III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA AUTOR: Ana Luiza Biazetto Cárcere brasileiro contemporâneo, açoite escravista RESUMO: Em “Cárcere brasileiro contemporâneo, açoite escravista” são elucidadas as situações do sistema prisional, do negro e da mulher como expressões da questão social, a qual exige uma revisitação crítica da ação dos sujeitos e dos processos históricoestruturais que instituíram as sociedades do nosso continente. Procurou-se fundamentar a realidade vivida pela atual população carcerária feminina no país, com especial atenção à mulher negra. Das 7.605 mulheres presas em penitenciárias paulistas, a maioria tem entre 18 e 24 anos, está presa por tráfico de entorpecentes e é negra. PALAVRAS-CHAVE: racismo, mulher negra, sistema prisional. ABSTRACT: The study, "Contemporary Brazilian Jail, lash of slavery" presents the conditions black men and women who are major examples of social issues, live in the prison system. In order to better comprehend this issue, it is necessary to review important actions and also the historical-structural processes that established the societies in our continent. It is important to present the reality experienced by the current incarcerated female population in the country, with special attention to black women. The average age of the 7605 female inmates in São Paulo are between 18 and 24 years. Most of these women are black and are arrested for drug dealing. Keywords: racism, black women, the prison system. Introdução No texto “Cárcere brasileiro contemporâneo, açoite escravista” são elucidadas as situações do sistema prisional, do negro e da mulher como expressões da questão social, que para ser entendida no Brasil e na América Latina, segundo Wanderley (2008, p.55), exige uma revisitação crítica da ação dos sujeitos e dos processos histórico-estruturais que instituíram as sociedades do nosso continente. O autor salienta que a situação atual, com todas as mudanças que devem ser incorporadas na compreensão dessa questão, reflete a longa história que condiciona: colonização, lutas pela independência, modos de produção, formas de dependência, planos de desenvolvimento, tipos de Estado, políticas sociais, etc. Num vasto cenário intempestivo, a mulher brasileira negra e presa representa mais um desafio especial, que, para ser superado, precisa ser visto, analisado e tido como objeto de ação do Estado e da sociedade civil, aqueles que atuam diretamente com as políticas sociais. Como diz Wanderley (2008), para a superação das questões sociais sejam as mais “simples” ou as complexas, “há uma exigência fundante: a de um compromisso social ativo, a de ter esperança, baseada numa utopia, isto é, a possibilidade da humanidade e dos povos latino-americanos serem capazes de compreender, explicar e mudar a realidade social” (p. 155). Cárcere brasileiro contemporâneo, açoite escravista Os estudos sobre o sistema prisional no Brasil são orientados sob prismas diversos, o que instala no leitor diferentes formas de compreendê-lo. Procurou-se fundamentar através dos autores Ana Luiza Flauzina e Fernando Salla, no contexto histórico, a realidade vivida pela atual população carcerária feminina no país, com especial atenção à mulher negra. Os estudiosos acima citados transitam pelo tema proposto de forma diversificada, da Colônia ao momento atual do Brasil. Advogada e historiadora, Flauzina é especialista em Sistema de Justiça Criminal, mestra em Direito e docente. Salla, cientista político e social, é mestre e doutor em Sociologia, docente e pesquisador. Através deles, cada qual na sua particularidade, constata-se que os estereótipos a respeito da mulher criminosa contemporânea, bem como a maioria das características deste instigante universo prisional, foram construídos e perpetuados simultaneamente à trajetória da construção do Brasil. Flauzina (2008) elucida que “foi na biografia da escravização negra que o sistema penal começou a se consolidar, e é na lógica da dominação étnica contemporânea que continua a operar em seus excessos” e que a atuação desse sistema está ligada ao passado colonial, com vestígios de um direito penal de ordem privada (p. 51-53). A periodização de Nilo Batista1, utilizada como referência por Flauzina, citada em trechos deste capítulo, indica a vigência de quatro sistemas brasileiros, o colonial-mercantilista, o imperial-escravista e o republicano-positivista, além do que preside a contemporaneidade, que a autora denomina de neoliberal. 1. Eis que se inicia a punição na terra do pau-brasil Deve-se analisar o sistema punitivo mercantil (período de 1500 a 1822), que articulou a espinha dorsal da lógica de atuação do aparelho repressivo no país, na colônia portuguesa a partir da implementação das “Ordenações Filipinas"2, no volumoso e minucioso livro V. Conforme Salla (1999), nele estavam as disposições relativas aos crimes e às formas de sua punição, até a adoção do Código Criminal do Império de 1830. Essa legislação abrangia questões diversas, como blasfêmia, feitiçaria, benzimento de bichos, incesto, adultério, homicídio, injúria, furto, vadiagem, bailes de escravos, resgates de presos, jogos, judeus e mouros etc. Previa, também, a pena de morte, nas diversas concepções, segundo a legislação portuguesa; estipulava penas corporais como açoites, a mutilação de mãos, da língua, etc., queimaduras com tenazes. O confisco de bens e as multas eram igualmente utilizados como pena. Havia ainda um conjunto de penas que se destinava a expor ao ridículo ou à condenação pública os infratores. Embora tivesse essa variedade de penas, as Ordenações não estipulavam para nenhum crime ou circunstância a pena de prisão isoladamente. As inúmeras instituições prisionais da época eram, geralmente, desprovidas de um sentido ou finalidade ressocializador, eram um “recurso coercitivo para o cumprimento de outras penas”, um exercício do poder arbitrário nas vilas e cidades do mundo colonial” (idem, p.34-35). Flauzina (2008) percebe e evidencia algumas questões relacionadas ao Livro V das Ordenações Filipinas: o racismo3, na coisificação do escravo, quando no art. 62, por 1 Livre-docente em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor doutor, jurista e advogado criminalista, ex-governador do Estado do Rio de Janeiro. 2 Legislação reformulada durante séculos, em vigor em Portugal desde 1603. As Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, são assim denominadas por terem sido promulgadas por Felipe I, rei de Portugal e Espanha (Gusmão, 1914, apud Salla, p. 33). 3 Racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em preconceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as disposições estruturais e práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade racial, assim como a falsa idéia de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamentares, e de práticas discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos antisociais; obstaculiza o desenvolvimento de suas vítimas, perverte aqueles que o praticam, divide as exemplo, é apenado com pena de furto o indivíduo que, achando um escravo fugido, não reportar a descoberta em quinze dias ao senhor ou à autoridade competente; o patriarcalismo, que abarca a dimensão do resguardo da honra familiar pelo controle dos corpos femininos e a imposição de um código sexual castrador (no art. 38, por exemplo, o marido é autorizado a matar a mulher em caso de adultério); o resguardo das convenções religiosas e a correlata confirmação da soberania do poder real (p. 58). Outro aspecto peculiar do Livro V (Salla, 1999), que por tanto tempo norteou as ações do corpo político administrativo colonial, era a distribuição de penas segundo a condição social do transgressor. Se o indivíduo era escravo ou peão, poderia ser recolhido à prisão, pagar multa ou ainda ser açoitado ou condenado à morte. Se fosse um indivíduo de “maior condição”, pagava apenas as multas ou então era degradado para o Brasil ou África, recebendo sempre tratamento distinto. 2. Sistema imperial-escravista e emancipação política A luta pela organização de um aparato jurídico-político próprio começou a ganhar corpo, especialmente na área da justiça, quando a Corte portuguesa retornou a Portugal, que, por sua vez, acentuou as pressões contra os avanços ocorridos no Brasil (Salla, 1999). O autor conta que, em 1821, o príncipe regente, D. Pedro, por meio de um decreto de 23 de maio, ordenava algumas modificações significativas nas práticas das autoridades policiais e judiciárias, marcadas ainda pela arbitrariedade. Essas heranças das Ordenações não mais se coadunavam com a fachada liberal que o momento político exibia. No plano prático, a peregrinação de relações sociais racialmente delimitadas não trazia maiores novidades; no plano de idéias, porém, o país se debatia. Não se podia camuflar o paradoxo da convivência entre liberalismo e escravidão no Brasil (Flauzina, 2008). Como assinala Salla (1999), A Constituição de 1824, no seu artigo 179, apontava a necessidade de organização, quanto antes, de um código criminal, para que fossem substituídas as Ordenações do Reino e se fizesse a adequação da legislação ao espírito constitucional que passava a vigorar no país. Alem disso, abolia os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis. No entanto, o que viria estipulado na constituição em termos de abolição das penas cruéis, degradantes e de açoites não se aplicaria aos escravos (p. 43 e 44). Conforme Flauzina (2008), “o império foi arquitetado para evitar as rupturas com a ordem social, sedimentar os privilégios e dar o sinal definitivo de que o projeto do controle somar-se-ia o do extermínio” e que - sem enxergar no segmento negro nada além de sua “vocação” para o trabalho forçado - “as elites construíram o Império como forma de preparar as condições para gerenciar aquele contingente e o inviabilizar coletivamente em termos sociais” (p.65, 66). Daí, então, emergiu um medo branco que atribuía ao segmento negro o estatuto de inimigo inconciliável. Foi movido por esse caldeirão de insegurança que o projeto liberal nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a cooperação internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais do direito internacional e, por conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais (definição proposta pela Unesco, na “Declaração sobre as raças e os preconceitos raciais”). se converteu em um projeto policial que, como uma espécie de mantra, tem seu principal mote na obsessão do controle dos corpos e do modo de vida da população negra. No século XIX novas influências sobre formas de punição chegaram ao Brasil, sob o impulso das idéias iluministas. A prisão - um importante papel no mundo moderno passa a ser o principal meio de punição, porém agora envolta na tarefa de requalificação dos criminosos. O encarceramento ganhou destaque por se constituir em pena que confiscava a liberdade, o “bem” ao qual todos os indivíduos, elevados à condição de cidadãos, tinham o direito. Enquanto na Europa a pena de prisão passou a ser empregada simultaneamente à aplicação dos direitos do indivíduo como cidadão, esta mesma pena começou a ser utilizada no Brasil ainda com a estrutura social escravista e pelas diferenças e distâncias no acesso dos indivíduos à lei (Salla, 1999). A transferência dos açoites das ruas para as prisões, evitando-se o desencadeamento de uma reação em massa aos abusos do poder punitivo, elaborou um sistema penal “subterrâneo”, indispensável à manutenção do poder hegemônico, que seria assumido em definitivo na arquitetura punitiva republicana (Flauzina, 2008). 3. Proclamação da República, advento da democracia racial Distintos são os destaques dados pelos autores que fundamentam este texto quanto às primeiras experiências do período republicano. Flauzina (p. 86) entende que A arquitetura punitiva republicana desse primeiro período visa, fundamentalmente, à incorporação da massa urbana e dos episódios do escravismo no campo ao projeto de desenvolvimento industrial e produtivo carrega, portanto uma dimensão racial de base. Se a ocupação da mão-de-obra é o pano de fundo, a disciplina dos trabalhadores brancos estará vinculada a uma tentativa de estabilização e acomodação da vida proletária, enquanto sobre o segmento negro incide um controle que almeja, além de garantir a mão-de-obra para o projeto modernizador, resguarda a cor do poder, tolher qualquer esperança de uma equalização advinda do fim do processo escravista, definir, enfim, o espaço de subserviência a ser ocupado pela massa negra nesses novos tempos. Desde esse primeiro momento, as disposições do sistema punitivo republicano assumiram um controle diferencial para lidar com as especificidades dos grupos a serem gerenciados. Salla (1999) complementa que “é no início do período republicano que vão surgir as primeiras experiências em manicômios e prisões e principalmente, de forja de um conjunto de informações detalhadas cientificas sobre os loucos e os criminosos a partir do próprio interior destas instituições” (p.146 e 152). O autor menciona ainda que “estas correntes positivistas que fascinaram nossos juristas e os mais diversos pensadores nas décadas que antecedem e sucedem a passagem do século, talvez tenham dificultado ainda mais a consolidação dos ideais liberais contidos na Constituição de 1891, principalmente no que se refere à questão da cidadania”, conforme tratado na citação do autor na página 18. O sistema penal forjado controle social, trazendo que “há uma passagem recolhimento nos moldes 4 na República não quebra com o cerne do empreendimento de o racismo como principal fundamento. Flauzina (2008) explica de uma prática explícita de enunciação do racismo para um da democracia racial4” (p.81). A democracia racial apareceu como uma alternativa de diminuição que evitava o confronto direto, preservando as assimetrias raciais. A partir dessa perspectiva, o trato da questão racial se dá pelo avesso, pela dinâmica do silenciamento que impede a enunciação do racismo. Assim, como donos A autora diz que “nesse cenário, o medo das elites de perder as rédeas do controle sobre a população negra, naturalmente aguçado no período pós-Abolição, passou a ser a plataforma principal das investidas de cunho repressivo” e que “há uma sutileza fundamental que distingue os pressupostos do esforço legislativo dirigido ao controle de brancos e negros nesse período. Párea os brancos, a censura materializada na criminalização estava relacionada à falta de interiorização da disciplina fabril e à indisciplina política” (p. 82 e 84). A abolição da escravidão trouxe ainda uma série de transformações para o mercado de trabalho. Na nova ordem econômica em fase de transição – onde o escravo é substituído pela assalariado – um novo ideário se forja. O trabalho encarado como algo degradante e quase que sinônimo da condição escrava começa a ceder lugar para um outro conjunto de idéias no qual ele passa a ser apresentado como fonte da virtude, da honradez, da dignidade e da honestidade (Challoub, 1986, apud Salla, p. 187). Tendo como fundamento uma criminologia que enxerga o segmento negro como inferior e perigoso nas alcovas do sistema penal permanecem os suplícios e as arbitrariedades. Se, no passado escravista, era possível à criminalização primária punir negros e brancos de forma expressamente diferenciada, agora, com a Abolição, é preciso avançar ainda mais fortemente sobre os outros níveis de controle, sem prescindir da manipulação do ordenamento jurídico. Saindo expressamente das leis, a assimetria teria de ser garantia nas ruas. Esse será então o cenário da discriminação por excelência. Daí a porosidade, a aceitação da criminologia positivista como grande suporte teórico do treinamento policial. Foi graças ao suporte do racismo que, por meio da criminologia, construiu uma prática policial republicana ciente do seu papel no controle da população negra (Flauzina, 2008). 4. Período neoliberal: o pobre e o negro A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escala generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. No entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século. Isto é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos e seu tratamento penal coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru (Wacquant, 2001, p. 7, 8). No Brasil, como em outros espaços marginais do planeta, a ofensiva neoliberal gerou a concentração de renda, a diminuição do crescimento econômico, o desemprego endêmico e a conseqüente incrementação da economia informal, além do enfraquecimento do passado, num monopólio autoral em que não cabe a versão dos dominados, foi possível ao segmento branco forjar os processos de naturalização que fariam da interiorização da supremacia branca e da subordinação negra o grande legado do nosso racismo. Diante de tal narrativa, só o presente restou aos negros. Um presente sem causas, só conseqüências. E, como já não fosse permitido empregar o vocabulário da raça, agora subsumido por classe, o projeto da democracia racial acabou por inviabilizar o processo de recuperação da trajetória histórica de todo um segmento (Flauzina, p.48- 49). progressivo dos programas assistenciais assumidos pelo Estado desenvolvimentista (Flauzina, p. 98). E não é só isso. A autora (p. 98) elucida que, no sistema neoliberal, o racismo, no sistema neoliberal, é o responsável por um projeto de exclusão social e eliminação de grandes contingentes. É ele que instrumentaliza o sistema punitivo, o qual mantém uma estreita relação de complementariedade com o mercado de trabalho. Flauzina explica que Empurrados para fora de um mercado formal de trabalho a que já tinham pouco acesso, os segmentos vulneráveis têm sua biografia praticamente interditada nos espaços cada vez mais rígidos da legalidade. As alternativas a que se lançam, para sobreviver na informalidade, são alvo de controle incisivo. É justamente no entorno dos espólios desse mercado de trabalho que o sistema penal se movimenta, a partir de uma lógica em que a hierarquia racial da pobreza garante o perfil dos indivíduos a serem entregues ao aparato punitivo dentro dos estereótipos historicamente consagrados. Assim, a criminalização do modo de vida da população negra ganha novo fôlego, seguindo como uma das principais balizas da intervenção penal (p.100). A insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças de ordem. O uso rotineiro da violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia civil (através do uso da “pimentinha” e do “pau-de-arara” para fazer os suspeitos “confessarem”), as execuções sumárias e os “desaparecimentos” inexplicados geral um clima de terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no seio do estado (idem, p.9). Outro fator complica gravemente o problema: o recorte da hierarquia de classes e da estratificação etnorracial e a discriminação baseada na cor, endêmica nas burocracias policial e judiciária. Sabe-se, por exemplo, que em São Paulo, como nas outras grandes cidades, os indicadores de cor “se beneficiam” de uma vigilância particular por parte da polícia, tem mais dificuldade de acesso a ajuda jurídica e, por um crime igual, são punidos com mais penas mais pesadas que seus comparsas brancos. (Adorno, 1995, apud Wacquant, 2001, p.9). E, uma vez atrás das grades, são ainda submetidos às condições de detenção mais duras e sofrem as violências mais graves. Penalizar a miséria significa aqui “tornar invisível” o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval do Estado (Moraes e Souza, 1999, apud Wacquant, 2001, p.10). Wacquant bem descreve a principal função do aparelho carcerário brasileiro: “só serve para agravar a instabilidade e a pobreza das famílias cujos membros ele seqüestra e para alimentar a criminalidade pelo desprezo escandaloso da lei, pela cultura da desconfiança dos outros e da recusa das autoridades que ele promove” (p. 12). No que consiste ser negra, pobre e presa? As imagens e sensações que cercam o cotidiano do segmento negro são dados de um processo histórico, o que é evidente diante dos argumentos e releitura de questões diversas, como a racial e a do sistema punitivo brasileiros, encontradas anteriormente. É necessário, portanto, agir com naturalidade diante da evidência de que há um recorte racial nos vieses das desigualdades no Brasil, mesmo que o país ainda siga “a velha cartilha de boas maneiras que ensina a ver, mas enxergar o mínimo, ouvir pouco e nunca confessar acerca da matéria racial” (Flauzina, 2008). Isto é traduzido por Lilia Schwarcz , na Revista Brasileiros, como o perverso tipo de discriminação ainda em voga no Brasil, chamado por Florestan Fernandes, na década de 70, de “preconceito de ter preconceito”. Ou seja, como não há discriminação oficial, parece não haver preconceito algum. Contudo Flauzina (2008) afirma que os estudos da criminologia crítica no Brasil, não se apropriaram de maneira substantiva das relações existentes entre racismo e sistema penal. A análise nas assimetrias reproduzidas pelo aparato de controle penal a partir das categorias classe e, mais recentemente e ainda de maneira tímida, gênero, secundariza a categoria raça. Diante dessa tendência, a autora sinaliza que é preciso considerar que se há necessidade em avaliar a categoria gênero, é preciso também categorizar a raça como instrumento de análise, a fim de levar em conta a criminalização e o controle específico que incide sobre negros e negras, quase a metade da população do país. De acordo com a estudiosa (2008), é preciso compreender que, no Brasil, Estamos diante de uma sociedade de classes racial e sexistamente estruturada. Nessa configuração, a raça tende a promover a hierarquização das funções e a diferenciação do usufruto do trabalho dentro de um universo informado pelo gênero, que determina as atividades destinadas a homens e mulheres também numa lógica de hierarquização. Essas são as categorias que, numa complexa operação, preenchem as lacunas da pirâmide social brasileira, colocando homens e mulheres, negros e brancos, em posições que tendem a ser naturalizadas, apesar da mecânica artificial que as instrumentaliza (p.152). A partir dessas colocações, é possível entender que - a exemplo do que ocorre com os homens, mesmo que em menor proporção - as influências do sistema penal no que diz respeito à criminalização feminina também foram historicamente formatadas para o controle das mulheres negras. Ao negligenciar o racismo como uma condicionante fundamental das relações de gênero no sistema penal, segundo Flauzina (2008), é preciso considerar que se perdem de vista os efeitos correlatos de atuação do sistema penal, que, ordinariamente, não estão colocados para as mulheres brancas. A autora considera que “são, portanto, lacunosas as construções que visam a dar conta do sistema penal sem observar o racismo como seu elemento fundante”. Nos sistemas penais marginais, como o brasileiro, que se caracterizam por uma movimentação extremamente violenta, não há como pretender uma abordagem coerente sem politizar a categoria raça. O racismo, nesse sentido, é um pressuposto para a inteligibilidade desse mecanismo de controle social. Há, portanto, no Brasil um pacto social assimétrico, de herança escravista, cujo fundamento é a expropriação material e simbólica do segmento negro, associado ao caráter desumanizador inerente a esse tipo de estrutura, que confere o livre acesso à corporalidade desse segmento. Flauzina (2008) complementa que os termos desse pacto são os elementos que dão coerência à metodologia truculenta e assassina do empreendimento penal no Brasil. Por isso, o racismo é a lente privilegiada para enxergar os nossos sistemas penais ao longo de todo o processo histórico. A maioria crescente no sistema prisional brasileiro, de acordo com o InfoPen – Estatística, é dotada mulheres negras - pretas e pardas, conforme o IBGE. O último levantamento do sistema, referente à dezembro de 2009, aponta que há, no Brasil, 31.401 mulheres presas em delegacias de polícia e no sistema penitenciário, no qual encontram-se 24.292. Mulheres negras no sistema prisional do Estado de São Paulo são mais de 50% do total de mulheres presas. Das 11.079 mulheres presas no Estado de São Paulo, conforme o InfoPen de dezembro de 2009, 7.605 estão em penitenciárias, das quais 3.717 são negras. A maioria delas tem entre 18 e 24 anos, cursou o ensino fundamental incompleto, foi presa por tráfico de entorpecentes e vem de áreas urbanas de municípios do interior. Bibliografia Flauzina. Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. Pinheiro, Amilton. Um olho na corte e outro na escravidão. Brasileiros. São Paulo, nº 21, p. 50-55, mar. 2010. Salla, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999. Wacquant, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2001. WANDERLEY, Luiz Eduardo W. A questão social no contexto da globalização: o caso latino-americano e o caribenho. In: CASTEL, WANDERLEY e BELFIORE WANDERLEY (Orgs.). Desigualdade e a Questão Social. 3 ed. São Paulo: Educ, 2008.