Centro Universitário da GrandeDourados Revista Jurídica UNIGRAN ISSN 1516-7674 Revista Jurídica UNIGRAN Dourados v.6 n.11 p. 1- 233 Jan./Jun. 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 1 2004 21/8/2008, 10:21 Revista Jurídica UNIGRAN / Centro Universitário da Grande Dourados. v. 6, n.11 (1999 - ). Dourados: UNIGRAN, 2004. Publicação Semestral ISSN 1516-7674 1. Direito - Periódicos. I. Título. CDU-34 Solicita-se permuta. On demande l´échange. Wir bitten um Austausch. Si richiede la scambio. Pídese canje. we ask for Exchange. Editora UNIGRAN Rua Balbina de Matos, 2121 - Campus UNIGRAN 79.824-900 - Dourados - MS Fone: 67 411-4141 - Fax: 67 422-2267 E-Mail: [email protected] www.unigran.br 2004 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 2 21/8/2008, 10:21 Editorial A Revista Jurídica UNIGRAN da Faculdade de Direito tem por objetivo divulgar conhecimentos, idéias e trabalhos de pesquisa na área do Direito desenvolvidos na UNIGRAN - Centro Universitário da Grande Dourados. Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores. A publicação total ou parcial dos artigos desta revista é permitida, desde que seja feita referência completa à fonte. REVISTA JURÍDICA UNIGRAN Dourados - Mato Grosso do Sul Rosa Maria D’Amato De Déa Reitora Terezinha Bazé de Lima Pró-Reitora de Ensino e Extensão Rosilda Mara Mussury Franco Silva Pró-Reitora de Pesquisa Conselho Editorial Carlos Ismar Baraldi Francisco das Chagas Lima Filho Helder Baruffi José Carlos de Oliveira Robaldo José Gomes da Silva Maurinice Evaristo Wenceslau Ricardo Saab Palieraqui Rubens Di Dio Pró-Reitor de Administração Edson Ernesto Ricardo PPortes ortes Diretor da Faculdade de Direito Noemi Mendes Siqueira Ferrigolo Capa e Diagramação DMU Departamento Multimídia U N I G R A N Coordenadora do Curso de Direito 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 3 21/8/2008, 10:21 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 4 21/8/2008, 10:21 SUMÁRIO PARA QUE A FILOSOFIA DO DIREITO? ATITUDE FILOSÓFICA: INDAGAR .... 11 Fabio Henrique Cardoso Leite A AUTORIDADE LEI E DO PODER DA DA AUTORIDADE ...................... 19 Carlos Ismar Baraldi VISÃO ATUAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O CRIME DE RACISMO .................................................... 29 Gassen Zaki Gebara GENOMA HUMANO: O DIREITO À INTIMIDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL ....................................................... 57 Loreci Gottschalk Nolasco O EFEITO VINCULANTE DA DECISÃO DE MÉRITO DA ADC E A ANALISE DO CASO CONCRETO COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL ...... 77 Adilson Josemar Puhl O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE ................................................ 95 Alexandre Sivolella Peixoto Taísa Queiroz Fábio Carvalho Mendes IMPLICAÇÕES CONSTITUCIONAIS, PROCESSUAIS E SOCIAIS DA PRISÃO CIVIL DO ALIMENTANTE INADIMPLENTE .............................. 105 Ailton Stropa Garcia ALTERAÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS E O PODER CONSTITUINTE EVOLUTIVO ....... 123 Francisco das Chagas Lima Filho 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 5 21/8/2008, 10:21 O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS ORIGINÁRIOS DOS ÍNDIOS SOBRE SUAS TERRAS TRADICIONAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A EXTENSÃO DO CONCEITO DE TERRAS INDÍGENASTRADICIONALMENTE OCULPADAS .............. 139 Lásaro Moreira da Silva CRIMES TRIBUTÁRIOS E ENCERRAMENTO DO RECURSO FISCAL .............. 153 Luiz Flávio Gomes Alice Bianchini O SISTEMA CLÁSSICO DA TEORIA DO DELITO - A ANÁLISE DA TEORIA CAUSAL-NATURALISTA DA AÇÃO E DA TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE ... 157 José Carlos de Oliveira Robaldo Vanderson Roberto Vieira A IMPORTÂNCIA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS ........................................... 167 Valério de Oliveira Mazzuoli LITIGÂNCIA PREJUDICIAL POR CONDUTA CULPOSA ................................. 183 Antonio Zeferino da Silva, Marcos Pereira Araújo Robson Orlei Azambuja Carneiro ALGUMAS QUESTÕES CONTROVERTIDAS DO PROCESSO CAUTELAR ............... 199 Maristela Rodrigues de Lima PROFISSÃO PROFESSOR: EXIGÊNCIAS ATUAIS - UMA ANÁLISE .................... 213 Pedro Rauber RESENHA ................................................................................... 225 James Gallinati Heim 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 6 21/8/2008, 10:21 APRESENTAÇÃO Ao nos ser dado o privilégio de apresentar um novo número da Revista Jurídica da UNIGRAN, nos vem à memória o momento da concretização desse ideal, ou seja, quando nos chegou às mãos o seu primeiro número. Naquela ocasião muitas questões ainda geravam dúvidas e, mesmo que se acreditasse no sucesso da empreitada, como a UNIGRAN sempre acreditou, havia o receio natural e compreensivo da continuidade da vida daquele novo meio de expressão e divulgação, pois é perfeitamente sabido que a vida de uma revista no Brasil, particularmente no campo jurídico, é cheia de incertezas e acidentes de percurso, que muitas vezes levam ao fim de um projeto, por melhor que seja. Entretanto, ao chegarmos ao seu número onze, já no seu sexto ano de existência, podemos repetir o que já dizíamos na apresentação do quarto número da revista “ ...o novo número da Revista Jurídica da Unigran, que já adentra ao novo século com ares de adulta e consolidada nos meios jurídicos do país...”, o que nos enche de orgulho – orgulho sadio -, por vermos que o esforço foi recompensado e que a produção científica no campo do direito tem se alargado e aprofundado junto aos corpos docente e discente do Centro Universitário, haja vista que professores de outras áreas têm colaborado com a revista, além da participação de profissionais de fora da Instituição, o que bem demonstra a seriedade da publicação. A Revista Jurídica tem se destacado, desde seu primeiro número, pela excelência dos artigos que publica, seja do corpo docente ou discente, seja de colaboradores de fora da instituição. Neste novo número, não é diferente. Ao analisarmos os artigos que compõem a revista, verificamos o desabrochar de novas idéias, de novas linhas de pensamento, do amadurecimento jurídico e filosófico, particularmente do corpo docente da Faculdade de Direito da Unigran, amadurecimento que se deve em parte ao curso de mestrado realizado em convênio da Unigran com a UnB, mas amadurecimento este que se deve, em maior grau, à pesquisa, ao estudo, ao desenvolvimento de idéias próprias 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 7 21/8/2008, 10:21 e à procura de um caminho independente para o Curso de Direito da Unigran, caminho aberto pelos docentes do curso, na busca do conhecimento e da excelência, pois esta vontade não depende de forças externas, mas apenas do esforço e perseverança da própria Unigran, através de seus professores e alunos. Basta lermos os títulos dos artigos, mas, lendo-se os artigos, chegase á conclusão que esse caminho já começa a ser trilhado, dando-se um rosto, uma identidade ao Curso de Direito da Unigran, criandose um diferencial na busca de uma formação acadêmica ideal aos nossos alunos. Fábio Henrique Cardoso Leite e Carlos Ismar Baraldi instigam a reflexão em seus artigos, o primeiro no que se refere à finalidade da Filosofia do Direito e, o segundo, quando trata de um tema polêmico sobre a autoridade, pois no Estado democrático de direito não mais se pode admitir o poder que não esteja embasado na lei e na busca do bem estar coletivo e calcado na ampla discussão dos problemas e soluções, seja com a sociedade, seja com seus representantes livremente escolhidos. Tratando de direitos fundamentais, como o reconhecimento de direitos dos índios sobre terras – direito fundamental, porque, para o índio, a terra significa vida – e do respeito à todas as raças, Lázaro Moreira da Silva e Gassen Zaki Gebara trazem à discussão, respectivamente, assuntos da mais extrema importância, o primeiro porque em nossa região é permanente e extremamente grave o conflito em que vivem os índios, sem esperanças e sem expectativas e, o segundo, pela relevância universal da questão do racismo, falando Gebara de recente decisão do Supremo Tribunal Federal, onde se verifica o extremo cuidado com o qual a questão deve ser tratada. Os artigos de Adilson Josemar Phul e de Alexandre Sivolella Peixoto, Taísa Queiroz, e Fábio Carvalho Mendes nos demonstra a preocupação dos seus autores com os temas constitucionais, pois a Constituição é a pedra fundamental da organização jurídica que sustenta toda nossa estrutura social e política, mostrando tais artigos o respeito que se deve dar à Constituição, particularmente aos princípios que a norteiam. Sem qualquer demérito, mas nos policiando para não nos alongarmos nesta apresentação, vemos que os demais artigos deste 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 8 21/8/2008, 10:21 número se preocupam com questões tributárias, penais, processo cautelar e com o exercício da profissão de professor, todos de excelente nível e da máxima importância, não podendo deixar de ser lidos. Fechando a revista temos dois artigos que voltam aos direitos humanos, seja o que trata do Tribunal Penal Internacional, seja o que trata do genoma humano e do direito à intimidade no novo código civil. Dois temas de extrema importância, o primeiro tratando da proteção dos direitos dos povos e, o segundo, de temas da mais alta indagação, tratando do respeito à própria vida. Assim, ao chegarmos ao décimo-primeiro número desta revista nos honra e nos apraz apresentá-la novamente, ou melhor, apresentar seus artigos, pois a Revista Jurídica da Unigran já prescinde de apresentação, considerando-se a sua excelência e ter sido um projeto que se concretizou ao longo destes últimos anos, sempre procurando se aperfeiçoar na produção de textos que demonstram a preocupação da instituição, de seus professores, de seus alunos e seus colaboradores, em trilharem caminhos que realizem os ideais que norteiam os mais nobres pensamentos, ou seja, os ideais que encontrem a igualdade, a liberdade e a solidariedade entre os povos, buscando a justiça e o bem estar de cada um e de todos, obrigação ética de todo ser humano. Edson Ernesto Ricardo Portes Diretor da Faculdade de Direito da UNIGRAN 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 9 21/8/2008, 10:21 1 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 10 21/8/2008, 10:21 PARA QUE FILOSOFIA DO DIREITO? ATITUDE FILOSÓFICA: INDAGAR Fábio Henrique Cardoso Leite¹ Resumo: Sobre a perspectiva do indagar “ Para que Filosofia do Direito” o autor destaca a importância da Filosofia para a formação do jurista e do acadêmico de Direito. Palavras-Chaves: Análise crítica- Filosofia- Conhecimento “O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E, contudo não-o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo deixou de ser um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições”. (Husserl) A pergunta “Para que Filosofia do Direito?” tem sua razão de ser. A resposta para esta pergunta, podemos definir da seguinte maneira: A filosofia do Direito parte de dogmas pré-estabelecidos para indagações, transcendendo o conhecimento positivo através de uma análise crítica, que levará a um conhecimento mais completo e justo tanto da interpretação como da aplicabilidade das leis. Daí, a fundamental e absoluta importância do direito, que, por seu caráter universal, torna-se passível de uma investigação filosófica em busca da realidade jurídica. Como podemos perceber, o conhecimento não é dado a nós, seres humanos, como uma faculdade inata, produzida naturalmente por herança genética e crescimento biológico. Nós precisamos aprender a pensar e nos dedicamos a isso ao longo de toda a nossa vida. Essa aprendizagem depende de duas coisas: da convivência com outras pessoas e da reflexão sobre nossos próprios pensamentos. Se nos inspirarmos nas origens do pensamento ocidental verificamos que a palavra Filosofia significa amizade ou amor pela ¹ Professor de Filosofia do Direito da UNIGRAN, Mestrando em História/UFMS 1 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 11 21/8/2008, 10:21 sabedoria. Os primeiros filósofos gregos não concordaram em ser chamados de sábios, por terem consciência do muito que ignoravam. Preferiam ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja, filósofos. Ao tentarmos definir o que é Filosofia, somos projetados diretamente para dentro da filosofia, ou seja, somos levados a filosofar. O que teria marcado o surgimento da filosofia seria precisamente a colocação desta pergunta sobre o ser, sobre o Ser do que é (=os entes, as coisas) e, posteriormente, sobre o Ser em si mesmo considerando, como diverso do não Ser. A primeira dessas indagações aparece historicamente naqueles pensadores que formaram a chamada Escola Jônica, na Grécia do séc. V a.C., encabeçada por Tales de Mileto, seguido por Anaximandro e Anaxímenes, que com ela desenvolveram um estudo da física, ao procurar estabelecer o(s) princípio(s) que governava(m) a organização cósmica. A segunda pergunta aparece no famoso poema de Parmênides², e instaura um tipo de reflexão que, posteriormente, passará a se chamar de metafísica. A pergunta por “o que é isto, a Filosofia?” não só nos remete aos primeiros filósofos, mas também a outros, bem mais próximos de nós, no tempo e no espaço. Isso porque essa pergunta foi colocada pelo filósofo contemporâneo Martin Heidegger. Por outro lado, se dissermos que é próprio da filosofia indagar “o que é isto: um ente” e “o que é que é Ser”, e se fizermos a pergunta se voltar sobre ela mesma, a filosofia, perguntando “o que é isto, a filosofia, que indaga sobre o que é isto e o que é que é Ser?”, estamos nos propondo a “discorrer filosoficamente sobre a filosofia”. O trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isso não significa que a filosofia esteja à margem do mundo, nem que ela constitua um corpo de doutrina ou um saber acabado com determinado conteúdo, ou que seja um conjunto de conhecimentos estabelecidos de uma vez por todas. A teoria do filósofo não constitui um saber abstrato. O próprio tecido do seu pensar é a trama dos acontecimentos; é o cotidiano. Por isso a filosofia se encontra no seio mesmo da história. No entanto, ² O poema de Parmênides é exatamente assim, um mito, uma lenda de ascensão celeste, e nessa ascensão é que lhe é revelado que “ o ser é” e “o não-ser não é”.Alguns autores indicam, como contraposta à via do ser, caracterizada pela discriminação do ser e do não ser pela verdade, a via da aparência, caracterizada pela opinião, nas quais não há uma confiança desvelante. Contrapondo-se à discriminação da verdade, a opinião constitui o caminho de quem não distingue ser de não ser. http://www.enciclopedia.com.br/med2000/pedia98a/filo7fvl.htm. acesso: 20de maio de 2004. 1 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 12 21/8/2008, 10:21 está mergulhada no mundo e fora dele: eis o paradoxo enfrentado pelo filósofo. Isso significa que o filósofo inicia a caminhada a partir dos problemas da existência, mas precisa se afastar deles para melhor compreendê-los, retornando depois a fim de subsídios as mudanças. No campo da ciência, a filosofia está ligada à ciência, sendo o filósofo o sábio que reflete todos os setores da indagação humana. A partir do século XVII, a revolução metodológica iniciada por Galileu Galilei promove a autonomia da ciência e o seu desligamento da filosofia. Na verdade o que estava ocorrendo era o nascimento da ciência, como entendemos modernamente. A filosofia trata da mesma realidade apropriada pelas ciências. Apenas que as ciências se especializam e observam “recortes” do real, enquanto a filosofia jamais renuncia a considerar o seu objeto do ponto de vista da totalidade totalidade. A visão da filosofia é de conjunto conjunto, ou seja, o problema tratado nunca é examinado de modo parcial, mas sempre sob a perspectiva de conjunto, relacionando cada aspecto com os outros do contexto em que está inserido. A filosofia não faz juízos de realidade, como a ciência, mas juízos de valor. O filósofo parte da experiência vivida do homem trabalhando na linha de montagem, repetindo sempre o mesmo gesto, e vai além dessa constatação. Não vê apenas como é, mas como deve ser. Julga o valor da ação, sai em busca do significado dela. Filosofar é dar sentido à experiência. É mister lembrar que a necessidade da filosofia está no fato de que, por meio da reflexão, a filosofia permite ao homem ter mais de uma dimensão, além da que é dada pelo agir imediato no qual o homem prático “homem prático” se encontra mergulhado. É a filosofia que dá o distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam; reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói na sua unidade; retoma a ação pulverizada no tempo e procura compreendê-la. Enfim, a filosofia é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacidade que só o homem tem de superar a situação dada e não-escolhida. Pela transcendência, o homem surge como ser de projeto, capaz de liberdade e de construir o seu destino. A filosofia exige coragem. Filosofar não é um exercício puramente intelectual. Descobrir a verdade é ter a coragem de enfrentar as formas statu quo estagnadas do poder que tentam manter o “statu quo”, é aceitar o 1 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 13 21/8/2008, 10:21 desafio da mudança. Saber para transformar. Depois desta abordagem sobre a importância da filosofia, podemos adentrar mais diretamente sobre o tema inicial: Para que serve a Filosofia do Direito? O termo Filosofia do Direito pode ser empregado em acepção lata, abrangente de todas as formas de indagação sobre o valor e a função das normas que governam a vida social no sentido do juízo, ou em acepção estrita, para indicar o estudo metódico dos pressupostos ou condições da experiência jurídica considerada em sua unidade sistemática. No primeiro sentido, Filosofia do Direito corresponde, em última análise a um pensamento filosófico da realidade jurídica, e é sob este enfoque que se fala na Filosofia do Direito. Não se deve estranhar que tenha havido pensamento filosófico-jurídico desde quando surgiu a Filosofia, no ocidente ou no Oriente, em cada área cultural segundo distintas diretrizes. Se onde está o homem aí está o Direito, não é menos certo que onde está o Direito se põe sempre o homem com a sua inquietação filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o fundamento das expressões permanentes de sua vida ou de sua convivência. Visa a Filosofia do Direito em primeiro lugar, indagar dos títulos de legitimidade da ação do jurista. O advogado, ou juiz, enquanto se dedicam às suas atividades, realizam certa tarefa, cumprem certos deveres. A segunda ordem de questão refere-se aos valores lógicos da Jurisprudência ou da Ciência do Direito. A que critérios devem manter-se fiel o jurista para poder ordenar a experiência social com coerência e rigor de ciência? O problema lógico une-se assim ao problema ético, formando ambos um todo harmônico, unitário, que só por necessidade de análise haveremos de separar. Dessa correlação resulta um perene esforço, quer do legislador, quer do jurista, no sentido de estabelecer adequação cada vez mais precisa e prática entre os esquemas lógicos da Ciência do Direito e as infraestruturas econômico-sociais, segundo os ideais éticos que informam e dignificam a coexistência humana. É assim que exigências lógicas, éticas e histórico-culturais, compõem a trama dos assuntos fundamentais pertinentes à Filosofia do Direito. Um dos principais juristas contemporâneo, Miguel Reale, procurou mostrar em sua tese que o Direito é uma realidade 1 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 14 21/8/2008, 10:21 tridimensional, compreendida através da soma de três fatores básicos: fato + valor + norma, (como, a bem da verdade, muitos autores antecedentes já haviam defendido), associados, por seu turno, entretanto, não através de uma forma simplesmente abstrata, mas sim num contexto essencialmente dialético, compreendido pela própria dinâmica do mundo real. Em sua explanação teórica, Reale argumentou, com mérita propriedade, que os três elementos dimensionais do Direito estão sempre presentes na substância do jurídico, ao mesmo tempo em que são inseparáveis pela realidade dinâmica da essência do próprio Direito, formando o contexto do denominado tridimensionalismo “concreto” que virtualmente se opõe ao tridimensionalismo “abstrato” que o antecedeu. Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia do Direito se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características são: Perguntar o que a coisa, ou o fato fato, ou a idéia, é. A Filosofia do Direito pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual; Perguntar como a coisa, a idéia ou o valor valor, é. A Filosofia do Direito indaga qual a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor; Perguntar por que a coisa, a idéia ou a norma existe e é como é. A Filosofia do Direito pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor. A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar. Neste sentido, podemos perceber que na esfera transcendental ou filosófica, o ser do direito a cargo da Filosofia do Direito, enquanto que a cada uma das dimensões do Direito, - fato, valor e norma – correspondem uma das partes principais da Filosofia do Direito, ou seja, respectivamente, a culturologia jurídica (fato), deontologia jurídica (valor) e a epistemologia jurídica (norma). É evidente que estas explicações são realidades que não devem e nem podem ser vistas e analisadas como estanques. Devem, 1 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 15 21/8/2008, 10:21 ao contrário, ser encaradas e estudadas como visões completamentares do Direito, procurando traduzir a real substância complexa da verdadeira explicação do próprio fenômeno da existência jurídica. Espírito Crítico Crítico: os problemas e enfoque do Direito e da realidade jurídica. Inegavelmente, o substrato da norma jurídica se traduz por seu próprio conteúdo. O grande problema que se depara o Direito, entretanto, está justamente na variabilidade do conteúdo da norma que alcança expressões jurídicas e expressões não-jurídicas transcendentes, pois a substância da realidade da existência do jurídico é extremamente complexa e compreende também os fatos sociais e a sua conseqüente valoração intrínseca. Por isso mesmo, alguns estudiosos entendem que há incontestáveis dimensões e planos do conhecimento jurídico e, sob esta ótica, Miguel Reale, entre outros, tão somente procurou polarizar o Direito em três âmbitos fundamentais. Isto não quer dizer, todavia que Miguel Reale não possa ser visto também como um normativista, a exemplo de Hans Kelsen; mas apenas que procurou lançar novas perspectivas para analisar a realidade complexa do Direito, construindo um objeto abstrato da ciência (como categoria jurídica), delimitando (para ser mais bem entendido) e não isolado, permitindo entender melhor as relações internas do próprio fenômeno Jurídico. Afinal qual a importância da Filosofia do Direito? A Filosofia do Direito ou a jusfilosofia, assume cada vez mais a postura criadora, crítica e de certa forma revolucionária. Inicia-se com a problematização dos fundamentos epistemológicos do saber jurídico tradicional e ao fazê-lo internaliza os questionamentos do pensamento social de modo geral. É fundamental que a Filosofia do Direito saia das universidades e passe a pensar o Direito a partir do ponto de vista daquelas classes, se não por uma postura ideológica, pelo menos para que não fique alheia à vontade de seu tempo. Mas, de nada adiantará falar sobre uma reforma se não se estivermos com espírito crítico, imbuído no sentido da Filosofia Jurídica, imprimida aos novos textos legais. A nova Filosofia tomada pelo Código implica modificar a mentalidade 1 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 16 21/8/2008, 10:21 do Juiz para fazer atuar o processo como instrumento de resultado. Terá de se implantar uma nova filosofia nos julgadores para poder dinamizar a reforma implantada. Vale a pena ressaltar que nenhuma lei se esgota por si mesma e não é o seu enunciado que ditará o rumo exclusivo a ser tomado. A interpretação que vier a ser dada é que ditará o seu dinamismo. Por isso é que deve-se ter o texto legal apenas como um referencial, um norte, que irá indicar ao intérprete e aplicador o caminho a ser seguido. Cabe aos juristas, consolidar essas conquistas, reforçando o sentido do Direito também como um espaço estratégico de extrema importância (política), para a efetiva transformação da realidade rumo a uma sociedade mais igualitária e democrática. Enfim, a discussão do valor da Filosofia, deve ser estudada, não em virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam nossa concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo porque através da grandeza do universo que a Filosofia contempla, a mente também se torna grande e se torna capaz daquela união com o universo que constitui seu bem supremo. A Filosofia do Direito, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar o conhecimento. O conhecimento que ela tem em vista é o tipo de conhecimento que confere unidade sistemática ao corpo das ciências, bem como o que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, de nossos pré-conceitos e de nossas crenças. Após esta breve reflexão, percebemos que o fenômeno jurídico e a filosofia andam juntos, e que não podemos fazer operacionalizar o direito sem o mínimo de conhecimento filosófico. A busca da justiça é um caminho que tem de ser percorrido de forma consciente. Não podemos nos distanciar da tradição, da história e dos conceitos elementares. Eis porque a filosofia nos direcionará à busca do conhecimento do direito. Poderemos sem pretensões outras dizer: onde está o direito aí estão presentes os elementos de filosofia. O saber filosófico e o jurídico, na verdade, são complementares. 1 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 17 21/8/2008, 10:21 O direito busca encontrar os elementos de justiça no sujeito para que ele possa ser contemplado pelo ideal de justiça em sua plenitude. Por outro lado, a filosofia, procura na realidade do cotidiano do sujeito estabelecer uma relação entre a vida presente e as condições históricas do indivíduo. Ademais, não podemos eliminar as possíveis relações existentes no campo da compreensão do direito e da filosofia, pois tanto os mecanismos do direito que regulam os direitos individuais e coletivos do cidadão, quanto o conhecimento racional da verdade e do próprio fenômeno jurídico são essenciais na vida dos sujeitos em sociedade. Bibliografia ADEODATO, João Maurício. F ilosofia do Direito Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 2 ed. São Paulo : Saraiva, 2002. ARANHA, Maria Lucia de Arruda. Filosofando Filosofando, Introdução à Filosofia. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1993. Jurídica 4 ed. São COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de Lógica Jurídica. Paulo: Saraiva, 2001. Direito 17 ed. São Paulo: Saraiva, 1996. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. ridimensional do Direito REALE, Miguel. Teoria TTridimensional Direito. 5 ed. São Paulo : Saraiva, 1994. MENDES, Juscelino V. Zetética e Dogmática Dogmática. Página de Juscelino Vieira Mendes, seção “Direito”. Sítio Campinas, 2003. 1 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 18 21/8/2008, 10:21 A AUTORIDADE DA LEI E O PODER DA AUTORIDADE Carlos Ismar Baraldi1 Resumo: A interpretação constitui um importante tema do Direito, em particular aquela produzida pelo juiz no caso concreto. Neste sentido, o artigo aborda a questão da interpretação jurídica no contexto atual, destacando a autoridade da lei e o poder da autoridade. Palavras-Chaves: Análise crítica- Filosofia- Conhecimento Recentemente, ao ler parte disponível de um discurso de posse de um novel desembargador, deparei com um trecho onde afirmou que o “ exercício da jurisdição pode abranger a proteção dos jurisdicionados contra a própria lei, quando se evidenciar que ela é mera expressão do poder e do arbítrio dos mais fortes”. Se o que li é o que entendi, ressalva que faço por ter em mãos apenas parte do discurso do ilustre magistrado, parece que está a afirmar que recusará a aplicação da lei ao caso apresentado, se entender que ela é expressão do poder e do arbítrio dos mais fortes. Isso implica, primeiramente, a afirmação da possibilidade de um juízo de valor sobre o poder (significando status social, econômico, político etc.) dos litigantes e, depois, desvalorizar a autoridade normativa da lei no sistema jurídico nacional, ao invés de interpretar e aplicar. Diante do fato e não obrigatoriamente para, ou em razão dele – posto a ressalva –, ocorreume esta reflexão, que permito expor, tendo como alvo os alunos da Faculdade de Direito da Unigran, na tentativa de proporcionar-lhes o debate que a questão suscita. 1. A lei e a autoridade No estado democrático de direito, a lei traduz, porque deve traduzir, máxima soberania a vontade soberana do povo (máxima soberania) e o seu 1 Professor da UNIGRAN. Advogado em Dourados-MS. 1 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 19 21/8/2008, 10:21 cumprimento é tudo o que se espera de cada um, verdade que realça mais às autoridades, que só o são em função da existência da lei. Só a lei pode criar a autoridade, pois, sem ela e sem o seu estrito cumprimento, o que se deve ter em mente é a igualdade entre as pessoas, princípio esse, inicialmente, refratário à idéia de alguém poder sobrepujar a outrem. Se não fosse assim, o conceito de autoridade estaria camuflado no de força. Originalmente, portanto, a autoridade é dada a alguns pela lei do Estado, que tem a força de fazê-lo, por respaldo de todos os outros indivíduos, que não têm essa autoridade, mas que por conveniências a criaram, transmitiram a alguém através da lei, e se sujeitaram a acatá-la. Essas conveniências, como se sabe, estão calcadas, em sua maioria, no desejo de garantir os direitos fundamentais de primeira geração (dignidade, liberdade, vida, propriedade), os quais o indivíduo pode impor (opor) ao próprio Estado. 2. O poder da autoridade Entenda-se, entretanto, que apesar do poder de oposição daqueles direitos ao Estado, só a autoridade do Estado é capaz de garanti-los ao indivíduo, mesmo apesar da sujeição que este pode exigir do próprio Estado, quanto àqueles direitos. Aqui se revela uma espécie de garantia do “poder do poder”, isto é, a possibilidade de se poder opor a quem tem o “poder”, o próprio poder, como decorrência da lei (de sujeitar-se, pois, se ele, o poder, puder deixar de se impor, deixará de constituir-se em poder, independentemente de quem é aquele que fica obrigado a sujeição). Entende-se que, se o poder não puder se opor, inclusive ao próprio Poder, romper-se-á a força da lei, que é a fonte de ambos, pondo fim à própria existência da organização criadora, o Estado. Essa é, segundo a realidade, a conveniência de que antes se falou. Convém ao homem submeter-se ao poder; convém ao indivíduo abrir mão de parcela significativa de sua liberdade, criando uma organização, o Estado, dando-lhe a força do poder; convém ao homem que exista o poder, pois, só assim tem ele a oportunidade (e a força: rectius = poder) para que o poder se 2 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 20 21/8/2008, 10:21 oponha, em seu nome, ao poder do Estado, exigindo que este se sujeite, respeite e cumpra os direitos fundamentais de primeira geração e em geral. Como podemos notar, toda a idéia de poder reside na autoridade da lei, na supremacia desta a toda vontade individual, ainda que emanada de pessoa que detenha autoridade, pois esta é decorrência daquela. Inconcebível o contrário. Arbitrária, ilegal e injusta, toda contraposição a esse pensamento. 3. O poder e a igualdade O princípio da igualdade, mesmo do ponto de vista da natureza, coloca cada homem ao lado de seu semelhante. Relembramos que é a conveniência de todos que faz nascer o Estado organizado, com poderes de submeter a todos a uma coexistência comum. Quem adquire a autoridade fá-lo por força da lei do Estado, que nada mais é do que o conjunto das vontades dos indivíduos, que deles próprios foi retirada, exatamente para dar supremacia àquela organização representativa. Daí não poder qualquer autoridade, haurir poderes superiores ao da própria lei, pois, admitir-se esta hipótese seria permitir a sobreposição do todo pela parte, do conteúdo pelo continente, da criatura sobre o criador criador.. Indiscutivelmente, é a autoridade da lei que confere o poder a autoridade, o que faz concluir que este (o poder) é sempre menor do que aquela (a lei), constituindo afronta, a subversão das idéias. É a força da política, o abuso e o excesso impunidos, que transmudam essa realidade, fazendo crer que se pode tanto mais do que em verdade se pode. A aparente divindade de certas autoridades nasce de exagero ilegítimo, pois, no fundo, são apenas suas mentes que dançam como átomos átomos, fazendo-as crer em uma realidade que não existe, mas que não é suficiente, para elevá-las a um lugar além do comum. Assim: da autoridade da lei nasce o poder da autoridade, que ela dá e retira, segundo os critérios da regra que contém. O poder, no sentido aqui tratado, só existe quando existir a lei, mas esta tem de preexistir para que aquele nasça. O poder da autoridade é conseqüência da lei, portanto, é transitório e passa; a autoridade 2 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 21 21/8/2008, 10:21 da lei é permanente e fica. Por isso prepondera sobre aquele. Daí considerar-se o poder da lei indisponível, mesmo aos Poderes e aos seus representantes, que detêm parcela de autoridade por força dela. A injustiça do arbítrio exagerado não se justifica, está fora dos limites normativos, porque não caracteriza nem aplicação e nem interpretação. Mesmo que alguém diga que a lei é “ruim”, não pode deixar de observá-la, pois, essa será uma consideração de ordem pessoal, ideológica, não funcional, a qual só pode ser realizada pelo Poder Legislativo, encarregado desse mister. 6. O poder do juiz Insisto: o juiz ou tribunal tem o poder da jurisdição, a lhes permitir aplicar o direito. Da lei receberam essa autoridade que propicia a aplicação e a interpretação autêntica do direito, mas, jamais, de suas opiniões pessoais. Esse poder, entretanto, não permite recusar uma lei formalmente em ordem, o que importa negar a jurisdição, além de invasão de outro Poder da República, o Legislativo. Posta a proposição inicial de maneira ostensiva, a negativa de jurisdição implica possibilidade de punição do juiz, que não pode fugir de suas atribuições só por teimosia. Sua autoridade legal não permite insubordinação a autoridade da lei, que ele deve interpretar dentro do sistema. Sua consciência é livre para a realização da justiça, mas seu proceder está regrado de maneira maior, não lhe permitindo se quer decidir fora do sistema e depois escolher uma norma para justificar ficticiamente a decisão, como se a tivesse interpretado. “O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena; é o executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste na aplicação do direito.”2 O juiz não pode voltar ao momento legislativo da norma e achar mera expressão do que ela é boa ou ruim, legítima ou ilegítima, “mera poder e do arbítrio dos mais fortes fortes”. Se assim fizer, estará opinando pessoalmente, estará chamando para si a possibilidade de dizer quem é o mais forte, para o Direito, naquele caso, o que só 2 FERRARA, Fracesco. Como aplicar e interpretar as leis leis.. Belo Horizonte: 2002, p. 9. 2 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 22 21/8/2008, 10:21 é permitido, se estiver em questão ou, em casos especiais, se o ordenamento permitir. Isso, na visão inatacável de Carlos Maximiliano, de “substituir a lei (vontade geral) pelo juiz (critério individual), conforme a corte chefiada pelo Professor Kantorowicz, seria retrogradar;”3 Cumpre lembrar que o poder de julgar está vinculado a sua origem. Fosse o juiz, nesse mister, simples pessoa do povo, apenas cidadão, ainda poderia dizer-se autorizado pela Constituição Federal, em face do conteúdo de seu artigo 1º, parágrafo único, a descumprir, já que nessa ordem, nesse universo, seria detentor da máxima soberania, “e o cidadão que detém a soberania popular e, portanto, o poder de elaborar a lei, tem o poder, igualmente, de deixar de cumpri-la, ou a qualquer ato de autoridade, para exigir a sua revogação ou a sua alteração (...)”.4 Comparando, aqui também não parece ter lugar a corrente de interpretação do moralismo jurídico, porque constitui abuso. “Em tal caso o intérprete que diz buscar o espírito da Constituição tende inevitavelmente a apresentar como “espírito da Constituição” as suas opiniões pessoais.”5 7. Noções sobre interpretação “A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei.”6 Sóbria e esclarecedora a noção de objetivo da interpretação, fornecida por Ferrara. Apesar da interpretação se exercitar por vários processos, interpretar (explicar, esclarecer, dar o sentido a um vocábulo, texto, gesto; reproduzir o pensamento por outras palavras), segundo ensina Carlos Maximiliano7 é uma coisa só, única, e a diferença que dela se faz, refere exclusivamente às fontes das quais emana, jamais daquilo em que verdadeiramente consiste. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 18 ed, p. 79. civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, 2 ed, p. 7 e 8. GARCIA, Maria. Desobediência civil 5 DIMOULIS, Dimitri. Artigo: Moralismo, Positivismo e Pragmatismo na Interpretação do Direito Constitucional. Revista dos TTribunais, ribunais, 769/15. 6 FERRARA, Fracesco. Como aplicar e interpretar as leis leis.. Belo Horizonte: 2002, p. 8. 7 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito direito. Rio de Janeiro: Forense, 18 ed, p. 106. 3 4 2 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 23 21/8/2008, 10:21 Segundo esse modo de ver, chamamos de interpretação autêntica, aquela realizada pelo juiz, porque em sua atividade ocorre a interpretação-aplicação do direito, forma mais pura de conceber o sentido da norma. Seu elemento subjetivo, entretanto, é o poder de que dispõe, o poder geral de coação, próprio do Poder Judiciário. A outra interpretação, realizada pelos demais operadores do direito, restrita ao campo da só reflexão, é chamada de doutrinária. Apesar do nome desta e da concepção da anterior, esta é, no fundo, mais autêntica do que aquela, porque revela, em essência, um ato de liberdade, produto do intelecto, sem as amarras de qualquer dever, ligação a Poder, ou autoridade. Seu elemento subjetivo, como se percebe, é o convencimento puro. Compara-se a norma a uma noz, para traduzir a idéia de que aquilo que dela se deseja, está envolvido por uma couraça. Ou seja, a vontade estatal vem guardada dentro de um conjunto de palavras. Só penetrando (interpretando) a casca é que se alcança o sentido. Jamais entender que a couraça faz o fruto: apenas o guarda; o acomoda. “A lei, porém, não se identifica com a letra da lei. Esta é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos e portadores de pensamento, mas podem ser defeituosas”, ensina Ferrara.8 Interpretar uma norma jurídica, portanto, é muito mais do que simplesmente traduzir as letras, as palavras ou textos, pelos quais um pensamento se apresentou ao mundo exterior. Interpretar é encontrar a vontade estatal guardada nas letras da lei. É atribuir significado, sentido anímico e sistemático, aos símbolos lingüísticos do enunciado. Se fosse só a tradução, os filólogos e professores de linguagem seriam os maiores juristas de todos os lugares, quando sabemos que não são. A atividade de interpretar impõe uma ação cognoscitiva que permita externar o pensamento guardado, o conteúdo que os símbolos lingüísticos procuraram traduzir, os quais, entretanto, acabaram por levar o pensamento do leitor a uma situação de indeterminação. “As palavras – observou Hospers – são como rótulos que colocamos nas coisas, para que possamos falar sobre elas: ‘Qualquer rótulo é conveniente na medida em que nos ponhamos de acordo com ele e o usemos de maneira conseqüente...”9 FERRARA, Fracesco. Como aplicar e interpretar as leis leis.. Belo Horizonte: 2002, p. 24. OLIVEIRA, Luís Maurício Sodré. Notas sobre a interpretação do Direito. Tribuna da Magistratura 157, setembro/99. 8 9 2 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 24 21/8/2008, 10:21 Portanto, quando o juiz interpreta-aplica a norma jurídica, ele a retira de seu sepulcro textual, interrompendo seu sono abstrato, impondo que opere no mundo real do caso concreto (sua interpretação é autêntica). Como se nota, ele não a cria – e nem pode criar –, porque o sistema de normas já existe antes de sua ação, o que o impede de externar algo novo, inédito, senão o seu entendimento, ainda que muito próprio, mas sempre daquilo que já existe. Lembremos que se está falando de interpretação de norma. Quando aludimos a entendimento muito próprio, devemos restringir o pensamento, para que a idéia de pessoalidade e autonomia não transcenda os umbrais da hermenêutica. É que, se houve um estado de indeterminação do pensamento a justificar uma interpretação, não se pode pensar em conclusão única, devendo ser consideradas todas as variantes possíveis, cabendo ao intérprete escolher e adotar a que o convenceu. Seguem-se: norma, estado de indeterminação, interpretação e convencimento. Do outro lado da balança, apesar do caráter multiforme que os significados dos símbolos lingüísticos têm, prestigiando a variedade de interpretação, não pode o aplicador imaginar que tem aí um salvo conduto para transformar o ilegal, o ilícito e o injusto, em seus opostos. O sistema o impede de agir assim, na medida em que o “direito se aplica (= interpreta) por inteiro, como totalidade, e não aos pedaços, ou em tiras.”10 É no sistema que a amplitude de interpretar esbarra, sendo certo afirmar ainda, que além da interpretação ter de se pôr em correlação com os símbolos lingüísticos do texto do qual foi extraída, não pode destoar do sistema ao qual pertence. “Por isso mesmo, é incabível a interpretação/aplicação do direito ao sabor de emoções e/ou de casuísmos – ou amadoristicamente [a interpretação/aplicação do direito reclama outras virtudes além da alfabetização...].”11 Entre o caráter geral e obrigatório da norma e o particular do caso apresentado é que medeia a interpretação do juiz. Não fora, pois, a possibilidade de várias interpretações existe na correlação da norma com o particular de cada caso, jamais como uma permissão para se violar a segurança jurídica. GRAU, Eros Roberto. Validade, Licitude e Legalidade; Operação BOX: Penalidade Imposta pela Comissão de ribunais, 728/91. Valores Mobiliários Revista dos TTribunais, 11 __________________. Idem, idem RT-728/85. 10 2 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 25 21/8/2008, 10:21 Como se nota, mesmo podendo interpretar, não pode tudo o juiz, sendo insustentável supor que possa construir a interpretação pelo só fato de ter a autoridade de julgar, pelo poder de jurisdição que tem, olvidando que a norma se prende aos símbolos lingüísticos que a traduzem e ao sistema a que pertence, indissoluvelmente. Isso significa que a interpretação se põe sobre norma pré-existente e se justifica pela indeterminação do pensamento. E, ainda quando faça assim o juiz, estará preso às variantes possíveis. Se não o fizer, interpreta-julga abusando do poder, por camuflar um julgamento ilegal que proferiu, com uma fundamentação totalmente falsa (perante sua consciência) e descabida (perante o ordenamento). 7. Considerações Finais O Magistrado não necessita ser o deus, nem o pastor pastor,, tampouco o santo salvador das almas. Não precisa se afastar do fórum para acercar-se do parlamento. Basta ser intérprete e aplicador da norma. Imaginamos quantos desatinos pode proporcionar aquele modo inicial de pensar e agir, na esfera criminal. De repente, poderia o juiz entender uma conduta expressamente tipificada no Código Penal, como lícita; ou pior que isso, uma conduta atípica, como delituosa. Sim, pois, se pode recusar a norma para não aplicar, terá de poder criar para aplicar, ou então a lógica não é lógica lógica. Negar tal evidência é incorrer na aporia de não “querer aceitar/ interpretar o direito “tal como é”12, que na prática implica em colocar a autoridade autônoma da norma sob o poder discricionário de uma certa autoridade, com evidente subversão de valores e risco absoluto à segurança jurídica. Vista a mesma situação de outro ângulo, estará o juiz fazendo o julgamento que já foi feito, legitimamente, a respeito da norma, durante o processo legislativo, por centenas de parlamentares, estes sim, dotados de autoridade e com possibilidade de discutir a suficiência ou não, daqueles envolvidos pela lei. Em fim, se sobrepõe ao processo formal criador da norma, adotado pela constituição, sendo indiscutível que também estará julgando ideologicamente as 12 DIMOULIS, Dimitri. Op. Cit., 769/17. 2 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 26 21/8/2008, 10:21 pessoas, pelo respectivo status, e não o caso que foi convocado a julgar. Como se percebe, estará realizando muita coisa que não pode realizar. Tal proceder, a toda evidência, revela abuso do poder de decidir e acarreta injustiça à parte prejudicada, pela negativa de jurisdição, mesmo depois desta ter pautado sua conduta na lei, que depois o magistrado nega aplicar, por opinião pessoal contrária; não por ter o poder de proceder assim. Desse modo, distribui insegurança e não assegura a paz social, uma vez que foge do princípio de julgar com imparcialidade. Pode o Judiciário diferenciar (se a lei não o fez, e ainda fora dos casos que ela permite) qual é a parte considerada poderosa, na demanda, afirmando que o direito previsto na norma, em face desse “poder”, dela (norma) está sendo retirado? Claro que não pode. Cabe, no caso, interpretar-aplicar, o que é outra coisa, como rapidamente foi mostrado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DIMOULIS, Dimitri. Artigo: Moralismo, Positivismo e Pragmatismo na ribunais, 769/ Interpretação do Direito Constitucional. Revista dos TTribunais, 15. FERRARA, Fracesco. Como aplicar e interpretar as leis leis.. Belo Horizonte: 2002, p. 9. GARCIA, Maria. Desobediência civil civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, 2 ed, p. 7 e 8. GRAU, Eros Roberto. Validade, Licitude e Legalidade; Operação BOX: Penalidade Imposta pela Comissão de Valores Mobiliários Revista dos TTribunais, ribunais, 728/91. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 18 ed, p. 79. OLIVEIRA, Luís Maurício Sodré. Notas sobre a interpretação do Direito. Tribuna da Magistratura 157, setembro/99. 2 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 27 21/8/2008, 10:21 2 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 28 21/8/2008, 10:21 VISÃO ATUAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O CRIME DE RACISMO1 Gassen Zaki Gebara Resumo: A presente abordagem objetiva demonstrar a perspectiva atual do Supremo Tribunal Federal quanto ao conteúdo jurídico de “racismo”, envolvendo a imprescritibilidade e a prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica sobre a liberdade de imprensa. Palavras-chave: discriminação racial, imprescritibilidade – dignidade da pessoa humana – liberdade de imprensa. Inspira-nos a escrever sobre o tema de recente decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede do Habeas Corpus 82.424-2-RS, que foi impetrado em face do Superior Tribunal de Justiça que condenou o paciente pela prática de crime de racismo, mais precisamente, por ter editado e vendido livro que fez apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias em face do povo judeu. A natureza do crime de racismo fulmina com a imprescritibilidade, nos termos do art. 5o., XLII, da Constituição Federal, o que levou à impetração cujo escopo foi o de afastar a ocorrência de crime de racismo e, de reflexo, a imprescritibilidade. A tese nuclear da impetração cindiu-se na demonstração de que os judeus não são raça raça, que sorte que restaria afasta a hipótese presente na sentença condenatória. O Habeas Corpus em espécie, portanto, apresenta temas de realce para o direito constitucional, porquanto envolve a compreensão semântica do significado de “racismo”; da imprescritibilidade, além de tratar com ineditismo sobre a colisão de direitos fundamentais. No enfrentamento das questões postas, o Supremo Tribunal Federal oferece aos operadores do direito posicionamento que, em muitos aspectos, indica novos rumos do constitucionalismo, mormente quanto aos direitos fundamentais. Estes novos degraus jurídicos é que procuraremos desvelar neste trabalho, seguros de que a atividade transcenderá o interesse meramente acadêmico. 1 Advogado, Professor na Unigran, Mestre em Direito Constitucional pela UnB/Unigran. 2 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 29 21/8/2008, 10:21 Com esse objetivo, pinçamos de alguns dos votos dos Eminentes Ministros que participaram do Julgamento as passagens de maior instigação jurídica, inclusive controvérsias que permearam suas discussões durante o julgamento, eis que houve três votos pela concessão da ordem: dos Ministros Moreira Alves, Carlos Aires Brito e Marco Aurélio. Antes, contudo, de examinarmos este votos, entendemos imprescindível trazer ao conhecimento a participação dos impetrantes na tribuna do Supremo. Na sustentação argumentam que o paciente, embora condenado pelo crime tipificado no art. 20, da Lei 7.716/ 89, a condenação foi pelo delito de discriminação contra os judeus judeus, que não tem conotação racial. Enfaticamente, repelem a pecha de crime racial, eis que não incide à espécie o comando emanado do art. 5o., XLII, CF. Fulcram sua tese em lições de autores de origem semita, todas no sentido de que os judeus não são uma raça. Neste ponto da sustentação, merece menção o argumento utilizado pelo impetrante no sentido de que o único autor a reconhecer o judeu como raça foi Adolf Hitler, no capítulo “Povo e Raça”, de seu livro “Minha Luta”, ao escrever que a grandeza e superioridade da raça ariana/alemã existe em função da oposição à inferioridade da raça não ariana, a semita/judaica e que para preservar a raça ariana, seria preciso eliminar a anti-raça. Com essa asserção, rematam os impetrantes: não queremos crer que essa Corte adotará em sua decisão a doutrina de Adolf Hitler, a única a admitir como raça o judaísmo. Em seguida, votou o Ministro Relator Moreira Alves, que teve neste HC uma das suas derradeiras participações no STF diante de sua aposentadoria compulsória. O Ministro registra, de pronto, que a questão nuclear que se coloca no HC é a de determinar o sentido e alcance da expressão racismo racismo, realçando que a expressão no mencionado dispositivo constitucional nos termos da lei não delega ao legislador ordinário dar à mesma a exegese que lhe aprouver, mormente no que respeita à imprescritibilidade. Esse registro deve-se ao fato de o dispositivo prender-se a um dos alicerces da própria República, consignada que está no inc. IV, do artigo 3 o .: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo cor, idade e quaisquer outras formas de 3 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 30 21/8/2008, 10:21 discriminação. Significa que, além de o crime de racismo não abarcar toda e qualquer forma de preconceito ou de discriminação, porquanto por mais amplo que seja o sentido de “racismo”, não abrange, evidentemente, a discriminação ou o preconceito quanto à idade ou ao sexo. Com isso, a expressão deve ser interpretada estritamente, porque a imprescritibilidade nele prevista não alcança sequer os crimes hediondos, assim considerados pela própria Constituição, como a prática da tortura, tráfico de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, aos quais o inciso XLIII do mesmo preceptivo apenas determina que a lei os considere inafiançáveis. Ressalta que embora entre os antropólogos tenha havido divergência sobre a conceituação de raça, especialmente quando envolve finalidades políticas, a exemplo do que ocorreu durante o império do nazismo e na vigência do mito do arianismo, esta se reduzira a ponto de Nicola Abbagno2 acentuar: “o conceito de raça é hoje unanimemente considerado pelo antropólogos como um expediente classificatório apto para subministrar o esquema zoológico dento do qual podem ser situados os diferentes grupos do gênero humano. Portanto, a palavra deve ficar reservada somente aos grupos humanos assinalados por diferentes características físicas que poder se transmitidas por herança. Tais características são principalmente: a cor da pele, a estatura, a forma da cabeça e do rosto, a cor e a qualidade dos cabelos, a cor e a forma dos olhos, a forma do nariz e a a estrutura do corpo. Tradicional e convencionalmente se distinguem três grandes raças, que são a branca, a amarela e a negra, ou seja, a caucasiana, a mongólica e a negróide. Portanto, os grupos nacionais, religiosos, geográficos, lingüísticos e culturais não podem ser denominados de ‘raças’ sob nenhum conceito e não constituem raça nem os italianos, nem os alemães, nem os ingleses, nem o foram os romanos ou o gregos, etc. Não existe nenhuma raça ‘ariana’ ou ‘nórdica’. Diante disso, não há como admitir que “judeu” seja raça, até porque diversos autores com esta ascendência têm repudiado essa possibilidade, a exemplo do rabino Morris Kertzer, no livro “o que é um judeu”, de Moacyr Scliar, em “A Condição Judaica” e, também, Fred E. Foldvaruy, em seu artigo “Zionism and Race, ao escrever que “(...) raça é uma classificação genética; alguém nasce dentro de uma 2 Diccionario de Filosofia, trad. Galletti, os 977/978, Fondo de Cultura Econômica, México, 1993. 3 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 31 21/8/2008, 10:21 raça e é de uma certa raça ou de uma raça mestiça por causa de seus ancestrais. Alguém pode converter-se a uma religião, mas ninguém pode trocar de raça. Os judeus não são, portanto, uma raça. Os judeus são membros de uma religião, o judaísmo. Houve uma época em que a nação hebraica era um grupo étnico, mas desde tempos antigos a dispersão dos judeus pelo mundo e os casamentos entre diferentes nacionalidades e as conversões fizeram a origem hebraica menos um vínculo genético e mais um vinculo espiritual. Há também uma cultura ligada à religião e a suas leis relativas à alimentação, ao ‘sabbath’, e a vários rituais juntamente com práticas culturais encontrados em vários lugares que são ‘judaicos’ por coincidência. Mas não há raça judaica”. Enfatiza que se os judeus não são uma raça, não se pode qualificar o crime de discriminação pelo qual foi condenado o paciente como delito de racismo, nem, tampouco, atribuir-lhe a imprescritibilidade. Para o Ministro, o Habeas Corpus não discutia se a condenação viola a liberdade de pensamento, mas tão somente a questão da imprescritibilidade dos crimes raciais. Em relação às convenções internacionais, realça que as mesmas não se incorporam à nossa Constituição como emenda constitucional, mas sim como lei ordinária. Interessante, outrossim, a observação de Moreira Alves no sentido de que a denúncia foi recebida em 1991, quando ainda não havia a noção científica de genoma, que é do ano 2000, não podendo ter sido levada em consideração pela Carta de 1988 ao aludir ao preconceito de raça, para se sustentar que só existe uma raça, que é a humana,e que por ser única não daria margem a preconceito racial a que é ínsita a diversidade de raças. Votou pela concessão do habeas corpus. Em seguida, pronunciou-se o Ministro Maurício Correa, que cita várias perseguições sofridas pelos judeus, desde a saída de Abraão de Ur, menciona a saga de Jacó que levou os seus para o Egito em busca de suprimentos e o êxodo do povo do Egito para a Terra Prometida. É certo que a ênfase mais relevante colhida pelo Ministro foram as humilhações suportadas pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Enfrenta, então, a questão sobre o racismo, salientando que a ciência já apresenta conclusões irrefutáveis sobre o fato de a genética ter banido o conceito tradicional de raça, citando o geneticista Craig 3 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 32 21/8/2008, 10:21 Venter: “ (...) há diferenças biológicas ínfimas entre nós. Essencialmente somos todos gêmeos”. Com isso, os cientistas confirmaram que não existe base genética para aquilo que as pessoas descrevem como raça, e que apenas algumas poucas diferenças distinguem uma pessoa de outra. O que se nota neste ponto é que os Ministros dão matiz diferente ao tema “racismo”, eis que afastam o foco da controvérsia da área científica, encetando-o para outro panorama: a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens. Com isso, começa a divergência em relação ao voto do Relator, que utilizou como critério para a definição do racismo a cientificidade do termo. Importante esse registro pois é a partir dele que o Supremo acolhe novas nuances jurídicas para a caracterização da prática de discriminação racial. Para os julgadores, não existindo base científica para a divisão do homem em raças, torna-se ainda mais odiosa qualquer ação discriminatória da espécie, pois se todos – pobres, ricos, brancos, negros, amarelos, judeus ou muçulmanos – integram uma mesma raça, que é a espécie humana, o que violou o paciente foi a própria igualdade entre os seres humanos, afrontando normas internacionais sobre direitos humanos. Nesse cenário, mesmo que fosse aceitável a tradicional divisão da raça humana segundo suas características físicas, perderia relevância saber se o povo judeu é ou não uma delas. Configura atitude manifestamente racista o ato daqueles que pregam a discriminação contra judeus, pois têm a convicção que os arianos são a raça perfeita e eles a anti-raça. O racismo, pois, não está na condição humana de ser judeu. O que vale não é o que pensamos, se se trata ou não de uma raça, mas efetivamente se quem promove o preconceito tem o discriminado como uma raça e, exatamente com base nessa concepção, promove e incita a sua segregação, exatamente como ocorre no caso versando. Diante disto, torna-se indiscutível que o racismo traduz valoração negativa de certo grupo humano, tendo como substrato características socialmente semelhantes, de modo a configurar uma raça distinta, à qual se deve dispensar tratamento desigual 3 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 33 21/8/2008, 10:21 da dominante. Materializa-se à medida que as qualidades humanas são determinadas pela raça ou grupo étnico a que pertencem, a justificar a supremacia de uns sobre os outros. Para Norberto Bobbio, a Alemanha de Hitler foi um Estado racial no mais pleno sentido da palavra, pois a pureza da raça deveria ser perseguida não só eliminando indivíduos de outras raças, mas também indivíduos inferiores física ou psiquicamente da própria raça, como os doentes terminais, os prejudicados psíquicos, os velhos não mais auto-suficientes 3 . Para George Fredrickson dá-se o racismo quando as diferenças étnicas e culturais são consideradas imutáveis, indeléveis, atuando na prática das instituições com base nessas diferenças, gerando a pretensão de impor uma ordem racial4. Concluindo seu voto, ressalta que a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1965, assinada pelo Brasil e ratificada sem reservas pelo Decreto 65810/69, teve como principal finalidade, de acordo com Celso Lafer, a “definição de normas contrárias à discriminação racial e ao fenômeno do racismo em todas as suas dimensões”, motivadas pelas práticas anti-semitas do nazismo e pelo desenvolvimento do apartheid na África do Sul. Recorda que este conjunto normativo balizou a atuação da Assembléia Constituinte de 1988 e o próprio legislador ordinário, merecendo consideração irrestrita do intérprete da Carta Federal, especialmente por se acharem formalmente incorporadas ao nosso sistema jurídico. Cita que nos Estados Unidos, em 1987, a Suprema Corte decidiu por unanimidade, seguindo o Voto do Justice White, que os judeus estavam tutelados pela legislação norte-americana contra a discriminação racial. O fato interessante é que a defesa dos réus, responsáveis por pichar uma sinagoga com mensagens anti-semitas, foi exatamente de que não sendo os judeus uma raça distinta não estariam protegidos pela lei. Emblemático, também, o julgamento proferido pela Câmara dos Lords na Inglaterra, em 1983, no caso Mandla na another vs Dowell Lee and another”, em que se debateu sobre a existência de discriminação racial pelo fato de uma escola haver proibido um jovem sikh de usar o Elogio da Serenidade e Outros Escritos Morais, UNESP, 2002, pp. 125-26. Breve storia Del razzismo, Roma, Universale Donzelli, Trad. Annalisa Merlino, 2002, p. 11 e 172. 5 Internet – www.hrcr. Org/safrica/equality/mandla_dowell. ee.htm 3 4 3 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 34 21/8/2008, 10:21 tradicional turbante de sua religião. A decisão foi no sentido de que o ato era discriminatório para os fins da “Race Relations Act”, uma vez que os sikhs são um grupo racial em face de suas origens étnicas5. Com isso, demonstrou que o direito comparado enfrenta o problema da segregação racial atribuindo ao termo ‘raça’ uma conotação mais complexa, sempre com o objetivo de assegurar o efetivo respeito aos postulados universais da igualdade e dignidade da pessoa humana. Ao final, sacramenta seu voto dizendo que o combate ao racismo tem clara inspiração no princípio da igualdade, que por sua vez se confunde com o reconhecimento mundial dos direitos do homem. A Constituição brasileira o reitera em várias passagens, não sem razão, deixando consignada sua condição de preceito fundamental (art. 1º., II; 3º IV; 4º II e VIII; 5º caput, I e XLI). Atos discriminatórios de qualquer natureza devem ficar expressamente vedados, com alentado relevo para a questão racial, que impõe certos temperamentos quando possível contrapor-se uma norma fundamental a outra. A aparente colisão de direitos essenciais encontra, nesse caso, solução no próprio texto constitucional. A previsão de liberdade de expressão não assegura “direito à incitação ao racismo”, até por quê um direito individual não pode servir de salvaguarda à práticas ilícitas. Nesses casos há necessidade de se proceder a uma ponderação jurídico-constitucional, a fim de que se tutele o direito prevalente. Cabe ao intérprete harmonizar os bens jurídicos postos em oposição, como forma de garantir o verdadeiro significado da norma com a conformação simétrica da Constituição, para que se possa operar a chama “concordância prática”, a que se refere a doutrina. Exatamente por se cuidar de direitos fundamentais que deve prevalecer a proteção à pessoa eis que se relacionam diretamente com os direitos humanos. Daí a afirmação de Alain Laquièze de que “existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento” 6 , sendo por isso indispensável ter- se como imprescritível o crime de racismo, sobretudo como se pretende reinaugurar velhas e ultrapassadas teses que a nossa consciência 6 Le Debat de 1964, su l’imprescretibilité des crimes contre l’humanité, in Droits, 31, 2000, p. 19. 3 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 35 21/8/2008, 10:21 jurídica e histórica nos admite. As dúvidas que então haviam foram desfeitas mediante interpretação teleológica e sistêmica da Carta Federal, a fim de conjugá-la com as circunstâncias históricas, políticas e sociológicas, para que se localize o sentido da lei para aplicála. Os vocábulos raça e racismo não são suficientes, por si sós, para se determinar o alcance da norma. Cumpre ao juiz, como elementar, nesses casos, suprir a vaguidade da regra jurídica, buscando o significado das palavras nos valores sociais, éticos, morais e dos costumes da sociedade, observando o contexto e o momento histórico de sua incidência. Sobre os princípios interpretativos das normas constitucionais, Canotilho anota que a força normativa da Constituição, de modo que dentre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais. Indefere, com base nesses argumentos, o habeas corpus manejado. O Min. Gilmar Ferreira Mendes, concorda que a questão nuclear encetada no ação gira em torno do alcance do termo racismo, empregado pelo legislador constituinte no art. 5 o. XLII, para se considerar ou não imprescritível a conduta anti-semita atribuída ao paciente. O entendimento atual quanto à existência de raças assentava-se em reflexões pseudo-científicas, conforme lição de Kevin Boyle, ao dizer que “Reconhecemos hoje que a classificação biológica era produto pseudo-científico do século XIX. Num tempo em que nó já mapeamos o genoma humano, prodigiosa pesquisa que envolve o uso de material genético de todos os grupos étnicos, sabemos que existe somente uma raça – a raça humana. Diferenças humanas em aspectos físicos, cor da pele, etnias e identidades culturais, não são basedas em atributos biológicos. Na verdade, a nova linguagem dos mais sofisticados racistas abandona qualquer base biológica em seus discursos. Eles agora enfatizam diferenças culturais e irreconciliáveis como justificativa de seus pontos de vista extremistas”7. A propósito da configuração da ideologia racista, anota Pierr-André Taguieff, em seu La force du préjugé, a referência ao termo “racista” apresentada pela Larousse restringia sua extensão aos “nacionais7 8 Hate Speech – The United State versus the rest of the Word? In: Maine Law Review, v. 53:2, 2001, p. 490. Taguieff, Pierre-André. La Force du préjugé: essai sur le racisme et ses doubles, Paris, la Décourverte, 1992, p. 149. 3 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 36 21/8/2008, 10:21 socialistas alemães”, ao atribuir-lhes uma intenção assim descrita na referida enciclopédia: “ ...eles pretendem representar a pura raça alemã, excluindo os judeus, etc8”. De acordo com o autor, pois, surge um dos dois elementos centrais metafóricos constitutivos das definições do racismo – a pureza da raça – por meio de uma referência que caracterizava o nacional-socialismo, antes mesmo de sua instituição como regime. Essas considerações demonstram que, do ponto de vista estritamente histórico, não há como negar o caráter racista do anti-semitismo. Não é por outra razão que diversos instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil não deixam dúvida sobre o claro compromisso no combate ao racismo em todas as suas formas de manifestação, inclusive o anti-semitismo. Estes instrumentos servem de base para decisões proferidas por Cortes Supremas de diversos países. A Americana, em caso julgado em 1987 (Shaare Tefila Congregation versus Cobb, US 615), reformou decisão proferida por instâncias inferiores, no sentido de negar aos judeus, por não serem grupo racial distinto, a tutela prevista pela legislação norte-americana de 1982, voltada para o combate à discriminação racial. Entendeu a Corte Americana que, apesar de serem judeus, na data da decisão, parte do que é tido como a raça caucasiana, estavam eles tutelados pela legislação de 1982, que visava proteger da discriminação classes indentificáveis de pessoas, dando assim, maior conteúdo jurídico à dignidade da pessoa humana e à repressão à prática do racismo. Esses elementos confirmam a convicção de que o racismo, enquanto fenômeno social e histórico complexo, não pode ter o seu conceito jurídico delineado a partir do referencial “raça”. Cuida-se aqui de um conceito pseudo-científico notoriamente superado. Não estão superadas, porém, as manifestações racistas aqui entendidas como aquelas manifestações discriminatórias assentes em referência de índole racial (cor, religião, aspectos étnicos, nacionalidade, etc.). Ao tratar do antagonismo constitucional decorrente de dois direitos fundamentais – o racismo e a liberdade de expressão e opinião – o Ministro pronunciou-se dizendo que se se aceita a idéia de que o conceito de racismo contempla, igualmente, as manifestações antisemíticas, há de se perguntar sobre como se articulam as condutas ou manifestações de caráter racista com a liberdade de expressão 3 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 37 21/8/2008, 10:21 positivada no texto constitucional. Essa indagação, afirma, assume relevo ímpar, especialmente se se considerar que a liberdade de expressão, em todas as suas formas, constitui pedra angular do próprio sistema democrático. Talvez seja a liberdade de expressão, aqui contemplada a própria liberdade de imprensa, um dos mais efetivos instrumentos de controle do próprio governo. Para não falar que se constitui, igualmente, em elemento essencial da própria formação da consciência e de vontade popular. Não se desconhece, contudo, que, nas sociedades democráticas, há uma intensa preocupação com o exercício de liberdade de expressão consistente na incitação à discriminação racial, o que levou ao desenvolvimento da doutrina “hate speech”. Ressalte-se que o “hate speech” não como objetivo exclusivo a questão racial9. Nesse sentido indaga Boyle em um estudo recente: “por que o ‘discurso do ódio’ é um tema problemático?”. Diz o autor que “A resposta reside no fato de estarmos diante de um conflito entre dois direitos numa sociedade democrática – a liberdade de expressão e o direito à não-discriminação. A liberdade de expressão, incluindo a liberdade de imprensa, é fundamental para uma democracia. Se a democracia é definida como controle popular do governo, então, se o povo não puder expressão seu ponto de vista livremente, esse controle não é possível. Não seria uma sociedade democrática. Mas, igualmente, o elemento central da democracia é o valor da igualdade política. “Every one counts as one and no more than one’, como disse Jeremy Bentham. Igualdade política é, conseqüentemente, também necessária, se uma sociedade pretende ser democrática. Uma sociedade que objetiva a democracia deve tanto proteger o direito de liberdade de expressão quanto o direito à não-discriminação. Para atingir a igualdade política é preciso proibir a discriminação ou a exclusão de qualquer sorte, que negue a alguns o exercício de direitos, incluindo o direito à participação política. Para atingir a liberdade de expressão é preciso evitar a censura governamental aos discursos e à imprensa”. Poder-se-ia ainda indagar se o livro poderia ser instrumento de um crime, cujo verbo central é incitar. Que, em tese, é possível o livro ser instrumento de crime de discriminação racial, não parece haver 9 Boyle, Hate Speech, cit., p. 490. 3 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 38 21/8/2008, 10:21 dúvida. As decisões de Cortes européias a propósito da criminalizaçao do “Holocaust Denial” confirmam-no de forma inequívoca (cf. Boyle, Hate Speech, cit., p. 498). É certo, outrossim, que a historia confirma o efeito deletério que o discurso de intolerância pode produzir, valendose dos mais diversos meios ou instrumentos. É verdade, ainda que a resposta possa ser positiva, como no caso parece ser, que a tipificação de manifestações discriminatórias, como racismo, há de se fazer com base de um juízo de proporcionalidade. O próprio caráter aberto – diria inevitavelmente aberto – da definição do tipo na espécie e a tensão dialética que se coloca em face da liberdade de expressão impõem a aplicação do princípio da proporcionalidade. A propósito, a própria Corte Européia de Direitos Humanos, ao julgar o caso Lehideux e Isorni vs França (55/1997/839/1045), ECHR, 23 set. 98, aplicou o princípio da proporcionalidade ao estabelecer um confronto entre o artigo 10 (liberdade de expressão) e o artigo 17 (proibição de abuso de direito) da Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Nesse caso, Isorn, que foi advogado do Marechal Pétain, e MarieFrançois Lehideux, foram condenados penalmente pelo Judiciário francês por “apologia aos crimes de guerra ou de crimes e delitos de colaboração”, depois da publicação de um encarte publicitário no jornal Lê Monde, em 13 de julho de 1984, apresentado como “salutares” certos atos de Philippe Pétain. A Corte Européia considerou que a jurisdição francesa violou o artigo 10 da Convenção Européia, prevalecendo, nesse caso, a liberdade de expressão. Nesse contexto, ganha relevância a discussão da medida de liberdade de expressão permitida sem que isso possa levar à intolerância, ao racismo, em prejuízo da dignidade humana, do regime democrático, dos valores inerentes a uma sociedade pluralista. Pode-se afirmar, pois, que ao constituinte não passou despercebido que a liberdade de informação haveria de se exercer de modo compatível com o direito a imagem, a honra e a vida privada (CF, art. 5°, X), deixando entrever mesmo a legitimidade de intervenção legislativa, com o propósito de compatibilizar os valores constitucionais eventualmente em conflito. A própria formulação do texto constitucional – “ Nenhuma lei conterá dispositivo ..., observando o disposto no artigo 5°, IV, V, X, XIII e XIV” – 3 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 39 21/8/2008, 10:21 parece explicitar que o constituinte não pretendeu instituir aqui um domínio inexpugnável à intervenção estatal. Ao revés, essa formulação indica ser inadmissível, tão somente, a disciplina legal que cria embaraços à liberdade de informação. A própria disciplina do direito de resposta, prevista expressamente no texto constitucional, exige inequívoca regulação legislativa. Outro não deve ser o juízo em relação ao direito à imagem, à honra e à privacidade, cuja proteção pareceu indispensável ao constituinte também em face da liberdade de informação. Não fosse assim, não teria a norma especial ressalvado que a liberdade de informação haveria de se exercer com observância no disposto art. 5°, X, da Constituição. Se correta essa leitura, tem-se de admitir, igualmente, que o texto constitucional não só legitima, mas também reclama eventual intervenção estatal com o propósito de concretizar a proteção dos valores relativos a imagem, à honra e à privacidade. Da mesma forma, não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como a igualdade e da dignidade humana. Daí ter o texto constitucional de 1988 erigido, de forma clara e inequívoca, o racismo como crime inafiançável e imprescritível (CF, art. 5°, XLII ) além de ter determinado que a lei estabelecesse outras formas de repressão às manifestações discriminatórias ( art. 5°, XLI ) . É certo, portanto, que a liberdade de expressão não se afigura absoluta em nosso texto constitucional. Ela encontra limites, também no que diz respeito às manifestações do conteúdo discriminatório ou de conteúdo racista. Trata-se, como já assinalado, de uma elementar exigência do próprio sistema democrático, que pressupõe a igualdade e tolerância dos diversos grupos. O princípio da proporcionalidade, também denominado principio do devido processo legal em sentido substantivo, ou ainda, princípio da proibição de excesso, constitui uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo dos atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um “limite do limite” ou uma “proibição do excesso” na restrição de tais direitos. A máxima da proporcionalidade, na expressão de Robert Alexy10, coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos 10 Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main , 1986 4 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 40 21/8/2008, 10:21 fundamentais concebido de modo relativo – tal como o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais. Nesse sentido, afirma Robert Alexy: “ O postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma lei de ponderação, cuja fórmula mais simples voltada para os direitos fundamentais, diz: ‘quanto mais intensa se revelar a intervenção de um lado direito fundamental, maiores ao de se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção’”11. Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade dá-se quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentou o Ministro, em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal12, há de se perquirir, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato palestra proferida na Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10-12-98. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudo de Direito Constitucional, 2ª. ed., Celso Bastos Editor: IBDC, São Paulo, 1999, p. 72. 11 12 4 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 41 21/8/2008, 10:21 impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível pelo meio menos gravoso e igualmente eficaz) relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto). No caso concreto, poder-se-ia examinar se a decisão condenatória ao enquadrar, como racismo, a conduta do paciente e, portanto, imprescritível, atendeu às máximas do princípio da proporcionalidade. A Corte Constitucional alemã entende que as decisões tomadas pela Administração ou pela Justiça com base na lei eventualmente aprovada pelo Parlamento submetem-se, igualmente, ao controle da proporcionalidade. Significa dizer qualquer medida concreta que afete os direitos fundamentais que há de se mostrar compatível com o princípio da proporcionalidade13. Essa solução parece irrepreensível na maioria dos casos, especialmente naqueles que envolvem normas de conformação extremamente aberta (cláusulas gerais; fórmulas marcadamente abstratas)14. É que a solução ou formula legislativa não contém uma valoração definitiva de todos os aspectos e circunstâncias que compõem cada caso ou hipótese de aplicação. Nega o habeas corpus. O Ministro Carlos Velloso registra que a necessidade de serem tutelados os direitos humanos é inerente ao constitucionalismo, quando surgiu na segunda metade do século XVIII, certo que as primeiras Declarações - Virgínia, 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 - são, por isso mesmo, contemporâneas das idéias de Constituição. A Constituição surge, pois, como limitadora do poder estatal e a divisão dos poderes preconizada por Montesquieu. Especial menção deve ser feita à internacionalização dos direitos humanos, a demonstrar que estes, por interessar a todos os povos, integram a ordem internacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, de 1948, dá início a esse processo. Flávia Piovesan, lecionando sobre o tema adverte que “o movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta à Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o PósScheneider, Zur Verhaltnismãssigkeits-Kontrolle, cit., p. 403. Jakobs, Michael, Der Grundsatz der Verhaltnismãssigkeit, Colônia, 1985, p. 150. 15 O Sistema Interamericano de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos: Impacto, Desafios e Perspectivas” Rev. Trim. de Advocacia Pública, Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, dez/2000, nº 12) 13 14 4 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 42 21/8/2008, 10:21 Guerra deveria significar a sua reconstrução. Por isso, há autores, como Louis Henkin, que afirmam a existência de um Direito Internacional pré e pós 45, dadas as extraordinárias transformações decorrentes da Segunda Guerra Mundial no campo do Direito Internacional. É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos diretos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional”15. J. A. Lindgren Alves, que tem se notabilizado pelo estudo e pela divulgação da teoria geral dos direitos humanos, no campo interno e internacional, registra que, “dada a força persuasiva e liberatória que” a Declaração de 1948 “tem demonstrado, ao longo de cinco décadas, para indivíduos e coletividades”, precisa “ser mantida como está”, certo que vem ela sendo fortalecida “nas grandes conferências desta década, de Viena (sobre direitos humanos), Cairo (sobre população), Copenhague (sobre desenvolvimento social), Beijing (sobre a mulher) e Istambul (sobre assentados humanos) “J. A. Lindgren Alves, A declaração....). Proteger os direitos humanos, garantí-los no plano interno e internacional é, na verdade, a tônica da era dos direitos de que fala Norberto Bobbio. É nesse cenário que se insere a Constituição brasileira de 1988, que, antes de cuidar da organização do Estado, preocupou-se em estabelecer princípios fundamentais, deixando expresso que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento, dentre outros, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Em seguida, no art. 5º, proclama os direitos e deveres individuais e coletivos. Consagra ela, aliás, direitos de três gerações, os individuais e coletivos, os direitos políticos, os direitos sociais e os interesses difusos e coletivos, aqueles no plano interno e internacional. Esses direitos, de 1ª, 2ª e 3ª geração, espalham-se na Constituição, certo que são três as vertentes dos direitos humanos no constitucionalismo brasileiro: a) estão escritos na Constituição, b) decorrem do regime e dos princípios por ela adotados - direitos implícitos - e c) estão nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (C.F., art. 5º, § 2º). O seqüenciamento do genoma humano, demonstra que não há que se falar em raça em termos biológicos. Por isso mesmo, o Dr. Sérgio Danilo Pena, médico e professor, notável divulgador do tema, cujo renome vai além das fronteiras do país, leciona que há apenas uma raça, a do homo sapiens sapiens, a raça humana (“Lição de Vida do 4 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 43 21/8/2008, 10:21 Genoma Humano”, Folha de São Paulo, 23/01/2001). Destarte, em termos biológicos e antropológicos, não há falar que os brancos, os negros, os amarelos, os ciganos, os judeus, os árabes, constituem uma raça; somos todos integrantes da raça humana. Se é assim, em termos biológicos e antropológicos, esses grupos humanos podem ser diferenciados. E é justamente o tratamento discriminatório, hostil, preconceituoso, relativamente a eles, que caracteriza o racismo, o racismo que a Constituição não tolera - C.F., Art. 5º, XLII - porque representa forma grave de desrespeito aos direitos humanos. Bem por isso a Carta da República estabelece que esta, nas suas relações internacionais, rege-se, dentre outros princípios, pelo repúdio ao racismo (C.F., Art. 4º, VIII). É induvidoso que a Constituição brasileira consagra a liberdade de expressão, que se consubstancia nas liberdades de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e a liberdade de imprensa (C.F., Art. 5º, IV e IX; Art. 220), não pode ela, todavia, sobrepor-se à dignidade da pessoa humana, fundamento da República e do Estado Democrático de Direito que adotamos - C.F., art. 1º, III - ainda mais quando essa liberdade de expressão apresenta-se distorcida e desvirtuada. Votou pela denegação do HC. O Ministro Marco Aurélio, logo na abertura de seu voto, faz uma reflexão sobre a questão, que reputa uma das importantes – senão a mais importante – apreciadas pela Corte nos treze anos que nela teve assento. Enfatiza que a censura, em suas diversas formas – direta ou indireta, prévia ou posterior, administrativa ou judicial – tem merecido a preocupação e o repúdio dos povos. Em 1695, na Inglaterra, deixou-se de ratificar texto – licenging act – que dispunha sobre a censura prévia. Na Declaração de Direitos de Virgínia – 1776 – proclamou-se que “a liberdade de imprensa é um dos baluartes da liberdade e não pode ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos” – art. 12. A par de outros enfoques já apreciados nos votos antes proferidos, o caso denota um complexo e profundo problema de Direito Constitucional, e daí o tom paradigmático deste julgamento: estamos diante de uma questão de eficácia de direitos fundamentais e da melhor prática de ponderação de valores, o que, por óbvio, força este Tribunal, guardião da Constituição, a enfrentar o assunto de modo como se espera de toda Suprema Corte. Refere-se ao intrincado 4 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 44 21/8/2008, 10:21 problema da colisão entre os princípios da liberdade de expressão e o da proteção à dignidade do povo judeu. Há de se definir se a melhor ponderação dos valores em jogo conduz à limitação da liberdade de expressão pela alegada prática de um discurso preconceituoso atentatório à dignidade de uma comunidade de pessoas ou se, ao contrário, deve prevalecer tal liberdade. Essa é a verdadeira questão constitucional que o caso revela. Em seguida, passa a exprimir suas considerações sobre os citados princípios, que se antagonizam no caso concreto. Lembra que com o fim da Ditadura Militar, a atual Carta Política resgatou as bases do Estado Democrático de Direito, à partir da restauração concreta de um sistema de valores e princípios de direitos fundamentais que hoje constitui a verdadeira essência de uma sociedade plural e democrática. Nesse sentido, a eficácia plena dos direitos fundamentais previstos no artigo 5o da Constituição, bem como de outros direitos advindos do regime e dos tratados internacionais, na forma do § 2° desse mesmo artigo, como condição essencial para a consolidação e amadurecimento de nossas instituições políticas e para a conservação e promoção da democracia. Democracia significa assegurar a formação e a boa captação da opinião pública; significa garantir a soberania popular para que os rumos do Estado acompanhem fielmente os resultados e as manifestações dessa soberania. Para tanto, o sistema constitucional brasileiro prevê vários institutos e mecanismos que têm por finalidade concretizar o princípio democrático, de maneira a torná-lo algo vivo, presente e eficaz. Constituem-se em pilares do princípio democrático, o voto direito, secreto e periódico, a separação dos Poderes, mediante a qual se confere aos eleitos pelo povo a condução política do País, incumbindo ao Judiciário julgar os conflitos de interesse e restabelecer a paz social momentaneamente abalada. Entretanto outras manifestações existem. O sistema de direitos humanos, como elemento constitutivo do Estado de Direito é imprescindível na concretização da democracia. Na precisa lição de Canotilho, os direitos fundamentais têm uma função democrática dado ao exercício democrático do poder. Tais direitos asseguram a contribuição de todos os cidadãos para o exercício da democracia. constroem um ambiente livre para esta 16 J. J. Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Editora Almedina, 2002, p. 280. 4 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 45 21/8/2008, 10:21 participação – o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por exemplo, direitos constitutivos do próprio princípio democrático – e promovem a abertura do processo político a partir dos direitos sociais, econômicos e culturais16. Tratando dos direitos fundamentais na dimensão de liberdade, Canotilho arremata: “Por sua vez, os direitos fundamentais, como direitos subjetivos de liberdade, criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático, e, como direitos legitimadores de um domínio democrático, asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização e de processos com transparência democrática (princípio majoritário, publicidade crítica, direito eleitoral”17. Pode-se concluir que os direitos fundamentais localizam-se na estrutura de sustento e de eficácia do princípio democrático. Nesse contexto, o específico direito fundamental de liberdade de expressão exerce um papel de extrema relevância, insuplantável, em suas mais variadas facetas: direito de discurso, direito de opinião, direito de imprensa, direito à informação e a proibição de censura. É por meio desse direito que ocorre a participação democrática, a possibilidade de as mais diferentes e inusitadas opiniões serem externadas de forma aberta, sem o receio de, com isso, contrariar a opinião do próprio Estado ou mesmo opinião majoritária. Uma vez que é assim que se constrói uma sociedade livre e plural, com diversas correntes de idéias, ideologias, pensamentos e opiniões políticas. Na apropriada redação utilizada por Ernest-Wolfgang Böckenförde, empregando a expressão cunhada pela Corte Constitucional Alemã, os direitos de comunicação, em que se inclui a liberdade de opinião, são “constitutivos do princípio democrático por antonomásia”, já que promovem a autonomia individual e foram o ambiente plural da participação democrática18. É fácil perceber a importância do direito à liberdade de expressão se analisarmos as dimensões e finalidades substantivas que o caracterizam. A principal delas, ressaltada pelos mais modernos J. J. Canotilho. Idem ibidem. La democracia como principio constitucional, Estúdios sobre el Estado de Derecho y la democracia, Editorial Trotta, 2000, p. 78. 17 18 19 4 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 46 21/8/2008, 10:21 constitucionalistas do mundo, é o valor instrumental, já que funciona como uma proteção da autodeterminação democrática da comunidade política e da preservação da soberania popular19. Em outras palavras, a liberdade de expressão é um elemento do princípio democrático, intuitivo, e estabelece um ambiente no qual, sem censura ou medo, várias opiniões e ideologias podem ser manifestadas e contrapostas, consubstanciando um processo de formação do pensamento da comunidade política. E é bom sempre lembrarmos de Hans Kelsen20, quando afirma que a democracia se constrói sobretudo quando se respeitam os direitos de minoria, mesmo porque esta poderá um dia influenciar a opinião da maioria. José Martinez de Pisón 21 , ao estudar a prática da tolerância, ressalta: “quando uma sociedade e seus governantes recorrem com tanta insistência à tolerância quer dizer que algo não está funcionando corretamente. Quando é preciso que se recorra constantemente a necessidade de respeitar opiniões e crenças dos demais, de admitir e tolerar a diferença, isso indica que há, ao menos, sintomas preocupantes para a convivência, e, inclusive, para a coesão social”. À medida que se protege o direito individual de livremente exprimir as idéias, mesmo que estas pareçam absurdas e radicais, defende-se também a liberdade de qualquer pessoa manifestar a própria opinião, ainda que afrontosa ao pensamento oficial ou ao majoritário. É nesse sentido que, por inúmeras ocasiões, a Suprema Corte Americana, em hipóteses a evidenciar verdadeiras colisões de direitos fundamentais, optou pela primazia da liberdade de expressão, mesmo quando resultasse em acinte a valores culturais vigentes ( por exemplo, pornografia, no caso “Miller vs. Califórnia”) ou em desrespeito à imagem de autoridades e pessoas públicas, como no caso “Farwell v. Hustler Magazine”. A liberdade de expressão serve como instrumento decisivo de controle de atividade governamental e do próprio exercício de poder. Esta dimensão foi até mesmo fonte histórica da conquista e do desenvolvimento de tal liberdade. À proporção que se torna uma comunidade livre de censura e com liberdade para exprimir os 20 Jónatas E. M. Machado, Liberdade de Expressão – Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 256. 21 Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, p. 201. 22 Tolerancia y derechos fundamentales em las sociedades culticulturales. Madrid: Tecnos, 2001, p.11. 4 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 47 21/8/2008, 10:21 pensamentos, viabiliza-se a crítica desimpedida, mesmo que contundente, aos programas de governo, aos rumos políticos do país, à providenciais da administração pública. Enfim, torna-se possível criticar, alertar, fiscalizar e controlar o próprio exercício dos mandatos eletivos22. Quando somente a opinião oficial pode ser divulgada ou defendida e se privam dessa liberdade as opiniões discordantes ou minoritárias, enclausura-se a sociedade em uma redoma que retira o oxigênio da democracia e, por conseguinte, aumenta-se o risco de ter-se um povo dirigido, escravo dos governantes e da mídia, uma massa de manobra sem liberdade. O que importa é caracterizar e relevar uma dimensão eminentemente social da liberdade de expressão, que não pode ser tida unicamente como proteção cega e desproporcional à autonomia de idéias do indivíduo. A sociedade civil e política beneficia-se da garantia do livre exercício do direito de opinião como uma forma de concretizar o princípio democrático. Reduzir a liberdade de expressão a um enfoque meramente individual significa podar, de maneira erosiva, a própria democracia. Teubner já alertara: “o ponto é que, à parte da esfera individual de ação existem esferas de autonomia social que necessitam da proteção dos direitos fundamentais contra as tendências colonizantes das políticas estatais e, por isso, não podem ser reduzidas a meros anexos ou derivações da autonomia individual”23. É esta importância social e política que precisa estar clara na análise do problema constitucional presente no caso concreto mesmo porque tal liberdade necessita ser vista sob o ângulo daquele que tem o direito de receber o maior número de informações possíveis, de ter acesso ao mais amplo conhecimento a fim de tornar uma pessoa apta a desenvolver as potencialidades e a cidadania. O Estado mostra-se democrático quando aceita e tolera, no próprio território, as mais diferentes expressões de pensamento, especialmente aquelas opiniões que criticam sua estrutura, seu funcionamento e o pensamento majoritário. A tolerância política é imprescindível para regular as relações entre as maiorias e as minorias e para servir de princípio regente das relações entre as ideologias e grupos políticos divergentes. A partir da proteção ao pensamento minoritário é que a liberdade se apresenta como um típico direito fundamental de defesa, 23 Jónatas E. M. Machado, Liberdade de Expressão – Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 266. 4 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 48 21/8/2008, 10:21 que alberga em sua essência um espaço imune à restrições de qualquer tipo, sejam estas impostas pelo executivo, legislativo ou judiciário. Nesse sentido já ensinava Stuart Mill, ao tratar sobre a liberdade, que “ quando a sociedade mesma é o tirano...seus meios de tiranizar não estão limitados aos atos que podem realizar por meio de seus funcionários públicos. A sociedade...exerce uma tirania social mais formidável que muitas das opressões políticas, pois, apesar de não fazer incidir penas tão graves, deixa menos meios de escapar delas, pois penetra muito mais nos detalhes da vida e chega a encarcerar a alma. Por isso, não basta a proteção contra a tirania do magistrado. Necessitamos também a proteção contra a tirania da opinião e do pensamento prevalecente, contra a tendência da sociedade de impor, por meios distintos das penas civis, as próprias idéias e práticas como regras de conduta a aqueles que dissente delas; a arrogar o desenvolvimento e, se possível for, a impedir a formação de individualidades originais e a obrigar a todos os caracteres moldarse sobre o seu próprio”. O argumento central de Mill é escancarar que não existe uma verdade absoluta que justifique as limitações à liberdade de expressão individual. Proteger a liberdade, para ele, não é somente se manifestar em favor da liberdade de consciência e de expressão, mas principalmente lutar continuamente contra quem quiser restringí-la. A ninguém é dado o direito de arvorar-se como conhecedor exclusivo da verdade. Nenhuma idéia é infalível a ponto de gozar eternamente do privilégio de ser admitida como verdadeira. Somente por meio do contraste das opiniões e do debate pode-se completar o quebracabeça da verdade, unindo seus fragmentos. A censura de conteúdo sempre foi a arma mais forte utilizada por regimes totalitários a fim de impedir a propagação de idéias que lhes são contrárias. A única restrição possível à liberdade de manifestação do pensamento, de modo justificado, é quanto à forma de expressão, ou seja, à maneira como esse pensamento é difundido. Por exemplo, estaria configurado crime de racismo se o paciente, em vez de publicar um livro no qual expõe suas idéias acerca da relação entre judeus e os alemães na Segunda Guerra, como na espécie, distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre com os dizeres do tipo “morte aos judeus”, “vamos expulsar estes judeus do país”. Mas nada disso aconteceu no caso em julgamento, eis que o paciente restringiu-se a escrever e a 4 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 49 21/8/2008, 10:21 difundir a versão da história vista com os próprios olhos. E assim o fez a partir de uma pesquisa científica, com os elementos peculiares, tais como método, objeto, hipótese, justificativa teórica, fotografias, documentos das mais diversas ordens, citações. De posse disso, imaginando-se integrado a um Estado Democrático de Direito, acionou a livre manifestação, a convicção política sobre o tema tratado, exercitou a livre expressão intelectual do ofício de escritor e editor, conforme previsto nos incisos IV, VIII e XIII, art. 5o. da Constituição Federal. A liberdade de expressão presta-se a construir uma sociedade democrática, aberta e madura. Somente com esse intuito é que ela encontra fundamento, o que importa dizer que, mesmo formando o núcleo essencial do princípio democrático, não pode ser caracterizada como direito absoluto. É nesse sentido que o sistema constitucional brasileiro não agasalha o abuso da liberdade de expressão quando o cidadão utiliza-se de meios violentos e arbitrários para a divulgação do pensamento. É por isso também que nosso sistema constitucional não identifica, no núcleo essencial do direito à liberdade de expressão, qualquer manifestação de opinião que seja exacerbadamente agressiva, fisicamente contundente ou que exponha pessoas à situações de risco eminentes. Não obstante, não pode servir de substrato para a restrição da liberdade de expressão simples alegação de que a opinião manifestada seja discriminatória, abusiva, radical, absurda, sem que haja elementos concretos a demonstrarem a existência de motivos suficientes para a limitação propugnada24. Significa compreender que a liberdade de expressão encontra limites nos demais direitos fundamentais, o que pode ensejar uma colisão de princípios. Exatamente em face disso é que a matéria em cotejo deve ser examinada com toda cautela. Contempla os mais variados aspectos, que devem ser estudados caso a caso mas, como afirma Robert Alexy25, tem um ponto em comum: todas as colisões somente podem ser superadas se algum tipo de restrição ou de sacrifício forem impostos a um ou aos dois lados. Enquanto o conflito de regras resolve-se na dimensão da 24 Christoph Beat Graber e Gunther Teubner, Art and Money, Constitucional Rights in the private sphere? In Oxford Judicial Legal Studies, 18, 1998, p. 66. 25 Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha, Sérgio Fabris Editor, 1998, pp. 309/310. 5 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 50 21/8/2008, 10:21 validade, com esteio em critérios como “especialidade” – lei especial derroga lei geral – ou “anterioridade” – lei posterior derroga lei anterior – “hierarquia” – lei superior revoga inferior – o choque de princípios encontra solução na dimensão do valor, a partir do critério da “ponderação” que possibilita um meio-termo entre a vinculação e a flexibilidade dos direitos. É que, no dizer de Bonavides, as regras vigem, os princípios valem; o valor que neles se insere se exprime em graus distintos. Os princípios, enquanto valores fundamentais, governam a Constituição, o regímen, a ordem jurídica. Não são apenas leis, mas o Direito em toda a sua extensão, substancialidade, plenitude e abrangência26 A questão da colisão de direitos fundamentais com outros direitos necessita, assim, de uma atitude de ponderação dos valores em jogo, decidindo-se, com base no caso concreto e nas circunstâncias da hipótese, qual o direito que deverá ter primazia. Trata-se de mecanismo de resolução de conflito de direitos fundamentais, hoje amplamente divulgado no Direito Constitucional Comparado e utilizado nas Cortes Constitucionais no mundo. Vale ressaltar que essa ponderação de valores e de concordância prática entre os princípios de direitos fundamentais de um exercício que, em nenhum momento, afasta ou ignora os elementos do caso concreto, uma vez que é a hipótese de fato que dá configuração real a tais direitos. Desta forma não é correto se fazer um exame entre liberdade de expressão e proteção da dignidade humana de forma abstrata e se tentar extrair daí uma regra geral. É preciso, a rigor, verificar se, na espécie, a liberdade de expressão está configurada, se o ato atacado está protegido por essa cláusula constitucional, se de fato a dignidade de determinada pessoa ou grupo está correndo perigo, se esse ameaça é grave o suficiente a ponto de limitar a liberdade de expressão ou se, ao contrário, é um mero receio subjetivo ou uma vontade individual de que a opinião exagerada não seja divulgada, se o meio empregado de divulgação da opinião representa uma afronta violenta contra essa dignidade, entre outras questões. Esse tipo de apreciação é crucial para resolver a questão do habeas. Há de se atentar para a realidade brasileira, evitando-se que prevaleça solução calcada apenas na crença de que os judeus são 26 Colisão de Direitos Fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de Direito Democrático. In Revista de Direito Administrativo. 217: I-VI, Rio de Janeiro: Editora Renovar, jul/set. 1999. 5 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 51 21/8/2008, 10:21 um povo sofredor e que amargaram os horrores do holocausto, colocando por terra elementos essenciais. A questão de fundo nesse processo diz respeito à possibilidade de publicação do livro cujo conteúdo revela idéias preconceituosas e anti-semitas. Em outras palavras, a pergunta a ser feita é a seguinte: o paciente, por meio do livro, instigou ou incitou à prática do racismo? Existem dados concretos que demonstram, com segurança, esse alcance? A resposta para o Ministro é negativa. O fato de alguém escrever um livro e outros concordarem com as idéias ali expostas não quer dizer que isso irá causar uma revolução nacional. Mesmo porque, infelizmente, o brasileiro medido não tem sequer o hábito de ler. Tal fato, por si só, em um Estado Democrático de Direito, não pode ser objeto de reprimenda direta e radical do Poder Público, sendo esta possível somente quando a divulgação da idéia ocorra de maneira violenta e com mínimos riscos de se propagar e de se transforma em pensamento disseminado no seio da sociedade. Diferentemente de outros meios que veiculam opiniões, o conteúdo do livro não é transmitido ao leitor independentemente da vontade, ou seja, não é o caso de um carro de som que fica jorrando idéias as quais todos são obrigados a ouvir. O livro apenas representa um pensamento e concede ampla liberdade ao público tanto na opção da escolha do que deve ser lido como tomada de posição ao término da leitura. Nessa ótica, o livro é democrático por excelência, já que o poder de transformar os pensamentos em realidade não depende dele ou de quem o publica, mas de quem o lê e o apreende, de quem se interessa pelo tema ou título e desembolsa quantidade monetária para obtê-lo ou se vale de empréstimo de uma biblioteca. Por outro enfoque, questiona-se: a sociedade brasileira é predisposta a praticar discriminações contra o povo judeu? Óbvio que a predisposição é no sentido amplo, e não a períodos esporádicos de nossa história. Nesse contexto, jamais se teve notícia de qualquer tentativa de discriminação anti-semita entre nós. Ao contrário, no Brasil as mais diferentes formas de divulgação da cultura judaica sempre gozaram de amplo apoio do interesse popular. As instituições judaicas funcionam como importantes centros de referência e são constantemente reconhecidas como hospitais, sinagogas, centros de cultura, museus, dentre outras. É induvidoso, pois, que inexistem no Brasil os pressupostos sociais e culturais aptos a tornar um livro de cunho preconceituoso 5 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 52 21/8/2008, 10:21 contra o povo judeu verdadeiro perigo atentatório à dignidade desta comunidade. O mesmo não se pode afirmar, contudo, em relação a países como a Alemanha em que as chagas dessa ferida ainda não restaram totalmente curadas. O direito de liberdade de expressão naquele país, nesse tema, seria muito mais restrito e um caso concreto viria a ser tratado com muitíssimo mais rigor. Assim, o Supremo deve examinar a realidade social concreta, sob pena de incidir no equívoco de efetuar o julgamento a partir de pressupostos culturais europeus, a partir de acontecimentos de há muito suplantados e que não nos pertencem, e, com isso, permitir a construção de uma limitação direta à liberdade de expressão do nosso povo baseada em circunstâncias históricas alheias à nossa realidade. Com base nesses argumentos, concede a ordem propugnada pelo paciente. Por maioria, o F denegou a ordem de habeas corpus ao paciente, considerando que escrever, editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). Sedimentou a compreensão de que, com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. Decidiu que a obra do paciente representa concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. Imprescindível que haja compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação 5 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 53 21/8/2008, 10:21 e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. Acentua que a liberdade de expressão é garantia constitucional que não se tem como absoluta, eis que teve respeitar limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Finalmente, que a ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Referências Bibliográficas: ABBAGNO. Incola. Diccinaario de FFilosofia ilosofia, trad. 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Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 55 21/8/2008, 10:21 5 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 56 21/8/2008, 10:21 GENOMA HUMANO: O DIREITO À INTIMIDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL Loreci Gottschalk Nolasco1 Resumo Resumo: Neste artigo, pretende-se demonstrar os problemas que o Projeto Genoma Humano acarreta do ponto de vista do direito à intimidade e, principalmente, as luzes que o novo Código Civil oferece para solucioná-los. Para isso, serão necessárias algumas considerações sobre o Projeto Genoma Humano, os limites éticos e jurídicos de pesquisa científica e sobre o atual conceito de intimidade, levando sempre em consideração que a intimidade é um dos núcleos que compõem os direitos de personalidade. Palavras-Chave: Bioética - Direito Civil - Direitos 1. Introdução Um passo significativo e decisivo da ciência foi dado no ano de 1944, quando se identificou o DNA2 como base molecular dos genes, isto é, quando se descobriu que os genes são formados de DNA. A genética, entendida como a ciência que tem por objeto de estudo fragmentos mais ou menos largos de DNA, que podem ser identificados e isolados dentre toda massa molecular do indivíduo, portanto, não é algo recente. No entanto, desde a descoberta do DNA como base molecular dos genes até os nossos dias, em que costumeiramente se fala de genoma humano e de clonagem humana com tanta freqüência, como se comenta qualquer outro aspecto da vida, o processo de evolução do objeto de estudo da genética foi muito rápido, impedindo, sobretudo, que houvesse um acompanhamento legal adequado destes fatos sociais e científicos por parte da ciência jurídica como Mestre em Direito pela Unigran/UnB. Professora na UEMS. DNA - Ácido desoxirribonuclêico – material genético que contém informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência. Materiais biológicos suscetíveis à análise do DNA, para fins forenses: sangue, em qualquer quantidade, mesmo que seja um respingo encontrado em madeiras, papéis, vestes, instrumentos pérfuro-cortantes, projéteis, no solo etc; esperma em preservativos usados, encontrados no local do crime, ou em vestes; tecidos moles (músculo, vísceras); pêlos (com a raiz, pois é a região onde se encontram células satisfatórias para análise); restos de peles (podem ser encontradas embaixo das unhas das vítimas e/ou suspeitos); urina, saliva, secreções diversas, observando que é possível encontrar resíduo de saliva em guimbas de cigarro, envelopes, copos, goma de mascar, além de outros substratos mencionados para o sangue. 1 2 5 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 57 21/8/2008, 10:21 instrumento de regulação da vida em sociedade. Com efeito, só recentemente o Direito começou a se preocupar com as conseqüências jurídicas da genética e do seu objeto de estudo, já que, somente a partir da década de 1990, quando começaram a ser difundidos os estudos relativos à transgênesis (estudos de plantas e animais transgênicos) e à clonagem (procedimento capaz de reproduzir réplicas de determinado material biológico tanto de animais, quanto de seres humanos) é que tais conseqüências começaram a ter importância do ponto de vista jurídico, principalmente, porque, a partir da clonagem de animais e da possibilidade de clonagem humana, começou-se a falar em violação do princípio da dignidade humana, regulado no art. 1º, III, da Constituição Federal como princípio fundamental, e, por conseguinte, de violação aos direitos fundamentais relacionados com esse princípio: o direito à vida, à intimidade, à liberdade e à igualdade, dos quais falaremos mais adiante. Os avanços científicos cursam geralmente adiante do Direito, que retarda a sua acomodação a conseqüências daqueles. Esse assincronismo entre ciência e Direito origina um “vazio” jurídico que permite ao filósofo, ao médico e ao jurista refletirem e proporem ajustes ao sistema. A chamada engenharia genética possibilitou, por exemplo, a modificação programada do patrimônio genético das células e, com isso, do organismo ao qual a célula pertence. Com promessas para o tratamento e a eliminação de enfermidades por imperfeições genéticas, trouxe consigo também os temidos riscos da construção de novas formas de seres vivos. Maria Celeste Cordeiro dos Santos, citando Ferrando Mantovani informa que as preocupações, nos âmbitos nacional e internacional são “de que as tecnologias genéticas sejam usadas não com e para o homem, mas contra o homem; e com a exigência, cada vez mais acusada, de que surja uma regulamentação jurídica que fixe os limites de sua licitude, assim como seus controles”. A autora afirma ainda que: A moderna tecnologia reprodutiva produz o colapso de princípios e axiomas jurídicos que até agora se tinham por absolutos: a regra mater semper certa est, a presunção de paternidade do marido, a presunção 5 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 58 21/8/2008, 10:21 de direito sobre a duração da gravidez (entre 180 e 300 dias), o princípio da inalienabilidade do estado civil, a consangüinidade do parentesco e das ordens genealógicas etc.3 A recente preocupação jurídica não consiste, portanto, em impedir a utilização da genética, mas em criar mecanismos para a tutela dos direitos fundamentais envolvidos em caso de sua violação, bem como de evitar que a utilização maciça das novas descobertas científicas converta a humanidade em cobaia que possa ser utilizada de qualquer maneira e a qualquer custo em nome da ciência. Em outras palavras, o Direito se preocupa com a coisificação do ser humano que pode advir da utilização desmedida das descobertas científicas e da sua comercialização em grande escala, na lição de Flavia de Paiva Medeiros de Oliveira.4 No atual momento, os juristas precisam se perguntar se a regulação jurídica que o novo Código Civil confere aos direitos de personalidade é suficiente e adequada para enfrentar uma realidade social em que a genética se torna cada vez mais presente na vida cotidiana do ser humano. 2. O Projeto Genoma Humano Vivemos em uma época de transição e incerteza. A possibilidade da eugenia, discriminação, clonagem total ou parcial de seres humanos e, por outro lado, a cura de doenças de origem genética, patentes de genes humanos são questionamentos que vieram à baila com a revolução introduzida pelas técnicas de engenharia genética, culminando com o Projeto Genoma Humano. O conjunto de informações contidas nos cromossomos de uma célula denomina-se genoma, e o DNA (ácido desoxirribonucléico) é o portador da mensagem genética, podendo ser imaginado como uma longa fita onde estão escritas, em letras químicas, os caracteres de cada ser humano, sendo, por isso, sua imagem SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. O Equilíbrio do Pêndulo, a Bioética e a lei: implicações médicolegais. SP: Ícone, 1998, p. 23, 28 e29. 4 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Genoma Humano, Direito à Intimidade e o Novo Código Civil. Revista Prática Jurídica Jurídica. n.15, 30 de junho de 2003, p. 34. 3 5 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 59 21/8/2008, 10:21 científica. O Projeto Genoma visa o conhecimento de todo o código genético humano e de suas alterações, que são as causas de quatro mil moléstias hereditárias. Para tanto tem procurado identificar os cem mil genes existentes nos quarenta e seis cromossomos componentes do genoma humano. Para Maria Helena Diniz, o Projeto Genoma Humano constitui um dos mais importantes empreendimentos científicos dos séculos XX e XXI e um dos mais fascinantes estudos que poderia ter sido feito nesta nova era científica. Com isso o genoma humano, que é propriedade inalienável da pessoa e patrimônio comum da humanidade (art. 1º da Declaração Universal sobre o Genoma e Direitos Humanos), passará a ser a base de toda pesquisa genética humana dos próximos anos. Esse projeto, ao descobrir e catalogar o código genético da espécie humana, efetuando um mapeamento completo do genoma humano, possibilitará a cura de graves enfermidades, explorando as diferenças entre uma célula maligna e uma normal para obter diagnósticos de terapias melhores.5 A importância da descoberta do genoma humano reside na possibilidade de se personalizar a medicina, ou seja, realizar tratamentos que se baseiam em conhecimento mais detalhado da fisiologia de cada pessoa, uma vez que o código genético da pessoal determina, em muitos casos, sua reação a um medicamento, inclusive efeitos colaterais. Entretanto, às esperanças de cura acopla-se um biopoder incomensurável, decorrente das possibilidades de métodos tecnológicos sofisticados de cerceamento da liberdade e aumento da opressão racial e étnica, além do biopoder implícito ao saber manipular a vida via transgenicidade, hibridismo e clonagem, segundo Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes e Sandra Sordi.6 Para as autoras, o Projeto Genoma Humano visa decodificar as informações contidas nos nossos cromossomos. Ou seja, isso implica a decodificação de três bilhões de elementos que compõem o livro da vida. Mas, segundo elas, uma vez seqüenciado cada gene e identificada a informação que contém, assim como o lugar que ocupa no cromossomo, não parece complexo imaginar o passo seguinte: DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito Biodireito. SP: Saraiva, 2002, p.388/389. GOMES, Celeste Leite dos Santos Pereira & Sordi, Sandra. Aspectos Atuais do Projeto Genoma Humano, in SANTOS, Maria Celeste Cordeiros Leite (Org), Biodireito Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. SP: RT, 2001, p. 169-195. 5 6 6 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 60 21/8/2008, 10:21 “tratar de modificar o genoma, extraindo cromossomos supernumerários, agregando genes sãos, eliminado os que apresentem deficiências, ou alterando-os.” 7 O Projeto Genoma fará com que os genes sejam identificados e a informação concentrada neles poderá determinar vidas humanas e destruir iniciativas pessoais. A dignidade e liberdade humanas não podem ficar à mercê da manipulação biocientífica. Poderiam se estabelecer bancos de dados de DNA individual e as agências governamentais, a polícia, os empresários, as companhias de seguros, os empregadores, etc., poderiam fazer mau uso dos mesmos. O potencial do Projeto Genoma é para o bem, mas suas dimensões ultrapassam nossa imaginação e mostram a crescente complexidade desse campo. As questões éticas colocadas no projeto dizem respeito, essencialmente, ao acesso e ao uso das informações e à apropriação econômica e jurídica de seus resultados. Segundo a Declaração de Bilbao, celebrada em Reunião Internacional nos dias 24 a 26 de maio de 1993, na Espanha, as reflexões feitas e conclusões obtidas foram as seguintes: O desenvolvimento total da cartografia do genoma humano abrirá uma nova era na investigação da natureza, estrutura e funções dos genes, o que proporcionará uma visão nova – até agora inimaginável – da fisiologia humana e permitirá conhecer as enfermidades genéticas. De fato já se identificaram as bases moleculares de um grande número deles e, à medida que o projeto avance, são de esperar novos descobrimentos, novas terapias de prevenção e melhora da saúde humana. O projeto contribuirá também para definir a identidade individual com uma exatidão sem precedentes. Há que se reconhecer, sem dúvida, a existência de alguns perigos, uns conhecidos, e outros que se intuem. É a outra face do projeto. Os participantes da Reunião Internacional lembraram alguns lamentáveis exemplos do mau uso da experimentação científica e de práticas eugênicas em décadas anteriores, que servem para alertar a Humanidade, os cientistas e os juristas, sobre certos riscos que podem surgir à medida que o Projeto Genoma Humano avance. Os participantes são conscientes também da possibilidade de utilizar a informação genética para dividir grupos e discriminar pessoas, em definitivo, para vulnerar direitos humanos universalmente admitidos. Por isso, consideraram oportuno estabelecer certos princípios que devem ser respeitados. Todas as sociedades civilizadas 7 Idem, ibidem, p. 171. 6 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 61 21/8/2008, 10:21 se organizam legalmente apoiadas no princípio de respeito à dignidade humana e na proteção dos direitos humanos individuais. As variações genéticas, do mesmo modo que a diversidade social, constituem atributos dos seres humanos livres. A idéia de uma ‘perfeição’ genética e da eliminação, por meios genéticos, da preciosa variedade da humanidade é socialmente repulsiva e apresenta um grande risco para a espécie humana, que tem sobrevivido e evoluído, como resultado das inúmeras diferenças genéticas individuais. Por isso a variedade cultural demanda um definido e harmônico marco de leis nacionais e acordos internacionais.8 Para Maria Celeste Cordeiro dos Santos, os temas abordados na Declaração, destacaram a existência de problemas legais a resolver, tais como: 1 – Incidência da genética na liberdade da pessoa, na formação da vontade, na conduta humana e, como conseqüência, em sua responsabilidade ou culpabilidade, o que tem especial repercussão no direito penal; 2 – Respeito aos direitos humanos, segundo estão consagrados nas Constituições dos Estados democráticos e acordos internacionais, como limite na utilização de técnicas genéticas referentes ao ser humano; 3 – Proteção à intimidade pessoal ou confidencialidade na informação genética e determinação dos supostos em que é possível alterá-la ou transformá-la; 4 – Patenteamento dos genes e seqüências humanas fixando limites, direitos de propriedade, benefícios econômicos; 5 – Fixação de limites precisos para certas formas de engenharia genética que afetam a individualidade, identidade e variabilidade do ser humano por grave risco que supõem para a dignidade pessoal e para a evolução natural da herança genética; 6 – Utilização da informação genética no campo de seguros e utilização de provas genéticas no campo trabalhista, quando envolverem discriminações não justificáveis; 7 – Tensão entre a demanda de liberalização total na utilização ou aplicação da investigação e experimentação científica e a proteção de certas liberdades humanas que podem correr riscos pela difusão e utilização não autorizada de informação genética.9 A enumeração da seqüência dos pares de base que formam o DNA traz inúmeros benefícios à espécie humana, ao mesmo tempo que gera inúmeros problemas do ponto de vista jurídico, na lição de Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira. 8 9 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. Op. cit. p. 66. Idem, ibidem, p. 66/67. 6 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 62 21/8/2008, 10:21 Para a autora, os benefícios podem ser assim resumidos: a) melhora do nível de vida do ser humano, ao permitir conhecer as alterações genéticas que acarretam anomalias moleculares capazes de deteriorar o funcionamento das células; b) permite uma administração individualizada de medicamentos, feita de acordo com a alteração genética e com a anomalia molecular constatada, sendo esta administração de fundamental importância no tratamento de algumas doenças como, por exemplo, o câncer, o mal de Alzheimer e a esquizofrenia. Em contrapartida, os problemas jurídicos suscitados também são inúmeros, tais como os relativos à divulgação dos dados obtidos e que fazem parte da informação genética secundária do ser humano, a proteção da privacidade frente a terceiros nos aspectos concernentes, por exemplo, às relações trabalhistas e às seguradoras, ao dilema sobre revelação de dados genético, ao assessoramento genéticos, ao diagnóstico pré-natal e ao aborto eugênico, entre tantos outros que têm relação com o princípio da dignidade humana. 10 Maria Celeste Cordeiro dos Santos salienta que a chegada da engenharia genética possibilitou a modificação programada do patrimônio genético de uma célula e, portanto, do organismo a que a célula pertence, seja este um organismo monocelular ou pluricelular e, inclusive, até a construção de novas formas de seres vivos. Citando Mantovani afirma que as vantagens potenciais da tecnologia ética residem: “a) sobre o plano industrial e agrícola para produção de alimentos, energias e matérias primas; b) sobre o plano da terapia farmacológica para a produção de proteínas humanas e animais e c) sobre o plano da terapia gênica, cheia de promessas para o tratamento e eliminação de enfermidades devidas a imperfeições genéticas (inclusive o câncer). No entanto ressalta que são grandes os riscos de que “as tecnologias genéticas sejam usadas não com e para o homem, mas contra o homem; e com a exigência cada vez maior, de que surja uma regulamentação jurídica que fixe os limites de sua licitude assim como seus controles.”11 10 11 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Op. cit. p. 36. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro dos. Op. cit. p. 161. 6 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 63 21/8/2008, 10:21 Com efeito, a autora leciona que: Os instrumentos jurídicos são o meio adequado, ainda que não o único, e muitas vezes tampouco o mais eficaz, para regulamentar essas atividades vinculadas ao patrimônio genético. Eles devem garantir que todos os seres humanos se beneficiem dos progressos derivados das investigações sobre o genoma humano e ao mesmo tempo os proteja de suas aplicações desviadas ou não desejáveis.12 Por fim, urge a tomada de medidas, inclusive legislativas, que orientem os cientistas em seu trabalho na seara da biotecnologia para salvaguardar a sobrevivência da espécie humana e o respeito da dignidade do ser humano, evitando sua coisificação, pois como vimos, a biotecnologia poderá lesar alguém ou alterar sua qualidade de ser único e irrepetível e até mesmo modificar seu patrimônio genético, transformando sua identidade e a das gerações presentes e futuras. Tal é a gravidade do assunto, que a Constituição Federal, no art. 225, § 1º, incumbiu o Poder Público de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético. As implicações éticas dos avanços biotecnológicos são conducentes a um paradigma de racionalidade ética contido no art. 1º, III, da Carta Magna, o respeito à dignidade humana, que deve servir de diretriz a todo aplicador do direito, inclusive ao Poder Legislativo. Para Maria Helena Diniz, “O respeito que o ser humano deve a si mesmo é a verdadeira medida da atuação do direito para assegurar a adequação da conduta dos cientistas às pautas axiológicas que realizem e concretizem o fundamento constitucional da dignidade humana, pois, se assim não fosse, transformar-se-ia o homem de sujeito em objeto, de fim em meio, assegurando-se sua destruição e não sua sobrevivência.”13 12 13 Idem, ibidem, p. 74. DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p.385/386. 6 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 64 21/8/2008, 10:21 3. Limites Éticos e Jurídicos de Investigação em Seres Humanos A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, IX, proclama a liberdade da atividade científica como um dos direitos fundamentais, mas isso não significa que ela seja absoluta e não contenha qualquer limitação, pois há outros valores e bens jurídicos reconhecidos constitucionalmente, como a vida, a integridade física e psíquica, a privacidade, etc. Que poderiam ser gravemente afetados pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica. Nesse passo, Maria Helena Diniz ensina que “Nenhuma liberdade de investigação científica poderá ser aceita se colocar em perigo a pessoa humana e sua dignidade. A liberdade científica sofrerá as restrições que foram imprescindíveis para a preservação do ser humano na sua dignidade.”14 Para a autora, os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Assim sendo, “não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna”.15 Mas, qual o significado de dignidade do homem, quando se está diante de uma infinidade de valores em sociedades plurais? Significativamente, por dignidade do homem entende, Maria de Fátima Freire de Sá, ser “‘o maior dos valores’, ou o ‘princípio jurídico supremo’, ou ainda o ‘princípio constitucional supremo’”.16 Foi nesse sentido que a Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade, em seu art. 6º dispõe: “Todos os Estados adotarão medidas tendentes a estender a todos os estratos da população os benefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nos aspectos sociais quanto materiais, das possíveis conseqüências negativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico, inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo Idem, ibidem, p. 7, 8. Idem, ibidem, p. 17. 16 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Biodireito Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 96/97. 14 15 6 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 65 21/8/2008, 10:21 ou do grupo, em particular relativamente ao respeito à vida privada e à proteção da pessoa humana e de sua integridade física e intelectual.” No mesmo passo a Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina, em seu art. 2º prescreve: “os interesses e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado da sociedade ou da ciência”. O Projeto Genoma Humano, por sua própria natureza e em razão de ser a herança da humanidade, envolve muitas questões éticojurídicas, como: a) O Direito à vida, fundamento de todos os demais direitos humanos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A vida humana é amparada juridicamente desde o momento da fecundação natural ou artificial do óvulo pelo espermatozóide (CC, art. 2º, Lei n. 8.974/95 e CP arts. 124 a 128). O direito à vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer, o de continuar vivo e o de subsistência, mediante trabalho honesto (CF, art. 7º) ou prestação de alimentos (CF, arts. 5º, LXVII, e 229), pouco importando que seja idosa (CF, art. 230), nascituro, criança, adolescente (CF, art. 227), portadora de anomalias físicas ou psíquicas (CF, art. 203, IV, 227, § 1º, II), que esteja em coma ou que haja manutenção do estado vital por meio de processo mecânico. O direito à vida deverá ser respeitado ante a prescrição constitucional de sua inviolabilidade absoluta, sob pena de se destruir ou suprimir a própria Constituição Federal, acarretando a ruptura do sistema jurídico. Seria inadmissível qualquer pressão no sentido de uma emenda constitucional relativa à vida humana, como, por exemplo, a referente à legalização do aborto, pois o art. 5º é cláusula pétrea. Por isso, entende Maria de Fátima Freire de Sá que: A liberdade e a dignidade são valores intrínsecos à vida, erigidos à categoria de princípios, de modo que não deve a vida ser considerada bem supremo e absoluto, acima dos dois primeiros valores, sob pena de o amor natural pela vida transformar-se em idolatria. E a conseqüência do culto idólatra à vida é a luta, a todo custo, contra a morte.17 17 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Op. cit. p. 111. 6 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 66 21/8/2008, 10:21 b) O respeito aos direitos e à dignidade humana, pois todos têm direito ao reconhecimento desta, independentemente de seus caracteres genéticos, conforme dispõe a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos nos arts. 2º e 6º, 10, 11, 15, 21 e 24, prescrevendo especialmente que “nenhuma pesquisa relativa ao genoma humano poderá prevalecer sobre a dignidade humana e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, nem mesmo sendo permitidas quaisquer práticas contrárias à dignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos” (arts. 10 e 11). Além disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Gerações Futuras estabelece no art. 3º que é “proibido causar dano, de qualquer maneira que seja, à forma humana de vida, em particular com atos que comprometam de modo irreversível e definitivo a preservação da espécie humana, assim como o genoma e a herança genética da Humanidade, ou tendam a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. No mesmo sentido a Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e a Dignidade do Ser Humano em face da Biologia e da Medicina, subscrita em 1996 por 21 membros do Conselho da Europa, na cidade de Oviedo, capital das Astúrias na Espanha, determina que “Nada pode atropelar a dignidade humana, valor máximo que é. Os interesses do ser humano só não têm prevalência sobre ameaças à saúde e segurança pública, bem como direitos a liberdade dos cidadãos. Engenharia Genética: só será permitida com fins preventivos para diagnóstico e terapia. Jamais poderá alterar o patrimônio genético da descendência”. c) Direito à intimidade genética (preservação da privacidade da informação genética), amparado pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos da Unesco (1997) e pelo Código de Nuremberg (1947). Há de reconhecer-se a existência de um novo âmbito inviolável em cada pessoa, constituído por sua estrutura genética própria dentro da qual resultará ilícita toda a intromissão arbitrária e toda publicidade posterior. O art. 7º da Declaração reza: “se deverá proteger nas condições estipuladas pela lei a confidencialidade dos dados genéticos associados com uma pessoa identificável”. No mesmo sentido o art. 5º esclarece que pesquisas, tratamentos ou diagnósticos que afetem o genoma de uma 6 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 67 21/8/2008, 10:21 pessoa só poderão dar-se após uma rigorosa avaliação prévia dos potenciais riscos e benefícios a serem incorridos, depois de consentimento prévio, livre e informado da pessoa envolvida. A Declaração de Bilbao também assinala: “A intimidade pessoal é patrimônio exclusivo de cada pessoa e deve ser imune a qualquer intromissão. O consentimento informado é requisito indispensável para interferir nela”. Além disso, no novo Código Civil brasileiro, o art. 15 traz a seguinte redação: “Ninguém pode ser constrangido a submeterse, com risco de vida, a tratamento médico, ou intervenção cirúrgica”. Para a professora Maria Helena Diniz: O DNA é a imagem da sua pessoa e representa um tipo especial de propriedade por conter informações diferentes de todos os outros tipos de informação pessoal. Suas imagem científica não deve ser invadida, por mera curiosidade, pois exame e rastreamento genéticos apenas podem ser realizados por razões terapêuticas e com o consenso da pessoa ou de seus familiares.18 d) Direito à liberdade. Na análise genético-preventiva o paciente pode inteirar-se de antemão de sua propensão à enfermidades graves, de revés esta informação, se conhecida por terceiros, pode acarretar a estigmatização social. Em caso de terapia genética, a pessoa deve ser informada dos procedimentos, riscos e probabilidade de cura, devendo assim seu consentimento ser prévio, livre e informado. Urge salientar, ainda, “que deve ser respeitado o direito da pessoa de decidir se será ou não informada dos resultados dos seus exames genéticos e das conseqüências resultantes. Cada pessoa tem, portanto, o direito inalienável de conhecer ou não a informação contida em seus genes”, na lição de Maria Helena Diniz.19 e) Direito à igualdade. O desenvolvimento do Projeto Genoma Humano traz consigo a possibilidade de uma nova forma de discriminação de caráter biológico, baseando-se no código genético, o que fere o princípio da igualdade de todos os homens, presente em todas as sociedades democráticas. Nesse passo, a Convenção para 18 19 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 394/395. Idem, ibidem, p. 393. 6 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 68 21/8/2008, 10:21 a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano, com respeito à aplicação da Biologia e da Medicina, no cap. IV: “genoma humano”, art. 11 expressamente prevê: i) não discriminação, sob pena de ferir o princípio da igualdade constitucional. O desenvolvimento do Projeto Genoma Humano traz consigo a possibilidade de uma nova forma de discriminação de caráter biológico, baseando-se no código genético.20 ii) teste genético indicativo: enquanto sirva para identificar o sujeito como portador de um gene responsável de uma doença ou a descobrir uma predisposição genética a uma doença, podem ser efetuados só com finalidade sanitária, desde que respeite a vida e a integridade e não envolvam riscos, antes tenham em vista a cura, a melhoria das condições de saúde ou a sobrevivência individual. iii) intervenções sobre o genoma humano: aquela capaz de modificar 20 - O Projeto de Lei do Senado Federal 149/97 define crimes resultantes de discriminação genética as seguintes condutas: negar, limitar ou interromper cobertura de plano de saúde com base em informação genética do estipulante ou segurado, assim como estabelecer prêmios diferenciados com base em tal informação; negar, limitar ou interromper cobertura por plano de saúde com base em informação genética do contratante ou beneficiário, assim como estabelecer mensalidades diferenciadas com base em tal informação; recusar, negar ou impedir matrícula, ingresso e permanência de alunos em estabelecimentos de ensino público ou privado; impedir inscrição em concurso público ou qualquer outra forma de recrutamento e seleção pessoal com base em informação genética do postulante; impedir casamento ou convivência familiar e social de pessoas, com base em informação genética das mesmas; divulgar informação genética de uma pessoa, a menos que haja prévia autorização por escrito. - A título de exemplificação, citamos as seguintes situações de discriminação: Na Alemanha foi elaborado “um arquivo de dados” de DNA de todas as pessoas condenadas por homicídio, estupro, agressão sexual, abuso e corrupção de menores. A Inglaterra recentemente anunciou a criação de um banco de dados de DNA para os meramente suspeitos de práticas de crimes. Trata-se de uma forma de controle social, política de exclusão, de discriminação genética, em muitos contextos da vida de relação. Nos Estados Unidos, Terri deveria ser uma história de sucesso científico. Uma falha genética torna-a suscetível a paradas respiratórias. A descoberta pode salvar sua vida, mas fez com que perdesse o emprego. Foi demitida o ano passado porque foi considerada “um risco”. Foi o primeiro caso de discriminação genética dos EUA (Folha de SP, 20.09.2000, p. A-11). Centenas de americanos estão perdendo o emprego ou seguro-saúde por causa dos avanços genéticos. Só em Massachusetts foram relatados 582 casos de pessoas discriminadas por “falhas” em seus genes. Mas o lobby de empresas e seguradoras está impedindo o Congresso de aprovar legislação para impedir o acesso a informações genéticas e o seu uso como critério para contratar e demitir. - Outro fator importante a ser analisado dentro da não-discriminação é a chamada eugenia – ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana. Especialistas afirmam, que em anos próximos, marcadores genéticos para características humanas como altura, peso ou mesmo coordenação motora, tendência musical e habilidade intelectual, poderão estar disponíveis no mercado. Na Índia, por exemplo, milhares de abortos já são realizados somente com base no sexo do feto. Nos Estados Unidos, um alarmante estudo revelou que 10% das mulheres entrevistadas não hesitariam em abortar uma criança propensa à obesidade. No próximo século, as informações reveladas pelo Projeto Genoma permitirão aos médicos selecionar os fetos, produzindo em laboratório um extraordinário número de características físicas e comportamentais. Pela primeira vez na história, os pais decidirão que tipo de criança nascerá. Em outros termos, a eugenia é a manipulação genética que de per se implicaria a possibilidade de os pais escolherem o sexo de seus bebês, troca de genes supostamente defeituosos por outros “sadios”, escolhas de ordem estética, racial que comportaria uma forma de seleção artificial da espécie. 6 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 69 21/8/2008, 10:21 o genoma humano pode ser realizada somente com finalidade preventiva, diagnóstica ou terapêutica, e só se o seu objetivo não for aquele de introduzir qualquer modificação no genoma de qualquer descendente; é o caso, por exemplo, da terapia genética, em que a pessoa deve ser informada dos procedimentos, riscos e probabilidade de cura, devendo assim seu consentimento ser prévio, livre e informado, o que vem de acordo com o art. 7º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 16/12/1966, que traz como fundamento da ética biomédica o princípio do livre consentimento de uma pessoa submetida a um experimento científico ou médico. iv) proibida a criação de embriões humanos com a finalidade de pesquisa: atualmente a França, através da Lei n. 94.653 de julho de 1994, castiga com pena de 20 anos de reclusão, a prática de eugenia dirigida a organização e seleção de pessoas, e com pena de 7 anos de prisão e 700 mil francos de multa, a concepção in vitro de embriões com fins industriais ou comerciais. 4. O atual conceito de intimidade e sua regulação no novo Código Civil. Tradicionalmente, o direito à intimidade foi concebido como o direito do ser humano a manter intacta, desconhecida, incontaminada e inviolada sua zona íntima e familiar. Noutros termos, consiste na faculdade atribuída ao ser humano de manter um âmbito próprio e reservado frente à ação e conhecimento dos demais, considerandose como um direito necessário para desfrutar de uma mínima qualidade de vida. No entanto, em conseqüência das novas tecnologias informáticas e biológicas, impõe-se conceituar a intimidade como sendo a garantia conferida ao ser humano de que ele não será vítima de intromissões ou investigações indesejadas sobre sua vida privada e que tais intromissões não podem ser divulgadas, assim como a garantia de que os dados pessoais do ser humano que se tornem conhecidos por qualquer meio, sejam eles biológicos ou informáticos, não serão propagados indiscretamente. 7 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 70 21/8/2008, 10:21 Portanto, formam parte do conteúdo do direito à intimidade um aspecto corporal e outro não corporal, que se refere às recordações, à imagem, à identidade, aos dados armazenados em registros e computadores, à vida familiar, à vida conjugal e amorosa, às afeições, às comunicações pessoais e ao domicílio. A genética, por sua vez, faz com que seja necessário falar em intimidade genética, que consiste na garantia conferida ao ser humano de determinar as condições de acesso à informação genética. Tal intimidade compreende dois elementos. O primeiro consiste no elemento objetivo, integrado pelo próprio genoma ou por qualquer tecido ou parte do corpo humano em que seja possível encontrar a informação genética, assim como pelo direito de ter acesso às informações contidas no genoma. O segundo elemento, denominado de subjetivo, consiste na autodeterminação informativa, ou seja, na garantia conferida à pessoa investigada de determinar quem e em que condições é possível ceder as informações sobre o genoma. O problema do ponto de vista do direito à intimidade, pode ser resumido nas seguintes perguntas: quem e como informar os dados genéticos obtidos através da técnica de seqüência do genoma humano? Quais os requisitos que devem ser observados na obtenção e transmissão dos dados obtidos? O novo Código Civil tutela a intimidade no capítulo relativo aos direitos de personalidade, protegendo os aspectos não corporais da intimidade nos arts. 16, 17, 18, 19 (que tratam do direito ao nome) e no art. 20 (que trata do direito à imagem), enquanto o aspecto corporal da intimidade se encontra tutelado no art. 21, que faz referência à vida privada como direito inviolável do ser humano, cabendo ao juiz, a requerimento do interessado, adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a este direito. A regulação dispensada pelo novo Código Civil à intimidade é muito escassa e, além dos aspectos clássicos relativos ao nome e à imagem, não enfrenta os problemas suscitados com a clonagem humana, nem tampouco com a repercussão jurídica causada pela determinação das seqüências de bases do DNA. Com efeito, com base na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos Humanos de 1997 e pela Declaração Ibero-latinoamericana sobre ética genética, revisada em Buenos Aires em 1998, 7 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 71 21/8/2008, 10:21 o novo Código Civil poderia ao menos ter lançado as bases gerais para enfrentar o problema relativo às conseqüências jurídicas do Projeto Genoma Humano sobre o direito à intimidade e demais direitos de personalidade.21 Segundo Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira, essas bases legais atinentes à intimidade, que posteriormente poderiam servir para a elaboração de lei que tratasse especificamente da matéria e de outros aspectos relativos à genética, como é o caso da clonagem, podem ser assim resumidas: I) quanto aos princípios gerais, devem ser observados os seguintes: - consentimento prévio livre e informado da pessoa interessada que deve ser considerado em três momentos: a) autorização da pesquisa ou tratamento terapêutico; b) divulgação dos dados obtidos; c) armazenamento desses dados; - privacidade da informação genética e exigência de consentimento expresso para sua revelação a terceiros; - não-utilização de informações genéticas com efeitos discriminatórios. II) quanto aos direitos da pessoa submetida à análise científica ou terapêutica, sobressaem: - o direito à privacidade de cada pessoa com relação à manipulação, ao armazenamento e à difusão da informação genética individual, garantindo-se o não-uso dessas informações para fins diversos dos que motivaram sua coleta; - o direito a ser informado, ou não, dos resultados de teste genético e de suas conseqüências, vez que esse direito é um dos pressupostos necessários ao respeito da vida privada; - o direito à indenização em caso de violação da privacidade e da intimidade, na hipótese de inobservância do dever de confidencialidade e de utilização das informações genéticas com intuito discriminatório. III) quanto aos deveres do profissional envolvido na pesquisa genética: - dever de guardar confidencialidade sobre a informação genética obtida; A Lei n. 8.974/95 (Lei de Biossegurança) estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de Engenharia Genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente, em seu art. 8º, incisos II, III e IV, veda, constituindo crime com pena de detenção ou reclusão variável de acordo com a gravidade do resultado: II – a manipulação genética de células germinais humanas; III – a intervenção em material genético humano “in vivo”, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência; IV – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível. 21 7 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 72 21/8/2008, 10:21 - dever de evitar a propagação indiscreta das informações genéticas, velando sempre para que a apresentação e utilização dos resultados científicos obtidos sejam feitos respeitando a intimidade, a privacidade e o anonimato das pessoas que tiveram seu genoma investigado.22 Quanto à proteção aos princípios da autodeterminação e da intimidade da pessoa examinada, vimos ao estudarmos o direito à intimidade genética que o art. 5º da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos protege a vida privada da pessoa envolvida em pesquisas, tratamentos ou diagnósticos que afetem o genoma humano. Ou seja, refere-se à autonomia privada do paciente, que no momento em que emitir sua decisão, deve estar esclarecido do diagnóstico, do tratamento mais adequado a se implementar e de seus efeitos, positivos e negativos. A decisão deve ser revestida do maior número possível de informações, que devem ser passadas de forma clara e abrangente, avaliando as opções de tratamento, riscos e benefícios. Nos dizeres de Francisco Amaral, autonomia privada é “o princípio pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos”.23 Quanto ao direito à indenização nos casos acima mencionados, refere-se à justiça no uso da informação genética para garantir e proteger os direitos de todos, inclusive de populações vulneráveis, como crianças, deficientes físicos e mentais, índios etc. Todo indivíduo tem direito, segundo a lei internacional e nacional, à justa reparação por danos morais e patrimoniais sofridos em razão de intervenção que tenha afetado seu genoma (art. 8º da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos). Quanto à segurança e a eficácia da medicina genética, Maria Helena Diniz assegura que o projeto de um mapa genético somente poderá ser efetivado por um médico, sendo vedadas a transmissão, a recopilação, o armazenamento e a valoração dos dados genéticos por parte de organismos estatais ou privados. Assim sendo, afirma, “as responsabilidades inerentes às atividades dos pesquisadores, incluindo o cuidado, a cautela, a honestidade intelectual e a integridade na realização de suas pesquisas e ainda na apresentação e utilização de suas descobertas, deverão ser objeto de atenção 22 23 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Op. cit. p. 38. AMARAL, Francisco. Direito Civil Civil: Introdução. RJ:Renovar, 2000, p. 337/338. 7 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 73 21/8/2008, 10:21 especial no quadro das pesquisas com o genoma humano, devido a suas implicações ético-sociais.” 24 Considerações finais Esqueceu o redator do novo Código Civil que a genética é um aspecto real e atual da vida humana e um fenômeno em constante e contínua evolução, razão pela qual se faz necessário estabelecer princípios que permitam a evolução desse fenômeno científico sem que haja agressão ao ser humano em seu bem mais fundamental que é a dignidade, não servindo como justificativa para uma nãoregulação legal de tais princípios a alegação de que ainda é cedo para tentar plasmar critérios definitivos sobre o tema. Deveria, especialmente, ter o legislador atentado para o fato de que o genoma humano é a base fundamental do indivíduo, assim como não se deu conta de que se trata do fundamento para o reconhecimento da dignidade e diversidade intrínseca do ser humano. O que significa que qualquer manipulação indevida do genoma implica uma violação da dignidade do ser humano. Estamos em um momento chave para a humanidade. No futuro conheceremos as origens de nossa espécie, sua maravilhosa variedade, suas relações com todas as criaturas, seu lugar no meio ambiente e sua visão de futuro. É essencial que os cientistas, filósofos, médicos e juristas de hoje sejam capazes de responder às indagações desta nova era com um sentido de justiça global. Ao se defrontar com novos horizontes, o homem deve realizar uma reflexão ética sobre os objetivos a alcançar e as possíveis conseqüências, e nenhum objetivo, por mais benéfico que seja, pode ser obtido através de ofensa ou degradação ao ser humano. Em outras palavras, a intervenção do Direito visa a esclarecer práticas que permaneceram muito tempo alijadas do processo jurídico e que precisam, mais do que nunca, do reconhecimento da ordem jurídica, não só pela garantia que este reconhecimento gera, mas e sobretudo porque legitimadas pelo Direito refletem valores dominantes da sociedade; porque o homem precisa de limites para administrar sua própria liberdade. 24 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 395. 7 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 74 21/8/2008, 10:21 A lei se revela um instrumento suficientemente maleável para regular as questões relativas à bioética. Ela deve interferir rapidamente, se ajustar às novas conquistas tecnológicas e, sendo objeto de largo debate parlamentar, vem imantada da legitimidade capaz de garantir a validade de sua inserção no meio social concretizando o escopo último de qualquer empreendimento do sujeito de Direito: o resgate da dignidade humana. Referências Bibliográficas ALVES, Eliete Gonçalves Rodrigues. Exame de DNA: papel da Polícia Jurídica n. 14, 31 de maio Civil do Distrito Federal. Revista Prática Jurídica. de 2003, p. 24-26. CONTI, Matilde Carone Slaibi. Ética e Direito na manipulação do Genoma Humano. Humano RJ: Forense, 2001. DINIZ, Maria Helena.. O estado atual do Biodireito Biodireito. SP: Saraiva, 2002. OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. Genoma Humano, Direito à Intimidade e o Novo Código Civil. Revista Prática Jurídica Jurídica. n. 15, 30 de junho de 2003, p. 34-39. SAUWEN, Regina Fiuza. O Direito “in vitro”: da Bioética ao Biodireito. RJ: Lumen Juris, 2000. SÁ, Maria de Fátima Freire de. (Coord.) Biodireito Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (Org.). Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios. SP: RT, 2001. __________. O Equilíbrio de um Pêndulo. Bioética e a Lei: Implicações médico-legais. SP: Icone, 1998. SCHOLZE, Simone Henriqueta Cossetin. Propriedade intelectual e biotecnologia: aspectos jurídicos e éticos. Notícia do Direito Brasileiro Brasileiro, Universidade de Brasília, n. 5, 1º semestre de 1998, p. 91-112. 7 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 75 21/8/2008, 10:21 7 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 76 21/8/2008, 10:21 O EFEITO VINCULANTE DA DECISÃO DE MÉRITO DA ADC E A ANÁLISE DO CASO CONCRETO COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL Adilson Josemar Puhl1 Resumo: O presente trabalho se propõe a abordar, resumidamente, a inafastabilidade das peculiaridades do caso concreto mesmo havendo decisão de mérito em Ação Declaratória de Constitucionalidade-ADC com efeito vinculante e eficácia erga-omnes. Palavras-Chave: Direito Constitucional - Princípios - Direitos 1.1 A Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) A Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) está prevista em nível constitucional nos artigos 101, § 2º, e 103, § 4º e em sede infraconstitucional, na Lei 9.868, de 10.11.1999 (LADIN) que estabeleceu a regulamentação pormenorizada do instituto. Através da ADC existe um processo de verdadeira confirmação direta da Constituição Federal através da realização de um conjunto de atos no sentido de afastar incertezas quanto à constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.2 Um dos pontos que mais chamam a atenção sobre a ADC, são justamente os efeitos da decisão final de mérito reconhecendo a constitucionalidade do ato impugnado. A decisão final da ADC proferida pelo Supremo Tribunal Federal, produz “eficácia contra todos e efeito vinculante, relativo aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.3 A norma infra-constitucional reguladora da ADC (Lei n. 9.868, de 10.11.1999), em seu art. 28, é clara em tornar a decisão final de eficácia erga omnes e com efeitos vinculantes, nos seguintes termos: A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração Mestre em Direito Constitucional pela UnB/UNIGRAN. Professor das disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito, História do Direito, Direito Civil I, Prática de Processo do Trabalho, Direito Internacional no Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN. Advogado do Município de Dourados(MS). 2 QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito Constitucional Constitucional. 8. ed. Goiás: IEPC, 1998, p. 128. 3 Constituição da República Federativa do Brasil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 73, art. 101, § 2º. 1 7 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 77 21/8/2008, 10:21 parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública Federal, estadual e municipal.4 Em outras palavras, conforme a legislação antes vista, a sentença tem eficácia subjetiva erga omnes “e a força dessa declaração submetem-se, obrigatoriamente, as autoridades que têm por atribuição aplicar a norma questionada, vale dizer, os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública”.5 Os termos da lei que emprestam efeitos erga omnes e vinculante às decisões finais de mérito sobre a ADC, têm levado há alguns equívocos na forma de interpretar os mencionados dispositivos, a tal ponto de se negar mesmo à aplicação do princípio da proporcionalidade aos casos concretos. Isto é assim porque uma vez declarada 6 a constitucionalidade do ato normativo, este goza da presunção juiris tantum de conformidade com a Constituição Federal não sendo possível, pelos efeitos determinados em lei a sua afastabilidade em certo caso concreto. Sobre a interpretação do que seja efeito erga omnes e vinculante, o Supremo Tribunal Federal, nas palavras do Ministro Moreira Alves, no julgamento da ADC n. 01, assim se manifestou: “a eficácia contra todos ou erga omnes já significa que todos os juízes e tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, estão vinculados ao pronunciamento judicial.7 No mesmo julgamento, ainda ponderou o relator sobre as conseqüências do efeito vinculante: a) se os demais órgãos do Poder Judiciário, nos casos sob seu julgamento, não respeitarem a decisão prolatada nessa ação, a parte prejudicada poderá valer-se do instituto da reclamação para o Supremo Tribunal Federal, a fim de que este garanta a autoridade dessa decisão; e b) essa decisão (e isso se restringe ao dispositivo dela, não abrangendo – como sucede na Alemanha – os seus fundamentos determinantes) alcança os atos normativos de igual conteúdo daquele que deu origem a ela mas que não foi seu objeto, para o fim de, independentemente de nova Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 1020. ZAVASCKI, Teori A. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional constitucional. São Paulo: RT, 2001, p. 51. 6 A expressão declara é utilizada em consonância com a decisão da ADC que tem natureza declaratória conforme consolidado pensamento doutrinário: “A sentença que afirma a constitucionalidade da norma tem natureza declaratória: ela declara que a norma é compatível com a Constituição e, conseqüentemente, é válida. Da mesma forma, é declaratória a sentença que afirma a inconstitucionalidade.” Ibidem Ibidem, p. 48. 7 STF, ADC n. 1, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 157:377. 4 5 7 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 78 21/8/2008, 10:21 ação, serem tidos por constitucionais ou inconstitucionais, adstrita essa eficácia aos atos normativos emanados dos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo, uma vez que ela não alcança os atos emanados do Poder Legislativo.8 Efetivamente, dentro do sistema adotado entre nós, o efeito vinculante da decisão confere uma força obrigatória e qualificada, com conseqüência processual de assegurar, em caso de recalcitrância dos destinatários, a utilização do meio executivo chamado de reclamação.9 Portanto, no julgamento do caso concreto o juiz na análise do mérito do pedido, “deverá ser compatível com a sentença da ação proferida na ação de controle concentrado”.10 Interessante notar que mesmo sendo um processo de natureza objetiva,11 a interpretação lançada para concluir pela constitucionalidade da medida se torna vinculante para os demais órgãos judiciais e para as autoridades administrativas em geral.12 autopurificação Trata-se de um verdadeiro fenômeno da “autopurificação autopurificação”13do direito, onde se busca sua total purificação ou eliminação das antinomias internas. Por isso mesmo, tudo aquilo que estiver contrário a Constituição deve ser eliminado do mundo jurídico ou, mesmo o ato normativo que estiver sob suspeita de inconstitucional, deve ser declarado constitucional, se assim o for, dissipando as dúvidas e reinstalando a paz normativa. 1.2. O Supremo Tribunal Federal e a Analise do Caso Concreto Em interessante acórdão relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, restou claro que o juízo de razoabilidade deve ser feito caso a caso, levandose em conta os bens juridicamente tutelados e em conflito no caso concreto. Veja-se a ementa do acórdão: STF, ADC n. 1, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 157:382. Teori Albino ZAVASCKI, Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional constitucional, p. 52. Ibidem Ibidem, p. 56. 11 Ibidem Ibidem, p. 43. 12 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 615. 13 DWORKIN, Ronald. O império do direito direito. Trad. Jeffersdon Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 477. Afirma o professor de Harvard que o fenômeno de autopurificação jamais se encerra, nunca atingindo a pureza final, mas sempre aprimorando-se com relação à geração anterior. 8 9 10 7 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 79 21/8/2008, 10:21 Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Medida Provisória 173, de 18.03.90, que veda a concessão de medida liminar em ações ordinárias e cautelares decorrentes das Medidas Provisórias números 151, 154, 158, 160, 161, 162, 164, 165, 167 e 168: indeferimento do pedido de suspensão cautelar da vigência do diploma impugnado: razões dos votos vencedores. Sentido da inovadora alusão constitucional à plenitude da garantia da jurisdição contra a ameaça a direito: ênfase à função preventiva da jurisdição na qual se insere a função cautelar e, quando necessário, o poder de cautela liminar. Implicações da plenitude da jurisdição cautelar, enquanto instrumento de proteção ao processo e de salvaguarda da plenitude das funções do Poder Judiciário. Admissibilidade, não obstante, de condições e limitações legais ao poder cautelar do juiz. A tutela cautelar e o risco do constrangimento precipitado a direitos da parte contrária, com violação da garantia do devido processo legal. Conseqüente necessidade de controle da razoabilidade das leis restritivas do poder cautelar. Antecedentes legislativos de vedação de liminares de determinado conteúdo. Critério de razoabilidade das restrições, a partir do caráter essencialmente provisório de todo provimento cautelar, liminar ou não. Generalidade, diversidade e imprecisão dos limites do âmbito de vedação de liminar da MP 173, que, se lhe podem vir, afinal, a comprometer a validade, dificultam demarcar, em tese, no juízo de deliberação sobre o pedido de sua suspensão cautelar, até onde são razoáveis as proibições nela impostas, enquanto contenção ao abuso do poder cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a conseqüente afronta à plenitude da jurisdição ao Poder Judiciário. Indeferimento da suspensão liminar da MP 173, que não prejudica, segundo o relator do acórdão, o exame judicial em cada caso concreto de constitucionalidade, incluída a razoabilidade, da aplicação da norma proibitiva da liminar a Considerações, em diversos votos, dos riscos da suspensão cautelar da medida impugnada. O que se observa no transcrito acórdão é que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade do exame judicial dos bens em jogo, tendo em vista cada caso concreto, mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade. Realmente, ao assumir que as restrições ao poder cautelar devem ser analisadas conforme um critério de razoabilidade e 8 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 80 21/8/2008, 10:21 que os termos da MP 173, por si só, não poderiam evitar “o exame judicial em cada caso concreto da constitucionalidade, incluída a razoabilidade”, reconheceu o STF, que não obstante existir norma a incidir concretamente sobre o caso, esta pode ser afastada tendo por base a análise do caso concreto, ou seja, dos bens e valores em conflito. Outra decisão que chama atenção é a proferida na ADIn n. 319/ DF, onde o STF, mediante os argumentos colhidos pelo relator Ministro Moreira Alves, “não fez mais do que ponderar e relativizar o peso dos princípios concorrentes e, diante das circunstâncias do caso”. 14 Ora, em casos concretos semelhantes, mesmo considerando que os mesmos valores estejam em jogo, dependendo das circunstâncias do caso, outra poderia ser a decisão do Tribunal. Deste modo, se e quando, diante de um outro caso, aqueles mesmos princípios voltarem a entrar em conflito, “novamente a depender das circunstâncias o tribunal poderá levar a cabo um balanceamento diverso, atribuindo maior peso ao princípio que, na situação anterior, recebera menor ponderação”.15 Nota-se assim, a importância que a análise individual de cada caso concreto, em especial dos bens em colisão, tem para a realização da justiça. Mesmo considerando casos concretos com os mesmos valores em colisão, dependendo da ponderação que as circunstâncias mereçam na busca da justiça, as decisões poderão ser diferentes, preponderando em um outro valor sobreposto no caso similar. Reforça ainda a necessidade de se analisar cada caso concreto, com suas particularidades, até mesmo para afastar a aplicação de ato normativo considerado constitucional pelo STF, em sede de ADC, que não existe uma hierarquia fixa, e abstrata dos diversos valores constitucionalmente protegidos 16 , o que ressalta a sensibilidade do Magistrado para ponderar os valores que necessitem de maior proteção no caso concreto e afasta a possibilidade de se criar uma regra absoluta e abstrata de ponderação. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional constitucional. Porto Alegre: Fabris, 1997, p. 83. Ibidem, p. 83. Ibidem Inocêncio Mártires COELHO, Interpretação constitucional constitucional, p. 84. Ressalta, contudo o autor que apenas o valor dignidade da pessoa humana está em situação hierarquicamente superior ao demais. 14 15 16 8 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 81 21/8/2008, 10:21 1.3. A Ponderação não é Subjetiva ou Arbitrária Como ensina o professor J.J. GOMES CANOTILHO: [...] o balanceamento de bens situa-se jusante da interpretação. A actividade interpretativa começa por uma reconstrução e qualificação dos interesses ou bens conflituantes procurando, em seguida, atribuir um sentido aos textos normativos e aplicar. Por sua vez, a ponderação visa elaborar critérios de ordenação para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para o conflito de bens.17 Alguns autores tributam a ponderação de bens do caso concreto uma verdadeira técnica de livre interpretação, vez que “o peso dado a cada valor jurídico variaria segundo uma pauta sem qualquer apoio em princípios metodológicos, o que conduziria a resultados não-controláveis”18. Neste sentido FRIEDRICH MÜLLER assevera que a ponderação oferece “um padrão lingüístico cômodo” que conduz a “juízos de valor subjetivos de uma justiça do caso, a qual poderia ser, nos quadros do Estado de Direito, subseqüentemente generalizada.”19 Como corolário desta crítica muitos concluíram que só seria legítima uma ponderação de valores quando levada a efeito pelo legislador, porque, afinal, ele é o poder democrático que sintetiza o pluralismo político, tendo a Constituição lhe atribuído a responsabilidade de concretização dos conteúdos de liberdade e justiça. Assim, o intérprete só poderia negar a validade a uma lei ou restringir seu sentido se na ponderação expressa na lei houvesse o conflito com a vontade do constituinte.20 Contudo, o exercício de decidir leva em conta a ponderação dos bens que estão em conflito, o que é elemento primeiro para aplicação da norma positiva. A ponderação que deve ser realizada não se perde no campo inconsistente do subjetivismo. Muito pelo contrário, como ensina SUZANA DE TOLEDO BARROS: eoria da Constituição CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e TTeoria Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1110. 18 BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. fundamentais 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 170-171. 19 Apud Suzana de Toledo BARROS, op. cit. cit., p. 171. 20 Suzana de Toledo BARROS, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais fundamentais, p. 171. 17 8 2 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 82 21/8/2008, 10:21 [...] a questão da ponderação radica na necessidade de dar a esse procedimento um caráter racional e, portanto, controlável. Quando o intérprete pondera bens em caso de conflito entre direitos fundamentais, ele estabelece uma precedência de um sobre o outro, isto é, atribui um peso maior a um deles. Se se pode estabelecer uma fundamentação para esse resultado, elimina-se o irracionalismo subjetivo e passa-se para o racionalismo objetivo.21 A questão da ponderação está afeita a criar-se um método racional, capaz de tornar está num procedimento controlável, pois [...] quando o intérprete pondera os bens em caso de conflito entre direitos fundamentais, ele estabelece uma precedência de um sobre o outro, isto, é, atribui um peso maior a um deles Se se pode estabelecer uma fundamentação para esse resultado, elimina-se o irracionalismo subjetivo e passa-se para o racionalismo objetivo.22 No sentido de tornar a ponderação racional, mediante a fundamentação justificadora da precedência de um bem sobre o outro, o professor ROBERT ALEXY citando uma decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão, onde havia o conflito entre dois valores: de um lado a proteção à personalidade (P1) e a proteção à liberdade de informação (P2), suponde-se a precedência de P1. Neste caso, a eventual repetição do informe televisivo onde se mostra a ocorrência de um delito grave, que via de conseqüência, poderia prejudicar na ressocialização do autor (C2 – condição que incide sobre os valore s em questão). Assim, no caso concreto, sob a condição proposta (C2), deve prevalecer o bem P1. Frise-se que na escolha entre os bens em jogo utilização a metáfora P, ou seja, peso. Pode-se elaborar a seguinte fórmula para representar o caso: (1) (P1 P P2) C2 De acuerdo con la ley de colisión, de aquí se sigue la regla: (2) C2 – R, que, bajo la condición C2, ordena la consecuencia jurídica de P1 (R).23 Ibidem, p. 172. Ibidem, p. 172. Ibidem 23 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales Fundamentales. Centro de Estúdios Constitucionales: Madrid, 1997, p.158. 21 22 8 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 83 21/8/2008, 10:21 Assim, no conflito entre os valores dá-se prevalência àquele, que P). Para evitar dúvidas sobre o no caso concreto, alcança maior peso (P que significa a relação de pesos utilizada para determinar a prevalência dos bens, afirma ROBERT ALEXY que existe uma relação de precedência condicionada: o princípio P1 tem, em um caso concreto, um maior peso que o princípio oposto P2, quando existem razões suficientes para que P1 preceda a P2, sob as condições C dadas no caso concreto. Tem-se assim, a formulação de uma lei de colisão, essencial para a solução racional dos conflitos observáveis nos casos concretos. Necessariamente, a ponderação deve ser fundamentada racionalmente, in verbis: Una poderación es racional si el enunciado de preferencia al que conduce puede ser fundamentado racionalmente. De esta manera, el problema de la racionalidad de la ponderación conduce a la cuestión de la posibilidad de la fundamentación racional de enunciados que establecen preferencias condicionadas entre valores o principios opuestos.24 Sem dúvida, “a questão da ponderação é, portanto, uma questão de contrabilidade do resultado restritivo que se adote para um direito em conflito, exsurgindo desse procedimento a importância do princípio da proporcionalidade”.25 1.4. Forma de Atuação do Princípio da Proporcionalidade no Caso Concreto Na realidade, o princípio da proporcionalidade, pode e deve ser observado sempre da analise dos casos concretos, mesmo onde se discute ato normativo já declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Como antes visto, o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade encontra no Estado de Direito sua principal morada e não pode ser cerceado sumariamente pela decisão da ADC. Não existe incompatibilidade entre os efeitos da ADC e a aplicação do Juiz, em um caso concreto do princípio da proporcionalidade, até Ibidem Ibidem, p.158. Suzana de Toledo BARROS, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais fundamentais, p. 172. 24 25 8 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 84 21/8/2008, 10:21 mesmo quando isto acarrete o afastamento da norma já declarada constitucional pelo STF. O Magistrado quando analisa o caso concreto submetido a julgamento, leva em conta os valores ou princípios26 que estão em jogo na causa, ponderando eventualmente aquele que deve se sobrepor ao outro, principalmente levando-se em consideração os direitos fundamentais encartados na Constituição Federal. Assim, as colisões entre os valores e bens em conflito num caso concreto são absolutamente inevitáveis e fogem ao controle de qualquer decisão judicial proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo ensina BARROS “as colisões podem decorrer, ainda, do confronto entre direitos individuais e bens jurídicos da comunidade, como a saúde pública, segurança pública, defesa nacional”.27 Resta que a ponderação dos bens em jogo é elemento inevitável para o deslinde da causa, principalmente quando todos são, igualmente, dentro do Estado de Direito, titulares de direitos fundamentais.28 De fato, de acordo com SOUZA NETO “vários valores podem incidir sobre um caso concreto, e induzir a decisão em sentidos completamente divergentes”,29 cabendo ao Julgador analisar cada um destes valores e ponderar sobe aquele que melhor fará justiça ao caso. Neste sentido cinge-se a atividade concreta dos tribunais e juízes que é alcançar justamente a adesão, através da utilização de argumentos convincentes e razoáveis, da comunidade jurídica e dos jurisdicionados em geral,30 o que certamente só será conquistado com a avaliação precisa e prudente dos bens juridicamente tutelados e em conflito no caso concreto. Demonstrando a necessidade de se avaliar os bens jurídicos em jogo, tendo em vista os valores que cada um representa, adverte o professor JÜRGEN HABERMAS: 26 Segundo entende Cláudio Pereira de Souza Neto, a idéia de valores é intercambiável com a de princípios: “Para a tópica, a idéia de valores é intercambiável com a de princípios”. No mesmo sentido o autor ainda explica que na teoria de Robert ALEXY, a única diferença entre valores e princípios consiste em que os primeiros possuem uma estrutura axiológica, enquanto os segundos possuem uma estrutura deontológica. No entanto, isso não implica que as reflexões relativas aos valores não se apliquem também aos princípios e vice-versa. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática Prática. Rio de Janeiro: Renovar, Fundamentales, 2002, p. 141 e 251, nota 482. No mesmo sentido Robert ALEXY, Teoria de los Derechos Fundamentales constitucional 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. p. 138; e ainda BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 256, identifica a “jurisprudência de valores” com a “jurisprudência dos princípios”. 27 O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais fundamentais, p. 169. 28 Robert ALEXY, Teoria de los Derechos Fundamentales Fundamentales, p.121. 29 Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática Prática, p. 250. 30 Ibidem Ibidem, p. 141. 8 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 85 21/8/2008, 10:21 Normas e princípios possuem uma força de justificação maior do que a de valores, uma vez que podem pretender, além de uma especial dignidade de preferência, uma obrigatoriedade geral, devido ao seu sentido deontológico de validade; valores têm que ser inseridos, caso a caso, numa ordem transitiva de valores. [...]31 E complementa o mestre alemão que “a partir do momento em que direitos individuais são transformados em bens e valores, passam a concorrer em pé de igualdade, tentando conseguir a primazia em cada caso singular”.32 Assim, os direitos fundamentais expressos em valores, concorrem em cada caso concreto cada qual objetivando sua supremacia em relação ao concorrente, onde o aplicador da norma deve encontrar mediante a ponderação destes, aquele que, no caso, mais se aproxima da idéia de justiça. Com feito, neste particular de se analisar os valores em discussão em cada caso concreto, exsurge a aplicação do princípio da proporcionalidade para conformar os bens em colisão. Tem-se ainda, que a Constituição Federal brasileira está permeada por pontos de vista que refletem uma pluralidade de modelos, especialmente o estado social e o liberal, exsurgindo princípios como a livre iniciativa, a garantia da propriedade priva, a livre concorrência e, simultaneamente, a função social da propriedade, a valorização do trabalho, a defesa do consumidor, a redução das desigualdades regionais, a busca do pleno emprego e a justiça social, além de outros. Além do que, hoje muitos direitos sociais não são exercitáveis apenas contra o Estado, mas sim, cada vez mais os conflitos de interesses se voltam entre os cidadãos,33 cada um tendo um bem protegido pela ordem jurídica, cabendo ao Poder Judiciário, harmonizar este conflito, mediante a ponderação objetiva de qual interesse está a prevalecer no caso concreto. Para SOUZA NETO, “diante da alegada impossibilidade de realização integral de todos os princípios, caberia ao magistrado fundamentar seu argumento naquele que se mostrasse mais razoável, mas conveniente, mais justo no caso concreto”.34 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. I, 1997, p. 321. 32 Ibidem Ibidem, p. 321. 33 FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça justiça. Malheiros: São Paulo, 1998, p. 131. 34 Cláudio Pereira de SOUZA NETO, Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática Prática, p. 163. 31 8 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 86 21/8/2008, 10:21 Como observa o mestre cearense PAULO BONAVIDES, essas situações concretas de conflito entre bens jurídicos, “igualmente habilitados a uma proteção do ordenamento jurídico se acham em antinomias, têm revelado a importância do uso do princípio da proporcionalidade”.35 Neste passo, “o princípio da proporcionalidade é um princípio concretizador da idéia de justiça presente no princípio do Estado de Direito”,36 aplicado diretamente no caso concreto, tendo em vista os bens em conflito. Uma vez declarada a constitucionalidade de determinado ato normativo pela via abstrata, o juiz ou tribunal que analisam o caso concreto envolvendo a aplicação do mesmo ato normativo estão por força da Constituição Federal obrigados a respeitar e se conformar com essa decisão. Contudo, como antes dito, isto não impede a aplicação do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade no caso concreto, muito pelo contrário, assim determina a prudência e bom senso. Neste sentido, SUZANA DE TOLEDO BARROS, ao comentar sobre a decisão do STF que declarou a constitucionalidade da MP 173, aponta que: A corte reconheceu a possibilidade de abuso, mesmo quando, em abstrato, se tem por constitucional a medida legal restritiva. Esta colocação do Min. Sepúlveda Pertence evidencia que um juízo de proporcionalidade em abstrato não exclui um juízo de proporcionalidade da lei em face da situação concreta.37 E continua a autora dizendo que em atenção ao princípio da proporcionalidade, “o juiz, deparando com a norma legal impeditiva da tutela necessária a um certo direito pode vir a afastá-la. Deve, porém, esgotar a possibilidade de uma interpretação conforme a Constituição, norteada também pelo princípio da 38 proporcionalidade”. A análise dos bens em conflito no caso concreto é extremamente importante para a confecção de uma decisão mais justa. Realmente, através de uma decisão de constitucionalidade tomada em ADC, não Paulo BONAVIDES, Curso de direito constitucional constitucional, p. 387. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade proporcionalidade. Porto Alegra: Livraria do Advogado, 2001, p. 160. 37 O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais fundamentais, p. 118-119. 38 Ibidem Ibidem, p. 119. Nota de rodapé 115. 35 36 8 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 87 21/8/2008, 10:21 existe a preciosa verificação da relação concreta e individual que a matéria merece.39 Justamente no intuito de analisar o caso concreto com suas peculiaridades que fogem a discussão na ADC, é que o magistrado não pode se esquivar de sobrepesar os bens em conflito e se eventualmente considerar que, em especial naquele caso concreto, a decisão de constitucionalidade do STF poderá levar a manifesta injustiça, deverá afastar a incidência ato normativo. Neste momento, deve-se alertar que não trata de desrespeito ao efeito vinculante e erga omnes da decisão do STF, mas sim, mera analise dos bens envolvidos no caso concreto, o que foge de longe a decisão de constitucionalidade na ADC. O Magistrado ao afastar a incidência do ato declarado constitucional pelo STF, não o declara inconstitucional ou invalido, como ocorre no controle difuso de constitucionalidade,40 mas sim que, tendo em vista as peculiaridades dos bens em colisão, a aplicação do ato normativo fica prejudica. Assim, em verdade, o Julgador não discute a constitucionalidade ou não do ato normativo, mas sim a pertinência de sua aplicação, tendo em vista o conflito real de bens. Na via de controle difusa, abstrata ou de exceção, “o que é outorgado ao interessado é obter a declaração de inconstitucionalidade somente para o efeito de isentá-lo, no caso concreto, do cumprimento da lei ou ato, produzido em desacordo com a Lei maior”.41 Nesta via incidental é necessária a analise de constitucionalidade, sem a qual não ocorrerá o deslinde do caso concreto.42 Situação totalmente inversa ocorre na analise dos bens em conflito e que pode levar o Julgador a afastar o ato normativo declarado constitucional. O que está em discussão é a pertinência ou não da aplicação do ato normativo, sem qualquer analise sobre sua constitucionalidade, eis que está já está confirmada pela decisão do STF. O que se busca é verificar quais os valores ou bens em conflito e qual deles está a se sobrepor ao outro, com a aplicação do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, que tem por vocação própria ser aplicado ao conflito de valores no caso concreto. Neste particular o Teori Albino ZAVASCKI, Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional constitucional, p. 43. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 25. 41 Alexandre MORAES, Direito Constitucional Constitucional, p. 565. 42 Ibidem Ibidem, p. 566. 39 40 8 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 88 21/8/2008, 10:21 professor PAULO BONAVIDES ensina sobre o princípio da proporcionalidade: “princípio cuja vocação se move sobretudo no sentido de compatibilizar a consideração das realidades não captadas pelo formalismo jurídico, ou por este marginalizadas, com as necessidades atualizadoras de um Direito Constitucional projetado sobre a vida concreta e dotado da mais larga esfera possível de incidência – fora, portanto, das regiões teóricas, puramente formais e abstratas.” 43 Destarte, a analisa abstrata de constitucionalidade feita em sede de ADC pelo STF não pode de modo algum impedir que o Magistrado avalie os bens em conflito no caso real e concreto, aplicando sempre a proporcionalidade, para chegar a conclusão de qual seja a medida mais justa. Se concluir que a aplicação do ato normativo causaria um desequilíbrio na ponderação dos bens conflituosos, pode e deve afastar a norma ou ato normativo. Repise-se, o Julgador neste procedimento, não declara inconstitucional ou constitucional o ato, como ocorre na via difusa, mas apenas discute a pertinência da aplicação tendo em vista a situação real. É importante frisar que a escolha de um dos valores em detrimento do outro não segue a regra do tudo ou nada. O valor que é tido como não preponderando no caso concreto continua existindo normalmente na ordem jurídica, não perde de modo algum sua validade e proteção. Para SOUZA NETO “decisões que impliquem afirmativas do tipo ‘este valor é nulo’ não possuem a menor coerência São efetivamente decisões impossíveis. As decisões que se fundam em valores devem necessariamente ser acompanhadas de boas razões justificados das escolhas feitas”.44 Na discussão sobre a importância de se ponderar os valores em jogo no caso concreto, tem ensejado a manifestação de alguns magistrados. Neste sentido, EVILÁSIO CORREIA DE ARAÚJO FILHO, comentando sobre o efeito vinculante em Ação Direta de Constitucionalidade, da Lei n. 9.494/97, que disciplinou a aplicação da tutela antecipada contra Fazenda Pública, assim argumenta: Em outras palavras, quero dizer o seguinte: entre o direito constitucional à vida, ao alimento, ao sustento, à dignidade humana... e o direito 43 44 Curso de direito constitucional constitucional, p. 395. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática Prática, p. 250. 8 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 89 21/8/2008, 10:21 instrumentalizado, de índole processual, que impossibilita a concessão do instituto processual (antecipação de tutela) em favor do servidor que não recebe seu vencimento, qual deveria ser a opção do Juiz??45 Ora, o Magistrado deve sem dúvida respeitar a decisão de constitucionalidade proferida em sede de ADC, mas deve analisar os bens em conflito no caso concreto e ponderar sobre os efeitos negativos e positivos que a escolha de um ou outro podem trazer para aos interessados e para a própria ordem jurídica vigente. Escolhendo um ou outro bem em conflito, fundamentará a preferência condicionada, mediante uma ponderação racionalmente fundamentada. Assim, por exemplo, pode-se citar a criação de uma norma que limite o consumo de energia elétrica tendo em vista a necessidade imperiosa do país. Tal norma é declarada constitucional mediante decisão final de mérito proferida em ADC pelo STF. Contudo, determinado Juiz Federal analisa processo judicial onde se requer o aumento de cotas de consumo para especificada residência, em virtude da existência de pessoa que depende para sobreviver de aparelho ligado continuamente na rede de energia. Neste caso em analise, o Magistrado se vê perante dois bens juridicamente tutelados pela ordem constitucional. De um lado, o interesse coletivo que exige de todos uma parcela de sacrifício para alcançar-se a metas do racionamento e evitar efeitos mais desastrosos ao país. Em outro vértice, o particular que tem direito à vida, à integridade física e que depende do provimento jurisdicional para se manter. O que deve fazer o Juiz? Cumprir o efeito vinculante da decisão da ADC? A resposta é afirmativa, cumprir o efeito vinculante da ADC, mas analisar os bens que estão em conflito no caso concreto e ponderar justificadamente qual deles deve prevalecer. Utilizando a fórmula proposta por ALEXY,46 pode-se montar o seguinte enunciado: P1 = interesse coletivo P2 = direito à vida do particular C2= condições que incidem sobre o caso concreto (morte do particular caso não concedida a tutela jurisdicional favorável). 45 ARAÚJO FILHO, Evilásio Correia de. Paradigma de uma efetividade possível – A positivação da proporcionalidade. tutela antecipada na lei processual civil e o princípio constitucional da proporcionalidade Coletânea doutrinária, editora Plenum, Folio Infobase, Coordenação Cláudio Gilberto Aguiar Höer e Heleno Tregnago Saraiva. 46 Teoria de los Derechos Fundamentales Fundamentales, p.121. 9 0 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 90 21/8/2008, 10:21 Assim, sobre as condições C2, deve prevalecer o bem vida assegurado ao particular. Em assim procedendo o Magistrado, estará mantendo intocado o efeito vinculante das decisões da ADC, contudo, estará deixando de aplicar o ato considerado constitucional, não por divergir da decisão do STF, mas sim porque os bens em conflito no caso concreto exigem uma analise mais detalhada do que o simples cumprimento de uma fórmula pré-estabelecida longe das condição de cada caso concreto. Nesta fundamentação levada a efeito para justificar a preferência condicionada, pode o julgador citar alguma regra correspondente, fazer referência ao legislador constituinte e as conseqüências negativas de uma outra alternativa possível, aos consensos dogmáticos e decisões anteriores.47 Não existe desrespeito ao efeito vinculante, repise-se, pelo contrário, o Magistrado ao afastar a aplicação do ato normativo declarado constitucional pelo STF, o faz para apaziguar os bens em conflito. Neste processo não declara a inconstitucionalidade do ato, como ocorre no controle difuso de constitucionalidade, mas tão-somente se atem as condições sobre as quais os valore em jogo devem ser analisados. Sem embargos, o efeito vinculante das decisões declaratórias de constitucionalidade pela via da ADC não é incompatível com a aplicação do princípio da proporcionalidade e, conseqüente, afastamento do ato normativo naquele caso concreto. Assinala o professor PAULO BOANVIDES que: [...] o critério da proporcionalidade é tópico, volve-se para a justiça do caso concreto ou particular, se aparenta consideravelmente com a eqüidade e é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais que, após submeterem o caso a reflexões prós e contras (Abwägung), a fim de averiguar se na relação entre meios e fins não houve excesso (Übermassverbot), concretizam assim a necessidade do ato decisório de correção...48 Ou uma decisão que harmonize os valores em conflito. Não se trata de exigir dos Magistrados uma atuação como aquela teorizada por RONALD DWORKIN na figura do Juiz Hercules que sempre encontraria apenas um caminho a seguir, ou seja, uma resposta à 47 48 Ibidem Ibidem, p.159. Curso de direito constitucional, p. 387. 9 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 91 21/8/2008, 10:21 ponderação feita no conflito de valores, observado no caso concreto.49 Até mesmo porque “quando afirma a necessidade de um juiz com poderes divinos para engendrar tal teoria, parece reconhecer a impossibilidade de realizá-la concretamente”.50 O que se visa, é demonstrar que a função de julgar o caso concreto só pode ser levada a efeito com sucesso se todos os valores em conflito forem suficientemente ponderados, e a escolha de um deles for racionalmente justificada, de tal modo que as fórmulas confeccionadas longe do calor dos acontecimentos individuais não sejam óbices a realização da justiça. Referências Bibliográficas QUEIROZ, Ari Ferreira de. Direito Constitucional Constitucional. 8. ed. Goiás: IEPC, 1998. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. Código de PProcesso rocesso Civil e legislação processual em vigor vigor.. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. ZAVASCKI, Teori A. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional constitucional. São Paulo: RT, 2001. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001. DWORKIN, Ronald. O império do direito direito. Trad. Jeffersdon Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional constitucional. Porto Alegre: Fabris, 1997. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. BARROS, Suzana de Toledo. 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FARIA, José Eduardo (Org.). direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 1998. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade proporcionalidade. Porto Alegra: Livraria do Advogado, 2001. ARAÚJO FILHO, Evilásio Correia de. Paradigma de uma efetividade possível – A positivação da tutela antecipada na lei processual civil e o princípio constitucional da proporcionalidade proporcionalidade. Coletânea doutrinária, editora Plenum, Folio Infobase, Coordenação Cláudio Gilberto Aguiar Höer e Heleno Tregnago Saraiva. 9 3 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 93 21/8/2008, 10:21 9 4 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 94 21/8/2008, 10:21 O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE Alexandre Sivolella Peixoto1, Taísa Queiroz2 E Fábio Carvalho Mendes3 RESUMO: O artigo aborda o princípio da razoabilidade, a sua importância atual a partir de influências de países como os Estados Unidos, que o reconhece expressamente através das emendas nºs 05 e 14 à Constituição Federal, e de teóricos, como Robert Alexy e a plausibilidade de sua aplicação na interpretação constitucional. PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional, princípios, razoabilidade. 1. Introdução Na história do direito, a primeira variante do “due process” de que se tem notícia teve evidência processual com expressa rejeição de qualquer sentido conotativo-substantivo que permitisse ao Judiciário examinar o caráter arbitrário ou injusto da lei ou ato normativo. Tratava-se este princípio, primeiramente, de uma garantia direcionada para a regularidade do processo penal, depois desdobrada e aplicada também aos processos civil e administrativo. Todavia, com o tempo, tornou-se impossível a aplicação única do princípio da razoabilidade como forma de conceder às partes o direito de regularidade processual, sendo que em diversas situações surgiam indagações acerca da razoabilidade dos fins e dos meios utilizados pelo legislador. Aqui ocorrera o surgimento do “substantive due process”, qual seja, a elevação do Poder Judiciário, quando se lhe conferiu a prerrogativa de observar e argüir a compatibilidade dos atos praticados pelo Poder Público, realizando um estudo de adequação dos meios e a legitimidade dos fins que se buscavam. Advogado civilista militante na comarca de Dourados-MS e pós-graduando em Direito Processual Civil pela Unigran-Dourados/MS. 2 Advogada civilista militante na comarca de Dourados-MS e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Unigran-Dourados/MS. 3 Advogado militante na Comarca de Fátima do Sul e pós-graduando em Direito Processual Civil pela Unigran-Dourados/MS. 1 9 5 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 95 21/8/2008, 10:21 No direito pátrio, pode-se afirmar que o princípio da razoabilidade foi incorporado pela Constituição da República Federativa do Brasil, quando se assegurou a todos o direito ao devido processo legal (art. 5º, LIV), também conhecido como due process of law. Destarte, a aplicação desse princípio, de maneira especial por parte dos magistrados, tão profícua para o exercício da jurisdição, tem-se revestido de certo acanhamento, apesar do crescente número de julgados que, muitas vezes sem o saber, acabam utilizando a proporcionalidade para emitir um juízo de valor a respeito de determinado caso. O mestre Paulo Bonavides 4, em sua obra “Curso de Direito Constitucional” aduz que existem princípios mais fáceis de entender do que definir, sendo que a proporcionalidade se enquadraria nesta situação. Desta forma, a proporcionalidade, em sentido mais amplo, constitui apenas uma regra fundamental a que todos devem obedecer. Em uma acepção mais restrita, consistiria na presunção de existência de uma relação, adequada entre os vários fins determinados e os meios com que são levados à termo. Então, pode-se concluir que toda vez que os meios destinados a realizar determinado fim não forem adequados, ou ainda, quando houver desproporção entre eles, houve a inocorrência ou desobediência ao princípio da proporcionalidade. A doutrina mais moderna já define o princípio da razoabilidade como sendo um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para estimar se estes atos estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: “a justiça”. Celso R. Bastos5 define a razoabilidade como sendo um [...] princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Nesta acepção, portanto, percebe-se que o princípio da razoabilidade possui os mesmos fundamentos constitucionais dos princípios da legalidade e da finalidade (art. 5º, inciso II, 37 e 84, e inciso LXIX). 4 5 Constitucional 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 9 6 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 96 21/8/2008, 10:21 Esta definição supramencionada apenas evidencia o prestígio de que desfruta o princípio da razoabilidade nos ordenamentos jurídicos modernos, sendo de basilar seriedade a sua aplicação para as situações em que existe manifesta discordância entre os fins almejados pelo Estado e os meios por ele empregados para tal. Em muitos casos é complexa e difícil a aferição desses pré-requisitos na atividade do Poder Público, de maneira especial em se considerando a aplicação do princípio da legalidade, podendo ocorrer colisão de princípios. Para Dworkin, a colisão de princípios resolve-se pelo ato de sopesar cada um deles, em conformidade com as particularidades do caso concreto. O campo de aplicação do princípio da razoabilidade é muito extenso podendo ser invocado não somente para garantir a harmonia da atividade processual, como também, e inclusive, para o controle dos atos do Poder Público em geral. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello6, no que tange ao princípio da razoabilidade no campo do direito administrativo, pondera que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Saliente-se, portanto, que nas situações onde o ato praticado não se revestir dos meios adequados e indispensáveis para alcançar os fins precípuos não haverá a razoabilidade e que o ato legislativo será eivado de inconstitucionalidade, da mesma forma que o ato administrativo será jurisdicionalmente invalidável, quando ausentes esses requisitos. Neste sentido, pode-se afirmar categoricamente que foi com Alexy que se aprendeu a aferir, de forma correta, a ocorrência e a aplicação do princípio da razoabilidade, tanto com relação aos atos da Administração Pública como aos atos do Poder Legislativo. Conforme prelecionou este mesmo autor, deve-se utilizar da “máxima da proporcionalidade” para a aferição da razoabilidade do ato do Poder Público, seja ele executivo, administrativo ou legislativo. Destarte, a “máxima da proporcionalidade”, segundo Alexy, revestese de três condições, cuja averiguação é prejudicial se faltar um desses 6 Curso de Direito Administrativo Administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 9 7 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 97 21/8/2008, 10:21 requisitos. São eles: necessidade (meio mais benéfico ou menos oneroso para o cidadão), adequação e proporcionalidade em sentido estrito. A aferição da razoabilidade do ato legislativo será verificada, primeiramente, pela adequação dos meios e fins utilizados. Assim, estando ausente um destes pressupostos, não será mais necessário indagar a presença dos demais elementos pois a razoabilidade não estará verificada no ato praticado. Contudo, caso se averigúe que o ato emanado pelo Poder Público tenha apenas se utilizado dos meios apropriados para os fins almejados não bastará, pois também será importante verificar pela sua necessidade, qual seja, se foi efetivado pelo meio menos gravoso, através do princípio da menor ingerência possível. Nesse sentido, em sendo concebível que o ato poderia ser praticado em nível de menor onerosidade ou ingerência na vida do cidadão, também aí haverá a falta da razoabilidade, o que o sujeita à adequada anulação ou declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário. Por derradeiro, uma vez verificada a ocorrência dos dois requisitos acima expostos (necessidade e adequação), deverá o operador do direito verificar a ocorrência do terceiro requisito, qual seja, a “proporcionalidade em sentido estrito”, que é a justificativa do ato administrativo, de maneira especial quando se abordar a norma restritiva de direitos. 2. Da Razoabilidade e Seu Histórico. Os barões ingleses consolidaram em 15 de junho de 1215 a Carta Magna, contando para tanto, com a ajuda do arcebispo Canterbury que auxiliou junto ao rei João “Sem Terra”. Foi a Carta Magna um dos primeiros documentos de restrição do poder soberano, documento este que é reconhecido como um dos grandes antecedentes do constitucionalismo, tornando-se uma expressão inicial do ímpeto que mais tarde moveria revolucionários, tanto em território francês como na Inglaterra, coibindo abusos e privilégios do soberano e garantido direitos individuais dos nobres detentores de fortuna e propriedades face ao Poder Público. 9 8 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 98 21/8/2008, 10:21 O artigo 39 da Carta Magna Inglesa, ou seja, a cláusula do law of the lands, instituiu que “[...] nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele, senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com as leis do país.” Pontua Carlos Roberto Siqueira Castro 7 que os barões ingleses possuíam direitos que apenas poderiam ser limitados observando a lei do país, dessa forma, os direitos naturais elencados somente poderiam sofrer limitações segundo os procedimentos e por força do direito comumente aceito e sedimentado nos precedentes judiciais, ou seja, pelos princípios e costumes jurídicos consagrados pela common law”. Deu-se a consagração da Carta Magna através das emendas 5 e 14 da Constituição norte-americana, tornando-se a cláusula do due process of law uma das principais fontes da expressiva jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, porém antes mesmo do reconhecimento do devido processo legal, através dessas emendas, o princípio do law of the land era utilizado para combater o arbítrio governamental. Em razão de o constitucionalismo europeu, sobretudo da França e da Inglaterra, prever um controle rígido sobre o Poder Legislativo, rompeu o constitucionalismo americano com a tradição; o documento inglês era pragmático e de propósitos concretos, enquanto que as declarações de direito norte-americanas encontraram suas bases no liberalismo econômico e no individualismo, fazendo, ainda, distinção entre liberdades econômicas e não econômicas. Há que se destacar que entre os direito não econômicos incluem-se a liberdade de expressão, de religião, privacidade, e ainda, direito de participação política. É através da emenda n.º 5 que, finalmente, o princípio do due process of law reveste-se de tutela constitucional, e as emendas n.º 13, 14 e 15 são editadas após o término da guerra civil e a abolição da escravatura, com a finalidade de garantir a liberdade civil. Assim, o princípio do due process of law deixou de ser apenas SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1989. 8 9 9 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 99 21/8/2008, 10:21 uma garantia processual, tornando-se uma forma de restringir os desmandos do Poder Público, marcando dessa forma, um impulso de ascensão do Judiciário, abrindo-se um amplo espaço de exame de mérito dos atos do Poder Público, pautando-se nos parâmetros de razoabilidade e racionalidade. 3. Conceito de Razoabilidade Muitas são as implicações que decorrem do princípio da razoabilidade, pois que se pode retirar de tal prescrição variados ditames, como a determinação de que ninguém será julgado senão por juízo competente e pré-constituído, além de aplicarem-se ao referido enunciado os brocardos latinos de nullum crimen sine lege, ou de nulla poena sine lege. O princípio da razoabilidade, independente das interpretações que lhe sejam atribuídas, regula na Carta Constitucional indubitavelmente o princípio expresso do devido processo legal, inspirando-se de forma notória na redação encontrada no constitucionalismo norte-americano. Dessa forma, o princípio do devido processo legal, juntamente com a separação dos poderes, constitui-se em fundamento essencial do regime democrático e sua abrangência ultrapassa a condição de simples garantia processual, tornou-se ainda objeto de intenso estudo doutrinário e jurisprudencial, e, tanto a doutrina quanto a jurisprudência utilizam-se do princípio da razoabilidade na busca de garantir direitos ao cidadão em face de eventual arbítrio do poder estatal. O princípio do devido processo legal, aliado à separação dos poderes, constitui-se em fundamento essencial do regime democrático, uma vez que sua abrangência ultrapassa a condição de simples garantia processual. Incorporado à Constituição norte-americana de 1787, através das emendas 5ª e 14, o referido princípio tornou-se prontamente objeto constante de intenso trabalho doutrinário e jurisprudencial, principalmente no que tange à interpretação dada pela Suprema Corte americana, pois se hoje o mesmo pôde alcançar o reconhecimento e o prestígio que lhe são devidos, tal se deve ao enunciado flexível sobre o qual foi esculpido e às possibilidades abertas pelo case system, emblema maior do sistema da Common Law. 100 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 100 21/8/2008, 10:21 4. A Razoabilidade e a Constituição de 1988. A Constituição Federal de 1988, não traz, em seu bojo, de forma expressa, o princípio da razoabilidade. Contudo, sua existência não pode ser ignorada, vez que é possível auferí-lo implicitamente em vários dispositivos, assim como no próprio histórico de elaboração da Carta Magna. No que concerne ao seu caráter processual, encontra-se inequivocamente atrelado ao princípio do devido processo legal, cujo dispositivo legal está inserido no capítulo destinado aos direitos e garantias individuais (art. 5o, LIV), mas nele não se exaure. No que se refere à processualística penal, p. ex., é da máxima “nullum crimen, nulla poena, sine lege” que se origina o disposto inciso XXXIX do mesmo artigo. A ausência de disposição expressa, no entanto, é muito mais sentida enquanto princípio conformador de direito material. Asseverado fato deve-se, em parte, ao apego desmedido ao Princípio da Separação dos Poderes consagrado pela Lei Maior. Lembra Carlos Roberto Siqueira Castro, na obra já referida, que a previsão do Princípio da Razoabilidade constou dos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1988, embora não incorporada ao texto final. Era a redação do artigo 44: “A administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, exigindo-se, como condição de validade dos atos administrativos, a motivação suficiente e, como requisito de sua legitimidade, a razoabilidade.” Apesar da não inclusão do princípio quando da redação final do dispositivo, inegável é que a razoabilidade integra, inquestionavelmente, o ordenamento jurídico nacional, sendo imperativo sua observância para o exercício da função legiferante do Estado, bem como para a atuação do Poder Executivo, sendo que, sua inobservância, é passível de impugnação pelo Poder Judiciário, sempre que perquirido, por inconstitucionalidade destas medidas. No entender de José Afonso da Silva8, o princípio da “proporcionalidade razoável” está, enquanto princípio constitucional geral e explícito de tributação, traduzido na norma que impede a tributação com efeitos de 8 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1997 101 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 101 21/8/2008, 10:21 confisco (artigo 150, IV). Aludida norma impede que o Poder Público possa tributar o patrimônio particular de modo a impossibilitar sua manutenção ou mesmo inviabilizar o uso a que se destine, ressalvadas as exceções expressamente previstas. Atualmente, a alusão ao princípio da razoabilidade já se tornou freqüente nos julgados de nossas cortes máximas, sendo que sua aceitação torna-se clarividente quando da análise de decisões como a proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade relatada pelo eminente Ministro do STF Ilmar Galvão: “Ato normativo que, ao erigir em pressuposto de benefício assistencial não o estado de necessidade dos beneficiários, mas sim as circunstâncias em que foram eles gerados, contraria o princípio da razoabilidade, consagrado no mencionado dispositivo constitucional. Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade da Lei sob enfoque”.9 Outrossim, faz-se importante ressaltar que não obstante os julgados oriundos dos tribunais em voga invoquem termos “razoabilidade” e “proporcionalidade” como sinônimos, entendimento esse que contraria a doutrina predominante, sua eficácia objetiva não é afetada, vez que a alusão a tais princípios, sempre tem estado em consonância com seu objetivo primário, qual seja, garantir direitos ao cidadão face ao eventual arbítrio do Estado. 5. Considerações Finais A partir do momento em que o homem optou por viver em uma sociedade estatal, concordou em submeter suas condutas a um conjunto de normas, as quais encontram-se escalonadas sistematicamente, de tal forma que, em determinado ordenamento jurídico, não possuam elas o mesmo valor, havendo portanto uma hierarquia no sistema. Tendo o Constituinte adotado essa forma de organização, as normas integrantes do nosso ordenamento encontram-se dispostas segundo uma hierarquia e formando uma espécie de pirâmide, na qual a Constituição ocupa o seu ponto mais alto, o ápice da pirâmide legal, fazendo com 9 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIN 2019 – MS – TP. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJU 21.06.2002. p. 00095. 102 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 102 21/8/2008, 10:21 que todas as demais normas a ela se subordinem. Ante a origem constitucional do princípio da razoabilidade, portanto, sua observância pelos Poderes Estatais apresenta-se imperiosa, constituindo uma diretriz de senso comum. Nesse sentido, cumpre ao aplicador do direito, para aferir a razoabilidade da medida posta à sua apreciação, indagar: Qual o meio mais eficaz para levar a cabo o fim almejado baseando-se no interesse público? A meio eleito é indispensável para conservação do fim, ou existem outras opções menos danosas? Há ponderação na relação existente entre os meios e o fim, ou seja, entre os ônus imposto e os bônus conseguido? Destarte, ante o princípio em comento, deverá o operador jurídico ser capaz de perceber a realidade em função dos valores que a constituem, i.e., exercer o juízo de verossimilhança com moderação em relação aos valores que prestigiam a realidade social. Em outras palavras, deverá o operador jurídico ser capaz de identificar a lógica do razoável num dado caso concreto. 6. Referências Bibliográficas BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. Administrativo Constitucional 13. ed. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999. Constitucional 4. ed. São BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Paulo: Saraiva, 1978. Esquematizado 7. ed. São LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Paulo: Método, 2004. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001. ositivo SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional PPositivo ositivo. São Paulo: Malheiros, 1997 rocesso LLegal egal e a SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. O Devido PProcesso Razoabilidade das Leis na Nova Constituição no Brasil Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1989. 103 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 103 21/8/2008, 10:21 104 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 104 21/8/2008, 10:21 IMPLICAÇÕES CONSTITUCIONAIS, PROCESSUAIS E SOCIAIS DA PRISÃO CIVIL DO ALIMENTANTE INADIMPLENTE1 Ailton Stropa Garcia2 RESUMO RESUMO: Decidido pelo STF que os tratados internacionais sobre direitos fundamentais ingressam na ordem jurídica nacional como lei federal, entende-se que o debate acadêmico sobre a impossibilidade da prisão do depositário infiel em virtude do Pacto de San José da Costa Rica perdeu seu efeito prático. Por essa razão, resolveu-se estudar a questão inversa, se é oportuno que nossa ordem jurídica, como naquele Tratado, coloque como exceção a prisão civil do devedor de alimentos. Depois de analisar a evolução histórica, a doutrina, a jurisprudência e as normas nacionais e internacionais que tratam dos institutos da obrigação alimentar e da prisão civil, assim como os aspectos constitucionais, processuais e sociais da questão, alinha-se uma série de motivos que, no mínimo, justificam a imediata alteração da legislação ordinária para restringir a prisão civil a casos muito excepcionais. Para tanto, apresenta-se uma proposta de alteração legislativa com normas eficazes, que satisfaçam rapidamente o credor e atinjam apenas o patrimônio do devedor, reservando-se a prisão civil para o último e extremo recurso. Palavras alavras-- Chave Chave: Prisão Civil - Direitos Humanos - Processo 1. A Prisão Civil da Antiguidade aos Nossos Dias A história nos mostra que a segregação do indivíduo, antes de se constituir como pena, no século XVI, era apenas meio para a realização do castigo ou da execução pessoal do devedor, mediante escravização, trabalhos forçados, sacrifícios físicos e morte. A primeira manifestação escrita sobre a prisão civil consta do Código de Hamurabi, no ano 1.694 antes de Cristo. Aparece, em O presente texto serviu de roteiro para exposição oral do autor em defesa de sua Dissertação de Mestrado junto à UnB – Universidade de Brasília, no dia 10/02/2003, quando foi aprovado. O texto na sua integra compõe o acervo de dissertações da UNB e encontra-se também na biblioteca da UNIGRAN. O Presidente da Banca e Orientador foi o Professor Doutor Frederico Henrique Viegas de Lima. Os demais integrantes da Banca foram os Professores Doutores Antonio de Moura Borges e Alejandra Leonor Pascual. 2 O autor, Juiz de Direito aposentado, agora atua como advogado em Dourados, MS, onde leciona, na UNIGRAN – Universidade da Grande Dourados e na ESMAGIS – Escola Superior da Magistratura. 1 105 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 105 21/8/2008, 10:21 seguida, no Código de Manu, entre 1300 a 800 a.C. Embora não a regulasse, a Thora dá notícias de sua existência (séculos XII a V a.C.). No “Direito” Grego, pela Lei de Drácon, de 621 a.C e até as Leis de Sólon, de 594 a 593 a.C., o não pagamento de dívida tornava o devedor propriedade do credor, com direito de tirar-lhe a vida. No Direito Romano, surge o nexum que, segundo Mitteis (1901), era o ato solene de autopenhora do próprio devedor, executado através da per manus iniectionem, que compunha a legis actiones (754 a 149 a.C.). Esta, tinha profunda relação com a Lei das XII Tábuas (450 a.C.) e só foi completamente abolida no ano 17 a.C., com a Lex Júlia Iudiciorum Privatorum, do Imperador César Otaviano Augusto, embora no ano 326 a.C., com o surgimento da Lex Poetelia Papíria, permitiu-se que o devedor trabalhasse para o credor sem perder a liberdade. Por volta do ano 160 d.C., as Institutas de Gaio voltaram a autorizar o exercício do direito do credor sobre a pessoa do devedor. Na Idade Média, na fase Longobarda do processo Romanobarbárico (568 a 774 d.C.), era permitido ao credor manter o devedor em cárcere até a quitação da dívida. Durante o feudalismo (séculos IX a XI), com os ordálios, impunham-se os castigos físicos, as mutilações e a morte. Na Baixa Idade Média (séculos XI a XIII), com a redescoberta do Corpus iuris civilis e a volta do Direito Romano, embora o Digesto não indicasse a execução pessoal por dívida, surgiu, na França, em 1200, a contrainte par corps, restrita, em 1274, aos débitos fiscais. Filipe o Belo, em 1303, instituiu o princípio de que eram os bens e não os corpos que respondiam pelas dívidas, embora os falidos e insolventes tivessem seus retratos expostos com a estampa do mal nas faces. Na Idade Moderna, a prisão civil, instituída na França em 1563 (Ordenança de Moulin), foi restringida, por Luiz XIV, em 1667, aos débitos comerciais e aos estrangeiros só sendo abolida em 1793, após a Revolução de 1789. O Código de Napoleão, em 1804, a incluiu. Porém, a partir de 1867, ela ficou restrita a casos raros, que não incluem débito de natureza alimentar. Na Inglaterra, os exageros do instituto levantaram a sociedade e mobilizaram figuras literárias da época, como Shakespeare, com o seu O Mercador de Veneza. Abolida parcialmente pela Rainha Vitória, em 1869, a prisão civil, naquele país, ficou restrita a alguns poucos casos, como a insolvência fraudulenta. Na Itália, o arresto personali per debiti caiu em desuso e foi suprimido 106 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 106 21/8/2008, 10:21 em 1877, deixando de integrar o Código Civil de 1942. Na Alemanha e na Áustria, a prisão civil foi abolida em 1868 e, na Bélgica, em 1871. Na Argentina, após ter sido estabelecida, em 1863, para as dívidas civis e comerciais, ficou restrita, a partir de 1872, aos casos de falência ou insolvência civil resultantes de dolo ou fraude do devedor. Inicialmente aplicada nos Estados Unidos da América por influência inglesa, a prisão civil foi, ali, ilegitimada desde antes de 1776, embora haja precedentes de prisões de devedores maliciosos ou desobedientes à decisões da Corte. Em Portugal, a prisão civil por dívida sempre esteve bem definida nas Ordenações Afonsinas (século XV); Manoelinas (século XVI) e Filipinas (século XVII), só podendo ser requerida após sentença e execução dos bens do devedor. Lei de 1774 a restringiu aos devedores insolventes que tivessem agido mediante fraude. No Brasil, onde as ordenações Filipinas vigeram até 1890, introduziu-se, em 1832, a prisão civil do inadimplente condenado a multa em processo criminal. Depois, em 1850, em função do Direito Comercial, novos casos foram introduzidos, até a promulgação do Código Civil, de 1916, que a trouxe no artigo 1.287 e do Código de Processo Civil, de 1.939, que a trouxe no artigo 369. Sobre ela, silenciaram as Constituições de 1822, 1891 e 1937, mas a proibiu a de 1934, sem ressalvas. As Constituições de 1946, 1967 e 1969, fizeram a proibição, mas excetuaram a prisão civil do depositário infiel e do inadimplente de obrigação alimentar, na forma da lei. Finalmente, a de 1988, mantendo as exceções, apenas exigiu, quanto ao responsável pela obrigação alimentícia, que o inadimplemento fosse voluntário e inescusável. Diante dessa evolução histórica do instituto da prisão civil por dívida, podemos concluir que a tendência mundial do Direito foi comprometer apenas o patrimônio do devedor por suas dívidas. Hoje, a regra são os bens. A exceção é o corpo. Assim, em muitos países onde, excepcionalmente, ela se mantém, já se parte para sua substituição por formas de coerção que se circunscrevam ao patrimônio do devedor inadimplente ou do depositário infiel, pois não há dúvida que a prisão civil se constitui numa agressão ao indivíduo, numa ofensa ao princípio da liberdade e, não só por isso, mas a partir da análise de fatos concretos, numa verdadeira incongruência do Estado Democrático de Direito. 107 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 107 21/8/2008, 10:21 2. Breve Histórico da Obrigação Alimentícia e da Prisão Civil Dela Decorrente A obrigação alimentícia entre parentes não era contemplada na antiguidade. Na Grécia antiga também não. Ali, o abandono de crianças era prática legal, não se sabe se comum. Em Roma, até a República (ano 27 a.C.), os dependentes não podiam deduzir qualquer pretensão de ordem patrimonial contra o pater famílias, chefe militar, sacerdote e juiz de todos. A partir do século II d.C. foi que constituições imperiais romanas passaram a obrigar os pais a prover as necessidades dos filhos e vice-versa, como se vê das Regras de Ulpiano. Os princípios do cristianismo, penetrando lentamente nos costumes e no direito, exerceram papel preponderante no desenvolvimento dos deveres familiares, que foram, depois, ressaltados no Código de Direito Canônico (1917). Na Baixa Idade Média, por exemplo, a influência cristã tornou o poder paternal menos rígido que na época do Direito Romano ou Germânico, preservando o vínculo sangüíneo e a prática da solidariedade familiar. No final da Idade Média já era dever dos pais manter e educar os filhos legítimos, direito que só foi conquistado pelos filhos naturais e adulterinos, na razão de 1/3 do que fosse devido àqueles, a partir da Revolução Francesa. Em Portugal, nas Ordenações Filipinas, já se dispunha sobre o sustento dos órfãos, mas foi com o Assento de 09 de abril de 1772 que os filhos e toda a ordem de descendente podiam ajuizar ação objetivando alimentos contra os pais e, na sua falta, demais ascendentes, que tinham ação contra os filhos e outros descendentes. No Brasil, a matéria foi tratada na Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas, de 1858, até sua regulação no Código Civil de 1916, com a possibilidade de prisão posteriormente prevista no Código de Processo Civil, de 1939, sem prejuízo da configuração do crime de abandono material, que surge no Código Penal, de 1940. Em 1941, surge a Lei de Proteção à Família. Em 1949, o direito de pleitear alimentos passa a ser conferido ao filho ilegítimo. A Lei de Alimentos surge em 1968. Finalmente, depois da Lei do Divórcio tratar 108 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 108 21/8/2008, 10:21 do tema em 1977, a matéria é adequada no Código Civil de 2002. A história nos mostra, pois, que o Estado foi, gradativamente, normatizando o dever dos maridos e pais alimentarem, na jurídica acepção do termo, a título de mútua assistência e durante a sociedade conjugal, as esposas e, em razão do pátrio poder e de sua incapacidade, os filhos. Essa normatização, contemplando os princípios da solidariedade familiar e da dignidade da pessoa humana, estendeu-se aos parentes entre si e aos cônjuges, após dissolvida a sociedade conjugal, extinguindo discriminações quanto à filiação, tipo de união e sexo. A prisão civil pelo inadimplemento dessa obrigação, porém, é triste herança do passado, quando o corpo do devedor respondia por suas dívidas e foi introduzida na legislação eminentemente brasileira pelo Código de Processo Civil de 1939, sendo, ao lado da do depositário infiel, uma das exceções do instituto, proibido pelas Cartas Magnas de 1946, 1967, 1969 e 1988, esta última apenas inovando ao exigir que o inadimplemento seja voluntário e inescusável. 3. A Obrigação Alimentícia na Legislação Atual Diante dessa realidade e da atual legislação infraconstitucional, especialmente do Código Civil de 2002, podemos alinhar as seguintes observações: 1. Os alimentos constituem “efeito patrimonial do Direito de Família”, não mais simples “relação de parentesco”. Em razão disso, são devidos pelos parentes, cônjuges e companheiros entre si, sob três fundamentos: a) poder familiar, de que decorre o dever dos pais em relação aos filhos incapazes; b) dever de mútua assistência, entre cônjuges e companheiros durante o casamento e a união estável e c) preservação da dignidade da pessoa humana e solidariedade familiar, entre parentes e entre ex-cônjuges e ex-companheiros, sob as condições estabelecidas em lei. 2. Há duas modalidades de alimentos: os “necessários” e os “indispensáveis à sobrevivência”. 109 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 109 21/8/2008, 10:21 3. O alimentante deve atender as necessidades de educação do alimentando, ainda que ele já tenha atingido a maioridade. 4. Em hipótese alguma pode haver renúncia aos alimentos, apenas dispensa momentânea. 5. A obrigação, se objeto de demanda em curso, convenção ou decisão judicial antes do falecimento e desde que este tenha se dado após a entrada em vigor do CC/2002, transmite-se aos herdeiros do de cujus até as forças da herança. Para os falecimentos na vigência do CC/1916, vale o artigo 23 da Lei do Divórcio, que confirma o entendimento do artigo 402 daquele Código, de que só se transmite a responsabilidade pelas prestações vencidas e até as forças da herança. 6. A obrigação alimentar extingue-se pela morte do alimentando, pelo desaparecimento de um de seus pressupostos de constituição ou se as forças da herança não a suportarem, o que ocorrer primeiro. 7. O novo casamento do credor sem comunicação ao devedor e a continuidade do recebimento das prestações, é a única possibilidade de repetição do indébito de prestações alimentícias. 8. Se o alimentante constitui nova família e, a partir daí, tem outros filhos, há que se obedecer ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos, que o artigo 227, § 6º, da Constituição Federal proclama, podendo haver redução do encargo. Tal princípio deve, da mesma forma, ser invocado para sustentar o direito de revisão quando, tendo o alimentante constituído nova família, melhorou sua renda, já que é justo que o filho que com ele não viva tenha a mesma qualidade de vida que o filho que se encontra sob seu teto. 9. Não há nada que impeça as partes de, sem a participação do Poder Judiciário, chegarem a um denominador comum e celebrarem um acordo de alimentos, que só poderá ser executado na forma do Capítulo IV, Título II, do Código de Processo Civil e não impede que o alimentando, ignorando-o, ajuíze ação de alimentos, quando a matéria será discutida em toda sua extensão. 10. Para os fins do artigo 1.710 do CC/2002, recomenda-se o uso do INPC - Índice Nacional de Preços ao Consumidor, de responsabilidade do IBGE. 11. Salvo no caso da transmissibilidade da obrigação alimentar e do prazo de prescrição (artigo 2028), o CC/2002, no que tange aos alimentos, de regra retroage às situações anteriormente constituídas, 110 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 110 21/8/2008, 10:21 porque essas normas são de ordem pública e se referem ao estado das pessoas. 12. A ausência de prova pré constituída da união estável não é impedimento para o ajuizamento da ação de alimentos pelo rito especial da Lei Federal no. 5.478/68, sendo plenamente possível que essa prova seja feita no curso da ação. 13. A prisão civil não é pena, porém meio de coagir o alimentante inadimplente ao pagamento de uma dívida, só podendo ser cumprida em locais adequados e não em estabelecimentos penais destinados a criminosos. Assim, debalde o que decidiu o STF, é de ser admitida a prisão albergue ou domiciliar, até com permissão de trabalho e obrigação de depósito de parte das verbas com ele obtidas. Mormente quando se sabe que os próprios criminosos têm benefícios, como progressão de regime prisional, suspensão condicional de pena, transação penal e penas restritivas de direitos. 14. Constitui bis in idem a renovação da prisão civil relativamente ao mesmo período de débito. 15. Não cabe a decretação da prisão civil no caso de alimentos decorrentes de responsabilidade civil. 16. Não cabe a decretação da prisão civil quando o débito inclui honorários e despesas processuais. 17. O prazo máximo da prisão civil por alimentos é de sessenta dias. 4. Debate Que Deve Ser Proposto Em Função Do Pacto De San José da Costa Rica Nosso estudo, porém, não ficou apenas nas observações acima feitas. Avançamos para uma outra análise. Conforme se sabe, as Declarações Americana, de 1776 e Francesa, de 1789, que deram o primeiro passo para a proteção dos direitos humanos de primeira geração (vida, propriedade, liberdade e segurança); a fundação da Cruz Vermelha e, a partir da Convenção de Genebra, em 1864, o surgimento Direito Internacional Humanitário; a fundação, em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, da Liga das Nações e da OIT – Organização Mundial do Trabalho; a fundação, 111 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 111 21/8/2008, 10:21 em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, da ONU – Organização das Nações Unidas e o julgamento de Nuremberg (1945-1946), foram os acontecimentos mundiais que propiciaram a consolidação dos Direitos Humanos, com a Declaração Universal de 1948. Cientes de que, caso existisse uma normatividade internacional que garantisse os direitos fundamentais de primeira geração, as conseqüências da Segunda Guerra Mundial e os horrores do Holocausto não teriam alcançado as proporções que todos nós conhecemos, os países envolvidos continuaram no seu propósito e editaram, em 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, completando a Bill of Human Rights (Carta Internacional dos Direitos Humanos). Hoje, são inúmeras as Convenções Internacionais que cuidam dos Direitos Humanos, interessando ao nosso estudo a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, recepcionada pelo Brasil em 1992, que proíbe a detenção por dívida, apenas a excepcionando no caso de inadimplemento de obrigação alimentar. O grande debate nacional que os juristas travaram em função desse documento, limitou-se a discutir qual a posição hierárquica dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos diante do ordenamento jurídico nacional, face ao disposto nos §§ 1º e 2º, do artigo 5º, da Carta Magna de 1988. Tal ocorreu porque, ao contrário de nossa Carta Magna, a Convenção não excepciona o depositário infiel da proibição de prisão civil. Dessa forma, caso aquele Tratado se incorporasse automaticamente e com status de norma constitucional ao nosso Direito, a prisão do depositário infiel não mais seria possível. A Doutrina assim entendeu, enumerando os seguintes principais argumentos: 1. Nossa República se constitui em Estado Democrático de Direito e tem a dignidade da pessoa humana como fundamento (artigo 1º, I, da CF) 2. O princípio da prevalência dos direitos humanos rege a relação do Brasil com os outros países (artigo 4º, II, da CF). 3. As normas definidoras dos direitos e garantias individuais têm aplicação imediata no país (§ 1º, do artigo 5º, da CF). 4. Os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros constantes de Tratados Internacionais de que o Brasil faça parte 112 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 112 21/8/2008, 10:21 (§ 1º, do artigo 5º, da CF) 5. A partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou um sistema misto, que abarca, para os Tratados Internacionais tradicionais, a teoria dualista e, para os Tratados sobre Direitos Humanos, a teoria monista. 6. Os direitos e garantias individuais constantes dos tratados constituem cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, da CF). 7. Como os tratados não têm poder de suprimir os direitos e garantias individuais, o princípio da supremacia da Constituição não é abalado. 8. Deve-se sempre aplicar a lei mais benéfica ao cidadão, princípio que supera o da supremacia constitucional, prevalecendo artigo 7º, item 7, do Pacto de San José da Costa Rica sobre o inciso LXVII, do artigo 5º, da CF. 9. Ao se interpretar assim a Constituição prestigia-se o princípio da máxima efetividade e ela se torna mais respeitada, democrática e próxima do povo. Essa interpretação está consoante com o pensamento do mundo globalizado atual. Tem sido tendência dos países, em virtude da formação dos vários blocos políticos e econômicos e da necessidade de uma legislação que abarque cada vez mais todos os Estados envolvidos, situar hierarquicamente os Tratados Internacionais acima da própria Constituição, como acontece, por exemplo, com Portugal, Alemanha, Peru, Guatemala e Nicarágua. O debate chegou, em 1995, ao Supremo Tribunal Federal, a quem cabia dirimir a questão. Julgando o HC 72.131-1 – RJ, cujo acórdão ainda não foi publicado, aquela Corte entendeu, por unanimidade, mantendo entendimentos de 1971 (RE 71.154 – PR) e de 1977 (RE 80.004 – SE), que os tratados internacionais, mesmo versando sobre direitos fundamentais, ingressam no ordenamento jurídico nacional como lei federal, porque não têm força de emenda constitucional. Houve divergência, apenas, quanto à possibilidade de prisão do depositário infiel, preponderando a tese do Ministro Moreira Alves de que o Pacto de San José da Costa Rica é norma infraconstitucional geral e não derrogou as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil. A tese vencida, do Ministro Marco Aurélio, diz que as exceções da Carta Magna não podem ser ampliadas e, assim, não agasalham os contratos 113 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 113 21/8/2008, 10:21 de alienação fiduciária, voltados à garantia da dívida. No Superior Tribunal de Justiça, onde se entendeu que a matéria poderia ser apreciada por ter enfoque infraconstitucional, a questão foi decidida pela Corte Especial no HC 11.918 - CE. A maioria manteve a decisão do Embargos de Divergência em Recurso Especial no. 149.518 – GO, de Relatoria do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, cuja decisão havia sido unânime. Para ele, o Pacto de San José da Costa Rica ingressa no ordenamento jurídico nacional como lei ordinária e, nessa condição, teria revogado o artigo 1.287 do Código Civil e, como o Decreto-Lei 911/60 a este faz remissão, já não teria cabimento a prisão civil do depositário infiel. A se aceitar essa tese, tendo o CC/ 2002 repetido, ipsis literis, em seu artigo 652, o artigo 1.287 do CC/ 1916, a disposição do Tratado Internacional em questão foi derrogada. 5. Necessidade de Alteração da Atual Legislação Agora, decidido pelo Supremo Tribunal Federal que os Tratados Internacionais, mesmo versando sobre direitos fundamentais, ingressam no ordenamento jurídico nacional como Lei Federal, porque não têm força de Emenda Constitucional, entendemos que o debate suscitado sobre a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel em virtude da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, recepcionado pelo Brasil em 1992, que proíbe a detenção por dívida, apenas a excepcionando no caso de inadimplemento de obrigação alimentar, perdeu seu efeito prático, restringindo-se ao campo doutrinário. Por essa razão, colocou-se neste estudo a questão inversa, ou seja, é oportuno ainda se excepcionar, em nosso ordenamento jurídico, como naquele Tratado, a prisão civil do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentícia com a carga de humilhação que ela lhe impõe? Uma série de motivos, que abaixo alinhamos, justificam, no mínimo, a imediata alteração da atual legislação infraconstitucional, no sentido de restringi-la a casos muito excepcionais. 1. O Estado Social deu lugar ao Estado Democrático de Direito. Este tem o dever e lhe é possível desenvolver meios para, no choque entre dois direitos fundamentais, conseguir a realização de ambos. 114 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 114 21/8/2008, 10:21 O mundo todo, atualmente, dá importância ímpar à defesa dos Direitos Humanos e está em busca dessa conquista. 2. Debalde a jurisprudência do STF, não é o credor quem escolhe o tipo de execução. Diante da expressão “inadimplemento voluntário e inescusável” (artigo 5o, LXVII, da CF), a prisão civil deve ser o último recurso do magistrado. Só pode se dar depois de esgotadas todas as demais possibilidades, como o desconto em folha, aluguéis ou outros rendimentos do devedor, quebra de sigilo fiscal e bancário (entre a prisão civil e a quebra do sigilo fiscal e bancário, não há dúvida alguma que a segunda medida é menos restritiva e, em muitos casos, poderá resolver o problema.) e a penhora e alienação de bens. 3. Embora o artigo 18 da Lei de Alimentos faça remissão conjunta aos artigos 732, 733 e 735, do CPC, a mesma lei, nos seus artigos 16 a 18, impõe uma seqüência lógica, que deve ser cumprida. Além disso, a prisão civil, em nosso ordenamento jurídico, não é regra, mas exceção. 4. O fato do positivismo jurídico do paradigma do Estado Social de Hans Kelsen estar dando lugar à teoria de interpretação construtivista de Ronald Dworkin, do paradigma do Estado Democrático de Direito, deve levar o julgador, intérprete da lei, a buscar o direito mais justo e íntegro, que, nesse caso, é a solução do caso concreto sem ferir nenhum princípio de direito fundamental, ou seja, é levar o alimentante a cumprir com sua obrigação alimentícia sem que sua prisão civil seja decretada. É dar o direito ao alimentando sem ferir o direito do alimentante. 5. Já decorreram 63 anos do CPC de 1939, que implantou a prisão civil no Brasil. Da emissão do Pacto de San José da Costa Rica até nossos dias lá se vão 36 anos. A Constituição Federal de 1988 foi promulgada há 14 anos. Hoje o mundo é outro e sua evolução repercutiu na rapidez da prestação jurisdicional, razão pela qual outros meios podem ser disponibilizados a favor do credor, não havendo porque se usar a prisão civil do alimentante inadimplente como primeiro recurso para o cumprimento da obrigação. 6. Tanto o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 11, item 1), como a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 27, item 4), falam em medidas “adequadas” ou “apropriadas”. Embora o Pacto de San José da Costa Rica permita a prisão do alimentante, não se pode aceitar que essa exceção à regra 115 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 115 21/8/2008, 10:21 seja a medida apropriada. 7. O Código de Bustamante não a menciona e, portanto, não coloca a prisão civil como norma de ordem pública internacional, a exemplo do que fez com a regra que dá ao filho o direito a alimentos e as disposições que estabelecem o dever de prestar alimentos, seu montante, redução e aumento, a oportunidade em que são devidos e a forma de seu pagamento, assim como as que proíbem renunciar e ceder esse direito. 8. O Estado não tem estrutura adequada para o cumprimento da prisão civil. Assim, alimentantes têm cumprido seu tempo em penitenciárias, normalmente depósitos de delinqüentes, que ali sobrevivem sem as mínimas condições de dignidade, às vezes até se revezando para dormir. Nessas condições, ainda que em nome do direito à vida, que, nesse caso, pode muito bem ser preservado por outras formas, haveria ofensa ao item IX da Declaração Universal dos Direitos Humanos e artigo 9º, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que dizem que ninguém será arbitrariamente preso. A expressão “arbitrária”, aqui, não pode estar simplesmente no sentido de “sem o devido processo legal”, mas, também, no sentido de “sem o bom tratamento e respeito à dignidade humana da pessoa privada de liberdade”, como dito no artigo 10, item 1, do mesmo documento. 9. As Delegacias de Polícia, com suas celas improvisadas, muitas vezes tomadas por presos que aguardam julgamento, também não podem abrigar o devedor de alimentos. Tais estabelecimentos, a exemplo dos presídios, devem ser utilizadas apenas pelos delinqüentes perigosos, que precisam ser afastados do convívio social. 10. A prisão civil, que se dá em regime fechado, é medida muito dura diante da possibilidade, em relação aos próprios criminosos, da concessão dos regimes semi-aberto e aberto, da suspensão condicional da pena, da transação penal e das penas alternativas. 11. Os credores, na verdade, não estão interessados na prisão do devedor, o que querem é receber a dívida. 12. Os resultados e a experiência mostram que o custo (liberdade e, muitas vezes, ofensa ao princípio da igualdade entre irmãos), não atinge, na maioria dos casos, o benefício esperado (paga imediata do débito). 13. A situação de extrema pobreza de grande parte da população demonstra que, em muitos casos, está se partilhando 116 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 116 21/8/2008, 10:21 misérias. Como, do salário mínimo fixado pelo Governo Federal, que não atende a promessa constitucional. e mal dá para o alimentante viver, se extrair os alimentos? Na verdade, quando o Estado deixa de cumprir com sua missão de implantar a democracia econômica, social e cultural, os cidadãos acabam sendo obrigadas a dividir as suas mazelas, como na questão posta. 14. Embora a prisão civil do devedor de alimentos não fira, abstratamente, o princípio da proporcionalidade, cabe ao julgador, analisando cada caso concreto, aplicá-lo: a) verificando se já foram tentadas todas as outras possibilidades que possam levar à satisfação do princípio fundamental da vida digna para o alimentando sem ferir o princípio fundamental da liberdade do alimentante. Seu objetivo deve, sempre, ser a realização de ambos os princípios; b) ponderando se o decreto de prisão civil ensejará mesmo o cumprimento da obrigação ou, pelo contrário, dificultará a consecução do fim pretendido. Segregado, o alimentante não trabalha. Não trabalhando, não ganha. Não ganhando, não paga e c) verificando se a prisão civil não se constituirá numa carga coativa exacerbada, não só para o alimentante, mas, principalmente, para terceiros que dele dependam e que têm o mesmo direito fundamental do alimentando. 6. Proposta de Alteração Legislativa Assim, provada, pelos vários motivos expostos, a necessidade de imediata limitação dos casos que hoje ensejam o uso da norma castradora da liberdade individual e não estando nosso ordenamento jurídico aparelhado com normas eficazes que possam, para satisfazer os credores, primeiro atingir o patrimônio do responsável pelo descumprimento da obrigação, reservando a prisão civil para o último e extremo recurso, apresentamos uma proposta, consubstanciada nos pontos abaixo, que, entendemos, dá um tratamento mais humanitário à questão. 1. As causas que tratem, exclusivamente, da fixação provisória ou definitiva de alimentos e as de execução de prestação alimentícia, devem ter curso durante as férias forenses. 2. A execução de decisão judicial que fixe, provisória ou definitivamente, prestação alimentícia, deve ser processada com 117 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 117 21/8/2008, 10:21 absoluta prioridade sobre quaisquer outros processos. 3. Independentemente de onde estiver o processo de alimentos, a execução poderá se processar no foro do domicílio do alimentando. 4. A penhora e a avaliação dos bens penhorados devem ocorrer no ato da citação. Não se encontrando o devedor, o arresto deve trazer a avaliação dos bens arrestados. 5. A citação e a intimação do arresto devem ser feitos por carta, com aviso de recebimento e em mãos próprias ou por Edital, com o prazo de dez (10) dias, a ser publicado uma única vez, no órgão oficial. 6. A quebra do sigilo fiscal e bancário do devedor pode ser utilizada para a localização de bens penhoráveis. 7. A justificativa do devedor deve se dar mediante Embargos, no prazo de três dias, que só terão efeito suspensivo se houver relevantes razões e possibilidade de dano irreparável. Neles, sendo necessário, o juiz poderá determinar a inversão do ônus da prova. 8. A arrematação dos bens penhorados e o pagamento do credor devem ser imediatos. 9. A decretação da prisão civil do devedor, pelo prazo mínimo de trinta e máximo de sessenta dias, só ocorrerá se ficar provada a prática de quaisquer dos atos descritos no artigo 600 do CPC e depois de observado o contraditório. 10. O cumprimento da prisão civil deve se dar sem que o devedor tenha contato com os criminosos comuns. 11. No caso de condenação pelo crime do artigo 244 do Código Penal, deve haver a compensação de que trata o artigo 42 do mesmo Código. 12. O cumprimento da ordem de prisão deve ser imediatamente suspenso sempre que o devedor, ou terceiro interessado, em nome deste, pagar ou der em penhora bens suficientes para a quitação total do débito. 7. Referência Bibliográficas AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão Opressão. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Alfa-Omega, 1990. ALBERGARIA, Jason. 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Lima Filho * Resumo Resumo: O texto aborda a questão das cláusulas pétreas na Constituição Federal destacando como perigosa a invocação da tese de dupla revisão nomeadamente em países periféricos, submetidoas a interesses alienígenas que ditam reformas vinculadas aos próprios interesses e nem sempre aos interesses da coletividade. Palavras - Chave Chave: Cláusulas Pétrea- Poder Constituinte Evolutivo - Constituição 1. Introdução Tem sido objeto de debates e muita discussão o que a doutrina costuma denominar de “poder constituinte evolutivo”, com vista a justificar a alteração da Constituição naqueles pontos em que o poder constituinte originário gravou com a cláusula de inalterabilidade, chegando alguns até mesmo a defender a extinção dessas limitações. Argumentam que não se pode obrigar as futuras gerações a respeitarem aquilo que, em dado momento histórico, o constituinte entendeu inalterável, pois isso atentaria contra o querer democrático. Sustentam os defensores dessa tese que o “excesso de rigidez” constitucional haverá de pagar um preço e que este preço é a freqüente mutação informal da Constituição, ou seja, ela muda frequentemente de sentido sem que se alterem, formalmente, os seus dispositivos, como inevitável decorrência do seu “excesso de rigidez”. Para os defensores dessa tese, a solução será dar às clausulas pétreas uma espécie de interpretação light, cada vez mais soft, de modo a facilitar as emendas e revisões constitucionais, vale dizer, a resposta para o alegado “excesso de regidez” é o excesso de desconsideração pelas cláusulas intangíveis da constituição. E mais: se isso não bastar para adaptar a Lex Major à emergência de novos valores sociais, que se tome, então, das cláusulas de reforma constitucional o próprio fundamento para a sua revisão ou * Mestre em Direito. Professor na UNIGRAN. Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Dourados – MS. 123 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 123 21/8/2008, 10:21 modificabilidade, ou seja, revisão em dois tempos ou de dupla face, como explicado por Gomes Canotilho1 “A existência de limites absolutos é, porém, contestada por alguns autores, com base na possibilidade de o legislador de revisão poder sempre ultrapassar esses limites mediante a técnica da dupla revisão. Num primeiro momento, a revisão incidiria sobre as próprias normas de revisão, eliminando ou alterando esses limites. Num segundo momento, a revisão far-se-ia de acordo com as leis constitucionais que alteraram as normas de revisão. Desta forma, as disposições consideradas intangíveis pela constituição adquririam um caráter mutável, em virtude da eliminação da cláusula de intangibilidade operada pela revisão constitucional (...)”. Para aqueles que defendem a tese da dupla revisão, as limitações materiais podem ser modificadas ou revogadas pelo legislador reformador, abrindo-se o caminho para, em momento posterior, concretizar-se a remoção dos princípios correspondentes aos limites substanciais explícitos, através da dupla revisão ou duplo processo de revisão, vale dizer, o duplo processo de revisão seria efetivado em dois momentos: no primeiro, o reformador eliminaria os limites absolutos, sendo uma revisão sobre as normas que estabelecem vedações à atividade revisora, como aquela constante do art. 60 do Texto de 88; e, no segundo, a revisão seguiria de acordo com as leis constitucionais que alteram as normas de revisão. De acordo com esse entendimento, os preceptivos, tidos como intangíveis adquiririam uma qualidade de maleabilidade face a eliminação do cerne inamovível, considerado pela doutrina, irreformável, absoluto, permanente e intocável; pétreo, portanto. Assim, e por esse raciocínio, as vedações expressas contidas no § 4º, do art. 60 do Texto Maior, poderiam ser ultrapassadas, e para isso, bastaria que o legislador de reforma as eliminasse, suprimindo, pois, os limites de revisão por intermédio de outra revisão. Parece equivocado e extremamente perigoso o ponto de vista daqueles que defendem essa tese, com base no que doutrinariamente se convencionou denominar poder constituinte evolutivo, especialmente em um país como o Brasil que não tem demonstrado, ao longo de sua história, grande estima 1 GOMES CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992, p. 1138. 124 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 124 21/8/2008, 10:21 constitucional. E para se constatar esse fenômeno, basta lembrar que a atual Constituição com pouco mais de quinze anos de vigência já conta com mais de quarenta emendas, muitas aprovadas por maiorias episódicas para satisfazer a ditames de uma política econômica imposta por instituições financeiras internacionais ou até mesmo em nome de interesses pessoais de seus autores, o que evidencia o cuidado que se deve emprestar à discussão desse importante tema2. No Brasil – lembra Gustavo Just da Costa e Silva3 –, apesar de se ter um catálogo de limites expressos correspondentes à tendência atual de explícita alusão a todo o âmbito de referência legitimadora das constituições democráticas, tem-se revelado suscetível de interpretações, bastante questionáveis, excessivamente ampliadoras do conteúdo que se considere protegido contra a reforma. Essas condições são propícias ao aparecimento de propostas de dupla revisão. E mais, ao lado disso, têm tramitado no Congresso Nacional, em que pese o relativamente baixo grau de rigidez da Constituição de 88, propostas e emendas que objetivam simplificar, ainda que temporariamente, o procedimento de aprovação de emendas, evidenciando que o Brasil não tem uma grande estima pelos valores constitucionais. Para demonstrar a minha divergência com aqueles que defendem a tese da “dupla revisão” e estimular o debate sobre esse tema tão importante, especialmente no momento político que vivenciamos, em que estão sendo feitas reformas na Constituição com inaceitáveis violações às vedações previstas no § 4º do art. 60, resolvi escrever este texto que nem de longe pretende esgotar o assunto. 2. Limitações ao poder de reforma e à tese dupla revisão Com o evoluir histórico do conceito de Constituição, passando-se pelas concepções sociológica, política, formalista, normativista e As Emendas da reeleição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (Emenda 16) e a da reforma da Previdência Social (Emenda 41), esta última no Governo Lula, constituem exemplos desse fenômeno. 3 COSTA E SILVA, Gustavo da. Os Limites da Reforma Constitucional Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 147. 2 125 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 125 21/8/2008, 10:21 material, identificou-se o aspecto elementar das constituições modernas no traço de seu conteúdo objetivo. Esse aspecto, vale lembrar, não pode ser expressado na tendência objetivista que tende a menosprezar o aspecto humano criativo, relegando o homem a um plano secundário, na medida em que aponta para uma “coletividade próspera e feliz formada por criaturas infelizes e miseráveis”. Ao contrário, fala-se de um conteúdo objetivo, derivado da constatação de uma Constituição que, em que pese historicamente surgida da necessidade de estruturar o Estado a fim de limitar e preservar o poder político, passou a refletir, com o passar do tempo, valores básicos “a serem protegidos até mesmo contra o querer democrático”.4 Assim, a matéria constitucional não se resume ao comumente denominado conjunto de normas estruturais estatais, que organizam os elementos constitutivos do Estado. O regime constitucional revelase no enunciado dos fins do Estado, de sua organização e estrutura, dos direitos fundamentais, dos limites do poder e do princípio democrático, o que no caso brasileiro é revelado a partir do preâmbulo do Texto de 88. Desta forma, o que distingue a Constituição dos demais instrumentos normativos do ordenamento jurídico é a inserção dos chamados “valores constitucionais” na idéia de Constituição. Esses valores constitucionais apresentam-se como o conteúdo objetivo da Constituição, especialmente imortalizados, por meio dos limites materiais, ao poder constituinte derivado, mais conhecidos por cláusulas pétreas. Toda sociedade escolhe princípios fundamentais, ou seja, valores aos quais tudo o mais em sua vida deve subordinarse. Por isso é que é sociedade. Realmente, não haveria sociedade se certas regras não fossem aceitas por todos. Mesmo uma sociedade anarquista teria alguma regra, ao menos quanto à impossibilidade de serem criadas regras coercitivas em seu seio. Ao conjunto desses valores básicos chamamos Constituição. Não vem ao propósito destas considerações o aprofundamento do conceito de Constituição, seja sob o ângulo sociológico, político ou mesmo jurídico, pois numa visão dialética incluem-se todos aqueles aspectos. A Constituição vista pela Sociologia, pela Ciência Política, pelo Direito, ou por qualquer outra ciência não deixa de ser um conjunto de valores, que apenas passam a ser abstraídos como objeto delas, segundo se considerem as forças sociais, políticas, jurídicas e outras. É preciso que se tenha em mente que toda sociedade movimenta-se incessantemente e que não se convulsiona pela aceitação de princípios comuns, que lhe dão unidade e ordem. Esses princípios superiores, sabe-se que são valores e que, por isso, chocam-se algumas vezes com valores não eleitos como constitutivos da sociedade. Decorre daí, necessariamente, que em toda sociedade haverá controle das opções face àquelas primordiais, que são a sua Constituição, seja pelo próprio grupo social (sanção moral), quando organizações simples, seja por instituição adrede preparada, nas sociedades politicamente organizadas (sanção jurídica). Esses valores básicos são sempre conhecidos numa sociedade, de forma clara ou nebulosa. Nos Estados modernos esses princípios básicos estão identificados na ordem jurídica, seja num texto escrito ou não. SEREJO, Paulo. Conceito de Inconstitucionalidade. In: Revista Jurídica Virtual da Casa Civil da Presidência da República, Vol. 1, no 19, dezembro/2000. 4 126 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 126 21/8/2008, 10:21 Pode-se, pois, vislumbrar na Constituição a presença de um conteúdo predeterminado propriamente constitucional, ou seja, um conteúdo paradoxalmente advindo de uma decisão política fundamental fortalecida pelos conceitos de poder constituinte e constituído ou poder de reforma, limitando, a partir de então, a própria decisão democrática. 5 Nesse contexto, avulta a importância das limitações do poder constituinte derivado ou poder constituído que detém a faculdade de reforma ou emenda da Constituição, ou seja, até que ponto pode o poder Constituinte derivado alterar a constituição? O poder de reforma constitucional exercido pelo poder constituinte derivado, pela sua própria natureza jurídica, é um poder limitado, constituído e contido num quadro de limitações explícitas e implícitas decorrentes da própria constituição e cujos princípios se sujeita, em seu exercício ao órgão revisor. As limitações explícitas ou expressas são aquelas que, formalmente postas na constituição, lhe conferem estabilidade tolhendo a quebra de princípios básicos, cuja permanência ou preservação se busca assegurar, retirando-os do alcance do poder constituinte derivado. Essas limitações podem ser temporárias, circunstanciais e materiais. As limitações materiais são aquelas ligadas ao objeto da reforma do texto constitucional, ou seja, são aquelas cláusulas de inamovibilidade porque, perante a sua observância, o legislador de reforma não tem o poder de remover ou abolir, face a uma determinação taxativa do constituinte, por isso consitutuem aquilo que Pontes de Miranda denominou de “cerne imodificável da Constituição”.6 Para Jorge Miranda7, faz-se necessário distinguir três categorias de limites materiais do poder constituinte: a) limites transcendentes; b) limites imanentes e c) em certos casos, limites heterônomos. Os limites transcendentes são aqueles que antepondo-se ou impondo-se à vontade do Estado – e, em poder constituinte democrático, à própria vontade do povo –, demarcando a sua área de intervenção, originam-se de imperativos de direito natural, de 5 IORIO ARANHA, Márcio. As dimensões objetivas dos direitos e sua posição de relevo na substancial. In: interpretação constitucional como conquista contemporânea da democracia substancial Revista de Informação Legislativa, Brasília, 35(138): 217-230, abril/junho 1998. 6 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934 1934. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1937, t. 2, p. 526. 7 MIRANDA Jorge. Teoria do Estado e da Constituição Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 376-378. 127 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 127 21/8/2008, 10:21 valores decorrentes de ética superior, de uma consciência jurídica coletiva, como aqueles ligados aos direitos fundamentais imediatamente conexos com a dignidade humana, pelo que, tornarse-ia inválida e, portanto, ilegítima a decretação de normas constitucionais que gravemente pudessem ofender a esses valores. Já os limites imanentes decorrem da noção e do sentido do poder constituinte formal enquanto poder situado, que se identifica por certa origem e finalidade, manifestando-se em dadas circunstâncias, como aqueles ligados à configuração do Estado à luz do poder constituinte material ou à própria identidade do Estado de que cada Constituição representa apenas um momento do devir histórico, como aqueles compreendidos pelos limites que se reportam à soberania do Estado, à forma de Estado, bem como os limites atinentes à legitimidade política em concreto. Os limites heterônomos são aqueles que provêm da conjugação com outros ordenamentos jurídicos. Estão ligados aos princípios e regras ou a atos de Direito internacional, donde resultem obrigações para todos os Estados ou só para certo Estado, ou ainda, reportando-se à regras de Direito interno, quando o Estado seja composto ou complexo e complexo tenha de ser, por conseguinte, o seu ordenamento jurídico.8 O Texto de 88, no § 4 o do artigo 60 consagra as vedações materiais perpétuas do nosso ordenamento constitucional ao exercício do poder de reforma. Como ensina Raul Machado Horta9: “Do “centro de imputação”, que limita a atividade do órgão de revisão constitucional, dimanam, inicialmente, as matérias incluídas na cláusula da irreformabilidade do art. 60, § 4º, I a IV, da Constituição. São improproníveis no Congresso Nacional, em sessão apartada de cada Casa, os temas irreformáveis, que não podem ser objeto de Emenda à Constituição: a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação Os limites heterônomos ligados ao Direito internacional, que assumem um caráter especial, são aqueles que correspondem às limitações do conteúdo da constituição em face dos deveres assumidos por um Estado para com outros Estados ou para a comunidade internacional no seu conjunto, como por exemplo, os compromissos assumidos pelo Estado com relação ao respeito e a manutenção das garantias de direitos de minorias nacionais e lingüísticas impostos por certos Estados por força de tratados de paz, especialmente após as duas Grandes Guerras mundiais, ao passo que os limites heterônomos de Direito interno são aqueles ligados aos limites recíprocos, em uma união federal, como o Brasil, entre o poder constituinte federal e os poderes constituintes dos Estados federados, em que o primeiro deve respeitar a existência destes assegurando a participação do Estado nos órgãos e nos atos jurídicos principais em nível central. 9 MACHADO HORTA, Raul. Direito Constitucional Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 88. 8 128 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 128 21/8/2008, 10:21 dos Poderes, os direitos e garantias individuais. Se não podem ser objeto de emenda, para aboli-las – e a abolição não se circunscreve às formas grosseiras e ostensivas, mas também alcança as formas oblíquas, dissimuladas e ladeantes –, as matérias irreformáveis não poderão constituir objeto de proposta de revisão. Poder de emenda e poder de revisão são poderes instituídos e derivados, instrumentos de mudança constitucional de segundo grau, submetidos um e outro ao centro comum de imputação, que assegura a permanência das decisões políticas fundamentais reveladas pelo poder constituinte originário”. Assim, as limitações constantes do § 4o, inciso IV do art. 60, do Texto Maior constituem limitações materiais explícitas. Por conseguinte, não será tolerada emenda que vise abolir: a) a forma federativa de Estado; b) o voto direto, secreto, universal e periódico; c) a separação dos Poderes e d) os direitos e garantias individuais, ou seja, os direitos fundamentais da pessoa humana e, por óbvio, as ações ou os remédios previstos no próprio Texto Maior ou em normas infraconstitucionais que os assegurem no campo prático, pois o direito de ação constitui um dos direitos mais fundamentais do cidadão. Entretanto, como pondera Machado Horta 10 , as limitações constantes do § 4º, do art. 60 do Texto Maior não exaurem a demarcação instransponível do poder de emenda. Com efeito, existem outras limitações materiais difundidas no corpo da Carta Suprema, as chamadas limitações materiais implícitas. Como exemplos dessas limitações implícitas, seguindose as lições do citado jurista, podem ser citados: os fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, incisos I, II, III, IV, e V); o povo como fonte do poder (art. 1º, Parágrafo único); os objetivos fundamentais da República Federativa (art. 3º, incisos I, II, III e IV); os princípios das relações internacionais (art. 4º, incisos; I, II, III, IV, V, VII, VIII, IX e X, Parágrafo único); os direitos sociais (art. 6º); a autonomia dos Estados Federados (25) e dos Municípios (arts. 29 e 30, incisos I, II e III); a organização bicameral do Pode Legislativo (art. 44); a inviolabilidade dos Depurados e Senadores e as garantias da Magistratura (arts. 53 e 95, incisos I, II e III); a permanência 10 MACHADO HORTA, Raul. Ob. cit. cit., p. 113-114. 129 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 129 21/8/2008, 10:21 institucional do Ministério Público (art. 127) e de suas garantias (art. 128); as limitações do poder de tributar (arts. 150 e 151), e os princípios da Ordem Econômica (art. 170 e seu parágrafo único). De acordo com a doutrina de Nelson de Sousa Sampaio11, as normas constitucionais que implicitamente estão fora do alcance do poder de reforma podem ser classificadas da seguinte forma: a) as que dizem respeito aos direitos fundamentais, pois nenhuma reforma constitucional poderá restringí-los e muito menos abolí-los12. Deve, ao contrário, ampliá-los; b) aquelas concernentes ao titular do poder constituinte, tendo em vista que uma reforma do texto Constitucional não pode alterar a titularidade da potestade que inseriu na constituição o próprio poder reformador; c) as relativas ao titular do poder reformador, porque seria no mínimo ilógico que o legislador ordinária pudesse estabelecer um novo titular para o poder instituído pela simples vontade do constituinte originário na medida em que o poder revisor representa uma mera delegação do constituinte, portanto, insuscetível de ser transferida; e d) as normas referentes ao processo da própria emenda ou revisão constitucional, porquanto não é possível ao poder reformador simplificar as normas que a Constituição estabelece para a elaboração legislativa. E isso se dá porque o que foi prescrito pelo poder constituinte para uma reforma constitucional é insuscetível de ser atenuado pelo poder constituído. Dessas limitações materiais, implícitas ou explícitas, decorre que emendas que sejam incompatíveis com as aludidas garantias ou vedações sequer podem ser objeto de apreciação pelo Parlamento, pois atentatórias ao núcleo imodificável do Texto Maior. O poder de reforma ou de emenda é, pois, um poder limitado na sua atividade de constituinte de segundo grau, de poder constituído. A emenda é incompatível com a ruptura da Constituição.Trata-se, é sempre bom lembrar, de um processo de alteração material sem a erosão dos fundamentos da Constituição, que, como lembrava há anos Francisco Campos, se exteriorizam nas decisões políticas fundamentais, configuradoras do centro comum de imputação, limitando assim, a atividade do órgão de revisão constitucional.13 SOUSA SAMPAIO, Nelson de. O poder de reforma constitucional constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 95-108. Proibição que vem sendo sistematicamente violada no anterior e no atual governo por meio de emendas como as Emendas 20, 28 e 41 que de forma inadmissível violaram não apenas a garantia do não dos direitos sociais, mas, também os princípios do respeito ao direito adquirido, do ato jurídico perfeito, do pleno acesso à jurisdição entre outros. 13 CAMPOS, Francisco. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, v. 2, p. 80. 11 12 130 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 130 21/8/2008, 10:21 De acordo com o pensamento de Carl Schmitt, a reforma constitucional é uma faculdade prevista na própria Constituição. Portanto, nesse sentido, constitui uma autêntica competência, sendo, assim, necessariamente limitada, na medida em que “no marco de uma regulação legal-constitucional não pode haver faculdade ilimitada; toda competência é limitada”14. Por isso – lembra Gustavo Just da Costa e Silva15 –, os limites dessa faculdade reformadora resultam de uma correta compreensão do próprio conceito de reforma – o que no Brasil não tem acontecido – que designa a substituição de regulações legal-constitucionais, pressupondo, todavia, a garantia da identidade e continuidade da Constituição. Reformar a Constituição não pode ser confundido com a sua supressão ou destruição, ou seja, a mudança pressupõe conceitualmente uma identidade que permanece. Por conseguinte, somente se pode cogitar de mudança ou reforma às “leis constitucionais”, ou seja, aqueles dispositivos que não afetem, direta ou indiretamente, a decisão consciente e de totalidade sobre a forma da existência política. Modificar tal decisão é alterar a identidade da constituição, o que não configura uma mera reforma, mas, mais que isso, a destruição ou supressão da própria Constituição. Daí porque é correto afirmar que uma eventual proibição expressa de determinada reforma, como aquela prevista no art. 60 do Texto de 88, apenas confirma a distinção entre revisão e supressão. Correta, pois, se me afigura, a advertência de Carlos Ayres de Brito16, quando afirma que ainda que sob o calor de mitigar o efeito “conservador” das cláusulas pétreas, se pudesse defender a tese da dupla revisão, a mesma no plano da realidade baralha inteiramente os campos de lídima expressão do poder constituído e do poder constituinte, caindo em contradições incontornáveis, na medida em que se se entender seja possível reformar as próprias cláusulas de reforma, então a Constituição pode vir a perder até mesmo o caráter de rigidez, pela total supressão da norma ou das normas constitucionais instituidoras da hierarquia da Constituição sobre as demais normas constitucinais instituidoras da rigidez formal, vale dizer, sem rigidez formal, como se poderá preservar a superioridade 14 15 16 SCHMITT, CARL. Teoría de la Constitución Constitución. Trad. F. Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1982, p. 118. COSTA E SILVA, Gustavo da. Ob. cit. p.107. BRITO, Carlos Ayres de. Teoria da Constituição Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 76. 131 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 131 21/8/2008, 10:21 hierárquica da constituição sobre as demais normas? Será possível contituar chamando Constituição o que já deixou de sê-lo, pois sem a garantia de rigidez formal a Constituição perde o controle do regime jurídico de suas próprias emendas e, por conseguinte, do seu próprio regime, o que convenhamos, representa um grande risco, nomeadamente em um país como o Brasil que não cultiva o hábito de levar muito a sério a sua constituição. Parece fundamenta, lembrar que se a concepção do poder reformador como um poder constituido, de segundo grau, limitado é, por um lado, indispensável à logica do Estado de direito democrático, por outro lado, revela-se frontalmente incompatível com a atribuição de um valor meramente relativo aos limites da reforma constitucional. Por isso, entre nós, a existência das limitações previstas no art. 60 do Texto de 1988 não podem ser vistas a não ser como a pretensão de empresar validade à Constituição mesmo diante do poder reformador, dando, assim, a essa pretensão concretude formal e material, ou seja, a Constituição vale – é o que ela mesma afirma e é que o que decorre de seus fundamentos – também para sua própria reforma. Assim, ninguém pode negar que a pretensão de validade da Constituição restará inexoravalmente frustrada se o poder constituinte derivado, reformador, constituído, puder dispor como bem queira da constituição, em nome de uma eventual e episódica maioria, originária de acertos ou conchavos políticos, o que, aliás, tem ocorrido com certa frequência no Brasil, evidenciando o perigo da tese da dupla revisão. A pretensão de se atribuir um valor simplesmente relativo aos limites, produz, como consequência, o completo esvaziamento da limitação material do poder constituinte derivado ou reformador na medida que reduz essa limitação a um problema exclusivamente procedimental. Daí porque para aqueles que defendem a tese de dupla revisão – com fundamento no chamado poder constituinte evolutivo –, o significado real da vedação de alteração de determinadas normas da Constituição se reduz apenas o da instituição de um agravamento da rigidez a seu favor.17 Para a alteração de determinadas normas – aquelas que o constituinte originário gravou com a cláusula de eternidade, excluindoas, portanto, do procedimento de reforma –, apenas se exigiria um 17 FERREIA FILHO, Manoel Gonçalves. Significado e alcance das “cláusulas pétreas”. In: Revista de Direito Administrativo. São Paulo: n. 202, out./dez. 1995, p. 11-17. Administrativo 132 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 132 21/8/2008, 10:21 procedimento mais complexo do que aquele exigido para a revisão das demais disposições da Constituição, o que não me parece acertado, na medida em que se se reconhecer ao poder de reforma a prerrogativa de superar os limites que lhes foram assinalados pelo poder constituinte originário, tornar-se-á ele, na realidade, um poder ilimitado e, portanto, senhor da própria Constituição. E nem é possível, como adverte a boa doutrina18, com base apenas em uma suposta limitação procedimental, sustentar alguma espécie de distinção entre poder constituinte e poder reformador, vez que, em nome da cooerência da tese de dupla revisão, não seria possível negar à autoridade reformadora a possibilidade de modificar, também, a norma constitucional que estabecesse a regulação do procedimento revisor, podendo, então assim dispor o constituinte derivado, de maneira livre, sobre a Constituição sem qualquer tipo de restrição de ordem formal ou material, o que é algo inimaginável. Por conseguinte, parece impossível de admissão que sem a atribuição de um valor absoluto aos limites se possa considerar limitado o poder de reforma constitucinal, um poder naturalmente constituído. O poder constituinte é e não pode deixar de ser o poder que pode o mais sem poder o menos, na medida em que significa a força de elaborar a Constituição, mas não dispõe da aptidão para reformála. E o poder constituído? É e sempre será o poder de fazer o menos sem nunca chegar a fazer o mais, no sentido de que ele detém a competência para reformar a Constituição, respeitados os limites previstos nela própria, não dispondo, por conseguinte, da potência para trocar essa conceituação por outra, evidentemente. Não pode o poder constituído, a qualquer momento, se transvestir de poder constituinte, alterando ao seu talante, os planos do ser e do dever-ser, pois se assim fosse, teria ele de se assumir como “coveiro da Constituição que o fez nascer e aí privaria de sentido a própria e verdadeira função constituída, que é, como bem o disse o constitucionalista argentino Reinaldo Vanosa, a de impedir o surgimento de um poder constituinte revolucionário”.19 As cláusulas inamovíveis, como sabemos, são aquelas que possuem eficácia plena, total. E são assim denominadas porque possuem a 18 19 COSTA E SILVA, Gustavo da. Ob. cit. p.169-160. BRITO, Carlos Ayres de. A Reforma Constitucional e sua Intransponível Limitabilidade. In: Ob. cit cit. p. 85. 133 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 133 21/8/2008, 10:21 qualidade de não poderem ser alteradas. Contra elas não tem o poder constituído a potência de atuar, na medida em que dispõem de força absoluta, paralizando todo o processo ou produto infraconstitucional legislado que, direta ou indiretamente, vier conspurcá-las, porquanto se distinguem das normas de eficácia plena porque estas podem ser revistas ou emendadas pelo poder de reforma constitucional.20 Assim, não se pode admitir a possibilidade do legislador de reforma, com poder constituído e por isso limitado, por intermédio da técnica de dupla revisão, fundado na tese do poder constituinte evolutivo, suprimir os limites materiais explícitos ou implícitos, na medida em que são eles imprescindíveis e insuperáveis. Como lembra a doutrina21, são imprescindíveis porque a se aceitar o argumento da simplificação das normas que estatuem limites, outrora depositados pela menifestação constituinte originária, no mínimo seria usurpar o caráter fundacional do poder criador da Constituição; e insuperáveis pois na medida em que fosse admitida a possibilidade de alteração das condições estabelecidas por um poder mais alto – o poder constituinte originário – com o objetivo de reformar-se o processo revisional, estar-se-ia, na prática, promovendo uma verdadeira e inadmissível fraude à Constituição – Verfassungsbeseitigung, dos jurista alemães. Que não venham alegar, como fazem alguns, que, mesmo diante da existência de cláusulas pétreas, a Constituição, além de violada, tem sido reformada em pontos proibidos, o que justificaria, assim, uma espécie de “relativização” dessas limitações, pois não seria justo obrigar as futuras gerações a respeitar aquilo que o constituinte originário, em dado momento histórico, entendeu gravar com a garantia de eternidade e, até mesmo, em nome do progresso social, se justificaria a tese de alteração dessa garantia.22 Não me parece correta, também por esse ângulo, a tese.Não se pode, em nome do progresso social e do futuro das novas gerações, destruir a própria essência da Constituição. O fato de, apesar das vedações constantes das cláusulas pétreas, não se ter, em dados momentos LAMMÊGO BULOS, Uadi. Mutação Constitucional Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 45. LAMMÊGO BULOS, Uadi. Ob. cit cit. p. 44. 22 Foi essa a justificação que me foi dada por dois professores sul-mato-grossenses com quem mantive por ocasião do II Colóquio de Filosofia e Hermenêutica, realizado nesta cidade no segundo semestre de 2003, pelo Instituto de Filosofia de Dourados – Estado de Mato Grosso do Sul, um acalorado e proveitoso debate sobre esse tema e também me motivou a escrever este modesto texto. 20 21 134 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 134 21/8/2008, 10:21 históricos-políticos impedido algumas reformas que contra elas atentaram, não pode ser, como de fato não é, justificação para se mutilar ou mesmo suprimir a própria Constituição. A questão posta nestes termos, está afeta ao terreno da eficácia das normas constitucionais. O que é necessário ser entendido, como acima se viu, é que não pode o poder constituído – a pretexto de “flexibilizar” o núcleo essencial, imutável da Constituição, porque eventualmente causa embaraços à política econômica, “a governabilidade” ou outros interesses, muitos até mesmo destituídos de legitimidade moral –, usar da técnica de dupla revisão para destruir a própria Constituição. E por isso, as reformas que têm sido feitas com violação a essas vedações, não podem ser aceitas, merecendo a repulsa de toda a comunidade e, por conseguinte, anuladas pela Suprema Corte. 3. Conclusão A tese da revisão de dupla face produz a perda pela Constituição do controle do regime jurídico de suas emendas e, por conseguinte, do seu próprio regime, podendo representar a sua destruição. Por isso, não pode ser tida como legítima nem aceitável, menos ainda em um país como o Brasil que tem demonstrado ao longo de sua história, especialmente a história mais recente, grande falta de apreço aos valores e princípios constitucionais. As normas constitucionais absolutas, exatamente porque têm esse predicado, são providas de uma supereficácia paralizante ou abrogante, o que as torna intangíveis e invioláveis, colocando-se, pois, fora e além do alcance do poder constituído ou de reforma, devendo ser mantidas enquanto sobreviver a constituição. Assim, a alegação de sua eventual ineficácia em dados momentos históricos ou políticos como causa para sua violação, ou a inobservância da intangibilidade que lhe é inerente, coloca-nos, sem sombra de dúvida, diante do problema da destruição da própria Constituição, Lei Fundamental, garantidora do Estado Democrático de Direito, causando uma ruptura do ordenamento instituído pelo poder constituinte originário, o que convenhamos, é inadmissível. Parece, pois, extremamante perigosa a invocação da tese de dupla 135 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 135 21/8/2008, 10:21 revisão nomeadamente em países periféricos como o Brasil, submetidos a interesses e ao controle de instituições financeiras alienígenas que ditam reformas que, a par de violarem a essência da própria Constituição, podem representar, e de fato representam, para as futuras gerações não as alegadas conquistas sociais alardiadas pelos seus autores, mas lamentáveis retrocessos como aqueles que aqui se tem implementado em nome de um pseudo desenvolvimento econômico, da estabilização financeira, do controle das finanças públicas ou do superavit primário, especialmente nos dois últimos governos. Convém lembrar, para encerrar este texto, que a renovada supremacia da Constituição vai além do controle de constituicionalidade e da tutela mais eficaz da esfera individual de liberdade. Com as Constituições democráticas do século XX – adverte Lenio Luiz Streck23 –, assume um lugar de destaque outro aspecto, qual seja, o da constituição como norma diretiva fundamental, que dirige os poderes públicos e ao mesmo tempo condiciona os particulares de tal maneira que assegura a realização de valores constitucionais, como os direitos sociais, o direito à educação, à subsistência ou ao trabalho, à saúde, entre outros. Assim, a nova concepção de constitucionalismo une precisamente essa idéia de Constituição como norma fundamental de garantia, com a noção de Constituição enquanto norma diretiva fundamental, o que a tese de revisão de dupla face, com base na idéia do chamado poder constituinte evolutivo, se choca de maneira irremediável. Referências bibliográficas ARANHA IORIO, Márcio. As dimensões objetivas dos direitos e sua posição de relevo na interpretação constitucional como conquista contemporânea de democracia substancial. Revista de Informação Legislativa. 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Lásaro Moreirada Silva1 Resumo Resumo: Esse trabalho tem por objetivo demonstrar que a Constituição Federal de 1988 reconheceu os direitos originários dos índios às suas terras tradicionais, impondo à União o dever de demarcá-las e protegê-las. Será demonstrado também que a posse indígena não pode ser interpretada sob a óptica civilista, mas sim de acordo com a Constituição Federal, significando o “habitat” de um povo diferenciado que tem uma relação de sobrevivência física e cultural com a terra. Da mesma forma, os termos tradicional e permanente não exigem ocupação atual e efetiva para que uma terra seja considerada indígena. Esses termos referem-se a uma perspectiva de futuro, de garantia da sobrevivência dos índios nas suas terras tradicionais. Palavras alavras-- Chave Chave: Terras Indígenas, Direitos Originários, Indigenato. 1. Introdução. A Constituição Federal de 1988 ampliou, explicitou e detalhou os direitos dos índios, positivando no texto o reconhecimento dos direitos originários às terras, impondo à União a obrigação de demarcá-las e protegê-las. Os avanços alcançados com o advento da Constituição Federal de 1988 resultaram da tendência mundial de reconhecimento e proteção dos direitos das minorias étnicas, p r e o c u p a ç ã o d a O N U, a p a r t i r d a d é c a d a d e 1 9 5 0 . Especificamente quanto às populações indígenas, a Convenção nº 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) realizada em Genebra em julho de 1966, estabeleceu orientações Delegado de Polícia Federal em Dourados/MS, Professor da UNIGRAN e Mestre em Direito pela Unb em convênio com a UNIGRAN. 1 139 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 139 21/8/2008, 10:21 concernentes ao respeito, à cultura, usos, costumes, organização tribal e terras indígenas.2 No art. 3º a Convenção estabelece que “os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação”. O art. 4º recomenda o reconhecimento e proteção dos valores, práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais dos povos indígenas e tribais. Na parte II, art. 14, a Convenção recomenda o reconhecimento dos direitos de propriedade e de posse desses povos sobre as terras que tradicionalmente ocupam e os governos devem definir as terras que esses povos ocupam tradicionalmente e protegêlas, garantindo a propriedade e posse dos povos indígenas e tribais. Observa-se que a Constituição Federal de 1988 adotou várias recomendações contidas na Convenção nº 169 da OIT, notadamente os dispositivos referentes ao respeito às diferenças etnoculturais, a garantia da posse indígena sobre as terras tradicionalmente ocupadas e usufruto dos recursos do solo, rios e lagos. Outro avanço da Carta atual consistiu no abandono dos ideais assimilacionistas3, conforme observa Márcio Santilli: A mudança profunda que a Constituição de 1988 introduziu foi o reconhecimento de direitos permanentes aos índios. Ela abandona a tradição assimilacionista e encampa a idéia – a realidade dos fatos – de que os índios são sujeitos presentes e capazes de permanecer no futuro.4 Com a Constituição Federal de 1988, muda-se o paradigma da integração do índio a civilização, após séculos de tentativas fracassadas. Os constituintes perceberam a realidade: os índios não eram passageiros, destinados ao desaparecimento etnocultural, como se pensava. Garantiu-se a eles o direito de viver como pessoas diferenciadas em relação ao povo brasileiro. Quebra-se a tendência integracionista expressa no Estatuto do Índio. 2 O Senado Brasileiro negou adesão à convenção 169, justificando a existência de dificuldades jurídicas. O que existia era um forte grupo parlamentar no Congresso Nacional em defesa dos latifundiários que muito se interessam pelas riquezas das terras indígenas. Contudo, a Constituição Federal de 1988 contém muitos dispositivos de proteção às terras indígenas, o que torna a ação dos especuladores de toda espécie muito limitadas. No entanto, em junho de 2002, o Senado reviu sua posição e aprovou a adesão, devendo a Câmara apreciar a matéria. Espera-se que seja aprovada. 3 O termo significa a integração ou aculturação compulsória dos índios, visando a substituição de seus costumes, religião e cultura pelos da sociedade brasileira. 4 Márcio SANTILI, Os brasileiros e os índios. São Paulo: Senac,2000. p. 29. 140 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 140 21/8/2008, 10:21 É claro que na Constituinte houve embates polêmicos e acalorados entre os defensores dos índios, e ferrenhos opositores, principalmente os latifundiários. Prevaleceu, contudo as idéias de vanguarda que se alinhavam à tendência ocidental moderna de proteção às minorias étnicas e respeito aos direitos humanos, conforme assinala Dalmo de Abreu Dallari: É importante lembrar [...] que a Constituição Brasileira de 1988 alinhouse entre as que proclamam a proteção dos direitos humanos como um de seus princípios fundamentais. Um sinal evidente desse alinhamento é justamente a existência de um capítulo a respeito dos índios e seus direitos. De modo geral, pode-se dizer que quase todos os direitos enumerados nesse capítulo já estavam inseridos na legislação brasileira [...] entretanto, o fato de estarem previstos na própria Constituição aumenta a eficácia desses direitos, torna mais difícil sua eliminação ou restrição e condiciona a atuação do Executivo, do Judiciário e do próprio Parlamento.5 Além de detalhar e ampliar os direitos indígenas, notadamente o direito a terra, cerne da questão, a Constituição atribuiu ao Ministério Público, como função institucional a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas (art. 129, V). Com isso, tentou tornar mais efetiva a proteção dos direitos indígenas. 2. Os direitos originários dos índios sobre suas terras tradicionais. Quanto às terras tradicionais indígenas, a Constituição Federal de 1988 reconheceu os direitos originários dos índios sobre suas terras e conceituou terra indígena nos seguintes termos: Artigo 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 5 Os direitos humanos e os índios no Brasil, apud O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de Alberto do AMARAL JÚNIOR, Cláudia PERRONE (org.), p. 261. 141 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 141 21/8/2008, 10:21 §1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Além disso, a Constituição assegura aos índios o usufruto exclusivo sobre o solo, os rios e lagos e classificou as terras como inalienáveis, indisponíveis e incluiu a imprescritibilidade dos direitos indígenas sobre elas, como reforço às garantias. A constitucionalização de todas essas garantias é fundamental para a sobrevivência física e cultural dos índios. As populações indígenas sem seus territórios perdem suas referências culturais, 6 deixando de ser diferenciados dos demais integrantes da nação brasileira. Foi essa a diretriz da política indigenista durante muitos séculos, porém as populações indígenas resistiram, conseguindo se manter como povo diferenciado etnoculturalmente. O reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre suas terras veio ratificar o velho instituto do indigenato expresso pelo Alvará de 1º de abril de 1680. O termo originário designa um direito anterior ao próprio Estado brasileiro, uma posse congênita, legítima por si mesma, ao contrário da posse adquirida que precisa preencher os requisitos civilistas para o reconhecimento. Os índios são os donos primários de suas terras. Qualquer posse sobre terras indígenas é modo derivado de aquisição e totalmente nulo, mesmo que existam títulos dominiais validados pelas autoridades públicas, porque o Estado não pode ratificar o esbulho do patrimônio indígena que se fundamenta em um direito originário precedente a qualquer outro. José Afonso da Silva, valendo-se das idéias de João Mendes Júnior, sobre o instituto demonstra que: “[...] o indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido”.7 No Mato Grosso do Sul, notadamente no território Kaiowá e 6 7 Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO, O renascer dos povos indígenas para o Direito Direito. Curitiba: Juruá. p. 120. Curso de direito constitucional positivo positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 828. 142 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 142 21/8/2008, 10:21 Ñandeva, o processo de espoliação de terras pelas frentes de expansão econômica, com apoio oficial, realizou-se à revelia de todo o ordenamento jurídico de proteção aos direitos indígenas vigente, inclusive o Alvará de 1680 que nunca foi revogado. Os índios Kaiowá e Ñandeva foram os primeiros habitantes e donos originários de aproximadamente 25% (vinte e cinco por cento), do atual Estado do Mato Grosso do Sul. Atualmente ocupam menos de 1% (um por cento) de suas terras originárias. Eles não abandonaram suas terras, foram expulsos delas gradativamente até serem encurralados nas minúsculas reservas demarcadas entre os anos de 1915 a 1928. A maior parte de suas terras estão tituladas em nome de fazendeiros que ostentam orgulhosos os títulos dominiais ratificados pelo Estado, porém esses títulos referem-se à aquisição derivada que não pode se sobrepor à posse originária dos Kaiowá e Ñandeva sobre suas terras. O grande problema é que a Justiça reluta em reconhecer os direitos primários e congênitos dos índios sobre as terras que ocupam ou que ocupavam até serem expulsos. Os magistrados estão alinhados com o paradigma civilista do direito de propriedade, fundamentado em justos títulos registrados nos cartórios de imóveis, enquanto os índios fundamentam seus direitos em uma posse originária, que, no entanto, não está registrada nos cartórios imobiliários. Os índios não precisam registrar suas terras para provar a posse. O direito deles é precedente a qualquer outro e funda-se na noção de pertencimento a terra, pela identificação de marcos naturais (rios, lagos, matas, colinas etc,.), além de elementos de história oral, vestígios arqueológicos; coesão e identidade do grupo indígena e documentação dos órgãos de assistência ao índio. O Alvará Régio de 1680 nunca foi revogado e a Constituição Federal de 1988 o recepcionou no art. 231, portanto, a posse indígena não pode ser visualizada através da “percepção civilista do direito outorgado, mas [...] sobe a perspectiva do habitat de um povo, do indigenato [...]”.8 Qualquer ocupação de terras indígenas é modo de aquisição derivado, posterior à posse originária dos índios, senhores de suas terras por título congênito que não precisa de ratificação do Estado ou de registro no cartório imobiliário para ter validade. Wagner GONÇALVES, Terras de ocupação tradicional: aspectos práticos da perícia antropológica, apud Orlando Sampaio SILVA, Lídia LUZ, Cecília Maria Vieira HELM (orgs.), A perícia antropológica em autos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC, 1994. p. 81-82. 8 143 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 143 21/8/2008, 10:21 3. O conceito jurídico de terras indígenas na Constituição Federal de 1988. A Constituição Federal de 1988 aperfeiçoou o conceito jurídico de terras indígenas como uma categoria sui generis no direito pátrio. Diferenciou posse e propriedade, criando uma situação especial para as terras indígenas. A propriedade é “pública, estatal, e posse privada, mas coletiva, não identificável individualmente”.9 A terra é de propriedade da União Federal, porém inalienável e se destina à posse permanente dos índios que têm a exclusividade do usufruto do solo, rios e lagos. A propriedade da União sobre as terras não lhe permite exercer todos os direitos previstos no art. 1.228 do novo código civil, Lei 10.406/202: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.” A União não pode usar terras indígenas porque elas se destinam a posse permanente dos índios (artigo 231, §2º da Constituição Federal de 1988). Também não pode aliená-las ou dispor delas (art. 231, § 4º). Em compensação, os índios têm a posse e o usufruto permanente sobre as terras, porém esse direito não se relaciona ao conceito civilista de posse do Código Civil em seu art. 1.196: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade”. Os índios têm a posse permanente das terras, contudo, não podem transferi-las, não se tornarão proprietários, seus direitos são imprescritíveis e a posse é coletiva. Não há exteriorização plena dos poderes atribuídos ao proprietário, o exercício do possuidor em relação à coisa corpórea “como se fosse o proprietário, pois a posse nada mais é do que uma exteriorização da propriedade”.10 A caracterização da propriedade e posse civilista não se prestam à conceituação de terras indígenas. Nesse sentido as palavras do Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes: Cumpre notar, outrossim, que a posse a que se refere o preceito constitucional não pode ser reduzida a conceito de posse do Direito Civil, Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998. p. 121. 10 Silvio RODRIGUES, Direito Civil: direito das coisas coisas. São Paulo: Saraiva, 1993. V. 5, p. 19. 9 144 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 144 21/8/2008, 10:21 como pretendem os autores. A posse dos silvícolas abrange todo o território indígena propriamente dito, isto é, toda área por eles habitada, utilizada para seu sustento e necessária à preservação de sua identidade cultural. 11 Portanto, a Justiça ao analisar questões envolvendo retomadas de terras indígenas ou reivindicações das comunidades silvícolas sobre seus territórios não pode se valer dos conceitos civilistas de propriedade e posse e justos títulos exibidos pelos supostos proprietários, porque a posse indígena e a propriedade da União sobre as terras indígenas constituem uma categoria especial conceituada pela Constituição Federal. Essas particularidades são de difícil entendimento para quem está habituado ao direito dogmático civilista conservador, conforme esclarece Carlos Frederico Marés de Souza Filho: [...] Fica até relativamente fácil de entender a propriedade pública destas terras, mas difícil de aceitar que a posse não individual [...] seja exatamente o fator determinante da propriedade [...] e para afastar a possibilidade de apropriação individual, o sistema atribuiu essa ‘propriedade’ à União, como terras públicas.12 Além dessas particularidades, não se pode esquecer que os direitos indígenas sobre suas terras tradicionais são imprescritíveis e não se sujeitam ao rito civilista. Não se pode exigir da comunidade indígena que ostente os títulos da terra ou que demonstre a ocupação efetiva e ininterrupta. Os direitos dos índios às suas terras precedem a qualquer outro. A prova da ocupação tradicional é realizada com base em critérios antropológicos. Não se pode exigir a ocupação atual dos índios quando eles foram expulsos pelos invasores. A falta de ocupação atual e efetiva não descaracteriza a posse indígena e nem a propriedade da União. Os índios não abandonam suas terras espontaneamente: ou são expulsos violentamente ou “convencidos” a se retirar. A posse indígena não se submete às regras de direito civil. Ultrapassa esse ramo do direito e somente pode ser compreendido no contexto constitucional. A terra para o índio não é um pedaço de 11 O domínio da União sobre as terras indígenas. O Parque Nacional do Xingu Xingu. Ministério Público Federal, 1988. p.56. 12 O renascer dos povos indígenas para o direito direito. p. 122-123. 145 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 145 Brasília: 21/8/2008, 10:21 chão destinado a uma atividade econômica. É o habitat coletivo, suporte da sobrevivência física e cultural e lugar onde a comunidade pode realizar sua cultura, crenças e língua. O reconhecimento das terras indígenas como habitat de um povo foi bem explanado pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Victor Nunes13 no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 44.585, referente ao Parque Nacional do Xingu: Aqui não se trata do direito de propriedade comum: o que se reservou foi o território dos índios. Essa área foi transformada num parque indígena sob guarda e administração do Serviço de Proteção aos índios, pois estes não têm a disponibilidade das terras. O objetivo da Constituição Federal é que ali permaneçam os traços culturais dos antigos habitantes, não só para sobrevivência dessa tribo, como para estudo dos etnólogos e para outros efeitos de natureza cultural ou intelectual. Não está em jogo, propriamente, um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos: trata-se do habitat de um povo. No mesmo sentido argumenta José Afonso da Silva14 : Sua posse extrapola da órbita puramente privada, porque não é e nunca foi uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas base de seu habitat, no sentido ecológico de interação do conjunto de elementos naturais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida humana. Esse tipo de relação não pode encontrar agasalho nas limitações individualistas do direito privado, daí a importância do texto constitucional em exame, porque nele se consagra a idéia de permanência, essencial à relação do índio com as terras que habita. A Constituição de 1988 não deixa dúvidas quanto às particularidades conceituais das terras indígenas e a idéia de permanência do índio como ser diferenciado etnoculturalmente, em oposição à política indigenista vigente até a década de 1980 que considerava o índio um ser transitório que seria gradativamente integrado à civilização e uma vez extintas as nações indígenas, a União poderia dar outra destinação a elas. Ironicamente, a inclusão 13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 44.585. Relator Ministro Victor Nunes, disponível na internet: <www.stf.gov.br/jurisprudencia>. Acesso em: 05/11/2002. 14 .), Os direitos indígenas e a Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, apud Juliana SANTILLI (org.), Constituição Constituição. Porto Alegre: Fabris,1993. p. 49. 146 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 146 21/8/2008, 10:21 das terras indígenas entre os bens da União desde a Constituição Federal de 1967, com o propósito do Governo Federal de ter o domínio de grandes áreas e com a incorporação gradativa dos índios à comunhão nacional pudesse distribuir as terras de acordo com os critérios econômicos capitalistas, representou na Constituição de 1988 a garantia da posse permanente dos índios sobre suas terras tradicionais. A União é a nua proprietária das terras tradicionais, mas está impedida de exercer seus direitos dominiais. Não pode alienálas nem dispor delas. Além disso, a Carta de 1988 impôs à União a obrigação de demarcar as terras indígenas, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens (art. 231, caput, parte final). Logo, uma idéia surgida com propósitos econômicos, transformou-se em garantia da permanência dos povos indígenas nas suas terras. A União como proprietária das terras, além de não poder aliená-las ou dispor delas, tem a obrigação constitucional de preservá-las e de agir prontamente contra qualquer ato que vise à invasão das terras, o esbulho ou exploração econômica não autorizada, como vem acontecendo principalmente na região Amazônica, onde se verifica a intromissão de garimpeiros e madeireiros em terras indígenas, exercendo exploração predatória e ilegal das riquezas existentes em territórios indígenas. Diante de todas essas especificidades, percebe-se que as terras indígenas não podem ser enquadradas no regime civilista de posse e propriedade e as decisões judiciais não devem ter por referência o Código Civil e sim, a Constituição Federal de 1988, interpretada teleologicamente para garantir aos índios a posse sobre seus territórios tradicionais e o retorno dos que foram expulsos. Atos de expulsão esses que não extinguiram o direito originário e congênito, garantido aos povos indígenas como direito imprescritível e indisponível, conforme observa Luiz Felipe Bruno Lobo: Não se confunde, então, o indigenato ou posse indígena com a posse civil, pois o indigenato caracteriza-se pelo direito à posse, fundamentado na posse tradicional imemorial, como forma de aquisição de direito originário que poderá até estar sendo esbulhado momentaneamente [...].15 15 Direito indigenista brasileiro brasileiro. São Paulo: LTR, 1996. p. 50. 147 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 147 21/8/2008, 10:21 4. O significado de terras indígenas tradicionalmente ocupadas na Constituição Federal de 1988. Quanto ao conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, tem havido muita interpretação errônea. José Afonso da Silva ressalta que a base do conceito: [...] acha-se no art, 231, § 1º, fundado em quatro condições, todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha, a saber: 1) serem por eles habitadas em caráter permanente; 2) serem por eles utilizadas para suas atividades produtivas; 3) Serem imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar; 4) serem necessárias a sua reprodução física e cultural.16 Todos esses quesitos de acordo com os usos, costumes e tradições indígenas. Assim, o conceito de terras indígenas tradicionais não se amolda ao conceito civilista de propriedade. Trata-se do habitat de um povo que tem uma relação mística com a terra, que não significa apenas local de morada, mas também um intrincado sistema estruturante da vida, da própria sobrevivência física e cultural. Um sistema político, econômico e cultural indígena. A terra fornece-lhes as bases da exploração racional econômica, fundada na caça, pesca, coleta de frutos e de produtos medicamentosos e na agricultura, sem visar à produção de excedentes, porque os índios não têm a preocupação da sociedade capitalista de acumular riquezas. Para eles, a riqueza é a terra onde possam sobreviver de acordo com seus usos, costumes e tradições. Quando se trata de demarcar terras indígenas, o primeiro argumento contrário é que os índios não produzem, não contribuem para o progresso da nação. Também argumenta-se que as áreas demarcadas para os índios são muito grandes, diminuindo consideravelmente a área cultivável. Esses argumentos não se sustentam. No Brasil há imensos latifúndios improdutivos, e às vezes, a única exploração econômica é a derrubada das matas para a venda de madeira o que causa grandes danos ao meio ambiente e em nada contribui para o progresso do país. 16 Curso de direito constitucional positivo positivo. 148 revista_nova.P65 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 826. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 148 21/8/2008, 10:21 Feitos esses esclarecimentos, analisaremos duas expressões que propositadamente são interpretadas erradamente pelos opositores dos índios. Os termos são “tradicionalmente” e “permanente”. Os argumentos no sentido da exigência da ocupação atual e efetiva dos índios sobre suas terras para o reconhecimento da tradicionalidade não encontram respaldo no texto constitucional. A expressão tradicionalmente não revela uma “circunstância temporal”17 e sim, o modo como os índios se relacionam com a terra, enquanto habitat que lhes assegura a sobrevivência física e cultural de acordo com a tradição, usos e costumes. Cada comunidade indígena tem seu modo próprio de viver. Algumas tribos têm na agricultura sua principal fonte econômica. Outras vivem da caça e da pesca e por isso, perambulam por um espaço maior. Percorrem longas distâncias, exploram racionalmente o habitat deixando que a fauna e a flora se recomponham. Não são nômades ou errantes como os classificam os seus opositores. Os índios que vivem da coleta, caça e pesca perambulam pelo grande território, porém voltam ao ponto de origem quando decorrido espaço de tempo suficiente para a recuperação dos recursos naturais. Essa é uma forma de interagir com a natureza, retirando dela o sustento, sem esgotá-la. Dessa forma, o espaço a ser demarcado como terra tradicional terá como base a cultura de cada povo e o tipo de atividade econômica tradicional. Se os índios são agricultores , a área a ser demarcada será menor do que a destinada a índios que têm na coleta, caça e pesca sua principal atividade econômica. O termo “permanente” (art. 231, §1º e 2º da Constituição Federal) não se refere à posse ininterrupta pretérita e presente. O termo “permanente” significa que as terras destinam-se à posse permanente (futura) da comunidade indígena. Nesse sentido é o ensinamento de José Afonso da Silva: Nem tradicionalmente nem posse permanente são empregados em função de usucapião imemorial em favor dos índios, como eventual título substantivo que prevaleça sobre títulos anteriores. Primeiro, porque não há títulos anteriores a seus direitos originários. Segundo, porque usucapião é modo de aquisição da propriedade e esta não se imputa 17 Curso de direito constitucional positivo positivo, p. 827. 149 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 149 21/8/2008, 10:21 aos índios, mas à União a outro título. Terceiro, porque os direitos dos índios sobre suas terras assentam em outra fonte: o indigenato.18 O termo permanente, portanto, refere-se ao futuro, à garantia de que as terras tradicionais indígenas destinam-se para sempre a seu habitat, sendo essas terras inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis. Observa-se também esclarecimento de José Afonso da Silva que a tradicionalidade não tem como pressuposto posse imemorial ininterrupta, porque a posse indígena tem como pressuposto o indigenato e baseia-se na continuidade histórica viva. Basta que existam remanescentes da comunidade indígena para que seja reconhecida a ocupação tradicional das terras pelo critério antropológico, sendo que o atual texto da Constituição “operou um deslocamento dos debates jurídicos do plano da antiguidade para a forma de ocupação. “ Nesse sentido, a prova da ocupação tradicional da terra baseia-se em critérios antropológicos, segundo a tradicionalidade de continuidade viva e não sob a óptica da ocupação imemorial que remonta à era précolombiana. Os índios não precisam provar que ocupam a terra desde o ano 1500. Eles precisam provar que habitam a terra atualmente e estão sendo esbulhados ou que ocupavam a terra e foram espoliados de seu território em um passado vivo e palpitante que pode ser reconstituído pela história oral, modo de ocupação e vestígios de sua presença na área. Diante de uma ocupação tradicional atual ou pretérita, os títulos dominiais são nulos e extintos, não produzindo efeitos. Da mesma forma é nulo e não produz efeitos qualquer ato que visa à ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas tradicionais (art. 231, § 6º, Constituição Federal de 1988). Tal dispositivo constitucional reforça o conceito de direito originário que os índios têm sobre suas terras tradicionais. O direito originário precede a qualquer outro. Se os índios foram expulsos da terra, convencidos a sair ou removidos, no momento de tal ato eles ocupavam a terra em caráter permanente, uma vez que os índios não abandonaram suas terras espontaneamente. Ao saírem da terra por qualquer desses motivos, os índios não perdem a posse sobre elas, porque essa posse é permanente e imprescritível. A posse dos ocupantes não índios é precária e nula e a posse dos índios é permanente, originária e congênita. Nesse sentido, 18 Ibidem, p. 827. 150 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 150 21/8/2008, 10:21 pronunciou-se o Tribunal Regional Federal da 1ª Região , em 08 de abril de 1991, tendo como relator o Juiz Tourinho Neto:19 EMENTA CÍVEL. AGRÁRIO. POSSE. TERRAS INDÍGENAS. ÍNDIOS PATAXÓS. INDENIZAÇÃO DOS BENS DESTRUÍDOS PELOS ÍNDIOS. 1. Os índios Pataxós vagueavam pelo Sul da Bahia, onde tinham seu habitat, e se fixaram, posteriormente, em área do atual Município de Pau Brasil, que lhe veio a ser reservada, em 1926, pelo Governo daquele Estado-Membro. 2. Os Pataxós não abandonaram suas terras. Foram, sim, sendo expulsos por fazendeiros, que delas se apossaram, utilizando-se de vários meios, inclusive a violência. A posse dos índios era permanente. A do réu precária, contestada. 3. Indenização concedida, observando-se, no entanto, o § 2º do art. 198 da CF/69. 4. Apelação denegada. A posse de terra indígena não gera direitos de usucapião ou retenção da propriedade. Se os índios foram expulsos de suas terras, os justos títulos dos ocupantes não servem para descaracterizar a área como terra indígena de ocupação tradicional, servem apenas, demonstrada a boa-fé, para que o Estado indenize os valores das benfeitorias. 5. Considerações Finais A Constituição Federal ampliou os direitos indígenas e reconheceu os direitos originários dos índios sobre suas terras. Cristalizou a idéia de permanência deles como povo diferenciado, abandonando o modelo assimilacionista vigente. O conceito de terras indígenas como um bem público de propriedade da União e usufruto exclusivo e permanente dos índios é uma forte garantia contra o esbulho. Nessa perspectiva, para uma terra ser reconhecida indígena não é necessária a ocupação atual, bastando os vestígios veementes da ocupação passada, de acordo com os critérios históricos e antropológicos. A expressão ocupação permanente não se refere ao passado, mas 19 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO. Apelação Cível nº 89. 01.01353-3-BA. Disponível na Internet: <http//arquivo.trf.gov.br.asp>. Acesso em: 26/05/2002. 151 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 151 21/8/2008, 10:21 sim à garantia de preservação das terras indígenas em caráter contínuo e perpétuo. Uma perspectiva de futuro, de permanência dos índios como seres diferenciados culturalmente. A terra é o direito primário e congênito dos índios, sem o qual as outras garantias constitucionais não se concretizam. Por isso, a importância de se reconhecer, demarcar e proteger as terras indígenas como garantia da sobrevivência física e cultural dos índios. Referências Bibliográficas BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 44.585. Relator Ministro Victor Nunes, disponível na internet: <www.stf.gov.br/jurisprudencia>. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO. Apelação Cível nº 89. 01.01353-3-BA. Disponível na Internet: <http//arquivo.trf.gov.br.asp>. DALLARI, Dalmo de Abreu. Os direitos humanos e os índios no Brasil. In: AMARAL JÚNIOR Alberto do; PERRONE, Cláudia (org.). O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Biblioteca Edusp de Direito, 2003. GONÇALVES, Wagner. Terras de ocupação tradicional: aspectos práticos da perícia antropológica. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia;, HELM, Cecília Maria Vieira (orgs.), A perícia antropológica em autos judiciais judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC, 1994. LOBO, Luiz Felipe Bruno. 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Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 152 21/8/2008, 10:21 CRIMES TRIBUTÁRIOS E ENCERRAMENTO DO RECURSO FISCAL LUIZ FLÁVIO GOMES¹ ALICE BIANCHINI² Resumo Resumo: O Autor aborda a questão dos crimes tributários e encerramento do recurso fiscal destacando a importância de se proceder a propositura de ação penal somente após decisão definitiva, pelo fisco, sobre o Débito fiscal. Palavras - Chave Chave: Crimes Tributários - Direito - Débitos Fiscais. Constitui direito certo de todo contribuinte, uma vez autuado pelo fisco, discutir administrativamente a exigibilidade ou mesmo a existência de tributo ou contribuição, isto é, se é devido ou não. Durante anos muito se discutiu se a Justiça criminal poderia processar e condenar esse contribuinte, antes mesmo do encerramento da discussão fiscal. Como preponderou por longo período o entendimento de que o recurso fiscal não impedia a ação penal nem a condenação (tese da independência das instâncias fiscal e penal), milhares de pessoas foram condenadas, embora pendente algum recurso fiscal. Hoje o panorama é bem distinto. Para o STF não há crime tributário enquanto não constituído regularmente o crédito respectivo. Esse tema passou a ser debatido ardorosamente, como se sabe, após a edição da Lei 9.430/90. Seu art. 83 determina que a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária (arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90), “(...) será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.” Desde então, buscava-se a correta interpretação de tal dispositivo, o que deu ensejo a diversos posicionamentos tanto doutrinários quanto jurisprudenciais. Chegou-se a entender que o dispositivo estabelecia uma relação de interdependência entre as instâncias (posição acatada ¹ Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Consultor e Parecerista e Diretor-Presidente da TV Educativa IELF (1ª TV Jurídica da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país – www.ielf.com.br). ² Doutora em Direito penal pela PUC-SP. Consultora e Parecerista. 153 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 153 21/8/2008, 10:21 pela maioria dos doutrinadores). Mas a linha predominante nos tribunais rechaçava por completo esse pensamento, mantendo a convicção de que a nova Lei não tinha o condão de alterar a natureza da ação penal dos crimes tributários. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, manifestando-se sobre o pedido de concessão de liminar postulado na ADIn 1.571, que versava sobre a constitucionalidade do já mencionado art. 83, por maioria de votos, em 20.03.1997, relator Ministro NÉRI DA SILVEIRA, proclamou que: (a) o art. 83 da Lei 9.430/96 não estipulara uma condição de procedibilidade da ação penal por delito tributário; (b) tal dispositivo dirige-se a atos da administração fazendária; (c) o Ministério Público não se encontra impedido de agir antes da decisão final no procedimento administrativo (Informativo STF n. 64, 17-28 mar. 97, p. 1 e 4). Em 10 de dezembro de 2003, entretanto, a Corte Suprema, com acerto, decidiu que, no que tange aos delitos previstos no art. 1º da Lei 8.130/90, há necessidade de se aguardar a decisão administrativa, para somente então poder ser intentada a ação penal (Habeas corpus 81.611-DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence). Fundamentação: o crime é material e exige a efetiva supressão ou redução do tributo. Assim sendo, para a perfectibilização do delito, há que se aguardar que o contribuinte, a partir do momento em que o débito é reconhecido como devido, recuse-se a honrá-lo ou o faça em valor inferior ao apurado. Não se trata de condicionar sempre a ação penal à representação fiscal de que fala o art. 83 da Lei 9.430/96, visto que o Ministério Público, tendo indícios de materialidade e de autoria (caso de falsidade de nota fiscal, por exemplo), pode intentar a ação penal. Quando, no entanto, o contribuinte discute a existência do débito fiscal no âmbito administrativo é diferente. É a autoridade administrativa quem tem o poder de exarar decisão acerca de ser, ou não, o tributo devido, muito embora a sua decisão possa ser revista em sede judicial. Enquanto tramita o processo (ou recurso) administrativo, o débito tributário ainda não está devidamente reconhecido (a materialidade da relação tributária não está constituída), levando a que se ressinta de um dos requisitos constitutivos do delito imputado aos réus, qual seja, tributo, contribuição social, ou qualquer acessório devido. Inexiste, assim, constituição inequívoca da tipicidade, o que resulta na falta de justa causa para a propositura da ação penal. 154 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 154 21/8/2008, 10:21 A concepção do delito tributário, como acaba de ser exposta, impede vislumbrar a existência de questão heterogênea facultativa (relativa) com a aplicação do disposto no art. 93 do CPP. Perceba-se que há ausência de materialidade (existência) do delito tributário, tributário o que leva a que a denúncia não possa nem mesmo ser recebida: não pode haver condenação (nem pedido) se não existe materialidade (crime) (crime). O correto, portanto, é o trancamento da ação penal. Também não se trata, a rigor, apesar da doutrina do eminente Min. punibilidade já que esta Sepúlveda Pertence, de condição objetiva de punibilidade, se caracteriza por não alterar a configuração típica, ser exterior à conduta e fundamentar-se em razões de política criminal. A constatação, ou não, da existência de tributo devido constitui o cerne do delito de sonegação fiscal, tema que se vincula, como já mencionado, com a tipicidade. Enquanto não decidido definitivamente (pelo fisco) se o tributo é devido ou não, em jogo está a própria existência (materialidade) do crime. Nessas situações jamais se justifica a propositura imediata de ação penal. Aliás, quando intentada, mister se faz trancá-la ou anulá-la, como acaba de reconhecer o STF, por decisão de sua Primeira Turma (HC 82.390, rel. Sepúlveda Pertence). De acordo com relato feito pelo Ministro Pertence, os acusados foram condenados por fraude fiscal tributária, consistente na inserção de dados inexatos em livros contábeis, com o fim de recolher imposto a menor (artigo 1º, inciso II da Lei 8.137/90). A defesa recorreu ao Supremo contra o recebimento da denúncia antes de decisão definitiva em processo administrativo. O recurso pedindo o cancelamento da exigência fiscal foi apresentado ao Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, em julho de 1995. Antes que fosse julgado, houve o oferecimento da denúncia, recebida em junho de 1996. A sentença concluiu que o encerramento da ação administrativa não seria necessário para impedir o andamento da Ação Penal. O ministro Sepúlveda Pertence observou que, no julgamento do Habeas Corpus 81.611, o Supremo firmou o entendimento de que “nos crimes previstos no artigo 1º da Lei 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, configurando-se como elemento essencial à exigibilidade da obrigação tributária” . Por maioria, os ministros da Primeira Turma acompanharam o votovista do ministro Sepúlveda Pertence, para anular o processo a partir do recebimento da denúncia. Foi voto vencido o ministro aposentado Moreira 155 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. Alves, que era o relator da matéria. revista_nova.P65 155 21/8/2008, 10:21 156 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 156 21/8/2008, 10:21 O SISTEMA CLÁSSICO DA TEORIA DO DELITO- A ANÁLISE DA TEORIA CAUSALNATURALISTA DA AÇÃO E DA TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE José Carlos de Oliveira Robaldo1 Vanderson Roberto Vieira2 Resumo Resumo:: Os Autores abordam o sistema clássico da Teoria do Delito destacando o conceito, observações críticas, a Teoria Psicológica da culpabilidade e apresentam considerações conclusivas através de uma análise da teoria causal naturalista da ação e da teoria psicológica da culpabilidade em confronto com o atual Código Penal Brasileiro. Palavras- Chave: Teoria do Delito - Culpabilidade- Direito Penal. 1- Introdução O sistema clássico da teoria do delito, também denominado de sistema causal-naturalista da teoria do delito, foi elaborado a partir das construções dogmáticas de dois grandes penalistas: Franz Von Liszt e Ernst Von Beling, por isso também denominado de sistema Liszt-Beling. Em conseqüência, são os criadores do conceito causal-naturalista de ação e da teoria psicológica da culpabilidade 3 . O sistema em questão refletia a situação da dogmática alemã no período entre 1890 a 1910. O movimento filosófico corrente era o positivismo científico que utilizava no Direito Penal o método causal-explicativo, método este típico das ciências naturais, dando importância ao juízo de realidade e não a juízos de valor. Procurador de Justiça aposentado no Estado do Mato Grosso do Sul, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Unigran-Dourados, Diretor do sistema Esud/Ielf de Mato Grosso do Sul e Conselheiro Estadual de Educação. Mestrando em Ciências Jurídico-Penais pela Unesp –campus de Franca. 2 Graduado em Direito pela Unesp -campus de Franca. Mestrando em Ciências Jurídico-Penais pela Unesp –campus de Franca. Bolsista de mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. 3 Bitencourt afirma que “a teoria psicológica da culpabilidade tem estrita correspondência com o naturalismocausalista, fundamentando-se ambos no positivismo do século XIX”. Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 56. 1 157 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 157 21/8/2008, 10:21 Luís Greco expõe que “o sistema naturalista, também chamado sistema clássico do delito, foi construído sobre a influência do positivismo, para o qual ciência é somente aquilo que se pode apreender através dos sentidos, o mensurável. Valores são emoções, meramente subjetivos, inexistindo conhecimento científico de valores”4. 2- A teoria causal-naturalista da ação5 2.1- O conceito É necessário analisarmos o conceito de ação fornecido pela teoria causal-naturalista. Von Liszt afirmava que “acción es la producción, reconducible a una voluntad humana, de una modificación en el mundo exterior”6. Ação, para o autor, é a produção, conduzida por uma vontade humana, de uma modificação no mundo exterior - era a ação um fenômeno causal-naturalista (causa-efeito). Nesse conceito, para a modificação causal do mundo exterior devia bastar qualquer efeito, por mínimo que seja, como o provocar vibrações no ar no caso das injúrias. Como essa concepção de ação dificilmente podia compatibilizarse com a omissão, que nada causa, Roxin7 explica que Von Liszt chegou posteriormente a formular outra definição de ação, um pouco distinta, afirmando que “ação é conduta voluntária feita no mundo exterior; mais exatamente: modificação, é dizer, causação ou não evitação de uma modificação (de um resultado) do mundo exterior mediante uma conduta voluntária”. Da mesma forma sustentava Beling dizendo que a ação deve afirmar-se sempre que concorra uma conduta humana levada pela vontade, independentemente da conduta consistir num movimento ou num não movimento8. Podemos observar que para a Teoria causal-naturalista da ação, ação é o comportamento humano voluntário que produz modificação Cf. GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito : em comemoração aos trinta anos de Política criminal e sistema jurídico-penal de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 32, out./dez. 2000, p. 122. 5 Ação é empregada aqui no sentido de conduta, abrangendo a ação propriamente dita (comissão) e os comportamentos omissivos. 6 Cf. ROXIN, Claus. Derecho penal - Parte Geral. Madrid: Civitas, 1997. T.I. p. 236. 7 Cf. Ibid., p. 237. 8 Cf. Ibid., p. 237. 4 158 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 158 21/8/2008, 10:21 no mundo exterior. A conduta era desenhada como um simples movimento corpóreo de fazer ou não fazer algo 9. Importante ressaltar que a ‘vontade’ nessa conceituação é em relação à conduta em si e não a direcionada ao resultado. 2.2- Observações críticas O conceito causal-naturalista de ação delimita bem o campo de atuação do Direito Penal, excluindo de antemão os comportamentos irrelevantes, como os eventos causados por animais (desde que não utilizados como meio instrumental para a conduta de alguém), os meros pensamentos e atitudes internas, os atos reflexos, ataques convulsivos, delírios e atos em sonambulismo. Esses comportamentos são todos irrelevantes para o Direito Penal e, numa perspectiva constitucional, nunca poderão figurar como tipos penais, sob pena de violar frontalmente princípios magnos do Direito Penal, como o princípio da indispensável proteção da dignidade da pessoa humana. O conceito causal-naturalista da ação não é um conceito que abrange todos os comportamentos que podem ser previstos pela lei penal, pois tal conceito não abrange comportamentos omissivos culposos, em que falta completamente a vontade no contexto do mero pensamento do indivíduo. O conceito também é criticado por não ser um conceito prétípico adequado, pelo fato de incorporar em si o comportamento omissivo, antecipando sempre o elemento da tipicidade. Não há como desvincular a omissão de um parâmetro típico; só o tipo pode caracterizar um ato como omissivo. Sobre a insuficiência do conceito em questão se pronuncia Figueiredo Dias afirmando que “(...) perante esta multiplicidade de funções que importa cumprir simultaneamente, um puro conceito causal-naturalístico de ação está desde logo fora de questão e dele pode se afirmar já não ser hoje defendido por ninguém” 10. A grande dificuldade foi para explicar a “omissão”, pois não ela é ‘naturalista’ e sim ‘normativa’. “Omitir não significa ‘não fazer’, senão ‘não fazer o que o ordenamento jurídico espera’”( GOMES, Luiz Flávio. Direito penal..., p. 61. 10 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 207. 9 159 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 159 21/8/2008, 10:21 3- A Teoria psicológica da culpabilidade 3.1.- Juristas que adotam a teoria psicológica da culpabilidade É muito importante no estudo do Direito Penal sabermos em que sistema da teoria do delito filia-se cada jurista, principalmente aquele que elabora obras de Direito Penal, pois desta forma já saberemos como ele tratará os diversos institutos da teoria do delito. Adotam a teoria psicológica da culpabilidade, dentre outros: Von Liszt, Beling, Radbruch, Sebastián Soler, R. Nuñez e Fóntan Balestra. Adotam-na no Brasil, dentre outros: Costa e Silva, Basileu Garcia, Everardo da Cunha Luna, Roberto Lyra Filho e Galdino Siqueira. 3.2 Natureza da culpabilidade na teoria psicológica: a culpabilidade é puramente psicológica. O dolo e a culpa stricto sensu como espécies da culpabilidade O dolo e a culpa strictu sensu (culpa em sentido estrito11), segundo a concepção psicológica, são as duas espécies de culpabilidade, esgotando o conteúdo da culpabilidade. São “a” culpabilidade. Afirma Luiz Flávio Gomes que “ (...) para a teoria psicológica da culpabilidade, esta é o liame, o vínculo ou o nexo psicológico que liga o agente ou pelo dolo ou pela culpa [culpa stricto sensu] ao seu fato típico e antijurídico”12. Juarez Tavares nos informa que o sistema causal-naturalista “ (...) fazendose da causalidade objetiva e do liame subjetivo partes constitutivas essenciais do delito, dissocia-se sua análise, conseqüentemente, em dois estágios legais, de maneira que a primeira (causalidade) se encontra caracterizada na tipicidade e na antijuridicidade, e a última parte (vínculo psicológico) constitui a base da culpabilidade”13. Verificamos que para o sistema causal-naturalista a tipicidade e a 11 Os termos “imprudência” e “negligência” são muito utilizados pelos autores estrangeiros para designar a nossa culpa stricto sensu (culpa em sentido estrito), abarcando todas as suas espécies (negligência, imprudência e imperícia). Neste trabalho utilizaremos a expressão culpa em sentido estrito ou culpa stricto sensu. Não utilizaremos simplesmente o termo culpa pelo fato de ser este utilizado por muitos juristas como sinônimo de culpabilidade. 12 Cf. GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 37. 13 Cf. TAVARES, Juarez. Teorias do delito (variações e tendências). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 20. 160 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 160 21/8/2008, 10:21 antijuridicidade são objetivas. Dentro de uma visão panorâmica do delito, Von Liszt e Beling o dividiam em dois aspectos bem definidos: um externo(objetiva) e outro interno(subjetiva). O aspecto externo compreendia a ação típica e ilícita. O interno dizia respeito à culpabilidade que, segundo a concepção por eles adotada, era o vínculo ou nexo psicológico que unia o agente ao fato por ele praticado. A parte externa do delito, ou seja, o injusto penal (fato típico e ilícito), era objetivo, sendo que na sua parte interna - a culpabilidade - é que deviam ser aferidos os elementos psicológicos do agente. A culpabilidade é vista num plano puramente naturalístico ou psicológico, ou seja, desprovida de qualquer valoração e se esgota na simples constatação da posição do agente perante sua própria conduta. Por afirmar que na essência da culpabilidade figuram requisitos psicológicos é que a teoria em questão é dita psicológica. 3.3- Requisitos ou elementos da culpabilidade na teoria psicológica Ao lado do dolo e da culpa stricto sensu como espécies, funciona como pressuposto deles o requisito da imputabilidade, que deve estar presente no momento da conduta (ação ou omissão). Com relação ao elemento da consciência da ilicitude, os juristas que adotam esta teoria não possuem convergência de opiniões. A divergência, que diz respeito à consciência da ilicitude, surge desde os próprios sistematizadores: Von Liszt, encabeçando a posição majoritária, rejeita-a como elemento da culpabilidade14, enquanto que Beling confere-lhe importância como dado agregado ao dolo15.. Para Von Liszt e os demais autores que não consideram a consciência da ilicitude como elemento da culpabilidade, o dolo é caracterizado como dolo natural (psicológico), ou seja, a consciência da ilicitude não é elemento integrante do conceito de dolo. A consciência da ilicitude, para essa corrente majoritária, não é importante para o Direito Penal, não tendo nenhuma relevância para a averiguação do crime. 14 15 O dolo existe independentemente do conhecimento da ilicitude da conduta, basta a voluntariedade da conduta(dolo natural). Assim, o dolo para Beling é dolo normativo (a consciência da ilicitude é parte do dolo). 161 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 161 21/8/2008, 10:21 3.4- A importância e o mérito da teoria psicológica da culpabilidade Como veremos em seguida, muitas são as críticas endereçadas à teoria psicológica da culpabilidade. Apesar disso, essa concepção da culpabilidade já representou um coroamento histórico, uma conquista da civilização, que fez da conduta (ação ou omissão) algo pessoal, coligado ao seu autor. Não podemos esquecer que antes dessa evolução histórica, a responsabilidade penal era objetiva, isto é, não se examinava o dolo ou culpa stricto sensu do agente, bastava a causação do dano para despontar a responsabilidade penal16. 3.5- Críticas à teoria psicológica da culpabilidade A doutrina formula severas críticas à teoria psicológica da culpabilidade elaborada pelo sistema causal-naturalista da teoria do delito.Uma crítica é a seguinte: se é possível, segundo a Nova Parte Geral do Código Penal brasileiro (lei 7209/84), a existência de conduta dolosa praticada por agente não culpável (e isso é inconcebível na teoria psicológica), verifica-se que a teoria psicológica é conflitante com nosso direito positivo e, sem nenhum desmerecimento aos seus criadores, os quais inovaram à sua época profundamente o Direito Penal, não pode ser aplicada ao nosso atual ordenamento jurídico. Outra crítica gira em torno da culpa stricto sensu: a culpa em sentido estrito não é de natureza psicológica, mas sim normativa, isto é, um comportamento humano é culposo quando não observa o cuidado objetivo necessário, e quem examina se o agente foi ou não diligente e se era ou não objetivamente previsível o resultado é o juiz17. Assim, a culpa stricto sensu decorre de um juízo de valor exclusivo por parte do magistrado, sendo com isso normativa. Todavia, é admitida erroneamente como psicológica pela teoria psicológica da culpabilidade. Com a descoberta dos elementos subjetivos do injusto18, enunciados Igualmente: GOMES, op. cit., p. 37. Nota 11. É por isso que se diz que a “culpa está na cabeça do juiz”. 18 São os elementos subjetivos do tipo e os elementos subjetivos das justificativas. 16 17 162 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 162 21/8/2008, 10:21 por Hegler e Mayer e desenvolvidos por Mezger19, comprovou-se que há dado subjetivo que pertence ao injusto penal (fato típico + ilícito) ao mesmo tempo em que há dado subjetivo que não pertence à culpabilidade. Com isso caiu por terra a clássica bipartição do delito em parte objetiva (injusto) e parte subjetiva (culpabilidade). A culpabilidade para a teoria psicológica da culpabilidade é psicológica e isso não pode ser admitido. Bettiol20 ensina que a culpabilidade é o juízo de desaprovação por aquilo que foi realizado. Nos diz esse jurista que uma concepção meramente psicológica da culpabilidade é assim uma concepção fria, naturalística, incolor, incapaz de adequar-se à rica casuística das situações para ver se é possível um juízo de reprovação e até que ponto. Outra crítica endereçada à teoria psicológica da culpabilidade é que concebe o dolo e a culpa stricto sensu fora do tipo, nos ensina Bacigalupo, “(...) significa não alcançar a relevância do princípio da legalidade e a função garantidora da lei penal”21. 4- Considerações conclusivas. O sistema clássico em confronto com o atual Código Penal brasileiro. O atual Código Penal brasileiro não adota o sistema clássico da teoria do delito. Após o período em que reinou o sistema clássico, surgiram, durante o século XX novos sistemas de direito penal: neoclássico (Mezger, Mayer)22, Finalista (Welzel), ecléticos e, mais recentemente, concepções funcionalistas de vários autores alemães, como Roxin (Teoria funcional racional-teleológica) e Jakobs (Teoria funcional sistêmica). Podemos afirmar que o nosso Código Penal, após a nova parte geral de 1984, adota uma postura finalista, que pode ser sintetizada da seguinte forma: a) o dolo e a culpa stricto sensu são elementos indispensáveis para se caracterizar um fato como típico, figurando, 19 Assim: TAVARES, op. cit., p. 38. Nota 13; Wessels cita também Frank e Nagles (Cf. WESSELS, Johannes. Direito Penal - Parte Geral. Porto Alegre: Fabris, 1976. p. 30.); Jescheck salienta que se remonta a Fischer o descobrimento de tais elementos (Cf. JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Tradução de Mir Puig e Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981. p. 435). 20 Cf. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. v. II. p. 8. 21 Cf. BACIGALUPO, Henrique. Tipo y error. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1973. p. 26. 22 A culpabilidade continua sendo psicológica, mas também normativa (psicológica-normativa) com a inclusão da exigibilidade de conduta diversa (introduzida por Frank em 1907). 163 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 163 21/8/2008, 10:21 assim, como elementos subjetivos do tipo penal; b) a culpabilidade é valorativa, sendo um juízo de censura que recai sobre o agente de um fato típico e ilícito e tem como elementos a imputabilidade, a consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. O nosso Código Penal tem essa postura, porém isso não significa uma total adesão aos postulados do Finalismo, o que levaria a um “congelamento” do sistema penal. O que se verifica atualmente é que, devido a abertura do sistema jurídico-penal23, da penetração dos valores constitucionais de política criminal24, o nosso Código está de braços abertos para novas contribuições do pensamento funcional. Como exemplo disso podemos citar a aplicação atual do princípio da insignificância da lesão como excludente da tipicidade, por ausência de lesão efetiva ao bem jurídico, e a aplicação da Teoria da imputação objetiva, que em nosso sistema pode ser aplicada com muito sucesso como um complemento ao nexo causal. Além dessas, muitas outras contribuições de política criminal certamente estarão por vir na busca eterna de uma aplicação mais racional do sistema jurídico-penal, em prol da consagração dos princípios garantidores do Direito Penal e da efetiva proteção de bens jurídicos e, em última análise, de uma dogmática penal mais próxima da realidade. Bibliografia: AZEVEDO, David Teixeira de. A culpabilidade e o conceito tri-partido de crime. Revista Brasileira de Ciências Criminais Criminais, n. 2, abr./ jun. 1993, p. 46 e ss. BACIGALUPO, Henrique. Tipo y error error. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1973. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. v. II. 23 O sistema jurídico caracteriza-se por ser um sistema aberto. Esta abertura é a capacidade de evolução e a modificabilidade do sistema, pois é um fato geralmente reconhecido e admitido que o sistema jurídico se encontra numa mudança permanente, sendo suscetível de aperfeiçoamento. Segue-se, daí, que o sistema não é estático, mas dinâmico, assumindo a estrutura da historicidade. O Direito Penal, como qualquer Direito, não é uma construção isolada no tempo. É um produto histórico, que deriva de longa evolução de instituições penais e contém em si mesmo, em potencial, elementos de transformações futuras. Sobre a abertura do sistema e as suas implicações Cf. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Trad. António Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 102 a 126. 24 PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal. Trad. Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Antonio Sergio Fabris Editor, 1989. 164 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 164 21/8/2008, 10:21 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal penal. São Paulo: RT, 1999. ____ ____. Erro de tipo e erro de proibição proibição. São Paulo: Saraiva, 2000. BRODT BRODT, Luís Augusto Sanzo. Da consciência da ilicitude no direito penal brasileiro brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito direito. Trad. António Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. DOHNA, Alexander Graf Zu. La estructura de la teoría del delito delito. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1958. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Questões fundamentais do direito penal revisitadas revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal - a nova parte geral geral. Rio de Janeiro: Forense, 1991. GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição proibição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. ______. Direito penal – Parte geral: introdução. São Paulo: RT, 2003. GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito : em comemoração aos trinta anos de Política criminal e sistema jurídicopenal de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais Criminais, n. 32, out./dez. 2000, p. 120 e ss. JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal penal. Tradução de Mir Puig e Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981. 2 v. MAURACH, Reinhart. O conceito finalista da ação e seus efeitos sobre a teoria da estrutura do delito. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal Penal, n. 14, jul./set. 1966, p. 21 e ss. MUÑOZ CONDE, Francisco.. Teoria general del delito delito. Bogotá: Temis, 1984. ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal jurídico-penal. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. ____. Derecho penal - parte geral. Madrid: Civitas, 1997. T.I. SOLER, Sebastian. Culpabilidade real e culpabilidade presumida. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal Penal, n. 4, jan./ mar. 1964, p. 5 e ss. STRATENWERTH, Günter . Derecho penal - parte general II. Madri: Edersa, 1982. TAVARES, Juarez. Teorias do delito (variações e tendências) tendências). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. 165 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 165 21/8/2008, 10:21 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal penal. São Paulo: Saraiva, 1991. WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal - una introducción de la doctrina de la acción finalista) finalista). Tradução de José Cerezo Mir. Barcelona: Ariel, 1964. geral. Tradução de WESSELS, Johannes. Direito penal - parte geral Juarez Tavares. Porto Alegre: Fabris, 1976. 166 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 166 21/8/2008, 10:21 A IMPORTÂNCIA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. Valerio de Oliveira Mazzuoli¹ Resumo Resumo: O artigo aborda questão central que se coloca no Direito internacional Público, a saber, a concreta efetividade da proteção internacional dos direitos humanos em situação de riscos tais como o genocídio, crimes contra a paz e crimes de guerra e a importância do Tribunal Penal Internacional na proteção internacional dos direitos humanos. Situa a questão em termos históricos e conclui apresentando perspectivas para os direitos humanos e para a justiça internacional no século XXI. Palavras - Chave Chave: Direitos Humanos - Tribunal Penal - Direito Internacional. 1. Gênese da justiça penal internacional Atualmente, um sério problema que se coloca no Direito Internacional Público diz respeito à concreta efetividade da proteção internacional dos direitos humanos, quando está em jogo a ocorrência de crimes bárbaros e monstruosos contra o Direito Internacional e que ultrajam a dignidade de toda a humanidade, tais como o genocídio, os crimes contra a paz, os crimes de guerra e o crime de agressão. A nosso ver, o problema deve ser repartido e examinado sob um dúplice aspecto: a) o primeiro, diz respeito à efetivação do direito inerente a todo ser humano de vindicar a seu favor, em cortes e instâncias internacionais, a proteção dos seus direitos internacionalmente consagrados, caso sejam violados, visando uma justa reparação pelos prejuízos sofridos; e b) o segundo, consubstancia-se no poder de punição que deve ter o Direito Internacional Público em relação àqueles crimes que afetam a Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Franca (aprovado com distinção e louvor pela banca examinadora). Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no Instituto de Ensino Jurídico Professor Luiz Flávio Gomes (IELF), em São Paulo. Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos nas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo, em Presidente Prudente-SP. Professor dos cursos de Especialização da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR). Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI) e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD). Coordenador jurídico da Revista de Derecho Internacional y del Mercosur (Buenos Aires). Advogado no Estado de São Paulo (Brasil). 1 167 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 167 21/8/2008, 10:21 humanidade como um todo, anulando por completo a dignidade inerente a qualquer ser humano. Esta última atribuição do Direito Internacional é bastante recente e não encontrava eco nessa arena até o final do Século XIX. Mas em decorrência das inúmeras violações de direitos humanos ocorridas a partir das primeiras décadas do Século XX – principalmente com as duas grandes guerras mundiais – a idéia de um jus puniendi em plano global começa a integrar a ordem do dia da agenda internacional, rumo à instituição de uma moderna Justiça Penal Internacional. O Estado Racial em que se converteu a Alemanha Nazista no período sombrio do Holocausto – considerado o marco definitivo de desrespeito e ruptura para com a dignidade da pessoa humana, em virtude das barbáries e das atrocidades cometidas a milhares de seres humanos (principalmente contra os judeus) durante a Segunda Guerra Mundial – acabou dando ensejo aos debates envolvendo a necessidade, mais do que premente, de criação de uma instância penal internacional, com caráter permanente, capaz de processar e punir aqueles criminosos de que a humanidade se quer definitivamente livrar. A segunda grande guerra, que ensangüentou a Europa entre 1939 a 1945, ficou marcada na consciência coletiva mundial por apresentar o ser humano como algo simplesmente descartável e destituído de dignidade e direitos. O que fez a chamada “Era Hitler” foi condicionar a titularidade de direitos dos seres humanos ao fato de pertencerem a determinada raça, qual seja, a “raça pura” ariana, atingindo-se, com isto, toda e qualquer pessoa destituída da referida condição. Assim, por faltar-lhes um vínculo com uma ordem jurídica nacional, acabaram não encontrando lugar (qualquer lugar) num mundo como o do Século XX, totalmente organizado e ocupado politicamente. Conseqüentemente, tais vítimas do regime nazista acabaram tornando-se – de fato e de direito – desnecessárias porque indesejáveis erga omnes, não encontrando outro destino senão a própria morte nos campos de concentração.2 O principal legado do Holocausto para a internacionalização dos direitos humanos, consistiu na preocupação que gerou no mundo pós-Segunda Guerra, acerca da falta que fazia uma . Cf. Mensagem do então Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Prof. Celso Lafer, por ocasião da abertura da exposição “Visto para a vida: diplomatas que salvaram judeus”, no Centro Cultural Maria Antonia da USP, São Paulo, maio de 2001. 2 168 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 168 21/8/2008, 10:21 arquitetura internacional de proteção de direitos humanos, com vistas a impedir que atrocidades daquela monta viessem a ocorrer novamente no planeta. Daí porque o período do pós-guerra significou o resgate da cidadania mundial – ou a reconstrução dos direitos humanos –, baseada no princípio do “direito a ter direitos”, para se falar como Hannah Arendt.3 A partir desse momento, que representou o início da humanização do Direito Internacional, é que são elaborados os grandes tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, que deram causa ao nascimento da moderna arquitetura internacional de proteção desses mesmos direitos. Seu desenvolvimento pode ser atribuído àquelas monstruosas violações de direitos humanos da Segunda Guerra, bem como à crença de que parte dessas violações poderiam ser evitadas se um efetivo sistema de proteção internacional desses direitos existisse. Como respostas às atrocidades cometidas pelos nazistas no Holocausto, cria-se, por meio do Acordo de Londres, de 8 de agosto de 1945, o conhecido Tribunal de Nuremberg, que significou um poderoso impulso ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Este Tribunal, criado pelos governos da França, Estados Unidos da América, Grã-Bretanha e antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, surgiu, em reação direta às violências e barbáries do Holocausto, para processar e julgar os maiores criminosos de guerra do Eixo europeu, acusados de colaboração para com o regime nazista.4 . A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a esse respeito, assim estabelece em seu Art. 1º: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Para Hannah Arendt, a participação dos indivíduos em uma comunidade igualitária construída é a condição sine qua non para que se possa aspirar ao gozo dos direitos humanos fundamentais. (cf. ARENDT, Hannah. The origins of totalitarianism. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1973, pp. 299-302). Para um estudo detalhado da concepção arendtiana da cidadania como o “direito a ter direitos”, em vários de seus desdobramentos, vide o trabalho primoroso de LAFER, Celso, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, 4ª reimp., São Paulo: Companhia das Letras, 1988, Cap. V, pp. 146-166. Para uma visão do conceito arendtiano de cidadania no texto constitucional brasileiro, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos e cidadania à luz do novo direito internacional, Campinas: Minelli, 2002, especialmente pp. 99-123. 4 . Cf. por tudo, The Charter and Julgament of the Nurenberg Tribunal [U.N.], doc. A/CN, 4/5, de 03.03.1949, pp. 87-88; e também, RAMELLA, Pablo A., Crimes contra a humanidade, Trad. Fernando Pinto, Rio de Janeiro: Forense, 1987, pp. 06-08. Para um estudo detalhado do processo de Nuremberg, vide GLUECK, Sheldon, The Nuremberg trial and aggressive war, New York: Knopf, 1946; WOETZEL, Robert K., The Nuremberg trials in international law, New York: Praeger, 1962; SAUREL, L., Le proces de Nuremberg, Paris: Rouff, 1965; BOSCH, W. J., Judgment on Nuremberg: american attitudes toward the major german war crimes trials, Chapel Hill, NC: U of North Carolina P., 1970; e CONOT, Robert E., Justice at Nuremberg, New York: Harper & Row, 1983. 3 169 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 169 21/8/2008, 10:21 O art. 6º do Acordo de Londres (Nuremberg) assim tipificou os crimes de competência do Tribunal: a) crimes contra a paz – planejar, preparar, incitar ou contribuir para a guerra, ou participar de um plano comum ou conspiração para a guerra. b) crimes de guerra – violação ao direito costumeiro de guerra, tais como assassinato, tratamento cruel, deportação de populações civis que estejam ou não em territórios ocupados, para trabalho escravo ou para qualquer outro propósito, assassinato cruel de prisioneiro de guerra ou de pessoas em alto-mar, assassinato de reféns, saques a propriedades públicas ou privadas, destruição de cidades ou vilas, ou devastação injustificada por ordem militar. c) crimes contra a humanidade – assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou outro ato desumano contra a população civil antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em critérios raciais, políticos e religiosos, independentemente se, em violação ou não do direito doméstico do país em que foi perpetrado.5 No seu art. 7º, o Estatuto do Tribunal de Nuremberg deixou assente que a posição oficial dos acusados, como os Chefes de Estado ou funcionários responsáveis em departamentos governamentais, não os livraria e nem os mitigaria de responsabilidade. O seu art. 8º, por seu turno, procurou deixar claro que o fato de “um acusado ter agido por ordem de seu governo ou de um superior” não o livraria de responsabilidade, o que reforça a concepção de que os indivíduos também são passíveis de responsabilização no âmbito internacional. Destaca-se ainda, como decorrência dos atentados hediondos praticados contra a dignidade do ser humano durante a Segunda Guerra, a criação do Tribunal Militar Internacional de Tóquio, instituído para julgar os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, perpetrados pelas antigas autoridades políticas e militares do Japão imperial.6 Já mais recentemente, por deliberação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a participação e voto favorável do Brasil, foram também criados . Vide, a propósito, LAFER, Celso, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, cit., pp. 168-169. 6 . Cf., por tudo, HOSOYA, C., N., et. all. (eds.), The Tokyo war crimes trial: an international symposium, Tokyo: Kodansha International Ltd., 1986. Sobre o Tribunal de Tóquio, vide também MELLO, Celso D. de Albuquerque, Direitos humanos e conflitos armados, Rio de Janeiro: Renovar, 1997. 5 170 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 170 21/8/2008, 10:21 outros dois tribunais internacionais de caráter temporário: um instituído para julgar as atrocidades praticadas no território da antiga Iugoslávia 7 desde 1991, e outro para julgar as inúmeras violações de direitos humanos de idêntica gravidade perpetrados em Ruanda, 8 tendo sido sediados, respectivamente, na Holanda e na Tanzânia. Não obstante o entendimento da consciência coletiva mundial de que aqueles que perpetram atos bárbaros e monstruosos contra a dignidade humana devam ser punidos internacionalmente, os tribunais ad hoc acima mencionados não passaram imunes a críticas, dentre elas a de que tais tribunais (que têm caráter temporário e não-permanente) foram criados por resoluções do Conselho de Segurança da ONU (sob o amparo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, relativo às “ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”), e não por tratados internacionais multilaterais, como foi o caso do Tribunal Penal Internacional, o que poderia prejudicar (pelo menos em parte) o estabelecimento concreto de uma Justiça Penal Internacional de caráter permanente. Estabelecer tribunais internacionais ad hoc por meio de resoluções (ainda que com isto se resolva o problema da imparcialidade e insuspeição dos Estados partícipes daquelas guerras) significa torná-los órgãos subsidiários do Conselho de Segurança da ONU, para cuja aprovação não se requer mais do que nove votos de seus quinze membros, incluídos os cinco permanentes (art. 27, § 3º, da Carta das Nações Unidas). 9 Este era, aliás, um argumento importante, no caso da antiga Iugoslávia, a favor do modelo de resolução . Este Tribunal foi criado em 1993. O texto do “Estatuto da Iugoslávia” pode ser encontrado no documento das Nações Unidas (NU) S/25704, de 03.05.93, par. 32 e ss. Vide, sobre o assunto, BERNARDINI, A., “Il tribunale penale internazionale per la ex Jugoslavia: considerazioni giuridiche”, in I Diritti dell’Uomo: cronache e battaglie, nº 15, 1993; CASSESE, Antonio, “Il Tribunale Penale per la ex-Jugoslavia: bilancio di due anni di attività”, in Dai tribunali penali internazionali ad hoc a una Corte permanente (a cura di F. Lattanzi e E. Sciso), Napoli: Ed Scientifica, 1996; e PICONE, Paolo, “Sul fondamento giuridico del Tribunale Penale Internazionale per la ex-Jugoslavia”, in Dai tribunali penali internazionali ad hoc a una Corte permanente (a cura di F. Lattanzi e E. Sciso), Napoli: Ed Scientifica, 1996. 8 . Tribunal criado em 1994, pela resolução do Conselho de Segurança da ONU nº 955 (1994), NU-Doc. S/Res/955 (1994), de 08.11.94. As regras de procedimento e prova foram adotadas em 29.06.95 (ITR/3/Rev. 1), tendo sido uma segunda revisão realizada em meados de 1996. Sobre o assunto, vide ainda MELLO, Celso D. de Albuquerque, Curso de direito internacional público, 2º vol., 13ª ed. rev. e aum., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 917-918; e COMPARATO, Fábio Konder, A afirmação histórica dos direitos humanos, 3ª ed., rev. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 446-447. 9 . Em paralelo, consulte GARGIULO, P., “The relationship between the ICC and the Security Council”, in The International Criminal Court: comments on the draft Statute, Napoli: Lattanzi, 1998. 7 171 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 171 21/8/2008, 10:21 do Conselho de Segurança, na medida em que o modelo de tratado seria muito moroso ou incerto, podendo levar anos para sua conclusão e entrada em vigor internacional. 10 Outra crítica assaz contundente voltada àqueles tribunais ad hoc – que já se ouvia deste da criação do Tribunal de Nuremberg – era no sentido de que os mesmos violavam a regra basilar do direito penal, segundo a qual o juiz, assim como a lei, deve ser preconstituído ao cometimento do crime e não ex post facto. Foi justamente pelo fato de que tais tribunais tiveram sua criação condicionada pelos fatos que imediatamente a antecederam, que alguns países, dentre eles o Brasil, ao aprovarem a instituição de tribunais ad hoc, expressamente manifestaram seu ponto de vista pela criação, por meio de um tratado internacional, de uma corte penal internacional permanente, independente e imparcial, competente para o processo e julgamento dos crimes perpetrados depois de sua entrada em vigor no plano internacional. Mas ainda que existam dúvidas acerca do alcance da Carta das Nações Unidas em relação à legitimação do Conselho de Segurança da ONU para a criação de instâncias judiciárias internacionais ad hoc, as atrocidades e os horrores cometidos no território da Ex-Iugoslávia e em Ruanda foram de tal ordem e de tal dimensão que parecia justificável chegar-se a esse tipo de exercício, ainda mais quando se têm como certas algumas contribuições desses tribunais para a teoria da responsabilidade penal internacional dos indivíduos, a exemplo do não-reconhecimento das imunidades de jurisdição para crimes definidos pelo Direito Internacional e do não-reconhecimento de ordens superiores como excludentes de responsabilidade internacional. Entretanto, a grande mácula da Carta das Nações Unidas, neste ponto, ainda é a de que jamais o Conselho de Segurança poderá criar tribunais com competência para julgar e punir eventuais crimes cometidos por nacionais dos seus Estados-membros com assento permanente. Daí o motivo pelo qual avultava de importância a criação e o estabelecimento efetivo de uma instância penal internacional, de caráter permanente e imparcial, instituída para processar e julgar os acusados de cometimento dos crimes mais graves já conhecidos no planeta, que ultrajam a consciência da humanidade e que constituem . Vide, a respeito, AMBOS, Kai, “Hacia el establecimiento de un Tribunal Penal Internacional permanente y un código penal internacional: observaciones desde el punto de vista del derecho penal internacional”, in Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, año 7, nº 13, ago./1997, nota nº 14. 10 172 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 172 21/8/2008, 10:21 infrações ao próprio Direito Internacional Público, a exemplo do genocídio, dos crimes contra a humanidade, dos crimes de guerra e do crime de agressão.11 Por essas razões, os trabalhos da International Law Commission, ainda que com alguma lentidão, foram cada vez mais direcionados rumo à elaboração de um tratado constitutivo de uma corte penal internacional, com jurisdição permanente, aperfeiçoando a proposta de um texto apresentado em 1994.12 O Direito Internacional Público positivo, na letra dos arts. 53 e 64 da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, de 1969, adotou uma regra importantíssima, a do jus cogens, que talvez possa ter servido de base (antes de sua positivação em norma convencional) para o julgamento do Tribunal de Nuremberg, segundo a qual há certos tipos de crimes tão abruptos e hediondos que existem independentemente de estarem regulados por norma jurídica positiva.13 A instituição de tribunais internacionais é conseqüência da tendência jurisdicionalizante do Direito Internacional contemporâneo. Neste momento em que se presencia a fase da jurisdicionalização do direito das gentes, a sociedade internacional fomenta a criação de tribunais internacionais de variada natureza, para resolver questões das mais diversas, apresentadas no contexto das relações internacionais. A partir daqui é que pode ser compreendido o anseio generalizado pela criação de uma Justiça Penal Internacional, que dê legitimidade institucional à sociedade internacional, dignificando e fortalecendo a proteção internacional dos direitos humanos em plano global.14 A sociedade internacional, contudo, tem pretendido consagrar a responsabilidade penal internacional desde o final da Primeira Guerra Mundial, quando o Tratado de Versalhes clamou, sem sucesso, pelo 11 . Cf., a propósito, FAVA, Maria Mirta, “Verso l’Istituzione di una Corte Penale Internazionale permanente”, in I Diritti dell’Uomo: cronache e battaglie, nº 2, maggio-agosto, 1997, pp. 28-31; BASSIOUNI, M. Cherif, “Verso una Corte Penale Internazionale”, in I Diritti dell’Uomo: cronache e battaglie, nº 3, settembre-dicembre, 1997, pp. 5-8; DEL VECCHIO, Angela, “Corte Penale Internazionale e Giurisdizione Internazionale nel quadro di crisi della sovranità degli Stati”, in La Comunità Internazionale, nº 1, gennaio-aprile, 1999, pp. 630-652; e CARILLO-SALCEDO, J. A., “La Cour Pénale Internationale: l’humanité trouve une place dans le droit international”, in Revue générale de droit international public, vol. 103, 1999(1), pp. 23-28. 12 . Cf. Report of the International Law Commission on its Forty-Sixth Session, Draft Statute for an International Criminal Court, 2 may-22 july 1994, G.A. Sess., Suppl. 10, A/10, 1994. 13 . Sobre as normas de jus cogens na Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2ª ed., rev., ampl. e atual., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, pp. 162-183. 14 . Cf. FONSECA, José Roberto Franco da. “O tribunal penal internacional permanente”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 94, 1999, p. 282; e ALLMAND, Warren, “The International Criminal Court and the human rights revolution”, in McGill Law Journal, vol. 46, nº 1, nov. 2000, pp. 263-688. 173 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 173 21/8/2008, 10:21 julgamento do ex-Kaiser Guilherme II por ofensa à moralidade internacional e à autoridade dos tratados, bem como quando o Tratado de Sèvres, jamais ratificado, pretendeu responsabilizar o Governo Otomano pelo massacre dos armênios. Não obstante algumas críticas formuladas em relação às razões de tais pretensões, no sentido de que as mesmas não seriam imparciais ou universais, posto que fundadas no princípio segundo o qual somente o vencido poderia ser julgado, bem como de que estaria sendo desrespeitado o princípio da nãoseletividade na condução de julgamentos internacionais, o fato concreto é que tais critérios foram utilizados, de maneira preliminar, pelo Acordo de Londres e pelo Control Council Law nº 10 (instrumento da Cúpula dos Aliados), ao estabelecerem o Tribunal de Nuremberg, bem como pelo Tribunal Militar Internacional de Tóquio, instituído para julgar as violências cometidas pelas autoridades políticas e militares japonesas, já no período do pós-Segunda Guerra.15 Todas essas tensões internacionais, advindas desde a Primeira Guerra Mundial, tornavam, portanto, ainda mais premente a criação de uma Justiça Penal Internacional de caráter permanente, notadamente após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948,16 da celebração da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, no mesmo ano, das quatro Convenções de Genebra sobre o Direito Humanitário, em 1949, e de seus dois Protocolos Adicionais, de 1977, da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa Humanidade, em 1968 e dos Princípios de Cooperação Internacional para Identificação, Detenção, Extradição e Castigo dos Culpáveis de Crimes de Guerra ou de Crimes de Lesa Humanidade, em 1973. Em 1993, a criação de uma corte penal internacional instituída para julgar as violações de direitos humanos presentes na atualidade, foi também reafirmada pelo parágrafo 92 da Declaração e Programa de Ação de Viena, segundo o qual: “A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda que a Comissão de Direitos Humanos examine a 15 . Cf., por tudo, KASTRUP, Dieter, “From Nuremberg to Rome and beyond: the fight against genocide, war crimes, and crimes against humanity”, in Fordham International Law Journal, vol. 23, nº 2, dec. 1999, pp. 404-414; e JARDIM, Tarciso Dal Maso, “O Tribunal Penal Internacional e sua importância para os direitos humanos”, in O que é o Tribunal Penal Internacional, Brasília: Câmara dos Deputados/Coordenação de Publicações, 2000, pp. 16-17. 16 . Um paralelo do TPI com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é encontrado no estudo de BOS, Adriaan, “Dedicated to the Adoption of the Rome Statute of the International Criminal Court 1948-1998: the Universal Declaration of Human Rights and the Statute of the International Criminal Court”, in Fordham International Law Journal, vol. 22, nº 2, dec./1998, pp. 229-235. 174 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 174 21/8/2008, 10:21 possibilidade de melhorar a aplicação de instrumentos de direitos humanos existentes em níveis internacional e regional e encoraja a Comissão de Direito Internacional a continuar seus trabalhos visando ao estabelecimento de um tribunal penal internacional”. Como resposta a este antigo anseio da sociedade internacional, no sentido de estabelecer uma corte criminal internacional de caráter permanente, finalmente vem à luz o Tribunal Penal Internacional, pelo Estatuto de Roma de 1998. Trata-se da primeira instituição global permanente de justiça penal internacional. Aprovado em julho de 1998, em Roma, na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional teve por finalidade constituir um tribunal internacional com jurisdição criminal permanente, dotado de personalidade jurídica própria, com sede na Haia, na Holanda. Foi aprovado por 120 Estados, contra apenas 7 votos contrários – China, Estados Unidos, Iêmen, Iraque, Israel, Líbia e Quatar – e 21 abstenções.17 Não obstante a sua posição original, os Estados Unidos e Israel, levando em conta a má repercussão internacional ocasionada pelos votos em contrário, acabaram assinando o Estatuto em 31 de dezembro de 2000. Todavia, a ratificação do Estatuto, por essas mesmas potências, tornou-se praticamente fora de cogitação após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington, bem como após as operações de guerra subsequentes no Afeganistão e Palestina. Assim foi que em 6 de maio de 2002 e em 28 de agosto do mesmo ano, Estados Unidos e Israel, respectivamente, notificaram formalmente o Secretário-Geral das Nações Unidas de que não tinham a intenção de se tornarem partes no respectivo tratado. O Estatuto do TPI entrou em vigor internacional em 1º de julho de 2002, correspondente ao primeiro dia do mês seguinte ao termo do período de 60 dias após a data do depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão junto do Secretário-Geral das Nações Unidas, nos termos do seu art. 126, § 1º. O corpo diplomático brasileiro, que já participava, mesmo antes da Conferência de Roma de 1998, de uma Comissão Preparatória para o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional, teve destacada atuação em todo o processo de criação do Tribunal. E isto 17 . Cf., a propósito, LEE, Roy S. (ed.), The International Criminal Court. The making of the Rome Statute: issues, negotiations, results, The Hague: Kluwer Law International, 1999. 175 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 175 21/8/2008, 10:21 foi devido, em grande parte, em virtude do mandamento do art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição brasileira de 1988, que preceitua que “o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”. Em 7 de fevereiro de 2000 o governo brasileiro assinou o tratado internacional referente ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,18 tendo sido o mesmo posteriormente aprovado pelo Parlamento brasileiro, por meio do Decreto Legislativo nº 112, de 06.06.2002, e promulgado pelo Decreto nº 4.388, de 25.09.2002.19 O depósito da carta de ratificação brasileira se deu em 20.06.2002, momento a partir do qual o Brasil já se tornou parte no respectivo tratado. A partir desse momento, por força da norma do art. 5º, § 2º da Constituição brasileira de 1988 (verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”), o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional integrou-se ao direito brasileiro com status de “norma constitucional”, não podendo quaisquer dos direitos e garantias nele constantes ser abolidos por quaisquer meios no Brasil, inclusive por emenda constitucional.20 2. A regra da responsabilidade penal internacional dos indivíduos Uma das principais virtudes do Estatuto de Roma de 1998 reside na consagração do princípio segundo o qual a responsabilidade penal por atos violadores do Direito Internacional deve recair sobre os indivíduos que os perpetraram, deixando de ter efeito as eventuais imunidades e privilégios ou mesmo a posição ou os cargos oficiais . A assinatura do Brasil ao Estatuto de Roma do TPI foi precedida de belo Parecer da lavra do Prof. Dr. Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, atual Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. . A versão oficial brasileira do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional é encontrada em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Coletânea de Direito Internacional, 2º ed., São Paulo: RT, 2004, pp. 691-745, de onde foram coletadas todas as disposições do Estatuto citadas no decorrer deste estudo. 20 . Para um estudo aprofundado dessa interpretação, relativa à incorporação e ao status constitucional dos tratados de direitos humanos no ordenamento interno brasileiro, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 233-252. 18 19 176 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 176 21/8/2008, 10:21 que os mesmos porventura ostentem.21 Nos termos do art. 25, e parágrafos, do Estatuto, o Tribunal tem competência para julgar e punir pessoas físicas, sendo considerado individualmente responsável quem cometer um crime da competência do Tribunal. Nos termos do Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem: a) cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável; b) ordenar, solicitar ou instigar a prática desse crime, sob forma consumada ou sob a forma de tentativa; c) com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a sua prática; e d) contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um grupo de pessoas que tenha um objetivo comum. O Estatuto de Roma repete a conquista do Estatuto do Tribunal de Nuremberg em relação aos cargos oficiais daqueles que praticaram crimes contra o Direito Internacional. Nos termos do art. 27, §§ 1º e 2º, do Estatuto de Roma, a competência do Tribunal aplica-se de forma igual a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada na sua qualidade oficial.22 Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum poderá eximir a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do Estatuto, nem constituirá de per se motivo para a redução da pena. Diz ainda o Estatuto que as imunidades ou normas de procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do Direito Internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa. A consagração do princípio da responsabilidade penal internacional dos indivíduos é, sem dúvida, uma conquista da humanidade. E esta idéia vem sendo sedimentada desde os tempos 21 . Cf., a propósito, HORTATOS, Constantine P., Individual criminal responsibility for human rights atrocities in international criminal law and the creation of a permanent International Criminal Court, Athens: Ant. N. Sakkoulas Publishers, 1999. 22 . A respeito do assunto, vide PAULUS, Andreas L., “Legalist groundwork for the International Criminal Court: commentaries on the Statute of the International Criminal Court”, in European Journal of International Law, vol. 14, nº 4, 2003, pp. 855-858. 177 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 177 21/8/2008, 10:21 em que Hugo Grotius lançou as bases do moderno Direito Internacional Público. Este grande jurista holandês divergiu, ao seu tempo, da noção corrente àquela época – e que ainda mantém alguns seguidores na atualidade – de que o Direito Internacional está circunscrito tão-somente às relações entre Estados, não podendo dizer respeito diretamente aos indivíduos.23 O chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, que emerge finda a Segunda Guerra Mundial, vem sepultar de vez esta antiga doutrina, que não atribuía aos indivíduos personalidade jurídica de direito das gentes. A idéia crescente de que os indivíduos devem ser responsabilizados no cenário internacional, em decorrência dos crimes cometidos contra o Direito Internacional, aparece bastante reforçada no Estatuto de Roma que, além de ensejar a punição dos indivíduos como tais, positivou, no bojo de suas normas, ineditamente, os princípios gerais de direito penal internacional (arts. 22 a 33), bem como trouxe regras claras e bem estabelecidas sobre o procedimento criminal perante o Tribunal (arts. 53 a 61). Tal acréscimo vem suprir as lacunas deixadas pelas Convenções de Genebra de 1949, que sempre foram criticadas pelo fato de terem dado pouca ou quase nenhuma importância às regras materiais e processuais da ciência jurídica criminal. Nos termos do art. 58, § 1º, alíneas a e b, do Estatuto, a todo momento após a abertura do inquérito, o Juízo de Instrução poderá, a pedido do Promotor, emitir um mandado de detenção contra uma pessoa se, após examinar o pedido e as provas ou outras informações submetidas pelo Promotor, considerar que existem motivos suficientes para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal e a detenção dessa pessoa se mostra necessária para garantir o seu comparecimento no Tribunal, assim como garantir que a mesma não obstruirá, nem porá em perigo, o inquérito ou a ação do Tribunal. O mandado de detenção também poderá ser emitido, se for o caso, para impedir que a pessoa continue a cometer esse crime ou um crime conexo que seja da competência do Tribunal e tenha a sua origem nas mesmas circunstâncias. Parece lógico que, para a efetivação e garantia da Justiça Penal Internacional, deva ter o TPI poderes para determinar que os . Cf. CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição brasileira”, in O que é o Tribunal Penal Internacional, Brasília: Câmara dos Deputados/Coordenação de Publicações, 2000, pp. 12-13. 23 178 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 178 21/8/2008, 10:21 acusados da prática de crimes reprimidos pelo Estatuto sejam colocados à disposição do Tribunal para ulterior julgamento. Seria de todo inútil a criação de um Tribunal Penal Internacional se não houvessem meios jurídicos e eficazes para arrestar os acusados, compelindo-os a comparecer em juízo para julgamento. Para o êxito dessas finalidades, o Estatuto prevê um regime de cooperação entre os seus Estados-partes. Nos termos do seu art. 86, os Estados-partes deverão cooperar plenamente com o Tribunal, no inquérito e no procedimento criminal, em relação aos crimes de sua competência. Tais Estados, diz o art. 88, deverão assegurar-se de que o seu direito interno prevê procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação especificadas no Estatuto. A colaboração dos Estados, portanto, é fundamental para o êxito do inquérito e do procedimento criminal perante o Tribunal. Tais Estados devem cooperar com o Tribunal da forma menos burocrática possível, atendendo ao princípio da celeridade. As eventuais imunidades ou privilégios especiais que possam ser concedidos aos indivíduos em função de sua condição como ocupantes de cargos ou funções estatais, seja segundo o seu direito interno, seja segundo o Direito Internacional, não constituem motivos que impeçam o Tribunal de exercer a sua jurisdição em relação a tais assuntos. O Estatuto elide qualquer possibilidade de invocação da imunidade de jurisdição por parte daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra ou de agressão. Assim, de acordo com a sistemática do Direito Penal Internacional, não podem os genocidas e os responsáveis pelos piores crimes cometidos contra a humanidade acobertar-se da prerrogativa de foro, pelo fato de que exerciam uma função pública ou de liderança à época do delito. Os Estados-partes no TPI terão, doravante, um papel importante no que tange à compatibilização das normas do Estatuto de Roma – respeitando o dever consuetudinário insculpido com todas as letras no art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, segundo o qual um Estado-parte em um tratado internacional tem a obrigação de cumpri-lo de boa-fé –, no sentido de fazer editar a normatividade interna infraconstitucional necessária para que o Estatuto possa ser eficazmente 179 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 179 21/8/2008, 10:21 implementado e não se transforme em letra morta, sob pena de responsabilização internacional. 3. Perspectivas para os direitos humanos e para a Justiça Penal Internacional no Século XXI Por tudo o que foi visto acima, parece nítida a relevância do Tribunal Penal Internacional para a proteção internacional dos direitos humanos e para a efetivação da Justiça Penal Internacional em plano global. Sem dúvida alguma, a instituição do TPI é um dos fatores principais que marcarão a proteção internacional dos direitos humanos e as ciências criminais no século XXI. Primeiro, porque desde os Tribunais de Nuremberg e Tóquio, um sistema internacional de justiça pretende acabar com a impunidade daqueles que violam o Direito Internacional, em termos repressivos (condenando os culpados) e preventivos (inibindo a tentativa de repetição dos crimes cometidos).24 Segundo, porque visa sanar as eventuais falhas e insucessos dos tribunais nacionais, que muitas vezes deixam impunes seus criminosos, principalmente quando estes são autoridades estatais que gozam de ampla imunidade, nos termos das suas respectivas legislações internas. Terceiro, porque evita a criação de tribunais ad hoc, instituídos à livre escolha do Conselho de Segurança da ONU, dignificando o respeito à garantia do princípio do juiz natural, ou seja, do juiz competente, em suas duas vertentes: a de um juiz previamente estabelecido e a relativa à proibição de juízos ou tribunais de exceção, criados ex post facto. Quarto, porque cria instrumentos jurídico-processuais capazes de responsabilizar individualmente as pessoas condenadas pelo Tribunal, não deixando pairar sobre o planeta a vitória da impunidade. E, finalmente, em quinto lugar, porque institui uma Justiça Penal Internacional que contribui, quer interna quer internacionalmente, para a eficácia da proteção dos direitos humanos e do direito internacional humanitário.25 A consagração do princípio da complementaridade, segundo o qual a jurisdição do TPI é subsidiária às jurisdições nacionais (salvo o caso de os Estados se mostrarem incapazes ou sem . Cf. Human Rights Watch world report 1994: eventos of 1993, Human Rights Watch, New York, 1994, p. XX. . Cf., por tudo, Lawyers Comittee for Human Rights, “Establishing an International Criminal Court: major unresolved issue in the draft Statute”, New York: LCHR, Briefing Series, vol. I, n.º 1, aug./1996. 24 25 180 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 180 21/8/2008, 10:21 disposição em processar e julgar os responsáveis pelos crimes cometidos), contribui sobremaneira para fomentar os sistemas jurídicos nacionais a desenvolver mecanismos processuais eficazes, capazes de efetivamente aplicar a justiça em relação aos crimes tipificados no Estatuto de Roma, que passam também a ser crimes integrantes do direito interno dos Estados-partes que o ratificaram. Não existe restrição ou diminuição da soberania para os países que já aderiram, ou aos que ainda irão aderir, ao Estatuto de Roma. Ao contrário: na medida em que um Estado ratifica uma convenção multilateral como esta, que visa trazer um bem estar que a sociedade internacional reivindica há anos, ele não está fazendo mais do que, efetivamente, praticando um ato de soberania, e o faz de acordo com a sua Constituição, que prevê a participação dos poderes Executivo e Legislativo (no caso brasileiro: CF, arts. 84, inc. VIII e 49, inc. I, respectivamente) no processo de celebração de tratados internacionais. 26 4. Conclusão A Justiça Penal Internacional, portanto, chega ao mundo em boa hora, para processar, julgar e punir os piores e mais cruéis violadores dos direitos humanos que possam vir a existir, reprimindo aqueles crimes contra o Direito Internacional de que nos queremos livrar, em todas as suas vertentes. Será esta Justiça Penal Internacional a responsável pela construção de uma sociedade internacional justa e digna, baseada nos princípios da igualdade e da não discriminação, que são o fundamento da tutela internacional dos direitos humanos. 27 O papel do Tribunal Penal Internacional para o futuro da humanidade, portanto, é importantíssimo no sentido de punir e retirar do convívio coletivo mundial os responsáveis pela prática 26 . Para estudo aprofundado da prática de celebração de tratados no Brasil, vide MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2ª ed., cit., especialmente pp. 265-356. 27 . Vide, com detalhes, BASSIOUNI, M. Cherif, “Enforcing human rights through International Criminal Law and through an International Criminal Tribunal,” in HENKIN, Louis & HARGROVE, John Lawrence (eds.), Human rights: an agenda for the next century, Washington, D.C.: American Society of International Law, 1994. 181 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 181 21/8/2008, 10:21 dos piores e mais bárbaros crimes cometidos no planeta, em relação aos quais não se admite esquecimento. É o instrumento único que reafirma a fé nos direitos humanos fundamentais protegidos e na dignidade e valor da pessoa humana. É, portanto, esse resgate da cidadania mundial que se quer ver acontecer, mais nada! 182 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 182 21/8/2008, 10:21 LITIGÂNCIA PREJUDICIAL POR CONDUTA CULPOSA. Antonio Zeferino da Silva 1 Marcos Pereira Araujo 2 Robson Orlei Azambuja Carneiro 3 RESUMO :A solução de conflitos pode ser estabelecida na esfera administrativa ou judicial mas, principalmente, na esfera judicial requer-se a obtenção de direitos que sejam contemplados em norma, agindo o peticionário com lealdade e boa-fé. As atitudes intencionais e contrárias à ordem jurídica caracterizam o demandar de má-fé e, por isso, são passíveis de sanção. Quanto as atitudes não intencionais - culposas - que acarretam um dano em virtude do retardamento do processo e a prestação judicial, também serão passíveis de sanção e reparação civil. PALAVRAS-CHAVE: Litigância Prejudicial – Culpa - Processo Introdução As relações pessoais, comerciais e trabalhistas, entre outras, dão ensejo aos mais variados tipos de conflitos. Quando se verifica a ocorrência desse, o mesmo pode ser solucionado em duas esferas distintas de atuação do direito, ou seja, o conflito pode ser solucionado pela via administrativa ou pela via judicial. Quando a solução de conflitos se estabelece na esfera administrativa, não há muitos questionamentos a serem discutidos, principalmente, porque se aqueles não forem solucionados, partirse-á para a esfera judicial. Tendo-se deslocado o conflito para essa esfera, as partes estarão sujeitas ao cumprimento das normas, notadamente ao que diz respeito aos direitos e obrigações. 1 Defensor Público aposentado, Advogado com especialização em Direito Constitucional e Gestão Empresarial. Professor do Curso de Administração de Empresas na Disciplina de Introdução ao Estudo do Direito e Pós-graduando em Direito Processual Civil pela UNIGRAN - Centro Universitário da Grande Dourados. 2 Advogado com especialização em Direito Constitucional e Metodologia do Ensino Superior. Professor do Curso de Ciências Jurídicas na Disciplina de Direito Penal II e Pós-graduando em Direito Processual Civil pela UNIGRAN - Centro Universitário da Grande Dourados. 3 Bacharel em Direito e Pós-graduando em Direito Processual Civil pela UNIGRAN - Centro Universitário da Grande Dourados. 183 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 183 21/8/2008, 10:21 O artigo 14, do Código Processual Civil, estabelece em um de seus incisos, que é dever da parte agir com lealdade e boa-fé, mas nem sempre isso acontece, pois, verifica-se com certa freqüência, a ocorrência de condutas praticadas intencionalmente com o fim específico de causar o retardamento da prestação jurisdicional, implicando em prejuízo à parte. Outras vezes, o dano pode ocorrer, sem que haja a intenção de provocar um prejuízo mas, fruto de uma conduta culposa, apresentando-se sob uma das três modalidades da culpa imprudência, negligência e imperícia. Com isso, questiona-se da possibilidade de sanção e reparação ao prejuízo, àquele que agir culposamente através de conduta praticada nos próprios autos. 3. Litigância de Má-Fé Litigante de má-fé é a parte ou interveniente processual que utiliza procedimento escuso com objetivo de vencer a causa ou prolongar intencionalmente o andamento processual, causando dano à parte contrária. O processo civil, por sua finalidade, não é meio para disputas injustas e desonestas. Seu principal objetivo é proporcionar aos sujeitos necessitados uma forma de solucionar conflitos em consonância com ordenamento jurídico, oferecendo às partes envolvidas direitos e deveres.Todos os sujeitos do processo devem manter uma conduta ética adequada, de acordo com os deveres de verdade, moralidade e probidade em todas as fases do procedimento. Neste sentido, é o ensinamento do saudoso mestre Pontes de Miranda4: ‘’O dever de verdade nasce entre as partes e o Estado, e não entre as partes. Já existe quando existe a pretensão à tutela jurídica e começa de ser observado desde que se inicia o exercício da pretensão a tutela jurídica. Preexiste ao processo, de modo que já o pode infringir quem expõe fatos em petição inicial ou em ação preparatória.” Por sua vez, a litigância de má-fé caracteriza-se como atos contrários ao bom andamento da justiça, pois prejudica não apenas uma das partes, mas todo o sistema jurisdicional. Descrita como uma conduta abusiva do litigante que utiliza o 4 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil Civil, São Paulo: Forense, 1974, p. 367. 184 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 184 21/8/2008, 10:21 processo de forma diferente de seu respectivo fim, a litigância de máfé possui como natureza jurídica o abuso do direito. Portanto, a máfé é causa direta do impedimento do escopo processual e assim deve ser excluída de nossos procedimentos. De acordo com nosso sistema jurídico-processual, aquele que provoca um dano processual deve, certamente, responder pelas conseqüências que a lei prevê. Não se trata, pois, de faculdade do magistrado, mas dever seu como representante do Estado no exercício do Poder Jurisdicional. A condenação no ônus da litigância de má-fé deve ser encarada como fato processual, objetivamente verificado em decorrência direta e inevitável da prática pelas partes e intervenientes de determinados atos processuais que a lei define como ilícitos. A litigância de má-fé interfere de forma nociva no correto desenvolvimento da relação jurídica processual estabelecida e os meios postos à disposição do magistrado para coibi-la são, antes de mais nada, instrumentos destinados a preservar a dignidade de justiça sem a qual o processo jamais atinge a sua finalidade. 4. Referências Legais O legislador, preocupado com a atuação das partes e seus procuradores no processo, tratou de dispor deveres gerais a esses, nos artigos 14 e 15 do Código de Processo Civil, destacando a veracidade, a lealdade, a boa-fé e a ética profissional. Os artigos 16, 17 e 18 do mesmo código exprimem os casos em que ocorrem a má-fé, a responsabilização atribuída e o modo de condenação, pois já previa o corpo legislativo que nem todos os utilizadores da justiça trilhariam sob os valores acima listados. A última modificação sofrida nesta matéria foi imposta pela Lei n° 9.668, de 23 de junho de 1.998, a qual acrescentou os incisos VII do artigo 17 e alterou o ‘’caput’’ do artigo 18. 5. Sujeitos O legislador não distingue entre a parte vencedora ou vencida; portanto, independentemente do resultado do processo a 185 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 185 21/8/2008, 10:21 responsabilidade existe, se constatada a má-fé. Assim, podem ser considerados litigantes de má-fé autor, réu, assistente, terceiro, ou seja, todos aqueles que participarem na relação processual.O ministério público, quando atuante como uma das partes, também pode ser condenado por litigante temerário. A jurisprudência é consistente neste sentido e quem efetuará o pagamento da multa será a Fazenda Estadual ou a Nacional, podendo essas regressarem contra o agente causador do dano. A respeito dos advogados, a lei é omissa quando se trata da responsabilização por dano processual. O texto legal faz referência apenas aos deveres que se sucumbem, mas não às responsabilidades. Consequentemente, não cabe ao procurador indenizar ou pagar multa, ficando a cargo da parte, que poderá acionar regressivamente seu advogado. Ao juiz não cabe a condenação por litigância temerária, pois, como dito anteriormente, essa se aplica somente às partes. 6. Casos de Litigância de Má-Fé Para coibir os abusos processuais, o legislador pátrio considerou várias hipóteses, reproduzidas nos incisos do artigo 17, do Código de Processo Civil, a saber: 6.1.Deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso em lei ou fato incontroverso. Age de má fé quem demanda contra texto expresso em lei sem que sustente com relevância sua ação ou contestação. Posição aceita pela doutrina e jurisprudência é a de que, litigar contra texto legal, porém fundamentar com notoriedade, aos olhos do juiz, não caracteriza caso de má-fé e sim tentativa de defender ou exigir direito tido como existente e válido. Em sentido contrário, se a parte enseja contra dispositivo legal conhecido e de única interpretação, é vista a litigância de má-fé. Neste ponto é de comum praxe verificar a culpa grave ou dolo do litigante em contrariar e de alguma forma 186 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 186 21/8/2008, 10:21 prejudicar o processo para a constatação de má-fé. Não se encontra má-fé em teses contrárias a Súmulas, pois, dessa forma não haveria uma renovação e mudanças de concepções necessárias durante o decurso do tempo. 6.2. Alterar a verdade dos fatos. É de suma importância que a verdade impere nos processos, pois só assim será possível ter a segurança de resolver uma lide com equidade. A veracidade colabora para que direitos e deveres caiam sobre quem merece, afastando o fantasma da injustiça. Não se pode confundir com o princípio dispositivo quando se analisa a questão da verdade dos fatos. Aquele defende que as partes tem liberdade para compor o processo com os fatos que julgarem necessários e, esta, assegura que nos fatos demandados, atuem com espírito de veracidade. Portanto, quem, solicitando ou demandando fatos no processo, faltar com a verdade, tanto em ação quanto a omissão, estará atuando de má-fé e sujeito a responsabilização. A exigência de veracidade remete àquela verdade conhecida e tida como singular, ou seja, requer-se o que a parte acredita ser verdadeiro, mesmo que sem conhecimento, os fatos sejam outros. 6.3. Usar do processo para conseguir objetivo ilegal. O presente, difere do processo fraudulento encontrado no artigo 129 do Código de Processo Civil, onde ambas as partes autor e réu - de conchavo tentam auferir do processo ato simulado ou contrário a lei. Esse dispositivo vem a proibir que uma das partes use o processo como forma de atingir resultado não contemplado pelo ordenamento jurídico, a saber, alguém que ajuíza ação contra devedor que está viajando (podendo ter cobrado a dívida antes e que essa seria saldada) somente para ferir sua imagem econômica. 187 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 187 21/8/2008, 10:21 6.4.Opuser resistência injustificada ao andamento do processo. O fator tempo é um dos mais importantes quando se trata de um processo. Várias são as queixas de demora para a solução de litígios. Apoiado neste contexto e no princípio da celeridade, é punível aquele ato injustificado que retarda o andamento do processo. A doutrina exemplifica diversos casos em que o litigante, em seus atos, objetiva nada mais do que a preclusão do curso processual como, por exemplo, não fornecer elementos de cálculo para viabilizar a liquidação mesmo depois de vezes intimado. 6.5. Proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo. A cautela, a prudência e a fundamentação são apenas alguns dos adjetivos necessários na formação de um sujeito ativo no mundo processual. Essas características propiciam o perfeito desenvolvimento de uma lide e por isso devem prevalecer. Agir temerariamente significa agir imprudentemente, arriscadamente ou ainda audaciosamente, sem fundamento algum. Aqui se concentra a lei, que tenta reprimir esses modos de agir do cunho processual. A proibição da temeridade implica respeitar os deveres constantes do artigo 14: dizer a verdade, formular pretensões ou defesa com fundamento, produzir provas e praticar atos somente quando necessários. Exemplo típico de ação temerária punível por má-fé é o ajuizamento de nova ação pendente outra idêntica. 6.6. Provocar incidentes manifestamente infundados. Durante o curso normal do processo, surgem questões a seu respeito até então desconhecidas, mas que precisam ser resolvidas 188 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 188 21/8/2008, 10:21 a fim de solucionar o litígio, essas são chamadas incidentes. Não pode uma das partes provocar discussões irrelevantes e infundadas para a matéria processual, pois, não trará benefício algum para a lide, apenas alongando-a. Nesse caminho seguiu o legislador para evitar tais empecilhos. 6.7. Interpuser recurso manifestamente protelatório. É pratica comum recorrer em agravo regimental com teses idênticas às já mencionadas em recurso especial já apreciadas e rejeitadas com o fim de meramente de alongar o cumprimento da sentença. A lei n° 9.668/98, regulou o que a jurisprudência de princípio entendia com má-fé com a inclusão do inciso VII no artigo 17 do Código de Processo Civil, portanto, estará agindo de má-fé aquele que usar de recurso com o escopo de protelar efetivação de decisão. 7. Condenação Para o litigante que agir de má-fé, cabe condenação por perdas e danos em prol da parte prejudicada, indiferente quem seja o vencedor da demanda. Em outras palavras, a reparação será devida qualquer que seja o resultado da causa, ainda que o litigante de má-fé consiga, ao final, sentença favorável. O artigo 18 do Código de Processo Civil determina que a condenação do litigante de má-fé poderá ocorrer de duas maneiras: de ofício ou a requerimento. Muita discussão jurídica envolveu-se em torno de poder ou não o juiz condenar de ofício o litigante que usou de má-fé. A lei, até 1.994, não trazia em seu texto a possibilidade de condenação de ofício, porém a jurisprudência dividia-se, alguns alegando que o maior ofendido na hipótese de má-fé seria o Estado e outros sustentando que a condenação tem caráter indenizatório, necessitando então que a parte lesada solicite providências. Para sanar tal discussão, a lei n° 8.952, de 13.12.1994, introduziu a expressão ‘’de ofício’’ no 189 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 189 21/8/2008, 10:21 artigo 18 do Código de Processo Civil. Em relação ao grau em que é condenado o litigante de má-fé, tanto faz se ocorrer em primeiro ou segundo graus, pois a parte pode agir contrário a boa-fé também em nível recursal. Portanto, não é necessário que a parte reclame atitude de má-fé da outra para a condenação, pode aquela fazer, mas também é lícito e dever do magistrado, para defender a boa índole do processo, condenar de ofício. O momento para a condenação pode gerar dúvidas, pois alguns o defendem na sentença e outros em decisão interlocutória. Na sentença vigora o melhor momento para o acerto referente à má-fé, pois aí poderão ser feitas eventuais compensações. 8.Valores Primeiramente, deve-se estabelecer que o artigo 16 do Código de Processo Civil menciona que responde por ‘’perdas e danos’’, enquanto o artigo 18 do mesmo Código refere-se a ‘’prejuízos’’. Autores divergem quanto tal terminologia, porém cabe ao intérprete entendê-la como sinônimos, pois não seria justificável o legislador trabalhar com conceitos diferentes numa mesma matéria. Englobam o significado de perdas e danos (ou prejuízos) em sentido geral os lucros cessantes, perdas e danos patrimoniais assim como danos morais. O artigo 18 do CPC, enuncia: ‘’Art. 18 - O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a 1% (um por cento) sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou. § 2º - O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento.’’ Portanto, os valores atribuídos pelo texto legal dividem-se em duas naturezas: a de caráter sancionador (multa) e a de caráter indenizatório (indenização). 190 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 190 21/8/2008, 10:21 Diante disso, tem-se, como primeira interpretação, que a indenização capaz de ressarcir o que a parte prejudicada sofreu não poderá ser superior a 20% do valor da causa, quando fixada pelo juiz, a menos que não tenha um valor determinado. Nesse caso, deverá ocorrer liquidação por meio de arbitramento. Essa interpretação, porém, traz em si um problema que se estabelece quando a causa tem valor apenas simbólico ou ínfimo. Diante dessa questão, a 4ª Turma Cível do TJDFT, na APC 49.066/ 98, cujo relator foi o Des. Mário Machado, reconheceu por unanimidade a litigância de má-fé nos seguintes termos: ‘’Com toda razão pede a apelada a condenação da apelante como litigante de má-fé. Sua pretensão, desde o ingresso dos embargos de terceiro e, agora, com o recurso de apelação, esbarrando de frente na coisa julgada e na Súmula n° 35, do STJ, revela-se manifestamente protelatória. Usa a apelante do mecanismo recursal apenas para retardar o cumprimento da obrigação, levantando tese, permissa vênia, insustentável. Por isso, e com fundamento no artigo 17, inciso VII, e no art. 18 do CPC, com a nova redação da lei n° 9.668/98, condeno a apelante a pagar multa de 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da execução (e não da causa, porque a esta deu a apelante o irrisório valor de R$ 120,00, provavelmente já com receio da sucumbência e cominações legais) e a indenizar a apelada dos prejuízos sofridos, os quais, de acordo com o parágrafo 2º do art. 18 do CPC, arbitro em 10% ( dez por cento ) sobre o valor atualizado da execução, além de pagar-lhe honorários advocatícios, que arbitro, de acordo com o art. 20, § 4º, do CPC, em R$ 1.000,00 (um mil reais).’’ Como se vê, nesse caso não se considerou o valor da causa, justamente por ser ele ínfimo, mas o da execução. No entanto, quando se tratou de arbitramento, o próprio juiz decidiu pelo percentual de 10% sobre a execução, e isso no momento do julgamento. O problema aqui é que arbitramento passa a ser considerado ‘’arbítrio’’ do juiz, quando na realidade implicaria análise por perito contador ou outro capaz. Apesar disso, parece ser esse o critério mais arrazoado, principalmente considerando a sistemática do código de processo civil e das decisões jurisprudenciais referentes a indenizações por perdas e danos, que acabam se relacionando com a litigância de má-fé. 191 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 191 21/8/2008, 10:21 9. Litigância Prejudicial Por Conduta Culposa alguns autores, para definir o vocábulo culpa, inspiram-se em uma concepção moral de culpabilidade, considerando apenas o aspecto subjetivo; outros autores, baseiam-se no aspecto objetivo que comparam o comportamento do agente a um tipo abstrato. Uma das definições contempladas no Dicionário Aurélio, diz que culpa é a violação ou a inobservância de uma regra de conduta, de que resulta lesão do direito alheio.5 Outras definições podem ser encontradas como por exemplo no Dicionário da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, dizendo que a culpa é elemento subjetivo da infração cometida, compreendido pela negligência, imprudência ou imperícia, podendo existir em maior ou menor proporção, obrigando sempre a reparação do dano.6 A definição, segundo Carrara, diz que é a voluntária omissão de diligência em calcular as conseqüências possíveis e previsíveis do próprio fato. A existência de alguma coisa, traz sempre consigo uma origem, uma história, ou mesmo uma fundamentação para justificar sua existência. Na culpa isso não ocorre de maneira diferente, sendo pacífico por grande parte de doutrinadores, em afirmar que ela é fundamentada na previsibilidade. Essa, tem o mesmo sentido de ver antecipadamente, calcular, conjeturar, supor, subentender, pressupor entre outros sentidos. A doutrina da previsibilidade impõe-se porque, sem ela, é difícil fundamentar ou justificar um juízo de culpabilidade ou de reprovação, pois, é somente fundado na possibilidade de se prever o que não foi previsto, que se pode censurar alguém por não ter tido conduta que evitaria o resultado danoso. A previsibilidade, por sua vez, tem de ser aferida, pela observância de alguns critérios: a) critério objetivo - que tem em vista o homem médio, isto é, sua diligência e perspicácia. Previsível é o resultado quando a previsão de seu advento pode ser exigido do homem comum e normal, ou seja, do indivíduo que age com atenção e diligências ordinárias, que são exigíveis das pessoas comuns; b) critério subjetivo rejeita o paradigma do homem médio, que é uma abstração, para FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa Portuguesa, 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 508. 6 SIDOU, J. M. Othon. Dicionário Jurídico - Academia Brasileira de Letras Jurídicas Jurídicas, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 222. 5 192 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 192 21/8/2008, 10:21 levar em consideração a personalidade do agente, ou seja, suas personalíssimas como a idade, o sexo, o grau de cultura etc.7 Um terceiro critério pode ser mais justo para a aferição da previsibilidade; trata-se da união dos dois primeiros critérios. Assim, deve o juiz analisar primeiramente o fato em si, com suas circunstâncias e exigir um tipo de conduta do homem médio e, em segundo lugar, analisar a condição pessoal do sujeito e relacioná-la com o fato ocorrido. Dessa forma, para iniciar discussão sobre a existência de culpa, tem de se partir da seguinte assertiva ‘’Não há culpa sem previsibilidade’’. 10. Modalidade de Culpa. A imprevidência do agente, que dá origem ao resultado lesivo, apresenta-se sob as seguintes formas ou modalidades de culpa: a) negligência - comportamento caracterizado por uma conduta negativa; deixar de fazer alguma coisa; ausência de precaução, inércia e passividade. Decorre de inatividade material (corpórea) ou subjetiva (psíquica) e reduz-se a um comportamento negativo. Negligente é a pessoa que, podendo e devendo agir de determinada maneira, por indolência ou preguiça mental, não age ou se comporta de modo diverso; b) imprudência - comportamento caracterizado por uma conduta positiva, perigosa. Trata-se de um agir sem a cautela necessária. Consiste na atuação precipitada, insensata; c) imperícia falta de aptidão para o exercício de certa função; não qualificação para realizar determinado ato. Consiste na incapacidade, na falta de conhecimento ou de habilitação para o exercício de determinado mister. 11. A Conduta e o Dano Processual Toda pessoa culpável ou responsável que cometer qualquer tipo de conduta censurável contra outra pessoa, e que lhe cause alguma espécie de dano, tanto na esfera patrimonial como também na moral, 7 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal - Introdução e Parte Geral Geral, 37. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 141. 193 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 193 21/8/2008, 10:21 enseja reparação civil através de ação própria. Esse tipo de conduta acontece, via de regra, nas ações cotidianas em decorrência da vida em sociedade, sendo pois, passíveis de reparação. Em determinadas situações, o dano pode ocorrer em processo judicial instaurado e em andamento, como afirmado alhures, ou seja, o dano se configura através de uma conduta intencional de uma das partes, que procura prejudicar o andamento do processo, impedindo dessa forma, que a prestação jurisdicional ocorra de forma mais célere. Contemporaneamente, existem alguns questionamentos acerca da ocorrência de dano através da conduta culposa das partes, do interveniente e do advogado, bem como, a responsabilização solidária das pessoas envolvidas no ato danoso. Imagine-se o advogado mal preparado para o exercício da profissão, que realizasse uma interpretação bisonha, esdrúxula ou ingênua, acerca de uma norma jurídica e, que essa causasse retardamento ao andamento do processo e, consequentemente, um dano à parte. Certamente, não ensejaria uma responsabilização por conduta dolosa, pois, o ato volitivo não tinha a intenção de causar o dano, esse, pode ter ocorrido sob uma das modalidades de culpa. O que dizer sobre o retardamento culposo por parte do réu em depositar a importância devida para pagamento dos honorários do perito ou de outro auxiliar do juízo ? E a impugnação realizada em ato processual que já estava precluso? Ou ainda, do advogado que deixa de confirmar a veracidade da prova colhida pelo cliente e que será apresentada em juízo, tendo-se levantado suspeitas sobre a adulteração do documento ? São exemplos hipotéticos de condutas culposas passíveis de ocorrência em ações que podem estar tramitando nos foros. Essas condutas causam, consequentemente, um retardamento do andamento processual, bem como um dano às partes, devido à demora em haver a prestação jurisdicional. Sabe-se que as condutas provenientes de litigância de má-fé estão elencadas no artigo 17, do Código Processual Civil e são passíveis de punição pecuniária uma vez caracterizada a atitude dolosa. Entretanto, não existe nenhuma previsão legal sobre a litigância prejudicial por conduta culposa no mesmo Diploma. 194 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 194 21/8/2008, 10:21 12. Da Responsabilidade Por Conduta Culposa O agente, uma vez tendo cometido um ato danoso proveniente de uma conduta dolosa, deverá reparar o dano. Essa afirmação é resultante da interpretação do artigo 927, do Código Civil Brasileiro, que faz, também, referência aos artigos 186 e 187. Notadamente no artigo 186, prevê-se a responsabilização por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência. Ressalte-se que essa responsabilização é decorrente de conduta que ensejará o ingresso de ação própria para exigir a reparação do dano, diferentemente da responsabilização ora questionada, ou melhor, a responsabilização por conduta praticada nos próprios autos. Diante da verificação de um dano por conduta culposa e, mesmo sem previsão expressa em norma, deve o agente ser responsabilizado ? Admitindo-se essa responsabilização, o advogado, por ter o conhecimento técnico indispensável para a atuação em nome do mandante, deve ser responsabilizado solidariamente ? Uma vez caracterizada a culpa, a apuração das responsabilidades devem ocorrer nos próprios autos ou em autos apartados ? Os questionamentos acima levantados admitem respostas diversas, tendo-se em conta que não existe previsão legal para a responsabilização por conduta culposa praticada nos próprios autos, porém, nestes casos, o bom senso também deve prevalecer. Assim, afirma-se que a ausência de previsão legal não impede que haja a responsabilização do agente, porque essa ausência poderá ser substituída por outra forma, como por exemplo a analogia, os costumes e a construção jurisprudencial. 13. Considerações Finais A litigância de má-fé é um poderoso meio para prejudicar e abalar a estrutura instrumental do processo, concorrendo para o não cumprimento da verdadeira meta judiciária, que é a de resolver litígios e promover a justiça. A nossa legislação é bastante rica e proporciona uma atuação enérgica no sentido de acabar com tal atitude abusiva. Em tempos de numerosas críticas ao poder judiciário acerca de sua 195 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 195 21/8/2008, 10:21 morosidade, é dever do cidadão interessado protestar e, principalmente, do juiz em defender os princípios que norteiam nosso processo em repelir e sancionar quem, de má-fé, obstrua o caminho do processo para a solução de conflitos. O dever de reparar o dano é proveniente da configuração de uma atitude dolosa e que cause prejuízo à parte, principalmente, pelo retardamento do andamento processual, pois, desse retardamento pode haver desdobramentos com as mais variadas conseqüências. E quando o dano é proveniente de uma atitude culposa que resulta, também, em um retardamento do andamento processual. Deve haver a responsabilização, com a aplicação de uma sanção ? A ausência de previsão legal expressa, não impede que os magistrados apliquem sanções às partes que atuaram no processo tendo essas, causado um retardamento do andamento processual, implicando em prejuízo ou dano. Críticas são ouvidas nas mais variadas classes sociais, quando se trata da aplicação da justiça. A deficiência de recursos tecnológicos, ausência de funcionários, excesso de número de processos e corrupção, entre outras críticas, são manifestações que os membros da sociedade exprimem a todo momento. Essas manifestações interferem, indiretamente, em um desvirtuamento dos conceitos morais e éticos construídos ao longo dos tempos, por que, ouve-se com certa freqüência, que não existe mais vantagem em ser uma pessoa honesta ou de bons costumes, ou ainda, o devedor de certa importância que dispõe de uma gama enorme de recursos postos à disposição das partes, acaba por dificultar o recebimento do crédito e aufere vantagens decorrentes do inadimplemento. Com isso, é lícito afirmar que o Poder Judiciário não pode deixar sem resposta e com a devida sanção, àqueles que, uma vez tendo a necessidade de buscar o provimento jurisdicional, não sejam prejudicados por condutas dolosas e culposas praticados pelas partes. Pode-se dizer que, a aceitação da idéia de aplicação de sanção decorrente de conduta culposa, é uma nova concepção a ser discutida e aplicada no âmbito do Poder Judiciário, e que pode, além de coibir esses tipos de condutas, pode também auxiliar, indiretamente, no resgate de alguns valores morais e éticos que, ultimamente, estão sendo esquecidos pelos cidadãos. 196 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 196 21/8/2008, 10:21 14. Referência Bibliográfica FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa ortuguesa, 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. rocesso GOLDSCHIMDT, James. Teoria Geral do PProcesso rocesso. Campinas: Minelli, 2003. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 1995. rocesso JÚNIOR, Nelson Nery, Rosa Maria de Andrade Nery. Código de PProcesso Civil Comentado Comentado. 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 2. ed., São Paulo: Millenium, 1998. rocesso Civil MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de PProcesso Civil. São Paulo: Forense, 1974. enal - Introdução e PParte arte NORONHA, E. Magalhães. Direito PPenal Geral. 37. ed., São Paulo: Saraiva, 2003. eoria General SANCHEZ, Alberto Arteaga. La Culpabilidad en la TTeoria del Hecho Punible Punible. 1. ed., Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1975. SIDOU, J. M. Othon. Dicionário Jurídico - Academia Brasileira de LLetras etras Jurídicas Jurídicas. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. 197 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 197 21/8/2008, 10:21 198 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 198 21/8/2008, 10:21 ALGUMAS QUESTÕES CONTROVERTIDAS DO PROCESSO CAUTELAR Maristela Rodrigues de Lima1 Resumo: O tema objeto de estudo visa a um maior aprofundamento nos aspectos do processo cautelar, sede de entendimentos doutrinários divergentes. Primeiro, foi dado um enfoque com relação ‘a finalidade do processo cautelar em nosso ordenamento jurídico e, posteriormente, delineadas algumas de suas características, fundamentos para sua concessão e a existência ou não de mérito no processo cautelar. Abstract: The theme studied views a greater deepening on preventive process aspects, base of divergent doctrinary understanding. First it focuses on the judicial orders in preventive process, and secondly some characteristics and foundations for its concession and existence or not of merits in the preventive process. Palavrachave: características, condições, posicionamentos. alavra-chave: 1.Introdução A necessidade de se garantir a eficientização da prestação jurisdicional fez com que surgisse o processo cautelar no sentido de suprir os danos irreparáveis causados pela demora, visando, assim, a uma otimização da atuação jurisdicional. Nesse sentido, contempla o presente estudo alguns aspectos do processo cautelar, visando a um delineamento de seus parâmetros dentro da nossa sistemática jurídica. Para isso, foram trazidos à tona posicionamentos de alguns doutrinadores, no sentido de melhor adentrar no campo de atuação do processo cautelar. Acadêmica do Curso de Pós Graduação em Direito Processual Civil na UNIGRAN. Trabalho apresentado no curso de Pós graduação em Direito Processual Civil na UNIGRAN 1 199 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 199 21/8/2008, 10:21 2. A Efetividade do Processo Primitivamente, competia aos próprios titulares dos direitos reconhecidos pelo Estado defendê-los e realizá-los; era a chamada “justiça privada” ou “justiça pelas próprias mãos”, que não ajudava em nada na solução pacífica dos conflitos e a conseqüente paz social.2. Com o fortalecimento do Estado, os conflitos de interesses passaram a ser resolvidos por este e não mais pelo particular. Assim, o Estado assumiu a tarefa de aplicar o direito dentro de cada situação de litígio bem como de fazer com que a parte cumprisse o que foi determinado, ou seja, o Estado passou a ter a função, também, de executar suas sentenças. Dessa forma, instituiu-se a jurisdição, na composição dos litígios; o Estado, diante da situação concreta, declara e realiza a aplicação da lei. Como muito bem esclarece Ernane Fidélis dos Santos: 3 “Seja para a realização prática do direito, a jurisdição, por seu próprio escopo de fazer a justiça, não cumpre seu mister através de ato único, mas de uma seqüência de atos. Tal soma de atos, que tem objetivo certo e determinado, é o que se chama ‘processo’. ‘Processo é o meio pelo qual a jurisdição atua”. Quando tal situação é posta em prática, ou seja, com a atuação da jurisdição, visando à composição dos litígios, o processo, sendo uma soma de atos, exige um determinado tempo para que sejam alcançadas suas finalidades, com base nos princípios que o norteiam. Muitas vezes, o transcurso do tempo exigido pelo trâmite processual pode acarretar prejuízos irreparáveis às partes, como por exemplo, a deterioração, o desvio, a alienação etc. Dessa forma, não basta apenas a decisão judicial justa; deve haver também uma garantia de que ela seja efetivada e que atinja o fim precípuo de composição da lide. Surgiu, então, a partir daí, o processo cautelar, visando a assegurar que a sentença, ao final, não se tornasse inócua. 2 3 Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civi Civil, p.42. Ernane Fidélis dos Santos. Manual de Direito Processual Civil, p. 295. 200 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 200 21/8/2008, 10:21 O processo cautelar encontra-se disciplinado nos artigos 796 a 889, no Livro III, no Código de Processo Civil, de forma ampla em sua estrutura e em seus procedimentos. A maioria dos processualistas o vêem como um “tertium genus”, posto que o equiparam ao processo cognitivo e executivo.4 3.Características do Processo Cautelar O processo cautelar surge como um instrumento eficaz de segurança e prevenção para a realização dos interesses e composição de litígios. Segundo Humberto Theodoro Junior,5 ao citar a opinião de Carnelutti, “a tutela cautelar existe não para assegurar antecipadamente um suposto e problemático direito da parte, mas para tornar realmente útil e eficaz o processo como remédio adequado à justa composição da lide”. Nélson Nery Junior comunga desse mesmo entendimento ao ensinar que “a finalidade do processo cautelar é assegurar o resultado do processo de conhecimento ou do processo de execução”6. Também, nesse sentido, pode-se citar Liebman quando diz que “a ação cautelar é sempre ligada por uma relação de complementariedade a uma ação principal já proposta ou cuja iminente propositura já se anuncia. Essa relação reside no fato de a cautela pedida ter o escopo de garantir o resultado útil da ação principal”7. O que daí se extrai é que o processo cautelar assegura, porém não satisfaz o direito assegurado, revelando uma de suas características, a questão da instrumentalidade, já que visa a assegurar o resultado prático de outro processo. Contrário a esse entendimento, Ovídio Baptista da Silva defende a existência de um direito substancial de cautela, chegando a afirmar que as ações cautelares têm também um certo caráter satisfativo. Primeiramente, analisaremos a questão da satisfação, o que entende o referido mestre com a satisfação de um direito:8 “Nossa compreensão do que seja a satisfação de um direito 4 5 6 7 8 Luiz Alberto Hoff. Reflexões em torno do Processo Cautelar Cautelar, p.8. Humberto Theodoro Júnior. Processo Cautelar Cautelar, p.53. Nélson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado Comentado, p.908. Enrico Tullio Liebman. Manual de Direito Processual Civil Civil, p.217. Ovídio A. Baptista da Silva. Curso de Processo Civil Civil, p.30. 201 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 201 21/8/2008, 10:21 corresponde rigorosamente ao entendimento do senso comum, para o qual satisfazer um direito é realiza-lo no plano social. Todo direito e, correlativamente, todo o dever que grava o sujeito passivo, obrigado a respeita-lo e cumpri-lo, têm em seu núcleo um determinado verbo especial, através do qual é possível identificar a respectiva ação(de direito material) que o realiza.” Partindo de tal raciocínio é possível compreender que existem formas de satisfação provisória de um, determinado direito, o que não tem respaldo da doutrina em geral, já que para Chiovenda, para satisfazer um direito no plano jurisdicional, basta declará-lo existente. Ovídio Baptista da Silva cita como exemplo os alimentos provisionais, que são tidos pelos processualistas em geral como cautelares e não como satisfativos da pretensão alimentar, só que ,embora provisórios, suprem uma necessidade imediata do alimentando, ainda que a respectiva sentença lhe tenha dado o caráter de provisionais. Dessa forma, o uso que o credor irá fazer deles, tanto em caráter provisório quanto definitivo (declarado em sentença no Processo de Conhecimento) será o mesmo. Cada caso concreto irá fornecer dados sobre a satisfatividade ou não da medida cautelar, já que, conforme cita o autor, no caso do seqüestro, é evidente o caráter apenas assegurativo, já que “visa assegurar a futura satisfação (realização) do direito assegurado”.9 Com relação ao direito substancial de cautela, o eminente processualista entende ser totalmente procedente devido ao fato da sentença mandamental representar uma forma de proteção jurisdicional a um direito supostamente existente. Quando o juiz “declara” que há plausibilidade do direito e que a parte é merecedora da tutela cautelar pleiteada(fumus boni júris e periculum in mora), configura-se aí, um caráter declarativo, embora sem cunho de coisa julgada material, onde o juiz admite, implicitamente, que a pretensão, posta em juízo, encerra um direito plausível10. Nesse sentido, Luiz Alberto Hoff, preleciona que: “O próprio código, ao permitir a postulação de medidas cautelares inespecíficas, no art.798, estabelece claramente que o objeto da ação cautelar não é a proteção do processo principal, senão que uma tutela ao direito que esteja ameaçado de sofrer 9 10 Ovídio A. Baptista da Silva. Curso de Processo Civil Civil, p. 32-33. Luiz Alberto Hoff. Reflexões em torno do Processo Cautelar Cautelar, p.9-11. 202 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 202 21/8/2008, 10:21 lesão grave e de difícil reparação.” Humberto Theodoro Júnior critica veementemente o posicionamento de Ovídio Baptista da Silva, ao dizer que: “A lide é uma só e se o direito a sua solução só vai ser satisfeito no processo principal, que, obviamente, pode até resultar em um provimento contrário à pretensão substancial da parte que provoca a tutela jurisdicional cautelar, não vemos como defender a existência de um direito substancial de cautela”.11 Para o processualista, a existência de um direito processual de cautela entra em contradição com o entendimento que se tem hoje do conceito de ação como direito abstrato e autônomo frente ao direito material, isto é, como direito à tutela jurisdicional, independente se for ou não procedente à pretensão substancial da parte. E conclui, “Não é o direito material que assegura o exercício dessa ação, mas o risco processual de ineficácia da prestação definitiva sob influência inexorável do tempo que se demanda para alcançar o provimento definitivo no processo principal”. A instrumentalidade é tida por muitos doutrinadores como a principal característica do processo cautelar e advém do artigo 796 do Código de Processo Civil que dispõe: “o procedimento cautelar pode ser instaurado antes ou no curso do processo principal e deste é sempre dependente”. Humberto Theodoro Júnior, na mesma linha de pensamento de Carnelutti, preleciona que: “O processo cautelar, embora autônomo por seu objeto, não justifica sua existência por si mesmo, mas pela relação necessária que guarda com outro processo principal, isto é, de cognição ou de execução, ao qual serve como instrumento de segurança de eficaz atuação”12. Conforme dito anteriormente, tal característica não encontra respaldo ao se considerar o posicionamento do professor Ovídio Baptista da Silva, que vê o processo cautelar autônomo e independente do processo principal. O Eminente processualista Vicente Greco Filho, vê a instrumentalidade de forma hipotética, com base em Calamandrei, 11 12 Humberto Theodoro Júnior. Processo Cautelar Cautelar, p.60. Ibid., p.61. 203 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 203 21/8/2008, 10:21 pois além da medida estar a serviço de um processo, não depende de que a decisão seja favorável ou não naquele processo. Segundo o processualista, “protege-se um bem jurídico na hipótese de que, sendo a sentença favorável ao requerente, esse precisa estar íntegro para lhe ser entregue ou ser utilizado. A medida é concedida para que a hipótese daquele que a pleiteia, tenha razão.”13 Outra característica do processo cautelar é a autonomia, uma autonomia de caráter procedimental, já que depende ontologicamente do processo principal. Essa autonomia é vista quando se verifica que o resultado do procedimento cautelar pode não ser o mesmo da ação principal, ou seja, a parte que obteve êxito na ação cautelar pode não obter o mesmo resultado na ação principal, segundo o que dispõe o art. 810 do Código de Processo Civil que dispõe que “o indeferimento da medida não obsta a que a parte intente a ação, nem influi no julgamento desta, salvo se o juiz, no procedimento cautelar, acolher a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor.” Segundo os ensinamentos de João Carlos Pestana de Aguiar Silva, “na forma, o processo cautelar tem vida autônoma. No fundo, não obstante, tem vida acessória ao processo principal.”14 Em sentido diametralmente oposto, percebe-se o professor Ovídio que vê a autonomia em inúmeros casos, embora a lei e a doutrina entendam de outra forma. Para auxiliar na compreensão de tal alegação, o processualista cita como exemplo a ação cautelar visando à produção antecipada de provas, que não depende do ajuizamento de uma ação principal, já que pode ocorrer que o autor da ação cautelar nem mesmo tenha alguma ação que pudesse servir de ação principal. Ou seja, “ela é autônoma no sentido de dispensar a existência de uma ‘lide principal.’”15 O processo cautelar caracteriza-se, também, pela provisoriedade, com base nos ensinamentos de Humberto Theodoro Junior, em consonância com o entendimento de Chiovenda e Calamandrei, “no sentido de que a situação preservada ou constituída mediante o provimento cautelar não se reveste de caráter definitivo, e, ao Vicente Greco Filho. Direito Processual Civil Brasileiro Brasileiro, p.151. João Carlos Pestana de Aguiar Silva. Síntese Informativa do Processo cautelar cautelar, Revista Forense, v.247, n.853-855, p.41-52. 15 Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, p.108-109. 13 14 204 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 204 21/8/2008, 10:21 contrário, se destina a durar por um espaço de tempo delimitado. De tal sorte, a medida cautelar já surge com a previsão de seu fim.”16 Observação importante a ser feita é a questão da conceituação do que é provisório e do que é temporário. Enquanto a provisoriedade pressupõe o advento de outro provimento para substituí-la, a temporariedade tem um caráter de independência, no sentido de que a tutela cautelar vige, não importando o que venha depois. Luiz Alberto Hoff exemplifica que “a provisoriedade, como ensinava Lopes da Costa, nada tem a ver, v.g., com os andaimes de uma obra que, embora temporários, não deverão ser substituídos por nada”. E continua, “a barraca que o construtor constrói, enquanto não conclui a casa definitiva, entretanto, é provisória, visto que destinada a ser substituída por etc.17 Partindo da conceituação acima, verificamos que em se acatando o conceito de provisoriedade para o processo cautelar, limitamos a tutela cautelar como simplesmente um instrumento, conforme delineado anteriormente quando nos referimos à questão da instrumentalidade. Em sentido oposto, em se verificando a temporariedade, cremos como procedente a tese de Ovídio A. Baptista da Silva, ao dizer que o processo cautelar é uma forma de proteção ao direito da parte.18 Por último, caracteriza-se o processo cautelar pela revogabilidade, já que é possível que a medida seja substituída, modificada ou revogada a qualquer tempo(art.805 e art.807 do Código de Processo Civil). Em ocorrendo o desaparecimento da situação fática que havia dado base para o acautelamento prestado pelo órgão jurisdicional, conseqüentemente, cessa a razão de ser da cautela deferida. 4. Condições da Ação Cautelar A ação cautelar sujeita-se, primeiramente, à análise das condições genéricas da ação, ou seja, à possibilidade jurídica do pedido o interesse de agir e a legitimatio ad causam. Além desses requisitos, Humberto Theodoro Júnior, Processo Cautelar, p.66. Luiz Alberto Hoff, Reflexões em torno do Processo Cautelar, p.15. 18 Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, p.49-58. 16 17 205 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 205 21/8/2008, 10:21 de acordo com o caput do art.801 do Código de Processo Civil, vislumbra-se também a necessidade de demonstração do fumus boni júris e do periculum in mora, que dispõe, in verbis: “Art.801. O requerente pleiteará a medida cautelar em petição escrita, que indicará: I-a autoridade judiciária, a que for dirigida; II-o nome, o estado civil, a profissão e a residência do requerente e do requerido; III-a lide e seu fundamento; IV-a exposição sumária do direito ameaçado e o receio da lesão; V-as provas que serão produzidas.” O fumus boni júris representa a probabilidade e verossimilhança do direito pleiteado, bastando, para isso, a existência do direito. “A expressão fumus boni iuris significa aparência de bom direito, e é correlata `as expressões cognição sumária, não exauriente, incompleta, superficial ou perfunctória. Quem decide com base em fumus não tem conhecimento pleno e total dos fatos e, portanto, ainda não tem certeza quanto a qual seja o direito aplicável.”19 Não se verifica assim uma análise pormenorizada, pois decorreria daí o perigo da demora e a conseqüente ineficácia do processo diante do lapso de tempo decorrido. De acordo com Humberto Theodoro Junior, o que se deve verificar, efetivamente, é se a parte dispõe do direito de ação, ou seja, direito ao processo principal.20 Também, com o mesmo entendimento, o eminente processualista Nélson Godoy Bassil Dower.21 Quanto ao periculum in mora, entende-se como a demonstração do perigo ocasionado pela demora, onde a parte requerente deve demonstrar, com base em conceitos concretos, que poderão ocorrer óbices ao processo principal, caso a medida cautelar não seja deferida, frustrando posteriormente a prestação jurisdicional do Estado. Humberto Theodoro Junior22 cita os ensinamentos de Lopes da Costa, Luiz Rodrigues Wambier(coord.), Teoria Geral do processo Cautelar, p.28. Humberto Theodoro Júnior, Processo Cautelar, p.76. 21 Nélson Godoy Bassil Dower, Curso Básico de Direito Processual Civil, p.361. 22 Humberto Theodoro Júnior, Processo Cautelar, p. 77. 19 20 206 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 206 21/8/2008, 10:21 “o dano deve ser provável e não basta a possibilidade, a eventualidade. E explica: possível é tudo, na contingência das cousas criadas, sujeitas à interferência das forças naturais e da vontade dos homens. O ‘possível’ abrange assim até mesmo o que rarissimamente acontece. Dentro dele cabem as mais abstratas e longínquas hipóteses; A ‘probabilidade’ é o que, de regra, se consegue alcançar na previsão. Já não é um estado de consciência, vago, indeciso, entre afirmar e negar, indiferente. Já caminha na direção da certeza. Já para ela propende, apoiado nas regras da experiência comum ou da experiência técnica.” Após uma breve explanação sobre o que seja fumus boni júris e periculum in mora que devem ser demonstrados na ação cautelar, passaremos, a seguir, ao posicionamento da doutrina no sentido de situar tais elementos, o que tem gerado inúmeras discussões. Para que se possa entender melhor a profundidade do tema, fazse necessário adentrar na questão do mérito da ação cautelar, que abrange os elementos acima, de acordo com a linha de posicionamento. Segundo Humberto Theodoro Júnior e a maior parte da doutrina, “a ação cautelar, é certo, não atinge nem soluciona o mérito da causa principal. Mas, no âmbito exclusivo da tutela preventiva ela contém uma pretensão de segurança, traduzida num pedido de medida concreta para eliminar o perigo de dano”. 23 Tal posicionamento encerra uma linha de pensamento que vimos inicialmente quando discorremos sobre as características da ação cautelar e seu caráter no sentido de assegurar a utilidade e eficácia do processo principal, ou seja, a questão da instrumentalidade e da natureza acessória do processo cautelar. João Carlos Pestana de Aguiar e Silva, 24 João Carlos Pestana de Aguiar Silva, Síntese Informativa do Processo cautelar, “Seguimos, nesse ponto, os ensinamentos de ZANZUCCHI, LIEBMAN E UGO ROCCO, dentre outros (LIEBMAN, ‘unità’, cit. In ‘Problemi’, p. 109; UGO ROCCO, ‘Trattato di Diritto Processuale Civile’, vol. V, p. 33 e seg.). A decisão cautelar não é de mérito, mas sim, quando muito, acessória do mérito da ação principal. Mesmo após proferida, permanece o mérito intacto e indefinido. 23 24 Ibid., p. 73. João Carlos Pestana de Aguiar Silva, Síntese Informativa do Processo cautelar, Revista Forense, v.247, n.853-855, p.42. 207 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 207 21/8/2008, 10:21 Sua solução se dará pela sentença da ação principal. Se a primeira se situa no juízo de probabilidade, a segunda contém um juízo de certeza. Ambas, como bem ressalta LIEBMAN, se diferem essencialmente.” E, na mesma linha de pensamento, já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo: 25 “MEDIDA CAUTELAR – Seqüestro – Acórdão que mantém a sentença de 1º grau – Decisão que não produz coisa julgada material – Ação rescisória incabível – Recurso improvido – Inteligência do art. 485 do CPC – Declarações de votos vencedores e vencido. A decisão que aprecia medida cautelar não examina o meritum causae e nem produz coisa julgada material, dela não cabendo ação rescisória, só admissível contra as decisões de mérito, a teor do art. 485 do CPC.” Diante do exposto, observamos que, para tal corrente o fumus boni júris e o periculum in mora são considerados como condições da ação, já que não há decisão de mérito no processo cautelar. Em lado diametralmente oposto, temos o posicionamento de Ovídio Baptista da Silva que promove as condições acima como de mérito, partindo da idéia da existência de um direito substancial de cautela. Para ele, o processo cautelar possui uma lide específica, diversa das outras eventuais lides que possam emergir do direito acautelado. O mérito do processo cautelar está na segurança que se pretende para o direito que se afirma existir. 26Partindo de tal posicionamento, pertinente é a reflexão com relação à parte que não provou suficientemente o fumus boni júris. Como irá proceder o juiz? Irá declarar a parte carecedora da ação ou irá julgar improcedente a cautelar? Julgará improcedente a ação, ou seja, houve uma decisão, o magistrado adentrou no mérito da questão, ainda que perfunctoriamente, sob o aspecto de um juízo de verossimilhança sobre a existência do direito. E, de acordo com o art.269, I, do Código de Processo Civil, quando o juiz acolhe ou rejeita o pedido do autor é julgamento de mérito. Segundo o Eminente Processualista, ainda que adentrando no mérito da questão, o processo cautelar culmina em provimento não definitivo, podendo ser revogado, de acordo com a modificação dos fatos 25 26 2aGr. Cs. Do TJSP, AR 73.137-1(AgRg), Rel. Des. Freitas Camargo, 24.04.86, Revista dos Tribunais. Luiz Alberto Hoff, Reflexões em torno do Processo Cautelar, p. 12. 208 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 208 21/8/2008, 10:21 trazidos à orla jurídica. Vicente Greco filho posiciona-se no sentido de admitir a existência de mérito em sede de cautelar: “Entendemos, porém, que são requisitos ou pressupostos de procedência do pedido ou da pretensão cautelar e, portanto, concernentes ao mérito cautelar. Se um deles não estiver presente, a pretensão de proteção será improcedente.”27Há ainda outra corrente que entende que o periculum in mora caracterizase como condição da ação cautelar, dentro do interesse processual e o fumus boni júris caracteriza-se como exame de mérito. Só o perigo da demora não é elemento suficiente para adentrar no mérito da questão, mas o fumus boni júris sim, representando um juízo, ainda que provisório.28 5. Natureza da Sentença Cautelar Para aqueles que vêem o processo cautelar apenas como um instrumento para a eficácia do processo principal, a sentença cautelar classifica-se de acordo com cada caso concreto de atuação do processo. Nesse sentido, Humberto Theodoro Júnior: 29 “Com efeito, há cautela que se dá a processo de execução, como o arresto, em que se antecipa uma medida aparentemente executiva; há outras que importam imposição à parte de uma prestação, como se dá nos casos de alimentos provisionais, em que a sentença é tipicamente condenatória; há, também, casos em que se altera a relação jurídica entre as partes, suspendendo o dever conjugal de convivência como ocorre no afastamento temporário de cônjuge do lar conjugal(efeito constitutivo); em alguns casos há simples efeito declaratório, como nas antecipações de prova; em outros, ainda, o efeito é inibitório, impedindo que o titular de um direito o exerça, como na sustação de protesto; e outros, impõe à parte uma prestação positiva, como a exibição de coisa ou documento; e assim por diante.” Em posição oposta, o Prof. Ovídio30 vê a sentença cautelar como Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil Brasileiro, p. 153. José Maria Rosa Tesheiner, Elementos para uma teoria Geral do Processo, disponível em http://www.tex.pro.br/ wwwroot/livroelementos/capituloVII.htm. 29 Humberto Theodoro Júnior, Processo Cautelar, p. 162. 30 Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, p. 62. 27 28 209 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 209 21/8/2008, 10:21 de caráter mandamental, conforme ensinamentos: se depreende de seus “É impossível, finalmente, a construção de uma teoria coerente da tutela de simples segurança sem a prévia aceitação da categoria das ações e sentenças mandamentais. Somente uma categoria de sentenças que seja, ao mesmo tempo, ato jurisdicional típico incapaz de produzir coisa julgada e definitivo, no sentido de corresponder a uma espécie de tutela jurisdicional que se completa com uma sentença que encerra uma determinada relação processual, como qualquer sentença de mérito e, mesmo assim, não declara a existência do direito assegurado, poderá ser apta a servir à finalidade a que se destina a tutela cautelar”. Para ele, a sentença proferida em ação cautelar consiste mais em uma ordem que num julgamento propriamente dito, pois visa proteger um direito apenas eventual, sem a necessidade de que seja declarada a existência do referido direito. 6. Conclusão Existem muitas questões controvertidas com relação ao processo cautelar. A questão ainda não é pacífica, pois embora haja predominância na doutrina no sentido de caracterizar o Processo Cautelar como acessório ao processo principal, de autonomia apenas técnica, tendo a finalidade precípua de dar garantia ao processo principal, existem também outros posicionamentos, conforme verificou-se no decorrer dos estudos apresentados. As correntes estudadas são totalmente discrepantes com relação às características, condições e funções do processo cautelar, pois o enfocam de maneira diferente e, a partir desse referencial, os caminhos se distanciam, pois as finalidades são distintas. Analisando o tema atentamente, primeiramente entendemos que o processo cautelar não visa dar garantias ao processo principal e sim, proteger o próprio direito. A caracterização da instrumentalização como característica principal do processo cautelar, faz com que o coloquemos como acessório do processo principal, dependendo única e exclusivamente deste tal entendimento transforma totalmente o delineamento do processo cautelar e suas implicações. É óbvio que 210 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 210 21/8/2008, 10:21 ele envolve o fator da temporariedade e revogabilidade, mas nem por isso deve ser considerado como, simplesmente, um instrumento do processo principal. Torna-se ainda mais complexo o tema ao se vislumbrar a questão do mérito no processo cautelar, já que a corrente predominante, de inspiração caneluttiana, entende que a sentença proferida não é de mérito, pois não possui um fim em si mesma, ou seja, não resolve a lide do processo principal, o que não se encaixa na finalidade da jurisdição que é a justa composição da lide, o que só seria possível com a sentença proferida definitivamente. E, nessa problemática, temos também o fumus boni júris e o periculum in mora que são considerados como condições especifícas da ação cautelar pela doutrina predominante, o que destoa com a existência de mérito no processo principal. Assim, em se acolhendo a posição doutrinária do eminente processualista Ovídio Baptista da Silva, tais requisitos tornam-se matéria de mérito, pois ainda que superficialmente, o juiz irá analisar a presença do fumus boni júris e do periculum in mora, que, caso não estejam presentes, ocasionará a improcedência da ação. O juiz não declara a existência do direito, mas afirma, diante da situação concreta trazida ao processo, que a parte tem direito de proteger o direito que ela diz existir. O mérito da ação cautelar foi analisado de acordo com um juízo de verossimilhança e sob os aspectos de urgência da ação cautelar. Outro aspecto do processo cautelar é a sentença, pois de acordo com o posicionamento do Prof. Ovídio, caracteriza-se pela mandamentalidade, pois não constitui o direito, não faz coisa julgada e definitiva, não tem a declaração como objetivo de sua composição. Tem um conteúdo ordenativo porque é composta mais de ordem do que de juízo. Ainda que diametralmente oposta a posição de Ovídio Baptista da Silva, a partir de um ponto estabelecido, tudo o que se afirmou a partir daí, tem total procedência dentro do nosso ordenamento jurídico. Embora minoritária sua posição, contempla um embasamento sólido e plenamente justificável. O que nos parece, com o estudo realizado, é que muitos autores simplesmente acatam os ensinamentos da corrente majoritária, sem se questionarem sobre seus aspectos e suas implicações na temática jurídica. São poucos os que fazem referência a outros posicionamentos doutrinários, pois a maioria tem como certos e inquestionáveis os aspectos da ação cautelar. 211 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 211 21/8/2008, 10:21 A importância do estudo foi primordial no sentido de se conhecer outras linhas de pensamento e a partir daí, possibilitar o desenvolvimento de uma consciência mais crítica e independente, a capacidade de observar as questões sob ângulos diversos e poder formar opiniões distintas, mas com uma sólida fundamentação. 7. Referência Bibliográficas BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil Civil. 2.ed. São Paulo:revista dos Tribunais, 1998. 3v. BRASIL, Código de Processo Civil Civil. Lei nº5.869 de 11-1-1973. Atual. e acomp. de legislação complementar, súmulas e índices. 27.ed. São Paulo:Saraiva, 1997. DOWER , Nélson Godoy Bassil. Curso Básico de Direito Processual Civil Civil. 1.ed. São Paulo:Nelpa Edições. 1994. 3v. GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro Brasileiro. 12.ed. São Paulo:Saraiva, 1997. 3v. HOFF, Luiz Alberto. Reflexões em torno do Processo Cautelar. 1.ed. São Paulo:Saraiva, 1992. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil Civil. 2.ed. Rio de Janeiro:Forense, 1985. NÉRY JÚNIOR, Nélson; ANDRADE NETO, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado Comentado. 3.ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1997. SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. 7.ed. São Paulo:Saraiva, 1999. 2v. SILVA, João Carlos Pestana de Aguiar. Síntese informativa do Processo Cautelar. Revista Forense, Rio de Janeiro, v.247, n.853-855, p.41-52, jul./ set. 1974. eoria Geral TESHEUBERM, José Maria Rosa. Elementos para uma TTeoria do Processo Processo. Disponível em:<http://www.tex.pro.br/wwwroot/ livroelementos/capituloVII.htm> . Acesso em: 07 set. 2003. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil Civil. 39.ed. Rio de Janeiro:Forense, 2003. 1v. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo Cautelar Cautelar. 17.ed. São Paulo:Livraria e Editora Universitária de Direito, 1998. WAMBIER, Luiz Rodrigues(Coord.). Teoria geral do Processo Cautelar. 2.ed. São Paulo:Revista dos Tribunais. 1999. 3v. 212 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 212 21/8/2008, 10:21 PROFISSÃO PROFESSOR: EXIGÊNCIAS ATUAIS – UMA ANÁLISE¹ Pedro Rauber² RESUMO RESUMO: O artigo tem como objetivo destacar, historicamente, a gênese da profissão do professor e identificar se há um corpo de saberes, de atributos, de técnicas e um conjunto de normas e valores requeridos como específicos para o exercício da Profissão Docente. Busca, também, compreender e interpretar como historicamente a Profissão tem sido compreendida e tratada pelos professores e também na esfera pública, para discutir como a incorporação das “novas tecnologias” vem provocando mudanças no âmbito social, político, cultural e como essas inovações tecnológicas interferem no exercício da profissão docente e quais passam a ser as novas exigências e habilidades requeridas para o exercício da profissão docente para, numa ação constante, atingir o conhecimento construir e reconstruir a sociedade humana fundamentada no bem, no belo e na justiça. PALA VRAS CHA VE ALAVRAS CHAVE VE:: Profissão Professor, Formação docente, atualidade. Procura-se neste artigo, inicialmente através do discurso descritivo, situar e compreender a gênese da profissão professor, estabelecendo uma discussão a cerca do processo de profissionalização, para a seguir, recorrendo ao discurso compreensivo, identificar se há um corpo de saberes, de técnicas e um conjunto de normas e valores específicos da profissão docente, para finalmente, analisar e discutir como a profissão tem sido compreendida e tratada historicamente pelos professores e também na esfera pública, para a partir daí interpretar, se e como, as mudanças no âmbito econômico denominado globalização ou a mundialização da economia interferem e provocam mudanças no âmbito social, político, cultural e no exercício da profissão docente. Para compreender a profissão docente, recorremos primeiramente a uma compreensão do termo Profissão, que, segundo Aurélio Século XXI, significa: ¹ Texto elaborado originalmente para guiar as discussões na prova didática no Concurso Público para docentes da UEMS – 11-12-2003. ² Professor de Didática no Curso Normal Superior da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS e de Ciências Sociais Aplicadas na UNIGRAN. E-mail: [email protected] 213 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 213 21/8/2008, 10:21 ... Ato ou efeito de professar... Atividade ou ocupação especializada, e que supõe determinado preparo. Que encerra certo prestígio pelo caráter social ou intelectual. Carreira. Meio de subsistência remunerado resultante do exercício de um trabalho, de um ofício.... Numa perspectiva sociológica o conceito de Profissão constitui o que podemos designar por um “constructo”, dada a dificuldade em detalhar os seus atributos. Na língua portuguesa, o termo adquiriu um sentido muito amplo de “ocupação” ou “emprego”. Nos países anglo-saxónicos, pelo contrário, o termo é aplicado para designar as profissões liberais como “médico”, “advogado” ou “engenheiro”. Os atributos destas profissões, transformaram-se em requisitos para todas as atividades profissionais que tenham como objetivo constituirem-se numa profissão, tendo para o efeito que possuir: - Um saber especializado, aliado a práticas específicas que o profissional necessita de dominar, adquiridas através de uma formação profissional estruturada; - Uma orientação de serviço. O profissional afirma-se perante outros que exerce a sua atividade por motivos altruísticos, não se pautando por interesses particulares. - Um código deontológico que determina e regula o conjunto de deveres, obrigações, práticas e responsabilidades que surgem no exercício da profissão. - Uma associação profissional, cujo objetivo seria, entre outros, o de manter e velar pela ocupação dos padrões estabelecidos entre os seus membros. Muitos autores têm reagido contra esta tipificação, tomada de empréstimo às profissões liberais, por a mesma ser demasiado estática, esquecendo-se as transformações que nas mesmas ocorreram, nomeadamente a sua integração em organizações burocráticas, nas quais os profissionais perderam grande parte da sua autonomia. Segundo Nóvoa, (1995a), a segunda metade do século XVIII, é um período chave na história da educação e da profissão docente. Por toda a Europa procura-se esboçar o perfil do professor ideal. Deve ser leigo ou religioso? Deve integrar-se a um corpo docente ou agir de forma individual? De que modo deve ser escolhido ou nomeado? Quem deve pagar o seu trabalho? Qual a autoridade de que deve depender? Para Nóvoa (1995a), esse conjunto de interrogações inscreve-se num movimento de secularização e de estatização do ensino, os novos estados docentes instituem um controle mais rigoroso dos processos 214 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 214 21/8/2008, 10:21 educativos, isto é, dos processos de reprodução (e de produção) da maneira como os homens concebem o mundo. A estratégia adotada prolongou as formas e os modelos escolares elaborados por muito tempo sob a tutela da Igreja, mas que a partir do século XX cada vez mais, passam a ser dinamizados por um corpo de professores recrutados pelas autoridades estatais. Mesmo que inicialmente a função docente tenha se constituindo, uma ocupação secundária de religiosos e leigos das mais diversas origens, a gênese da profissão de professor é geralmente atribuída ao seio de algumas congregações religiosas que se transformaram em verdadeiras congregações docentes. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, os jesuítas, os oratorianos, os lassalistas, os maristas e outras congregações religiosas tem surgido inicialmente “para cuidar dos pobres”, mas aos poucos foram, progressivamente configurando um corpo de saberes e de técnicas e um conjunto de normas e de valores específicos da profissão docente. Nóvoa (1995a), considera que, a elaboração de um corpo de saberes e de técnicas é a conseqüência lógica do interesse renovado que a Era Moderna consagra ao porvir da infância e à intencionalidade educativa que produzido quase sempre no exterior do “mundo dos professores” por teóricos e especialistas vários. Da mesma forma, a elaboração de um conjunto de normas e valores é largamente influenciada por crenças e atitudes morais e religiosas. A esse processo, inicialmente desenvolveu-se um sistema ético e um sistema normativo essencialmente religioso que, mesmo quando a missão de educar é substituída pela prática de um ofício, e a vocação cedia lugar à profissão, as motivações originais não desaparecem. Nóvoa (1995a). A intervenção do Estado, que aparece mais tarde, vai provocar uma homogeneização, bem como uma unificação e uma hierarquização à escola nacional, de todos estes grupos, que para Nóvoa, “é o enquadramento estatal que constitui os professores em corpo profissional, e não é uma concepção corporativa do ofício” (1995a: 32). Um outro elemento a ser considerado na compreensão do processo de profissionalização do professor é a criação das Escolas Normais, através delas, o “velho” mestre-escola é definitivamente substituído pelo “novo” professor de instrução primária. As Escolas Normais produzindo a profissão docente (a nível coletivo), passam a contribuir, talvez não intencionalmente, mas de forma decisiva, para a 215 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 215 21/8/2008, 10:21 socialização dos seus membros e para a gênese de uma cultura profissional. A segunda metade do século XIX para Nóvoa (1995a) pode ser considerado um momento decisivo, porém ambíguo para o processo de profissionalização docente: não são burgueses, mas também não são povo; não devem ser intelectuais, mas também tem de possuir “um bom acervo de conhecimentos”; não são notáveis locais, mas tem uma influência importante na comunidade; devem manter relações com todos os grupos, mas não devem privilegiar nenhum deles; não podem ter vida miserável, mas devem evitar toda ostentação; não exercem o seu trabalho com independência, mas é inútil que usufruam de alguma autonomia. Nóvoa (1995a), ilustra de forma interessante o processo de profissionalização do professorado e que serve bem para confirmar a nossa análise, que segundo ele, envolve um corpo de conhecimentos e é sustentado por um conjunto de normas e de valores que se produziu e vem se produzindo historicamente. Processo de Profissionalização do Professorado ET AP AS ETAP APAS AS:: Corpo de conhecimentos e técnicas e conjunto de normas e valores 1ª etapa: Exercício em tempo integral (ou como ocupação principal) da atividade docente. Isto começa a partir do momento, em que a atividade não mais passa a ser encarada de forma passageira, mas sim como um trabalho ao qual consagram uma parte importante de sua vida profissional. 2ª etapa: Estabelecimento de um (estatuto) suporte legal para o exercício da atividade docente. Isto começa a se efetivar a partir do momento em que para a realização desta atividade, sejam detentores de uma licença oficial, que confirma a condição de “Profissionais do Ensino” e funciona como instrumento de controle e de defesa do corpo docente (licenças para lecionar). 3ª etapa: Criação de Instituições específicas para a formação de professores: sugeriram uma formação profissional, especializada e relativamente longa, no seio de instituições expressamente destinadas 216 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 216 21/8/2008, 10:21 para tal fim. A Escola Normal: “para garantir um aprendizado mínimo em um tempo relativamente longo” e para instituir uma titulação. 4ª etapa: Constituição de Associações profissionais; os professores agora começam a organizar-se em associações profissionais, que desempenham um papel central e ponto de apoio no desenvolvimento de um espírito de corpo na defesa do estatuto socioprofissional dos professores. Neste processo devem ser consideras duas dimensões:1. Possuem um conjunto de conjunto de conhecimentos e de técnicas necessárias ao exercício qualificado da atividade docente: seus saberes não são meramente instrumentais, devendo integrar perspectivas teóricas de tender para um contato cada vez mais estreito com as disciplinas cientificas.2. Aderem a valores éticos e normas deontológicas, que regem não apenas o quotidiano educativo, mas também as relações no interior e no exterior do corpo docente. Mesmo que a análise do processo de profissionalização possa sugerir sempre uma evolução linear inexorável. Nada de mais errado. A afirmação profissional dos professores é um percurso repleto de conflitos, de hesitações e de recuos. O campo educativo está ocupado por inúmeros atores (Estado, Igreja, Família, etc.) e muitas vezes, imbricado de interesses e ideologias que sentem a consolidação do corpo docente como uma ameaça aos seus interesses de projetos. Neste sentido, a história nos aponta que o movimento associativo docente tem uma história de poucos consensos e de muitas divisões: norte/sul, progressistas/conservadores, católicos/laicos, nacionalistas/ internacionalistas, etc. A compreensão do processo de profissionalização exige, portanto um olhar atento às tensões que o atravessam e que se movimentam, assumindo formas e identidades que constantemente vão se reconstruindo e reconfigurando. Estamos vivenciando a passagem do século XX para XXI e um dos fatos mais importantes que estamos presenciando é a globalização ou a mundialização da economia, um momento repleto de “novos conflitos”, de “novas hesitações” e de “novos recuos” e de “novas hesitações”, que podem não ser tão novos assim, mas este fenômeno está diretamente relacionado ao desenvolvimento histórico da sociedade capitalista, estratificada em classes sociais, a qual produz mudanças de relações de produção e consumo e para tal requer trabalhadores, novos consumidores e “novos profissionais do ensino” e “um novo homem”. 217 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 217 21/8/2008, 10:21 Novas tecnologias são inventadas a todo instante, demandando dos profissionais de todas as áreas um novo perfil na condução dos trabalhos. O mercado do trabalho está exigindo e valorizando homens competitivos, que saibam se utilizar da informática, Internet, que tenham habilidades comunicativas e cognitivas. A questão da “competência” também tem sido constantemente enfatizada e o lema “aprender a aprender” tem recebido grande destaque nos últimos tempos. Todas essas transformações interferem em várias esferas da vida social, provocando mudanças no âmbito social, político, cultural, assim como nas escolas e no exercício da profissão do docente. Tal preocupação também vem permeado as discussões sobre o processo de formação de professores, que, de acordo com Marin (1996), é bastante antiga, no entanto, continua uma problemática atual, uma vez que a produção teórica em torno desta temática, para quem trabalha na área é objeto fundamental de investigação. Nóvoa (1995a, 1995b, 1995c), ao escrever sobre as dimensões pessoais e profissionais dos professores, valendo-se de uma retrospectiva histórica, mostra que os estudos sobre a formação e atuação de professores, de forma geral, foram marcados por uma separação entre o eu pessoal e o eu profissional. No final da década 80, começaram a ocorrer estudos que tiveram o mérito de “recolocar os professores no centro de debates educativos e das problemáticas da investigação” (Nóvoa, 1995c, p. 15), contribuindo para compreender a complexidade dessa profissão e das atuais sociedades, o que exige por parte dos professores uma ampla preparação profissional e maior autonomia na condução de suas atividadesprofissionais. Os trabalhos de Nóvoa e de muitos outros trouxeram uma nova perspectiva nos estudos dos professores, resgatando a influência da individualidade do professor no desempenho de sua profissão. Referindo-se à questão da profissão professor, Sacristán (1995, p. 65) entende “por profissionalidade a afirmação do que é específico na ação docente, isto é, o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor”. A profissão, no entendimento de Pophkewitz (1995), “é uma palavra de construção social”, cujo conceito muda em função das condições sociais em que as pessoas o utilizam. Tem relação com o modo como 218 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 218 21/8/2008, 10:21 o termo profissionalização é usado no contexto propriamente sóciopolítico onde a prática pedagógica se desenvolve. O conceito do que é profissionalidade docente não é estático, sendo, portanto, constantemente elaborado. Para Libâneo (1998, p. 90), profissionalismo “significa compromisso com um projeto político-democrático, participação na construção coletiva do projeto pedagógico, dedicação ao trabalho de ensinar a todos, domínio da matéria e dos métodos de ensino, respeito à cultura dos alunos, assiduidade, preparação de aulas, etc.” Os professores, no contexto atual, vivenciam as conseqüências de uma situação de mal-estar, provocadas por mudanças recentes na educação. Essa situação de mal-estar pode ser representada pelos sentimentos que os mesmos têm diante das circunstâncias que o próprio processo histórico produziu em termos de educação, como desmotivação pessoal e, muitas vezes, abandono da própria profissão, insatisfação profissional, percebida através de pouco investimento e indisposição na busca de aperfeiçoamento, esgotamento e “stress”, como conseqüência do acúmulo de tensões, depressões, ausência de uma reflexão crítica sobre a ação profissional e outras reações que permeiam a prática educativa e que acabam, em vários momentos, provocando um sentimento de autodepreciação (Esteve, 1995). Além de abordar sobre essa situação de mal-estar, a produção científica em torno de questões da profissionalização docente tem destacado a necessidade da formação reflexiva dos professores, Alarcão (1996) esclarece que, na década de 80, começaram a ser difundidas as idéias de Donald Schön, que despertaram considerações sobre a abordagem reflexiva na formação de professores. O conceito de professor reflexivo emergiu, inicialmente, nos Estados Unidos em oposição ao movimento que enfatizava a aprendizagem de técnicas, ao racionalismo técnico, considerando, então, que o professor deve ser encarado como um intelectual em contínuo processo de formação. Schön fundamentou suas pesquisas na teoria da indagação de John Dewey, filósofo, psicólogo e pedagogo norte-americano que muito influenciou o pensamento pedagógico contemporâneo e o movimento da Escola Nova. Campos e Pessoa (1998) afirmam que Dewey foi um crítico das práticas pedagógicas que pregavam a obediência e a submissão e 219 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 219 21/8/2008, 10:21 que a educação, no seu entender, “está continuamente reconstruindo a experiência concreta, ativa e produtiva de cada um” (p. 187). Gerardi, Messias e Guerra (1998, p. 248) esclarecem que Dewey “definiu a ação reflexiva como uma ação que implica uma consideração ativa e cuidadosa daquilo que se acredita ou que se pratica, iluminada pelos motivos que a justificam e pelas conseqüências a que conduz” e que “a busca do professor reflexivo é a busca do equilíbrio entre a reflexão e a rotina, entre o ato e o pensamento”. A ação reflexiva envolve intuição, emoção e não é somente um conjunto de técnicas que podem ser ensinadas aos professores.³ Zeichener e Liston, nos Estados Unidos, também trabalham com a perspectiva do professor reflexivo. No entanto, seus estudos distinguemse dos de Schön e mesmo de sua fonte inspiradora básica, Dewey. Para estes autores, conforme Geraldi, Messias e Guerra (1998, a reflexão não é um ato solitário, como Schön propõe, mas um ato coletivo. Diante das atuais circunstâncias, a proposta de formação de professores na perspectiva do professor reflexivo salienta o aspecto da prática como fonte de conhecimento através da reflexão e da experimentação. Onde o papel do formador consiste mais em facilitar a aprendizagem, em ajudar a aprender, o que sugere um repensar o processo de formação dos processos de formação de professores, que devem então, propor situações de experimentação que permitam a reflexão, assim como os professores precisam refletir sobre o papel de ensinar. Nesse sentido, Libâneo (1998) esclarece que a tarefa de ensinar a pensar exige do professor o conhecimento de estratégias de ensino e o desenvolvimento de competências de ensinar. O professor necessita então, aprender a regular as suas próprias atividades de pensamento e, principalmente, “aprender a aprender”. O ensino reflexivo, mesmo quando analisado sob diferentes óticas teórico-metodológicas, dá ênfase às preocupações com a experiência pessoal e com o desenvolvimento profissional de professores. Retomando ³ Mizukami et all (1998) esclarece que numa revisão feita por Sparks-Langer, o autor propõe que sejam consideradas três abordagens sobre o significado exato de professor reflexivo: a cognitivista, a crítica e a da narrativa. As três abordagens não são excludentes entre si,. Neste trabalho não nos deteremos nessa classificação. De acordo com esses autores, os “estudos sobre o pensamento do professor, sobre ensino reflexivo, sobre base de conhecimento sobre o ensino, apesar da diversidade teórica e metodológica que os caracterizam, têm apontado para o caráter de construção do conhecimento profissional, para o desenvolvimento profissional ao longo do exercício da docência para a construção pessoal desse tipo de conhecimento” (Mizukami et all, 1998, p. 491). Embora Schon tenha influenciado grande parte dos estudiosos que atualmente realizam investigações nessa linha teórica, ainda não há consenso quanto ao significado exato do que seja professor reflexivo. 220 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 220 21/8/2008, 10:21 as idéias de Nóvoa, é necessário um investimento na pessoa do professor e na sua profissão. O que pode constituir-se numa política de valorização do desenvolvimento pessoal-profissional dos professores. Diante das abordagens acima, apontadas e perante as transformações e inovações tecnológicas que na atualidade se processam de forma cada vez mais rápida, exigindo das pessoas novas habilidades e novos conhecimentos, muitos ainda não dominados, é oportuno e nunca demais lembrar que o conhecimento e a capacidade de lidar com inúmeras informações se torna cada vez mais uma exigência a todos os profissionais, em particular dos profissionais da educação. Além de ter de enfrentar esses novos desafios, na sua própria profissão, e considerando a função de preparar seus alunos para as exigências do mundo globalizado onde lhes são exigidas cada vez mais uma visão do todo, que sejam capazes de agir diante das mais diversas situações, que sejam críticos e criativos, capazes de desenvolver o pensamento reflexivo e interagindo com todos e tudo o que está à sua volta, para que o aluno possa então, atingir o conhecimento (episteme). Essa busca não se limita a descobrir apenas a verdade dos objetos, mas algo bem mais superior: chegar à contemplação das idéias morais que regem a sociedade – o bem (agathón), o belo (to kalón) e a justiça (dikaiosyne). Posto isso, cabe-nos o desafio: Diante das atuais transformações em curso na sociedade e no mundo do trabalho, quais passam ser as novas exigências educacionais da profissão docente? Até que ponto, a nossa ação pedagógica está contribuindo para que os alunos possam desenvolver na totalidade suas potencialidades e contribuir, para numa ação constante para atingir o conhecimento construir e reconstruir a sociedade humana fundamentada no bem, no belo e na justiça? Eis o desafio que nos pode ser cobrado e renovado a cada momento, sob novas luzes, que devemos desvendar e enfrentar. Referências Bibliográficas ALARCÃO, I. Reflexão crítica sobre o pensamento de D. Schön e os programas de formação de professores. In: ALARCÃO, I. (Org.) 221 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 221 21/8/2008, 10:21 Formação reflexiva de professores – estratégias de Supervisão. Porto: Porto Editora Ltda, 1996. ALVES, Gilberto Luiz. A produção da escola publica contemporânea. Campo Grande, MS: Editora UFMS, Campinas: Autores Associados, 2001. AREDES, Alaíde Pereira J. As instâncias de participação e de democratização da escola pública pública. Tese de Doutorado. Marília : UNESP, 2002. BARUFFI, Helder. Metodologia da Pesquisa: manual para a elaboração da monografia monografia. 3. ed. rev. e atual. Dourados: Hbedit, 2002. BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no. 9.394/96. Brasília, dezembro de 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Proposta de diretrizes para a formação inicial de professores da educação básica, em cursos de nível superior superior. Brasília, Maio/2000. CAMPOS, S. & PESSOA, V. I. Discutindo a formação de professoras e de professores com Donald Schön. 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Ao defrontarse com a tarefa de elaborar a sua dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação interinstitucional em Direito do Estado promovido pela parceria UnB/Unigran supera em muito os limites de compromisso acadêmico e realiza uma obra que representa uma verdadeira contribuição para o mundo editorial jurídico brasileiro. Um trabalho de pesquisa jurídica que nasce no terreno do direito constitucional estando centrada no tema “acesso à justiça” em que vislumbra a problemática dos mecanismos judiciais e extrajudiciais capazes de promover a solução de conflitos partindo de um ideal democrático formal/institucional que é o binômio constituição/ cidadania. E neste momento são oportunas as palavras de José Geraldo de Souza Junior, que no prefácio da obra afirma ser este livro “mais que a sustentação do acesso à justiça como um direito de caráter fundamental à uma ordem justa, não estando limitado ao simples acesso à Jurisdição, ao processo, o autor procura demonstrar que o efetivo acesso da população a Justiça depende essencialmente da mudança de postura de todos os envolvidos no processo de distribuição de justiça, passando por um modelo de desenvolvimento econômico-social voltado para os anseios da população e que seja capaz de eliminar a miséria e reduzir a pobreza com uma distribuição eqüitativa de bens primários”. Partindo de uma linguagem técnica e clara o livro apresenta uma estrutura lógico-jurídica que se compõe a partir de cinco capítulos articulados entre si, que são: Capítulo I - Dos valores e princípios; 1 Professor do Curso de Direito da UFMS. Mestre em Direito e doutorando em Direito – PUC-SP. 225 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 225 21/8/2008, 10:21 Capítulo II - O direito como instrumento de pacificação dos conflitos; III - Acesso à justiça; IV - Limitações do acesso à justiça; e Capítulo V Acesso à Justiça: Problema ético-social. Aqui, optamos por fazer uma análise da obra examinando o conteúdo de cada um dos seus capítulos de forma objetiva e que permitirá entender como o autor trata do tema acesso à justiça sob uma dinâmica onde é essencial se privilegiar a utilização de mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos. No capítulo I, a forma de abordagem dos valores e princípios nos remete, num momento inicial, a enfrentar uma série de questões relacionadas a “teoria Geral do Direito” onde valores fundamentais como a liberdade, legalidade, legitimidade são relacionados com o ideal de justiça e os modos de realização dos valores jurídicos pela sociedade concebida sob à égide do Estado democrático de direito. Para ilustrar a preocupação do autor em fundamentar suas idéias na melhor doutrina, é oportuno destacar aqui, a relação dos cinco postulados universais de justiça citados por Recaséns Siches, que são: 1. Verdade. A justiça exige um acordo com a verdade objetiva, daí porque exige que todas as afirmações sobre fatos e relações devem ser objetivamente verdadeiras, assim como devem ser também as declarações trazidas pelas pessoas implicadas em um problema de Direito; 2. Generalidade do sistema de valores que sejam aplicáveis. Desde o ponto de vista aceito, seria injusto selecionar arbitrariamente diversos sistemas de valores para considerar vários casos do mesmo tipo; 3. Tratar como igual o que é igual debaixo do sistema de valores aceito ou adotado. É injusto discriminar arbitrariamente entre iguais; e aqui “arbitrariamente” significa em contradição com o sistema adotado; 4. Nenhuma restrição da liberdade. Deve adotar a dos requerimentos da ordem de valores adotados; 5. Respeito às necessidades da natureza, em sentido mais estrito dessa expressão. É injusto impor uma sanção pelo não cumprimento de um preceito que não pode ser cumprido, ou seja, que pertence ao campo da impossibilidade física ou mental, ou social. E mais adiante, já no final deste primeiro capítulo, o autor nos faz recordar os primeiros ensinamentos da graduação de direito, ao discorrer sobre a distinção entre direito e moral e nos leva a entender que os princípios do constitucionalismo moderno estão direcionados na posição de consagrar os chamados direitos de 3.ª geração onde a cidadania só pode ser alcançada reconhecendo-se os direitos difusos e coletivos. 226 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 226 21/8/2008, 10:21 O segundo capítulo intitulado o direito como instrumento de pacificação dos conflitos é uma verdadeira aula sociologia jurídica, em que o autor destaca o quanto é atual a expressão latina ubi societas, ibi ius - ibi ius, ibi societas, que afirma onde existe sociedade, existe também o direito, e vice-versa, e que muitas vezes esquecemos ao longo do tempo, como também, temos uma reafirmação de que o fundamento do direito é a natureza do Homem, e que este tende a agir, em sociedade, segundo uma concepção do justo. A partir de um dos preceitos fundamentais do direito, que nos é oferecido pelo direito romano através da máxima dar a cada um o que é seu, o autor nos leva a enfrentar problemática do conflito de interesse e ao final destaca as duas formas de solução concebidas pelo direito que são (a) os mecanismos judiciais; e (b) os mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos. No capítulo seguinte, com a mesma técnica jurídica, analisa a matéria sob o prisma dos princípios constitucionais o acesso à justiça justiça. E num primeiro momento, a preocupação é mostrar o acesso à justiça como uma problemática relevante para o direito. A seguir, vislumbra os contornos do acesso à justiça fixados pela passagem do tempo através de comentários da doutrina estrangeira e nacional oferecendo uma perfeita análise histórico-evolutiva da matéria desde sua origem até os dias atuais, e nos levando a entender que hoje, principalmente com o advento da Constituição de 1988, o acesso à justiça é um direito fundamental. E, para finalizar o capítulo, insere a questão do acesso à justiça, no âmbito jurídico, como direito fundamental que dispõe de um tratamento legal e uma proteção constitucional efetivos, através do inciso XXXV, do art. 5.º da Constituição Federal, o que nos leva a enfrentar as duas formas de visualização do acesso à justiça e a necessidade de fazer uma escolha entre elas. Neste sentido, optamos por utilizar as próprias palavras do autor para indicar o caminho a ser seguido: a primeira visão é aquela que “atenta-se apenas para a possibilidade do acesso à justiça pela via judicial, o que é um grande equívoco, pois o acesso à justiça além de não poder ser limitado à possibilidade de ingresso em juízo (...)”, e a outra visão é aquela em que “o acesso à justiça não se resume na existência de um ordenamento jurídico que seja capaz de regular as atividades individuais e sociais, mas, ao mesmo tempo, deve ter aptidão de distribuir legislativamente, de forma justa os direitos e faculdades substanciais”. 227 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 227 21/8/2008, 10:21 Afirma ainda o autor: “Nessa ótica, o acesso à justiça deve ser compreendido no sentido de toda atividade jurídica passando pela criação de normas, sua interpretação, integração e aplicação, com justiça, isto é, o acesso deve ser compreendido num sentido abrangente que vai desde a criação das normas até sua concreta e justa aplicação.” Demonstrando erudição e facilidade no trato dos conteúdos relativos a Teoria Geral do Processo no capítulo IV faz a relação necessária entre o acesso a justiça e o direito processual sob ótica de verdadeiras limitações do acesso à justiça justiça. Neste capítulo destaca o problema dos obstáculos existentes principalmente no campo do direito processual ao acesso à justiça e propõe soluções que tem como idéia central a implementação de uma democracia participativa, onde o cidadão dotado de educação política passa a colaborar diretamente com a sociedade e não mais, esperar pela ação do Estado paternalista para solucionar seus problemas. Em mais de cem páginas o autor busca dar ao leitor os subsídios necessários para entender a complexidade e amplitude da temática representada pelo acesso à justiça enquanto problemática jurídico-processual. No Capítulo V o acesso à justiça ganha os contornos de problema ético social, importância destacada no final do século XX. Exatamente neste último capítulo o autor faz aflorar suas mais profundas preocupações sobre a solução de conflitos monopolizada pela via judicial, enraizada e assimilada pela cultura jurídica brasileira. E a partir daí, esclarece sobre os custos desta visão limitada de um exercício da atividade jurisdicional centrada no mecanismo judiciário estatal para a sociedade. Sem perder a oportunidade de centralizar seus comentários na figura do Estado e os seus três poderes faz uma relação do acesso à justiça com os poderes judiciário, legislativo e executivo de forma individualizada, sempre com a preocupação de situar a questão na esfera jurídica. A idéia é chamar atenção para o fato de que o tema acesso à justiça tem uma vinculação direta com a dignidade humana, porém a concretização desse direito é um problema social denominado de inclusão social e que atinge a milhões de pessoas e no campo jurídico e que requer uma mudança de mentalidade dos chamados operadores do direito. Depois de mergulhar por mais de trezentas páginas recheadas de informações e posicionamentos firmados na melhor doutrina em conclusão, o autor oferece as suas considerações finais firmadas a 228 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 228 21/8/2008, 10:21 partir de suas convicções e posicionamento como homem engajado na sociedade em que vive, e nada melhor que suas próprias palavras para retratar sua obra: “O presente trabalho teve por objetivo contribuir para a discussão e para o debate da questão do acesso à justiça, na visão de esse direito é um direito de natureza ético-social fundamental para a realização do homem como pessoa humana e não apenas como um sujeito de direitos e obrigações perante a ordem jurídica. Afinal, na medida em que a Constituição reconhece a existência e a eminência da dignidade da pessoa humana, a transforma num valor supremo da ordem jurídica, ao declará-lo como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado democrático de direito”. Aqui se faz necessário reafirmar que o livro é fruto de uma pesquisa profunda, porém acessível ao estudante de direito sem, contudo, perder em conteúdo e complexidade o que atende as exigências de qualquer um dos profissionais da carreira jurídica sejam eles: advogados, promotores, procuradores de órgãos públicos, juízes, defensores públicos etc. É uma obra indispensável para o acervo nas bibliotecas jurídicas de nosso país, em especial, as de universidades, dos tribunais e dos órgãos públicos, e principalmente, das bibliotecas particulares dos profissionais das mais diferentes carreiras jurídicas como fonte para consulta obrigatória sobre o tema acesso à justiça. 229 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 229 21/8/2008, 10:21 REVISTA JURÍDICA UNIGRAN NORMAS GERAIS PARA A PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS A Revista Jurídica Unigran é uma publicação de divulgação científica da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Dourados. Esta publicação incentiva a investigação e procura o envolvimento de seus professores e alunos em pesquisas e cogitações de interesse social, educacional, científico e tecnológico. A Revista Jurídica aceita artigos de seus docentes, discentes, bem como de autores da comunidade científica nacional e internacional, mesmo que já tenham sido publicados em outro periódico científico. Publica artigos, notas científicas, relatos de pesquisa, estudos teóricos, relatos de experiência profissional, revisões de literatura, resenhas, nas diversas áreas do conhecimento científico, sempre a critério de sua Comissão Editorial. Solicita-se observar as instruções a seguir para o preparo dos trabalhos, os quais devem seguir o formato dos artigos aqui publicados. 1. Os originais devem ser apresentados em papel branco de boa qualidade, no formato A-4 (21,0cm x 29,7cm) e encaminhados completos, definitivamente revistos, com o máximo 15 páginas, digitadas em espaço 1,5 entre as linhas. Recomenda-se o uso de caracteres Times New Roman, tamanho 12, em uma via, acompanhada de disquete (de 3,5”), de computador padrão IBM PC, com gravação do texto no Programa Word for Windows e, se possível, enviar o Artigo pelo e-mail [email protected]. Somente em casos muito especiais serão aceitos trabalhos com mais de 15 páginas. Os títulos das seções devem ser em maiúsculas, numerados seqüencialmente, destacados com negrito. Não se recomenda subdivisões excessivas dos títulos das Seções. 2. Língua. Os artigos deverão ser escritos preferencialmente em Português, aceitando-se textos em Inglês e Espanhol. 3. Os trabalhos devem obedecer à seguinte ordem: - Título (e subtítulo, se houver). Deve estar de acordo com o conteúdo do trabalho, conforme os artigos aqui apresentados. 230 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 230 21/8/2008, 10:21 - Autor(es). Logo abaixo do título, apresentar nome(s) do(s) autor(es) por extenso, sem abreviaturas. Com numeração, colocado logo após o nome completo do autor ou autores, remeter a uma nota de rodapé, relativa às informações referentes às instituições a que pertence(m) e às qualificações, títulos, cargos ou outros atributos do(s) autor(es). O Orientador, co-orientador de Trabalhos de Graduação, Dissertações e Teses passam a ser co-autores em textos originados destes trabalhos. - Resumo. Com o máximo de 250 palavras, o resumo deve apresentar o objeto estudado, seu objetivo, como foi feito (metodologia), apresentando os resultados, conclusões ou reflexões sobre o tema, de modo que o leitor possa avaliar o conteúdo do texto. - Abstract. Versão do resumo para a língua Inglesa. Caso o trabalho seja escrito em Inglês, o Abstract deverá ser traduzido para o Português (Resumo). - Palavras-chave (Key words). Apresentar duas a cinco palavraschave sobre o tema. - Texto. Deve ser distribuído de acordo com as características próprias de cada trabalho. De um modo geral, contém: 1- Introdução; 2Desenvolvimento; 3- Considerações finais; 4- Referências Bibliográficas. - Citações dentro do texto. As citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir um parágrafo independente, apresentadas em bloco. As menções a autores no decorrer do texto devem subordinar-se ao esquema numérico (referência de rodapé), com a primeira referência completa e as demais podem vir abreviadas (op. cit. p. ou Ibidem, p. ). - Referências Bibliográficas. Elas devem ser apresentadas ao final do trabalho, em ordem alfabética de sobrenome do(s) autor(es), como nos seguintes exemplos: a)Livro: SOBRENOME, Nome. Título da Obra. Local de publicação: Editora, data. Exemplo: PÉCORA, Alcir. Problemas de Redação. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. b) Capítulo de Livro : SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título do Livro, Local de publicação: Editora, data. Página inicial-final. 231 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 231 21/8/2008, 10:21 c) Artigo de periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico, local de publicação, volume do periódico, número do fascículo, página inicial-página final, mês(es).ano. Exemplo: ALMEIDA JÚNIOR, Mário. A economia brasileira. Revista Brasileira de Economia, São Paulo, v. 11, n.1, p.26-28, jan./fev.1995. d) Teses e Dissertações: Sobrenome, nome. Título da Dissertação (ou tese). Local. Número de páginas (Categoria, grau e área de concentração). Instituição em que foi defendida. Data. Exemplo: BARCELOS, M.F.P. Ensaio tecnológico, bioquímico e sensorial de soja e guandu enlatados no estádio verde e maturação de colheita. 1998. 160 f. Tese (Doutorado em Nutrição) – Faculdade de Engenharia de Alimentso, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. e) Outros: Consultar as Normas da ABNT para Referências Bibliográficas. 4. As Figuras (desenhos, gráficos, ilustrações, fotos) e tabelas devem apresentar boa qualidade e serem acompanhados de legendas breves e claras. Indicar no verso das ilustrações, escritos a lápis, o sentido da figura, o nome do autor e o título abreviado do trabalho. As figuras devem ser numeradas seqüencialmente com números arábicos e iniciadas pelo termo Figura, devendo ficar na parte inferior da figura. Exemplo: Figura 4 - Gráfico de controle de custo. No caso das tabelas, elas também devem ser numeradas seqüencialmente, com números arábicos, e colocadas na parte superior da tabela. Exemplo: Tabela 5 – Cronograma da Pesquisa. As figuras e tabelas devem ser impressas juntamente com o original e quando geradas no computador deverão estar gravadas no mesmo arquivo do texto original. No caso de fotografias, desenho artístico, mapas, etc., estes devem ser de boa qualidade e em preto e branco. 5. O encaminhamento do original para publicação deve ser feito acompanhado do disquete e com a indicação do software e versão usada. 6. O Conselho Editorial avaliará sobre a conveniência ou não da publicação do trabalho enviado, bem como poderá indicar correções 232 revista_nova.P65 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11| Jan./Jul. 2004. 232 21/8/2008, 10:21 ou sugerir modificações. A cada edição, o Conselho Editorial selecionará, dentre os trabalhos considerados favoráveis para publicação, aqueles que serão publicados imediatamente. Os não selecionados serão novamente apreciados na ocasião das edições seguintes. 7. Os conteúdos e os pontos de vista expressos nos textos são de responsabilidade de seus autores e não apresentam necessariamente as posições do Corpo Editorial da Revista de Direito do Curso de Direito do Centro Universitário de Dourados- UNIGRAN. 8. Originais. A Revista não devolverá os originais dos trabalhos e remeterá, gratuitamente, a seus autores, dez exemplares do número em que forem publicados. 9. O Conselho Editorial se reserva o direito de introduzir alterações originais, com o objetivo de manter a homogeneidade e a qualidade da publicação, respeitando, porém, o estilo e a opinião dos autores. 10. Endereços. Deverá ser enviado o endereço completo de um dos autores para correspondência. Os trabalhos deverão ser enviados para: UNIGRAN - Centro Universitário de Dourados. Rua Balbina de Matos, 79.824-900 - Dourados - Mato Grosso do Sul - MS. [email protected] 233 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 6 | n. 11 | Jan./Jul. 2004. revista_nova.P65 233 21/8/2008, 10:21