A violência contra a criança nos dias de hoje: um enfoque institucional Maristela Barcelos Castro1 Resumo: Este artigo traz um recorte histórico das concepções de infância e as violências sofridas por elas ao longo das épocas, culturas e políticas. Ainda se propõe a denunciar o que hoje, em algumas instituições de ensino, acontece. Após, traremos as principais faces e nuances dessa violência hoje e as profundas e irreversíveis marcas para o desenvolvimento saudável do ser humano. Ao final abordaremos ainda a importância do cuidado no atendimento a essa primeira etapa da vida nas instituições de ensino e a contribuição legal para a garantia desses direitos infantis. Palavras-chaves: Infância. Violência. Escola. Educação. Desenvolvimento saudável. Resumen: En este artículo se ofrece una concepción histórica de la infancia y la violencia sufrida por ellos durante las edades, culturas y la política. Aunque el informe se propone que en la actualidad, en algunas instituciones, sucede. Después, vamos a traer las caras principales y los matices de esta violencia de hoy y las marcas profundas e irreversibles para el desarrollo saludable del ser humano. Al final se discute la importancia de la atención a la primera etapa de la vida en las instituciones educativas y la contribución estatutaria para asegurar estos derechos para los niños. Palabra-clave: Violencia. Infantil. La escuela. La educación. El desarrollo saludable. A infância e sua moderna concepção Esse artigo pretende conceituar historicamente a infância e as violências a que essa foi, e infelizmente, ainda é, submetida nos dias de hoje. Desvelaremos alguns tipos de violência a que as crianças são vítimas nas instituições de ensino e os danos causados ao desenvolvimento saudável no segundo local onde a criança passa mais horas em sua incipiente vida, a escola. No entanto, queremos inicialmente definir o que entendemos por infância hoje dentro de uma perspectiva educacional, sociológica e legal. Assim podemos observar que dentro de uma visão educativa, o Brasil considera a infância como sendo um período especial no desenvolvimento do ser humano e pondera, segundo o RCNEI2 (1998) que: As crianças possuem uma natureza singular, que as caracterizam como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio, e isto porque, através das interações que estabelecem desde cedo com as 1 Pedagoga-Supervisora Educacional-FAFIMC Formação Pedagógica em Educação Infantil-FAFIMC Especialista em Psicopedagogia Clínica-PUCRS Formação em Terapia de Casal e Família-CAIF Estudante do 3º semestre de Direito-Facos-Osório 2 RCNEI – Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil-Vol 1, Brasília, MEC/SEF,1998. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 39 pessoas que lhe são próximas e com o meio que as circunda, as crianças revelam seu esforço para compreender o mundo em que vivem, as relações contraditórias que presenciam e, por meio das brincadeiras, explicitam as condições de vida a que estão submetidas e seus anseios e desejos. (p.21) E ainda na Resolução nº 5 de dez/2009: Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. Dentro de um paradigma sociológico a visão que vem sendo construída ao longo dos tempos sobre a infância nos toma em reflexões e ponderações como nos recomenda Teixeira (2009): ...me debruço a observar à concepção de infância nos dias atuais onde é possível ver o reconhecimento da criança, da infância como "um vir a ser" no futuro, é um olhar que por mais que se direciona a pensar nas crianças como sujeitos ativos e produtores de culturas ainda se almejam o preparo destas para o futuro desconsiderando-se o presente. Daí surgem as problematizações sobre questões da concepção da infância na atualidade: a criança já é no presente, ou será somente no futuro? Deve ser considerada no presente ou deve ser vista somente como um ser que será só no futuro desconsiderando o que ela é, sua vida, seu olhar e sua formação no presente? Já, juridicamente, podemos considerar a infância como uma etapa da vida onde a proteção é no sentido de que as crianças, por si só, não podem defender-se, cuidarse ou amparar-se, sendo juridicamente incapazes, tanto de exercer pessoalmente a vida civil (C.C, art. 3º, inciso I), como de autodefender-se. Ainda consideremos as concepções de infância advindas do ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente- lei nº 8069/90, pessoa de direitos, que precisa ser protegida mediante políticas sociais públicas que permitam seu nascimento, e depois disso, seu desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência e ainda da Declaração universal dos direitos da criança onde infere: DIREITO À ESPECIAL PROTEÇÃO PARA O SEU DESENVOLVIMENTO FÍSICO, MENTAL E SOCIAL Princípio II - A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança . (grifo nosso) Assim sendo, vemos que há uma preocupação em atender suas necessidades, quer sejam físicas, emocionais, intelectuais, sociais ou civis. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . No entanto, Página 40 constrangimentos, ameaças e até mesmo “pequenas” agressões físicas, atitudes que podem não ser percebidas como comportamentos violentos pelos adultos que as praticam, deixam um profundo mal estar em ambos os sujeitos. Permeando essas dimensões, traremos à tona a vulnerabilidade da infância perante essa problemática, identificando as necessidades dessa primeira etapa do desenvolvimento do ser humano, reconhecida como estruturante e fundamental para as posteriores. Breve histórico de concepções Ao longo da história da humanidade a infância desempenhou papéis mais ou menos importantes diante de uma sociedade adulta que a conceituou conforme sua cultura, parâmetros, concepções e políticas. Em algumas dessas, a criança foi considerada anjo, a benção do Todo-Poderoso, em outras, entidade do mal. Em algumas, desamparada à própria sorte, em outras, algo sem maior valor ou importância, quase transparente. No entanto, em todas as dimensões era no seio familiar, quando não por amas de leite, que eram criadas. No período Régio de Roma, em torno de 600 A.C. conforme nos traz Venosa(2005, págs 60 e 65-66) o pai possuía o direito absoluto pelos integrantes de sua família, “Pater Familias” e, com a prerrogativa de vida e morte de qualquer um deles, escolhia quem viveria ou não. Assim também, os pais exerciam a prerrogativa de optar por assumir os seus infantes ou os enjeitar caso entendesse justificada sua atitude. Na República Romana, onde pela primeira vez encontra-se um direito escrito aparece nas Leis das XII Tábuas3, na 4ª tábua, a permissão legal de matar o filho que nasce disforme e o poder de vendê-lo, caso assim o desejasse. Nessa concepção de infância, de filho, o pai ao olhar para a criança poderia aceitá-la como sua ou não. Parece ser meu? É perfeito? Serve para ser o próximo patriarca? Para ser um cidadão Romano? Essas eram algumas das perguntas de uma sociedade 3 A lei das XII Tábuas- http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/2649327, acesso em 04 de março de 2013. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 41 que se organizava em torno de uma vida política e econômica a qual esse infante faria ou não parte, segundo um parecer do genitor. Na Esparta da antiguidade, por exemplo, na necessidade de arregimentar exércitos para as batalhas, as crianças se tornavam os futuros guerreiros. Em rígidos exercícios e regime militar extenuante, a infância, como hoje é entendida, passava despercebida entre a fome e os espancamentos, como pontua a UNESCO (2007, pág.16). Ainda em sociedades anteriores a Cristo, eram usadas em sacrifícios aos deuses. Posteriormente, já no século XX, foram exploradas como trabalhadoras em fábricas e indústrias, diante de uma sociedade que necessitava de mão de obra barata. No entanto, foi a partir dali que a infância tomou novos rumos. É no início do século passado, com o trabalho infanto-juvenil extenuante de até 16 horas diárias, que emerge a reflexão social e legal a respeito da necessidade de proteção a essa faixaetária. O reconhecimento de suas limitações e fragilidades, trazem então a concepção de uma etapa onde há necessidade de se resguardarem direitos e cuidados especiais (UNESCO, 2007, pág.16). Foi então, a partir do século XX, que iniciou-se esse novo olhar sobre o lugar dessa criança na sociedade e a educação veio tomando proporções até então não imaginadas. A abertura de escolas, a obrigatoriedade do ensino, hoje a partir dos zero anos vem tomando proporções extremas e a estatização da infância, nos faz refletir e tomar certos cuidados. Cuidar e educar é responsabilidade de quem? Apesar da indiscutível aura de a escola ser um ambiente de proteção e extremo cuidado infantil, percebeu-se que em seu núcleo também poderiam acontecer situações de necessidade de intervenção social, política, legal e, muitas vezes, médica e hospitalar. Crianças são negligenciadas, quando não maltratadas dentro de alguns desses espaços, e o mais alarmante, pelos seus próprios educadores. É preciso investigar esses acontecimentos, qualificar os professores e monitores que atendem essa etapa da vida, fortalecê-los em sua missão e profissão e proteger as crianças. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 42 Infelizmente a palavra educar, ensinar ou disciplinar tem sido justificativa para alguns desleixados “educadores” utilizarem-se da força física ou da violência psicológica para alcançar objetivos “pedagógicos”. Entendamos que algumas dessas práticas podem trazer sérias consequências sobre o desenvolvimento da criança. A tríade cuidar, educar e disciplinar deve acompanhar objetivos claros, encaminhamentos seguros e corretos e medidas protecionistas à criança, e mais ainda, ser discutida com os pais ou responsáveis. A disciplina precisa ter objetivos diretos, tanto a curto prazo, como interromper a atitude incorreta e danosa naquele momento, como a longo prazo, ensinar a criança a respeitar a si próprio, pais, professores e colegas. Faz parte do processo educativo aprender, entender os limites e cooperar com o grupo. Construir um desenvolvimento saudável pela aprendizagem é um exercício de cidadania e da percepção da existência do outro. Esse é um dos objetivos, não único, e não solitário, da escola. É nesse momento de aprendizagem que se apresenta o caráter educativo e social e não apenas uma punição ou penitência sem significado maior. Como infere Tiba (2002. pág. 164) “De que adianta isolar o agressor no quarto? Que correlação ele fará entre esse tipo de castigo e a ofensa ou ferimento que causou?” Dessa forma, o ato disciplinador deve vir vinculado, de forma particular, ao dano causado ao outro ou a alguma coisa, e somente assim sua função se completa. Caso contrário, poderá se tornar “apenas” outra violência, provocando rachaduras na frágil construção da personalidade humana. A violência contra a criança, suas nuances e consequências Entramos agora mais em uma área muito delicada e pouco falada. Notícias em jornais televisivos e periódicos mostram casos de situações extremas de desprezo e morte em instituições educativas. Algumas vezes, e não raro escolas e creches que se comprometem em cuidar e educar, se tornam, algumas vezes, os piores algozes da infância saudável. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 43 Nesses casos as crianças são vítimas de agressões, sejam dos próprios educadores ou dos colegas, sem que nada seja feito ou denunciado. Muitas vezes sintomas de angústia e fobias dos ambientes escolares, sem contar com depressão e mudanças bruscas de atitudes, são as maiores armas e fundamentos para se investigar o que está ocorrendo na escola ou na creche. Diante de uma sociedade perplexa com o que faz com suas próprias crianças, a preocupação com o bem-estar desses pequenos vem se efetivando em ações de amparo e assistência. Hoje há um olhar das nações para as reais necessidades nos diversos contextos em que a criança aparece. Algumas importantes reflexões foram sendo feitas junto com a medicina, a sociologia e a psicologia a respeito desses espaços e, muitas dessas, se positivaram em normativas e leis de amparo à infância sejam no ambiente em que ela se encontrar. No entanto, a caminhada apenas começa e de fato a proteção contra a violência na infância pouco avançou. Conforme a OMS, citada por Rovinski e Cruz (2009, pág. 89), a violência constitui-se em: O uso da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (grifo nosso) Com essa concepção, percebemos um entendimento claro do que seja violência em seus vários aspectos e nuances. A OMS amplia a discussão de tal forma que se visualiza e avalia a intenção do agressor. O uso do poder como força e da ameaça como coação são inscritos também como formas de violência e considera os resultados desse tipo de comportamento comprometedores para um desenvolvimento saudável do ser humano. Assim sendo, governos, família ou escola todas estão em seu exercício de autonomia e autoridade sob a mesma regra de preservar psicológica e fisicamente a integridade e o desenvolvimento adequado e positivo do ser humano em sua mais delicada e frágil fase. No entanto, mesmo com essa percepção e com leis que assegurem esse direito, a problemática continua em pauta. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 44 Vemos que há hoje uma compreensão ampla e profunda das necessidades da infância, por outro lado, ela ainda se apresenta por altos índices de violência, maus tratos e agressões de todos os tipos. Em Fiorelli e Mangini (2010, pág.90) destacaremos agora os tipos de violência que ocorrem com mais frequência contra as crianças. A violência física, que aparece no uso da força física intencional, pode apresentarse como um apertão no braço, um tapa, um arranhão, uma queimadura com cigarro, um beliscão ou chacoalhações violentas. Aqui fica claro que, conforme os autores, o grau e a gravidade dessa violência podem mudar, mas a natureza do ato continua a mesma. Ainda é importante refletir sobre outros aspectos, como as agressões verbais, gritos, xingamentos, safanões, empurrões, falas de desvalorização do sujeito ou dos seus entes parentais na frente da própria criança, bem como apelidos e constrangimentos nas salas de aulas. Todas essas são, em suas essências, faces da violência psicológica e moral, segundo tipo de violência relatado pelos autores. Aqui, em seus aspectos desapercebidamente rotineiros e casuais, e talvez, por não serem entendidas como violência, não são combatidas, faladas ou denunciadas, perpetuam-se. Apelidos depreciativos, constrangimentos nas salas de aulas por sua condição de raça, aparência física, situação financeira e características peculiares, jamais repercutirão positivamente ou serão educativos. Crianças subjugadas a isso podem sentir-se confusas e amedrontadas quanto às figuras de autoridade. Os chamados “brigões” e “encrenqueiros” podem ser os principais alvos da agressão psicológica. Perpetuam-se assim situações de violência que podem causar, a médio e longo prazos, sintomas psicossomáticos como enurese, febres, dores de cabeça entre outros tantos conforme pesquisas informam. Azevedo e Guerra, citados por Fiorelli e Mangini (2010) denunciam ainda que a negligência ou a rejeição afetiva, o terceiro tipo de violência, um tipo mais REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 45 específico da violência psicológica, é analisada como tortura4. No primeiro caso, há falta de afeto e consideração pelos sentimentos e necessidades da criança e, no segundo, a aversão, a depreciação, o distanciamento ou a agressão compõem um conjunto de coisificação da criança, maculando sua humanidade e a construção da sua autoestima. Ainda a UNESCO (2007, pág. 34) declara que: A negligência é um tipo de relação entre adultos e crianças ou adolescentes baseada na omissão, na rejeição, no descaso, na indiferença, no descompromisso, no desinteresse, na negação da existência. Dados estatísticos de serviços de proteção e assistência a crianças e adolescentes, disque-denúncia e SOS vêm revelando que a negligência é uma das formas de violência mais frequente. (grifo nosso) Apesar de todos os esforços ainda não se conseguiu erradicar nas instituições escolares essa problemática sendo que, inclusive, muitas crianças passam despercebidas durante toda a carreira escolar, sem ao menos os professores saberem seus nomes ou olharem em seus olhos. Os mesmos autores ainda denunciam a violência sexual, a quarta e última forma de violência cometida contra a criança que relataremos aqui. Essa se apresenta tanto na forma de estimulação em relações homo ou heterossexual, como em jogos sexuais, como na própria participação ativa do ato. Esse tipo de violência traz marcas profundas e consequências nefastas para quem as sofre. Caminha (1999, pág. 43) acrescenta que o abuso sexual traz como seu prejuízo maior o dano psicológico. A criança envolvida sofre a quebra prematura da infância, destruindo as fantasias e o mundo simbólico tão importante para construção do real e do concreto. Lembramos que esses três elementos, o simbólico, o real e o concreto, são a base de todo o processo de aprendizagem escolar inicial. 4 CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR E PUNIR A TORTURA.-“ Reafirmando que todo ato de tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes constituem uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos princípios consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos e na Carta das Nações Unidas, e são violatórios aos direitos humanos e liberdades fundamentais proclamados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do Homem;” http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/i.Tortura.htm, acesso em 19/03/2013. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 46 Como consequência dessa agressão acontece a entrada antecipada e forçosa na vida adulta. A sexualidade adulta, os segredos, os compromissos que isso acarreta, são atos e responsabilidades muito superiores ao que pode seu frágil aparelho psíquico suportar. Os prejuízos emocionais, sociais e cognitivos podem desencadear doenças mentais graves. Sempre envolto em segredos familiares, alianças parentais e ameaças, o abuso sexual pode surgir no núcleo familiar, onde ocorre na grande maioria das vezes ou em outros lugares e com outras pessoas que, em princípio, seriam da confiança da família e da criança. Assim sendo, consideramos que a violência, independente da forma como se apresenta é extremamente prejudicial ao desenvolvimento saudável e tem um impacto psíquico desestruturante no indivíduo e, conforme orienta Caminha (1999, pág.46): Seria correto afirmar que crianças e adolescentes expostos à violência intencional e repetitiva aprendem esses padrões como verdades e, estas verdades internas, padrões mentais representacionais afetivos, serão mediadores das suas relações sociais. (grifo nosso) Deste modo a agressão, seja na sua forma hedionda, expressa, pública ou mais sutil, escondida, quase que imperceptível tem o poder de constituir padrões de relacionamentos inadequados e deturpados. Infelizmente os profissionais da educação colaboram, ainda que sem estatísticas confiáveis, como um dos responsáveis pelos mais variados tipos de violência contra a criança, talvez por serem as pessoas que, junto com a família, são as mais próximas delas. Desenvolvimento saudável e a vida escolar dos infantes A própria realidade brasileira exige que desde muito cedo os infantes precisem ser matriculados em creches e lá, junto com outras crianças, iniciam a construção de suas personalidades. Cada criança precisa, especial e particularmente ser olhada, desejada e suprida em suas necessidades. Muitas vezes as escolas de educação infantil, com alguns de seus profissionais nem tão preparados, desconhecem ou não dão a verdadeira importância a esses contextos. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 47 O bico, “o cheirinho”, a troca de fraldas, a mamadeira e a papinha, são tão importantes quanto a conversa atenta, uma música cantada, a estimulação através de brinquedos e objetos atraentes ou uma história contada em um momento de intimidade e atenção com a criança. É necessário que ela seja chamada pelo nome, respeitada em sua individualidade ainda enquanto pequenina. O afeto, a higiene, o colo, a conversa [...] são as chaves mestras na construção da autoestima e de um desenvolvimento saudável no ser humano. Em contraposição, o tratamento igualitário, a impessoalidade, as palavras grosseiras e severas, o desprezo, a produção de uma educação em massa e a falta de atenção direta e específica a essas necessidades individuais trazem marcas negativas na formação da sua personalidade. Para que o desenvolvimento do ser humano possa ocorrer de forma saudável e adequado são necessários inúmeros fatores para sustentá-lo, sendo um desses pilares a relação com o outro. Conforme Brenner (1987, pág.111) “Freud foi o primeiro a nos fornecer um quadro claro da grande importância que tem para nossa vida e desenvolvimento psíquico a relação com outras pessoas”. Winnicott (1975, pág.79) também estudou sobre a importância das relações adequadas ao longo do percurso dos primeiros anos de vida da criança e afirma: ...chamo a atenção para o fato de que não se pode fazer uma descrição do desenvolvimento emocional do indivíduo inteiramente em termos do indivíduo, mas considerando que em certas áreas- e essa é uma delas, talvez a principal - o comportamento do ambiente faz parte do próprio desenvolvimento pessoal do indivíduo e, portanto, tem de ser incluído. (grifo nosso) O mesmo autor observou que uma série de cuidados e acontecimentos relativos à interação com o ambiente eram necessários. Para que um bebê passe do estado de não integração, sem percepção do que acontece ao seu redor, para um estado de identidade unitária, ao qual todas as experiências com o ambiente são percebidas e adaptadas ao sujeito, é preciso despender cuidado. É no corpo e na alma que a criança aprende os significados e seu intrínseco valor diante de tudo que lhe acontece. Para Bergès (1997, pág.51) “o corpo é, antes de qualquer coisa um receptátulo, um lugar de inscrição, uma trama implacavelmente destinada a imprimir-se com os cenários, e as cores de outrem...”. Assim, REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 48 dependendo do olhar com que foi olhado, do amor com que foi amado, ou do desprezo e negligência com que foi tratado, será essa pessoa. Brenner (1987, pág. 29) ainda esclarece que “a consciência não necessita participar e, frequentemente não participa inclusive das atividades mentais que são decisivas na determinação do comportamento do indivíduo [...], tais atividades [...] podem ser completamente inconscientes.” Isso talvez explique uma parte do profundo impacto das ações (inconscientes) do indivíduo sobre a educação e da educação sobre as ações do indivíduo. Sem se dar conta do que fazem (nem o professor, monitor e, muito menos a criança) comportam-se conforme as aprendizagens construídas ao seu próprio respeito e a respeito do lugar que o outro ocupa em suas vidas. A aprendizagem, conforme Piaget, é um contínuo constante, ascendente e estruturante processo que a cada etapa transforma em “self (interno), as experiências (externas). Por isso, de acordo com Caminha (1999, pág. 47), “[...]crianças expostas a ambientes estressantes são afetadas em sua capacidade de discriminar e formam padrões deturpados de realidade”. A violência, quer seja ela física ou psicológica, incide profundamente sobre o sentido de valor e de autoestima do sujeito. Esses padrões fragilizam o desenvolvimento minimamente adequado de um ser humano, expondo-o a déficits cognitivos, transtornos de todos os tipos, inclusive de personalidade a possíveis doenças mentais. Conclusão Diante do exposto, entendemos que as concepções de infância são uma construção histórica da humanidade e perpassou por diversas compreensões e diferentes formas de abrangência, de lugar e espaço nas sociedades. Hoje percebemos que a infância precisa de proteção sendo uma frágil etapa. São necessárias cobranças e controle no atendimento e no cuidado desses direitos. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 49 Com a Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1959, inicia-se essa rede de proteção, que inclui a criança na sociedade como sujeito de direito que deve e precisa ser resguardada. Sendo essas as funções do Estado, da família e da sociedade. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) Lei 8069/90 vem normatizar e regulamentar o reconhecimento da criança e do adolescente como seres humanos que carecem de cuidados especiais, resguardando seu desenvolvimento de forma adequada e saudável. No entanto, ainda hoje, quer nas ruas, nas famílias ou em instituições escolares como abordamos aqui, crianças são vítimas de abusos, agressões e violências que maculam e inscrevem em suas frágeis estruturas um sentimento de baixa autoestima, de desvalia, de coisificação. Tantas vezes transtornos de personalidade e doenças mentais são consequências dessas impressões, dessas violências na vida adulta. Se uma criança for cuidada, amada, ouvida e suprida em suas necessidades básicas, ela terá grandes chances de ser uma adulta feliz e emocionalmente adequada, tendo em seu interior os elementos e um repertório de boas lembranças e construções suficientes aonde buscar a resolução de seus conflitos. É necessário que, cada vez mais, o silêncio, a impunidade e a ignorância do que seja e do que pode causar na vida de um infante a violência, sejam quebrados e denunciados. Pais, educadores e monitores precisam estar atentos aos sinais de violência e apontar seus agressores. A proteção ao mais frágil e desamparado é o que se espera de uma sociedade e, mais ainda, de uma instituição de ensino. Protocolos de atendimentos e encaminhamentos devem ser criados, mecanismos de supervisão e comprometimento devem ser reforçados. Políticas prioritárias e de eficaz proteção a essa faixa etária tão vulnerável e frágil em suas estruturas devem ser anunciadas e perseguidas. Somente assim haverá um compromisso social satisfatório que sustentará essa rede global de proteção efetiva aos direitos da criança. REVISTA DIREITO, CULTURA E CIDADANIA – CNEC OSÓRIO / FACOS VOL. 2 – Nº 1 – MARÇO/2012 – ISSN 2236-3734 . Página 50 Referências BORGES, Adriana Cristina; NORDER, Luiz Antônio Cabello. Tortura e violência por motivos políticos no regime militar no Brasil. Disponível em: <http://www.uel .br/ eventos/sepech/sepech08/arqtxt/resumos-anais/AdrianaCBorges.pdf>, Acesso em: agosto de 2011. CAMINHA, Renato M. A violência e seus danos à criança e ao adolescente. 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