OS MOVIMENTOS DE ACESSO À JUSTIÇA NOS DIFERENTES PERÍODOS HISTÓRICOS Francisco das C. Lima Filho * INTRODUÇÃO O tema acesso à justiça sempre me seduziu. Ao longo de anos tenho nutrido a idéia de escrever sobre ele. Os legisladores e os aplicadores do Direito, especialmente entre nós, infelizmente, não têm dado a devida importância ao direito de acesso à justiça pelo cidadão e nem tampouco se aperceberam da importância que o acesso à justiça tem para a consolidação das instituições democráticas. As Constituições Brasileiras, de uma forma geral, sempre fizeram inserir em seus preceitos, o princípio da inafastabilidade prometendo assistência judiciária e jurídica, inclusive gratuita, aos pobres.1 * O autor é professor de Direito Processual do Trabalho na UNIGRAN e Mestrando em Direito pela UnB/UNIGRAN; 1 A atual Constituição no inciso XXXV art. 5o assegura o livre acesso à jurisdição. Todavia, recentemente através da Lei 9.958/2000, o Estado impôs ao trabalhador brasileiro severa restrição a essa garantia quando exigiu como condição de acesso ao Judiciário do Trabalho, a comprovação da prévia tentativa de conciliação perante a Comissão de Conciliação Prévia onde tiver sido criado e ao mesmo tempo dotou de eficácia liberatória de todos os direitos oriundos do contrato de trabalho, ainda que não negociados - salvo se expressamente ressalvados - o termo de conciliação firmado naquelas Comissões, o que a meu sentir demonstra um certo descaso com a garantia constitucional do livre acesso à jurisdição. Vale registrar, ainda, por oportuno, que a recente EC 28, com manifesta afronta ao princípio positivado no § 4o, inciso IV, do art. 60, da Suprema Carta, alterou de forma absolutamente ilegítima a garantia outorgada pelo constituinte originário ao trabalhador rural ao reduzir para cinco anos no curso do contrato, o prazo de prescrição do direito de ação para reivindicação em Juízo a reparação pecuniária do crédito decorrente da relação trabalho rural, o que na prática implica em obrigatória renúncia ao crédito de natureza alimentar pelo trabalhador rural, determinada pelo constituinte derivado, o que a evidência viola direito fundamental de caráter social, impedindo o acesso à justiça, pois a ninguém de sã consciência é dado afirmar que o trabalhador, especialmente o rural, esteja livre no curso do contrato para postular seus direitos em Juízo, máxime quando sequer deles tem conhecimento, menos ainda em uma conjuntura de desemprego como que vivencia a classe obreira. O dia-a-dia de quem atua na Justiça do Trabalho mostra esta triste realidade que infelizmente o legislador revelou desconhecer ao aprovar sem maiores cautelas a Emenda Constitucional 28. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 29 Sem embargo, ao mesmo tempo em que o constituinte promete não suprimir da apreciação judicial lesão ou ameaça a direito, acenando com a garantia da assistência jurídica gratuita aos necessitados, na prática o Estado sistematicamente tem editado normas que criam exigências completamente desarrazoadas como condição de acesso à justiça, inclusive ao Judiciário e que terminam por dificultar, e até mesmo impedir o livre acesso à jurisdição. Além dessa inaceitável contradição não têm sido proporcionadas aos órgãos encarregados de prestar a jurisdição as indispensáveis condições para que a prometida e integral assistência jurídica possa ser concretizada.2 Esta situação termina por criar na sociedade um estado de permanente tensão e de litigiosidade, especialmente nas camadas menos favorecidas, gerando mais violência e a chamada “justiça de mão própria” que coloca em risco não apenas a segurança do cidadão, mas também a democracia permitindo maior exclusão social e um incontido descrédito nas instituições, especialmente no Poder Judiciário que sejamos sinceros e humildes em reconhecer, não vem conseguindo cumprir o seu verdadeiro papel, angariando contra si severas críticas. Embora nem sempre verdadeiras e muitas vezes imerecidas, as críticas endereçadas aos órgãos do Poder Judiciário quase sempre são fruto da morosidade na prestação jurisdicional, que na realidade decorre de uma injustificável desatualização da legislação material; de procedimentos completamente ultrapassados e formalidades que hoje não mais se justificam, tudo isso sem contar a falta de condições financeiras das classes menos favorecidas para custear as despesas de um processo que pode arrastar-se por décadas, beneficiando aquele que não tem razão. Agregando-se a tudo isso há ainda uma certa falta de sensibilidade social e às vezes até mesmo sentimento de justiça de alguns dos aplicadores do direito, muitas vezes autômatos aplicadores da lei, sem maiores compromissos com os anseios da sociedade. Tudo isso, a meu sentir leva, na prática, a uma negação da aplicação No inciso LXXIV, do art. 5o da Suprema Carta, o constituinte de 88 prometeu assistência jurídica integral aos pobres. Entretanto, e em que pese haver sido editada a Lei Complementar 80, de 12.01.94, não se criaram até o momento, condições materiais para que as Defensorias Públicas possam prestar aos necessitados a devida assistência, que a meu ver não está limitada à assistência judiciária. 2 30 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. do princípio do livre acesso à justiça, pois não se pode dizer que este seja concretizado com o simples movimentar a jurisdição, se no campo da realidade a decisão, quando proferida após vários anos de desgastes para as partes e despesas para o contribuinte, não consegue fazer justiça a quem realmente precisa. Penso com o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Menelick de Carvalho Netto, que: “no domínio dos discursos de aplicação normativa, faz-se justiça não somente na medida em que o julgador seja capaz de tomar uma decisão consistente com o direito vigente, mas para isso ele tem que ser igualmente capaz de se colocar no lugar de da um desses envolvidos, de buscar ver a questão de todos os ângulos possíveis, e, assim, proceder, racional e fundamentadamente, à escolha da única norma plenamente adequada a complexidade e à unicidade da situação de aplicação que se apresenta. Com essa abertura para a complexidade de toda a situação de aplicação, o aplicador deve exigir então que o ordenamento jurídico se apresente não por meio de uma única regra integrante de um todo passivo, harmônico e predeterminado que já teria de antemão regulado de modo absoluto a aplicação de suas regras, mas em sua integralidade, como um mar revolto de normas em permanente tensão concorrendo entre para gerar situações. A imparcialidade aqui (anota o autor fundado em Günther) se traduz na capacidade de o juiz levar em conta a reconstrução fática de todos os afetados pelo provimento e, desse modo, fazer que o ordenamento como um todo, como pluralidade de normas que concorrem entre si para reger situações, se faça presente buscando então qual a norma que mais se adequa à situação; qual a norma que, em face das peculiaridades específicas daquele caso visto como um hard case, promove a justiça para as partes, sem deixar resíduos de injustiças decorrentes da cegueira à situação de aplicação”.3 Não tem o Estado investido na qualificação e atualização dos magistrados, sempre às voltas com um volume de trabalho desproporcional 3 Revista “Notícia do Direito Brasileiro”, UNB, n. 6, 1998, p. 246-247. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 31 à sua capacidade humana. E essa, é induvidosamente, mais uma das causas do atraso na prestação jurisdicional. Diante deste triste quadro, penso que o problema do acesso à justiça não pode ser encarado apenas como mero acesso à jurisdição. Ele envolve outras questões ligadas à cidadania que precisam ser enfrentadas com coragem e determinação por todos os envolvidos no problema. No meu modo de ver o acesso à justiça não se identifica com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo. Para que haja um verdadeiro acesso à justiça torna-se indispensável que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e defender-se de forma adequada, inclusive com o patrocínio do Estado (essa é uma garantia constitucional). Para a concretização prática do direito de acesso à justiça é necessário primeiro se estar consciente dos reais objetivos de todo o sistema (jurídico, sociais, políticos) e ao mesmo tempo tentar superar as dificuldades que a experiência tem demonstrado estarem constantemente a impedir que o acesso prometido pelo constituinte não passe de uma vazia promessa. Como operador do Direito, na condição de magistrado tenho encontrado no meu dia-a-dia profissional, sérias e quase intransponíveis barreiras para fazer valer, na prática, a garantia do acesso à justiça, que, repita-se não pode ser confundido com a garantia do acesso à jurisdição, porque mais abrangente. Portanto, não se resume à simples faculdade de movimentar a máquina jurisdicional do Estado. Penso que devamos discutir com coragem e sem preconceitos as questões e as dificuldades do acesso à justiça; os mecanismos de solução dos conflitos, passando pela valiosa experiência dos Juizados Especiais; pelas formas extrajudiciais, como a arbitragem, as comissões prévias de conciliação; a negociação direta entre trabalhador e empregador ou por intermédio de seus sindicatos no âmbito do Direito do Trabalho, para a final respondermos a uma questão crucial: qual é o modelo de justiça que pretendemos para o Brasil e até onde ele atende aos verdadeiros anseios da sociedade? Só assim, a implementação prática da garantia do acesso à justiça, especialmente com relação às classes menos favorecidas, para quem a garantia constitucional ainda não passou de mera e vazia promessa 32 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. do legislador, poderá se tornar uma realidade. 1. OS MOVIMENTOS DE ACESSO À JUSTIÇA 1. 1. Origens - período antigo A idéia e o significado do termo acesso à justiça têm variado ao longo do tempo, em função de diferentes elementos de ordem política, religiosa, sociológica, filosófica, etc. Não tenho a pretensão de estudar tais elementos. Até porque não é este o objetivo deste trabalho e com certeza não estou preparado para tão relevante tarefa. Entretanto, neste pequeno ensaio pretendo apresentar, de forma sintética, a evolução da idéia de justiça e da prática do acesso à ordem jurídica. Encontramos no Código de Hamurabi, dentre as primitivas normas escritas - ainda em cuneiformes - as primeiras e importantes garantias, que pelo menos sob o ponto de vista teórico, de certa forma impediam a opressão do fraco pelo forte na medida em que asseguravam uma certa proteção aos filhos órfãos e às viúvas, incentivando o homem oprimido a procurar a instância judicial - o soberano - para que resolvesse suas lides. 4 Todavia, o Direito surge no Código de Hamurabi por uma espécie de revelação divina. A justiça do soberano é emanada de uma ordem sobrenatural divina. 5 Para o estrangeiro ou para o escravo, às vezes não existe, ou era contemplada por normas especiais. A Grécia antiga, berço das primeiras discussões filosóficas acerca do direito, teve uma grande influência nas várias correntes do pensamento Podemos encontrar no texto do Código de Hamurabi a seguinte passagem: “Em minha sabedoria eu os refreio para que o forte não reprima o fraco e para que - seja feita a justiça à viúva e ao órfão. 5 Anota Matos Peixoto: “Nos primórdios da civilização o direito aparece como uma emanação de uma potência superior - a divindade. A exaltação do sentimento religioso descobria em tudo a voz dos deuses; as regras jurídicas eram mandamentos religiosos”. (MATOS PEIXTO, José Carlos. “Curso de direito romano”, 3a edição, Rio de Janeiro, Haddad Ed., 1955, p. 227). 4 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 33 no curso da história. Com relação ao acesso à justiça, foi naquela época que teve início uma forma de expressão que hoje é conhecida sob a denominação de isonomia, cuja concepção, agregada a correntes filosóficas - como a jusnaturalista - viria exercer no futuro, grande influência, especialmente no que toca a questão dos direitos humanos. Antes mesmo do aparecimento do chamado pensamento socrático, quando a filosofia grega galga o seu apogeu, a Escola Pitagórica de certa forma já simbolizava a justiça com a figura geométrica do quadrado, em razão da igualdade absoluta de seus lados e pela utilização dos algarismos. Dentre os três mais importantes filósofos desta época que ficou conhecida como a época de ouro da filosofia antiga, sem dúvida Aristóteles foi o grande formulador do que atualmente se denomina teoria da justiça. Certamente sofrendo as influências de Pitágoras, especialmente no que se refere aos pesos, às medidas de igualdade e proporcionalidade, Aristóteles situa a questão da proporcionalidade não do ponto de vista estritamente aritmético ou matemático, mas da igualdade de razões. Foi ele quem falou pela vez primeira na possibilidade do julgador adaptar a lei à situação concreta posta à sua apreciação. A famosa régua de Lesbos, que, sendo de chumbo, tinha flexibilidade suficiente para se adaptar à forma de pedra, foi assim, na época, a imagem precisa de equidade.6 Considerando-se o modelo democrático que era adotado por algumas cidades-estados gregas, o poder-dever de julgar não cabia a cidadãos especializados tecnicamente, vale dizer: juizes especializados como conhecemos atualmente, mas à totalidade dos cidadãos, que se reuniam em uma espécie de assembléia, cabendo assim, aos magistrados, basicamente, a execução destas assembléias, isto é, uma função meramente auxiliar. Existiam duas espécies de jurisdição em Atenas. Para os casos de Aristóteles na obra Ética a Nicômaco, faz considerações a respeito da eqüidade com os seguintes termos: “O que faz surgir o problema é que o eqüitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal (...) Com efeito, quando uma coisa é indefinida, a regra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar as molduras lésbicas: a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos”.(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, São Paulo, Abril Cultural, 1973, Liv. V, p. 336-337 - coleção Os Pensadores). 6 34 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. crimes públicos, o julgamento era feito por grandes tribunais de dezenas ou centenas de membros. A Assembléia de todos os cidadãos, repartidos em distritos territoriais (demos) elegia o grande conselho de supervisão (Aerópago). Ao lado do Aerópago, havia um Conselho (boulé) de 400 que exercia o governo. O Aerópago julgava os acusados de subverter a constituição. E quando o julgamento se fazia para os casos menos importantes por um magistrado ou juiz singular poderia haver apelo para a assembléia judicial propriamente (Heliastas) que funcionava em grupos (dicastéria).7 A função judicante, no apogeu da democracia, é igualmente exercida pelos cidadãos. Pode-se citar como exemplo mais eloqüente o julgamento de Sócrates. Nessa época, talvez pelo predomínio do ideal de democracia, qualquer cidadão poderia acionar a justiça. Havia, assim, um amplo e praticamente irrestrito acesso do cidadão à justiça.8 É claro que mesmo neste período tinham restrições indiretas. Pode ser citada, à guisa de exemplo, a imposição de multas por acusações improcedentes, bem como a de não está presente o interesse na demanda. Informa Geraldo de Ulhoa Cintra que “o poder de julgar é o principal poder do cidadão. Os magistrados não possuem praticamente nenhum poder de julgamento, no século IV, somente a hegemonia”. Os juízes - salienta autor - “não são considerados magistrados, não há para eles nem docimasia, nem prestação de contas. Mas a justiça é 7 “A confusão de leis, a ausência de juristas, a facciosidade levava a usar os tribunais freqüentemente com fins políticos. Nos tribunais era preciso provar o direito (a lei, o costume) além dos fatos. A Constituição de Sólon havia sido inscrita no Pórtico dos Arcontes, e todos os eleitos para alguma magistratura deveriam jurar cumpri-la. Mas havia muitas outras resoluções, leis, deliberações que valiam como lei. Evidentemente que havia escritos, mas uma burocracia propriamente dita, um sistema de cartórios não equivalia àquilo que hoje espararíamos. Também não havia a execução judicial; o queixoso recebia o julgamento e se encarregava de executá-lo, em princípio, ou passa a uma fase de ação penal. Nada de polícia judiciária como hoje conhecemos”. ( José Reinaldo de Lima Lopes “O Direito Na História - Lições Introdutórias”, São Paulo, Max Limonad, 2000, p. 37-38). 8 Aqui, todavia, é preciso frisar que inobstante o acesso à justiça na democracia grega fosse praticamente amplo, havia restrições, pois somente uma pequena quantidade de pessoas consideradas cidadãs desfrutava. 9 História da organização judiciária e do processo civil. Vol. I - Da Antiguidade à época moderna, Rio de Janeiro/São Paulo, Ed. Jurídica Universitária, 1970. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 35 posta em funcionamento pela ação da decisão de um cidadão. Todo procedimento é acusatório, mesmo para os processos criminais públicos. Mas todo cidadão pode tomar a iniciativa de um processo público.”9. Nos tribunais (como no júri), anota José Reinaldo de Lima Lopes, a resposta era sempre sim ou não, culpado ou inocente. Por volta de 403 a. C. institui-se a obrigatoriedade do recurso aos árbitros em matéria “civil” e “comercial” sempre que estivessem em jogo causas de mais de dez dracmas. Existiam árbitros públicos e privados. Caso não fosse aceita a decisão, havia a possibilidade de apelar para os heliastas. Perante os árbitros, era admitido o compromisso. Os juizes, vistos como leigos e membros de uma assembléia, podiam mesmo testemunhar sobre os próprios fatos, quando deles tivessem conhecimento. A decisão não precisava basear-se nas provas trazidas pelas partes: como sabiam dos fatos ocorridos, julgavam segundo sua consciência. As provas podiam ser escritas ou orais, inclusive a testemunhal. Os depoimentos dos escravos eram precedidos de tortura porque se acreditava que sem este “requinte” naturalmente mentiriam, para proteger ou para vingar-se de seu senhor. Aristóteles chegou mesmo a classificar as provas, ao que tudo indica baseado neste sistema, em naturais e artificiais. As primeiras eram provas da existência da lei, testemunhas, contratos, juramentos, ou seja, as provas naturais eram aquelas baseadas em evidências empíricas. As artificiais são aquelas fornecidas pela nossa invenção e descoberta. Originam-se de nosso raciocínio, tais como indícios e presunções pelos quais passamos daquilo que sabemos ou provavelmente sabemos para aquilo que não sabemos. “A eloqüência fornece estas provas”. Vale lembrar, todavia, que antecedendo ao pensamento aristotélico, Sócrates já acenava com uma espécie de doutrina positivista ao pregar a estrita obediência à lei, porque para ele a lei se confundia com a noção de justiça. Aristóteles distinguia o justo segundo a lei do eqüitativo, considerando este último valor superior a aquele, porquanto poderia passar a corrigir a própria lei escrita, ou seja, via a justiça como uma ética da 36 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. virtude. Kelsen critica com veemência o pensamento aristotélico reputando infrutífera a tentativa de definir o conceito de justiça através do método racional. 10 Foi a Grécia - Atenas - o berço da assistência judiciária aos necessitados. Naquele tempo, anualmente, eram designados dez advogados para assistir juridicamente as pessoas consideradas carentes. 11 Influenciada pelo pensamento grego, a cultura romana foi levada à Afirma Kelsen: “Um outro exemplo, bastante significativo, da tentativa infrutífera de definir o conceito de justiça absoluta através do método racional, científico ou, pelo menos, aproximadamente científico, é a ética de Aristóteles. Trata-se de uma ética da virtude, ou seja, ela visa a um sistema de virtudes, entre as quais a justiça é a verdade máxima, a virtude plena. Aristóteles afirma ter encontrado um método científico, isto é, matemático-geométrico, para determinar as virtudes, ou seja, para responder à questão do que seria eticamente bom. O filósofo da moral - assim afirma Aristóteles - poderia encontrar a respectiva virtude, cuja essência ele procura determinar, de modo idêntico ou pelo menos, bastante semelhante ao modo como um geômetro encontra o ponto eqüidistante dos dois extremos de uma linha dividindo-a em duas partes iguais. Pois a virtude é o meio-termo entre dois extremos, ou seja, dois vícios, um por escassez, outro por excesso. Assim, a virtude da coragem, por exemplo, é o meio-termo entre o vício da covardia (escacessez de valentia) e o vício da temeridade (excesso de valentia). Esse é o famoso ensinamento da mesótes. Para julgar esse ensinamento, é preciso ter em mente que um geômetra pode dividir uma linha entre duas partes iguais, partindo da premissa de que os dois extremos dela já tenham sido fixados anteriormente. Uma vez definidos, os dois extremos, define-se igualmente o ponto central, quer dizer, ele é predeterminado. Se soubermos o que são vícios, também já saberemos o que são virtudes, pois a virtude é o oposto de vício. Se a tendência à mentira é um vício, então o apego à verdade é uma virtude. A existência dos vícios, porém, Aristóteles a pressupõe como indiscutível; e por vícios entende aqueles que moral tradicional de sua época estigmatizava como tais. Isso significa, contudo, que a ética da doutrina da mesótes só aparentemente resolve a questão - o que é mau e, portanto, um vício, e, conseqüentemente, o que bom e, portanto, uma virtude? A questão - o que é bom? - é respondida com a questão - o que é mau? -; e a tarefa de responder a esta última questão, a ética aristotélica a confia à moral positiva a ao Direito positivo, à ordem estabelecida. É a autoridade dessa ordem social - e não a fórmula mesótes - que determina o que é demais e o que é de menos, que fixa os dois extremos, isto é, os dois vícios - e com isso também a virtude, que se encontra a meio caminho entre ambos. Ao pressupor como válida uma ordem social estabelecida, essa ética a justifica. É essa a real função da formula tautológica da mesótes, para a qual bom é aquilo que está de acordo com a ordem social vigente. É uma função inteiramente conservadora: manutenção da ordem vigente.”(O QUE É JUSTIÇA? Tradução Luiz Carlos Borges, Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 20-21). 11 PEÑA DE MORAES, Humberto. Assistência judiciária pública e os mecanismos de acesso à justiça no estado democrático. Revista de direito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, v. 2, n. 70-89, p. 72. 10 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 37 construção do que se pode chamar do primeiro sistema jurídico, tendo influenciado praticamente a todos os sistemas jurídicos futuros, especialmente aquele hoje conhecido como romano-germânico. Inúmeros institutos jurídicos, especialmente no que concerne ao direito e à justiça, como o patrocínio em juízo, a necessidade da assistência de um advogado para que houvesse um equilíbrio entre as partes, e tantos outros, que terminaram por levar Constantino a ordenar a elaboração de lei que viesse assegurar o patrocínio de forma gratuita aos necessitados e que mais tarde, terminou por ser incorporada ao Código de Justiniano. Nota-se, assim, no Direito Romano, uma clara evolução da jurisdição.12 Em uma fase primeira, vigorava a auto tutela que era complementada pela possibilidade da transação, que pode ser caracterizada como forma privada de justiça. Resultado da insatisfatória solução surgiu um novo modelo de resolução dos conflitos através dos árbitros, quase sempre escolhidos pelas próprias partes em razão de suas convicções religiosas, aos quais se incumbia a solução dos conflitos porque além de imparciais, traduziam a vontade divina. Na medida em que tanto a religião como o Estado desenvolvemse, este último passa a assumir a missão de resolver os conflitos intersubjetivos de interesses. Este período desenvolve-se em fases: na primeira, o cidadão comparecia ante o magistrado - o pretor - mas já aqui diferente do sacerdote A tradicional divisão histórica do Direito Romano abrange o direito arcaico - desde a fundação presumida da cidade de Roma em 753 a.C. até por volta do segundo século antes de Cristo, vale dizer: a adoção do processo formular e a atividade dos pretores. A seguir vem o período Clássico, abrangendo a República tardia e indo até o Principado, antes da anarquia militar, ou seja, até pouco depois da dinastia dos Severos. Finalmente, o período Tardio (Pós-clássico), já de ocaso da jurisprudência, no qual se tentará sobretudo organizar e salvar o material já produzido (século III d.C. ao fim do Império). Para José Reinaldo de Lima Lopes, a esta periodização pode-se fazer paralelamente a divisão do perfil dominante no processo civil: ao período arcaico corresponde o processo segundo as ações da lei (as legis actiones), em que o centro do saber jurídico está figura dos pontífices; ao período clássico corresponderá o processo formular (per formulas), introduzido pela Lex Aebutia (149-126 a.C.) e confirmado pela Lex Iulia (17 a.C.), em que a produção do direito, como cultura e como regra, está na mão dos pretores, e finalmente, o período tardio é denominado pela cognitio extra ordinem em que o imperador e seus juristas se destacam como atores de nova ordem (O direito na História, p. 43-44). 12 38 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. - para aceitar a decisão. Nesta hipótese, era elaborada pelo pretor uma fórmula ou regra a ser aplicada e, indicado o árbitro que ficava encarregado de resolver a questão. Com o tempo o pretor adquire novos poderes passando não apenas a elaborar a regra, mas, também, assume a função de julgar, de aplicador do direito, indo além com poder de submeter o cidadão ao seu poder - o poder estatal. Surge aqui, podemos assim dizer, a justiça pública, a jurisdição. Pode-se, pois, afirmar que enquanto os gregos estavam mais preocupados em discutir idéias de caráter filosófico, os romanos se debruçaram na elaboração de seu direito positivo. Anota José Reinaldo de Lima Lopes, que as fontes normativas no direito romano não foram sempre as mesmas. Quando um jurista da idade clássica, como Papiniano, as elenca é necessário reconhecer que o desenvolvimento e a importância de cada uma foi diferente. Para o citado autor, as leis (lex, leges), ao que tudo indica derivada de lego (ler), eram normas votadas nas assembléias (comitia centuriata, comitia curiata). Eram normas gerais propostas pelos magistrados superiores (rogatio). Quando votadas pelo concilium plebis (conselho dos plebeus) chamavam-se plebiscita (a partir de 287 a.C. a Lex Hortênsia deu obrigatoriedade geral aos plebiscitos). Havia, ainda, o senatus consultus que inicialmente tratava-se apenas de uma opinião do senado a respeito de uma matéria determinada. Representava moralmente a autoridade dos patriarcas (auctoritas patrium), e não tinha o mesmo caráter da lei. Foi com a decadência das formas republicanas de deliberação - a partir do principado - que o senatusconsulto converteu-se em uma fonte normativa, havendo um progressivo centralismo e das assembléias o poder passa ao senado. No final da República e início do principado o senatus-consulto havia sido interpretativo e sugestivo para os pretores (sugestão de exercício de seu poder de criação de editos). É sob Adrinao (117-138 d. C.) que a função normativa do Senado vem a ser reconhecida. Os imperadores editavam atos chamados constituições e eram de diversas categorias, dependendo de seu propósito. São edicta (editos) quando contêm disposições de ordem geral para o império e decreta, os julgamentos, decisões ou sentenças, que se constituíam em precedentes a Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 39 serem observados nos casos semelhantes. Havia, também, a de outra ordem - os rescripta - que se tratava de resposta a consultas feitas por magistrados em caso difíceis ou duvidosos e, finalmente, a mandata - ordens administrativas, fiscais, dirigidas a governadores de províncias, funcionários. Assim, por meio destas fontes, o imperador criava direito novo e sua influência foi tão acentuada, que no século II Ulpiano chegou afirmar “o que agrada ao príncipe tem força de lei”. Os magistrados também tinham competência para expedir editos e os pretores os ampliavam para proteção dos direitos novos. Porém, ao contrário dos editos dos imperadores, que poderiam abranger qualquer matéria, os editos dos magistrados republicanos estavam limitados a suas respectivas áreas de atuação. Os pretores encarregados da ordem dos juízos expediam editos lidando com ações, exceções, remédios jurídicos em geral. Deve-se ainda citar a opinião dos prudentes, que eram usadas para dar um precedente em casos concretos. Tudo isso não quer dizer que no período romano não tenham existido grandes pensadores. Os exemplos de Cícero, Sêneca e tantos outros, demonstra que também em Roma havia preocupação com o desenvolvimento das reflexões, especialmente aquelas ligadas ao direito natural.13 Do que acaba de ser exposto, pode-se afirmar que as discussões sobre justiça, moral e até mesmo a ética, sempre conduziram a uma preocupação mais concreta com a prática judiciária, com a assistência dos necessitados por um advogado. Buscava-se, sempre e ao final, a Diz Norberto Bobio, que Aristóteles usava dois critérios pelos quais distinguia o direito positivo do direito natural: a) o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantchoû) a mesma eficácia (o filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer parte), enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em que é posto; 14 No direito romano para que o cidadão pudesse ter personalidade completa deveria satisfazer a três condições básicas: ser livre, cidadão romano e chefe de família; a liberdade, a cidadania e a família eram assim, os três estados ou requisitos da personalidade.(MATOS PEIXOTO, José Carlos, Curso de Direito Romano, 3a edição, Rio de Janeiro, Haddad Ed. 1955, p. 227). 13 40 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. igualdade material, o que à evidência não afastava as exigências ou condições especiais para poder acessar ao Tribunal.14 1.2. Período medieval A idéia de acesso à justiça na concepção acima exposta prossegue sua evolução durante todo o período medieval que vai desde a Idade Média bizantina e européia - Séc. IV e V - até mais ou menos o advento do Renascimento - Séc. XV e XVI. Neste período, em que predominou o Cristianismo, a concepção religiosa de direito faz com que o homem seja medido pela sua fé, ou seja, colocava-se a justiça como uma virtude. Podem ser citados dentre outros filósofos deste período Santo Agostinho, Santo Isidoro de Servilha e Santo Tomás de Aquino. Este último que foi marcadamente influenciado por Aristóteles, é considerado o pensador mais importante da Europa unificada pelo Cristianismo. Para ele era importante haver uma separação entre os campos da razão e da filosofia, quanto às realidades da experiência ou ao campo das demonstrações. Fazia, assim, uma nítida distinção entre as leis divinas, que as considerava ternas, e a lei humana. Filósofo fiel à tradição medieval dos costumes, afirmava que mesmo se no decorrer do tempo viessem modificações na condição dos homens e ainda que a noção de bem comum fosse outra, a lei não poderia ser alterada, porque ela certamente seria enfraquecida e diminuindo enfraquece o poder do costume, a força coercitiva da norma. Como se pode perceber, nesta época era marcante a presença e a influência da religião e do pensamento religioso na filosofia do direito. Sendo o direito um verdadeiro instrumento de organização social, não pode descurar da influência da religião, influência esta que era tão marcante que chegou mesmo a criar uma esfera jurídica própria - direito canônico - conduzindo, pois, a uma ordem jurídica pluralista. Ante tal quadro, não é difícil concluir que o cidadão tinha uma carência de acesso a diversas ordens para poder obter a justiça. A jurisdição tinha, pois, uma grande ênfase na figura do prestador, da autoridade, na medida em que o poder era distribuído e o principal atributo da autoridade era exatamente a distribuição da justiça. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 41 Existiam, portanto, várias jurisdições: eclesial, real, territorial, senhorial, feudal, e daí derivavam os demais atributos da autoridade. Para os historiadores, havendo uma distribuição de justiça ampla, estaria assegurado o livre acesso ao julgamento. 15 Anota Ulhoa Cintra que na realidade as discussões sobre as teorias da justiça e do justo não alcançaram a necessária correspondência na prática judiciária institucional, porque “o direito é essencialmente prático e pragmático. Não há quase teorias jurídicas, uma vez que o direito é um fenômeno espontâneo da sociedade, exprimindo-se através de costumes. O Direito se constrói à revelia de toda vontade doutrinal e de orientações sistêmicas. O direito erudito e as construções requintadas e artificiosas 15 Anota R. C. van Caenegem que os tribunais da alta Idade Média “não guardam qualquer semelhança com os do Império Romano tardio. A hierarquia dos tribunais, com a possibilidade de apelar para Roma, desaparecera e fora substituída por um sistema de jurisdições locais, o mallus do condado (pagus) no reino dos francos. Não havia qualquer centralização nem qualquer processo de apelação. Os juízes profissionais do fim do império deram lugar a juízes ocasionais, sem qualquer formação jurídica ou qualificação específica, como os rachimburgi merovíngios. Durante o reinado de Carlos Magno, no entanto, criou-se o cargo de juízes permanentes (scabini, escabinos), que, embora não fossem magistrados profissionais, pelo menos proporcionavam maior estabilidade à administração da justiça. A monarquia franca conseguiu realizar pelo menos parcialmente sua política de centralização e uniformização, ao confiar cargos importantes a um funcionário forense, o conde do palácio (comes palatii), que por sua vez estava submetido ao rei como juiz supremo, e ao ter os missi dominici supervisionando os trabalhos de jurisdições locais em nome do rei. O desenvolvimento do direito feudal produziu um sistema paralelo de tribunais feudais, justapostos à antiga organização de tribunais de diversas áreas: pagi (condados) e distritos menores. Os vassalos de um senhor reuniam-se nos tribunais feudais sob sua presidência e resolviam disputas sobre seus feudos (por exemplo, questões de sucessão) ou entre eles próprios (por exemplo, disputas entre vassalos ou entre senhores e vassalo). Com o sistema econômico senhorial surgiram também os tribunais senhoriais. Para completar o quadro, os tribunais eclesiásticos e, num período posterior, os tribunais municipais também devem ser mencionados. Essa variedade e fragmentação na organização da justiça (se é que podemos chamá-la de organização) durou até o angien régime. O processo adotado pelas cortes e tribunais do início da Idade Média era naturalmente muito diferente do processo extra ordinem do fim do império. Os casos agora eram expostos publicamente, ao ar livre, perto de um local sagrado, talvez uma montanha, árvore ou fonte. O provo participava ativamente da administração da justiça e expressava sua concordância com o veredito proposto; o processo era oral, com um uso muito limitado de documentos escritos; não havia atas nem petições escritas, não se guardavam registros; a causa consistia essencialmente numa disputa entre as partes, na qual o papel desempenhado pelas autoridades estava limitado ao controle formal e à simples ratificação da parte vitoriosa. A mais impressionante expressão dessa concepção de processo é sem dúvida alguma o duelo judicial, que não passava de um combate institucionalizado, criado para resolver a disputa”. (Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, Tradução Carlos Eduardo Lima Machado, São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 35-36). 42 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. só se manifestam muito tarde e não assimilarão jamais o direito habitual. Os canonistas conseguem elaborar bem certas teorias jurídicas, mas dificilmente penetram na vida concreta do direito”. De fato, as bem elaboradas discussões relativas à justiça e do justo não alcançaram a necessária correspondência prática a ponto de que a partir de certo momento as explicações medievais passaram a não mais apresentar qualquer resultado satisfatório, voltando-se assim, a um reestudo ou uma espécie de revisão do pensamento greco-romano e com isso advindo um novo movimento que ficou conhecido como Ranascimento, ou seja, uma volta ao passado, um renascer. 1.3. Período Moderno A Escola Clássica do Direito Natural, passa a reconhecer que a natureza humana seria a fonte do direito natural. Tal visão humana e ao mesmo tempo racionalista do direito, teve em Grotius o seu grande mentor, tendo atingido o seu apogeu com Rousseau no final do século XVIII. Começa-se a defender a idéia de que embora o poder real tivesse uma origem divina, também se buscava uma espécie de limitação ao poder na medida em que era difundido o entendimento de que o poder teria como finalidade buscar a felicidade do povo. Tal forma de pensar vai aos poucos sendo pregada e discutida nas academias e nas próprias cortes, a ponto de a partir do século XVII ter passado a exercer forte influência na forma de pensar e agir. É nesta época de busca de determinados direitos em face do poder exercido pela realeza que aparece o chamado conflito entre a burguesia e os privilégios da aristocracia, espacialmente contra os abusivos tributos. Foi também nesse período que a Inglaterra veio a consolidar o seu processo revolucionário incorporando de forma definitiva e precursora algumas idéias básicas da Escola Clássica do Direito Natural, especialmente quanto à limitação do poder real. Com a difusão dos ideais da revolução, surgiram os movimentos de libertação das colônias norte-americanas e posteriormente da própria Revolução Francesa, movimentos estes fortemente influenciados pelas idéias de Rousseau e Montesquieu. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 43 A partir de tais movimentos revolucionários, é evidente que o mundo mudou. A Revolução Francesa com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, traz em seu bojo a teoria da separação dos poderes e o princípio da legalidade, este com uma forte visão absolutista e acima de tudo individualista, máxime no que se refere à proteção da propriedade e autonomia privadas. Há, assim, uma tendência para uma igualdade que diria formal com a exclusão do Estado nos assuntos que digam respeito à sociedade. Todavia, há outra face desses movimentos que é a estabilização dos estados nacionais. Cria-se, pois, um conceito de Estado Nacional com uma identidade advinda da Constituição - documento que se afirmava, expressa o sentimento e a homogeneidade de um grupo, que passa, pelo menos em tese, a prescindir do poder de coerção de uma pessoa para constituir-se. Trata-se, pois, de uma fase liberal-individualista, fruto de revoluções burguesas. Nesta fase, é produzida uma forte reação contra o Poder Judiciário. Isto porque na fase anterior, os juízes se constituíam em uma espécie de braço forte e de opressão do Estado, ao passo que com as revoluções, a reação é em sentido contrário, ou seja, retirar destes juízes o poder, reduzindo sua função a simples declaração do conteúdo da lei. Tal desprezo para com o Judiciário evidencia que o Estado liberal não tinha qualquer preocupação com a idéia e nem com a prática de acesso à justiça. Surge, pois, uma situação inusitada: ao mesmo tempo em que a Constituição do Estado assegura, ainda que formalmente, a igualdade dentre as pessoas, o que também em tese deveria assegurar um igual acesso à justiça, a realidade era bem diversa. É claro que a partir do momento em que demonstrava um certo desprezo para com o Poder Judiciário, por conseqüência não havia preocupação com a questão do acesso à justiça, ou seja, se não havia importância a ser emprestada à instância, porque então se preocupar com o acesso à justiça? Na época tinham em completa disputa duas correntes de pensamento: a do positivismo, especialmente aquela de orientação legista 44 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. onde predominava o entendimento no sentido de que o aplicador da lei deve utilizá-la tal como escrita, sendo-lhe defeso fazer uso de qualquer indagação de ordem sociológica, ética ou ideológica. O juiz não poderia assim emitir juízo de valor porque vinculado ao texto escrito. Em sentido contrário à corrente do positivismo, encontrava-se o jusnaturalismo, que retira a validade da lei contraria princípio de direito natural. Esta última face do Estado Liberal que predomina no século XIX e nos primeiros anos do século XX foi um período de grandes desigualdades sócio-econômicas, gerando concentração de riqueza por uma classe - a burguesia industrial, o que veio determinar o surgimento das chamadas questões sociais. 16 Esboça-se uma espécie de reação no plano filosófico e político, liderada dentre outros pela Igreja através do que ficou conhecido como a doutrina social da Igreja. 1.4. Período Contemporâneo Mais ou menos a partir da metade do século XIX e já no século XX, especialmente pela influência da filosofia marxista, de importância fundamental para uma série de conquistas sociais que se seguiram, ao que tudo indica pelas deficiências do sistema capitalista de concentração de riqueza, da exploração da classe trabalhadora e um indisfarçável empobrecimento da maioria do povo, segue-se uma nova disputa - da burguesia versus proletariado, vale dizer: entre a classe abastada e a obreira. Verifica-se nesta época, uma marcante influência do pensamento social, especialmente o pensamento social cristão, marcadamente exposto pela Encíclica Rerun Novarum, dada á público pelo papa Leão XIII, em “A carência de legitimidade do velho Estado das democracias ocidentais decretou o fim de uma teoria do Direito Constitucional precipuamente assentada numa constatação formal da vigência do princípio da separação de poderes. O antigo Estado de Direito também se preocupava mais com as liberdades individuais e a remoção da presença da presença do Estado do que com a diminuição das desigualdades sociais. Nasceu em contrapartida o Estado Social. Mas este logo fez prepondera segundo crítica em grande parte procedente - o ângulo exclusivo das disparidades econômica, cuja solução se buscava pela insuficiente via das cláusulas constitucionais programáticas, entendidas então como normas desprovidas de eficácia ou, quando muito, de eficácia mediata.”(Paulo Bonavides, “Curso de Direito Constitucional”, 9a edição, São Paulo, Malheiros, p. 3). 16 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 45 1891, onde se constata uma notória preocupação da Igreja com as desigualdades sociais, ao tempo em propunha soluções pacíficas para o cada vez evidente conflito social entre o capital e o trabalho - operários e patrões - e que vem se complementar com a edição de novos documentos papais, como Quadragésimo ano, em 1931 e Populorium progressio do papa Paulo VI, em 1967. Especialmente no campo do trabalho, as reivindicações do movimento marxista serviram de marco histórico em vários países, passando, necessariamente, pela discussão do acesso à justiça. Pode-se, assim, afirmar que no campo do Direito do Trabalho encontramos o ponto inicial do verdadeiro acesso à justiça, especialmente no que se refere aos direitos individuais. Isso se dá pela facilidade do acesso em decorrência da prevalência da mediação e da conciliação nos conflitos trabalhistas e pela marcante índole protetiva do Direito Laboral, especialmente quanto ao ônus da prova, do trabalhador, e mais que isso, de uma visão da defesa e da coletivização dos conflitos de ordem trabalhista. Há, pois, uma inevitável necessidade de uma maior e efetiva intervenção do Estado, para assegurar, especialmente no campo social, o que o livre jogo do mercado no Estado liberal não permitia. Estamos, pois, em uma nova época, de intervenção do Estado visando assegurar a igualdade material e não apenas aquela formal do liberalismo, e com isso permitindo que os menos favorecidos tivessem acesso à escola, à cultura, à saúde, à participação, a tudo aquilo que no passado se sustentava - a felicidade. Esta nova ordem resgata a dimensão social do Estado, com maior veemência no que se refere à ordem jurídica. Assume, pois, o Estado administrador uma postura mais ativa e mais protetiva, não se acreditando mais que o modelo racionalista fosse suficiente para garantir uma igualdade, que na prática era apenas formal.17 Agora se visa uma igualdade material e são utilizados cada vez mais conceitos jurídicos chamados indeterminados, o que pressupõe uma atuação cada vez mais efetiva no controle do poder e que também é levada A Hermêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, Revista Notícia do Direito Brasileiro, n. 6, 2o Semestre de 1998, p. 247. 17 46 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. a efeito pelos juizes, que deixando de ser meros declamadores da vontade da lei, passam a utilizar-se de instrumentos técnicos e dogmáticos na interpretação e aplicação da lei, que tiveram grande importância em todos os movimentos e teorias mais modernas, como a Teoria Tridimensional (Miguel Reale); o Experiencialismo de Holmes; a Teoria Egológica de Cossio; a Teoria da Argumentação de Perelman, dentre outras. Modernamente, e apesar de uma certa e injustificada resistência de alguns tribunais tidos como conservadores, certamente ainda muito influenciados por um positivismo de cunho normativista, entende-se que o juiz na aplicação da norma ao fato concreto, deve perquerir os fins sociais que a informam, amoldando-a às exigências do bem comum.18 Esta nova visão do aplicador da lei perante o fato, induvidosamente representa uma nova face do acesso à justiça no dias atuais. Isso porque hoje já não mais se aceita a igualdade meramente formal. O movimento atual é para que a liberdade e a igualdade desprendam-se do plano teórico, puramente formal, e passem do papel para vida prática. O que importa não é mais a mera promessa de igualdade perante a lei, mas o que interesse no momento é que os direitos que têm sua gênese na liberdade e na igualdade, como a cidadania, a saúde, a educação, etc. possam, na prática, ser efetivamente concretizados pelos seus destinatários e principalmente, ser exigidos de quem tem o dever de “Sem instrumentos processuais de apoio, o Estado social se converteu em figura de retórica política. Medidas estatais excessivamente intervencionistas lhe enfraqueceram a legitimidade, fazendo-o de todo suspeito à conservação das liberdades do cidadão. 19 Boaventura de Souza Santos ao se pronunciar sobre o acesso à justiça adverte: “A democratização da administração da justiça é uma dimensão fundamental da democratização da vida social, econômica e política. Esta democratização tem duas vertentes. A primeira diz respeito à constituição interna do processo e inclui uma série de orientações tais como: o maior envolvimento e participação dos cidadãos, individualmente ou em grupos organizados, na administração da justiça; a simplificação dos actos processuais e o incentivo à conciliação das partes; o aumento dos poderes do juiz; a ampliação dos conceitos de legitimidade das partes e do interesse em agir. A segunda vertente diz respeito à democratização do acesso à justiça. É necessário criar um Serviço Nacional de Justiça, um sistema de serviços jurídico-sociais, gerido pelo Estado e pelas autarquias locais com a colaboração das organizações profissionais e sociais, que garanta a igualdade do acesso à justiça das partes das diferentes classes ou estratos sociais. Este serviço não se deve limitar a eliminar os obstáculos econômicos ao consumo da justiça por parte dos grupos sociais e culturais, esclarecendo os cidadãos sobre os seus direitos, sobretudo os de recente aquisição, através de consultas individuais e coletivas e através de acções educativas nos meios de comunicação, nos locais de trabalho, nas escolas, etc.”. (Pela Mão de Alice - O social e o político na pós-modernidade, 5a edição, Cortez Editora, Rio de Janeiro, 1999, p. 177). 18 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 47 fornecê-los. Avulta-se, pois, neste novo quadro, a importância do papel do Poder Judiciário para buscar e realização prática de tais direitos.19 Compete, pois, ao Judiciário assegurar o pleno exercício da liberdade e ao mesmo tempo, as condições materiais para seu exercício prático. 20 Vale registrar que ao mesmo tempo em que se valoriza o papel do Judiciário na solução pública dos conflitos, há uma forte tendência na adoção de mecanismos extrajudiciais de sua solução. 21 É claro que sempre existirá uma gama de questões que terá seu foro de resolução no Judiciário, até mesmo pela natureza dos interesses nelas envolvidos. Cresce, pois, a importância no real significado da concepção de acesso à justiça. É preciso que ela sirva a todos e de forma concreta, para que no campo prático não se torne uma mera e formal promessa do Estado. Vivemos hoje uma “nova onda” em que se tenta facilitar o acesso à justiça com a instituição de novos mecanismos de solução dos conflitos, como os Juizados Especiais, a Arbitragem, As Comissões de Conciliação Prévia no âmbito dos conflitos trabalhistas, os Juízos itinerantes, etc. Pondera Menelick de Carvalho Neto, que “Por isso mesmo, aqui no domínio dos discursos de aplicação normativa, faz justiça não somente na medida em que o julgador seja capaz de tomar uma decisão consistente com o direito vigente, mas para isso ele tem de ser igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses envolvidos, de buscar ver a questão de todos os ângulos possíveis e, assim, proceder, racional e fundamentadamente, à escolha da única norma plenamente adequada à complexidade e à unicidade da situação de aplicação que se apresenta. A imparcialidade aqui, ressalta Günther, e traduz na capacidade de o juiz levar em conta a reconstrução fática de todos os afetados pelo provimento e, desse modo, fazer que o ordenamento como um todo, como pluralidade de normas que concorrem entre si para reger situações, se faça presente, buscando então qual a norma que mais se adequa à situação; qual a norma que, em face das peculiaridades específicas daquele caso visto como um hard case, promove a justiça para as partes, sem deixar resíduos de injustiças decorrentes da cegueira à situação de aplicação.”(A hermenuêtica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, Revista Notícia do Direito Brasileiro, Fundação Universidade de Brasília, n. 6 (julho/dezembro/98, p. 246-247). 21 No Brasil temos principalmente no campo do direito laboral, a negociação coletiva e a arbitragem nos dissídios coletivos de trabalho (arts. 114, §§ 1o e 2o da Constituição Federal; 860 e seguintes da CLT e 3o da Lei 7.783/89). Recentemente por força da Lei 9.958/2000, foram criadas as chamadas Comissões de Conciliação Prévia para solução extrajudicial dos conflitos individuais trabalhistas e que é hoje motivo de muito debate, inclusive quanto à constitucionalidade de alguns de seus dispositivos. 20 48 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. Como pondera Boaventura Souza Santos, o acesso à justiça “é a pedra de toque do regime democrático. Não há democracia sem o respeito pela garantia dos cidadãos. Estes, por sua vez, não existem se os sistemas jurídico e judicial não forem livre e igual acesso a todos os cidadãos”. 22 É indispensável que seja repensado o papel do Judiciário a fim de que se possam encontrar formas alternativas, mais ágeis e justas de solução dos conflitos sociais. Porém, jamais se podendo perder de vista o fato de que ao Poder Judiciário sempre restará uma margem bastante importante para dizer o direito, especialmente em questões intrincadas, de difícil solução, que somente através da decisão jurisdicional poderão ser afastadas as dúvidas a seu respeito. Entretanto, como aplicador oficial de Direito, ao “Poder Judiciário, em geral, e ao Supremo Tribunal em particular, compete assumir a guarda da Constituição de modo a densificar o princípio da moralidade constitucionalmente acolhido que, no âmbito da prestação jurisdicional, encontra tradução na satisfação da exigência segundo a qual a decisão tomada possa ser considerada consistentemente fundamentada tanto à luz do direito vigente quanto dos fatos específicos do caso concreto em questão, de modo a assegurar a um só tempo a certeza do direito e a correção, a justiça da decisão tomada”. 23 É este o desafio de todos os operadores do Direito. 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