Bauman: escolas líquidas nas periferias das periferias Maria Cristina Schefer1 Resumo: Este texto (excerto de tese em desenvolvimento) e que transita entre a análise biográfica e a bibliográfica de Zygmunt Bauman, visa demonstrar que a escola está líquida porque vivemos na “Sociedade de Consumo Líquido-Moderna”, bem como, que as escolas das periferias das periferias evidenciam (com maior propriedade) a distopia da escola para todos, slogan tão difundido nas últimas décadas. A reflexão teórica parte da compreensão do processo de liquidificação da sociedade, iniciado na primeira metade do século passado e que teve, segundo o autor, o Holocausto Judeu como marco estratégico para a reconfiguração do mercado global. Em síntese, o que se pretende 2 elucidar é que uma oferta de educação democrática tem pouquíssimas chances de êxito em sociedades capitalistas, onde a ordem vigente desenvolve o mesmo comportamento heterofóbico que definiu as relações excludentes e genocidas do século passado. Palavras-chave: Educação. Sociedade líquida. Escola. Introdução O metafórico conceito de Bauman (2003), de que vivemos na “Modernidade Líquida”, oriunda do derretimento das ideias da “Modernidade Sólida”, é que permeia este estudo. Na intenção de demonstrar o modo como essa ideia de liquidificação foi sendo construída pelo referido sociólogo, que estabeleceu uma intrínseca relação entre comportamento social atual e aquele que empreendeu o Holocausto Judeu, optou-se por elucidar excertos de seu raciocínio intelectual. A competência de “auctor 3 social” (BOURDIEU, 2006) de Bauman para enveredar numa teorização sociológica, que questiona a civilidade do humano contemporâneo, é legitimada também por sua condição de sobrevivente, de testemunho do maior evento genocida do século passado. Nesse aspecto, suas publicações, a partir da década de 80 (séc. XX),4 em que salienta os impedimentos que a atual Sociedade de Consumo Líquido-Moderna estabelece para a mobilidade socioeconômica são 1 Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo. Bolsista da Capes. E-mail: [email protected]. Orientadora: Profa. Dra. Gelsa Knijnik. 2 Movimento principiado a partir da “Conferência Mundial de Educação para Todos”, organizada pela Unesco em Jomtien, em 1990, e que passou a orientar legalmente os sistemas de ensino dos países signatários. 3 Optou-se pela manutenção da escrita conforme a norma ortográfica do Português de Portugal, em vista do texto de origem. Salienta-se que o termo, no referido país, tem a ver com a autoridade de alguém num grupo e não com a autoria. 4 Conhecida como a fase Mosaica de sua obra. (ALMEIDA, 2007). Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 62 importantes, pois apontam ao fato de que algumas ideias, como a de uma escola para todos, precisam ser modalizadas à luz das limitações da ordem vigente. Para o autor, todos os homens/mulheres contemporâneos estão comidificados (precificados), e a tendência é de que se concedam benefícios de acordo com o valor monetário do freguês/cliente. Dessa forma, pensar em processos de escolarização é pensar numa escola situada na liquidez, em meio à inconstância, à insegurança e à ambivalência. Nestas linhas, inicialmente, reflete-se sobre as contingências em que Bauman teceu o metafórico conceito dos tempos atuais como sendo os da “Modernidade Líquida”. Em seguida, evidencia-se, no conjunto dos rolezinhos nos shoppings paulistas, ocorridos no final de 2012, no Brasil, de que o modo de comportamento heterofóbico está sendo expresso na atualidade, no País, demonstrando-se a convergência de práticas institucionais, mídia e legislação (no binômio público/privado), em reforço a relações excludentes. Por fim, abrem-se questionamentos sobre a forma como uma escola, instituição que também está liquidificada e que não garante mais nada para ninguém, pode, quando destinada a “consumidores falhos”, nas periferias das periferias, não passar de um não-lugar-escolar, em vista de que integra uma rede sistêmica que se retroalimenta também da parcela de seres excluídos. Da propriedade de um autor social para construir um conceito De acordo com Bourdieu (2006), uma “autoridade social” se estabelece a partir do reconhecimento de seus atributos por um determinado grupo, através da legitimação de seu poder simbólico. Desse modo, compreender Bauman, a partir de sua condição humana, significa dar importância à subjetividade do pesquisador, entendendo-a, desse modo, como elemento potencializador de sua teoria sociológica. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 63 Bauman foi obrigado a se refugiar,5 por duas vezes, dos “empreendedores da pureza étnica europeia”, que tiveram como espaço ideológico afirmativo a Segunda Guerra Mundial.6 Esse sociólogo polonês, radicado na Grã-Bretanha, defende que o Holocausto Judeu é o elemento central para a compreensão das relações humanas na atualidade. Bauman (1998) condiciona o entendimento da ordem social excludente dos cotidianos contemporâneos à desmitificação desse evento genocida, por acreditar que a ação tenha feito parte de um estratagema para o projeto econômico europeu e repudia quaisquer outros argumentos para o ocorrido. Para o autor, juntamente com outros episódios cruéis da Modernidade, o Holocausto Judeu (comandado por um Estado-Jardineiro) instituiu a ideia de lixo humano (ervas daninhas) e da necessidade de um tratamento higiênico e eficaz para extingui-lo: o controle dos “piolhos humanos”. Em suma, naturalizou a violência estatal. Sobre a motivação real para o Holocausto Judeu, o sociólogo rememora que o problema a ser solucionado não era apenas a presença da comunidade judaica e de outros povos intrusos no eixo europeu, mas a necessidade de impedir o fortalecimento de estrangeiros. Nesse cenário de tomada de consciência, os sinais de ascensão judaica foram considerados a “grande ameaça”, pois evidenciavam o fracasso do Estado/Nação no controle de estranhos. Para Bauman, apesar de uma “motivação anticapitalista” ter sido anunciada pelos partidários do Social-Nacionalismo, esse holocausto foi o responsável pela inauguração da “arquitetura heterofóbica” necessária ao novo empreendimento capitalista do eixo europeu, o qual (desde então) vem se expandindo em recorrentes processos colonizadores em meio ao que considera uma “globalização negativa”. A organização do Holocausto Judeu resultou do refinamento de técnicas de exclusão, à época em que o afastamento dos vitimados para campos de 5 Nascido na Posnânia, em 1939, fugiu para a Rússia, onde permaneceu até o final da Segunda Guerra Mundial (1945). Já em Varsóvia (Capital da Polônia), estudou Sociologia e iniciou a carreira docente na Universidade de Varsóvia. Em vista de uma nova onda de antissemitismo que assolava o país, Bauman, em 1968, emigrou para Israel, onde permaneceu por três anos, até que foi convidado para chefiar o Departamento de Sociologia da Universidade de Leeds (Inglaterra), instituição em que permaneceu até a aposentadoria em 1990. 6 Conflito militar havido entre as maiores potências mundiais (aliados: União Soviética, Estados Unidos, Reino Unido contra o eixo: Alemanha, Japão, Itália) ocorrido entre 1939 e 1945. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 64 concentração (periferias) evitou eventos de comoção internos e externos. Alude-se que Estado/Nação foi sensível à saúde mental de seus soldados, de seus nativos e levou em consideração possíveis crises traumáticas. A burocracia para a matança (dentro dos espaços de reclusão) funcionou como prevenção psicológica, pois, entre o ato de ordenar e o fato de matar, eram mobilizados muitos atores/intermediários causando aos subordinados certo alívio, já que ninguém era integralmente responsável por uma execução. Evidenciou-se que, comportamento na “Modernidade social) foi manejado Sólida” pelos o determinismo cultural movimentos nacionalistas, (o que privilegiavam a busca da identidade perfeita (grupal/individual). Em suma, a cultura foi ordenada, regada, corrigida, padronizada, sendo que a legislação 7 foi um mecanismo útil e eficaz para prevenir desvios na sociedade requerida. Para Bauman, no “cerne” do conceito de cultura encontra-se a premonição ou a aceitação tácita de uma relação social desigual e assimétrica ─ a divisão entre atores e receptores, ou objetos da ação, entre agir e sofrer impacto da ação; entre os gerentes e os gerenciados. Os instruídos e os ignorantes, os refinados e os ignorantes. (2009, p. 73). É fato que a Sociedade Contemporânea Ocidental passadas as duas Grandes Guerras, empenhou-se na busca da paz e, sob a égide dos “universais direitos humanos”,8 tem redelineado seus ordenamentos legais. Porém, cabe situar esses avanços legislativos num novo modelo social, no qual o Estado se encontra enfraquecido, e o setor privado, fortalecido. A “nova ordem mundial”, ao mesmo tempo que anunciou o “Estado humanitário”, retirou dele o comando das ações. Atualmente, o poder capital é detido pelo setor privado, obrigando-o a novas relações em todos os setores e definindo as condições humanas no Planeta. Numa sociedade globalizada, que gera problemas globais, os Estados, em suas alçadas territoriais, reagem timidamente diante da magnitude dos desafios. Para Bauman (2007) as sociedades estão abertas, interligadas, em relações 7 Compêndio de Leis de Nuremberg (1935), três leis que levaram outros países a adaptá-las em solo local, mantendo a ideia de superioridade da raça ariana e coibindo a mistura de raças. 8 Tendo como texto de referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 12 ago. 2011. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 65 mercadológicas por uma globalização negativa9 que protege as grandes corporações e regula sutilmente a presença de lixos humanos, transformados em mão de obra reserva: seres excedentes. Para o autor a Pós-Modernidade (que por questões semânticas10 prefere chamar de Modernidade Líquida) é resultante da diluição da solidez da Modernidade, conforme escreveu: Os fluídos se movem facilmente. Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”, “respingam”, “transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”, são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho... Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. (2001, p. 8). Bauman adverte que essa fluidez não pode ser entendida como sinônimo de melhoria. A sociedade da ordem e do controle transmutou-se na sociedade do caos, em que a desordem impede que se apreenda a lógica do sistema vigente (fenômeno que ao mesmo tempo o mantém seguro). O estado líquido da sociedade atual gerou vidas líquidas potencializadas em individualização. Na nova ordem geográfica, o ser flutuante, que tem versatilidade e é capaz de circular em vários lugares, tornou-se a marca dos nativos capitais. Ao contrário disso, a fixação em territórios periféricos, a pouca mobilidade, é predicativo dos seres excedentes, “no mundo líquido-moderno, a lentidão significa a morte social”. (BAUMAN, 2007, p. 110). As relações capital/trabalho também cederam à inconstância e apresentam uma nova caracterização. Atualmente, patrões e empregados não buscam criar vínculos, mas se reinventarem constantemente, em que mais importante que a produção é a comercialização permanente de tudo e de todos. Conforme Bauman 9 Informações retiradas de entrevista concedida por Bauman, no blog: Macroscopio. Disponível em: <http://macroscopio.blogspot.com.br/2007/07/uma-entrevista-interessante-zygmunt.html>. Acesso em: 12 ago. 2011. 10 Inicialmente, Bauman utilizou o conceito Pós-Modernidade em sua obra, porém, entendeu que a similaridade dele com o termo Pós-Modernismo poderia resultar em confusões no campo científico. Cunhou, assim, o novo enunciado que demarca o período iniciado no final da Guerra Fria. A autora desta tese, porém, entendendo que a possibilidade de engano se deve aos processos de tradução (literal), utiliza os conceitos Pós-Modernidade e Modernidade Líquida como sinônimos neste estudo. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 66 O desvio seminal que separa de forma mais drástica a síndrome cultural consumista de sua predecessora produtivista, o que congrega o conjunto de diferentes impulsos, intuições e propensões e eleva esse agregado à condição de um plano de vida coerente, parece ser a revogação dos valores vinculados respectivamente à duração e à efemeridade. (2007, p. 111, grifos do autor). Nesta que é a Sociedade de Consumo Líquido-Moderna, “a síndrome consumista degradou a duração e elevou a efemeridade. Ela ergue o valor da novidade acima do valor da permanência”. (BAUMAN, 2007, p. 111). Mantendo o comportamento predatório, como característica inerente à vida nas sociedades capitalistas, Bauman (2007), sob os conceitos de homo eligens (que escolhe) e consumidores falhos (desqualificados para a compra) chama à atenção para o processo de objetivação financeira de todos os corpos na contemporaneidade, bem como das diversas características pessoais que estão a definir a saúde contábil dos seres humanos. Nesse cenário, é “preciso primeiro se tornar mercadoria para ter uma chance razoável de exercer os direitos e cumprir os deveres de um consumidor” (BAUMAN, 2008, p. 89), onde “o mercado de trabalho é dos muitos mercados de produtos em que se escrevem as vidas dos indivíduos”. (p. 18). Na cultura do presente, desenvolvem-se, permanentemente, múltiplas ordens de exclusão. Na atualização administrativa do “processo seletivo de humanos”, novos métodos e estratégias de gestão (sem derramamento de sangue nem corpos empilhados em locais específicos para extermínio) mantêm a negação do “não nativo”, do estrangeiro (ao consumo). A exemplo do passado, para a marginalização territorial, social, afetiva de pessoas, recorre-se ao providencial medo do estranho, do viscoso, 11 semelhante ao ocorrido no período do Holocausto Judeu, reeditado, porém, através de novas tecnologias para a criminalização. Comportamento heterofóbico aos moldes genocidas: exagero ou trivialidade? 11 Viscosos (como eram vistos os judeus, segundo o autor) são seres/coisas que impregnam, atrapalham. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 67 O alvo de repulsa na atual Sociedade de Consumo Líquido-Moderna é todo aquele ser humano que, destituído do poder de compra/venda (consumidor falho), vive das sobras daqueles que melhor se situam nos mais diversos mapas sociais (homo eligens). O preconceito dispensado ao pobre (“mal/bem necessário” para que o sistema se mantenha em permanente restabelecimento) possibilita a discriminação necessária para a manutenção dos afastamentos/banimentos cotidianos, bem assim a irresponsabilidade para com os incongruentes ao mundo dos consumidores. Para Bauman (2008, p. 161), “enquanto são expulsos das ruas, os pobres também podem ser expulsos da comunidade humana: do mundo dos deveres éticos”. Exemplos diários do repúdio à presença dos consumidores falhos pelos homo eligens não faltam. No “Brasil da mélange”,12 cita-se a mobilização de empresários paulistanos que desarticulou os “rolezinhos em shoppings paulistas”.13 O fato de as “celebridades populares” e seus “fãs” apresentarem a indelével marca da pobreza (periferia), possivelmente, foi determinante para a restrição do acesso de grupos de adolescentes nos referidos “estabelecimentos abertos ao público”. Os gestores dos shoppings, apoiados na lei, foram ávidos ao proibirem as junções. 14 Sentença difundida, via mídia, em forma de “esclarecimento corporativo anônimo” e sob o argumento de que “empresas privadas” podem “controlar” a entrada de seus clientes. Desse modo, escancarou-se (a poucos olhos) o apartheid, a ambivalência do público/privado, a fragmentação das decisões em benefício das “barbaridades” (?!). No incidente citado, a possibilidade de “arrastões” serviu para convencer a opinião pública de que não houve discriminação, nem impedimento do ir e vir, 15 mas apenas precaução por questões de segurança e para o bem de todos. No que se refere ao 12 Termo em francês que significa mistura. Em síntese, alude à mistura de raças, etnias, costumes em solo nacional: ao mito da miscigenação. 13 Onda de reuniões de jovens moradores das periferias, marcadas pela internet e que tiveram como ponto preferencial shoppings de São Paulo no final do ano passado. 14 Informações que circularam, por algumas semanas, na mídia brasileira, no final do ano de 2013. 15 O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, no Capítulo II (do Direito de Liberdade, do Respeito e da Dignidade), estabelece no art. 16, I que toda criança e adolescente têm direito à liberdade, compreendendo o direito de ir, vir e estar, assim assegurando também a esses o direito de frequentar os locais destinados ao acesso do público. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 68 papel intermediário da mídia na “mediação de conflitos” entre incluídos e excluídos, Ela, segundo Bauman, colabora de bom grado com a polícia ao apresentar, a um público ávido por sensações, retratos chocantes de elementos criminosos, infestados pelo crime, pelas drogas e pela promiscuidade sexual, que buscam abrigo na escuridão de lugares proibidos e ruas perigosas. Os pobres fornecem “os suspeitos de sempre” a serem recolhidos, com o acompanhamento de clamores públicos sempre que uma ordem habitual é detectada e revelada à sociedade. (2008, p. 162). Como visto, a mídia acumula, na Sociedade de Consumo Líquido- Moderna, a função de difundir a repulsa a consumidores falhos; utiliza-se da imagem “demoníaca” dos miseráveis (a qual ajuda a construir) e mantém “os suspeitos de sempre” (2008, p. 162) na mira dos demais. A legislação, por sua vez, torna ambivalente o direito público em relação aos direitos plurais da iniciativa privada, isentando os donos do capital de penalizações por injúria, mesmo diante de evidências de discriminação gerada por preconceitos a consumidores falhos. A escola das periferias das periferias “encharcada de contradições” Sabendo-se que a distribuição do conhecimento no Ocidente se deu a partir do pensamento eurocêntrico (SANTOS, 2010), cabe questionar não apenas as verdades globais e desenvolvimentistas que estão a determinar a oferta de ensino nos países capitalistas, como o efeito prático da legislação nacional que garante o acesso ao ensino como direito subjetivo de todos, visto que todos não são iguais no mercado dos corpos capitais e nem todos têm condições iguais de consumir o conhecimento que a ordem vigente impõe. Para compreender em que medida a escola está líquida (instituição social na Modernidade Líquida), antes de tudo, é preciso percebê-la como um lugar cultural que não tem suas práticas protegidas do comportamento social heterofóbico, que determina as demais relações na sociedade. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 69 Nesse aspecto, conforme apontou Naradowisk (2013),16 a escola perdeu, já na Modernidade (a partir do século XVIII), grande parte de seu potencial para o ensino, quando deixou de ser apenas comeniana, quando o Estado se apoderou da instituição sob o argumento de que a tornaria direito público. Até então, desde a Carta Magna (séc. XVII), a escola era discutida e projetada por educadores, sendo as aprendizagens consideradas o fim, sem interferências desenvolvimentistas. Além do mais, na atual sociedade que também logra ser a do conhecimento, o eixo do “aprender para toda a vida” foi deslocado para “o aprender a vida toda” (ALMEIDA, 2007), mantendo, desse modo, a defasagem de saberes como marketing para os produtos que constantemente põe à venda. A escola não é uma cúpula protegida de más-influências/intenções. Os olhares dentro da escola não são olhares neutros; se a sociedade atual é movida por relações capitais, é preciso considerar as várias instâncias numéricas que passaram a definir o sucesso (ou não) dos corpos comidificados dentro das escolas, bem como compreender que também os territórios sociais estão demarcados por diferentes níveis de poder simbólico (BOURDIEU, 2006), que, hierarquicamente, têm os centros como ponto-alto e que declinam para as periferias. Conforme Santos (2010), é um degradê dos centros para as margens o processo de exclusão no Globo. Uma escola atravessada por números, curvas e cifras Uma contabilidade especificamente escolar, mesmo que “hipoteticamente refletida”, sob a luz daquilo que a obra de Bauman aponta, inclui muitos números. Importante, nessa conta, é o volume de avaliações continuas a que estão sujeitados os estudantes na atualidade. Testes, proficiências que modalizam outros cálculos intrarresultantes e que contêm dados menos observáveis. Citam-se, nessa equação: o número de crianças por sala de aula, as idades que determinam as junções para o aprendizado, as mais variadas necessidades especiais de atendimento, as condições de subsistência dos consumidores falhos; a competência técnica e 16 Palestra proferida em minicurso: “Comenius e a educação”, comunicação de um texto sob o mesmo título, em que o autor enfatizou o quanto a escola pensada e articulada por educadores teve êxito em seu período inaugural no século XVII, bem como o problema que a anexação da instituição escolar ao Estado gerou ao processo de ensino e aprendizagem. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 70 autofinanciada dos professores, os salários pagos à categoria do magistério, entre tantos outros quesitos cifrados. Além disso, cabe considerar que há interesses extraescolares por parte dos governos municipal, estadual e federal sobre os territórios que abrigam as escolas, resultando, por sua vez, em outras operações, com a classificação da, com a relação dos eleitores, com as ideias de custo e benefício para uma oferta de ensino e que acabam determinando, entre outros recursos, o organograma dos profissionais para a educação. Em suma, há um “livro-caixa escolar”, pois a escola está situada e datada nesta “Sociedade de Consumo Líquido-Moderna”. Aplica-se no ensino e nos corpos da escola, porém não se garantem lucros, já que a liquidez não faz promessas. Porém, a escola, que nada mais garante, continua a cercear a mobilidade social àqueles que não atingem a meta do conhecimento e com eficácia. Nesse aspecto, nas escolas das periferias das periferias (ou escolas mais e mais afastadas do centro e dos homens eligens), com raras exceções, os cálculos acabam em números negativos. Símbolos que reiteram, nos mapas estatísticos, a impossibilidade de reverter, a partir da justa distribuição de recursos educacionais, a condição de consumidores falhos. Sendo a escola o condicionante (acessível a todos os públicos) para a mobilidade socioeconômica no Ocidente, é possível enquadrá-la também como uma estratégia para a manutenção da ordem vigente, lembrando que, paradoxalmente, nichos de mercado se ergueram (assistência social/ segurança pública) e que lucram com a existência de lugares inóspitos, de consumidores falhos. Além disso, todos os países desenvolvimentistas necessitam de homens excedentes, dispostos a atender tanto a demandas empreendedoras imediatas quanto à realização de serviços de segunda-linha, de trabalhos sujos (in)materiais. Nesse aspecto, alude-se à instituição de escolas também como espaços de encontros necessários, obrigados por lei, mas que podem ser fadados à brevidade, que ao contrário do que se difunde, nem sempre serão significativos, principalmente, para estudantes que logram aprender nas periferias das periferias. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 71 Em suma, analogamente ao que Augè (1994) definiu como lugares de passagem ou não-lugares (supermercados, shoppings, aeroportos), evidencia-se a edificação de não-lugares-escolares (em territórios marginalizados) como parte do necessário processo de conformação social para a manutenção do capitalismo de consumo. Das infelizes considerações finais De tudo que Bauman argumentou, talvez, o mais doloroso seja a compreensão de quanto o mecanismo global engendra todos: da saúde que gozam as relações predatórias em todas as esferas sociais, das quais a instituição escolar não está excluída. Aos que não interessam, aos consumidores falhos, continuam escassas as possibilidades de ascensão/locomoção, mesmo em meio à igualitária garantia de acesso ao ensino, a qual permite (como sempre) a movimentação dos homens eligens. A constatação de que as mentalidades vigentes estão assentadas na síndrome consumista é preocupante, pois a mudança de um comportamento social de natureza capitalista, em benefício do reconhecimento de todos os seres humanos, exige a declaração de uma guerra a tudo aquilo que vem sendo naturalizado e que está definindo as práticas sociais. Porém, a demarcação dessa condição humana heterofóbica, como “o grande problema contemporâneo”, possibilitando novas e diferentes barbáries (barbaridades), constitui-se num primeiro passo para uma possível contenção! Referências Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVIII Fórum Internacional Vol. 5 – ISSN 2178 4485- Agosto/2014 de Educação 72 ALMEIDA, Felipe Quintão de; GOMES, Ivan Marcelo; BRACHT, Valter. Baumam & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do Século). BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998b. BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BAUMAN, Zygmunt. 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