre outras medidas, promover a sua redistribuição, tendo em vista o objetivo constitucional de erradicação da pobreza e de redução das desigualdades sociais, previstos no art. 3º da Constituição Brasileira. Marmelstein (2009, p. 140) ainda discorre: O direito de propriedade só faz sentido se conjugado com o princípio da função social. Cumprindo a sua função social, o direito de propriedade merece proteção estatal, já que a Constituição o consagra como direito fundamental. Por outro lado, não cumprindo sua função social, esse direito deixa de merecer qualquer proteção do poder público, já que a Constituição exige que o uso da coisa seja condicionado ao bem estar geral. O proprietário obriga-se a dar ao seu bem uma função social, sob pena de ver limitado – ou até suprimido – esse direito. Em outras palavras: a função social está de tal modo ligado ao direito de propriedade, que passa a ser um pressuposto deste direito. Sem função social, não mais existe propriedade legalmente protegida. Para evitar e coibir que a função social não seja cumprida, a Constituição Federal prevê a desapropriação do imóvel e permite, até mesmo, que a indenização seja feita com títulos da dívida pública. O Art. 182, § 2º da CF, o qual trata da política de desenvolvimento urbano, por exemplo, dispõe que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. O § 4º, por sua vez, prevê que se o imóvel não é edificado, é subutilizado ou não utilizado o Poder Público poderá promover a cobrança de impostos progressivo no tempo e efetivar a desapropriação com pagamentos mediante títulos da dívida pública, com prazo de resgate em até dez anos. Além disso, consta no Art. 184 da CF/88, a possibilidade de desapropriação de imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, para fins de reforma agrária, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação de valor, resgatáveis em até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. As benfeitorias necessárias, no entanto, serão indenizadas em dinheiro, conforme o Art. 182, § 1º. Ambos os casos de desapropriação são chamadas de desapropriação-sanção pelo fato de serem resgatáveis depois de um considerável período de tempo. Gondinho (2002, p. 414), defende que “Trabalhou mal o constituinte de 1988 ao estabelecer que é insuscetível de desapropriação a propriedade produtiva” conforme Art. 185 da CF. Para ele a propriedade deve cumprir todos os requisitos e não apenas o atinente à produtividade da terra. Uma fazenda produtiva que não respeita os direitos trabalhistas é passível de desapropriação para fins de reforma agrária, por exemplo, conforme o Art. 184 da CF/88. O custo desta produção, para o autor, é ‘socialmente indesejável.’ Gondinho (2002, p. 415) entende que uma propriedade produtiva que mantém suas atividades com base em trabalho infantil ou com devastação do meio ambiente deve sofrer, sim, desapropriação sanção, independentemente de ser produtiva ou não. Uma situação mais onerosa ao proprietário é quando ocorre o confisco da propriedade. É a chamada expropriação do imóvel, na qual não é efetuado nenhum tipo de indenização ao proprietário e é previsto em apenas um caso na CF. Trata-se das situações em que há cultura de psicotrópicos ilegais no imóvel. O Art. 243 da CF prevê que as plantas, os valores econômicos obtidos com a prática ilegal e toda a propriedade sejam expropriados, sem direito à indenização. O Art. 1.276, § 2º do Código Civil, por sua vez, estabelece uma presunção absoluta de desinteresse pelo bem e conseqüente abandono: Art. 1.276 O imóvel que o proprietário abandonar, com intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições. [...] §2º Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais. A propriedade tem como finalidade servir à moradia e ao desenvolvimento do trabalho para prover o sustento do núcleo familiar. Não pode servir para acúmulo de capital, especulação imobiliária e enriquecimento de uns em detrimento do empobrecimento de tantos outros. 2.2 FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE COMO DIREITO FUNDAMENTAL O termo função social da propriedade, de acordo com os ensinamentos de Gondinho (2001, p. 412) foi utilizado pela primeira vez na Constituição de 1967 e Emenda Constitucional de 1969. No entanto, não faziam parte das garantias fundamentais, apenas fundamentaram o princípio da ordem econômica e social. A Constituição Federal de 1988, conforme Gondinho (2001, p. 412), por sua vez, além de incluir a função social da propriedade privada como fundamentadora da ordem econômica e social, também a incluiu no rol dos direitos e garantias fundamentais. A atual Constituição Federal garante o direito à propriedade desde que esta atenda à função social desejada pelo Estado. O Art. 186 da Constituição Federal, ensina Gondinho (2001, p. 412), disciplina que a função social da propriedade rural é verificada mediante o aproveitamento racional e adequado, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Apesar de não constar no Art. 5º da Constituição Federal nenhuma menção à função social da posse, por meio da relação que se faz com a função social da propriedade é possível também entender que a função social da posse também configura um direito fundamental. A inter-relação entre posse e propriedade, sem descuido da autonomia entre os dois institutos, faz com que, por meio de uma interpretação constitucional, entenda-se que a função social da posse também é um direito fundamental. A interpretação da Constituição Federal deve ser sistemática e não dogmática. Sua interpretação deve ser feita nos termos constitucionais e objetivando atingir sua finalidade. Não haveria sentido em pensar na função social da propriedade sem pensar na função social da posse. O Texto Constitucional não deve ser entendido como exaustivo, uma vez que não consegue abarcar todos os temas que devem ser objeto de proteção constitucional e é por isso que o Art. 5º, § 2º da Constituição Federal dispõe que os direitos e garantias previstos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja parte. A Constituição Federal Brasileira, mesmo com tantos dispositivos, não possibilitou ao constituinte originário abranger explicitamente todos os direitos que são necessários para se atinja seu objetivo. A efetividade dos direitos fundamentais já é deficiente com a garantia de todos os que são explícitos, seria ainda mais se não fosse permitido ao criador do direito interpretações conforme a Constituição Federal. A interpretação constitucional não deve ser feita título por título, capítulo por capítulo. Deve ser interpretada como um todo, tendo em vista seus objetivos finais como o desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e bem estar de todos. Os valores existenciais têm mais valor do que o individualismo das codificações passadas. Segundo Rosenvald (2008, p. 38): Atualmente, a ciência jurídica volta o olhar para a perspectiva da finalidade dos modelos jurídicos. Não há mais um interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum. A função social da posse, portanto, é um direito fundamental previsto implicitamente pela Constituição Federal a partir do momento em que prevê a funcionalização da propriedade. A função social da posse seria uma concretização da função social da propriedade, tendo em vista que abrangeria todo o campo dos direitos patrimoniais reais. Para Aronne (2003, p. 244), “[...] a posse somente ganha trânsito jurídico, quando se apresenta funcionalizada, quando é instrumento de funcionalização da propriedade”. Se a função social da posse não fosse reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro, a finalidade de evitar que a terra fique improdutiva não conseguiria se efetivar, uma vez que a sanção iria apenas até o proprietário e não atingiria o possuidor. 3 PREVALÊNCIA DA POSSE FUNCIONALIZADA SOBRE A PROPRIEDADE DESFUNCIONALIZADA A problemática do presente trabalho, no entanto, é verificar o confronto entre a posse autônoma funcionalizada e a propriedade desfuncionalizada. É neste ponto em que reside o maior embate da matéria ora suscitada. Segundo Torres (2008, p. 346) a inércia do proprietário em dar adequado destino ao seu bem propiciou conjuntura que permitisse que o possuidor ocupasse o imóvel e lhe desse uma função social e econômica. Torres (2008, p.303) afirma que, tanto a posse quanto a propriedade podem coexistir isoladamente, mas que a propriedade sem a posse é um recipiente oco, vazio não cumpridor de sua função social e é por isso que a função social é muito mais perceptível na posse do que na propriedade. Zavascki (2002, apud, TORRES, 2008, p. 304) explica que: A função social da propriedade realiza-se ou não mediante atos concretos, de parte de quem efetivamente tem a disponibilidade física dos bens, ou seja, do possuidor, assim considerado no mais amplo sentido, seja ele titular do direito de propriedade ou não, seja ele detentor ou não de título jurídico a justificar sua posse. A função social tanto da posse quanto da propriedade está relacionada diretamente à utilização do bem, à atividade humana ali instaurada por meio de moradia e produção de bens e não compactua com a inércia do titular; instaura ambiente fértil para que o possuidor, sem fins especulativos, seja protegido. Até mesmo em matéria possessória há diferença entre posse simples ou comum e posse qualificada ou funcionalizada. Esta última se difere da primeira pelo fato de ser objeto de atividade social, com relevância econômica manifestada por meio de moradia, desenvolvimento comercial e industrial, produção bens entre outros. Infere-se que em um confronto entre posse simples e posse qualificada, a última prevalecerá em detrimento da primeira. Neste sentido Reale (1986, apud TORRES, 2008, p. 309): Bifurcando a posse, não aceitando a posse unificada do Direito Romano, que ainda está no código italiano e ainda está na codificação do dos demais países. Fazemos uma distinção destes dois tipos de posse: posse como simples exteriorização da propriedade, com mero fato de detenção, e a posse como uma expressão de trabalho, a posse acompanhada por um esforço criador do homem. Para tanto, o Código Civil (2002) reduziu os prazos para a usucapião quando demonstrado que tem fins de moradia e desenvolvimento de atividade econômica com relevância social verificada pelo juiz A posse, tanto do mero possuidor quando do proprietário é o principal instrumento para atender aos valores do ordenamento jurídico. De acordo com Torres (2008, p. 348), “[...] a posse com função social permite o atendimento aos princípios fundantes do sistema [...] sendo possível erradicar a pobreza e eliminar as desigualdades sociais.” A posse qualificada com a utilização do bem por meio da moradia e desenvolvimento de trabalho deve ser protegida contra os interesses dos proprietários que não atendem a função social e reivindicam seus bens alegando que tem titularidade sobre eles. Torres (2008, p. 349) defende, ainda, que o proprietário que não exerce função social e expulsa ‘manu militare’ o possuidor qualificado pratica crime de esbulho e ilícito penal de exercício arbitrário das próprias razões. A ausência de proteção ao proprietário que não funcionaliza seu bem é justificada pelo fato de que o princípio da função social não é externo à propriedade, mas sim, interno. É por esse motivo que é tão importante destacar a autonomia da posse como instituto jurídico. Será autônoma à medida que não é necessário recorrer a qualquer outro instituto para verificar seu nascimento e sua proteção será dada com fundamento nela mesma. Do contrário, segundo Torres, (2008, p. 311), se fosse considerada como um apêndice da propriedade, por exemplo, sempre que existisse um conflito entre as duas prevaleceria a propriedade uma vez que é fundamento gerador da posse. Neste sentido foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial Nº 75.659 – SP, de 2005 interposto após decisão da Apelação Cível nº212.726-1-8, famoso caso da Favela Pullman, que assim decidiu: EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO. CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ. I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c⁄c 77 e 78, da mesma lei substantiva. II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ. III. Recurso especial não conhecido. (4ª Turma, REsp 75659/SP, Rel. Min. Aldair Passarinho Junior, DJU 21/06/2005). A importância econômica e social da posse, para Torres (2008, p. 311) não pode ser tida como “[...] uma sentinela avançada da propriedade como sugere Ihering ou que sirva de muleta para um instituto que goza de adequada proteção do sistema” e é por isso que merece proteção definitiva por si mesma. Aronne (2003, p. 246)afirma que “[...] trata-se de existencializar uma disciplina tradicionalmente patrimonialista, afetando à realização do Estado Social e Democrático de Direito.” Adequada também foi a observação feita por Carbonier (1969, apud Torres, 2008, 352): Há, sobretudo, uma decadência do direito individual de propriedade frente ao interesse geral em proveito dos utilizadores; também decadência do proprietário que não mais é aquele senhor absoluto e inviolável da Declaração de 1789 e do C.C. Pensar que a posse funcionalizada é mais importante ao Direito do que a propriedade que não atende sua função social desestrutura a ideia absolutista que se tinha de propriedade e coloca em destaque outros valores e objetivos dispostos na Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana, os quais são mais relevantes à sociedade do que uma propriedade privada desfuncionalizada. 4 PROTEÇÃO DA POSSE FUNCIONALIZADA ALÉM DA USUCAPIÃO A tutela possessória, assim como a posse em si, sofreu modificação com o passar do tempo. A antiga subordinação da posse à propriedade fez com que as teorias possessórias tradicionais, de Savigny e Ihering, entendessem a proteção da posse como uma proteção da propriedade; com um objetivo final exterior a ela. Para Savigny, de acordo com os pensamentos de Rosenvald (2008, p. 108) sendo a posse um fato, ela se converte em direito para a proteção da paz e da ordem pública numa possível situação de violência do esbulhador. Já para Ihering, nas palavras de Rosenvald (2008, p. 108): [...] a defesa da posse foi instituída com o fim de aliviar a defesa dos poderes dominiais, pois o possuidor é um proprietário presuntivo e pode repelir de modo pronto qualquer agressão, bastando que esteja a exercer um dos poderes inerentes à propriedade. A teoria objetiva, portanto, entende que a posse estaria sempre a serviço da propriedade, seria uma das formas de defesa dela. Seria então “a porta que conduz à propriedade, tornando-se sua sentinela avançada.” (ROSENVALD, 2008, p. 108). No entanto, com o amadurecimento do Direito, amadureceu também o entendimento jurídico sobre a proteção possessória. A nova concepção de autonomia da posse, sem subordinação à propriedade e conjugada com sua relevância enquanto situação de fato capaz de satisfazer a necessidade fundamental de direito à moradia e trabalho ensejou transformação da tutela jurídica. O novo paradigma para a proteção possessória entende que, aquele que usa os bens e lhe atribui destinação econômica, por meio da moradia e do trabalho, tem direito à proteção. Neste sentido, “[...] a proteção a esta situação se efetivará, seja ou não o possuidor o portador do título ou mesmo que se coloque em situação de oposição ao proprietário”. (ROSENVALD, 2008, p. 109) A situação fática consolidada pela posse requer seja concedido ao possuidor o direito de defender sua posse contra terceiros, inclusive contra o proprietário. Na lógica dos ensinamento de Torres (2010, p. 320) “[...] o conflito possessório é o local adequado para a constatação do cumprimento da função social, seja na propriedade, seja na posse.” A tutela da posse é feita por meio do juízo possessório, o qual está embasado no fato jurídico que a origina, desvinculado da existência de título que comprove qualquer relação de direito real ou obrigacional. Neste sentido, na lição de Mota e Torres (2009, p. 57) “[...] o núcleo e essência do direito à tutela interdital repousa no ‘jus possessionis’, com abstração de qualquer outra circunstância que não seja a própria situação fática do possuidor em relação a coisa.” Segundo Rosenvald (2008, p. 110) o juízo possessório, também chamado ‘jus possessionis’, tutela uma situação de fato que foi hostilizada por uma ofensa concreta, sem que seja necessário discutir a existência do fenômeno jurídico propriedade. Rosenvald (2008, p. 111) explica que na ação possessória não é permitida a discussão sobre a propriedade, uma vez que o objeto do pedido e da causa de pedir é meramente a posse. Isso porque “os planos jurídicos de nascimento, estrutura e finalidade da posse e da propriedade são diversos, merecem, portanto, soluções diversas.” (ROSENVALD, 2008, p. 111) Tal situação nem sempre foi unanimidade jurídica. O Art. 923 do Código de Processo Civil determina que “[...] na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar a ação de reconhecimento de domínio”. O tema foi polêmico e ensejou longa discussão acerca do assunto. Rosenvald (2008, p. 112) explica que para alguns juristas a norma citada eliminou do sistema jurídico a possibilidade de alegar exceção de propriedade em qualquer modalidade de ação possessória. Outros, por interpretação literal da lei, entendiam que o dispositivo aboliu tal possibilidade apenas quando a matéria da ação possessória era disputada com base em título de propriedade, ou seja, se na ação possessória não discutia propriedade era possível que fosse alegada a exceção de propriedade. O segundo entendimento exposto fragiliza a tutela da posse. Proporcionar ao possuidor o direito à tutela possessória e ao mesmo tempo permitir que a mesma seja combatida com base na apresentação de um título seria o mesmo que não aceitar a tutela da posse. Aceitar a apresentação da titularidade em juízo em matéria de ação possessória é o mesmo que entender que a posse sem título não merece tutela. Neste sentido, Theodoro Júnior (1997, p. 128, apud ROSENVALD, 2008, p. 112): Inutilizada estaria a tutela da posse se possível fosse ao proprietário esbulhador responder ao possuidor esbulhado com a ação petitória. O máximo que conseguiria o possuidor seria a medida liminar do interdito, pois, propondo o proprietário em seguida, reivindicatória, os dois feitos seriam reunidos por conexão e o julgamento da lide forçosamente seria em favor do proprietário pela óbvia prevalência do domínio sobre a posse. No entanto, tal discussão foi encerrada com a redação do Art. 1210, § 2º do Código Civil, a qual dispõe que “[...] não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.”. Explica Rosenvad (2008, p. 112) que “hoje, não se pode mais discutir propriedade no plano possessório, havendo a revogação do Art. 923 do Código de Processo Civil, considerando-se a posição doutrinária e jurisprudencial da interpretação literal e restritiva da norma processual.” O entendimento defendido pelo doutrinador citado acima demonstra preocupação com a efetivação da função social da posse. Permitir que o proprietário defenda seu bem das mão do possuidor com a demonstração de título seria o mesmo que dar ao direito de propriedade o antigo caráter absoluto e abusivo, dado em épocas passadas. O réu da ação possessória deve demonstrar que tem a posse do bem e não a mera propriedade, uma vez que a matéria versada na demanda é a posse. Ensina Rosenvald (2008, p. 113) que, quando do julgamento procedente da demanda possessória, os litigantes voltarão à situação anterior à agressão, na qual o autor terá sua posse restituída e far-se-á coisa julgada material e formal no âmbito possessório, mas não no petitório. Caberá ao réu vencido ajuizar ação petitória para reivindicar o que pensa ser seu de direito. Se vencido o réu em ação possessória, poderá depois do trânsito em julgado, ingressar com ação petitória a fim de reivindicar seus direitos de proprietário. Mas Rosenvald (2008, p. 114) defende que o juízo possessório não pode ser entendido pelo intérprete do direito como um mero juízo cautelar do juízo petitório. O efeito da coisa julgada material e formal deve ser tido como definitivo, como meio a proteger a ingerência socioeconômica do possuidor do bem. O que se deve entender, com a nova hermenêutica da relação posse-propriedade, é que, como já anteriormente explanado, a posse com função social prevalece em relação à propriedade desfuncionalizada. Neste diapasão Rosenvald (2008, p. 115): O êxito do possuidor na ação possessória só será suplantado pela ação petitória quando nesta oportunidade exiba o titular a função social da propriedade. Caso isso não ocorra, a função social concedida à posse superará no plano valorativo o direito de propriedade. Para que em sede petitória, a propriedade prevaleça em detrimento da posse, é necessário que o titular do bem demonstre que a funcionaliza. Apenas assim, a ação petitória deve prevalecer à possessória. No entanto, se for comprovado, em sede petitória, a qualificação da posse e a propriedade restar desqualificada, permanecerá a decisão do juízo possessório em favor do possuidor. Apesar de a posse ser anterior à propriedade na evolução histórica dos dois institutos, o ordenamento jurídico sempre teve a propriedade como digna de proteção categórica em detrimento da posse. Segundo Torres (2008, p. 354) a legislação infraconstitucional sempre conferiu à propriedade proteção definitiva e à posse, proteção meramente provisória, isso porque, mesmo sem comprovação da atividade exercida no bem, ao possuidor, sempre era exigido que cedesse ao direito de utilização da coisa se fosse comprovada a titularidade pelo proprietário. A proteção da posse só era determinante quando se demonstrasse que o prazo para usucapião havia sido atingido. Para Torres (2008, p. 355) tal situação já não mais configura posse, mas sim, transformação jurídica em propriedade adquirida pelo exercício longo e incontestado da posse. O autor explica (2008, p. 358) que a necessidade de transformação da posse em propriedade é que a titularidade confere ao sujeito maior penetração no meio social e econômico e lhe confere a satisfação de “‘ter’ a terra necessária para a sua moradia ou cultivo e de ostentar a condição social de proprietário.” Streck (2003, p. 295, apud TORRES, 2008, p. 361) leciona que o novo Código Civil não “representou um acontecer da Constituição como se poderia esperar. Em muitos aspectos, o Código Civil provoca retrocesso, com nítida violação da cláusula constitucional da proibição de retrocesso social, implícita na Constituição Federal.” A falta de condições financeiras da população de baixa renda em celebrar contratos de compra e venda para a aquisição de imóveis é a principal causa de ocupações social de áreas vazias, seja em solos urbanos ou rurais. A busca pelo teto para adquirir moradia acaba sendo resolvida com o encontro de um terreno desocupado, na periferia da cidade, região indesejada e que tem a finalidade de especulação imobiliária. Falcão (1984, p. 95, apud TORRES, 2008, p. 391) ressalta: Motivado pela carência econômica e imbuído pela necessidade, lança mão do recurso disponível – a ocupação de glebas ociosas, justificando a ocupação nas circunstâncias de que ‘sobre o direito de usar e dispor, segundo a livre vontade do proprietário, deve prevalecer o direito de moradia de todos. A concentração de terras no Brasil tem origem na época colonial, com a má distribuição das grandes extensões de terras, a uma pequena minoria, mediante concessões e outorgas, decorrendo daí, o latifúndio. Segundo Sodré (s/d, p. 169, apud TORRES, 2008, p. 364): [...] no direito de propriedade há um elemento de direito individual e outro de direito social, resultando da combinação de ambos uma distinção entre o suficiente e o superabundante dos bens apropriados. O direito de se apropriar de uma quantidade superabundante de bens, ou seja, de se apropriar de bens desnecessários aos anseios de sua condição social, só é justificável quando atendida a função social, justamente para que não seja usurpado o direito a uma vida digna de outra pessoa. O ‘ter’ em abundância só se justifica se cumprir sua função social. Neste sentido, Becker (1997, p. 59, apud TORRES, 2008, p. 367): Vale dizer: se, com o que temos no art. 186, não é possível definir com clareza como e qual a propriedade está cumprindo efetivamente sua função social, podemos ao menos dizer quando uma propriedade não está cumprindo: quando estiver agredindo o meio ambiente, quando nela há violação às relações de trabalho (o problema “dos bóias-frias” e do trabalho escravo de adultos e crianças) e quando o imóvel estiver visivelmente abandonado (não sob o pretexto de “preservação de floresta”, como se costuma fazer nos latifúndios de hoje, inclusive sob proteção oficial). Para Torres (2008, p. 356), as reduções dos prazos para a usucapião do Código Civil já demonstram que há certo reconhecimento do legislador em proteger a posse qualificada pela função social, mas esse não pode ser o único meio. Continua Torres (2008, p. 393): [...] é no período que vai de sua ocupação até o tempo que faz jus à usucapião que a posse funcionalizada deve ser protegida de forma diferenciada, exatamente em razão da função socioeconômica que desempenha. É neste sentido que Torres (2008, p. 396) sustenta que “é tormentosa a realidade do desapossamento de ocupantes que buscam suprir necessidade, por falta de melhor opção.” A posse funcionalizada, portanto, não deveria ser protegida apenas quando se completa o prazo previsto no Código Civil para a usucapião, mas durante todo o período em que o bem foi destinado à moradia e trabalho dos possuidores. Segundo Torres (2008, p. 387) para que isso ocorra é necessário que haja mudança na interpretação do Código Civil, a qual deve ser feita conforme a Constituição Federal e afastada dos métodos convencionais. Explica (2008, p. 422) que a posse funcionalizada “À exceção de direito material que efetua o encobrimento do direito de propriedade sem aniquilá-lo.” Disso infere-se que, em ações reivindicatórias ou de manutenção de posse, a interposição de exceção não elimina a pretensão do autor e nem a torna ineficaz, mas tão somente a esconde. Ainda, “A existência de posse autônoma com função social impede o acolhimento de medidas liminares ou antecipatórias em ação cuja pretensão do titular seja reaver ou manter-se na coisa.” (TORRES, 2008, p. 437) Em casos práticos em que a posse cumpre sua função social, a propriedade por sua vez encontra-se esmaecida. Enquanto o prazo para a usucapião não for atingido, o que deve ser protegida é a posse e não a propriedade desfuncionalizada. Mas ressalte-se que a proteção da posse, neste caso, subsiste apenas enquanto perdurar a função social. Se verificado que não mais está qualificada, o titular do direito de propriedade pode ter a coisa retomada. Torres (2008, p. 428) acolhe o posicionamento de que “Ficaria o direito de propriedade, em tais circunstâncias como se estivesse adormecido, amortecido por uma situação eventual que pode a qualquer momento reaparecer [..]” e “se tal posse, em tais circunstâncias perdurar até o tempo hábil para a usucapião, o titular que não observou com o seu dever, inerente a titularidade do direito que formalmente tem, o perderá.” A posse não é qualificada, por exemplo, quando o possuidor deixa a terra nua, sem plantação ou criação de animais e também ali não reside. Infere-se que sua posse tem mera finalidade de especulação imobiliária. Apenas espera-se o prazo para conversão em usucapião para efetuar futura alienação. Nota-se que a ausência da função social tanto na posse quanto na propriedade enseja a reivindicação do imóvel, por não merecem proteção especial do sistema. 5 CONCLUSÃO Tendo em vista que o Texto Constitucional não é exaustivo, ao se proceder com uma interpretação sistemática da Constituição Federal de 1988, tem-se que função social da posse também figura como um direito fundamental. Como dito, não haveria sentido em pensar na função social da propriedade sem pensar na função social da posse, uma vez que esta será a concretização daquela. Neste sentido é que se pode falar em prevalência da posse funcionalizada em detrimento da propriedade desfuncionalizada. Tanto a posse quanto a propriedade devem ter destinação de moradia, trabalho, atividade econômica, desenvolvimento comercial ou industrial. E, diante de um conflito entre possuidor e proprietário o que deve prevalecer não é a apresentação de titularidade ou não, mas sim, a demonstração de exercício da função social do bem. Isso quer dizer que se o proprietário não exerce no bem o que lhe é de dever e o possuidor comprova que ali desempenha seu trabalho e moradia, deve prevalecer a posse e não a propriedade. Aquele que atribui destinação econômica ao bem tem direito à proteção possessória. A proteção da posse funcionalizada, por sua vez, não deve ser protegida apenas quando demonstrado o prazo para a usucapião, mas durante todo o período em que o bem foi destinado à moradia e trabalho dos possuidores. Mas ressalte-se que a proteção da posse será feita enquanto perdurar o exercício da função social. Se esta cessar, o proprietário tem o direito de reaver o bem. A proteção tanto da posse quanto da propriedade deve ser feita apenas enquanto perdurarem sua funcionalização. Quanto esta cessa, também cessa a proteção. REFERÊNCIAS ARRONE, Ricardo. Titularidade e apropriação no novo Código Civil brasileiro: breve ensaio sobre a posse e sua natureza. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. [s.n]. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2003. p. 215-249. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 75.659/SP. Quarta Turma. Relator Ministro Aldir Passarinho Junior. 21 de junho de 2005. GONDINHO, André Osorio. Função social da propriedade. In:TEPEDINO, Gustavo (Org.). Problemas de direito constitucional. [s.n]. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. MARMELSTEIN, George. Curso de direito fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano de. Direitos reais. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. TORRES, Marcos Alcino. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. O BATER DE ASAS DE UMA BORBOLETA E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. O CARÁTER SISTÊMICO DO ATO ADMINISTRATIVO Celso Zamoner73 RESUMO O presente ensaio acalenta o propósito de arrancar a Ciência Jurídica de seu insulamento, estabelecendo uma área de permeabilidade e interlocução com a Teoria Geral de Sistemas. Empreendeu-se análise desse singular olhar científico que valoriza a interdependência entre as partes, no âmbito dos atos administrativos, buscando extrair o seu caráter sistêmico. PALAVRAS-CHAVE: Direito Administrativo. Ato administrativo. Teoria Geral de Sistemas. Efeito Borboleta. Caráter sistêmico do ato administrativo. Princípio constitucional da eficiência. ABSTRACT This paper has the purpose of Juridical Science boot your insulation, establishing an area of permeability and dialogue with the General Systems Theory. Was undertaken scientific analysis of this unique look that enhances the interdependence between the parties, under the administrative acts, trying to extract its systemic character. KEYWORDS: Administrative Law. Administrative act. General Systems Theory. Butterfly Effect. Systemic nature of the administrative act. Constitutional principle of efficiency. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 ATO ADMINISTRATIVO E O PARADIGMA CARTESIANO. 3 VISÃO SISTÊMICA DA CIÊNCIA: ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR DOS FENÔMENOS. 4 CONCLUSÃO. 1 INTRODUÇÃO O Direito constitui relevante saber científico cujas raízes mergulham nas profundezas das ciências humanas. A evolução da Ciência Jurídica, inquestionavelmente, caminha pari passu com a odisseia civilizatória da Humanidade. Conquanto as pedras que constituem o inacabado edifício do Direito sejam talhadas com instrumentos eminentemente culturais, subjetivos e abstratos, não há como negar que as normas jurídicas são produzidas com o 73 Procurador do Município de Londrina. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Especialista em Psicanálise pela Faculdade Pitágoras de Londrina. Bacharel em Direito pela UEL. Professor de Graduação em Direito no Centro Universitário Filadélfia – UNIFIL de Londrina. propósito de repercutirem no mundo fenomênico. Sob essa perspectiva, somos autorizados a concluir que as modificações operadas pelas normas jurídicas na dimensão da realidade, produzem consequências que exorbitam o campo abstrato que permeia o Direito, irradiandose para outras províncias científicas. Nesse sentido, observa-se que o Direito timidamente se relaciona com outros ramos das ciências humanas e remotamente com as ciências naturais e exatas. Essa interlocução interdisciplinar lacunosa, a toda evidência, compromete os processos de elaboração e aplicabilidade das normas jurídicas, na medida em que o legislador alienado potencializa o risco de produzir regras desprovidas de eficácia social ou, o que é mais grave, introduzir no ordenamento jurídico normas refratárias aos interesses legítimos da coletividade. Acresça-se que o efeito colateral oriundo desse estado de alheamento do Direito não se restringe à dimensão da gênese de normas, espraiando-se para o campo exegético e operativo. Nesse sentido, assinale-se que o intérprete da norma, caso padeça de autismo interdisciplinar, em que pese formalmente escudar-se no Direito, poderá promover leituras exegéticas destoantes ou deformantes da realidade, acarretando as chamadas aberrações jurídicas. Por sua vez, no que diz respeito às repercussões concretas da norma, consubstanciadas em atos, medidas e decisões lastreadas exclusivamente no formalismo jurídico, igualmente produzirão, não raras vezes, resultados, a médio e longo prazo, desastrosos, caso ignorem a complexidade que permeia o Universo. Considerando-se a vastidão dos domínios sob o jugo do Direito, que abrange desde os direitos individuais, estendendo-se até os confins dos direitos transgeracionais, se propõe no presente ensaio o enfrentamento da problemática do insulamento da Ciência Jurídica, frente às demais disciplinas cientificas, sob a ótica da Administração Pública e da função estatal que lhe é peculiar. Delimitado o campo de nossas reflexões, focaremos na sequência a partícula elementar da função administrativa, que corresponde ao ato administrativo. 2 ATO ADMINISTRATIVO E O PARADIGMA CARTESIANO Conceitualmente, o ato administrativo constitui espécie de ato jurídico, produzido no exercício da função administrativa e, por essa razão mesma, submetido ao regime jurídico de direito público. O Direito Administrativo contemporâneo, inspirado nos princípios democrático e republicano, emprestou especial relevo ao aspecto cinético do ato administrativo, corporificado na procedimentalização da função administrativa, objeto de abordagem do Direito Processual Administrativo. Sob esse prisma, o ato administrativo é resgatado da solidão e inserido em um conjunto, que constitui precisamente o processo administrativo. Com efeito, o processo administrativo se qualifica como uma sucessão de atos, ordenados lógica e cronologicamente, predeterminados a repercutir na esfera jurídicoadministrativa, sob a forma de atos decisórios e medidas administrativas. Indubitavelmente, o viés procedimental da função administrativa contribuiu sobremaneira para otimizar o controle de legalidade e legitimidade dos atos e medidas emanados da Administração Pública. Conquanto esse reflexo democratizante constitua justo motivo para júbilo, é forçoso alertar, todavia, que não se revela suficiente para assegurar a plena efetivação do interesse coletivo, mormente quando se tratar de atos e medidas governamentais cujos elementos guardem complexidade e reverberem ao longo do tempo e do espaço. No Ocidente prevalece na abordagem científica uma visão fragmentária e mecanicista do Universo e dos próprios seres humanos. Essa leitura assistemática e pulverizada do mundo e das relações humanas na sua complexidade, no qual a parte se sobrepõe ao todo, produz o efeito colateral de nos enredar na ilusão de que podemos programar e controlar os efeitos de nossos atos, nos mesmos moldes que operamos um relógio. Há séculos a Humanidade rende-se ao culto do pensamento cartesiano, alienando-se ao discurso científico, sob a expectativa de ser conduzida em segurança à Terra Prometida, na qual todos os anseios e necessidades, individuais e coletivos, seriam saciados. Porém, no século atual constatamos envoltos em perplexidade e desolação, que a travessia empreendida sob o cajado da Ciência, nos conduziu a paragens áridas de valores do espírito e assoladas por tempestades de consumo desenfreado, em que nos quedamos hipnotizados pela miragem do progresso e do desenvolvimento. Felizmente, o espírito humano é dotado da capacidade de promover mudanças paradigmáticas de pensamento, as quais ocorrem quando o real dissipa o imaginário. Nesse sentido, a física newtoniana restou ultrapassada pela Relatividade e pela Mecânica Quântica. A visão fragmentada do cientificismo foi superada pela Teoria Geral de Sistemas, que professa a interdependência entre as partes e que as interações entre os elementos de um sistema não podem ser compreendidas pela simples investigação das partes isoladamente. 3 VISÃO SISTÊMICA DA CIÊNCIA: ABORDAGEM TRANSDICIPLINAR DOS FENÔMENOS Conquanto ainda predomine na Ciência o paradigma newtoniano-cartesiano, de cunho determinista e mecanicista, contudo, vem conquistando espaço no território científico a visão sistêmica ou holística, que busca integrar os diversos saberes humanos, estabelecendo um modelo científico que concebe o universo como uma vasta rede de inter-relações, exigindo uma abordagem transdisciplinar dos fenômenos. Estendendo-se essa linha de raciocínio até os domínios do Direito Administrativo, se reputa fundamental a incorporação desse novo paradigma científico – sistêmico ou holístico – notadamente no exercício da função administrativa, pela complexidade que encerra e em virtude das repercussões concretas que acarreta à sociedade humana. Com efeito, é forçoso observar que a Administração Pública, na produção de seus atos e implementação de medidas, jaz aprisionada ao modelo científico tradicional. Deveras, quando se edita um ato administrativo, o agente público, via de regra, ignora os reflexos que poderão atingir outros campos (social, ético, ambiental, econômico, psicológico etc). A submissão a esse paradigma mecanicista-determinista é perceptível nos procedimentos burocráticos desarrazoados e na aplicação mecânica das normas, sem levar em consideração aspectos probabilísticos e eventuais efeitos deletérios a médio e longo prazo. Acresça-se que essa concepção limitada dos atos administrativos propicia que muitos deles equivalham a uma verdadeira caixa de pandora, na medida em que potencializam resultados daninhos para a coletividade. Elejamos como exemplo hipotético a desapropriação de áreas rurais, tendo por finalidade a construção de uma usina hidroelétrica. Quando se aplica o modelo científico tradicional (newtoniano-cartesiano), o Direito Administrativo se ocupa exclusivamente dos princípios da Administração Pública e das regras procedimentais pertinentes (autorização legislativa, edição de decreto expropriatório, avaliação, indenização etc), não se atentando às repercussões produzidas em outras esferas. No cenário ora delineado pode ser suscitado o seguinte questionamento: qual a razão que conduziria o agente público a considerar previamente os impactos que poderão ser acarretados por um ato ou medida estatal, fora da órbita jurídico-administrativa? Perceba-se que a indagação precedente decorre justamente do modelo newtoniano-cartesiano de interpretar o universo e seus fenômenos, ou seja, de forma fragmentada e assistemática. A problemática em foco poderia ser formatada nos seguintes moldes: por que razão o cérebro haveria de se preocupar com um processo infeccioso instalado no pé? Ora, da mesma maneira que uma pedra lançada em um lago produz ondas que se propagam em diversas direções, um mero ato administrativo pode repercutir em campos que, em princípio, não guardam qualquer correlação com o Direito Administrativo. Retomando-se o exemplo da desapropriação, é bem de ver que os efeitos operados por esse processo administrativo não se restringem à mera transferência de um bem alheio para o domínio público, porquanto provocará inexoravelmente, dentre outros, reflexos ambientais, sociais, econômicos e culturais. Em um breve exercício probabilístico, afigura-se provável que as famílias expulsas de suas terras migrem para os centros urbanos, acarretando o colapso dos serviços públicos de educação, saúde e assistência social; recrudescimento de endemias e epidemias; incremento da violência urbana; redução da oferta de alimentos e consequente elevação da inflação; destruição de sítios arqueológicos; mudanças no regime de chuvas e temperatura; crises de abastecimento de água; ocupação de áreas de risco e de preservação permanente e assim por diante. Ignorar ou negligenciar o efeito sistêmico das intervenções pontuais pode resultar em verdadeiras catástrofes. E pelo mundo afora se multiplicam os exemplos dessa miopia científica, dentre os quais se ressalta como emblemático o fenômeno do aquecimento global. 4 CONCLUSÃO Infere-se da exposição que o exercício da função administrativa traduz uma atividade complexa, na proporção em que exige o aporte de conhecimentos hauridos de outros saberes humanos. No exemplo hipotético da desapropriação, o administrador público haveria de recorrer a outras disciplinas científicas, como a ecologia, a antropologia, a arqueologia, a sociologia, a economia, sem prejuízo de outras que se revelassem úteis na análise sistêmica do ato. Quiçá, submetido o ato expropriatório a esse novo paradigma científico e antevistos os resultados negativos que poderiam advir, o gestor público haveria por bem não implementálo. Professa-se nestas paragens o entendimento de que o caráter sistêmico de que se reveste o ato administrativo não pode ser ignorado pelo agente público, sob pena de produzir resultados diametralmente opostos ao pretendido na sua gênese. O Direito não pode prescindir do construto teórico de outras disciplinas científicas, haja vista que cada conduta e comportamento humanos, produzidos na esfera pública ou privada, constituem os fios de uma vasta e delicada teia. Colha-se, desta feita, o exemplo concreto da escassez hídrica que aflige o Estado de São Paulo e, mais severamente, a sua capital. Caso os gestores públicos houvessem antevisto os resultados catastróficos da hipertrofia urbanística, por certo milhões de paulistanos não estariam com as suas torneiras sedentas. Para finalizar este breve ensaio, recorremos à descrição poética da Teoria do Caos, corporificada no chamado “Efeito Borboleta”. Ora, se o bater de asas de uma simples borboleta pode influenciar o curso natural dos fenômenos, de sorte a provocar um tufão a milhares de quilômetros, que desastres poderão se originar de um ato administrativo que autoriza o abate de uma árvore sadia? CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL Denise Américo de Souza74 Léia Aparecida Veiga75 RESUMO Objetiva-se com este estudo teórico destacar aspectos históricos importantes sobre a criação do Direito e do ensino do superior jurídico no Brasil. Para tanto, realizou-se um levantamento bibliográfico acerca da temática: Ensino Superior no Brasil e Ensino Jurídico. Trata-se de um trabalho teórico de cunho qualitativo cuja pesquisa foi pautada na estratégia de levantamento bibliográfico. Parte-se de uma breve contextualização da criação do ensino superior no Brasil, com ênfase no período colonial e imperial. Em seguida realizou uma discussão sobre o ensino jurídico no Brasil, priorizando aspectos relevantes dos períodos destacados acima. Conclui-se que há necessidade de maior atenção para com a formação do professor do ensino superior. PALAVRAS-CHAVE: Ensino Superior. Ensino Jurídico. Formação Docente. ABSTRACT Objective with this theoretical study highlight important historical aspects of the creation of law and higher education law in Brazil. To do so, we performed a literature on the theme: Higher Education in Brazil and Judicial Education. This is a theoretical qualitative work whose research was based on a literature review strategy. Part is a brief background of the creation of higher education in Brazil, with emphasis on colonial and imperial period. Then held a discussion on the judicial education in Brazil, prioritizing relevant aspects highlighted above periods. It is concluded that there is need for greater attention to the education of teachers in higher education. KEYWORDS: Higher Education. Judicial Education. Teacher Training. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 O DIREITO NO CONTEXTO DE CRIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL. 3 O ENSINO JURÍDICO NO TERRITÓRIO BRASILEIRO. 4 À GUISA DE CONCLUSÃO. 5 REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO Pertencemos a uma nação. Por isso temos deveres e regras a serem cumpridas. Como poderíamos entender um pouco o sentimento de pertencimento a uma nação? O que poderíamos entender por nação? De acordo com o dicionário o significado de nação é: 74 75 Professora Mestre, UNIFIL. Email: [email protected] Professora Doutora, UNIFIL. Email: [email protected]. “Conjunto dos habitantes de um território. Estado que se governa por leis próprias. O Governo da nação. Pátria; país natal, de origem.” Podemos ampliar um pouco mais essa definição inserindo elementos de natureza teórica relacionados ao Direito que nos apontam, segundo Brancanato (2011), que nação é o ambiente em que se assenta e organiza o Estado e o conjunto de seus cidadãos é o povo. Quando se remete à nação brasileira existe uma certa distorção no que tange ao envolvimento do povo enquanto conjunto de indivíduos cidadãos participantes de uma nação bem como uma cisão do Estado junto à própria concepção de nação, fato que se arrasta desde a instituição do Estado. Segundo Schwarcz (2004), um elemento essencial escapa no processo de independência do Brasil e a criação do Estado, em 1822: o pensamento de nação. Fundar essa nação significaria, ainda nas palavras da autora Schwarcz, criar medidas emergenciais que atendessem a uma demanda que o Brasil ainda não estava “preparado” para atender. Como possibilidade de se concretizar isso são viabilizadas, ao lado dessas medidas emergenciais, instituições para organizar a “nação”. Entre algumas instituições criadas estão a escola de medicina, escola de engenharia, Instituto Histórico Geográfico Brasileiro para em seguida serem instituídas as faculdades de Direito. Esta última, em particular, deteve papel preponderante no decurso das mudanças institucionais ocorridas no Brasil desde o período imperial, ainda que ao mesmo tempo mantivesse certas estruturas que auxiliavam a manutenção do poder português sobre o incipiente estado brasileiro. Assim, objetiva-se com este estudo teórico destacar aspectos históricos importantes sobre a criação do Direito e do ensino do superior jurídico no Brasil. Para tanto, realizou-se um levantamento bibliográfico acerca da temática: Ensino Superior no Brasil e Ensino Jurídico. Trata-se de um trabalho teórico de cunho qualitativo cuja pesquisa foi pautada na estratégia de levantamento bibliográfico (GIL, 2008). 2 O DIREITO NO CONTEXTO DE CRIAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL A sistematização da educação no nível superior no Brasil ocorreu de forma diferenciada daquela desenvolvida pelos espanhóis em suas colônias na América Latina. Segundo Cunha (2007) enquanto os espanhóis instalavam em suas colônias na América estabelecimentos de ensino no formato de universidades já no século XVI, os portugueses além de não incentivarem a criação desse tipo de instituição de ensino superior - ao concederem bolsas de estudos em Coimbra para grupos de filhos dos colonos -, também proibiam a instalação das mesmas no Brasil e permitiam somente a oferta de cursos superiores de Filosofia e Teologia nos estabelecimentos escolares jesuítas. Assim, no Brasil Colônia o ensino superior foi conduzido pelos jesuítas que fundaram o primeiro estabelecimento de ensino no estado da Bahia, que passou a ofertar, a partir de 1553, os cursos de Artes e de Teologia. De acordo com Cunha (2007, p. 152) o curso “[...] de Artes, também chamado de Ciências Naturais ou Filosofia, tinha duração de três anos. Compreendia o ensino de Lógica, de Física, de Matemática, de Ética e de Metafísica”. Já o curso de Teologia, que conferia o grau de doutor, poderia ser concluído no período de quatro anos. De 1553 até 1759, quando ocorreu a expulsão dos jesuítas do Brasil Colônia, foram ofertados cursos superiores de Artes e Teologia em outros estados brasileiros, como Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Maranhão e Pará. Geralmente, esses cursos eram ministrados nas dependências dos colégios jesuítas que ofertavam o ensino das primeiras letras e o ensino secundário para atender a demanda criada pelas famílias dos funcionários públicos, dos senhores de engenho, dos criadores de gado, dos artesãos e, no século XVIII, também dos mineradores (CUNHA, 2007). Mediante a expulsão dos jesuítas do Brasil, durante certo período não houve a criação de novos cursos superiores, apenas a manutenção do ensino de Filosofia, que passou a ser de responsabilidade de outras ordens religiosas, em particular, a franciscana (CUNHA, 2007). A criação de novos cursos superiores segundo o autor supracitado ocorreu somente a partir do ano de 1808, quando o rei e a Corte Portuguesa transferiram-se de Portugal para o Brasil. Mas, cabe ressaltar que essa transferência da sede do poder metropolitano para o Brasil demandou a organização de um ensino superior distinto do anterior, que viesse a atender a demanda criada com o surgimento do Estado nacional. No entanto, ao invés de universidades foram criadas, no Brasil, cátedras isoladas de ensino superior voltadas para a formação de profissionais. Desta forma, sob inspiração francesa foram criadas os seguintes cursos: de Medicina, na Bahia e no Rio de Janeiro, em 1808; e de Engenharia, embutidas na Academia Militar, no Rio de Janeiro, dois anos depois (BRANDÃO, 1997). Os cursos Jurídicos surgiram apenas em 1827 em Olinda e São Paulo, para completar, segundo Cunha (2007, p. 153), “[...] a chamada tríade dos cursos profissionais superiores que por tanto tempo dominaram o panorama do ensino superior no país: Medicina, Engenharia e Direito”. A partir de então, em particular no decorrer do período imperial (1822-1889), o ensino superior ganhou mais densidade com o desenvolvimento e multiplicação dessas faculdades isoladas - Medicina, Engenharia, Direito. Outras faculdades foram criadas no decorrer dos anos como de Odontologia, de Arquitetura, de Economia, de Serviço Social, de Jornalismo, de Filosofia, de Ciências e Letras (BRANDÃO, 1997). Essa expansão dos cursos superiores teve continuidade no período posterior ao final do Império, sendo criadas no Brasil 27 escolas superiores de 1891 até 1910, sendo 9 (nove) de Medicina, Obstetrícia, Odontologia e Farmácia; 8 (oito) de Direito; 4 (quatro) de Engenharia; 3 (três) de Economia e 3 (três) de Agronomia (CUNHA, 2007). Cabe reforçar que o curso superior, desde 1808, foi retomado por faculdades isoladas, tendo caráter profissionalizante e servindo apenas aos interesses da elite. Além da ampliação de cursos superiores em estabelecimentos isolados, tem-se também a criação das primeiras universidades no Brasil a partir da primeira década do século XX. A primeira universidade instalada foi a de Manaus no ano de 1909; em 1912, a do Paraná; em 1920, a Universidade do Rio de Janeiro; a de Minas Gerais, em 1927; a de São Paulo, em 1937, e a Universidade de Brasília, em 1961 (CUNHA, 2007; BRANDÃO, 1987). Essas instituições foram caracterizando o cenário de formação dos profissionais no Brasil, estabelecendo uma realidade de atuação técnica desse profissional e, ao mesmo tempo, distante do que havia na realidade de nação: povo pobre, distante do estudo, dependente da elite local e sem a consciência de si mesma. De acordo com Brancanato apud Maritain (2011, p.83), “[...] nação é a comunidade de pessoas que se tornam conscientes de si mesmas”. Entende-se que o principal foco era atender as necessidades e demandas da elite, enquanto a nação se moldava ao modelo paternalista longe de qualquer consciência de si. 3 O ENSINO JURÍDICO NO TERRITÓRIO BRASILEIRO Em se tratando dos cursos jurídicos no Brasil, estes passaram a ser formadores de bacharéis para atuar profissionalmente e, consequentemente, de docentes para a área do ensino superior do Direito. Posto assim é relevante refletir sobre esses aspectos, uma vez que esses cursos formam e influenciam diretamente o pensamento dos bacharéis. Porém, para tanto, se faz necessário situar o ensino jurídico brasileiro, bem como aspectos relevantes do contexto responsável pelo que está posto na atualidade, por meio de uma breve retomada da história. No Brasil, o Direito constituiu-se ainda no período colonial, sofrendo todas as influências culturais predominantes na metrópole, em que pese, Portugal. Formados na Universidade de Coimbra os juristas constituíam uma elite dominante, responsável pelo aconselhamento da Coroa. Para o acesso de profissionais dessa e de outras áreas a cargos públicos, eram considerados a origem social e o apadrinhamento do candidato (OLÍVIO, 2000). Acerca da formação em Direito no período colonial, o referido autor assevera que a mesma [...] era um processo de socialização destinado a criar um senso de lealdade e obediência ao rei. É bastante significativo que, durante os trezentos anos em que o Brasil foi colônia de Portugal, Coimbra fosse a única Faculdade de Direito dentro do império português. Todos os magistrados do império nascido nas colônias ou no continente passavam pelo currículo daquela escola e bebiam seu conhecimento em Direito e na arte de governar naquela fonte (OLÍVIO, 2000, p. 56). As colocações do autor deixam claro que o bacharel era formado em um contexto e realidade diferentes do que caracterizava o Brasil, país no qual o mesmo, ao retornar, aplicaria o que aprendeu em Portugal. Agindo dessa forma, a metrópole causava certa alienação em nossos juristas e corroborava para a manutenção de um eficiente método de controle ideológico, desvinculando a percepção do Direito dos interesses da população e voltando-o aos interesses da coroa, sem nenhuma intenção de defender as camadas populares. No entanto, esse cenário sociopolítico, jurídico e cultural não foi abreviado com o final do período colonial, pois se manteve mesmo com a instituição do Brasil Império, em 1822. Essa continuidade, segundo Maciel (2007), se deve ao fato do Brasil, na época de sua independência, ainda ser visto pela elite dirigente como um Estado em formação e com carência de instrumentos indispensáveis à formação do Estado Nacional. Embora no ano de 1827 o curso de Direito tenha sido instituído em terras brasileiras como discutido anteriormente - marcando segundo alguns autores o início da formação de uma cultura jurídica no país -, estes permaneceram amparados na matriz dos cursos jurídicos portugueses, portanto não apresentavam nenhuma intenção de formar uma cultura jurídica nacional (GUIMARÃES, 2006). Embasando-se nas colocações do referido autor, entende-se que o início da história do ensino jurídico no país foi marcado expressivamente pela urgente necessidade de formar um corpo burocrático capacitado para suprir “[...] as carências advindas com o processo de construção da identidade política nacional” (GUIMARÃES, 2006, p. 50), mantendo-se assim a ideologia e o atendimento aos interesses do Estado e deixando em segundo plano as necessidades judiciais da população, tal como havia acontecido quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. Ainda segundo o autor supracitado, é importante dizer que o curso de Direito nesse período não levava em consideração a capacidade reflexiva do acadêmico durante a organização e desenvolvimento de sua grade curricular. Consequentemente, o bacharel egresso do curso de Direito estava preparado para exercer qualquer atividade administrativa do Estado, mas não para participar efetivamente da vida do Direito, pois não teve uma formação e uma preparação assentada em um conhecimento jurídico nacional. Segundo o autor, as escolas de Direito no Brasil, no referido período, formavam “[...] apenas gente especializada”. (GUIMARÃES, 2006, p. 54). Em se tratando da influência portuguesa, Freitas Jr. (2006) vai além ao afirmar que a mesma não se findou com o início do século XX. Segundo o autor, o ensino jurídico nas faculdades de Direito no Brasil, ainda sofreu forte influência do modelo de ensino de Coimbra até o final do século XX, com aulas magistrais “[...] atrelados a velhos manuais doutrinários, verdadeiros clássicos que, mesmo não estando desatualizados no tocante à legislação nacional, não mais representavam as exigências jurídicas do tempo presente” (FREITAS JUNIOR, 2006, p. 249). Ou seja, houve certa manutenção, até o período assinalado pelo autor, da transmissão da cultura européia por meio desses cursos. No entanto, as críticas não se reduzem somente ao campo do currículo dos cursos jurídicos brasileiros criados nas ultimas décadas da primeira metade do século XIX no Brasil. No campo pedagógico verificou-se problemas relativos a formação e preparação para a docência superior assim como a ocorrência de práticas pedagógicas tradicionais. Acerca da formação do profissional para atuação em cursos jurídicos, Bastos (2000) pontua que, em nenhum momento, durante toda a história imperial no país houve incentivo ou ação que viabilizasse qualquer política de formação para o magistério jurídico. Algo que também pode ser verificado nas demais áreas do ensino superior, ou seja, em todos os cursos de ensino superior recém criados não houvera essa política de formação para a docência. Por não ocorrer essa preocupação com a formação dos profissionais para a docência, consequentemente a metodologia de ensino desenvolvia-se totalmente baseada na pedagogia tradicional, ou seja, centrada na memorização de conteúdo. Assim, a função do professor limitava-se ao ato de exposição oral de conteúdos. Desse modo, a pedagogia tradicional permitia a manutenção da estrutura social em concomitância com a estrutura operacional do Direito na formação direcionada dos bacharéis. Sendo assim, o paradigma estabelecido pela própria educação acerca do tradicionalismo, fortaleceu a formação apenas de “gente especializada” (GUIMARÃES, 2006, p.54). Podemos sintetizar tal percurso desse ensino e formação do profissional do Direito como existindo para uma nação, mas sem o entendimento do cidadão de pertencer a nação, de reconhecer-se como parte consciente e interessada em fazer valer os seus direitos e deveres. O Direito atende a necessidade mas, se distancia da realidade da sociedade. Faz-se necessário repensar as novas práticas docente. 4 À GUISA DE CONCLUSÃO... Embora esse trabalho com foco no curso de Direito seja produto de reflexões iniciais acerca do ensino superior, em caráter preliminar pode-se afirmar que as leituras realizadas até o momento evidenciam que o ensino superior em nosso país, desde seus primórdios, sempre se ocupou em formar profissionais para atuar no mercado de trabalho. Concebida desta forma, essa realidade educacional engendrou características bem marcantes nos cursos superiores, dentre as quais a questão dos currículos que privilegiam conteúdos técnicos organizados de forma disciplinar e a despreocupação com o corpo docente, quase sempre formado por profissionais competentes em sua área de atuação, mas desprovidos de formação pedagógica apropriada para atuarem no ensino. Não se trata de negar a importância do saber profissional outrossim de apontar para a necessidade de se levar em consideração outros saberes docentes de suma importância no ensino superior como o pedagógico, da disciplina, curricular, experiencial e/ou temporal, conforme enfatizado por Tardif (2002). A formação pedagógica é indispensável para o exercício da docência devendo, é claro, estar aliada a outros saberes também necessários para a construção do verdadeiro perfil do educador. As leituras indicam que a realidade vivida hoje nos cursos jurídicos é reflexo de um modelo educacional vigente no Brasil durante décadas, que mesmo diante das constantes reformas, não eliminou totalmente resquícios do modelo herdado do Direito português, caracterizado pelo ensino positivista. Verifica-se um movimento de parte das instituições de educação superior no sentido de acompanhar e dar suporte necessário aos seus professores dos diversos cursos -incluso Direito-, não servindo apenas de local de geração de novos saberes, mas atuando também como agenciadoras para a capacitação dos seus docentes, o que no entanto ainda tem ocorrido de maneira muito pontual e fragmentada em inúmeros estabelecimentos de ensino superior. REFERÊNCIAS BRACANATO, R.T. Instituições de Direito Público e Privado.14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. BRANDÃO, J. E. de A. A Evolução do Ensino Superior Brasileiro: uma abordagem histórica abreviada. São Paulo: Pioneira, 1997. CUNHA, L. A. Ensino Superior e Universidade no Brasil. In: LOPES, E. M. T.; FARIAS FILHO, L. M. de.; VEIGA, C. G. (org.). 500 anos de Educação no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 151-204. FREITAS JR. A. de. Globalização, ensino jurídico e a formação do advogado no século XXI. PRISMAS: Dir. Pol. Pub. e Mundial, Brasília, v.3, n, 2, p. 243-255, jul.⁄dez.2006. GUIMARÃES, I. S. Metodologia do ensino jurídico: aproximações ao método e à formação do conhecimento jurídico. Curitiba: Juruá, 2006. GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. SCHWARCZ, L. K. M. . Nação inventada. Nossa História (São Paulo), Rio de Janeiro, v. 6, p. 98-98, 2004. MACIEL. M. 180 anos dos cursos jurídicos no Brasil. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 ago. 2007. Disponível em:< http://www.academia.org.br/abl_e4w/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=11&infoi d=5976&sid=576 >. Acesso em: 10 jun.2014. OLIVIO, L. C. C. Origens históricas do ensino jurídico brasileiro. In: RODRIGUES, H. W. (Org.). Ensino jurídico: para que(m)?. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000. BASTOS, A. W. O ensino jurídico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. TARDIF, M. LESSARD, C. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. REMIÇÃO DE PENA À LUZ DAS ALTERAÇÕES REALIZADAS PELA LEI 12.433/201176 Douglas Bonaldi Maranhão77 RESUMO Tem o presente trabalho a finalidade de apresentar aspectos críticos acerca do instituto da remição da pena existente no ordenamento jurídico brasileiro à luz das alterações realizadas pela Lei 12.433/2011. A remição de pena, como forma de diminuição do tempo de pena a ser cumprido pelo preso, hodiernamente apresenta grandes debates na doutrina e na jurisprudência quanto à sua forma de aplicação, motivo pelo qual se mostra necessária a sua compreensão de maneira verticalizada. Tem-se que com as alterações realizadas pela Lei 12.433/2011, vários debates foram solucionados como a concessão da remição através do estudo, o cômputo do tempo remido e a sua utilização para o cumprimento do requisito objetivo (lapso temporal) exigido na concessão de benefícios. Não obstante alguns avanços, há que se esclarecer que remanescem ainda pontos que diante da realidade fática do atual sistema penitenciário brasileiro, merecem uma análise mais verticalizada como a remição ficta e a perda dos dias remidos pelo cometimento de falta de natureza grave. Somente com o aprofundamento da compreensão desses aspectos polêmicos é que se poderá avançar no alcance do verdadeiro escopo deste instituto e qual a melhor maneira para a sua aplicação. PALAVRAS-CHAVE: Remição de Pena. Sistema Penitenciáro. Trabalho Prisional. ABSTRACT This work has the purpose of presenting critical issues about the Institute of remission of sentence exists in brazilian law. Redemption penalty as a form of reduction in length of sentence to be served by the prisoner, presents today's major debates in doctrine and jurisprudence, as your application form, for which reason this is needed is your understanding of how vertical. Among the points that make up the current debate, which will be addressed in this study can be cited: the provision of redemption through the study and called fictitious redemption, the calculation of redeemed time and its use for the requirement objective (time lapse) required in granting benefits, and finally, as such office should be seen in the current brazilian penitentiary system. With the amendments made by Law 12.4332011 lot of discussions were resolved as the granting of redemption through the study, the reckoning of time redeemed and their use for the fulfilment of the objective requirement (time-lapse) required in granting benefits. Nevertheless some advancements, has to clarify that still remain points on the factual reality of the current Brazilian penitentiary system deserve a more Verticalized as fictitious redemption and the loss of days redeemed by Commission of lack of serious nature. Only with a deeper understanding of these controversial aspects is that it can move forward in reaching the true scope of the institute and how best to implement it. 76 O presente artigo foi originalmente publicado na Revista Jurídica da UNIFIL, ano VII, n° 7 (2010), sendo o presente texto atualizado e ampliado, de acordo com as alterações realizadas pela Lei 12.433/2011. 77 Especialista em Filosofia Política e Jurídica pela UEL. Especialista em Direito e Processo Penal pela UEL. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, área de concentração Direito Penal pela UEM. Professor de Direito Penal da UNIFIL e de Direito Penal da UEL. Advogado. Membro do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná. KEYWORDS: Redemption Penalty. Prison System. Prison Labor. SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES. 2 REMIÇÃO DE PENA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. 3 ESPÉCIES. 3.1 REMIÇÃO PELO TRABALHO. 3.2 REMIÇÃO PELO ESTUDO. 3.3 REMIÇÃO FICTA. 4 CONCESSÃO DA REMIÇÃO. 4.1 CÔMPUTO DO TEMPO REMIDO. 4.2 BENEFÍCIOS. 4.3 PERDA DOS DIAS REMIDOS. 5 FINALIDADE DA REMIÇÃO DA PENA FRENTE AO ATUAL SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES O presente artigo visa abordar, de maneira crítica, alguns aspectos polêmicos existentes acerca do instituto da remição de pena, aplicado junto à execução da pena privativa de liberdade, seja ela definitiva ou provisória.78 Neste viés é que se deve alertar para a delimitação de tais pontos, uma vez que não há o desiderato de esgotar a matéria, mas sim de suscitar o debate existente para uma melhor compreensão e aplicação do presente instituto. Diversos são os pontos polêmicos existentes acerca da concessão da remição de pena para o preso (condenado ou provisório) ao longo da execução da sua pena. Vale ressaltar que com as alterações introduzidas pela Lei 12.433/2011, alguns embates doutrinários e jurisprudenciais restaram esclarecidos como, por exemplo, a possibilidade de concessão de remição através do estudo e o cômputo dos dias remidos na execução da pena, para fins de utilização do referido tempo para o cumprimento do requisito objetivo (lapso temporal) na concessão de benefícios. Dentre algumas questões que remanescem, podem ser citadas a remição ficta e a perda dos dias remidos pelo cometimento de falta de natureza grave. Após a análise dos reflexos da atualização legislativa, bem como a verticalização dos embates ainda existentes, buscar-se-á alcançar a finalidade que permeia a aplicação deste instituto, tendo como referência o atual sistema penitenciário brasileiro. Assim, pretende-se apresentar os referidos pontos para fomentar o debate na busca de um aprimoramento do instituto da remição da pena quando da sua aplicação ao caso concreto, 78 Faz-se referência à possibilidade de o preso provisório, ou seja, aquele que não tenha contra si sentença condenatória transitada em julgado, executar a sua pena, na hipótese de pendência de recurso apenas da defesa podendo, assim, dar início à sua execução após a expedição da carta de guia provisória, bem como usufruir dos direitos que lhe assistem, ao longo do processo executório. tendo como diretiva o seu desenvolvimento consentâneo à própria finalidade do cumprimento da pena. 2 REMIÇÃO DE PENA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O instituto da remição está disposto no ordenamento jurídico brasileiro na Lei de Execuções Penais nº 7.210/1984, nos artigos 126 a 130. Trata-se de benefício concedido ao preso condenado ou provisório, que esteja cumprindo a sua reprimenda em regime fechado, semiaberto ou aberto (a hipótese do trabalho somente nos regimes fechado e semiaberto), consistente no abatimento do lapso temporal de sua pena pela atividade laborativa ou educacional desenvolvida na proporção de, a cada três dias trabalhados ou 12 horas estudadas, um dia deverá ser remido (PRADO, HAMMERSCHIMIDT; MARANHÃO; COIMBRA, 2013, p. 175). Essa é a nova perspectiva para a concessão da remição da pena, pois a Lei 12.433/2011 permitiu, além da concessão da remição para aqueles que desenvolvam atividade educacional, também a extensão desta espécie de remição àqueles que estejam cumprindo pena no regime aberto, bem como àqueles que estejam cumprindo a sua pena sob o livramento condicional. Dispõe a nova redação do artigo 126 da Lei de Execuções Penais que “o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, pelo trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena”. Assim a nova disposição contempla a possibilidade de concessão da remição através do estudo realizado pelo preso, pondo fim a uma lacuna legislativa que fora suprida pela jurisprudência, conforme determinava a Súmula nº 341 pelo Superior Tribunal de Justiça. Como já descrito, a contagem do tempo será feita à razão de 1 (um) dia de remição para cada 12 (doze) horas estudadas ou 3 (três) dias trabalhados, sendo que a atividade educacional que compreende o ensino fundamental, médio, superior, profissionalizante ou ainda de requalificação profissional, deverá ser dividida, no mínimo, em três dias. Vale ressaltar que “para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias de trabalho e de estudo serão definidas de forma a se compatibilizarem” (art. 126, § 3º, LEP), ou seja, a administração da unidade prisional deverá organizar a distribuição das horas a serem trabalhadas e estudadas ao longo do dia, para que não restem frustradas as finalidades para as quais o preso desenvolve as referidas atividades. A despeito das referidas alterações, há que se esclarecer que não houve qualquer mudança quanto à possibilidade de concessão da remição àqueles que estejam cumprindo penas restritivas de direitos ou estejam submetidos à medida de segurança, restando vedada, em tais casos. De acordo com o que dispõe o artigo 126, § 4º, da Lei de Execuções Penais “O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição”. Vale lembrar que constitui falta disciplinar de natureza grave provocar acidente de trabalho, conforme dispõe o artigo 50, IV da Lei de execuções penais, sendo que ao que se interpreta do referido dispositivo, somente poderá ser subsumida a essa conduta considerada como falta grave caso o acidente ocorra por uma conduta dolosa ou culposa do agente, não podendo o preso responder por qualquer conduta se não a produziu dolosa ou culposamente. A remição de pena é declarada pelo juiz da execução, após manifestação do Ministério Público (art. 126, § 8º, LEP). Entende-se que o pleito de remição de pena pode ser feito pelo próprio preso, por seu procurador pelo ou pelo Ministério Público. O referido procedimento judicial para a declaração dos dias remidos, na prática, é realizado através de um pedido apresentado pelo procurador do preso, sendo tal pedido instruído com o atestado de trabalho que deverá ser emitido pela autoridade administrativa, assim como com o atestado de permanência e conduta carcerária que descreverá a conduta do preso durante o período em que desenvolveu a sua atividade laborativa. Ou seja, após ser constatado o cumprimento dos requisitos objetivos – efetivo desenvolvimento da atividade laborativa – e subjetivos – bom comportamento durante o cumprimento da pena – poderá ser concedida, pelo juiz, a remição de pena ao preso. 3 ESPÉCIES Pode-se dizer que atualmente existem três espécies de remição de pena, tendo por base o fundamento para a sua concessão. A primeira delas é aquela descrita no texto legal chamada de remição pelo trabalho, que durante muito tempo esteve fundada em posicionamentos jurisprudenciais através de uma aplicação da analogia in bonam partem e que foi contemplada pela alteração realizada pela Lei 12.433/2011 que abrange a remição pelo estudo. Por fim, tomando por base a atual situação do sistema penitenciário brasileiro, bem como o direito que o preso tem ao trabalho, tem-se a remição ficta. Para uma melhor compreensão, far-se-á uma análise individualizada de cada instituto. 3.1 REMIÇÃO PELO TRABALHO A Remição de pena tendo por base uma atividade laborativa desenvolvida ao longo do período em que esteja cumprindo a sua reprimenda (seja preso condenado ou provisório) é o que se depreende expressamente no disposto do artigo 126 da Lei de Execuções Penais. Poderá o preso beneficiar-se deste instituto caso tenha desenvolvido o trabalho no cumprimento de pena em regime fechado ou semiaberto, de acordo com os regramentos dispostos na Lei de Execuções Penais, ficando vedado reconhecimento da remição pelo trabalho desenvolvido em regime aberto. Este trabalho, que pode ser realizado tanto dentro dos estabelecimentos prisionais (art. 31-35, LEP), quanto no seu ambiente externo (art. 36-37, LEP), busca a reeducação do preso, bem como a sua preparação para enfrentar o mercado de trabalho quando retornar à liberdade (MARCÃO, 2007, p. 168). Conforme Adeildo Nunes, “[...] essa atividade, além de ser remunerada, tem finalidade educativa e produtiva, evitando a ociosidade prisional” (2009, p. 40). Como consectário lógico dos benefícios alcançados quando do desenvolver de uma atividade laborativa tem-se, segundo Heleno Fragoso: “a moderna política penitenciária confere ao trabalho grande parte da função ressocializadora que se atribui à pena privativa de liberdade” (1980, p. 104) De acordo com o que dispõe o artigo 126, § 1º, II da Lei de Execuções Penais a contagem do tempo para que possa ser reconhecida a remição de pena é feita na proporção de, a cada 3 (três) dias trabalhados, 1 (um) dia será remido. Há que se ressaltar que os dias trabalhados deverão ser acompanhados pela autoridade administrativa que deverá encaminhar, mensalmente, ao juízo de execução, a relação de todos os presos que estejam trabalhando (art. 129, caput, LEP), devendo assim a autoridade administrativa encaminhar a relação daqueles que trabalharam, especificando os dias trabalhados para que o instituto ora estudado não seja deturpado, uma vez que que se considera crime de falsidade ideológica, conforme dispõe o artigo 299 do Código Penal. 79 Ressalva deve ser feita aos trabalhos desenvolvidos dentro das unidades penais que se mostram muito aquém do que se entende por necessário. Sabe-se, atualmente, a 79 Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular. Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte. precariedade pela qual passa o sistema penitenciário brasileiro, no entanto, a oportunização de trabalho, para que o preso possa exercê-lo, figura como um direito que lhe assiste, representando um dos pilares que sustentam a perspectiva ressocializadora da pena. Assim, em que pese ser notória a insuficiência de vagas de trabalho dentro dos presídios, pelos mais diversos motivos (arquitetura penitenciária que não comporta locais de trabalho, falta de interesse de empresas privadas em implantar canteiros de trabalho, etc.), essa é uma diretiva que nunca pode ser esquecida para que sempre se busque a melhora das condições e o aumento das oportunidades para que o preso desenvolva a atividade laborativa, bem como o desiderato da própria sanção penal. 3.2 REMIÇÃO PELO ESTUDO Outra hipótese de remição de pena é quando o preso desenvolva uma atividade educacional. Esta forma de se conceder a remição ao preso esteve amparada em grandes debates doutrinários e jurisprudenciais, sendo que posteriormente fora pacificada através da edição da Súmula nº 341 pelo Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos: “a frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo da execução da pena sob regime fechado ou semiaberto” e atualmente inserida na Lei de Execuções Penais através das alterações realizadas pela Lei 12.433/2011. Ou seja, atualmente está previsto no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de se reconhecer os dias remidos àquele preso que tenha frequentado curso de ensino formal durante o período em que esteve sob o regime fechado, semiaberto e aberto, conforme dispõe o artigo 126, caput e 126 § 6º, da Lei de Execuções Penais. Este posicionamento vai ao encontro do próprio intento fundamentador do instituto da remição da pena e que já vinha solidificado na doutrina e jurisprudência. Atualmente, tem-se que deverá ser computado como tempo remido 1 (um) dia para cada 12 (doze) horas estudadas, divididas essas horas em 3 (três) dias, sendo que as formalidades de fiscalização de frequência adstritas ao preso que estude deverão ser respeitadas nos moldes da fiscalização do preso que trabalhe. O artigo 126 § 1º, I da Lei de Execuções Penais, afirma: “A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de [...] 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental. Médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional – divididas, no mínimo, em 3 (três) dias”. Tem-se, ainda, que “as atividades de estudo a que se refere § 1º poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados” (art. 126 § 2º, LEP). Vale ressaltar a importância de se permitir a implantação de ensino a distância dentro de unidades penais, uma vez que não é diferente o caminho existente na atual sociedade. Nas palavras de Alexis Couto de Brito (2013, p. 260): Uma grande e bem-vinda inovação foi a possibilidade de que o estudo seja realizado de forma não presencial, ou seja, a distância, o que facilitará em muito a disseminação do estudo nos estabelecimentos penais. As formas de ensino a distância com o uso da internet ou de sistema via satélite são mais econômicas e práticas, bastando para tanto um equipamento e projeção de imagens e a utilização de um único professor para atender ao mesmo tempo vários estabelecimentos. Certos de que a remição de pena também representa um incentivo ao preso para internalizar um processo de reintegração social, reforçando essa perspectiva foi incluído no artigo 126 o § 5º contemplando a possibilidade de, além dos dias remidos pelo estudo desenvolvido, o preso receber um “bônus” (BRITO, 2013, p. 260) nos seguintes termos: “O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3 (um terço) no caso de conclusão de ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de educação”, sendo que tal possibilidade, além de ser um incentivo para o preso estudar quando esteja cumprindo pena em regime fechado ou semiaberto, também tem essa função quando esteja cumprindo sua reprimenda em regime aberto ou em livramento condicional. O ensino dentro das unidades penais cumpre papel importantíssimo, uma vez que seus benefícios podem ser vislumbrados, seja no período em que o detento permanece segregado, seja quando do seu retorno à sociedade, cumprindo, assim, com mais um pilar que sustenta o processo reintegrador do recluso, através da educação. 3.3 REMIÇÃO FICTA Além das hipóteses, acima citadas, para o reconhecimento dos dias remidos através do trabalho ou do estudo, atualmente há que se reconhecer a chamada remição ficta. Nesta hipótese, não há o desenvolvimento de atividade laborativa ou educacional por parte do preso, no entanto este se mostra apto para o seu desenvolvimento e, não o faz, por falta de condições do estabelecimento prisional (ausência de vagas). “Na realidade, o Estado tem obrigação de disponibilizá-lo ao preso, competindo a este decidir se aceita ou não” (NUNES, 2009, p. 40). Desta forma, entende-se que o preso não poderia suportar o ônus da inércia estatal, quando este não oportuniza as condições necessárias para que o preso exerça aquilo que o próprio Estado lhe outorga como direito, como o trabalho. Ou seja, tratando-se de um direito do preso, impõe-se um dever ao Estado no sentido de criar condições para o exercício do referido direito. Não esquecendo que todos os deveres impostos aos presos, ao longo do encarceramento, figuram como um direito do Estado em fiscalizar o seu fiel cumprimento, bem como a possível aplicação das consequências legais, caso tais deveres sejam descumpridos. Assim, poderá ser concedida a remição de pena àqueles presos que tenham totais condições para o desenvolvimento de trabalho, bem como possam frequentar cursos formais, mas não o fazem por ausência de vagas. Como a responsabilidade de criar as condições determinadas por lei é do Estado, não poderia o preso ser prejudicado pela referida inércia. “Aliás, eles merecem, também, a remuneração devida, pois não podem ser penalizados por não trabalharem porque o Estado não implementa condições para o fiel cumprimento da LEI” (MESQUITA JR., 2007, p. 79). Neste sentido, Célio César Paduani, citando Júlio Fabrini Mirabete, Odir da Silva e José Boschi assim se coloca a respeito do tema: [...] não podendo o Estado cumprir o seu dever de fornecer trabalho ao sentenciado, este não se pode ver prejudicado em seu direito subjetivo à benesse da remição, pois sendo obrigatório o trabalho interno, remunerado, como já dito, o preso não pode sofrer prejuízos em seu direito (2002, p. 18). No mesmo sentido é o escólio de Alexis Couto de Brito (2013, p. 259) quando afirma: [...] quando a legislação impõe o trabalho como dever e direito, o Estado deverá proporcioná-lo. Isto significa que descumprindo a lei ao não proporcionar a opção laborativa, o Estado deverá reconhecê-la, ainda que o preso não tenha efetivamente cumprido a atividade, como remição ficta. Se é dever do preso o exercício do trabalho, será dever do Estado oferecê-lo. Estando o detento disposto à realização do trabalho e não podendo fazê-lo, caberá aos órgãos de execução o reconhecimento e dedução da remição pela impossibilidade da transferência de sua ineficiência ao cidadão. [...] Além do fundamento acima citado (inércia do Estado em oportunizar as condições para o desenvolvimento da atividade laborativa ou educacional), tem-se a análise do artigo 126, § 4º da Lei de Execuções Penais que assim dispõe: “O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos, continuará a beneficiar-se com a remição”. A interpretação assim pode ser feita: já que o preso que por acidente de trabalho, diga-se, por uma questão alheia à sua vontade, pode se beneficiar do instituto da remição, mesmo sem desenvolver o trabalho, aquele preso que não o desenvolva por não existirem vagas, falta de estrutura, etc. (incumbência do Estado), também poderá se beneficiar do instituto. Certos de que a presente análise, tendo por base o trabalho que figura tanto quanto um direito, como um dever, entende-se perfeitamente possível o presente raciocínio ser estendido, também, ao caso do estudo, pois o estudo figura como um direito do preso, conforme dispõe o artigo 39, VI e VII, da Lei de Execuções Penais, sendo a ele garantido o exercício das atividades intelectuais, desde que compatíveis com a execução da pena, bem como a assistência educacional, respectivamente. 4 CONCESSÃO DA REMIÇÃO Tendo em vista que a remição de pena é um direito público subjetivo do condenado, no caso de preenchimento de todos os requisitos exigidos para a sua concessão (art. 126, LEP), não há que se falar em faculdade no momento de declarar os dias remidos por parte do órgão julgador (item 134 da Exposição de motivos da LEP). Assim, de acordo com o disposto no artigo 126, § 8º da Lei de Execuções Penais, o Juízo de Execuções Penais é o competente para declarar a remição de pena. Deverá o juiz, munido da documentação necessária para análise do pedido de remição de pena (atestado de trabalho), documento este emitido pela autoridade administrativa da unidade penal, declarar os dias remidos da pena do condenado, após a manifestação do Ministério Público e da defesa. Após incorporada a remição no patrimônio jurídico do condenado, poderá ele usufruir deste período ao longo da execução da sua pena. No entanto, por muito tempo dúvidas existiram no que diz respeito à realização do abatimento dos dias remidos e a sua utilização para o requerimento de benefícios, dúvidas essas que, a seguir, serão enfrentadas. 4.1 CÔMPUTO DO TEMPO REMIDO Dúvida que persistia e que se mostra extremamente importante ao longo do período do cumprimento da pena é a forma utilizada para o abatimento dos dias remidos. Os cálculos que eram utilizados para se incorporar juridicamente o número de dias remidos giravam em torno de dois sistemas e que acabam por ter, na prática, gritantes consequências no período de tempo em que o condenado deverá cumprir, seja no regime fechado ou no semiaberto. O primeiro deles determinava que os dias remidos, através da sentença prolatada pelo Juízo competente, deveriam ser somados ao tempo de cumprimento de pena. Tem-se, assim, que ao número de dias cumpridos até então, seriam somados aos dias remidos para que figurassem como tempo efetivamente de pena cumprido, incorporando-se assim no lapso temporal que seria utilizado para o requerimento de benefícios futuros como progressão de regime, livramento condicional, saídas temporárias e indulto. Já o segundo sistema adotado determinava que os dias remidos deveriam ser descontados do tempo total da pena aplicada, ou seja, o tempo fixado na sentença penal condenatória restaria diminuído pelo abatimento do número de dias concedidos, a título de remição. Não poderia, assim, figurar como parte integrante do lapso temporal exigido para o requerimento de qualquer tipo de benefício, uma vez que seria diminuído da pena total, fazendo tão somente criar um novo quantum que serviria de base para o cálculo do lapso temporal exigido para a concessão de benefícios. Em um cálculo simples, pode-se perceber a diferença que, na prática, as duas formas de cálculo acarretavam. Imagine-se que um condenado a uma pena de reclusão de 12 (doze) anos, pelo cometimento de delito comum, já tivesse cumprido 1 (um) ano e 6 (seis) meses de sua reprimenda corporal e que ao longo desse tempo efetivamente tivesse desenvolvido atividade laborativa que oportunizasse a concessão de 6 (seis) meses de remição. Caso o sentenciado quisesse requerer um pedido de progressão de regime, deveria cumprir 1/6 da sua pena total, ou seja, 2 (dois) anos. Para o primeiro sistema adotado, que incorpora o tempo remido aos dias já cumpridos da pena, após a concessão dos dias remidos, esses 6 (seis) meses seriam somados ao 1 (um) ano e 6 (seis) meses até então cumpridos, cumprindo assim com o lapso temporal exigido de 2 (dois) anos para a progressão de regime. Já para o segundo sistema citado, os dias remidos teriam que ser abatidos do tempo total da condenação para depois ser calculado o tempo de 1/6 exigido para a concessão do benefício de progressão de regime. Assim, após a diminuição dos 6 (seis) meses remidos dos 12 (doze) anos de condenação, restaria uma pena de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses. Para o cumprimento do requisito objetivo, são exigidos o cumprimento de 1/6 da pena, o que corresponderia a 1 (um) ano e 11 (onze) meses. Assim, faltariam ao condenado cinco meses para o cumprimento do exigido para progredir de regime. Não obstante a disparidade na praxis quando da aplicação do presente instituto, a dúvida persistia em relação a qual dos sistemas adotar para o desconto deste tempo. Já se afirmava, na edição anterior ao presente estudo, que o primeiro sistema é o que demonstrava maior coerência, tanto do ponto de vista prático, que devia ser analisado junto ao desiderato do instituto, quanto do ponto de vista legal, uma vez que não poderia ser outra a interpretação daquilo disposto na Lei. Nesta senda, a Lei 12.433/2011 alterou a redação do artigo 128 da Lei de Execuções Penais para o fim de asseverar: “O tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os seus efeitos”. Ou seja, adotou o legislador o primeiro sistema aqui apresentado, bem como acrescentou, de forma expressa, a possiblidade de que o tempo remido pode ser utilizado na contagem do lapso temporal exigido para a concessão dos benefícios constantes da Lei. Não poderia ser outra a valoração do legislador, pois a remição de pena figura como um incentivo ao condenado que com o desenvolvimento da atividade laborativa ou educacional, acaba por incorporar valores ético-sociais que fazem parte do sistema ressocializador da pena. Assim, ao se agregar o número de dias remidos ao tempo de pena já cumprido, estar-se-á por incutir no condenado, além de todos os valores provenientes da atividade desenvolvida, também a ideia de se manter bom comportamento ao longo do cumprimento de sua pena, para que assim possa continuar desenvolvendo a referida atividade. Corroborando o presente entendimento, mesmo antes da alteração legislativa, já ensinava Renato Marcão: “Pena remida é pena cumprida; sendo assim, o tempo de pena a ser descontado em razão da remição deve somar-se à pena cumprida (pena cumprida + dias remidos)” (2007, p. 171). Assim, tem-se mais do que oportuna a citada modificação legislativa. 4.2 BENEFÍCIOS O tempo remido da pena, como acima asseverado, corresponde a tempo de pena cumprida. Assim há que se reconhecer que este período de tempo, além de ser agregado ao tempo de pena cumprida, poderá também ser utilizado para a concessão de benefícios ao longo da execução da mesma. Independentemente de a antiga redação do artigo 128 da Lei de Execuções Penais determinar, expressamente, que o referido tempo seria utilizado tão somente para a concessão de livramento condicional e indulto, já se posicionava o melhor entendimento no sentido de que, através de uma interpretação analógica, seria possível estendê-lo a outros benefícios que exigissem, como requisito objetivo (temporal) para a sua concessão, determinado lapso temporal como, por exemplo, as progressões de regimes e as saída temporárias. Nesse sentido, na esteira do que acima foi exposto, tem-se: “A remição é um instituto em que, pelo trabalho, dá-se como cumprida parte da pena. Pelo desempenho da atividade laborativa o preso resgata uma parte da sanção, diminuindo o tempo de sua duração. Não há, tecnicamente, um abatimento do total da pena; o tempo remido é contado com de execução da pena privativa de liberdade” (MIRABETE, 2007, p. 517). Desta feita, nada mais lógico do que se permitir a utilização do tempo remido para o cômputo do lapso temporal exigido para a concessão dos benefícios existentes na Lei. Assim é a interpretação que deve ser dada quando da nova redação do artigo 128 que traz a expressão “para todos os efeitos”, ou seja, deve-se reconhecer que o tempo remido está computado no tempo de pena cumprido, podendo ser utilizado para o fim de concessão de benefícios ao longo da execução, onde se exige o cumprimento de determinado lapso temporal. 4.3 PERDA DOS DIAS REMIDOS Outra questão que se mostrou inovadora com a alteração proposta pela Lei 12.433/ foi quanto à modificação do disposto no artigo 127 da Lei de execuções penais que previa a perda dos dias remidos no caso de cometimento de falta disciplinar de natureza grave. Antes de adentrar a inovação legislativa, cumpre ressaltar que o citado dispositivo está estritamente ligado à manutenção do bom comportamento após a concessão da remição, o que muitos afirmam se tratar de uma concessão sob a cláusula rebus sic stantibus, ou seja, caso o preso seja punido por falta disciplinar de natureza grave, perde o direito ao tempo remido, iniciando-se novo período a partir da data da infração disciplinar. O artigo 127 da Lei de Execuções Penais dispõe: “Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observando o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar”. Neste sentido, caberá ao juiz da execução da pena, dentro de uma perspectiva subjetiva, valorar o quanto poderá ser perdido por conta do cometimento de uma falta grave, uma vez que o legislador descreveu que poderá ser perdido até 1/3 dos dias remidos, podendo até mesmo deixar de ser decretada a perda dos dias remidos, pois não há um quantum mínimo, apenas máximo. Vale esclarecer que a disciplina e a ordem a serem mantidas dentro dos estabelecimentos penais estão regulamentadas tanto pela Lei de Execução Penal, quanto pelos regulamentos estaduais, certos de que todo aquele que adentre (preso condenado ou provisório) uma unidade penal deve ter ciência de tais normas para o seu efetivo cumprimento. Para tanto, faz-se necessário que ao menos as regras básicas sejam apresentadas quando da entrada do detento na unidade penal, de maneira que ficará este ciente de todas as suas obrigações enquanto recolhido naquela unidade. Aquele que desrespeite as normativas impostas estará sujeito a sanções a elas cominadas. No presente caso, com efeito direto na execução da pena, há que se especificar as hipóteses de faltas de natureza grave. A Lei de Execução Penal traz rol taxativo de quais seriam as condutas merecedoras de qualificação mais gravosa dentre as infrações administrativas e que, na verdade, seriam punidas também com sanções mais severas. Assim dispõe o artigo 50 da Lei de Execução Penal: “Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: I – incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; II – fugir; III – possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; IV – provocar acidente de trabalho; V – descumprir, no regime aberto, as condições impostas; VI – inobservar os deveres previstos nos incisos II e V do art. 39 desta Lei; VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”. Vale ressaltar que todo o rito procedimental deverá ser respeitado para que se chegue a uma decisão consentânea com o desiderato do julgamento administrativo. Dessa forma, “praticada a falta disciplinar, deve ser instaurado o procedimento para sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito de defesa” (art. 59, LEP). Assegura-se, desse modo, que o procedimento administrativo para a apuração de falta disciplinar não se desenvolva ao alvedrio da administração, bem como se oportuniza que o acusado possa exercer o seu direito à ampla defesa. A decisão exarada ao término do procedimento administrativo deverá sempre ser motivada (art. 59, parágrafo único, LEP). Desta feita, somente após o desenrolar de um procedimento administrativo disciplinar é que se poderá sancionar o preso com falta de natureza grave, para que esta possa fazer surtir os seus efeitos. Aclarados os caminhos, ainda que de forma perfunctória, para que se chegue a uma decisão administrativa que possa sancionar o preso, há que se firmar as críticas feitas ao disposto no artigo 127 da Lei de execuções penais. O ponto principal gira em torno da ofensa ou não à decisão que concedeu a remição, pois, segundo parte da doutrina, os dias remidos acabam sendo incorporados ao patrimônio jurídico do preso, de maneira que a aplicação do artigo 127, no sentido de declarar tal perda, de acordo com a nova redação, ainda que de parte dos dias remidos, ainda assim ofenderia o direito adquirido. A presente questão vincula-se a um marco temporal, pois caso a falta grave seja cometida antes da decisão que determina a remição de pena, esta poderá ser prejudicada, sendo que, por outro lado, se a falta grave for posterior à decisão concessiva da remição, transitada em julgado, restaria o obstáculo intransponível do direito adquirido (art. 5º, XXXVI da CF) à frente do disposto no artigo 127 da Lei de Execuções Penais. Neste sentido, Alexis Couto de Brito assim se coloca: “não nos parece correto desconsiderar este período diante do cometimento da falta, o que seria absolutamente contraditório àquela definição, pois a pena definitiva cumprida não pode ser reconsiderada para ser novamente cumprida, o condenado estaria cumprindo duas vezes o mesmo montante” (2013, p. 263) e o próprio artigo 128 é cristalino ao afirmar que “o tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os seus efeitos”, revestindo-se assim o disposto no artigo 127 de flagrante inconstitucionalidade e ilogicidade. 5 FINALIDADE DA REMIÇÃO DA PENA FRENTE AO ATUAL SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO Atualmente é conhecida a situação que enfrenta o sistema penitenciário brasileiro. Referências como desordenado, caótico, falido, etc. são comumente veiculadas na abordagem do tema. No entanto, há que se buscar compreender cada ponto que compõe este sistema para melhor ajustá-lo ao desiderato contemporâneo, sob pena de, não assim agindo, estar-se por caminhar em círculos, não compreendendo o problema, tampouco colaborando com a sua solução. Neste viés, deve-se alcançar, após o deslinde dos temas debatidos acerca da remição de pena, qual a sua função no atual sistema punitivo brasileiro, para que assim possam ser sopesados a realidade enfrentada e o fim a ser atingido pelo citado instituto. Como já aventado, a remição de pena pressupõe a realização de atividade laborativa e/ou educacional. Essa atividade encontra guarida na legislação pátria, figurando tanto como um dever (exceto o estudo), sobretudo como um direito do condenado. Aqui não poderia o instituto da remição figurar tão somente como um caminho para o exercício de um direito ou cumprimento de um dever. A diretiva atual aloca a atividade laborativa e/ou educacional como forma de (re)inserir os valores atinentes ao trabalho e à educação àquele que, por muitas vezes, sequer desenvolveu tais atividades quando em liberdade. O desenvolvimento do trabalho e estudo traz aspectos importantíssimos à convivência social como cumprimento de horário, senso de hierarquia, companheirismo, relacionamento interpessoal, etc. fatores que favorecem, sobremaneira, o convívio em sociedade, preparando o condenado para um retorno harmônico. O trabalho e o estudo estão veiculados na teoria dos fins da pena como pilares que fundamentam a ressocialização do condenado. A ressocialização representa uma forma de prevenção especial que “consiste na atuação sobre a pessoa do delinquente, para evitar que volte a delinquir no futuro” (PRADO, 2008, p. 494). Ou seja, busca-se fazer com que o condenado incorpore valores ético-sociais (trabalho, estudo, família, religião, lazer, etc.) necessários à convivência social para que, quando do seu retorno, possa estar apartado da seara delitiva. Acerca dos benefícios da teoria da prevenção especial aduzem Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Júnior (2002, p. 133-134): [...] Esta tem um caráter humanista, pois põe um acento no indivíduo, considerando suas particularidades, permitindo uma melhor individualização do remédio penal. Além disso, sua atuação específica permite o aperfeiçoamento do trabalho de reinserção social. Neste sentido, vale citar Luiz Antônio Bogo Chies (2007, p. 534): A expectativa de um chamado tratamento penal e penitenciário, de cujas intervenções se extrai a principal finalidade de ‘recuperar’ o apenado com vistas a sua reinserção social, modernamente prioriza o trabalho como seu principal elemento. Quando se fala em reeducar, reinserir, ressocializar, têm-se a busca pela (re)incorporação de valores ético-sociais80. Neste caminho, o instituto da remição ultrapassa qualquer perspectiva utilitarista que represente um cálculo de diminuição de pena pelo trabalho desenvolvido ou o recebimento de determinada remuneração pelo trabalho desenvolvido, mas representa um dos mecanismos que devem ser utilizados como forma de direcionar o condenado ao seu retorno à sociedade de maneira a não mais incorrer em práticas delitivas. Aqui, em um viés verticalizado, sabe-se que “a criminologia tem revelado que a prisão, a pena em torno da qual gira o sistema punitivo, não só produz efeitos de dessocialização como também cria problemas e dificuldades ulteriores, quando se perspectiva o regresso do recluso à comunidade” (RODRIGUES, 2001, P. 45). No entanto, trabalhar genericamente a problemática atual do sistema punitivo, principalmente quando a questão gira em torno do sistema penitenciário, não se mostra a saída mais apropriada. Deve-se identificar a razão de ser de cada instituto que compõe a execução da pena para que, de maneira coesa e racional, a estrutura executória possa ser arquitetada e aprimorada. Desta forma, há que se reconhecer que o instituto da remição de pena busca a absorção, por parte do condenado, de valores atinentes à atividade por ele desenvolvida ao 80 A descrição da ressocialização como ponto de referência para o desenvolvimento da atividade laborativa aqui veiculada, está apresentada de maneira isolada, apenas por conta da especificidade do tema tratado, não estando desvinculada de outras perspectivas finais da aplicação da pena (teoria neoretributiva), perspectivas estas importantíssimas, mas que ultrapassam as linhas da presente pesquisa. longo do cumprimento da pena, valores próprios para finalidade ressocializadora que, por consequência, acarretam a diminuição do seu tempo de cumprimento de pena através dos dias remidos. 6 CONCLUSÃO A remição de pena é um instituto de suma importância da execução da pena privativa de liberdade, pois tem o condão de orientar o preso a uma melhor e mais célere execução da pena, bem como incutir valores ético-sociais que irão corroborar a sua readaptação quando do retorno à sociedade, fazendo com que possa viver longe da seara delitiva. Podem ser aventadas três hipóteses de concessão da remição de pena. A primeira delas é a remição concedida pelo trabalho desenvolvido, de acordo com o que dispõe o texto legal. A segunda é a chamada remição por estudo que leva em consideração o tempo em que o preso esteve ligado à atividade educacional formal, atualmente contemplada na legislação pátria. E, por fim, deve-se levar em consideração a remição ficta, que é aquela onde o preso não realiza atividade laborativa, tampouco educacional, mas está apto a desenvolvê-las, não o fazendo pela inexistência de vagas, ou seja, por uma inércia estatal, não podendo o preso suportar tal inércia. Das diversas hipóteses acima citadas para a concessão da remição de pena, há que se firmar que os dias remidos devem ser computados como pena cumprida. Ou seja, os números de dias remidos devem ser somados ao tempo de pena cumprida até o momento do seu reconhecimento podendo, assim, serem utilizados como cumprimento do requisito objetivo para o requerimento de benefícios ao longo da execução. Faz-se necessário, além de tentar com o debate uma melhor compreensão deste instituto, compreender qual a sua finalidade dentro da execução da pena. Certos de que o trabalho e a educação representam uma das bases da tão buscada ressocialização, a remição de pena não pode, assim, ser considerada tão somente uma forma de diminuir o tempo de cumprimento da pena, mas uma forma de fazer com que valores próprios da ressocialização sejam absorvidos pelo preso cumprindo, desta forma, seu papel ao longo da execução da pena e também quando do retorno do preso à sociedade. Não se pode deixar de lado a problemática que permeia o sistema prisional brasileiro, problemática esta que, muitas vezes, acaba sendo velada atrás dos seus próprios muros, sendo suportada (pela falta de estrutura, morosidade jurisdicional, desordem, etc.), em um primeiro plano, pelos próprios reclusos, mas que acaba por envolver toda a sociedade em um movimento cíclico que a todos atinge, afetando todo o corpo social, por um crescente aumento da criminalidade. REFERÊNCIAS BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 3. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. CHIES, Luiz Antônio Bogo. Prisão – tempo, trabalho e remição: reflexões motivadas pela inconstitucionalidade do artigo 127 da LEP e outros tópicos revisitados. CARVALHO, Salo (coord.). Crítica à execução penal. 2. ed. rev., ampli. E atual. de acordo com a Lei 10.792/03. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. FRAGOSO, Heleno; CATÃO, Yolanda; SUSSEKIND, Elisabeth. Direitos dos presos. Rio de Janeior: Forense, 1980. 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A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Douglas Rocha Paixão81 Eric Linhares Nozawa82 Igor Nogueira Lunardelli Cogo83 Otávio Goes de Andrade84 Vinicius Ferreira Ramalho85 Talita Cristina Fidelis Pereira Biagi86 RESUMO Neste artigo são tecidas reflexões pautadas na realidade jurídica brasileira a partir de uma literatura que abarca autores nacionais e internacionais, os quais amparam nossa discussão em três grandes frentes: a formação do Estado Moderno, que busca definir as origens do Contratualismo; o Estado Democrático de Direito, parte destinada a discorrer sobre o Constitucionalismo; e, por fim, a função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, item centrado na definição de bem jurídico (penalmente relevante) e de suas interfaces com o Direito Penal. PALAVRAS-CHAVE: Estado Democrático de Direito. Direito Penal. Bem Jurídico Penalmente Relevante. ABSTRACT In this article we make reflections on the Brazilian legal reality based on literature that encompasses national and international authors, who guide our discussion on three major fronts: the formation of the Modern State, which seeks to define the origins of Contractualism; the Democratic State of Law, intended to discuss about Constitutionalism; and, finally, the role of the Criminal Law in the Democratic State of Law, an item focused on defining (criminally relevant) juridical property and its interfaces with the Criminal Law. KEYWORDS: Democratic State of Law. Criminal Law. Criminally Relevant Juridical Property. SUMÁRIO 1 NTRODUÇÃO. 2 A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO: CONTRATUALISMO. 3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: CONSTITUCIONALISMO. 4 A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 4.1 O 81 Graduação em Direito PUC/PR / Campus Londrina. [email protected] Graduação em Direito PUC/PR / Campus Londrina. [email protected] 83 Graduação em Direito PUC/PR / Campus Londrina. [email protected] 84 Graduação em Direito PUC/PR / Campus Londrina. [email protected] 85 Graduação em Direito PUC/PR / Campus Londrina. [email protected] 86 Orientadora / PUC/PR / Campus Londrina. [email protected] 82 DIREITO PENAL E OUTRAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS. 4.2 CONCEITO DE BEM JURÍDICO. 4.3 PROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO (PRINCÍPIOS). 4.3.1 FINALIDADE DO DIREITO PENAL. 4.3.2 A SELEÇÃO DOS BENS JURÍDICOS-PENAIS. 4.3.3 PRINCÍPIOS RELACIONADOS COM O BEM JURÍDICO-PENAL. 5 CONCLUSÃO. 1 INTRODUÇÃO Este artigo é fruto de um trabalho de pesquisa realizado no âmbito da disciplina de Direito Penal (Parte Geral I), do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Londrina, e tem por objetivo tecer algumas considerações acerca da função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito. 2 A FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO: CONTRATUALISMO Na base da corrente jusnaturalista, está a ideia de que o homem, por natureza, tende a viver em sociedade. Essa ideia já se encontrava na antiguidade clássica nas palavras de Aristóteles em sua obra intitulada Política: “[...] o homem por natureza é um animal político.” (ARISTÓTELES apud CHAUI, 1998, p. 380). Isto é, por ser sociável, é intrínseca à essência do homem a necessidade do contato com o outro, do qual depende para garantir a sua sobrevivência. Nessa mesma linha, Chauí (1998, p. 380) explica: [...] os humanos são por natureza diferentes dos animais, porque são dotados do logos, isto é, da palavra como fala e pensamento. Por serem dotados da palavra são naturalmente sociais, ou como diz Aristóteles, são animais políticos. [...] Os humanos, falantes e pensantes são seres de comunicação e é essa a causa da vida em comunidade ou da vida política (CHAUI, 1998, p. 380). Dallari (2010, p. 11) também discorre sobre a necessidade da vida em sociedade: [...] a sociedade é um fato natural, determinado pela necessidade que o homem tem da cooperação de seus semelhantes para a consecução dos fins da sua existência. Essa necessidade não é apenas de ordem material, uma vez que, mesmo provido de todos os bens materiais suficientes à sua sobrevivência, o ser humano continua a necessitar do convívio com os semelhantes. Consciente de que necessita da vida social, o homem a deseja e procura favorece- lá [...] (DALLARI, 2010. p.11). Na vida em sociedade, na qual o contato e a comunicação são constantes, cada homem busca meios para garantir sua sobrevivência, sua liberdade, fazendo valer sua vontade, tutelando seus interesses em detrimento dos interesses alheios. Dessa autotutela nascem diversos conflitos, os quais não são passíveis de solução de maneira justa, pois há pessoalidade e parcialidade, em virtude de que cada um quer exercer a sua máxima liberdade. Dessa forma, surge a necessidade de uma figura que consiga solucionar tais conflitos com caráter de impessoalidade, imparcialidade, justiça e pacificação social: o Estado. Nas palavras de Dallari (2010), o termo Estado deriva do latim status que tem significado “estar firme”, significando situação permanente de convivência e ligada à sociedade política. Existem diversas teorias que abordam o surgimento do Estado, assim como suas finalidades. Uma dessas concepções é a de Thomas Hobbes, filósofo inglês que esboçou uma teoria tida como contratualista sobre a formação do Estado no século XVII. Sua teoria está atrelada ao absolutismo, assim, toda sua formulação teórica é embasada na defesa do poder absoluto nas mãos de um soberano (rei), pois Hobbes viveu no período de uma guerra civil na Inglaterra e a guerra dos trinta anos, nas quais observou uma luta de todos contra todos, a disputa pelo poder entre o rei e o povo. A concepção de Hobbes parte do pressuposto da existência de um estado de natureza, no qual todos estão em uma guerra constante. Não havendo formalmente o Estado, a lei que vigora é a vontade do mais forte, e o homem não consegue a sociabilidade, pois ele é ruim por natureza, assim como Hobbes afirmava, “o homem é o lobo do homem”. Imaginemos um estado natural no qual os homens vivam livremente: não há propriedade, tudo é de todos, mas o homem com este espírito ruim resolve cercar um território, outros não admitem, começando o conflito, a guerra. Dallari (2010a) cita um trecho da obra Leviatã de Thomas Hobbes: “[...] os homens são egoístas, luxuriosos, inclinados a agredir os outros e insaciáveis, condenandose, por isso mesmo, a uma vida solitária, pobre, repulsiva, animalesca e breve.” (HOBBES apud DALLARI, 2010, p. 13). Sob constante ameaça de ter seus bens roubados, de morrer, de todos terem um fim trágico, os homens acabam por agredir, antes de serem agredidos, e agem como lobos famintos, demonstrando a falta de algo que os proteja. Nesta situação, a razão do homem fala mais alto e é formulado um pacto, um contrato, por meio do qual estes entregam parte de sua liberdade a um soberano para que, em troca disso o soberano possa lhes garantir a ordem, a segurança, a paz. Para Hobbes, seria uma mútua transferência de direitos, de acordo com Zippelius (1997, p. 162-163): Imaginando, pois, uma comunidade em que falte qualquer poder estatal, deve então nascer no seio dela um profundo anseio de ordem e de paz. A fim de assegurar a proteção contra inimigos externos e internos, e de permitir ao homem gozar em paz do produto do seu esforço e dos frutos da terra é portanto, necessário um poder geral que se coloque acima dos indivíduos (ZIPPELIUS, 1997, p. 162-163). Portanto, para Hobbes, o Estado surge para ser soberano e absoluto em relação aos indivíduos através de um pacto, e o soberano, em troca do poder, utiliza o Estado para tutelar a ordem e a segurança. Surge, dessa forma, uma noção fundamental para delimitar os contornos do Estado: a limitação na liberdade dos indivíduos em detrimento da vida em comunidade. Vale ressaltar que Hobbes defende o Estado nas mãos de um soberano, ou seja, de um poder absoluto nas mãos de um rei, seria um pacto entre os súditos e o rei, a transferência de direitos dos súditos para o soberano em troca da tutela do Estado. O filósofo John Locke, também inglês, desenvolveu posteriormente a Thomas Hobbes outra teoria contratualista sobre o surgimento do Estado. Locke não entende que o homem é ruim por natureza, não é tão rigoroso como Hobbes, além disso, em sua teoria, ele busca a defesa do liberalismo. No estado de natureza os homens são livres, iguais e independentes, todos possuem direito à propriedade, à liberdade e à vida, o único problema no estado de natureza para Locke é a falta de leis, pois cada um é o juiz de sua própria causa, assim, há parcialidade e pessoalidade, e não há tutela para os direitos individuais. Desta forma, é pactuado um contrato por meio do qual os indivíduos entregam parte de sua liberdade na formação do Estado, em troca da tutela do Estado sobre a propriedade, esta é intocável, nem o próprio Estado pode intervir nela, pois a propriedade em Locke é tanto o corpo como o trabalho, e tudo aquilo que é produzido pelo indivíduo. O Estado sendo esta instituição política dirigida, no caso de Hobbes, por um indivíduo com poder absoluto, não causaria grande desigualdade, injustiças maiores do que numa sociedade primária/natural? Com certeza, grandes problemas surgiriam, pois o Rei postula as leis de ordem social, ele mesmo as coloca em prática e ainda julga os indivíduos que as violam, dessa forma, ainda não estaria resolvido todo o caos. Na esteira dessa ideia, Charles de Montesquieu abraça a teoria já suscitada por Aristóteles na antiguidade e esboça uma divisão de poderes no Estado, colocando em cheque o absolutismo defendido por Hobbes. Montesquieu viveu no século XVIII na França, período no qual reinava o absolutismo; esse autor sugere uma divisão no poder concedido ao Estado, limitando-o, estabelecendo o poder legislativo, o executivo e o judiciário, independentes, distintos e harmônicos entre si. O legislativo se incumbe em legislar, ou seja, da criação de leis que a sociedade necessita; o executivo se incumbe em executar estas lei e tomar decisões de administração; e o judiciário se incumbe em aplicar as leis e garantir a justiça. Dessa forma, os poderes se fiscalizam e se controlam mutuamente, é o chamado “sistema de freios e contrapesos”. Se Montesquieu refuta o absolutismo de Hobbes, então, como o Estado pode ser justo e tutelar de forma digna os direitos homens? A resposta a tal questão pode ser encontrada em Jean Jacques Rousseau, conterrâneo de Montesquieu, autor que compartilhou das ideias da Revolução Francesa, e que, como filósofo, também esboçou uma teoria contratualista, postulando um ideal de Estado democrático. Para Rousseau, em estado natural, os homens vivem isolados e livres nas florestas, utilizando de benevolência, sobrevivendo com o que a natureza lhes oferece, a terra é de todos, todos são iguais, a única diferença entre eles é a força física, o homem é bom por natureza, não há maldade nesse estado primário. Entretanto, quando um homem chega em determinado espaço e o cerca criando a propriedade privada, é criada uma desigualdade entre os homens, uns possuem terras e outros não. Com o decorrer do tempo surge a fome, e nota-se que poucos possuem a posse de terras e muitos não possuem nada, assim, os que não possuem, começam a trabalhar para os proprietários em troca de alimentos, esta situação para Rousseau seria um falso contrato, do qual se origina a sociedade civil, pois nele reinaria a desigualdade, a injustiça e a falta de liberdade. Tendo em vista o falso contrato, surge a necessidade de um verdadeiro pacto, isto é, a necessidade de um Estado, um Estado que seja justo, que tutele a igualdade e a liberdade (anseios de Rousseau e da revolução francesa). Nesse pacto não há espaço para o individualismo, todos juntam suas forças e entram, em coletividade, para formação de um Estado, é a democracia direta. Nas palavras de Rousseau é a “vontade geral”, e esta é soberana. Volta-se a um estado natural no qual a igualdade e a liberdade reinam e as propriedades são dividas. O que governa este Estado agora é a vontade geral, pois trata-se de um Estado democrático, a última palavra é do povo e o cidadão legisla para si. Vejamos o que Rousseau (1973, p. 39-40) postula sobre o pacto: [...] esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, e que, por esse mesmo ato ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana e súditos enquanto submetidos as leis do Estado.” ( ROUSSEAU, 1973, p. 39-40). Esboçadas algumas formulações teóricas contratualistas sobre a formação do Estado, passamos a outra etapa de amadurecimento da noção de Estado, o constitucionalismo. 3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: CONSTITUCIONALISMO Com a Revolução Francesa, Americana e Inglesa, inúmeras áreas do conhecimento sofreram drásticas mudanças devido às novas influências e tendências. A nova ideologia emergente trazia um novo olhar, um comportamento diferente e ousado para a época. O iluminismo se preocupou em fazer um intercâmbio intelectual – não apenas no âmbito religioso, mas no político, no social, nas tradições filosóficas -, procurando trazer a razão no lugar do dogmatismo e da fé, dando ênfase ao antropocentrismo ao invés do teocentrismo, ou seja, os homens com pensamentos de rebanho davam lugar a um homem crítico. Com a corrente iluminista, um sentimento e um espírito de liberdade começava a nascer nas concepções da época. As mentes se desvencilharam do controle clerical, os olhos se abriram para um novo mundo que permitia aos homens valorizarem os outros e serem valorizados. O princípio dos direitos e valores humanos nascia e já dava seus primeiros passos. Na esfera política, os iluministas não aceitavam o poder absoluto do Estado e nem suas formas de governo abusivas, pois, para a teoria iluminista isso era inaceitável e havia de mudar. Um dos pensadores mais conhecidos da teoria iluminista, Denis Diderot, com uma frase ofensiva, porém que ilustra exatamente o que almejavam os seguidores da teoria, diz: “Enforcar o último rei, nas tripas do último frade”. O Estado, agora, deveria dar suporte, ao invés de reprimir; e proteger, assim, todos os direitos e valores que haviam surgido e sido expostos em questão. Como vimos, essa luta contra o absolutismo começou a ser travada por alguns dos pensadores conhecidos como contratualistas (Rousseau e Locke), porém, apesar do objetivo desta luta não ser a construção de um Estado Democrático de direito, foram tais teorias indispensáveis para a evolução de um Estado com características democráticas. A partir desse período, a figura do Estado soberano e absoluto dá lugar ao Estado Democrático. O conceito de Estado Democrático de Direito surge com as idéias advindas tanto da Revolução Francesa, como da Americana. Tal conceito diz que a partir da criação do Estado, deve haver algo que limite e controle as ações e poderes do Estado: princípios fundamentais e democráticos. Diferentemente das outras tentativas de criação de um Estado (Liberal, Social), o Estado Democrático enraíza suas bases no poder soberano do povo e na legalidade de seus atos, não permitindo, assim, que as garantias constitucionais e fundamentais sejam feridas. O aperfeiçoamento desta idéia se dá até os dias atuais, mesmo que esta tenha seu começo no século XVIII, e suas raízes na Grécia antiga, período no qual o conceito de democracia (demo kratos) dava sentido ao poder do povo. Assim, como as raízes da teoria do surgimento do Estado Democrático, é necessário também que se discorra e se respondam outras questões que contribuíram para a criação dele. Alguns movimentos político-sociais foram essenciais desde o pensamento até a sua concretização. Dentre os quais estão a Revolução Inglesa, que teve início com a Revolução Puritana (1640), e que foi marcada pela renúncia de muitas prerrogativas do poder monárquico e a instalação de um sistema parlamentarista. Parlamento que, futuramente, em 1689, criaria um documento chamando de Bill of Rights (Declaração de Direitos). Documento este que versava sobre os direitos naturais do indivíduo, e assegurava defesa sobre da liberdade, da vida e da propriedade privada pelo Estado. Tais agitações políticas repercutiram nas colônias inglesas situadas na América do Norte, sendo que estas já estavam se precavendo de uma possível tomada do poder por um absolutista. Na Revolução Americana, outro documento foi de suma importância, assim como o Bill of Rights: a Declaração de Independência das treze colônias inglesas. Esse documento foi o ponto de partida para a edificação de um Estado pautado no direito e na supremacia do povo, tendo estes, segundo a Declaração, poderes de alteração e abolição da forma de governo, caso essa se torne abusiva. As consequências das revoluções francesa, inglesa e americana tomaram proporções não imagináveis. Os ideais de liberdade, de direitos e valores da pessoa humana influenciaram tanto nas legislações, quanto na elaboração de constituições. Tais movimentos foram de tamanha importância que formaram as bases de sistemas políticos: a responsabilização do Estado pelo social (welfare-state), o Socialismo, o Comunismo, etc. Tendo em vista os aspectos acima arrolados, o Estado Democrático de Direito seria a junção das teorias de Estado Liberal e Estado Social, adotando, portanto, de certa forma, um sistema de freios e contrapesos para que não haja abuso de poder ou e falha na administração pública, e onde se observe a intervenção do Estado nas relações tanto jurídicas quanto privadas. Contudo, apesar de este ser um modelo excelente para a adoção de administração de um Estado, há muitas críticas com relação a este modelo e à maturidade da população brasileira, já que este é o modelo adotado no Brasil. Muitas incongruências são observadas na teoria do sistema e na prática. A defesa da igualdade nas relações prevista no ideal de um Estado Social é totalmente desrespeitada, tendo em vista que, no Brasil, há um certo favorecimento para aqueles que detêm algum tipo de poder, seja político ou econômico. A Constituição brasileira de 1988 teve sua inspiração e adotou os princípios defendidos pelo Iluminismo (liberdade, igualdade e fraternidade), motivo pelo qual é também conhecida por Constituição Cidadã. Por conseguinte, pelo texto constitucional ser norma geral norteadora do direito brasileiro, este influenciou e influenciará todos os demais textos da lei no ordenamento jurídico. Estas afirmações podem ser observadas claramente no artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [..] (BRASIL, Constituição, 1988)”. Tendo caracterizado a formação do Estado Democrático de Direito, passemos agora ao núcleo deste trabalho, que é a discussão sobre a função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, item centrado na definição de bem jurídico (penalmente relevante) e de suas interfaces com o Direito Penal. 4 A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 4.1 O DIREITO PENAL E OUTRAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS Como é estudado na sociologia, as instituições sociais são um conjunto de regras padronizadas, reconhecidas e aceitas pela sociedade, uma vez que possui grande valor social. As instituições não são independentes, vale dizer, elas devem ter uma interdependência mútua. Juntas, elas são uma forma de manter a coesão social, pacificar a sociedade de algum modo. Como exemplo de instituições, temos aquelas que estão presentes em quase todo tipo de sociedade, são elas: a igreja, a escola e a família. Elas figuram como meios informais de controle social, uma forma de manter a sociedade coesa e evitar as patologias sociais. Revelando-se insuficientes tais instituições, o Direito surge como uma forma de ajudar neste pacificação social. O Direito Penal é tido como o ramo mais severo do Direito, justamente por possuir penas como as privativas de liberdade, onde o condenado tem um de seus bens jurídicos mais importantes suspenso. Posto isto, é dito que o Direito Penal só deve interferir quando atendida sua função primordial, sendo esta a de proteger os bens jurídicos mais relevantes, dentro de um quadro axiológico encontrado em cada sociedade. 4.2 CONCEITO DE BEM JURÍDICO O bem jurídico tem uma grande importância dentro do Direito Penal. Podemos dizer que ele, por si só, pode ser qualquer coisa que tenha um valor atribuído pela sociedade, como um livro, uma caneta, coisas que podem ser comercializadas, fazendo com que sejam classificados como bens jurídicos materiais. Bens também podem ser aqueles que não são comercializados, como a honra, dignidade, propriedade intelectual, que são classificados como bens jurídicos imateriais. Muitos chegam a pensar e defendem a tese de que a classificação dos bens jurídicos e a forma como estes bens se tornam dignos de uma tutela especial seja feita de forma antropocêntrica, ou seja, o homem e somente ele seria o ponto central de toda a discussão. Não existiria nenhum outro requisito se não as vontades e as necessidades do homem. Mas o que gera grande polêmica é a questão de se todo o indivíduo tem a mesma necessidade, ou precisa da mesma proteção de certo bem. Quem é apto e possui o papel de julgar se o bem deve ou não ser considerado como um bem jurídico penal é o Estado, por meio de seus representantes. Nem todos os bens serão necessariamente tutelados pelo Direito Penal, apenas aqueles considerados mais relevantes para a sociedade. Eles serão selecionados de forma rigorosa, criteriosa, pois não é possível que a tutela dos bens seja feita da mesma maneira para todos eles, alguns necessitam de uma tutela especial por serem vistos como bens mais importantes para o convívio social. O bem jurídico é sempre algo de grande importância para o ordenamento jurídico, e para a sociedade, situado em um plano de ordenação axiológica baseada na vida social, assim como postula Toledo (1994, p. 6): “Bens jurídicos são valores ético-socias que o direito seleciona com objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”. Roxin (2006, 2009), um dos mais influentes doutrinadores do Direito Penal alemão, vê os bens jurídicos penais como imprescindíveis para que possa haver um convívio social, uma convivência em comum. Ele defende a concepção de que o bem jurídico tem capacidade de restringir o poder de punição que o Estado possui, o poder punitivo do Estado deve ser limitado visando o princípio da subsidiariedade, que alega que a intervenção do Direito Penal só se justifica quando fracassam as demais formas protetoras do bem jurídico previstas em outros ramos do Direito. Claus Roxin também defende que dentre as finalidades do bem jurídico deve haver a manutenção do sistema. Ao seu ver, os bens jurídicos poderiam ser definidos como pressupostos necessários para que, além de possível, fosse melhor a vida e a convivência entre os seres humanos. Os bens jurídicos não precisariam ser necessariamente individuais, poderiam ser bens jurídicos se fossem voltados para o cidadão, como podemos ver a seguir: […] podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos. A diferenciação entre realidades e finalidades indica aqui que os bens jurídicos não necessariamente são fixados ao legislador com anterioridade, como é o caso, por exemplo, da vida humana, mas que eles também possam ser criados por ele, como é caso das pretensões no âmbito do Direito Tributário (ROXIN, 2006, p. 19). Numa via oposta, está o estudioso alemão Günter Jakobs, um dos autores que não admitem a utilidade do conceito de bem jurídico como mecanismo de limitação do poder legislativo Estatal na esfera penal. Para esse teórico do Direito, a legitimidade do Direito Penal se origina da aprovação de suas leis em consonância com o que está constitucionalmente posto: “não existe um conteúdo genuíno das normas penais; os conteúdos possíveis orientam-se segundo o contexto da regulação em questão. Ao contexto da regulação pertencem as realidades da vida social, bem como as normas, em especial as de caráter constitucional (JAKOBS, 2009, p. 61, apud ARÊDES, 2010, p. 116)”. Ainda nesta perspectiva, o Direito Penal não teria a função de proteger o bem jurídico penal, já que a maioria dos bens tutelados penalmente também pode ser afetada por eventos naturais e por processos inevitáveis, sem que por isso haja interferência do Direito Penal: [...] o direito penal não tem a função de garantir a estabilidade dos bens mencionados em todo e qualquer caso, mas apenas no caso de agressões de determinado tipo. [...] não é toda e qualquer modificação prejudicial de um bem enquanto fato positivamente valorado que interessa ao Direito Penal; pelo contrário, a modificação deve se dirigir contra a própria valoração positiva (JAKOBS, 2009, p. 62-63, apud ARÊDES, 2010, p. 116). Arêdes (2010, p. 116) ressalta que o autor também critica a doutrina que procura na definição de bem jurídico o critério de legitimação das normas penais por não haver definição no conteúdo de bem jurídico, posto que um determinado bem converte-se em bem jurídico justamente ao gozar de proteção jurídica, sendo o bem jurídico, nessa perspectiva, positivamente determinado, englobando “tudo aquilo que, aos olhos da lei, enquanto condição da vida saudável da sociedade, é valioso para esta última” (JAKOBS, 2008, p. 68, apud ARÊDES, 2010, p. 116). O estudioso, descreve Arêdes, não aceita a tese segundo a qual o bem jurídico “deve constituir um ‘interesse vital’ antes mesmo de seu reconhecimento”, haja vista que, segundo sua concepção, é “a proteção jurídica que eleva o interesse vital à categoria de bem jurídico” (JAKOBS, 2008, p. 69, apud ARÊDES, 2010, p. 116). Some-se a isso o fato de que: [...] a teoria do bem jurídico pode até conceber o bem em sua relação com o titular, mas não demonstrar a necessidade de assegurar o bem também sob o aspecto penal [...] a teoria do bem jurídico não pode determinar quais unidades funcionais podem ser elevadas à categoria de bens jurídicos em virtude de sua relevância social, como tampouco pode fundamentar que a proteção das normas deve recair sempre sobre esses bens [...] somente o interesse público na preservação de um bem é que o transforma em bem jurídico, e o interesse público nem sempre concerne apenas à preservação de bens (JAKOBS, 2009, p. 75, apud ARÊDES, 2010, p. 116). Tendo situado algumas noções básicas acerca do bem jurídico e do bem jurídico penalmente relevante em diferentes perspectivas teóricas, na próxima parte nos deteremos em algumas reflexões sobre a realidade jurídica brasileira acerca da função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito. 4.3 PROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO (PRINCÍPIOS) Como já visto anteriormente, os bens jurídico penais são aqueles bens mais importantes, vale dizer, os bens essenciais para a convivência em sociedade. É sobre a tutela desses bens pelo Direito Penal que discorreremos agora. 4.3.1 FINALIDADE DO DIREITO PENAL A finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes, ou, nas palavras de Prado (1997, p. 27), “o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade”. Todo bem extremamente valioso deve ser tutelado pelo Direito Penal, tendo em vista que os outros ramos do Direito são insuficientes. Mas a pergunta que vem à mente do leitor é justamente sobre esse valor dado a um determinado bem jurídico. Por que um bem jurídico é considerado mais valioso que um outro qualquer? Quem faz essa distinção? Pois bem, essa distinção é meramente política, vale dizer, o legislador é incumbido de fazer essa distinção e atribui diferentes valores aos bens jurídicos. Diz-se que o critério de seleção é político porque a sociedade, dia após dia, evolui, está em constante transformação. Bens jurídicos que no passado eram considerados de fundamental importância, hoje, já não possuem esse valor. Temos como exemplo o crime de adultério, antes considerado crime, hoje não mais. Esse fenômeno chama-se “abolitio criminis”, e acontece quando um tipo penal é descriminalizado. Em decorrência do advento da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, em seu artigo 5º, foi revogado o artigo 240 do Código Penal, no qual encontrava-se tipificado o crime de adultério. Podemos ver com nitidez essa evolução social quando analisamos a mulher que viveu na década de 40 com a mulher que vive hodiernamente. Hoje, a mulher divide funções com o marido, ajuda na manutenção do lar, possui direitos políticos iguais aos dos homens, etc. Olhando deste modo, é possível ver uma evolução gritante em nossa sociedade. Por isso, dizemos que o Direito Penal deve estar em constante atualização, sempre analisando as necessidades sociais. Quando o Direito Penal não vê mais necessidade de tutelar um determinado bem jurídico, em virtude desta mudança social, ele se afasta e permite que os demais ramos do Direito assumam a responsabilidade de protegê-los. Este pensamento sobre a tutela do bem jurídico como finalidade primordial do Direito Penal veio com Birnbaum, em 1834. Apesar desse raciocínio ser adotado atualmente, há uma parte da doutrina que contesta, a exemplo de Gunther Jakobs, que afirma que “o Direito Penal não atende a essa finalidade de proteção de bens jurídicos, pois, quando é aplicado, o bem jurídico que teria de ser por ele protegido já foi efetivamente atacado”. (GRECO, 2009, p. 5). Como dito anteriormente, o Direito Penal deve tutelar os bens jurídicos essenciais ao convívio em sociedade, sendo essa sua finalidade. Mas como é feita essa seleção dos bens jurídicos? Essa é a pergunta que pretendemos responder a seguir. 4.3.2 A SELEÇÃO DOS BENS JURÍDICOS-PENAIS A seleção dos bens jurídicos a serem tutelados é feita pelo legislador. Embora a escolha dos bens fundamentais seja bastante subjetiva, o legislador deve ter como alicerce e primeira fonte a Constituição Federal. É nela que se encontram os valores supra de nossa sociedade, não podendo o Direito Penal deixar a Lei Maior de lado. Muito pelo contrário, ela deve servir de norte para o legislador no momento de sua seleção. Além disso, a Constituição serve como um limitador para o legislador, impedindo que este viole determinados direitos fundamentais, ou nas palavras de Copetti (2000, p 137-138): [...] é nos meandros da Constituição Federal, documento onde estão plasmados os princípios fundamentais de nosso Estado, que deve transitar o legislador penal para definir legislativamente os delitos, se não quer violar a coerência de todo o sistema político-jurídico, pois é inconcebível compreender-se o direito penal, manifestação estatal mais violenta e repressora do Estado, distanciado dos pressupostos éticos, sociais, econômicos e políticos constituintes de nossa sociedade” (COPETTI, 2000, p. 137-138). Apesar de existirem esses princípios constitucionais, que devem servir de norte ao legislador, o Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição Federal, vem fazendo reinterpretações de nossa Carta Magna. Isso ocorre porque a nossa Constituição é dogmática, vale dizer, é baseada em princípios decorrentes da época em que a mesma foi elaborada. Com o passar dos anos, a sociedade vai se transformando, fazendo com o que o STF tenha que interpretar de um modo diferente o que há na Constituição. Temos como um exemplo muito claro disso o julgamento favorável aos casais homossexuais, dando a eles o direito a união estável, antes somente possível a casais heterossexuais. O STF teve que reinterpretar uma norma que não mais condizia com a sociedade atual, visto que a Constituição foi feita em 1988, e nós estamos em 2012. De lá para cá, muita coisa mudou. 4.3.3 PRINCÍPIOS RELACIONADOS COM O BEM JURÍDICO-PENAL Temos dois princípios no Direito Penal que exemplificam bem tudo que já foi dito, são eles: o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos e o princípio da intervenção mínima e fragmentariedade. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos assevera que a função principal do Direito Penal é a de proteger bens jurídicos essenciais ao indivíduo e a comunidade dentro de um quadro axiológico constitucional, ou decorrente da concepção de um Estado Democrático de Direito. Já o princípio da intervenção mínima e fragmentariedade diz que o Direito Penal deve figurar como “ultima ratio”, ou seja, a última razão de ser. Foi criada uma ideia de que o Direito Penal resolve todos os males da vida e, portanto, o mesmo é utilizado para resolver qualquer tipo de problema. Como afirma Robaldo (2012), “o excesso de leis penais é prejudicial basicamente por dois motivos: fere o princípio do direito penal da última ‘ratio’ e banaliza o próprio direito penal e com isso, o enfraquece, tirando-lhe a credibilidade”. Sendo assim, o Direito Penal deve ter esse caráter subsidiário, vale dizer, deve servir de apoio quando os outros ramos não derem conta de resolver a situação. Ressaltando o caráter subsidiário do Direito Penal, Roxin afirma que: a proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais, etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio’ da política social e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos (ROXIN apud GRECO, 2009, p. 50). Como vimos, a lei penal só deve intervir quando for absolutamente necessária para a comunidade, e na medida que for capaz de ter eficácia. É justamente sobre a eficácia que recaem as discussões hoje sobre a intervenção do Direito Penal em situações onde outros ramos do Direito poderiam resolver. É a chamada banalização do Direito Penal, tema candente e ainda carente de debate para a nossa sociedade. 5 CONCLUSÃO Como procuramos deixar patente ao longo de nossa explanação, existem vários aspectos históricos e sociais que incidem na maneira como do Direito Penal é encarado no Brasil. De forma panorâmica, demonstramos como o contratualismo e o constitucionalismo delinearam o Estado Democrático de Direito no qual vivemos atualmente, assim como definimos o que se entende por bem jurídico penalmente relevante para o Direito Penal. O Direito Penal pode ser utilizado como forma de controle social através da imposição de penas privativas de liberdade que, em abstrato, podem intimidar os cidadãos. Contudo, a utilização deste ramo do Direito como meio de controle social não tem mostrado eficácia na realidade, quando outros meios de controle tem se mostrado mais eficazes, como a religião, a família, e até mesmo a educação. E ainda, a utilização do Direito Penal como meio de controle social podem ainda reduzi-lo a instrumento simbólico, sem qualquer amparo constitucional. Desta forma, no Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve ser utilizado em ultima ratio, quando nenhum outro meio de controle for eficaz, e sempre dirigido a tutela de bens jurídicos constitucionalmente consagrados. REFERÊNCIAS ARÊDES, Sirlene Nunes. O conceito material de bem jurídico penal. PHRONESIS: Revista do Curso de Direito da FEAD • no 6 • Janeiro/Dezembro de 2010. Disponível em: <revista.fead.br/index.php/dir/article/download/277/215>. Acesso: 12 ago. 2012. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 7. ed. São Paulo: Ática, 1998. COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 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A RECUPERAÇÃO JUDICIAL DAS ASSOCIAÇÕES - PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO COM FINS NÃO ECONÔMICO – UMA ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE JURÍDICA Henrique Afonso Pipolo87 RESUMO O presente artigo analisa, a partir das noções básicas da Teoria da Empresa e sua influência na Lei 11.101/2005 (Lei de Falências e Recuperação das Empresas), os efetivos sujeitos autorizados a utilizar e requerer a Recuperação Judicial. Estuda o empresário e sociedade empresária como únicos sujeitos legalmente contemplados e passíveis de utilização do benefício da Recuperação. Enfatiza, no entanto, a necessidade de uma reflexão para que algumas pessoas jurídicas não empresárias, como as associações que desenvolvem atividades iguais a dos empresários (como por exemplo hospitais beneficentes e escolas) e com relevante função social, possam manejar e requerer a recuperação judicial. Analisa algumas decisões contrárias em que as associações tiveram o pleito indeferido pelo Judiciário e uma possível interpretação com base principiológica para viabilizar a ampliação dos sujeitos autorizados a pleitear o benefício legal. Ao final, apresenta conclusões sobre o tema, notadamente com uma proposta para alteração legislativa para autorizar, em determinadas situações, a recuperação de associações que exercem atividade de extrema relevância para a comunidade. PALAVRAS-CHAVE: Recuperação Judicial. Pessoas jurídicas. Associações. Restrições. Interpretação. Princípios. ABSTRACT This article analyzes, from the basics of the theory of the firm and its influence in Law 11,101 / 2005 (Law on Bankruptcy and Reorganization of Enterprises), the actual subject authorized to use and require the Judicial Reorganization. Studies the entrepreneur and entrepreneurial company as unique individuals legally liable for the use contemplated and the benefit of recovery. Emphasizes, however, the need for a reflection to some entities not entrepreneurs, as the associations that develop equal activities of entrepreneurs (eg charitable hospitals and schools) and relevant social function can handle and apply for bankruptcy protection . Examines some contrary decisions in which the associations had the lawsuit dismissed by the judiciary and a possible interpretation with principled basis to enable the expansion of the subjects allowed to plead the legal benefit. At the end, presents conclusions on the subject, notably a proposal for legislative change to permit, in certain situations, the recovery of associations engaged activity of extreme relevance to the community. KEYWORDS: Reorganization. Corporations. Associations. Restrictions. Interpretation. Principles. SUMÁRIO 87 Professor de Direito Empresarial da UniFil. Professor da Universidade Estadual de Londrina. Doutorando em Direito Comercial – PUC/SP 1 INTRODUÇÃO. 2 NOÇÕES PROPEDÊUTICAS. 2.1 EMPRESÁRIO E EMPRESA: CARACTERIZAÇÃO. 2.2 ASSOCIAÇÕES: UMA REFLEXÃO SOBRE SUAS ATIVIDADES. 2.3 ASSOCIAÇÕES COM ATIVIDADES EQUIPARADAS A DE EMPRESÁRIO. 3 RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EMPRESA: OBJETIVOS E SUJEITO ATIVO PARA PEDIDO E PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 3.1 O PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL POR ASSOCIAÇÕES E O POSICIONAMENTO JUDICIAL. 3.2 A INTERPRETAÇÃO DO ART. 1º DA LEI 11.101/2005 À LUZ DO PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. 3.3 AS ASSOCIAÇÕES COMO BENEFICIÁRIAS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL: UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO OU DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. 4. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO O art. 1º da Lei n. 11.101/200588 elenca o empresário e a sociedade empresária como os sujeitos que podem ser contemplados pela falência e recuperação das empresas. Em que pese o aspecto restritivo da Lei, associações vêm requerendo recuperação judicial, notadamente aquelas que exercem atividade semelhante a dos empresários ou sociedades empresárias. Contudo, as petições iniciais invariavelmente são indeferidas liminarmente, ante a interpretação literal do texto de lei, ou seja, de acordo com referidas decisões, as associações não podem manejar o instituto da recuperação judicial. O presente estudo tem por objetivo fazer uma análise de tal situação, de forma a verificar eventual interpretação mais abrangente, notadamente em relação a finalidade da lei em buscar a preservação da empresa (esta como atividade econômica organizada), fazendo um paralelo com determinadas atividades econômicas exercidas por associações, de forma a analisar a possibilidade ou não de as referidas pessoas jurídicas serem contempladas com o benefício da recuperação judicial. 2 NOÇÕES PROPEDÊUTICAS As reflexões que serão desenvolvidas neste estudo tornam indispensável o 88 Art. 1o Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor. conhecimento sobre determinados conceitos de direito empresarial, sendo que abordar noções propedêuticas sobre empresário, sociedade empresária, empresas, atividades econômicas organizadas, associações e suas atividades é medida que se impõe. 2.1 EMPRESÁRIO E EMPRESA: CARACTERIZAÇÃO O conceito de empresário e empresa tem como base os fundamentos da Teoria da Empresa (Sistema Italiano), recepcionados pelo Código Civil de 2002 em seu Livro II. Referida Teoria substituiu a Teoria dos Atos de Comércio (Sistema Francês) que sustentava o Código Comercial de 1850. Nos dizeres de Ricardo Negrão, “com a adoção da Teoria da Empresa, grandemente desenvolvida pelo jurista italiano Alberto Asquini, o Código Civil brasileiro optou por introduzir o sistema italiano para caracterização dos atos empresariais”.89 De fato, o art. 96690 do Código Civil pátrio apresenta os elementos necessários para caracterização do empresário. Referido dispositivo estabelece que empresário “é quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, sendo que cada termo da definição apresenta um sentido próprio”91. Há que se ressaltar que não há na Lei o conceito de empresa de forma expressa, sendo que tal pode ser extraído da definição de empresário, ou seja, a empresa é caracterizada como a “atividade econômica organizada que será desenvolvida pelo empresário para a produção ou circulação de bens ou de serviços”. Empresário, nos termos legais, portanto, é o sujeito e a empresa é o objeto da relação empresária. Para Fábio Ulhoa Coelho, “se o empresário é o exercente profissional de uma atividade econômica organizada, então empresa é uma atividade”92. E continua dizendo que “a empresa, enquanto atividade, não se confunde com o sujeito de direito que a explora, o 89 NEGRÃO,Ricardo, in Direito Empresarial – Estudo Unificado, São Paulo, Saraiva, 2008, p. 3. Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. 91 Sobre o tema, Marcelo M. Bertoldi ensina que “Ao decompor tal conceito legal, temos que: a) empresário deve desenvolver seu oficio mediante uma atividade, um desenrolar de atos praticados repetidas vezes, e não através de um único ato isolado que não se prolonga no tempo; b) esta atividade deve ser de natureza econômica, ou seja, deve ser criadora de riqueza, seja mediante a produção de bens ou serviços; c) atividade deve ser organizada, ou seja, o empresário deverá utilizar-se de forma planejada dos meios de produção (bens naturais, capital, trabalho e tecnologia), com o objetivo de buscar o lucro; d) deve estar presente também a profissionalidade, que consiste na habitualidade da atividade e em seu intento de lucro; e e) a atividade deve ser voltada para a produção ou circulação de bens ou serviços destinados a abastecer o mercado, não sendo considerado empresário aquele que desenvolve uma determinada atividade para seu próprio consumo”, in Curso Avançado de Direito Comercial, 4ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 58/59. 92 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial,14 ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva, 2003, p. 12. 90 empresário”93. Conclui-se, portanto, que o empresário será uma pessoa física (firma individual) ou jurídica (sociedade empresária ou Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI), pois tais pessoas é que desenvolverão a empresa, ou seja, a atividade econômica organizada. Além de outros elementos que caracterizam o empresário, como por exemplo a habitualidade das atividades, há que se ressaltar que a atividade econômica desenvolvida pelo empresário tem como objetivo maior a obtenção do lucro fim, assim considerado como a possibilidade de distribuição aos sócios de sociedade empresária ou titular de EIRELI ou firma individual. Este é um elemento que não se encontra nas demais pessoas jurídicas elencadas no Art. 44 do Código Civil, de forma que não se pode caracterizar como empresário uma associação, fundação, organizações religiosas ou partidos políticos, pois as atividades por elas exercidas possuem o lucro como meio e não o fim, faltando um dos elementos da definição legal contemplada no art. 966 do Código Civil. 2.2 ASSOCIAÇÕES: UMA REFLEXÃO SOBRE SUAS ATIVIDADES. As associações são caracterizadas como pessoas jurídicas de direito privado e previstas no art. 44, inciso I do Código Civil, sendo que sua constituição é regrada pelo art. 5394 do mesmo Código. Extraí-se, portanto, que “no âmbito do Direito Civil brasileiro, geralmente, o termo associação é reservado para as entidades sem fins econômicos”95. As associações são caracterizadas pela união de pessoas para exercício de atividade não econômica. Tal regra, no entanto, não pode ser vista de forma absoluta, pois as associações podem desenvolver atividades econômicas, mas o lucro eventualmente obtido é considerado como lucro meio, de forma que tal recurso é utilizado para obtenção dos fins para os quais a associação foi criada, ou seja, filantrópicos, assistenciais, culturais, lazer, esporte, dentre outros. Vale dizer, o lucro é meio e não fim. Este é perseguido pelas sociedades pois o objetivo dos sócios é participar dos referidos lucros. Para Carlos Roberto Gonçalves, “a redação do retrotranscrito art. 53, ao referir-se a “fins não econômicos”, é imprópria, pois toda 93 Ob. Cit., p. 12. Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. 95 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral – 10ª ed., São Paulo, Atlas, 2010, Coleção Direito Civil, V.1, p. 261. 94 e qualquer associação pode exercer ou participar de atividades econômicas. O que deve ser vedado é que essas atividades tenham finalidade lucrativa”.96 Mesmo considerando as características das associações como sendo entidades com fins não econômicos, há que se ressaltar que algumas desenvolvem atividades que, em sua essência, em nada diferem das exercidas por empresários ou sociedades empresárias. É o caso, por exemplo, de um hospital ou instituições de ensino superior. Muitas vezes, constatase que essas espécies de associações acabam por desenvolver atividades econômicas em verdadeira concorrência com as mesmas características daquelas estampadas no conceito de empresário. Tais situações é que motivaram a reflexão do presente estudo, de forma a verificar a possibilidade, ou não, de equiparar as referidas associações com as atividades do empresário (empresa), atribuindo-lhes, eventualmente, os benefícios que estes possuem quando se trata de recuperação judicial. 2.3 ASSOCIAÇÕES E O EXERCÍCIO DE ATIVIDADES EQUIPARADAS A DE EMPRESÁRIO. Conforme mencionado no item anterior, há uma grande parcela de associações que possuem, como atividade principal, a produção ou circulação de bens ou de serviços e que vem, efetivamente, concorrendo com as atividades desenvolvidas por sociedades empresárias, em verdadeira competição.97 O Marco Civil do Terceiro Setor98 e as novas qualificações, consoante as Leis das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP (Lei n. 9.790/99) e Organização Social – OS (Lei n. 9.637/98) são provas eficazes. Em tal ambiente, há que se ressaltar a profissionalização das atividades das referidas associações, o intuito de receita, o pagamento de tributos, a competição e busca de novas fontes de recurso. 96 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral, 10ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 235. 97 Para Simone de Castro Tavares Coelho , entende-se como competição a situação em que o mesmo tipo de serviço é oferecido por organizações em diferentes setores, que disputam não apenas a clientela como principalmente os recursos existentes. Terceiro Setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos – 2ª Ed.São Paulo, Editora Senac, 2002, p. 40 98 A expressão Terceiro Setor foi “trazida do inglês (third sector) e faz parte do vocabulário sociológico corrente nos Estados Unidos. (...) costuma ser usada paralelamente a outras expressões, entre as quais (...) ´organizações sem fins lucrativos´ (non profit organizations), significando um tipo de instituição cujos benefícios financeiros não podem ser distribuídos entre seus diretores e associados;”Rubem César Fernandes, “O que é o Terceiro Setor?” in IOSCHPE, Evelyn Berg. 3º Setor: desenvolvimento social sustentado. São Paulo: GIFE, 1997. Pág. 25. Destaca-se a busca a utilização, pelo Terceiro Setor, de técnicas eficientes de planejamento de suas ações de curto e longo prazo, de captação de recursos, de administração de suas receitas e controle de suas despesas e a divulgação de sua imagem. No mesmo sentido, “...o terceiro setor incorpora critérios da economia de mercado do capitalismo para a busca de qualidade e eficácia de sua ações, atua segundo estratégias de marketing e utiliza a mídia para divulgar suas ações e desenvolver uma cultura política favorável ao trabalho voluntário nesses projetos.”99 Portanto, na prática, várias associações apresentam organização semelhante a de empresas, ou seja, desempenham atividade econômica (no entanto objetivando lucro meio), organizam fatores de produção (contratam mão-de-obra, gerenciam insumos, tecnologia, capital), e executam a produção ou circulação de bens ou de serviços. Mas, juridicamente, continuam submetidas a regulamentação jurídica de associações pois não possuem todos os atributos especificados no art. 966 do Código Civil para receberem a qualificação de empresário. É o caso de vários hospitais mantidos por Igrejas (Santas Casas, Evangélicos) que, em que pese exercerem atividade econômica e social com os mesmos contornos e características de um hospital particular (que revestidos da forma societária empresária), juridicamente possuem natureza de associação, submetendo-se ao regime jurídico próprio de tais entidades. Além das referidas atividades econômicas, as mencionadas associações também possuem grande relevância para a comunidade, ante sua efetiva atuação social. Ademais, constata-se em tais associações uma aproximação do mercado e desenvolvimento de atividades-meio tipicamente empresariais, sem se desvincular do relevante papel social, como já explicitado no parágrafo anterior. 3 RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EMPRESA: OBJETIVOS E SUJEITO ATIVO PARA O PEDIDO E PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO. A lei n. 11.101/2005 inseriu no ordenamento jurídico pátrio a recuperação da empresa com alguns objetivos bem definidos, notadamente a preservação da atividade econômica organizada (empresa), conforme princípios que estão estampados no art. 47100. 99 GOHN, Maria da Glória. Educação Não-Formal e Cultura Política. Questões da nossa época. São Paulo: Cortez, 1999. Pág. 19. 100 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômicofinanceira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à Inicialmente, não há como desvincular a recuperação judicial do objetivo amplo e geral de viabilizar a superação de uma crise econômico-financeira que venha atingir o devedor rotulado como empresário. Além de tal objetivo amplo, deve-se anotar os objetivos mais específicos, como a manutenção da fonte produtora, manutenção do empregos e também preservar os interesses dos credores. Mas, como bem observa Tomazette, “o primeiro objetivo específico da recuperação judicial é a manutenção da fonte produtora, isto é, a manutenção da empresa (atividade) em funcionamento”.101 Dentre os objetivos mencionados, a manutenção da fonte produtora (empresa) é o mais relevante. Tomazette afirma que tal objetivo “prevalece sobre os demais, é ele que deve pautar todas as medidas da recuperação judicial. A manutenção da fonte produtora é essencial, os demais objetivos específicos são secundários”.102 Isto porque a empresa é caracterizada como um fenômeno social. Como bem ressalta Ecio Perin Junior, “a empresa deve ser vista, a um só tempo, como uma conjunção de fatores econômicos e sociais, de forma a preservar não só interesses privados como também sociais, de todos aqueles que de alguma forma interferem ou sofrem os efeitos em relação a sua existência”.103 Desta forma, o objetivo da proteção da empresa, entendida como fonte produtora, é que possui relevância para a Lei. Com fundamento em tais considerações é que também devemos analisar os beneficiários da lei. Ela estabeleceu em seu art. 1º que somente os empresários e sociedades empresárias (requisito pessoal) podem ser contemplados pela recuperação. Em uma análise e interpretação mais corriqueira, se o objetivo da lei é proteger a empresa (fonte produtora) e o empresário é quem exerce a referida atividade que gera a referida fonte, nada mais elementar do que a lei delimitar, como sujeito ativo da recuperação judicial, empresários e algumas sociedades empresárias. Ainda, para que o instituto da recuperação possa atingir suas finalidades, há que ser a empresa viável104. atividade econômica. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial, volume 3: falência e recuperação de empresas, São Paulo, Atlas, 2011, p. 45. 102 TOMAZZETTE, Marlon. Ob. Cit. p. 45. 103 PERIN JUNIOR, Ecio. Preservação da empresa na Lei de Falências. São Paulo, Saraiva, 2009, p. 19/20 104 Além da questão suscitada, ou seja, a legitimidade ativa para requerer a recuperação, há que se verificar a viabilidade da empresa que se pretende recuperar. Fábio Ulhoa Coelho assim se posiciona: Nem toda empresa merece ou deve ser recuperada. A reorganização de atividades econômicas é custosa. Curso de direito comercial – Vol. 3: direito de empresa, 12 ed., São Paulo, Saraiva, 2011, p. 404. 101 Como conseqüência, se não restar comprovada a qualidade pessoal (empresário) a lei não poderá ser aplicada ao caso concreto e se a empresa não for viável, deve ser objeto de falência. Além dos requisitos estabelecidos no art. 48 e incisos, o art. 51, inciso V, obriga o devedor a apresentar, com a inicial, a certidão de regularidade no Registro Público de Empresas, o ato constitutivo atualizado e as atas de nomeação dos atuais administradores. Desta forma, há uma clara direção do legislador ao estabelecer apenas os empresários e sociedades empresárias como aptos a requerer o benefício da recuperação judicial, vale dizer, somente os devedores que preencham os requisitos legais é que podem obter o benefício da recuperação. Tal entendimento é consolidado na doutrina brasileira. De fato, Waldo Fazzio Junior afirma que a falência incide tanto sobre o empresário ou sociedade empresária regular, como também sobre o empresário de fato, mas a recuperação só alcança os que exercem a empresa conforme a lei. A recuperação é instituto decorrente de favor legal conferido pelo órgão judiciário aos que preenchem os requisitos postos no direito positivo.105 No mesmo sentido, Ricardo Negrão é categórico ao afirmar que “a Lei de Recuperação e Falência aplica-se somente a quem exerce a empresa, isto é, ao empresário individual e à sociedade empresária”.106 Ainda, de forma mais específica e enfática, há doutrinadores que, de plano, afastam a incidência da recuperação judicial àqueles não empresários, como por exemplo associações. Fábio Ulhoa Coelho é enfático ao dizer que “a associação não titula o direito a recuperação”.107 Da mesma forma, Gladston Mamede assim se posiciona: falência e recuperação judicial são procedimentos aplicáveis especificamente aos empresários (firma individual) e sociedades empresárias. Não se aplicam às pessoas naturais não registradas como empresários, às sociedades simples, (inclusive cooperativas), associações ou fundações;108 Sob a ótica da lei e da doutrina pátria, as associações não podem socorrer-se do benefício da recuperação judicial. 105 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas, 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2010, p. 41/42. NEGRÃO, Ricardo. Ob. Cit. p. 218. 107 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação das empresas. 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2013, p. 50. 108 MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial, 6ª ed., São Paulo, Atlas, 2012, p.410 106 3.1 O PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL POR ASSOCIAÇÕES E O POSICIONAMENTO JUDICIAL. Em que pese os dispositivos da Lei n. 11.101/2005 acima indicados, bem como a posição até agora unânime da doutrina brasileira, algumas associações vêm apresentando ao Poder Judiciário, pedidos de recuperação judicial. Mesmo não atendendo ao requisito de ser sociedade empresária ou empresário, as associações passaram a requerer os benefícios da recuperação judicial, sendo que as decisões são fortes e quase unânimes no sentido de que o pedido formulado seria juridicamente impossível, acarretando o indeferimento da petição inicial sumariamente em alguns casos. O Tribunal de Justiça de São Paulo já se posicionou sobre o tema em algumas oportunidades, sempre adotando o posicionamento mencionado, ou seja, extinguindo os feitos sem julgamento de mérito. Vejamos alguns julgados: Recuperação Judicial. Pessoa jurídica sem fins econômicos, classificada como associação, nos termos do art. 44, I, do Código Civil e sem registro mercantil, não tem interesse de agir para pleitear recuperação judicial. Indeferimento da inicial mantido. Recurso desprovido. (TJSP, Apelação Cível 0001832-74.2013.8.26.0564, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Araldo Telles, Data do Julgamento: 20/05/2013, Data do Registro: 29/05/2013); RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Associação civil. Indeferimento da inicial. Impossibilidade. Recuperação judicial já deferida. Extinção do processo sem resolução do mérito por ausência de interesse de agir. Artigo 267, IV, do CPC. Apelante que não pode pleitear recuperação judicial. Instituto restrito aos empresários e às sociedades empresárias. Apelante que sequer é sociedade, muito menos empresária. Extinção do processo sem resolução do mérito mantida, por fundamento diverso. Recurso não provido, com observação. (TJSP, Apelação Cível 0010036-39.2011.8.26.0189, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Relator(a): Tasso Duarte de Melo, Data do julgamento: 25/03/2013, Data de registro: 27/03/2013). Recuperação judicial. Pedido formulado por sociedade sem finalidade lucrativa associação. Indeferimento da petição inicial por impossibilidade jurídica do pedido. Apelação. Medida conferida apenas a empresários e sociedades empresárias. Apelação desprovida. (TJSP, Apelação nº 619.652-4/8-00, Rel. Des. Boris Kauffmann, Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, j. 28/01/2009). Alguns juristas, com o objetivo de amparar a pretensão em requerer a recuperação de associações, utilizam-se de julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça109, no qual se questionava decisão do Tribunal do Rio de Janeiro ao analisar o processo que foi assim ementado: 109 AGRAVO REGIMENTAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DO FATO CONSUMADO. 1. Em virtude da questão já ter sido analisada pela Quarta Turma desta Corte, em votação unânime, é que a decisão foi proferida singularmente. 2. As razões apresentadas pela agravante não são suficientes para afastar as conclusões do julgado recorrido. 3. Agravo regimental desprovido. (STJ, AgRg no Ag 1008393/RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 05/08/2008, DJe 18/08/2008). Recuperação judicial. Sociedade civil com caráter filantrópico e sem fins lucrativos. Inaplicabilidade do regime da Lei n. 11.101/2005. Afastamento da alegação de preclusão, uma vez que recorre o agravante de decisão que, considerando cumpridas as exigências legais, concedeu a recuperação judicial à agravada, não da decisão que deferiu seu processamento. O processamento da recuperação judicial pressupõe apresentação da certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas. Natureza associativa da agravada, enfatizado o caráter filantrópico e beneficente de suas atividades destituídas de fins lucrativos. Arquivamento dos atos constitutivos no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Não menos relevantes são as imunidades e/ou isenções tributárias usufruídas pela agravada no regime das entidades sem fins lucrativos, a exemplo do imposto sobre a renda e outros tributos que lhe seriam impostos, não lhe sendo lícito pretender agora colher benefícios de um regime de cujo ônus se desviou deliberadamente. Ademais, no regime da falência e da recuperação judicial é perquirida a responsabilidade pessoal dos sócios nas hipóteses elencadas na lei de regência, fator de oneração jurídica também não assumido pela mesma agravada ao optar pelo regime mencionado. Inaplicabilidade das disposições da Lei n. 11.101/2005, devendo-se observar as regras do capítulo IV do Código de Processo Civil. Rejeição da preliminar e provimento ao recurso. (TJRJ, 17ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 0004877-37.2007.8.19.0000 Rel. Des(a). Edson Aguiar de Vasconcelos - Julgamento: 09/05/2007). Esta decisão foi objeto de recurso ao Superior Tribunal de Justiça. No entanto, este Tribunal proferiu decisão que teve por base a teoria do fato consumado, ou seja, a recuperação judicial da associação recorrente estava em plena vigência, sendo que sua revogação acarretaria prejuízos maiores. O Superior Tribunal de Justiça não enfrentou o mérito da questão, isto é, no julgado mencionado não há posicionamento claro e preciso do Tribunal autorizando as associações a pleitearem a recuperação judicial, ampliando-se a interpretação do art. 1º da Lei n. 11/1101/2005. 3.2 A INTERPRETAÇÃO DO ART. 1º DA LEI 11.101/2005 À LUZ DO PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA Como já anotado anteriormente, o objetivo da recuperação judicial é manter, primordialmente, a fonte produtora (empresa). Assim, o princípio da preservação da empresa constante do art. 47 da LFR tem como finalidade possibilitar que a atividade econômica desenvolvida pelo empresário seja mantida (fonte produtora), gerando riquezas, emprego, tributos, desenvolvimento regional, etc. Desta forma, a ênfase do legislador foi permitir que apenas o empresário ou sociedades empresárias sejam contempladas, justamente pelo fato de que tais pessoas é quem exercem a empresa, ou seja, a atividade econômica organizada. Ademais, o instituto da recuperação foi idealizado, também, para evitar que a falência seja decretada, de tal sorte que somente aqueles que, em tese, teriam condições de sofrer processo de falência é que poderiam socorrer-se do benefício da recuperação. Segundo Fábio Ulhoa Coelho, “só tem legitimidade ativa para o processo de recuperação judicial quem é legitimado passivo para o de falência. Isto é, somente quem está exposto ao risco de ter a falência decretada pode pleitear o benefício da recuperação judicia”l.110 Ao se analisar o art. 1º da Lei 11.101/2005, em conjunto com o art. 47 da mesma lei e as ponderações acima, constata-se que a proteção dada à empresa não poderia autorizar os que não exercem a empresa a ter o benefício da recuperação judicial. Isto porque, como já anotado anteriormente, no modelo jurídico brasileiro atual, somente o empresário exerce a empresa, sendo que esta é o objeto da relação empresarial. Levando-se em conta a referida premissa (de que somente o empresário exerce a empresa), o benefício da recuperação judicial não pode ser concedido, no modelo brasileiro, àquele que não seja empresário. Por tal motivo é que o tão comentado “princípio da preservação da empresa”111 aparece como uma oportunidade de se buscar uma interpretação mais elástica do texto da lei, notadamente seu art. 1º. No entanto, para que tal movimento possa ganhar base, há que se estudar e analisar melhor a própria idéia e caracterização do que seja empresa. Considerando que um dos objetivos do art. 47 da Lei de Recuperação das Empresas é a proteção da fonte produtora, como anteriormente visto, e se o art. 1º tem por objetivo recuperar ou falir o empresário (que exerce a empresa, a fonte produtora), qualquer interpretação mais extensiva do campo de incidência da recuperação passa pela interpretação do termo empresa e manutenção da fonte produtora. Vale dizer, há que se analisar se a empresa pode ser desenvolvida por não empresários, como é o caso de algumas associações já mencionadas. Assim, somente com uma interpretação que permita concluir que uma associação, por exemplo, pode exercer atividade de empresa, mesmo que por equiparação em certas situações, é que seria possível, em tese, concluir-se que poderia ser tal pessoa jurídica 110 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação das empresas. 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2013, p. 48. 111 Fábio Ulhoa Coelho apresenta as seguintes considerações em relação ao princípio da preservação da empresa: Quando se assenta, juridicamente, o princípio da preservação da empresa, o que se tem em vista é a proteção da atividade econômica, como objeto de direito cuja existência e desenvolvimento interessam não somente ao empresário, ou aos sócios da sociedade empresária, mas a um conjunto bem maior de sujeitos. Na locução identificadora do princípio, “empresa” é conceito de sentido técnico bem específico e preciso. Não se confunde nem com o seu titular (“empresário”), nem com o lugar em que é explorada (“estabelecimento empresarial”). O que se busca preservar, na aplicação do princípio da preservação da empresa, é, portanto, a atividade, o empreendimento. (Coelho, Fábio Ulhoa. Princípios do Direito Comercial: com anotações ao projeto do código comercial, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 40). beneficiária de recuperação judicial. Mas, o inverso também seria razoável, ou seja, se tivesse direito a recuperação, também estaria sujeita ao regime de falência. 3.3 AS ASSOCIAÇÕES COMO BENEFICIÁRIAS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL: UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO OU NECESSIDADE DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA. A questão de uma associação poder requerer e ver deferido pedido de recuperação judicial pode ser vista como uma questão de interpretação extensiva do texto da lei ou de necessidade de alteração legislativa. No primeiro caso, há que se fazer um paralelo entre as atividades desenvolvidas pelas associações e a caracterização da empresa no desempenho de tais atividades, equiparando-se àquelas desenvolvidas pelo empresário e sociedade empresária, em conjunto com o objetivo da lei de recuperação, ou seja, preservar a fonte produtiva e a atividade econômica (empresa). Desta forma, poder concluir, em determinados casos específicos, pela possibilidade de uma interpretação mais extensiva da lei, é raciocínio possível. Se algumas associações exercem atividades em que a fonte produtora também está presente (como por exemplo um hospital beneficente, pois também contratam, recolhem tributos, geram riquezas e muitas vezes é o único da localidade), não poderiam ser beneficiadas pela recuperação judicial? A resposta afirmativa, para muitos, seria um reconhecimento pelos serviços prestados para a coletividade por tais associações, notadamente em áreas em que o Estado é falho (educação, saúde, etc). Mas, a questão deve ser analisada por outro ponto também. Ao permitir, por uma interpretação fundamentada em princípios, que as associações tenham o direito de requerer a recuperação judicial (em detrimento da vedação legal), estar-se-ia violando o texto da lei? A utilização de princípios na interpretação e aplicação da lei deve ser feita com cautela, notadamente no momento atual em que a discussão sobre a relevância e utilização efetiva dos princípios no campo do Direito Comercial ganha força, principalmente nas decisões judiciais. Essa preocupação com os princípios jurídicos que regem o direito recuperacional e falimentar brasileiro também está presente na jurisprudência sobre o tema, uma vez que, encarregados da interpretação autêntica da nova lei, os magistrados passaram a invocar corriqueiramente os seus princípios – alguns dos quais teriam bases em normas constitucionais – como ferramentas importantes para determinar o significado mais adequado de uma norma, ou para afastar a aplicação de uma norma em certos casos concretos.112 É por tais considerações que a utilização dos princípios deve conter balizas, limitações, de forma que o aplicador do direito não pode ser induzido a violar uma norma jurídica pela utilização principiológica. Como bem anota Fábio Ulhoa Coelho, “a argumentação por princípios tem sido largamente empregada pela estratégia de desapego à lei, buscando, para além das regras específicas e desprovidas de caráter principiológico, fundamentos para a não aplicação destas”.113 Tais argumentos são robustos e podem levar a conclusão de que não seja correta a pretensão de, sob o argumento principiológico de preservação da empresa (ou da fonte produtiva), violar o texto claro da lei para que as associações possam ser titulares do direito de pleitear a recuperação judicial. Não se nega a importância e relevância social das atividades desenvolvidas pelas associações. Mas, o que se percebe na prática, é que há grande margem para uma discussão sobre a alteração da lei, ou seja, se se entender que algumas associações efetivamente desenvolvem atividades econômicas, equiparando-as, neste aspecto, aos empresários, uma discussão sobre a necessidade de alteração legislativa em relação a este tema é medida que se impõe. Exatamente esta é a segunda hipótese a ser tratada neste tópico. Uma vez se concluindo pela dificuldade em realizar uma interpretação mais extensiva do conceito de empresa e sua preservação nas atividades desenvolvidas pelas associações, a reflexão sobre as necessidades de alteração legislativa é medida de rigor. E a hipótese é perfeitamente possível. Em outros ordenamentos jurídicos, como em Portugal, Espanha e França, a aplicação do instituto da recuperação é bem mais amplo. Como ressalta Tomazzete, citando Luis Manoel Teles de Menezes Leitão, Michel Jantin e Juana Pulgar Ezquerra, em Portugal, o regime da insolvência e da recuperação de empresas é bem mais amplo, abrangendo inclusive pessoas físicas não profissionais e entidades sem fins econômicos. Do mesmo modo, na França e na Espanha, os regimes concursais já podem ser estendidos a não empresários. 114 Desta forma, perfeitamente possível uma alteração na lei de forma a permitir que outras pessoas, mesmo que não empresárias, possam se beneficiar das vantagens e benefícios 112 PEREIRA, Thomaz H. Junqueira de A. A função dos princípios do direito recuperacional e falimentar brasileiro, in Direito processual empresarial: estudos em homenagem ao professor Manoel de Queiroz Pereira Calças/Gilberto Gomes Bruschi (coords.) Rio de Janeiro, Elsevier, 2012, p. 967/968. 113 COELHO, Fábio Ulhoa. Os princípios do Direito Comercial no projeto de Código Comercial, in Reflexões sobre o projeto de Código Comercial, Fábio Ulhoa Coelho, Tiago Asfor Rocha Lima, Marcelo Guedes Nunes (coordenadores), São Paulo, Saraiva, 2013, p. 107. 114 TOMAZZETE, Marlon. Ob. Cit. p. 10. de uma recuperação judicial quando comprovadamente exercerem atividade econômica em que a fonte produtiva mereça proteção. 4 CONCLUSÕES Após a realização das análises acima, e sem a pretensão de esgotar o assunto, algumas conclusões podem ser extraídas. A lei 11.101/2005 destinou apenas aos empresários a possibilidade de utilização dos benefícios da recuperação judicial. No entanto, não se pode negar que a empresa, em seu conceito mais amplo, notadamente em relação ao exercício de uma atividade com contornos econômicos e que gere uma fonte produtiva, pode ser exercida por outras pessoas não empresárias, como é o caso de algumas associações. Em tal seara, somente uma interpretação elástica e principiológica do art. 1º e 47 da lei de recuperação é que pode amparar uma pretensão de se buscar a tutela protetiva do instituto da recuperação judicial para associações que exercem atividades econômicas equiparadas a dos empresários. Em que pese ser possível tal entendimento, a interpretação poderia encontrar óbices, em tese, no argumento de uma violação do dispositivo legal, fato este repudiado pela maioria dos juristas. O mais salutar, diante da importância do tema, seria uma ampla discussão legislativa, de forma a permitir uma alteração no texto da lei, incluindo-se a possibilidade de associações ou outras pessoas jurídicas a se beneficiarem do instituto da recuperação judicial, mesmo que não sejam caracterizadas como empresárias, nos termos do art. 966 do Código Civil brasileiro, desde que a atividade desenvolvida possa ser equiparada à econômica inerente aos empresários. REFERÊNCIAS BERTOLDI, Marcelo M. Curso Avançado de Direito Comercial, 4ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 58/59. COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial,14 ed. rev. e atual. São Paulo, Saraiva, 2003, p. 12. ______. Comentários à lei de falências e de recuperação das empresas. 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2013. ______.Princípios do Direito Comercial: com anotações ao projeto do código comercial, São Paulo, Saraiva, 2012. ______.Reflexões sobre o projeto de Código Comercial, Fábio Ulhoa Coelho, Tiago Asfor Rocha Lima, Marcelo Guedes Nunes (coordenadores), São Paulo, Saraiva, 2013 COELHO, Simone de Castro Tavares. Terceiro Setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos – 2ª Ed.São Paulo, Editora Senac, 2002. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas, 5ª ed., São Paulo, Atlas. FERNANDES, Rubem César. “O que é o Terceiro Setor?” in IOSCHPE, Evelyn Berg. 3º Setor: desenvolvimento social sustentado. São Paulo: GIFE, 1997. GOHN, Maria da Glória. Educação Não-Formal e Cultura Política. Questões da nossa época. São Paulo: Cortez, 1999. Pág. 19. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral, 10ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012. MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial, 6ª ed., São Paulo, Atlas, 2012. NEGRÃO,Ricardo. Direito Empresarial – Estudo Unificado, São Paulo, Saraiva, 2008. PEREIRA, Thomaz H. Junqueira de A. A função dos princípios do direito recuperacional e falimentar brasileiro, in Direito processual empresarial: estudos em homenagem ao professor Manoel de Queiroz Pereira Calças/Gilberto Gomes Bruschi (coords.) Rio de Janeiro, Elsevier, 2012. PERIN JUNIOR, Ecio. Preservação da empresa na Lei de Falências. São Paulo, Saraiva, 2009. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial, volume 3: falência e recuperação de empresas, São Paulo, Atlas, 2011. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral – 10ª ed., São Paulo, Atlas, 2010, Coleção Direito Civil, V.1. A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO João Alves Dias Filho115 Pedro Lucas Crispim Rodrigues116 RESUMO O intuito neste presente trabalho foi buscar os elementos que gravitam primeiro em torno da relativização da coisa julgada, para, em seguida, encaixá-lo na seara do Direito Previdenciário. Assim, nessas condições, buscou-se enfrentar os principais pontos discutidos em torno desses institutos, em razão de sua grande incidência na prática jurídica dos operadores do Direito. PALAVRAS-CHAVE: Coisa julgada. Relativização. Direito previdenciário. ABSTRACT The present article has firstly aimed at seeking the elements concerning the relativization of res judicata, so these could then be dovetailed within the scope of Social Security Law. Thus, in such conditions, this article has sought to address the key points surrounding these institutes, due to their prevalence in the legal practice of legal practitioners. KEYWORDS: Res Judicata. Relativization. Social Security Law SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 COISA JULGADA. 2.1 A COISA JULGADA FORMAL. 2.2 A COISA JULGADA MATERIAL. 2.3 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. 3 DIREITO PREVIDENCIÁRIO. 3.1 A COISA JULGADA PREVIDENCIÁRIA. 3.2 A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA PREVIDENCIÁRIA. 4 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO O núcleo central do presente estudo se estabelece na análise do instituto da coisa julgada, tendo como desfecho a problemática quanto a “relativizar” os efeitos das decisões proferidas em sede de sentença ou acórdão. Superando essa fase, a abordagem caminha na aplicação desses conceitos no Direito Previdenciário. 115 Professor (UNIFIL). Especialista em Direito Aplicado (EMAP). Pós-graduado em Direito Empresarial (UEL). Pós-graduado em Direito Previdenciário (UEL). Advogado. 116 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Filadélfia – UNIFIL. Pós-graduando em Direito Civil, Processo Civil e Consumidor pelo IDCC – Instituto de Direito Constitucional e Cidadania. Para tanto, é imperioso dirimir e enfrentar os aspectos relacionados ao presente debate, com o fim de buscar uma grande aproximação entre o direito material e a instrumentalidade do processo, isto é, a atuação do estado-juiz na necessária busca da pacificação social, mas sem que atue afrontando os dispositivos constitucionais consagrados na ordem constitucional brasileira. A área previdenciária permite averiguar, conjuntamente, o desdobramento de ambos os institutos, porque entre si se relacionam, e é esta realidade que o presente trabalho abordará. 2 COISA JULGADA A coisa julgada está disciplinada, no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a cosia julgada"), como sendo um dos direitos e garantias fundamentais disponíveis em nosso ordenamento jurídico 117. A inteligência do artigo referido garante a possibilidade de a lei não retroagir para prejudicar o direito posto a determinada parte em processo já concluído. A razão disso decorre para que as decisões judiciais não possam mais ser alteradas quando chegarem a um determinado momento, pois, dessa forma, estará se tutelando a segurança jurídica que reveste todas as decisões emanadas do Poder Judiciário. Por outro lado, se assim não fosse, pela quantidade e volume de demandas que hoje se encontram no cenário do nosso país, certamente estaria afetada a tão sonhada pacificação social que a Carta Maior prevê em seus dispositivos. A coisa julgada tem como função precípua assegurar que os efeitos das sentenças judiciais não possam mais ser modificados, ou seja, que se tornem definitivos. Pois, assim, estará se garantindo o resguardo associado à segurança jurídica, quando a pretensão resistida é levada ao judiciário pelas partes e de lá recebem a solução definitiva para o caso concreto. Diz a doutrina de FREDIE DIDIER JR: A coisa julgada é instituto jurídico que integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, assegurando em todo Estado Democrático de Direito, encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no art. 5, XXXVI, CF. Garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário118. 117 A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro também traz o conceito de coisa julgada, em seu art. 6, parágrafo 3, como decisão judicial de que não seja mais cabível recurso. Bem como os artigos 467 e 472 do Código de Processo Civil. 118 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 2., Ed. JusPodivm, 2008. p. 552. Por outro lado, em homenagem aos demais princípios norteadores da Constituição Federal de 1988, a coisa julgada não pode ser entendida somente friamente e em sua plenitude, tendo em vista que poderá lesar outros bens jurídicos. Esse é o entendimento de THEODORO JÚNIOR e FARIA: Em relação ao princípio da intangibilidade da coisa julgada, que é uma noção processual e não constitucional, traz como consectário a idéia de submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a coisa constitucional será intangível enquanto tal apenas quando conforme a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional 119. Vale lembrar, por arremate, que a coisa julgada não constitui um dos elementos da sentença, mas uma de suas qualidades, ou seja, a sua imutabilidade. Nesse enfoque, o princípio da segurança jurídica atua em nome da coletividade, da prestação de qualidade em que as decisões se pautam frente à sociedade, contudo, aos olhos da Carta Maior, deve-se operar a prevalência da Constituição nas decisões judiciais, buscando concretizar a verdadeira justiça para o caso concreto. 2.1 A COISA JULGADA FORMAL De início, vale destacar o conceito de coisa julgada formal para melhor compreensão quanto ao instituto “é a manifestação da coisa julgada no próprio processo em que a sentença ou o acórdão foi proferido” 120. Tal fenômeno se realiza internamente, no bojo do processo, traduzindo a impossibilidade de modificação da sentença ou acórdão, após estarem esgotadas as possibilidades recursais, ou porque ocorreu de a peça processual ser interposta fora do prazo. Em um determinado momento processual, se exaurem as possibilidades de oferecimento de recursos, causando a imutabilidade de determinada decisão, sendo certo o fim daquela determinada demanda. Todas as sentenças que resolvem o mérito ficam sujeitas à coisa julgada formal, até mesmo as que extinguem o processo sem examiná-lo. Assim, como bem assinalado acima, esse fenômeno jurídico encontra abrigo de forma interna no processo, representando a impossibilidade de modificação daquilo que ficou decidido, sendo encerrada qualquer 119 THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Coisa julgada inconstitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 142. 120 Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Direito processual esquematizado. – 3 ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2013. p. 438. possibilidade de rediscussão naquele mesmo processo. 2.2 A COISA JULGADA MATERIAL Tem-se a possibilidade de a coisa julgada se concretizar de outra forma, sendo denominada pela doutrina como coisa julgada material. Para maior compreensão, proveitoso é recomendar o ensinamento do magistrado MARCUS VINICIUS RIOS GONÇALVES, que assim leciona: Consiste não mais na impossibilidade de modificação da sentença no processo em que foi proferida, mas na projeção externa de seus efeitos, que impede que a mesma ação, já decidida em caráter definitivo, volte a ser discutida em outro processo. Esse fenômeno jurídico, sobretudo, garante aos litigantes a possibilidade de que determinada questão não seja mais rediscutida no judiciário, transmitindo a tese da segurança jurídica. Se assim não ocorresse, a todo momento seria possível invocar novamente a análise sobre algum caso, e nunca se alcançaria a efetiva prestação jurisdicional prevista em nosso ordenamento jurídico. Ou seja, ela impede que seja renovada a mesma ação que, por isso mesmo, precisa ser identificada. É fundamental, portanto, conhecimento e que se saiba identificar os três elementos da ação que indicam a impossibilidade de se demandar quando estão presentes: partes, causa de pedir e pedido. Presentes esses três, haverá óbice quanto à possibilidade de prestação jurídica pelo Estado. Frise-se que qualquer alteração, quanto aos fatos, às partes e do objeto, modifica a ação e afasta a incidência do instituto. 2.3 A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA Superado os conceitos relativos à coisa julgada e suas formas de manifestação, passase a abordar a problemática envolvendo a relativização da coisa julgada121. Num primeiro ponto, é importante que se diga que o ordenamento jurídico brasileiro torna efetiva a segurança jurídica pela coisa julgada. Essa previsão – conforme já analisado está taxativamente prevista na Constituição brasileira. A lição de LIEBMAN reforça, com clareza, esses primeiros pontos enfrentados: “a 121 “O primeiro a suscitar a tese da relativização da coisa julgada no Brasil foi José augusto Delgado, ministro do Superior Tribunal de Justiça. Defendeu, a partir da sua experiência na análise de casos concretos, a revisão da carga imperativa da coisa julgada toda vez que afronte os princípios da moralidade, legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, ou se desafine com a realidade dos fatos”. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 2., Ed. JusPodivm, 2008. p. 583. coisa julgada é uma qualidade que torna imutável o comando emergente da sentença, tanto no seu conteúdo como nos seus efeitos” 122. Pois bem, sendo a segurança jurídica alicerce da coisa julgada, surge o seguinte questionamento: até que ponto pode-se dizer que essa segurança deve se sobrepor à verdadeira busca da justiça social e, em igual modo, aos demais princípios constitucionais elencados na carta constitucional? A resposta é simples: não deve haver sobreposição, mas paridade entre normas constitucionais. As decisões judiciais devem caminhar guardando harmonia com os dispositivos previstos na Constituição a fim de que não atentem e causem desequilíbrio no judiciário. Dentro ainda do enfoque sobre “relativizar” a coisa julgada, é importante trazer à baila a tese sustentada por LUIZ GUILHERME MARINONI: Em favor da “relativização” da coisa julgada, argumenta-se a partir de três princípios: o da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade. No exame desse último, sublinha-se que o processo, quando visto em sua dimensão instrumental, somente tem sentido quando o julgamento estiver pautado pelos ideais de Justiça e adequado à realidade. Em relação ao princípio da legalidade, afirma -se que, como o poder do Estado deve ser exercido nos limites da lei, não é possível pretender conferir a proteção da coisa julgada a uma sentença totalmente alheia ao direito positivo. Por fim, no que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, sustenta-se que a coisa julgada, por ser apenas um dos valores protegidos constitucionalmente, não pode prevalecer sobre outros valores que têm o mesmo grau hierárquico. Admitindo-se que a coisa julgada pode se chocar com outros princípios igualmente dignos de proteção, conclui-se que a coisa julgada pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho.123 As decisões judiciais, portanto, não devem violar dispositivos constitucionais adquirindo status de imutabilidade, tendo em vista que a função jurisdicional não pode estar acima do Poder Constituinte. É bem verdade também, por outro lado, que a relativização da coisa julgada guarda grande controvérsia na doutrina, tendo aqueles que a rejeitam com o argumento de que as decisões judiciais já se pautam observando a equidade e justiça na análise do caso, tanto é que o juiz é imparcial no momento em que é acionado, e sua atuação fica adstrita pelas provas que são guerreadas no desenrolar do processo. 3 DIREITO PREVIDENCIÁRIO 122 LIEBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1945. p. 14. 123 MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a coisa julgada material? Disponível em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Luiz%20G.%20Marinoni%284%29%20-formatado.pdf O Direito Previdenciário tem como base a ordem social e também, como os demais ramos do Direito, tem sua fonte na Constituição Federal. Assim, entre outros fundamentos, devem ser observadas a justiça social, a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais. Os benefícios previdenciários são um instrumento de concretização da justiça social, na medida em que permitem os meios indispensáveis à sobrevivência dos segurados que não se encontram aptos para o labor, seja pela idade avançada, seja por eventuais patologias que os acometem124. A aplicação do Direito Previdenciário deve ser voltada para o princípio da solidariedade, voltada ao bem-estar, à proteção ao indivíduo, à diminuição de determinados riscos sociais, em situação de doença, invalidez, acidente, envelhecimento, privação da liberdade ou morte. No Estado Constitucional, é imprescindível que a tutela jurisdicional seja analisada à luz dos direitos fundamentais, e, para tanto, imprescindível que o processo seja visto como técnica processual destinada a dar efetividade aos direitos. Note-se que referida efetividade exige não apenas proteção aos direitos fundamentais, mas a realização efetiva, concreta do direito a quem dele faz jus. Assim, é necessário que a técnica processual possa se adequar ao direito material de modo a concretizar os fins almejados pelo Estado, garantindo um processo civil de resultados125. Em vista disso, a Previdência Social visa proteger o ser humano diante das necessidades que possam atingi-lo para que ele possa sobreviver. 3.1 A COISA JULGADA PREVIDENCIÁRIA Conforme já mencionado, a coisa julgada é garantia fundamental. Essa garantia, entretanto, não pode ser rígida quando injusta, afrontando a razoabilidade ou contrária à realidade dos direitos do cidadão. No processo previdenciário, a imutabilidade pode causar a negação da prestação previdenciária (v.g. concessão da aposentadoria). O que se pretende discutir no presente estudo é se, em caso de determinado benefício previdenciário ter sido negado na esfera judicial, com o trânsito em julgado da decisão, seria possível invocar o instituto da relativização da coisa julgada material 126 em benefício ao 124 PEREIRA, Caroline quadros da Silveira. A coisa julgada e o direito adquirido ao benefício previdenciário mais vantajoso. Revista de Previdência Social – RPS. Ano 38, São Paulo, n°. 403, jun. 2014. p. 558. 125 TORRES. Aimbere. VASCON Flávia. A humanização do processo e a efetividade da tutela jurisdicional. Estudos Contemporâneos de Direito: Desafios e Perspectivas/ Organizadores. p. 197. 126 “O princípio de prova material é pré-condição para a própria admissibilidade da lide. Trata-se de documento essencial, que deve instruir a petição inicial, pena de indeferimento (CPC, art. 283 c.c. 295, VI). Consequentemente, sem ele, o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito (CPC, art. 267, I). E assim deve ser, porque o direito previdenciário não admite a preclusão do direito ao benefício por falta de provas: sempre será possível, renovadas estas, sua concessão. Portanto, não cabe, na esfera judicial, solução diversa, segurado. Com frequência o Poder Judiciário tem sido acionado para resolver a seguinte situação: o trabalhador rural, após ter seu pedido de aposentadoria por idade rural negado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, promove pedido judicial de concessão da aposentadoria, com fundamento no art. 143, da Lei n°. 8.213/91, não apresenta prova material da atividade rural (art. 55, parágrafo 2, da Lei de Benefício) e produz apenas prova testemunhal. O pedido é julgado improcedente, com fundamento em que a prova exclusivamente testemunhal não basta à comprovação da atividade rurícola, para efeito da obtenção de benefício previdenciário, nos termos da súmula 149, do Superior Tribunal de Justiça. Após o trânsito em julgado, o segurado novamente protocola pedido judicial para obter a aposentadoria, todavia apresenta prova material (documentos demonstrando a atividade rural). Não se pode esquecer que, havendo fato jurídico novo, posterior ao julgamento da primeira causa, antes do ajuizamento de novo processo, é necessário o prévio requerimento junto ao INSS, ou seja, é preciso efetuar novo requerimento administrativo, sob pena de falta de interesse processual. 3.2 A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA PREVIDENCIÁRIA. Assim como no Direito Penal, é possível a revisão criminal em benefício do réu, nas ações de Estado, como no caso de investigação de paternidade, a coisa julgada é relativizada, na busca de um processo justo. No Direito Previdenciário, essa quebra da coisa julgada deve ser aplicada. É possível que o legislador, em juízo de ponderação, não atribua a certas decisões a aptidão de ficar imutáveis pela coisa julgada, ou, ainda, exija pressupostos para a sua ocorrência mais ou menos singelos/rigorosos. Note-se, por exemplo, que, no âmbito penal, é possível a revisão da coisa julgada a qualquer tempo em benefício do condenado127 Defendendo a tese da relatividade da coisa julgada, JOSÉ ANTONIO SAVARIS 128 assim coloca: certo que o Direito Processual deve ser enfocado, sempre, como meio de para a realização do direito material (TRF4 – 5 T. – AC 2001.04.01.075054-3. DJ 18-09-2002). 127 Apud.: PEREIRA, Caroline quadros da Silveira. A coisa julgada e o direito adquirido ao benefício previdenciário mais vantajoso. Revista de Previdência Social – RPS. Ano 38, São Paulo, n°. 403, jun. 2014. p. 560. 128 SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 89. Enquanto o processo civil se monstra exuberante no que conquista de mais elevada segurança com o instituto da coisa julgada, o direito previdenciário é guiado por um princípio fundamental de que o indivíduo não pode ser separado de seu direito de sobreviver pela solidariedade social por uma questão formal. Não é adequado que se sepulte, de uma vez por todas, o direito de receber proteção social em função da certeza assegurada pela coisa julgada, quando a pessoa, na realidade, faz jus à prestação previdenciária que lhe foi negada judicialmente. E finaliza o doutrinador: a coisa julgada não deve significar uma técnica formidável de se ocultar a fome e a insegurança social para debaixo do tapete da forma processual, em nome da segurança jurídica. Tudo o que acontece, afinal, seria ‘apenas processual, mesmo que seus efeitos sejam desastrosos para a vida real. Em outras palavras, é o princípio da não preclusão do direito à previdência social, visto que a coisa julgada não pode se transformar em insegurança social, privando para sempre o benefício previdenciário que, na realidade, tinha direito, consequentemente afastando os efeitos da coisa julgada. Nessa linha encontram-se os seguintes julgados: O direito previdenciário não admite preclusão do direito ao benefício, por falta de provas: sempre será possível, renovadas estas, sua concessão. (AC 2001.04.01.075054-3 – Rel. Des. Federal Albino Ramos de Oliveira). A coisa julgada, em matéria previdenciária, deve-se dar, assim, secundum eventum probationis, sendo possível nova discussão da matéria ligada à concessão ou revisão de determinado benefício previdenciário quando a pretensão foi originariamente recusada por insuficiência de provas. Isto porque o direito fundamental à previdência social é orientado pelo princípio fundamental de que o indivíduo não pode ser separado de seu direito de sobreviver pela solidariedade social por uma questão formal. Seria desproporcional impor ao indivíduo agravado com a sentença de não-proteção e que se presume hipossuficiente em termos econômicos e informacionais sofrer perpetuamente os efeitos deletérios da decisão denegatória, cuja injustiça resta manifesta. Em decorrência a lógica da preservação da vida nos conduz ao princípio processual da não-preclusão do direito previdenciário que, por sua vez, reclama concretização dos princípios do devido processo legal e do direito a uma ordem jurídica justa na condução do processo como corolário da garantia plena de acesso à justiça, afastando os efeitos plenos da coisa julgada(Turma Recursal do Paraná. Autos 5006812-44.2012.404.7003, rel. José Antonio Savaris). Logo, se a ação previdenciária é julgada improcedente por falta de prova material ou por ser ela escassa, o trânsito em julgado da improcedência não pode ser invocado como empecilho formal para se negar uma nova ação, se esta vier acompanhada de documentos não levados à apreciação no primeiro pedido. Como bem ensina o Juiz Federal JOÃO CARLOS BARROS ROBERTI JUNIOR: Negar ao povo trabalhador, na sua grande maioria pobre e sofrido, a oportunidade de valer-se de um mecanismo processual que lhe propicie rever, por meio de uma nova ação judicial, o direito previdenciário indevidamente negado em um processo precedente, essencialmente ficto, é atribuir-lhe, sem compaixão à dignidade da pessoa humana, mais pobreza e sofrimento. 129 129 ROBERTI JUNIOR, João Carlos. A relativização da coisa julgada material nas ações previdenciárias: Justiça e sensibilidade social como fundamentos de revisão. Disponível em: Da mesma forma deve-se observar a realidade dos trabalhadores rurais para adequar o direito, e não ao texto rígido da lei, em desprezo à justiça. Um conjunto probatório insuficiente não pode, portanto, retirar para sempre o direito à aposentadoria, sob pena de ferir o justo direito ao benefício com a aplicação cega da coisa julgada. 4 CONCLUSÃO Em conclusão, verifica-se que o instituto da coisa julgada assegura a segurança jurídica. O Direito, todavia, não pode fechar os olhos à realidade do Direito Previdenciário e negar uma prestação previdenciária (exemplo: aposentadoria) para quem de fato cumpriu os requisitos, mas, por força de uma decisão judicial, não conseguiu demonstrar por ora essa situação. A relativização da coisa julgada deve ser admitida para garantir o real direito do segurado, cabendo ao Poder Judiciário analisar o caso concreto flexibilizando os efeitos da coisa julgada, prestigiando a justa concessão do benefício. Em outras palavras, decisão judicial contrária ao direito, à realidade dos fatos, viola a ordem jurídica justa. Assim, é necessária a quebra da garantia da coisa julgada em determinado caso concreto, analisando com ponderação, com sensibilidade social, produzindo uma solução mais correta e adequada à relação jurídica previdenciária. De mais a mais, não há que se falar em prejuízo ao INSS, visto que o objetivo da autarquia previdenciária é propiciar a proteção previdenciária concedendo o benefício a quem tenha direito. Ou seja, o INSS tem a finalidade de reconhecer o direito ao recebimento do benefício a quem de fato tenha direito na forma do art. 1, Anexo I, Dec. n°. 7.556/2011. Portanto, não se pode esquecer que o bem jurídico previdenciário possui caráter social e natureza alimentar, logo, se de modo inequívoco ficar constatado que uma decisão anterior foi injusta, negando o benefício previdenciário ao qual o segurado tinha direito, deve ser afastada a coisa julgada, admitindo-se nova análise judicial. REFERÊNCIAS DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. vol. 2., Ed. JusPodivm, 2008. GONÇALVES. Marcus Vinicius Rios. Direito processual esquematizado. – 3 ed. rev. e atual. http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao035/joao_ri berti.html. - São Paulo: Saraiva, 2013. LIEBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1945. MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a coisa julgada material? Disponível em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Luiz%20G.%20Marinoni%284%29%20formatado.pdf PEREIRA, Caroline Quadros da Silveira. A coisa julgada e o direito adquirido ao benefício previdenciário mais vantajoso. Revista de Previdência Social – RPS. Ano 38, São Paulo, n°. 403, junho, 2014. ROBERTI JUNIOR, João Carlos. A relativização da coisa julgada material nas ações previdenciárias: Justiça e sensibilidade social como fundamentos de revisão. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos /edicao035/joao_riberti.html. SANTOS. Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Coisa julgada inconstitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. TORRES. Aimbere. VASCON Flávia. A humanização do processo e a efetividade da tutela jurisdicional. Estudos Contemporâneos de Direito: Desafios e Perspectivas/ Organizadores: Murilo Angeli Dias dos Santos e Dirceu Pereira Siqueira. Bauru, São Paulo, Ed. Canal6, 2011. A SÚMULA N.º 277 DO TST E A APROXIMAÇÃO DA IDEIA DE USOS LABORAIS DO DIREITO PORTUGUÊS: SÚMULAS COMO FONTE DE DIREITO IMEDIATA Renato Lovato Neto130 RESUMO Em setembro de 2012 a Súmula nº 277 do TST foi alterada, determinando que as cláusulas coletivas no Direito Trabalho não mais deixassem de produzir efeitos com a cessação da vigência do instrumento coletivo, mas que integrassem o contrato individual de trabalho. O artigo pretende destacar a imprópria utilização pelos tribunais brasileiros de súmulas como meio de suprir a morosidade e omissão do Poder Legislativo na atualização do ordenamento, bem como do efeito prático da alteração à Súmula nº 277 que a aproxima do conceito de usos laborais existente no Direito do Trabalho português. Para atingir o seu objetivo, o trabalho adota o método científico-dedutivo de pesquisa bibliográfica. PALAVRAS-CHAVE: Súmula nº 277 do TST. Usos Laborais. Fontes de Direito do Trabalho. ABSTRACT In September 2012, the TST Precedent No. 277 was amended to provide that clauses in collective Labor Law no longer cease to have effect on the expiry of the collective instrument, but that they would integrate the individual employment contract. The article seeks to highlight the improper use by Brazilian courts of precedents as a means to supply the length and omission of the Legislative Power in updating the Law system, and the practical effect of the amendment to Precedent No. 277 that approximates it to the concept of labor uses in the Portuguese Labour Law. To achieve its objective, the study adopts the scientific-deductive method of bibliographic research. KEYWORDS: TST Precedent No. 277. Labor Uses. Labour Law Sources. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 BREVES NOÇÕES ACERCA DAS DIFERENÇAS ENTRE O DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO E A CONTRATAÇÃO COLETIVA EM PORTUGAL. 3 AS SÚMULAS DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS E AS SÚMULAS DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. 4 NOVA REDAÇÃO DA SÚMULA 277: ULTRA-ATIVIDADE DOS CONTRATOS COLETIVOS. 5 CONCEITO DE USOS LABORAIS E SUA IDEIA COMO FONTE DE DIREITO. 6 USOS LABORAIS E ULTRATIVIDADE DOS ACORDOS E CONVENÇÕES COLETIVAS NO BRASIL. 7 130 Doutorando em Ciências Jurídico-Civilísticas na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Mestrando em Direito Privado na Universidade Católica Portuguesa do Porto, Membro Associado do CONPEDI e da Comissão de Direito do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção de Londrina-PR, e Advogado. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO A alteração da Súmula nº 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) em 14 de setembro de 2012 acendeu um debate sobre a eficácia das cláusulas em contratações coletivas ou sentenças normativas, que passaram a integrar o contrato individual de trabalho, sendo assim até que nova normatização as revogue. Não obstante, aquém deste debate, se deve discorrer igualmente da utilização do instrumento da súmula para realização de alterações em matérias reguladas por lei, tal como a contratação coletiva o é pela Consolidação das Leis do Trabalho. A Justiça do Trabalho tem implementado constantemente alterações na ordem jurídica mediante mecanismos que, na realidade, têm a natureza de firmar precedentes judiciais, tais como súmulas e orientações jurisprudenciais, violando a repartição de poderes e assumindo impropriamente um papel legislativo. Por outro lado, a Súmula nº 277 do TST, ao determinar que as cláusulas de contratação coletiva integram os contratos individuais, dando efeito ultra-ativo a elas, se aproximou de uma tímida figura no Direito do Trabalho português, qual seja, o uso laboral, que igualmente cria um conjunto de benefícios e prerrogativas ao trabalhador abrangido no momento de sua consolidação até que ele saia da relação laboral. Para averiguar tão delicado tema, o trabalho expõe brevemente algumas diferenças entre o ordenamento jurídico brasileiro e português em sede de Direito do Trabalho e contratação coletiva, para assimilar o uso de súmulas com estruturas concretas de leis pelos tribunais brasileiros e, então, o efeito ultra-ativo das cláusulas convencionais coletivas dado pela Súmula nº 277 do TST. Por fim, aborda o tema dos usos laborais no Direito português e sua similitude com os efeitos da supracitada súmula. O trabalho adota o método científico-dedutivo de pesquisa bibliográfica na doutrina brasileira e portuguesa para atingir a sua finalidade. 2 BREVES NOÇÕES ACERCA DAS DIFERENÇAS ENTRE O DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO E A CONTRATAÇÃO COLETIVA EM PORTUGAL Em sede de Direito do Trabalho – e principalmente em relação à contratação coletiva, há algumas diferenças fundamentais entre o ordenamento jurídico brasileiro e português. Primeiramente, tem a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o Decreto-Lei n.º 5.452 de 1º de maio de 1943, como principal fonte normativa do Direito laboral, sendo que o próprio diploma determina, em seu art. 8º, que as fontes, na falta de disposições legais ou contratuais, serão a jurisprudência, analogia, equidade e demais princípios e normas gerais de direito, permitindo ainda o emprego de usos e costumes, além do direito comparado, não podendo nunca prevalecer sobre o interesse público. Assim, a lei mais importante do Direito do Trabalho brasileiro consiste em um conjunto de normas reunidas e promulgado à época do governo de Getúlio Vargas, de tendências populistas, influenciado por Benito Mussolini e pela Carta del Lavoro de 21 de abril de 1927. Entretanto, essa origem histórica acabou por caracterizar a CLT como essencialmente protecionista, beneficiando grande gama de trabalhadores que eram explorados demasiadamente em um deturpado sistema de produção industrial e agrícola no país – o qual ainda hoje frequentemente viola direitos fundamentais socais. A CLT, apesar de encorpar princípios de proteção ao empregado, trazia algumas antinomias entre os seus dispositivos, justamente por ser uma compilação da legislação trabalhista em vigência na época, o que resultou em diversas alterações no decorrer dos últimos setenta anos, sem nunca uma reforma profunda no sentido de uniformizar e atualizar suas regras e princípios. Dessa forma há, por exemplo, dispositivos que não são mais aplicados, como boa parte dos artigos que tratam da Justiça do Trabalho (arts. 643 a 762), devido à reforma do Poder Judiciário ocasionada pela Emenda Constitucional n.º 45 de 2004, enquanto outros há que foram atualizados para abranger novas formas de prestações de serviços, como o teletrabalho, home office ou anywhere office, alcançados pela CLT apenas a partir da Lei n.º 12.551 de 15 de dezembro de 2011, que alterou o seu art. 6º. A CLT, no entanto, possui um alcance um tanto quanto limitado, não normatização uma infinidade de relações de emprego e deixando em aberto uma diversidade de conflitos aparentes de normas, bem como lacunas. Há uma gama de leis e decretos que formam o ordenamento jurídico laboral junto com a CLT, regulando algumas situações específicas (como os empregados rurais pela Lei n.º 5.889 de 1973) e que, por força do art. 8º, parágrafo único, CLT, podem recorrer ao direito comum (tanto material como processual) como fonte subsidiária. Com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), a ordem jurídica Brasileira passou a ter na Carta Magna a sua maior fonte de regulamentações nas mais importantes áreas, tendo, por exemplo, um rol de direitos fundamentais no art. 5º e toda a sistemática do Direito Tributário prevista em seu texto. O Direito do Trabalho, de igual modo, teve inserido nos arts. 6º a 11º disposições elevadas à condição de cláusulas pétreas e abrangidas pelo art. 60, §4º, inc. IV, CF/88 (NETO, 2011, p. 1161), alterando pontos basilares da CLT, como a equiparação dos trabalhadores rurais aos urbanos, bem como dos empregados domésticos aos demais (esta última promovida pela Emenda Constitucional n.º 72 de 2 de abril de 2013 ao alterar o parágrafo único do art. 7º da CF/88). A CLT tem sofrido diversas influências, tanto do legislador ordinário como do Poder Constituinte, atualizando de forma vagarosa a regulação das relações de trabalho. Todavia, o processo legislativo de uma lei ordinária ou de uma emenda constitucional é complexo e pode exigir diversos anos para a sua promulgação, porque passa pelas duas casas legislativas do Congresso Nacional (Senado e Câmara de Deputados) e depois pela sanção do Presidente da República, com a exigência de quórum específico para cada votação, além de todo o procedimento para a criação do próprio projeto de lei ou de emenda – demandas típicas da importância que essa legislação em sentido amplo tem para que entre no mundo jurídico. A Justiça do Trabalho, para suprir muitas vezes a omissão e demora do Poder Legislativo, encontrou uma rocambolesca e paradigmática solução: as súmulas. 3 AS SÚMULAS DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS E AS SÚMULAS DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO As súmulas emitidas pelos tribunais do Brasil constituem um fenômeno um tanto quanto caricato dentro das fontes de direito no ordenamento jurídico do país, pois, apesar da jurisprudência ser apenas uma fonte secundária, os mandamentos das súmulas são tomados praticamente como uma legislação produzida pelo viés mais deturpado possível. Ora, ao considerar as súmulas com o poder de regular relações no mundo fático, elas são elevadas à verdadeira condição de normas jurídicas e, assim, é atribuído ao Poder Judiciário a capacidade de legislar positivamente, indo além do que se espera do ativismo judicial (FRANCO, 2014). Tal elevado poder das súmulas decorre da tendência do Judiciário de tentar uniformizar a jurisprudência, com a obscura finalidade de impedir que recursos cheguem às instâncias superiores e, dessa forma, desafoguem as Cortes, atualmente congestionada de tantos autos. Assim sendo, a Lei n.º 11.276 de 7 de fevereiro de 2006 trouxe algumas modificações ao Código de Processo Civil (CPC) brasileiro, como no art. 518, §1º, que determina que o juiz (de primeira instância, no primeiro juízo de admissibilidade) não deve admitir o recurso de apelação contra sentença quando esta estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do Supremo Tribunal Federal (STF), e acrescentou o art. 285-A, que prescreve que, quando a matéria debatida na petição inicial for unicamente de direito e o mesmo juízo já houver proferido sentença de total improcedência em casos idênticos, o magistrado poderá dispensar a citação e proferir a sentença, reproduzindo o teor da sentença anteriormente prolatada. O art. 557 do CPC, desde a alteração trazida pela Lei n.º de 17 de dezembro de 1998, já trazia que o relator do órgão colegiado, ao apreciar qualquer recurso a qualquer tribunal (em, ao menos, segunda instância, no segundo juízo de admissibilidade), deveria respeitar as súmulas como se estas fossem de texto constitucional, isto é, o desembargador ou ministro deve negar o seguimento do recurso “em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Superior Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”. Na realidade, desde essa alteração, as súmulas do STF, do STJ, dos Tribunais Regionais Federais e do Trabalho, dos Tribunais de Justiça, do Superior Tribunal Militar, do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Superior do Trabalho têm um poder descomunal, valendo como um complemento à legislação, basicamente dando a interpretação da lei que deve ser considerada como a correta, bem como preenchendo lacunas e omissões do legislador com mandamentos que são tomados como fonte primária de direito. O próprio diploma processual passou então a relegar uma força às decisões judiciais, no sentido de quase simular uma uniformização e inibir discussões acerca de matérias já apreciadas anteriormente, violando o art. 2º da CF/88, que determina a independência e harmonia entre os três Poderes, na medida em que o Judiciário assume uma função legislativa. Neste trabalho não se pretende entrar em discussão sobre, por exemplo, decisões judiciais com efeito erga omnes, tais como em Ações Diretas de Inconstitucionalidade, mas sim apreciar de forma sucinta a validade desta figura jurídica denominada súmula, que é publicada geralmente por meio de resoluções do tribunal que a emite, tendo a sua prescrição elevada a uma força de lei, de acordo com a abrangência territorial daquele – quer dizer, se for um Tribunal de Justiça, vale para o território do Estado-membro competente, enquanto se for um Tribunal Regional Federal, para os Estados-membros que fazem parte da Região e, se for um Tribunal Superior, para toda a Federação dentro da matéria para o qual é competente. Acontece que o exemplo mais crasso das súmulas advém do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em parte por culpa da inércia do Poder Legislativo da União (porque este tem a competência privativa para legislar sobre Direito do Trabalho, conforme o art. 22, inc. I, da CF/88), que jamais promoveu uma significativa reforma da CLT, como já salientado anteriormente. Destarte, o TST encontrou nas súmulas um pronto remédio para legislar por vias escusas e suprir a falta de normas jurídicas que tratam de fenômenos na seara trabalhista, uma área extremamente dinâmica e que exige que a ordem jurídica acompanhe as suas constantes mudanças, além de ser deveras litigiosa, gerando muitas demandas judiciais – o que ocasionou até a alcunha de “indústria das reclamações trabalhistas” para advogados e empregados que atuam de forma antiética (BARBOSA, 2014), abusando das prerrogativas processuais que o trabalhador tem, como o princípio protetor, não pagamento de custas processuais no ajuizamento da ação e inexistência honorários de sucumbência (salvo se o empregado for assistido por advogado de sindicato), sendo alguns destes benefícios inclusive determinados por súmulas, como a n.º 219 do TST acerca de honorários. As súmulas dos tribunais brasileiros, geralmente, consistem em pequenos parágrafos pontuais, sobre a matéria controvertida, com o objetivo específico de demonstrar a interpretação daquele órgão sobre, por exemplo, o alcance de um dispositivo de lei. Todos os tribunais empregam esta metodologia, com a exceção do TST, que, em suas súmulas de uniformização de jurisprudência criam verdadeiras normas jurídicas, sendo recorrente ter mais de um item ou inciso, tais como as súmulas de n.º 244, 296, 298, 303, 331 (com incríveis seis incisos) e 369, além de um sumário, com algumas palavras que identificam a matéria discutida. Grande problema de tais súmulas se dá pelo fato de decorrerem de uma tradição entre os juristas brasileiros quanto ao estudo de jurisprudência. Na verdade, no Brasil as decisões judiciais não são analisadas na integra do processo, ou pelo menos na íntegra da sentença ou acórdão (com respectivos votos), mas sim pela sua ementa, requisito de todo acórdão (art. 563, CPC) – um resumo do que foi debatido na decisão, com o tipo de ação judicial a que se refere, a área do direito, a matéria controvertida e qual o entendimento dos magistrados, que corresponde ao sumário das decisões judiciais portuguesas. O Conselho Federal de Justiça publicou em 2004 um manual sobre como redigir ementas nos acórdãos, tendo inclusive a estrutura e requisitos exigidos. Primeiramente, a ementa deve ter um cabeçalho e uma parte dispositiva (GUIMARÃES, 2004, p. 67), sendo que o primeiro deve ser “composto por um conjunto de palavras-chave representativas da temática geral do acórdão” (GUIMARÃES, 2004, p. 67), enquanto o dispositivo representará de “forma sintética, lógica e clara, a tese jurídica que respalda o Entendimento argumentado que propiciou o nexo entre um Fato e um Instituto Jurídico” (GUIMARÃES, 2004, p. 71). Ainda o “dispositivo da ementa deve ser uma proposição inteligível por si só, sem necessidade de leitura do acórdão na íntegra, ou sequer do cabeçalho” (GUIMARÃES, 2004, p. 81). Por fim, Guimarães (2004, p. 82) destaca como quatro requisitos básicos para a redação de ementas jurisprudenciais a clareza, objetividade, precisão e concisão e como qualidades do dispositivo a objetividade, concisão, afirmação, proposição, precisão, univocidade, coerência e correção, a partir das lições de Atienza e Campestrini. Dessa forma, as súmulas do TST trazem em seu bojo a estrutura exigida para ementas de acórdãos dos tribunais brasileiros, como que transformando em uma fonte imediata de direito decisões pontuais e reiteradas sobre determinados aspectos da legislação, por um instrumento deturpado que remedia a inércia do Legislativo com uma violação frontal à CF/88 pelo Judiciário. Vale ressaltar que desde a Emenda Constitucional n.º 45/2004, que acrescentou o art. 103-A à CF/88, o STF pode aprovar súmula, de ofício ou mediante provocação, após reiteradas decisões acerca de matéria constitucional, com efeito vinculante a todo o Poder Judiciário e à Administração Pública em todas as esferas da Federação, sendo o seu objetivo a validade, interpretação e eficácia de normas jurídicas sobre as quais exista controvérsia que “acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica” (art. 103-A, §1º, CF/88). Sobre essas linhas iniciais, que visam delimitar o valor das súmulas dos tribunais no Direito brasileiro, bem como o relevante papel que lhe é entregue na seara laboral, esta pesquisa passa a analisar as alterações resultantes da edição da súmula n.º 277 do TST, que surge em um âmbito em que a Justiça do Trabalho eleva à categoria de fonte do direito imediata – como se lei fosse – um mecanismo que deveria ser empregado para uniformizar uma fonte de direito excepcional e mediata, qual seja, a jurisprudência. 4 NOVA REDAÇÃO DA SÚMULA 277: ULTRA-ATIVIDADE DOS CONTRATOS COLETIVOS A Súmula n.º 277 do Tribunal Superior do Trabalho do Brasil (TST) determinava que as cláusulas de contratos coletivos de trabalho (no Brasil, Acordos e Convenções Coletivas), bem como de sentenças normativas (decisões do TST e de Tribunais Regionais do Trabalho em dissídios coletivos) não integravam o contrato de trabalho individual e, assim, paravam de produzir efeitos no exato momento do fim de sua vigência. A Súmula 277, até setembro de 2012, prescrevia que: Sentença normativa. Convenção ou acordo coletivos. Vigência. Repercussão nos contratos de trabalho I - As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa, convenção ou acordos coletivos vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos individuais de trabalho. II - Ressalva-se da regra enunciado no item I o período compreendido entre 23.12.1992 e 28.07.1995, em que vigorou a Lei nº 8.542, revogada pela Medida Provisória nº 1.709, convertida na Lei nº 10.192, de 14.02.2001. Essa disposição, por sua vez, foi inspirada por normativa que vigorava desde a Resolução do TST n.º 10 de 1988 – mantida pela Resolução 121 de 2003 –, acerca da repercussão das cláusulas de sentença normativa nos contratos de trabalho, condição estendida à ACT e CCT pela Resolução n.º 161 do TST de 16 de novembro de 2009, em decorrência da reforma do Poder Judiciário ocasionada pela Emenda Constitucional n.º 45 de 8 de dezembro de 2004, que alargou a competência da Justiça do Trabalho. Carvalho (et alli, 2013) cita que a redação anterior se baseava no art. 613, IV, CLT, que, ao exigir que os contratos coletivos trouxessem em seu texto as “condições ajustadas para reger as relações individuais de trabalho durante o prazo de sua vigência” (grifo nosso) determinava que aquelas alterações nos contratos de trabalho individuais não o integravam, produzindo efeitos apenas durante o prazo estabelecido no contrato ou pelo prazo máximo de dois anos, sem nenhuma ultra-atividade. Até 2009, então, a Súmula 277 mencionava apenas as sentenças normativas: Sentença normativa. Vigência. Repercussão nos contratos de trabalho. As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos. O prazo de vigência dos contratos coletivos de trabalho (acordos ou convenções) é de, no máximo, dois anos, conforme o art. 614, §3º, da CLT, devendo trazer o prazo de vigência em seu texto (art. 613, II, CLT), sendo de no máximo quatro anos a vigência das sentenças normativas, que igualmente deverá prever o lapso de vigência em seu texto (art. 868, parágrafo único, CLT). Todavia, em sessão do Plenário do TST de 14 de setembro de 2012, esta determinação foi prontamente alterada, passando a ter a Súmula 277 do TST a ter a seguinte redação: CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. EFICÁCIA. ULTRATIVIDADE As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificados ou supri suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho. (redação alterada nas na sessão do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 Renan Quinalha (2014) comenta: A mudança realizada na redação da Súmula n. 277 do TST, anunciada no final do ano passado, significou uma alteração radical do entendimento da mais alta Corte Trabalhista quando à ultratividade das normas coletivas. Antes, prevalecia a orientação de que as cláusulas das normas coletivas não integravam definitivamente os contratos individuais de trabalho, mas apenas durante a sua vigência, que era sempre limitada. De agora em diante, vale o contrário: as cláusulas integram o contrato individual de trabalho até que nova norma coletiva as altere. É preciso, no entanto, um bom senso na aplicação de uma mudança de entendimento dessa natureza e essa decisão do TST vai nesse sentido. Para preservar a segurança jurídica, não há como retroagir um precedente jurisprudencial sumular, assim como não deve uma lei retroagir para atingir situações pretéritas. Resta saber como será aplicado esse novo entendimento no tempo: estão abrangidas apenas as normas coletivas que forem celebradas após a alteração da Súmula ou todas as normas coletivas que já estavam vigentes automaticamente integraram os contratos de trabalho? São questões ainda em aberto. Dado o conteúdo extremamente polêmico da súmula, três Ministros do TST, Augusto César Leite de Carvalho, Kátia Magalhães Arruda e Mauricio Godinho Delgado (este um dos maiores juristas do Direito do Trabalho brasileiro) elaboraram artigo tentando explicar o porquê do órgão aprovar uma normativa que contraria o próprio espírito de um contrato coletiva – que é justamente o de vigorar por um determinado período e encerrar o seus efeitos com o fim do prazo de vigência, a cessação do pacto ou uma nova negociação coletiva –, construindo uma teorização de que a nova redação da súmula assentou o entendimento consagrado no art. 114, §2º, da CF/88, que define a competência da Justiça do Trabalho para julgar dissídio coletivo, “respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”. Além de se basear no dispositivo constitucional supra citado, Delgado (et ali, 2012) infere: É necessário atentar para o aspecto de o sistema positivado pela Consolidação das Leis do Trabalho pressupor uma sequência de normas coletivas, ao regular a negociação coletiva de sorte a que a regência por esse tipo de norma jurídica não sofra solução de continuidade. Para alcançar esse desiderato, o art. 616, §3º, da CLT dispõe que a agremiação sindical instaure o dissídio coletivo “dentro dos sessenta dias anteriores ao respectivo termo final, para que o novo instrumento possa ter vigência no dia imediato a esse termo”. Cumprido tal prazo, a sentença normativa que se obterá no dissídio coletivo “vigorará a partir do dia imediato ao termo final de vigência do acordo, convenção ou sentença normativa” (art. 867, parágrafo único, alínea b, da CLT). Extrai-se, portanto, que o sistema de direito do trabalho não consente com o hiato jurídico, com a existência de um tempo sem norma coletiva. A ultra-atividade da norma coletiva, quando adotada a ultra-atividade condicionada, assegura a eficácia da convenção ou acordo coletivo cujo prazo de vigência estaria exaurido, de modo a não permitir que a categoria de empregados permaneça sem uma disciplina de suas condições específicas de trabalho. Sendo condicionada à superveniência de nova norma coletiva, o surgimento de nova normatização da matéria faz prevalecer a regra mais recente, ainda que tal signifique a redução de direito. (grifo nosso) Na realidade, o TST enfrentou, pelas vias erradas, violando o princípio da legalidade e a reserva legal do Poder Legislativo da União quanto a matérias no Direito do Trabalho, um problema que o Código do Trabalho (CT) português soluciona em um artigo. Ora, se o tribunal receava uma total inexistência de norma coletiva entre o período em que se encerra-se o período de vigência de um contrato coletivo e a publicação da sentença normativa em dissídio coletivo ou uma nova negociação coletiva, a solução encontrada com a nova redação da Súmula n.º 277 do TST traz mais insegurança jurídica do que um possível hiato jurídico. O art. 501 do CT traz uma série de normas sobre a “sobrevigência e caducidade de convenção coletiva”, que tem duração prevista no texto ou de um ano se omissa (art. 499, CT), estabelecendo prazos específicos para a ultra-atividade da norma coletiva, resguardando as condições laborais mínimas, quanto à retribuição, categoria, duração do tempo do trabalho e regimes de proteção social, sendo este regime de sobrevigência um dos objetos da convenção coletiva (art. 492, 2, h, CT). O TST criou um perigoso artifício que resulta em um conglomerado de contratos coletivos que se acumularão com o decorrer dos anos, instrumentalizado pela necessidade de nova negociação expressamente derrogar a anterior e pela proibitiva de trazer condições menos benéficas ao empregado. Em verdade, com o fim de solucionar um problema pontual, o tribunal deu efeito ad eternum aos contratos coletivos, violando a própria ideia de pacto e de sua vigência estabelecida, o que certamente inibirá as classes econômicas de trazerem determinadas vantagens aos trabalhadores, sob pena de serem obrigados a manterem até que o os empregados abrangidos por aquela negociação saíam da empresa. Por outro lado, consolida a possibilidade de existência de uma pluralidade de regimes jurídicos dentro de um mesmo estabelecimento, devido à acumulação de benefícios decorrentes das negociações coletivas que forem sendo integradas ao contrato de trabalho individual dos empregados mais antigos, tendo cada grupo de empregados um conjunto de prerrogativas e normativas de acordo com o contrato coletivo que estivesse em vigor quando adentraram ao quadro de empregados. 5 CONCEITO DE USOS LABORAIS E SUA IDEIA COMO FONTE DE DIREITO No Direito português, os usos estão previstos no Código Civil, em seu art. 3º, no capítulo pertinente às fontes do direito, deixando à lei a função de determinar quando os usos são aplicáveis em dada matéria, além de o excluir do rol de fontes imediatas do direito do art. 1º, o considerando, portanto, como fonte mediata ou indireta: ARTIGO 3º (Valor jurídico dos usos) 1. Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine. 2. As normas corporativas prevalecem sobre os usos. Os usos laborais estão previstos como regra geral no direito laboral, tendo o legislador atribuído uma eficácia genérica (MENEZES CORDEIRO, 1997, p. 165), porém sofreram algumas alterações no seu tratamento no decorrer dos últimos anos. A LCT, até 2003, determinava em seu art. 12º, n.º 2, que “(...) desde que não contrariem as normas acima indicadas (...) e não sejam contrários aos princípios da boa fé, serão atendíveis os usos da profissão do trabalhador e das empresas, salvo se outra coisa for convencionada por escrito”, podendo as partes então afastar a sua aplicação por escrito, se assim entenderem conveniente (PINTO, 1996, p. 156). Mário Pinto (1996, p. 155), portanto à época da legislação atualmente revogada, entendia que os usos somente teriam função de integração das cláusulas contratuais, tendo a sua força vinculativa que derivar da vontade presumida das partes, devendo inclusive elas serem previstas nos contratos individuais de trabalho, pois não seriam fontes autônomas de direito laboral. A Lei n.º 99 de 27 de agosto de 2003 introduziu um novo Código do Trabalho e, em seu art. 1º, elevou os usos ao patamar de “fontes específicas” do Direito do Trabalho, ao lado dos instrumentos coletivos, e prevê “o contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa fé”, redação correspondente ao do art. 1º do atual Código de Trabalho (Lei n.º 7 de 12 de fevereiro de 2009). Com as alterações, Vasconcelos (et alli, 2006, p. 72) disserta “nesses termos, o Código do Trabalho confere aos usos laborais a possibilidade de conformarem os contratos de trabalho (...), reconhecendo, deste modo, a relevância que os usos têm em geral (...) e, em especial, nas situações laborais”. Com relação à importância dos usos na seara trabalhista, Ramalho (2009, p. 233) frisa: A particular relevância dos usos no domínio laboral justifica-se por dois motivos: de uma parte, pela importância que as práticas associadas a determinadas profissões têm na organização do vínculo de trabalho; de outra parte, pelo facto de os usos da empresa e da profissão do trabalhador serem, com frequência, tomados em consideração para integrar aspectos do conteúdo do contrato de trabalho que não tenham sido expressamente definidos pelas partes. Menezes Cordeiro (1997, p. 167) entende que os usos laborais teriam uma natureza secundária em relação às normas jurídicas em sentido estrito, sendo aplicados na ausência de outra previsão legal quanto à uma situação concreta, e afasta a ideia de que seu fundamento decorre da vontade das partes, porque isso seria uma simplificação antecipada do conceito: Na verdade, o facto de certas normas jurídicas – legais, usuais ou outras – poderem ser afastadas por vontade das partes, apenas revela a sua natureza supletiva. Remeter o fundamento de tais normas para a vontade das partes surge como cientificamente incorrecto, praticamente inconsequente e antropologicamente inexacto. Cientificamente incorrecto porque as normas supletivas têm uma existência ligada às competentes fontes sendo ficcioso atribuí-la à vontade de pessoas que podem mesmo desconhecê-las; praticamente inconsequente na medida em que tais normas seguem as vias interpretativas das fontes que as revelem – p. ex., sendo legais, aplica-se o disposto no artigo 9.º do Código Civil; antropologicamente inexacto por esquecer que todo Direito é de criação social, sendo imposto do exterior às pessoas; o dogma da vontade nada mais é do que uma interiorização ingénua de realidades sociológicas. (grifos no original) Assim sendo, o uso laboral na empresa ou em determinado setor profissional é considerado no ordenamento jurídico Português uma fonte de Direito do Trabalho, nos termos do art. 1º, CT, se estabelecer uma condição de trabalho mais favorável que não contrarie às disposições de ordem e interesse públicos e não violarem o princípio da boa-fé, regendo a situação concreta e vinculando o empregador e o empregado. Embora não exista um tempo mínimo de formação de um uso laboral, deve haver uma reiteração da conduta e uma sensação no caso concreto de que o empregado terá aquele direito com respeito ao princípio da razoabilidade, criando uma verdadeira expectativa que forme dentro daquela empresa ou estabelecimento uma consciência do próprio empregado de que aquela liberalidade do empregador passou a entregar os contratos de trabalho individuais, formando um acordo coletivo atípico entre as partes. Mário Pinto (1996, p. 155) destaca que os usos correspondem aos costumes de fato, que seriam práticas usuais e constantes observadas no exercício de certas profissões, ou em certas empresas, sem que o seu respeito seja vinculada a uma convicção de obrigatoriedade e coercibilidade, elemento que o diferencia dos costumes em sentido estrito. Menezes Cordeiro (1997, p. 165) escreve “o uso é uma prática reiterada (...) distingue-se do costume por, nele, não surgir – ou não surgir suficientemente caracterizada – a convicção da obrigatoriedade”, conceito compartilhado por Martinez (2007, p. 181). Importa ressaltar uma diferenciação colocada por Maria do Rosário Palma Ramalho (2009, p. 236) acerca dos usos laborais e de liberalidades dadas pelo empregador: Por fim, ainda no que toca à relação entre os usos e o contrato de trabalho, importa ter sempre presente a natureza e os efeitos dos próprios usos, uma vez que alguns deles podem fazer surgir direitos ou legítimas expectativas na esfera jurídica dos trabalhadores enquanto outros não são de molde a criar essas expectativas. O problema coloca-se, sobretudo, em relação aos usos ou práticas reiteradas das empresas: assim, por exemplo, se uma parcela da retribuição for calculada de acordo com certos critérios, habituais na empresa, e a alteração posterior deste critério determinar uma diminuição da retribuição, estaremos perante um direito dos trabalhados com origem nos usos, que deve ser tutelado nos termos gerais da tutela da retribuição; mas já se a empresa tiver reiteradamente para com os seus trabalhadores uma liberalidade (assim, um prémio de produtividade anual atribuído durante um longo período, ou uma prática de tolerância de ponto, durante certo ou em certas circunstâncias) estamos ainda perante um uso, mas dele não se retiram direitos para os trabalhadores porque esta prática reiterada não deixa de corresponder a uma liberalidade. (grifo nosso) Portanto, haveria uma diferença na forma que o empregador traz benefícios ao trabalhador e sua consequência, quer dizer, se altera uma condição de trabalho de forma estável por um longo período seria um uso, enquanto determinadas condutas pontuais da empresa ou estabelecimento que trazem uma vantagem ao empregado, mas não afeta suas condições mínimas de trabalho, não seria um uso laboral e apenas uma liberalidade que pode ser cessada a qualquer momento. Martinez (2007, p. 182) aponta, nesse sentido, que os usos das empresas por vezes são dificilmente distinguidos das liberalidades concedidas aos trabalhadores, estando a diferença eventualmente no ânimo do empregador na concessão, frisando que o importante é compreender que a prática reiterada não será considerada como uso quando for contrária a lei, mesmo que mais favoráveis ao trabalhador, citando exemplo de pensão complementar de reforma ou aposentadoria, superior ao previsto em lei (Ac. STJ de 16/06/1993, CJ (STJ) I, T. III, p. 261). Enquanto Martinez (2007, p. 184) frisa a relevância dos usos no âmbito das práticas laborais criadas no seio das empresas e em certas artes e ofícios, Menezes Cordeiro (1997, p. 167) vai além e acrescenta que, embora os usos ocupem um lugar modesto na hierarquia das fontes laborais e sua relevância tem vindo a decrescer, eles servem como uma proteção contra abusos do poder regulamentar do empregador: Mantêm-se, no entanto, e com um particular relevo no quadro das empresas: sendo certo que estas, pela sua complexidade, requerem normas específicas para o seu funcionamento interno, os usos evitam que todos os aspectos não especificamente tratados por fontes hierarquicamente superiores caiam na alçada do poder regulamentar da entidade empregadora. Ramalho (2009, p. 233) entende que os usos tem perdido a importância por força da intervenção legislativa e da abrangência cada vez maior da negociação coletiva, posição acompanhada por Martinez (2007, p. 183): Tal como o costume, os usos vão perdendo actualidade e relevância, pois é frequente que, perante a existência de um uso, o legislador intervenha; e, no direito do trabalho, quando um determinado uso começa a generalizar-se, há a ter em conta que, para além da intervenção legislativa frequente, as convenções colectivas de trabalho regulamentam igualmente usos, passando estes a estar incluídos nas fontes de direito do trabalho (...) Importa que não se pode rebaixar a importância dos usos laborais com o argumento de que eles são incorporados à legislação e aos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, na medida em que, para que isto aconteça, deve-se ocorrer anteriormente o fenômeno das práticas reiteradas que se protele por um lapso razoável de tempo e que surja o uso, que será considerado como fonte de direito laboral, não importando se passe ou não a estar contido no texto legal ou contratual (individual ou coletivo). Ora, o uso laboral não é menos importante por estar contido em uma dessas normas ou pactos, porque estas práticas continuarão a ser alteradas e modificada, assim como novas poderão surgir sem que estejam previstas. Se houver então uma verdadeira alteração em um direito fundamental laboral mínimo (como à remuneração, intervalo inter e intra-jornada, licença maternidade, entre outros direitos basilares das relações de trabalho), beneficiando o trabalhador em relação ao que está previsto nas normas legais, criando uma verídica expectativa de que, se estiver em conformidade com os requisitos reiteradamente considerados pelo empregador, será ilícita qualquer recusa concessão do benefício por parte desse. 6 USOS LABORAIS E ULTRATIVIDADE DOS ACORDOS E CONVENÇÕES COLETIVAS NO BRASIL Dessa forma, após o estudo das peculiaridades do direito laboral brasileiro e das súmulas dos tribunais no âmbito das fontes de direito, bem como dos efeitos da nova redação da Súmula n.º 277 do TST e dos usos laborais no Direito do Trabalho português, há de se observar uma aproximação da ideia de usos aos efeitos da ultra-atividade das cláusulas convencionais que a referida súmula trouxe. A Súmula n.º 277 do TST criou um sistema de usos laborais no Brasil com um prazo específico para que o empregador seja abrangido, quer dizer, o trabalhador ingressa no estabelecimento e passa a ser conduzido por aquele regime jurídico previsto pelos contratos coletivos, que continuam a produzir efeitos para aquele empregado específico após o fim do termo de vigência e inclusive se sobrevier novos acordos ou convenções coletivas – desde que o contrato coletivo anterior seja mais benéfico ou que o novo não regule estas situações. Os usos laborais em Portugal abrangerão todos os trabalhadores da empresa ou do setor de atividade a que o uso se referir, sujeitos que correspondem aos alcançados no Brasil, na medida em que há a filiação obrigatória aos sindicatos, estando aqueles empregados sujeitos ao contrato coletivo de acordo com o instrumento aplicável, seja acordo ou convenção, e, assim, à cláusula normativa que continuar produzindo efeitos de forma ultraativa. Júlio Vieira Gomes (2008, p. 113) disserta sobre a integração dos usos laborais ao contrato individual do trabalho, deixando muito claro a sua proximidade ao novo dispositivo da Súmula nº 277 do TST: A questão mais delicada é a de saber se o uso da empresa, apresentando-se, nos termos expostos, como uma autovinculação do empregador, passa a incorporar – ou, melhor talvez, as pretensões que dele nascem para cada um dos seus destinatários – os contratos individuais do trabalho. (...) Antes de tomarmos posição desta matéria, importará recordar que, entre nós, o importante Acórdão do STJ de 05/07/2007 se pronunciou, recentemente, no sentido de que “a partir do momento que a prática em análise se consolidou e passou a constituir um uso laboral relevante como fonte do direito do trabalho, o objeto deste uso passou a incorporar directa e imediatamente os contratos de trabalho dos trabalhadores ao serviço da ré”. Ora, parece-nos que esta é, efetivamente, a melhor construção: o uso não tem na sua base qualquer proposta negocial do empregador, encontrando-se, antes, o fundamento para a vinculação deste na confiança gerada por uma conduta reiterada que acaba por valer como regra e da qual resultam para os trabalhadores pretensões individuais que se inserem nos respectivos contratos de trabalho. Assim, desde o momento em que o uso é vinculante para o empregador gera uma vinculação deste que se incorpora no conteúdo dos contratos individuais de trabalho. Conclui o Autor (Gomes, 2008, p. 181), dando função aos usos de manutenção da coerência das relações laborais em face a condutas do empregador: (...) diremos que o uso da empresa (...) é atribuído a um comportamento regulamentar e reiterado no tempo do empregador. Esta auto-vinculação do empregador resulta da necessidade de proteger a confiança do trabalhador na estabilidade e coerência das condutas daquele, tutelando o trabalhador face a alterações unilaterais da conduta do empregador, sobretudo em domínios, como a retribuição, em que são interditas ao empregador reduções unilaterais. (grifo nosso) Enquanto em Portugal uma vantagem ofertada pelo empregador reiteradamente pode gerar um uso, que seria um acordo atípico entre as partes, entendemos que no Brasil, com a Súmula n.º 277 do TST, há um flerte com esse conceito, ocasionado por um benefício em prol do trabalhador que deveria produzir efeitos apenas na vigência daquele pacto, mas que continua a vigorar até que as partes determinem não haver mais aplicação da cláusula ultraativa. Vale ressaltar que não propomos a existência concreta de uma figura no Direito brasileiro idêntica à concepção de uso laboral em Portugal, mas sim de uma aproximação de sua sistemática e consequente afastamento da própria ideia de contrato coletivo de trabalho, que é justamente a de criar benefícios e prerrogativas para a classe profissional que produzirá efeitos apenas naquele período de tempo (de no máximo dois anos, sendo revista na data-base de negociação coletiva após um ano de vigência). 7 CONCLUSÃO A Consolidação das Leis do Trabalho, legislação com mais de setenta anos de vigência, tem sua atualização paulatinamente implementada pelo legislativo ordinário, seja por alterações esporádicas em seu texto, seja pela promulgação de leis específicas. Além disso, a CF/88 acompanha, aos passos que as alterações do seu texto exigem, as exigências e direitos dos trabalhadores. Não obstante, o processo legislativo pode se prolongar indevidamente e, muitas vezes, não resultar em nenhuma alteração na ordem jurídica, o que levou a Justiça do Trabalho aumentar inescrupulosamente a utilização das súmulas – instrumento absolutamente equivocado para a firmação de precedentes, que, na prática, assumem quase a força de normas jurídicas. Com a apreciação da validade das súmulas, publicadas geralmente por meio de resoluções do tribunal que a emite, deve-se questionar o alcance de sua prescrição que, no caso do Tribunal Superior do Trabalho, acaba por ter seu conteúdo ratificado com força de lei. Dado o valor das súmulas dos tribunais no Direito brasileiro e o importante papel que na área laboral, as alterações resultantes da edição da súmula n.º 277 do TST advêm da própria Justiça do Trabalho mediante um mecanismo em que se dá como fonte do direito imediata – aqui, surge com aspecto de lei, enquanto deveria ser tão somente com o fim de uniformizar uma fonte de direito excepcional e mediata, qual seja, a jurisprudência. A Súmula n.º 277 do TST, em sua redação anterior, determinava que as cláusulas de contratos coletivos de trabalho (Acordos e Convenções Coletivas) e de sentenças normativas (decisões do TST e de Tribunais Regionais do Trabalho em dissídios coletivos) não integravam o contrato de trabalho individual e paravam de produzir efeitos no exato momento do fim de sua vigência. O TST, com a alteração de setembro de 2012, criou uma previsão que resulta em um conglomerado de contratos coletivos, que se acumularão no passar dos anos e na implementação das relações laborais, em decorrência da exigência de nova negociação que expressamente derrogue a anterior, ao mesmo tempo em que há a vedação de suplementação de condições menos benéficas ao empregado – o que ocorrerá, evidentemente, com a supressão da norma coletiva mais vantajosa anterior. Com o fim de solucionar um problema pontual, o TST atribuiu efeito ad eternum aos contratos coletivos, negando-lhe a sua própria natureza de pacto e de vigência estabelecida, o que pode resultar em desinteresse das classes econômicas de trazerem determinadas vantagens aos trabalhadores – devido à possibilidade de se verem obrigados a manter as vantagens até que os empregados abrangidos por aquela negociação saíam da empresa. A alteração da Súmula n.º 277 permite a existência de uma pluralidade de regimes jurídicos dentro de um mesmo estabelecimento, em razão da acumulação de benefícios decorrentes das negociações coletivas que forem sendo integradas ao contrato de trabalho individual dos empregados mais antigos, tendo cada grupo de empregados um conjunto de prerrogativas e normativas de acordo com o contrato coletivo que estivesse em vigor quando adentraram ao quadro de empregados. O uso laboral, fonte de Direito do Trabalho no ordenamento jurídico português, não exige um tempo para sua formação, mas uma reiteração da conduta e uma sensação, no caso concreto, de que o empregado terá aquele direito, criando uma verdadeira expectativa que forme dentro daquela empresa ou estabelecimento uma consciência do próprio empregado de que aquela liberalidade do empregador passou a entregar os contratos de trabalho individuais, formando um acordo coletivo atípico entre as partes – quais sejam, todos aqueles empregadores naquelas mesmas condições. O uso laboral em Portugal, embora tenha a sua importância reduzida atualmente, ainda figura como um meio de alterações nos direitos fundamentais laborais que abrangem um conteúdo mínimo, trazendo benefícios ao trabalhador, que então terá uma verdadeira consciência de a recusa de sua implementação pelo empregador consistirá em uma conduta ilícita. Dessa forma, o uso laboral abrange todos os trabalhadores da empresa ou do setor de atividade a que o uso se referir – sujeitos que correspondem aos alcançados pela contratação coletiva no Brasil, na figura dos sindicatos, estando aqueles empregados sujeitos ao contrato coletivo e à cláusula normativa que continuar produzindo efeitos mesmo após a cessação de vigência do instrumento – e alcançam o empregado até que este saia daquela relação do trabalho, integrando até este momento seu arcabouço jurídico. Se em Portugal uma vantagem ofertada pelo empregador reiteradamente pode gerar um uso, que seria um acordo atípico entre as partes, no Brasil, com a Súmula n.º 277 do TST, há uma aproximação dessa concepção. Ora, a norma coletiva que beneficia o trabalhador deveria produzir efeitos apenas na vigência daquele pacto, ou então com uma vigência préestabelecia, mas que continuará a vigorar até que as partes determinem não haver mais aplicação da cláusula mais favorável – que com a nova normativa passará a ter eficácia ultraativa. Não entendemos haver a existência concreta de uma figura no Direito brasileiro idêntica à concepção de uso laboral em Portugal, mas sim a aproximação de sua sistemática e consequente afastamento da própria ideia de contrato coletivo de trabalho – o qual pretenderia a criação de benefícios e prerrogativas para a classe profissional que produziria efeitos apenas no lapso temporal legal ou previsto no acordo ou convenção. Destarte, as súmulas consistem em equivocado meio para a realização de alterações na legislação laboral, tal como se deu pela alteração da Súmula nº 277 do TST, que atribui diferentes efeitos às cláusulas de contratação coletiva. Ainda, ao se delimitar que as cláusulas de acordos ou convenções coletivas anteriores vão se acumulando na figura dos trabalhadores que eram abrangidos por estes pactos, entendemos haver uma correlação à figura excepcional dos usos laborais em Portugal, que igualmente criam um conjunto de benefícios e prerrogativas que vão se conglomerando no decorrer da relação laboral e que se aplicam até que o trabalhador saia da relação de trabalho, o que não parece ter sido a intenção dos Ministros do TST. Cabe ressaltar que uma alteração na CLT, criando uma regra de transição entre contratos coletivos e sentenças normativas, seria muito mais eficiente, justa e tecnicamente superior. Porém, se adotou o meio mais frágil e juridicamente inadequado para tanto, dando à Súmula nº 277 amplos efeitos de lei e alteração das relações laborais. REFERÊNCIAS BARBOSA, Rogério. Empregado deixa de ser vítima na Justiça do Trabalho. 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(IN)APLICABILIDADE DA MAJORANTE DE EMPREGO DE ARMA NO CRIME DE ROUBO, QUANDO DA UTILIZAÇÃO DE SIMULÁCRO Vinícius Victor Vieira da Silva131 RESUMO O presente estudo tem como escopo demonstrar a interpretação doutrinária acerca da aplicação da majorante de emprego de arma no crime de Roubo, quando o agente utiliza simulácro de arma de fogo, bem como a hodierna jurisprudência dominante, além dos aspectos relacionados à prova. PALAVRAS-CHAVE: Arma de fogo. Simulácro. Roubo. Majorante. ABSTRACT The present study is to demonstrate the scope of doctrinal interpretation on the application of the upper bound for employment gun in the crime of theft when the agent uses the simulacrum of a firearm, as well as today's prevailing jurisprudence, in addition to aspects related to the test. KEY-WORDS: Firearm. Simulacrum. Theft. Upper bound. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO. 2 CRITÉRIO OBJETIVO E SUBJETIVO. 3 APREENSÃO E PERÍCIA. 4 PALAVRA DO OFENDIDO E TESTEMUNHAS. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS. 1 INTRODUÇÃO O Código Penal deve ser utilizado sempre como a ultima ratio, buscando resguardar todos os bens jurídicos possíveis, sendo acionado somente em última circunstância. O presente artigo se debruçará sob o crime de Roubo, mas especificamente sob a majorante de emprego de arma, o qual salvaguarda dupla objetividade jurídica, o patrimônio e a integridade corporal e psíquica das pessoas. Não obstante o porte ilegal de arma de fogo constitui crime, segundo a Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003, por esta mesma Lei, é vedada a fabricação, venda, comercialização e a importação de armas de brinquedos, suas réplicas e simulácros de arma 131 Acadêmico do 5o ano de Direito da Unifil. de fogo, que com estas possam confundir, porém, a sua posse não constitui crime e nem há qualquer vedação na legislação. Diante disso, discorrer-se-á sobre a excepcional aplicabilidade da majorante de emprego de arma no crime de Roubo, quando tal utilização for simulada e não real. 2 CRITÉRIO OBJETIVO E SUBJETIVO Em 1996, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 174, a qual delineava o seguinte entendimento “No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena”, demonstrando que o Egrégio Tribunal adotara o critério subjetivo na avaliação do potencial ofensivo do objeto utilizado para a aplicação de majorante prevista no inciso I do §2º do Art. 157 do Código Penal Brasileiro. Defendido por uma determinada corrente doutrinária, cujo principal expoente é Fernando Capez, o critério subjetivo comporta a idéia de que o emprego de simulacro de arma de fogo, ainda que seja um meio inidôneo de causar lesão, o mero abalo psicológico na vítima, capaz de causar o temor e que contribui para a colaboração do ofendido quanto à ação criminosa do agente, é suficiente para configurar a aplicação da majorante de pena em epígrafe. Com excelência, Fernando Capez aduz: O fundamento dessa causa de aumento é o poder intimidatório que a arma exerce sobre a vítima, anulando-lhe a sua capacidade de resistência. Por essa razão, não importa o poder vulnerante da arma, ou seja, a sua potencialidade lesiva, bastando que ela seja idônea a infundir maior temor na vítima e assim diminuir a sua possibilidade de reação. Trata-se, portanto, de circunstância subjetiva. Assim, a arma de fogo descarregada ou defeituosa ou o simulacro de arma (arma de brinquedo) configuram a majorante em tela, pois o seu manejamento, não obstante a ausência de potencialidade ofensiva, é capaz de aterrorizar a vítima. (CAPEZ, 2012, p. 431) Todavia, a Terceira Seção do STJ, na sessão de 24 de outubro de 2001, julgando o REsp 2013.053-SP, decidiu pelo cancelamento da súmula 174, aderindo à interpretação da doutrina majoritária, defensora do critério objetivo. Hodiernamente a doutrina e jurisprudência é pacífica no que se refere à não incidência da majorante do emprego de arma no crime de roubo, quando da utilização de simulacro de arma de fogo, adotando, por conseguinte, o critério objetivo na avaliação do real potencial ofensivo do objeto, conforme assevera Cezar Roberto Bitencourt: O fundamento dessa majorante reside exatamente na maior probabilidade de dano que o emprego de arma (revólver, faca, punhal etc.) representa e não no temor maior sentido pela vítima. Por isso, é necessário que a arma apresente idoneidade ofensiva, qualidade inexistente em arma descarregada, defeituosa ou mesmo de brinquedo. Enfim, a potencialidade lesiva e o perigo que uma arma verdadeira apresenta não existem nos instrumentos antes referidos. Pelas mesmas razões, não admitimos a caracterização dessa majorante com o uso de arma inapta a produzir disparos, isto é, inidônea para o fim a que se destina. (BITENCOURT, 2012, p. 119) Os recorrentes julgados demonstram que há exceções na aplicação da majorante em questão e na utilização do critério subjetivo, ainda que o objeto utilizado não tenha o real potencial ofensivo. 3 APREENSÃO E PERÍCIA É irrefutável que, por inúmeras vezes, os delinquentes ao praticarem o crime de Roubo, conseguem fugir sem serem pegos em flagrante e logo em seguida se desfazem dos instrumentos utilizados para o cometimento do crime para dificultar a coleta das provas e a consequente tipificação, que em não raras situações, são simulacros de arma de fogo. É sabido que a apreensão consiste na retenção do objeto material utilizado pelo agente para a prática do ilícito e que pode ser utilizada como meio de prova de que tenha cometido o crime. Dentre algumas situações de bens que podem ser apreendidos, segundo o Código de Processo Penal, encontra-se na alínea d do§1º do Art. 240, os seguintes “apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso”. Após a apreensão do objeto, no caso da arma de fogo, é designado a um perito a função examiná-lo com o fito de determinar, além de outras situações, o caráter da portencialidade lesiva da arma e, após a elaboração do laudo, as conclusões do expert serão encaminhadas ao juiz para auxiliar na busca da verdade real do processo. Entretanto, conforme dito, por inumeras vezes as armas utilizadas nos crimes não são encontradas, e não obstante o sujeito ser denunciado, bem como julgado pela prática do Roubo majorado pelo emprego de arma, é imperioso ressaltar que, ainda que a perícia seja uma prova substancialmente importante, o laudo pericial não é indispensável à prolação de sentença condenatória, haja vista que, neste caso, a palavra do ofendido e das testemunhas serve para dar guarida à decisão do magistrado. 4 PALAVRA DO OFENDIDO E TESTEMUNHAS É de notar-se em diversas jurisprudencias a inexigibilidade da prova pericial ou da apreensão da arma, visto que é suficiente a ouvida do ofendido e das testemunhas, cabendo ao acusado, no caso de ser alegado por uma destas provas o efetivo emprego de arma de fogo, o ônus de provar o contrário. Relatou-se no decorrer deste artigo que pela corrente majoritária só há a incidência da majorante do emprego de arma no crime de roubo, quando a arma tiver, de fato, caráter de comprometer a incolumidade física da vítima, isto é, promover a real lesividade no ofendido utilizando o critério objetivo. É de se indagar, então: Quando o agente, ao abordar a vítima, emprega um simulacro de arma de fogo e depois dele se desfaz a ponto de não restar qualquer indício de existência de tal objeto, caberia ao agente, a incidência da majorante em questão? Deste questionamento, decorre nova indagação que, uma vez respondida, permitirá a solução da questão principal. É certo que existem objetos que muito se parecem com amas de fogo legítimas, de modo que, diante disto, seria possível admitir que o depoimento do ofendido ou de testemunhas bastasse como prova à incidência da majorante já que, não raras vezes, estas não teriam sequer conhecimento técnico para reconhecer a diferença entre o objeto lesivo e o simulacro? Ademais disso, o só fato do agente ter conseguido imprimir seu intento criminoso já demonstra que, naquela situação, vítima e testemunhas aterrorizaram-se com a ação do criminoso a ponto de crer tratar-se de objeto legítimo a colocar, em perigo, sua integridade física. Essa situação, por si só bastaria para demonstrar quão frágil é a prova que, na interpretação jurisprudencial, tem bastado para sustentar um decreto condenatório com a incidente da majorante. De se ver, neste sentido, o julgado proferido em 04 de junho de 2009 pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, em Habeas Corpus 96099/RS, tendo como relator o Ministro Ricardo Lewandowski: Roubo qualificado pelo emprego de arma de fogo. Apreensão e perícia para a comprovação de seu potencial ofensivo. Desnecessidade. Circunstância que pode ser evidenciada por outros meios de prova. Ordem denegada. I — Não se mostra necessária a apreensão e perícia da arma de fogo empregada no roubo para comprovar o seu potencial lesivo, visto que tal qualidade integra a própria natureza do artefato. II — Lesividade do instrumento que se encontra in re ipsa. III — A qualificadora do art. 157, § 2º, I, do Código Penal, pode ser evidenciada por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima — reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente — ou pelo depoimento de testemunha presencial. IV — Se o acusado alegar o contrário ou sustentar a ausência de potencial lesivo da arma empregada para intimidar a vítima, será dele o ônus de produzir tal prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. V — A arma de fogo, mesmo que não tenha o poder de disparar projéteis, pode ser empregada como instrumento contundente, apto a produzir lesões graves. VI — Hipótese que não guarda correspondência com o roubo praticado com arma de brinquedo. VII — Precedente do STF. VIII — Ordem indeferida (STF — HC 96099/RS — Pleno — Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, DJ04.06.2009, p. 498). Seguindo o entendimento do Pretório Excelso, o depoimento da vítima e/ou de testemunhas bastaria à incidência da majorante de emprego de arma de fogo no crime de roubo, ainda que ao contrário disso, o agente tivesse se utilizado de simples simulacro que, dada sua natureza, seria inidôneo à produção do resultado lesivo, tornando impossível a qualificação do crime. 5 CONCLUSÃO Não se nega, por óbvio, a maestria e excelência dos julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia, o que não se pode admitir é que na busca de acalentar os anseios e indignações sociais, se interprete a lei penal em prejuízo do acusado, ferindo, com isto, os princípios e garantias individuais. É certo que um maior rigorismo do sistema penal, com a imposição de penas altas, por si só, não será capaz de resolver o problema da criminalidade e dificultar a ação dos delinquentes, razão pela qual, não se deve optar por qualificar uma conduta quando esta não encontrar perfeita subsunção à norma abstrata. Assim, conforme abordado no presente artigo, o sujeito utilizando de arma de fogo idônea ou utilizando-se de um simulacro, responderá, de idêntica forma, pela qualificadora do emprego arma de fogo com potencial de lesividade, ainda que na segunda hipótese, o objeto seja absolutamente inidôneo para alcançar esse fim Desta conclusão decorre algumas inquietações: as recentes decisões proferidas, ao invés de diminuir a criminalidade como pretendido, não acabam contribuindo, ainda mais, para que o agente passe a utilizar arma de fogo de real capacidade lesiva? Ou, induz o agente, na prática criminosa, a utilizar o simulacro de arma de fogo (que trará transtorno à vítima e diminuirá a sua capacidade de resistência igual a arma de fogo) que poderá depois guardá-lo para que, se porventura for pego posteriormente ou em flagrante, provar em juízo que era um meio inidôneo de causar lesão e, consequentemente, não incidir sobre sua conduta a majorante de emprego de arma? REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial 3, dos crimes contra o patrimônio até dos crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos. 8.ed., São Paulo: Saraiva, 2012. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19.ed., São Paulo: Saraiva, 2012. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial 2, dos crimes contra a pessoa a dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. 12. Ed., São Paulo: Saraiva, 2012. ESTEFAM, André. Direito penal: parte especial. Vol. 2., São Paulo: Saraiva, 2010. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Vol. 3. 6.ed., Niterói, Rio de Janeiro: Impetrus, 2009. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2011. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral e parte especial. 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Vade Mecum/obra coletiv de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 13.ed., São Paulo: Saraiva, 2012. <http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=@num=%27174%27>. Acesso em: 21 de janeiro de 2014. PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE E INELEGIBILIDADES NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz132 Le vrai moyen de défendre la démocratie contre les toxines qu’elle sécrète ellemême, par son propre développement, ne consiste pas à l’amputer des techniques modernes d’encadrement des masses et de sélection des cadres – chirurgie qui la réduirait à une forme vide, à une apparence illusoire – mais de détourner celles-ci à son propre usage : car elles sont en définitive des outils, peut-être capables du meilleur aussi bien que du pire, comme les langues du vieil Ésope. Et les refuser revient à refuser d’agir. S’il était vrai que la démocratie soit incompatible avec elles, cela signifierait sans doute que la démocratie est incompatible avec les conditions de notre époque. (Maurice Duverger, in Les Partis Politiques, Libr. Armand Colin, 1976, pp. 557/8). 1 INTRODUÇÃO É para mim honra inexcedível atender ao convite que recebi do ilustre Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Santa Catarina para proferir uma conferência sobre “Pressupostos de Elegibilidade e Inelegibilidades” no Ciclo de Palestras sobre o Direito Eleitoral organizado pela Escola Judiciária Eleitoral Juiz Irineu João da Silva. 2 DISTINÇÃO ENTRE INELEGIBILIDADE E INCOMPATIBILIDADE Para que se possa definir a inelegibilidade é necessário, preliminarmente, distingui-la de outro instituto que com ela não se confunde, a incompatibilidade. Na doutrina estrangeira, principalmente a francesa e a italiana, é clássica essa distinção, como referem ANDRÉ e FRANCINE DEMICHEL, na sua obra Droit Électoral: Il y a inéligibilité lorsque la situation d’un cantidat fait obstacle à ce qu’il soit légalement élu. Il y a simplement incompatibilité lorsqu’un candidat peut légalement acquérir un mandat, mais ne peut l’exercer, donc le conserver, s’il n’est pas mis fin à une situation préexistante qui le concerne ou qui concerne éventuellement tel ou tel de ceux qui ont été élus en même temps que lui. L’inéligibilité es donc une impossibilité juridique d’acquisition d’un mandat; l’incompatibilité, une simple impossibilité de coexistance de ce mandat et d’une autre situation. 133 O nosso legislador constituinte distingue perfeitamente as duas situações. A 132 Desembargador Federal do TRF da 4ª região. Diretor da Escola da Magistratura (EMAGIS) DEMICHEL, André et Francine. DROIT ÉLECTORAL. Librairie Dalloz, Paris, 1973. p. 223. No mesmo sentido: LAFERRIÈRE, Julien. Manuel de Droit Constitutionnel. 2ª ed. Editions Domat Montchrestien, Paris, 1947. p. 669; BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Direito Constitucional. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984, nº 119. p. 291 e segs. GALATERIA, Luigi. Gli Organi Collegiali Amministrativi, Dott. A. Giuffrè Editore, Milano, 1975, v. I, p. 69/91; No Direito-Argentino, a propósito das incompatibilidades, ver BIELSA, Rafael. Derecho Constitucional. 2ª ed., Roque Depalma Editor, Buenos Aires, nº 158, p. 404 e segs. 133 Constituição Federal estabelece as incompatibilidades no seu art. 54, e as inelegibilidades no art. 14, § § 4º e seguintes, e nos demais casos fixados na Lei Complementar nº 64/90. Inelegibilidades, pois, são os impedimentos, de natureza constitucional ou legal (se forem os previstos na lei Complementar que regula a matéria das inelegibilidades), que impossibilitam a alguém o seu registro como postulante a todos ou a alguns cargos eletivos, ou, se supervenientes ao registro, servem de embasamento à impugnação de sua diplomação, tornando nulos os votos porventura dados ao cidadão sufragado. As incompatibilidades são, da mesma forma, impedimentos, embora de natureza diversa, que proíbem que o parlamentar, desde a expedição do diploma ou desde a sua posse, obtenha, direta ou indiretamente, vantagens do Poder Público, ou se utilize do mandato para obtê-las com maior facilidade. Enquanto que a inelegibilidade é um impedimento prévio à eleição, tornando nulos os votos dados ao cidadão inelegível, a incompatibilidade é um impedimento posterior ao pleito eleitoral e proibitivo do exercício do mandato. Se o parlamentar infringir as proibições constantes do art. 54 da Constituição Federal, ele perderá o seu mandato. Cabe, portanto, a ele, parlamentar, optar ou pela permanência no legislativo, abandonando o cargo incompatível com o exercício do seu mandato, ou, então, continua no exercício do cargo incompatível, perdendo, no entanto, o mandato legislativo. A respeito, leciona JULIEN LAFERRIÈRE, verbis: La différence entre l’incompatibilité et l’inéligibilité est donc très nette. L’inéligibilité joue avant l’élection ; elle la rend juridiquement impossible. A supposer qu’un inéligible se soit présenté et ait obtenu la majorité des voix, son élection est nulle et devra être invalidée ; il n’entre pas à la Chambre. L’incompatibilité au contraire n’empêche pas l’élection qui est valable ; l’incompatible entre à la Chambre: son élection doit être validée. L’incompatibilité ne produit effet qu’après l’élection : elle interdit de conserver à la fois le mandat parlementaire et la situation incompatible. 134 Por outro lado, incumbe privativamente ao Poder Legislativo fazer a verificação da incompatibilidade do exercício do cargo e, via de consequência, a declaração ou não da perda do mandato do parlamentar. Nesse sentido, deliberou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, verbis: DEPUTADO ESTADUAL – Exercício do cargo e da vice-prefeitura da Capital – Declaração da pretendida incompatibilidade pelo Judiciário – Inadmissibilidade – 134 In Manuel de Droit Constitutionnel, 2ª edição, Montchrestien, Paris, 1947, p. 669. Ato privativo do Legislativo – Carência da segurança. É privativo da Assembléia Legislativa fazer a verificação da incompatibilidade do exercício da deputação estadual com a vice-prefeitura e decidir sôbre a mesma, declarando, ou não, a perda do mandato do deputado. N. 146.172 – Capital – Impetrante: Odilo Antunes de Siqueira – Impetrado: O Exmo. Sr. Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. 135 Em sua primorosa fundamentação, consta do acórdão, verbis: Pretende o impetrante que se declare a ocorrência de opção tácita do Deputado Leôncio Ferraz Júnior, pelo fato de se empossar no cargo de vice-prefeito da Capital e existir incompatibilidade no exercício simultâneo da deputação e da viceprefeitura. Verifica-se pela prova dos autos que o Deputado Leôncio Ferraz Júnior está no pleno exercício de suas funções na Assembléia Legislativa. Assim, o reconhecimento da pretensão do impetrante implica, por via de consequência, na cassação do mandato daquele parlamentar. Se se entendesse que houve opção pelo cargo de vice-prefeito, resultaria na perda do que exerce na Assembléia. A Casa das Leis, porém, chamada a decidir sôbre uma questão de ordem, levantada pelo impetrante sôbre êsse tema, decidiu que não havia incompatibilidade entre ambos. Haverá possibilidade do Poder Judiciário julgar que existe incompatibilidade, reconhecer a renúncia tácita e determinar a efetivação do primeiro suplente? Afigura-se que essa questão não está abrangida pelo Poder Jurisdicional. É peculiar ao Legislativo porque, em última análise, resulta na cassação do mandato de um de seus pares. Só êste Poder poderá impor a sanção cabível, no caso de incompatibilidade, no exercício das funções. A intervenção do Judiciário, no caso, viria ferir o princípio de independência dos Podêres, penetrando num campo reservado à discrição do Parlamento, quanto à conveniência da medida. O Colendo Supremo Tribunal, em acórdão relatado pelo Sr. Ministro Luiz Gallotti, decidiu que «é privativa da Assembleia Legislativa a declaração da perda de mandato de deputado estadual, em virtude da aceitação de cargo público» (Revista de Direito Administrativo», vol. 51/248). Em comentário a êsse venerando julgado, o Prof. Caio Tácito disse: «A declaração da perda de mandato é ato «interna corporis» das assembléias políticas, chamadas a deliberar mediante iniciativa de seus próprios membros, das organizações partidárias ou do chefe do Ministério Público. O Poder Judiciário não pode compelir as Câmaras à prática de ato de conteúdo e efeitos políticos, que a Constituição reserva ao julgamento exclusivo de seu membros. Nem mesmo a Justiça Eleitoral pode aferir, em tais casos, a legitimidade do mandato, cessando a sua alçada com a diplomação dos eleitos» (pág. 256). A seguir, traz em seu abono a lição de Francisco Campos: «Todas as questões relativas à economia interna das assembléias políticas, particularmente aquelas que entendem direta e imediatamente com a sua autonomia, parecem, por sua natureza, reservadas à sua exclusiva competência; nem de outra maneira se poderia conceber a independência do Congresso, particularmente, se, em face dêle e concorrendo com a sua competência, se instituísse, sôbre a mesma matéria, uma jurisdição estranha, a que ficasse subordinada a sua autoridade» («Direito Constitucional», II/115). «A Câmara é soberana no julgamento, tanto das prerrogativas, como das incompatibilidades parlamentares. Assim como lhe incumbe decidir, conclusivamente, sôbre as imunidades inerentes ao exercício do mandato, também aprecia, com exclusividade, as interdições às atividades dos congressistas» (pág. 257). Outros julgados existem no mesmo sentido do ora citado e que se encontram na «Rev. dos Tribs.», vols. 214/369, 239/425 e na «Rev. de Direito Administrativo», vol. 49/106. Na «Rev. de Direito Administrativo», vol. 51/265, há outro acórdão do Colendo Supremo Tribunal, em que foi relator o Sr. Ministro Ari Franco, decidiu: «Acho que, nos têrmos da Constituição, pelo art. 36, que estabelece a independência 135 In Revista dos Tribunais, 369/83. dos podêres, e em conformidade com a lei n. 211, de 1948, a prerrogativa de declarar a perda do mandato cabe às Câmaras Legislativas.» Por êsses fundamentos, o impetrante é carecedor da segurança pleiteada, visto que é privativo da Assembléia Legislativa fazer a verificação da incompatibilidade e decidir sôbre a mesma, declarando ou não a perda do mandato de deputado. 136 3 O EFEITO MORALIZADOR DAS INELEGIBILIDADES Nas inelegibilidades é cristalino o efeito moralizador que inspirou o legislador constituinte de 1967, 1969 e 1988, com especial desvelo no que concerne à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, evitando, com essas medidas preventivas que indivíduos indignos da grandeza que cerca o exercício da função pública, seja a nível do Executivo ou Legislativo, possam comprometer, se acaso eleitos, a imagem desses dois Poderes, o que em nada estimula o aperfeiçoamento das instituições democráticas do país. A Lei Complementar que cuida das inelegibilidades, atualmente, Lei Complementar nº 64/90, é preciso enfatizar, não pode se afastar dos princípios e limites estabelecidos pela Constituição, sob pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade. A esse respeito é translúcida a lição do consagrado jurista PONTES DE MIRANDA, ao comentar o alcance da lei complementar prevista no art. 151 da Constituição Federal de 1969, verbis: Daí o problema de técnica legislativa, cuja solução tem de atender aos princípios constitucionais, notadamente aos arts. 153, §§ l°, 2°, 4°, 8°, 13, 15, 16, 23 e 28, e 154. As medidas contra a atividade antiliberal, sem ser concernente a eleições, nada têm com a defesa do regime democrático. Nem se trata de defesa da democracia se as medidas se referem à igualdade, ou à ideologia anti-igualitária. Adiante, acrescenta o saudoso jurista, verbis: Nenhuma lei brasileira pode ser interpretada ou executada em contradição com os enunciados da Declaração de Direitos, nem em contradição com quaisquer outros artigos da Constituição de 1967; porém alguns dos incisos do art. 153 são acima do Estado, e as próprias Assembléias Constituintes, em emenda, não os podem revogar ou derrogar. Tais incisos são os que contêm declaração de direitos fundamentais supra-estatais.137 4 PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE E INELEGIBILIDADES No Estatuto Constitucional em vigor no Brasil são inconfundíveis pressupostos de elegibilidade com as inelegibilidades, apesar do fato de que a ausência de qualquer daqueles 136 In Revista dos Tribunais, 369/85-6 MIRANDA, Pontes de. Coments. à Constituição de 1967 c. a Em. nº 1/69, 2ª ed., Editora Rev. dos Tribs., 1970, t. IV. p. 596 e 624. 137 ou a ocorrência de qualquer destas configure um impedimento para que determinado cidadão possa candidatar-se às eleições, seja a nível federal, estadual ou municipal. Os pressupostos de elegibilidade são condições ou requisitos que devem ser preenchidos pelos candidatos para que os mesmos possam concorrer às eleições, como, por exemplo, estar no gozo dos seus direitos políticos, estar alistado como eleitor, estar filiado a um partido político. As inelegibilidades, como já foi referido, constituem impedimentos que obstam ao candidato que preencha os pressupostos de elegibilidade de concorrer ao pleito eleitoral, ou, se posteriores ao registro, servem de fundamento à impugnação de sua diplomação, se for eleito. GIUSEPPE GRASSO, com base na distinção feita pela Carta Magna da Itália, nos arts. 51, 65 e 122, entre requisiti stabiliti dalla legge per accedere alle cariche elettive e casi di ineleggibilità, conclui, verbis: I) requisiti della prima categoria hanno, infatti, lo scopo di garantire che le persone chiamate ai pubblici uffici siano adatte allo svolgimento delle funzioni inerenti agli uffici stessi. Essi rendono la persona idonea ad essere validamente scelta dai suffragio popolare e debbono, quindi, sussistere al momento dell'elezione ossia nel giorno della votazione, salvo che la legge non prescriva un altro trermine ancora anteriore. Mais adiante, o mesmo autor define a inelegibilidade como: ... impedimento, per la persona che ne sia colpita, ad essere validamente eletta e deve, quindi, non sussistere, o eventualmente cessare, prima del giorno della votazione. 138 Por conseguinte, como bem lembrou o eminente Ministro MOREIRA ALVES, em excelente e erudito artigo de doutrina, para que determinada pessoa possa concorrer a algum cargo eletivo é necessário que ela preencha, primeiramente, os pressupostos de elegibilidade (requisito positivo) e não incida em impedimentos (ou seja, inelegibilidade - requisito negativo). 139 Nessa esteira, também, o magistério de FRANÇOIS COLLY, quando averba, verbis: Pour être éligibles, le candidat et son suppléant doivent réunir plusieurs conditions positives et des conditions négatives, c’est-à-dire ne pas être placés dans une situation d’inéligibilité. 140 E, adiante, acrescenta, verbis : 138 GRASSO, Giuseppe P. Le Norme Sull’eleggibilità nel Diritto Pubblico Italiano, In Revista Trimestrali di Diritto Pubblico, ano VII, 1957, p. 739-40 e 743. Igual distinção é feita no Direito Francês como referem ANDRÉ et FRANCINE DEMICHEL, Op. cit., p. 92 e segs 139 MOREIRA ALVES, J.C. Pressupostos de Elegibilidades e Inelegibilidades, In Estudos de Direito Público em Homenagem a Aliomar Baleeiro. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1976. p. 229 140 In La Constitution de la République Française – Analyses et commentaires, sous la direction de François Luchaire, Gérard Conac et Xavier Prétot, 3e édition, Ed. Economica, Paris, 2009, p. 740 Or dans une démocratie, l’inéligibilité est grave puisqu’elle entraîne l’incapacité d’être élu. Elle constitue une exception à un principe de liberté et au droit de tout citoyen d’être candidat à un mandat électif (Cons. Constit. 7 nov. 1984, nº 84-983, AN Puy-de-dôme 2e circ., Allain c/ Giscard d’Estaing, [éligibilité] AJDA 1985. 93, note M.Clinquennois). C’est pourquoi il n’existe pas d’inéligibilité sans texte ni audelà des textes. Une inéligibilité est d’interprétation stricte. 141 As inelegibilidades, como é sabido, salvo aquelas estabelecidas na Constituição Federal, só podem ser criadas por lei complementar (CF, art. 14, § 9º). Já os pressupostos de elegibilidade, ou estão fixados na Lei Maior (por exemplo, o que faz referência à filiação político-partidária que seja ou venha a ser exigida por lei), ou em leis ordinárias, como o Código Eleitoral e a Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Nessa linha, a velha mas sempre nova lição do saudoso Professor de Direito Constitucional e ex-Ministro da Justiça Dr. SAMPAIO DORIA, verbis: A elegibilidade é o princípio constitucional. Dois direitos políticos, o de votar e o de ser votado são os mais sagrados, Pelo primeiro, o cidadão elege para o exercício do poder público. Pelo segundo, o cidadão pode ser eleito representante do povo. Êstes dois direitos políticos guardam, entre si, a maior intimidade, e, por vezes, dependência. (...) Nas democracias, o princípio geral, em suma, é a elegibilidade dos cidadãos que se possam alistar eleitores. O exercício desse princípio, porém, se subordina, conforme a espécie, a condições, e sofre, em geral, ressalvas, uma e outras expressas na Constituição. 142 Com efeito, sendo a Constituição a Lei Suprema do país, cumpre ao intérprete extrair do seu texto o real sentido das regras firmadas pelo constituinte, no caso, a elegibilidade deve prevalecer, e as normas que a restringem merecem a exegese estrita. Esse o magistério autorizado de MAURICE DUVERGER, em conhecida obra, verbis: Les conditions d’éligibililté doivent être aussi peu restrictives que possible, afin de laisser les électeurs libres de leur choix. Toute restriction de l’eligibilité est une restriction du droit des électeurs, une atténuation de la démocratie. 143 Da mesma forma, assim é a reiterada jurisprudência do Conselho Constitucional da França, em decisões recolhidas por LOUIS FAVOREU e LOÏC PHILIP, verbis: Le principe fondamental est le suivant: l’inéligibilité s’analyse comme une limitation à l’exercise d’une liberté électorale. Il en résulte, d’une part, qu’une inéligibilité ne se présume pas et qu’elle doit être expressément prévue par un texte, d’autre part, que les textes édictant une inéligibilité doivent être interprétés de façon restrictive. 144 141 In Op. Cit., p. 743 SAMPAIO DORIA, Dr. A. de, “Elegibilidade sob Registro”, in Archivo Judiciario (Suplemento), 5.7.47, p. 21. 143 In Manuel de Droit Constitutionnel, 5ª édition, Presses Universitaires de France, Paris, 1948, p. 94. 144 In Les Grandes Décisions du Conseil Constitutionnel, 2ª édition, Sirey, Paris, 1979, p. 270. 142 Desse entendimento não discrepa GEORGES BURDEAU, ao afirmar, verbis: La liberté politique a sa logique, indifférente aux longitudes. Une fois reconnu le droit des individus de participer à l’exercice du Pouvoir, ce droit cherche à s’étendre, tant quant au nombre de ses bénéficiaires que quant au champ de ses possibilités. 145 Commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat. Questão que bem ilustra o tema acima comentado foi a discussão que se estabeleceu na década de setenta acerca da constitucionalidade do § 3° do art. 67 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 5.682/71), cujo texto tinha a seguinte redação: Art. 67. (...) § 3° - Desligado de um partido e filiado a outro, o eleitor só poderá candidatar-se a cargo eletivo após o decurso do prazo de 2 (dois) anos da data da nova filiação. Não foram poucos os juristas que tacharam esse dispositivo da Lei Orgânica dos Partidos Políticos de inconstitucional, pois nele viam uma inelegibilidade instituída por simples lei ordinária, enquanto a Constituição exige para tal a lei Complementar. 146 Ora, o § 3° do art. 67 da Lei nº 5.682/71, então em vigor, ao reclamar o prazo de dois anos para que alguém que era filiado a um partido político e o deixa para se filiar a outro possa concorrer a um cargo eletivo, não estabeleceu um caso de inelegibilidade, mas, isso sim, um pressuposto de elegibilidade, que pode ser criado por lei ordinária, como o fez a antiga Lei Orgânica dos Partidos Políticos, que apenas exigiu mais uma condição para que as pessoas elegíveis pudessem candidatar-se a cargos eletivos. Para reforçar essa argumentação, permito-me relembrar a lição de FILIPPO VASSALLI, cuja fundamentação se me afigura irrefutável, verbis: E così è dell’arte di formulare una legge (r): per la quale bisognerà richiedere soprattutto che si conoscano le leggi che già ci sono in un dato paese, nel complesso tessuto delle quali s’andrà a inserire la legge nuova, bisognerà richiedere una sicura conoscenza dei principî fondamentali del diritto, una conoscenza altrettanto sicura dei criteri tecnici in uso nella legislazione del paese, a cominciare dalla lingua, così del lessico come della grammatica ne’suoi aspetti morfologico e sintattico, per giungere agli strumenti e espedienti di organizzazione del comando; possibilmente anche una conoscenza di legislazioni straniere sul medesimo oggetto e di studi indigeni e straniere che abbiano affrontato i problemi di cui la legge ricerca la soluzione; infine, anche, qualche conoscenza della materia su cui si porta la norma, previdenza, trasporti, istruzione, agricoltura, marina, sanità, edilizia, commercio, finanza pubblica: poichè non sempre è facile formulare esattamente un precetto, anche da parte di un redattore espertissimo, versatissimo nell’uso dei mezzi espressivi, se non ci si renda pienamente conto di quelli che sono gli elementi di merito cioè i termini propri della questione che il legislatore vuol risolvere, il fine che vuol raggiungere. Sebbene il problema della tecnica legislativa non si riterisca che alla forma, contenuto e forma della legge sono due aspetti della stessa attività 145 In Manuel de Droit Constitutionnel, 5ª édition, Presses Universitaires de France, Paris, 1948, p. 94. Nesse sentido: PINTO FERREIRA, Manual Prático de Direito Eleitoral. Saraiva. São Paulo, 1973. p. 148; MEIRELLES, Hely L. Estudos e Pareceres de Direito Público. Editora Revista dos Tribs., 1986. v. IX. p. 459; MELLO Fº, José C. de. Constituição Federal Anotada. Saraiva, São Paulo, 1984. p. 132 146 legislativa che non possono restare tutt’affatto indipendenti l’uno dall’altro.147 5 CONSTITUCIONALIDADE DA LEI COMPLEMENTAR DAS INELEGIBILIDADES. ANTECEDENTES HISTÓRICOS E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A alínea "n" do inciso I do art. 1 ° da Lei Complementar nº 5/70, na sua redação originária, tinha o seguinte teor: n) os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública, o patrimônio ou pelo delito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados. Muito se discutiu a respeito da constitucionalidade da expressão "ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público, recebida pela autoridade judiciária competente", pois, segundo alguns, o simples fato da pendência de um processo, com denúncia oferecida e recebida, não podia acarretar um ônus tão grave como a inelegibilidade, ferindo, segundo eles, não só a Constituição, mas, igualmente, princípios eternos e universais, como o da presunção de inocência do acusado, até que a sua culpabilidade tenha sido provada. A questão foi longa e exaustivamente debatida em memorável julgamento levado a efeito pela Suprema Corte que, por maioria de votos, repeliu a pretendida argüição de inconstitucionalidade do preceito legal impugnado (Recurso Extraordinário Eleitoral nº 86.297-SP, rel. Min. THOMPSON FLORES, In RTJ 79/671). Nesse julgamento, o relator, o saudoso Ministro THOMPSON FLORES, fez as seguintes considerações em seu douto voto: Considero, assim, que, ao editar a Lei Complementar nº 5/1970, e ao estatuir entre os casos de inelegibilidade, o do art. 1º, l, n, ora em debate, se conteve o legislador na autorização constitucional. Não considerou ele qualquer infração penal, mas aquelas que, afetando a candidatos a cargos eletivos, porque nelas envolvidos, pudessem comprometer o regime democrático (segurança nacional, ordem política e social, economia popular, etc), a probidade administrativa ou a moralidade para o exercício do mandato (fé pública, a administração pública e o pratrimônio). Demais, exigiu a instauração da ação penal; e foi além, por denúncia do Ministério Público; e, somente, após recebida. Por fim, para previnir abusos na arguição de infundada inelegibilidade, considerou crime eleitoral dito procedimento (Lei Complementar nº 5/1970, art. 22) última das infrações consideradas, certo visando preservar o regime democrático. Viu o aresto impugnado, o recebimento da denúncia, atentado à Constituição, porque anteciparia inculpação, sem sentença condenatória, obstando o candidato de um dos 147 “La Missione del Giurista nella elaborazione delle Leggi”, in Scritti Giuridici in Onore di Francesco Carnelutti, CEDAM, Padova, 1950, t. 1º, p. 496. direitos imanentes à cidadania, o de ser votado. Seria, data venia, confundir causa de inelegibilidade com presunção de culpabilidade, de conceituação jurídica diversa e com reflexos distintos. ... Não se cuida de dita presunção, mas de medida cautelar, preventiva, provisória, desrecomendando o sufrágio sobre aquele que está sendo processado criminalmente por uma das infrações já referidas. ... O recebimento de denúncia oferecida pelo MP e pelas infrações que enumerou tem o caráter meramente preventivo. É o que se deflui, claramente, do art. 151 da Constituição, quando ao referir os casos de inelegibilidade, o fez para (sic) preservar os princípios da ordem político-jurídica que instituiu.148 Com inteiro acerto decidiu a Corte Suprema, no regime constitucional pretérito, pois que índice mais seguro e acertado, dentro de um critério de conveniência adotado pelo legislador, com a finalidade de preservar a probidade e a moralidade administrativa, do que impedir de postular um mandato, legislativo ou executivo, àqueles que se achavam sob a acusação dos crimes enumerados na alínea n do inciso I do art. 1° da Lei Complementar nº 5/70. Ora, se a Constituição então em vigor permitia que a inelegibilidade pudesse ter por base a vida pregressa do candidato, como capaz de lhe retirar as condições de moralidade para o exercício do mandato, não exigindo sequer que esses fatos configurassem ilícitos penais, nada impedia, pois, a exclusão da disputa eleitoral daqueles candidatos que foram denunciados pelo Ministério Público e cuja denúncia havia sido recebida pelo juiz, naqueles delitos enumerados na Lei Complementar nº 5. Minime sunt mutanda, quae interpretationem certam semper habuerunt. A redação da alínea "n" do inciso I do art. 1° da Lei Complementar nº 5 foi alterada pela Lei Complementar nº 42, de 1°.02.82, que passou a ter o seguinte texto: n) os que tenham sido condenados (vetado) por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio, ou pelo delito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não-penalmente reabilitados.” Novamente, o Supremo Tribunal Federal pronunciou-se sobre a constitucionalidade desse dispositivo, agora na sua nova redação, no Agravo de Instrumento Eleitoral nº 92.794SP, sendo relator, o eminente Ministro MOREIRA ALVES: Inelegibilidade. Alínea n (em sua nova redação) do inciso I do art. 1º da Lei Complementar 5/70. Interpretação no sentido de que basta a condenação, ainda que não transitada em julgado. ... Ademais, se esta Corte já declarou constitucional a norma anterior que tornava 148 In RTJ 79/685 inelegível candidato denunciado, com mais razão é constitucional a interpretação de que a condenação, a que alude a nova redação dessa norma, não necessita de haver transitado em julgado.149 Na lei atual que disciplina as inelegibilidades, a Lei Complementar nº 64/90, com as alterações subsequentes, dispõe o art. 1º, I, “e”, verbis: e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 3. contra o meio ambiente e a saúde pública; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 8. de redução à condição análoga à de escravo; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 9. contra a vida e a dignidade sexual; e (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) 10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010) Na França, muito mais rigorosa em matéria de inelegibilidades do que o Brasil, o Conselho de Estado considerou válido o decreto do Presidente da República, por ocasião da crise da Argélia, versando sobre inelegibilidades, verbis: Ainsi le Conseil d'Etat a-t-il validé le décret du 12 mai 1960 interdisant en Algérie l'enregistrement des candidatures ou la proclamation de l'élection d'un candidat inculpé d'un crime ou délit contre la sûreté de l'Etat, ou poursuivi, de ce chef, pour complicité; ce décret était en effet légalement fondé sur la loi du 16 mars 1956 autorisant à prendre en Algérie toutes les mesures aient pour objet le rétablissement de l'ordre, la protection des personnes et des biens et la sauvegarde du territoire (C.E., 27 moi 1960, Lagailarde, R p. 369).150 Realmente, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 14, de 3 de junho de 1965, à Constituição de 1946, foi rompida a tradição constitucional brasileira de que só o próprio texto da Constituição, dada a relevância da matéria, fixava os casos de inelegibilidade. A mencionada Emenda Constitucional, através de seu artigo 2º, permitiu que lei especial instituísse casos de inelegibilidade, além daqueles estabelecidos na Carta Magna, 149 150 In RTJ 107/654 DEMICHEL, André et Francine. Op. cit., p. 73. respeitados os princípios insculpidos na Constituição Federal. Trata-se, portanto, de uma inovação à prática constitucional brasileira, que foi mantida e aperfeiçoada pelas Constituições de 1967 e 1988. Com efeito, dispõe o art. 14, § 9º, da Constituição em vigor que lei Complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos nos quais cessará esta, visando à preservação do regime democrático, da probidade administrativa, da normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício da função, cargo ou emprego públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico e, por fim, a moralidade para o exercício do mandato. Em julgado proferido pelo Tribunal Constitucional espanhol, na data de 14.06.1984, aquela alta Corte examinou a realidade da lei das inelegibilidades na Espanha, esclarecendo, verbis: El artículo 70 de la Constitución contiene efectivamente una reserva en favor de la Ley Electoral para la regulación de las causas de inelegibilidad e incompatibilidad de Diputados y Senadores. El texto de este artículo, al decir que «la Ley Electoral determinará ...», no está simplemente dotando a esa Ley de un contenido mínimo preceptivo, como puede ocurrir en otros casos en que se utiliza una dicción gramatical parecida. Está diciendo que esa materia (las incompatibilidades de Diputados y Senadores) sólo puede ser regulada en la Ley Electoral. Lo demuestra el planteamiento que de la cuestión se hizo en el momento de discutir la Constitución, que fue la alternativa entre la tesis de que las causas de inelegibilidad e incompatibilidad estuvieran precisamente en la Constitución, y sólo en ella, en la medida en que suponen una restricción en los esquemas de la representación política y la tesis de que pudiera remitirse a la Ley. La Constitución opta por establecer un elenco de causas fijo y remitir las restantes a la obra del legislador, pero no en cualquier ley, aunque a ésta se le dote del carácter de Ley Orgánica, sino precisamente a la Ley Electoral. En este sentido la solución adoptada en el artículo 70 de la Constitución se presenta como un punto intermedio entre las soluciones que ofrecen el Derecho comparado y la historia del constitucionalismo en nuestro país, que son, a saber: la de establecer en la propia Constitución las causas de inelegibilidad e incompatibilidad de los miembros del Parlamento y la de remitir esta materia a la ley ordinaria. El artículo 70 establece una solución intermedia al remitirlo a la ley, pero no a cualquier tipo de ley, sino a la Ley Electoral, al establecer un elenco de causas que en todo caso han de ser comprendidas y al limitar, por consiguiente, en doble sentido el margen del legislador que puede establecer otras causas, siempre que lo haga en la Ley Electoral y siempre que, además, al hacerio cumpla con los restantes preceptos constitucionales. 151 Ao comentar a Lei nº 93.122, de 1993, aprovada pelo Parlamento da França, visando a combater a corrupção na vida política francesa, anotou CHRISTOPHE GUETTIER, verbis: Loin d’épuiser le délicat problème de la moralisation de la vie politique, cette loi en précise quelques aspects, à travers des dispositions multiples et de valeur inégale. Elle complète ainsi un dispositif déjà riche en mesures diversifiées, et sans doute promises à se renouveller dans l’avenir, puisqu’au cours des débats parlementaires l’opposition, peu satisfaite par le texte, a annoncé son intention d’en corriger le contenu, le moment venu. Pour l’heure, on peut se poser la question de savoir s’il ne conviendrait pas 151 In Repertorio Aranzadi del Tribunal Constitucional, 1984, I, enero-junio, editorial Aranzadi, 1985, pp. 762-3. désormais d’envisager une codification de ces différents textes, tant les matières appréhendées risquent d’échapper dans toute leur diversité et leur ampleur à ceux – et ils sont nombreux, élus et fonctionnaires, entre autres – qui auront à les mettre en oeuvre. La transparence ne supposet-elle pas aussi des facilités d’accès à la connaissance ? En tout cas, ces mesures ne seront véritablement efficaces qu’à la condition d’être effectivement respectées par ceux qui s’y trouveront assujettis à un titre ou à un autre, tant il est vrai que les textes ne valent que par ce que les hommes en font. Quant à l’objectif poursuivi: la moralisation de la vie politique française, force est de constater que les scandales politico-financiers de ces dernières années auront eu au moins l’avantage d’en faire progresser la réalisation. La confiance des citoyens en leurs représentants et donc le bon fonctionnement de la démocratie en dépendent. 152 No Brasil, como observa FÁVILA RIBEIRO153, a Constituição Federal limita-se a delinear os princípios fundamentais referentes às inelegibilidades, para que sejam detalhados, pormenorizadamente, pela legislação complementar. Com inexcedível precisão, inclusive resgatando a história do preceito constitucional, assinalou o saudoso Ministro DJACI FALCÃO, cujas palavras é oportuno reproduzir, verbis: Com a EC nº 14, de 3.6.1965 (art. 2º) permitiu-se que lei especial estabelecesse casos de inelegibilidade, além daqueles enumerados na Constituição de 1946. A Constituição em vigor manteve o princípio, que ficou na dependência de lei complementar e dentro dos limites de valores indicados no seu art. 151. Daí por que a Lei Complementar nº 5, visando a preservar a moralidade administrativa, veio estabelecer a inelegibilidade daqueles que respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, dentre outros, por crime contra a administração pública. Embora severa, a regra não contraria qualquer princípio de natureza constitucional. Há de reconhecer-se, inclusive, que o legislador, sopesando valores éticos, buscou resguardar o interesse na administração pública, e, em última análise, da própria comunidade. 154 O legislador brasileiro, inspirado nos mais elevados princípios, atento à advertência de EDMUND BURKE, “bad laws are the worst sort of tyranny”155, aperfeiçoando a legislação eleitoral, teve em mira preservar os mandatos executivo e legislativo daqueles cidadãos cuja conduta seja incompatível com a alta política da Nação, procurando promover a maior participação dos verdadeiros políticos e do próprio eleitor na vida pública, esposando a doutrina do notável estadista francês THIERS, em célebre discurso, verbis: ... je soutiens que l’absence de tout esprit public, de toute participation réelle du pays à la conduite de ses affaires, finirait par devenir un grand malheur pour la nation et pour le Gouvernement lui-même. Car, lorsque les citoyens s’habituent à abdiquer ainsi toute initiative, l’égoïsme particulier se développe et grandit; les vertus civiques disparaissent; la société s’absorbe dans la poursuite des intérêts matériels; la jeunesse, dédaignant les nobles ambitions, qui la passionnaient autrefois, s’alanguit dans les jouissances d’une vie trop facile, ne se préoccupe plus que de luxe, de jeu, de spéculations immorales, et perd, dans une oisiveté déplorable, l’élévation des sentiments patriotiques, aussi bien que la dignité des moeurs. 156 152 In La Loi Anti-Corruption, Dalloz, Paris, 1993, p. 39. In Direito Eleitoral, 1ª edição, Forense, Rio, 1976, p. 183. 154 Recurso Extraordinário Eleitoral nº 86.297 (Pleno), julgado em 17.11.1976, in RTJ 79/714. 155 In The Works of Edmond Burke, Charles C. Little and James Brown, Boston, 1889, v. 2, p. 257. 156 In Discours de M. Thiers, E. Dentu Libraire, Paris, 1867, p. VII. 153 E, para concluir, são de recordar estas palavras da Suprema Corte Americana, ao julgar o caso Wesberry v. Sanders, 376 U.S. (1964), verbis: ... [n]o right is more precious in a free country than that of having a voice in the election of those who make the laws under which, as good citizens, we must live. Other rights, even the most basic, are illusory if the right to vote is undermined.” 157 Como oportunamente lembra JOHN P. FRANK, quando escreve: The fundamental hypothesis of American democracy is that the voters choose representatives to make laws for them. This assumes three things: (1) that all qualified voters, and no others, are permitted to vote; (2) that their votes are accurately counted and honestly reported; and (3) that the representation of each person will be fairly equal to that of other persons. 158 Calha, no caso, a lição de GAMBETTA, onde o notório político francês, em discurso memorável proferido no Parlamento em 1870, observou, verbis: C'est que dans ce pays-ci il y a une chose capitale, fondamentale, à laquelle le peuple tient par-dessus tout, qui est l’instrument par excellence d’émancipation, de fondation des mœurs et des bonnes lois, c'est le suffrage universel. Eh bien, le suffrage universel a posé cette question, vitale pour lui, de son propre affranchissement. Toutes les autres questions lui sont inférieures, secondaires, accessoires. De lui, il veut disposer en maître, et pour cela, il lui faut un statut légal, débattu par vous. C’est pour cela que je dis qu’avant toute entreprise, avant toute réforme, avant toute tentative progressive ou libérale, il faut placer pour correspondre aux exigences certaines de cette démocratie qui veut être libre, il faut placer l’étude, l’examen, la préparation, le vote d’une loi électorale (Approbation à gauche.) Pourquoi ? Parce que demain le pays peut être appelé, par surprise ou à l’occasion d’un évènement subit, à exprimer sa volonté, volonté directe ou volonté qu’il confie à de représentants librement élus. (assentiment à gauche). Eh bien, Messieurs, oui ou non, a-t-on besoin pour cela d’avoir une loi ? Est-il écrit dans tous les cahiers, dans toutes les protestations émanées de toutes les réunions électorales qui ont eu lieu, est-il écrit : «Vous réclamerez d’abord l’indépendance du suffrage universel ; vous réclamerez que la population soit prise pour base ; vous réclamerez l’augmentation du nombre des députés, des circonscriptions électorales fixes, le vote d’un seul jour à la grosse commune ou au canton ?» On pourra discuter, mais c’est – permettez-moi de relever cette interruption, - parce que c’est un problème très complexe, très délicat, où il faudra s’aventurer avec beaucoup de précaution et de minutie. C’est parce qu’il faudra des études profondes et complètes que je vous convie à les faire immédiatement, Et je dis que vous n’avez pas trop de vos jours, trop de vos efforts pour préparer une bonne loi électorale, et cette œuvre est la plus haute que nous puissions réaliser ; car lorsque le pays, lorsque le suffrage universel aura une véritable loi électorale, il ne pourra s’en prendre qu’à lui-même s’il ne s’émancipe pas complètement. (...) Oui, car partout où il y a un électeur, il y a un homme jaloux de ses droits, soucieux de ses prérogatives et qui, - ou il n’est pas digne de ce nom, - n’a pas d’autre souci que d’assurer par la loi son indépendance et sa part de souveraineté dans les affaires du pays. 159 157 In University of Pennsylvania Law Review, v. 145, p. 353. In Cases on the Constitution, First Edition, McGraw-Hill Book Company, New York, 1951, p. 274. 159 In Discours et Playdoyers Politiques de M. Gambetta, Édition Complète, G. Charpentier Éditeur, Paris, 1880, t. I, pp. 180/2. 158 Senhor Presidente: Constitui para mim motivo de intensa alegria interior poder comparecer a esta Jornada de Direito Eleitoral, prestando a devida homenagem à Escola Judiciária Eleitoral Juiz Irineu João da Silva, cujo nome está ligado à evolução do pensamento jurídico não só deste Estado como do Brasil, herdeira da melhor tradição da Justiça Eleitoral. Creio, meus senhores, que me cabe agora concluir, ainda buscando os suaves subsídios das letras do poeta TENNYSON, com estas palavras: “Thou who stealest fire, From the fountains of the past, To glorify the present; oh, haste, Visit my low desire! Strengthen me, enlighten me! I faint in this obscurity, Thou dewy dawn of memory.”160 Muito obrigado. 160 In The Complete Works of Alfred Lord Tennyson, MacMillan and Co., London, 1898, p. 11.