DIREITO IINTERNACIONAL PÚBLICO: O CAPÍTULO DOS DIREITOS HUMANOS César Augusto S. da Silva1 INTRODUÇÃO Estas anotações têm por finalidade elucidar as peculiaridades do sistema internacional de proteção dos chamados direitos humanos, no que tange ao sistema regional interamericano, comparando-os com os institutos jurídicos clássicos do direito internacional, já que esses direitos significam um ramo jurídico novo que ganhou um patamar normativo em nível internacional recentemente, em meados do século XX. Logo após a Segunda Guerra Mundial, no contexto das relações internacionais e do direito internacional, os sujeitos de direito internacional público originários, os Estados nacionais soberanos, membros de uma reconhecida sociedade internacional pelo menos desde a Paz de Westfália de 1648, conforme reconhece a maioria da doutrina2 , assumiram a missão de produzir um documento oficial, escrito global e indivisível dos denominados direitos humanos, compreendendo a aplicação simultânea dos chamados direitos “civis e políticos” e “econômicos, sociais e culturais” (art. 3-21, e art.22-27, da Declaração Universal respectivamente), na busca de uma mesma semântica para a pessoa humana, de modo a superar a compartimentalização desses direitos, da ficção jurídica da divisão em “gerações de direitos”, na feliz expressão de Antonio Augusto Cançado Trindade3 . Dessa forma, a Organização das Nações Unidas (ONU), surgida em 1945, por meio da Carta de São Francisco, em substituição à fracassada Liga das Nações4 , acabou por produzir um histórico documento conhecido 1 César Augusto S. da Silva é mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor da UFMS e UNIGRAN – MS. 2 V. BRIERLY, J.L. Direito Internacional. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967, p. 5. ALMEIDA-DINIZ, Arthur J. Novos paradigmas em Direito Internacional Público. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, pp 89-98. 3 V. Proteção Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 48-49 4 Neste sentido verificar: GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações. Porto Alegre/Brasília: UFRGS/ Funag, 2000. Assim como CARR, Edward Hallet. Vinte anos de crise 1919-1939. Brasília: UnB, 1981. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 57 As origens dos direitos humanos Os denominados direitos humanos têm sido ao longo do tempo objeto de estudo de diversas ciências humanas, principalmente dos vários ramos do Direito, notadamente do Direito Internacional Público6 . Também objeto da disciplina constitucional no âmbito interno e de tratados e convenções internacionais no âmbito externo, os direitos humanos inserem-se aos poucos como tema global na agenda da política externa dos Estados-nações, em que pese as restrições estabelecidas pelas mais diferentes matizes nacionalistas. Neste sentido, a evolução geral do movimento constitucionalista ocidental até a contemporaneidade evidencia a defesa dos direitos humanos pelo menos desde a Magna Carta Inglesa de 1215, numa marcha em busca da universalização dos direitos e das liberdades fundamentais; pelo aperfeiçoamento de medidas jurídicas que limitem o poder arbitrário do Estado. A primeira Constituição, documento escrito afirmando os direitos humanos, foi a do Reino Unido, que surgiu de longo processo histórico, em uma árdua luta política entre o rei e o parlamento pelo controle do Reino que culminaria com a “Revolução Gloriosa”7 , em 1688. Com a vitória final do Parlamento, consolidou-se na Inglaterra a monarquia constitucional parlamentarista, movimento justificado posteriormente pelo pensador liberal John Locke8 . Diz a Magna Carta (evidenciando direitos humanos – direitos políticos): Magna Carta (Magna Charta Libertatum) “João, pela graça de Deus rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, duque da Normandia e da Aquitânia e conde de Anjou, aos arcebispos, bispos, abades, barões, juízes, couteiros, xerifes, Neste sentido verificar as obras de REZEK, Francisco. Curso Elementar de Direito Internacional Público, 5a ed., São Paulo: Saraiva, 1995. Assim como ACIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público, 13a ed, São Paulo: Saraiva, 1998. 7 V. TREVELYAN, George McCaulay. A Revolução Inglesa: 1688-1689 Tradução de Leda Bozacian. Brasília: UnB, 1982, pp 44-80. 8 V. LOCKE, J. “Dois tratados sobre o governo civil” In: WEFFORT, Francisco (org.) Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1998, p. 82. 6 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 59 Nestes documentos históricos e também em todas as influências da experiência constitucionalista, evidencia-se claramente enquanto um objetivo fundamental, a preservação da dignidade da pessoa humana, tal qual o princípio da imperatividade da lei . A origem desses princípios está em que o pensamento ocidental, artífice da Declaração Universal de 1948, tem sua base nascida dos legados gregos e romanos, e como tal seu fundamento de pessoa humana e do império da lei. A democracia grega ao lado do direito romano, sedimentada pela tradição religiosa judaico-cristã, são os verdadeiros construtores do pensamento moderno ocidental10 . A idéia de justiça grega ganha ainda mais força na civilização ocidental a partir da religião cristã, que por sua vez assimilou toda a cultura judaica, composta principalmente pelo Velho Testamento da Bíblia, propagando as idéias do amor, do perdão e da justiça. Estas idéias são aspectos que deram a direção ao pensamento ocidental desde o período da Antigüidade Clássica, na Grécia e em Roma, até pelo menos meados do século XIX11 . A tradição grega, por exemplo, é ilustrada por Antígona, personagem da tragédia grega de Sófocles12 , que contrariando as leis do Estado, enterra o irmão que deveria ficar entregue aos abutres. Após enterrá-lo, responde ao representante da cidade-estado de Tebas, o rei Creonte, que o enterrou porque não nasceu para o ódio, e sim para o amor, e porque obedece a uma lei que não é de hoje, e nem de ontem, e sim de sempre. Trazendo portanto a idéia de justiça entre este mundo e a de um mundo natural, e do amor incondicional. Mas, todas estas idéias de amor e justiça, que influenciaram o espírito humano durante todo esse período histórico, ganharam um corpo de direitos durante a chamada modernidade. A supracitada “Bill of Rights” é um grande passo no seio do reconhecimento dos direitos humanos, pois foi o primeiro documento que reconhece explicitamente direitos naturais do homem, extinguindo o direito divino dos reis e instituindo a idéia do Neste sentido COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. 11 V. MONTORO, André Franco. “Cultura dos direitos humanos.” In: Direitos Humanos- Legislação e Jurisprudência. Vol.I. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,1999. (Série Estudos, n12) 12 Cf. Antígona. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 10 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 61 aplicação universal. No dizer de Flávia Piovesan15 , a Declaração consolida a afirmação de uma ética universal, ao obter um consenso sobre valores de características comuns a serem seguidos pelos países, membros da sociedade internacional, à medida que foi consagrado no contexto das relações internacionais da Organização das Nações Unidas. A Declaração é integrada por um preâmbulo e mais trinta artigos que arrolam os direitos humanos e liberdades fundamentais de que são titulares todos os homens e mulheres, de todo o mundo, sem qualquer distinção. O artigo 1o, que expõe a filosofia subjacente à Declaração, afirma: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. O artigo define os pilares essenciais da Declaração que seriam: - o direito à liberdade e à igualdade é um direito inato e não pode ser alienado; e - o homem é um ser racional e moral, é diferente de todas as outras criaturas da terra e, por isso, titular de certos direitos e liberdades de que as outras criaturas não gozam. O artigo 2.º exprime o princípio básico da igualdade e da não discriminação no que se refere ao fruição de direitos essenciais e liberdades fundamentais, proíbe qualquer “distinção, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”. Por sua vez, o artigo 3.º declara o direito à vida, a liberdade e a segurança pessoal, um direito essencial para a fruição de todos os outros direitos. Este artigo introduz os artigos 4.º ao 21, onde se anunciam direitos civis e políticos que incluem: proibição da escravatura e servidão; proibição da tortura e de penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes; o direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da personalidade jurídica; o direito a uma proteção judicial eficaz; proibição da prisão, detenção ou exílio arbitrários; o direito a um julgamento eqüitativo e à audição pública por um tribunal independente e imparcial; 15 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 155. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 63 liberdade possui então duas faces: “(...) a face subjetiva, que é o livre arbítrio, autonomia da vontade e a face externa, ou seja, a condição objetiva para agir livremente” A orientação que se produz nesta nova concepção de direitos humanos apontado pela Declaração, e também apontados na reflexão do filósofo de Koenigsberg, principalmente no que tange à liberdade, diz respeito à origem do direitos tutelados; refere-se a particularidade de que esses direitos são anteriores à própria existência do direito positivo, pois são direitos originados da ética, os quais consolidam a produção de normas positivas essenciais ao equilíbrio entre os objetivos dos Estados e ações de cada cidadão. São, portanto, os direitos humanos, em essência, a dignificação ética dos seres humanos18 . O que deve ser dito é que a Declaração Universal foi a realização do primeiro passo na construção de um ordenamento jurídico internacional de tutela aos direitos humanos. Em que pese o caráter não diretamente vinculante da Declaração, o tratamento solene e quase unânime de sua aprovação em 1948, reiterada posteriormente pelas Conferências Mundiais de Teerã, em 1968, e Viena, em 1993, transformou-a em instrumento básico de referência sobre os valores essenciais que todos os Estados signatários estão obrigados a respeitar. Por outro lado, as Nações Unidas, ao aprovar a Declaração conjugando-a com a Carta de São Francisco, proclamavam que os direitos humanos eram matéria de preocupação da comunidade internacional e, como tal, não podiam ser considerados matéria de competência exclusiva nacional e deveriam estar na agenda temática da política externa dos Estados. A elaboração de um documento jurídico desta magnitude, e que pudesse ter caráter obrigatório, por meio de instrumentos posteriores, foi um trabalho difícil e com enorme resistência. Sua conclusão só terminaria por volta de 1966, com a adoção de dois pactos internacionais abrangendo os direitos civis e políticos, por um lado, e os direitos econômicos, sociais e culturais, por outro. Ou seja, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que só entrariam em vigor em 1976. 18 NINO, Carlos. Ética y derechos humanos. Buenos Aires: Paidos, 1984, pp.22 a 27. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 65 internacional, dotado de plena capacidade postulante. Pois, na doutrina clássica do direito internacional público, evolução do “direito das gentes” romano, somente os Estados nacionais soberanos são os protagonistas da ordem normativa internacional, assim como as Organizações Internacionais, a partir do início do século XX, tal qual a OIT ( Organização Internacional do Trabalho) e a Liga ou Sociedade das Nações21 . A origem desta disciplina jurídica está na formação dos Estados modernos, eles apresentavam total liberdade de fazer uso da força nas relações entre si. O direito do recurso à força integrava toda a noção clássica de soberania do Estado. Contudo, já desde essa época, via-se a convicção de que era necessário, do ponto de vista dos próprios interesses dos Estados, submeter a relação bélica a um regime jurídico, com a finalidade de fazê-la compatível com os outros princípios fundamentais da convivência internacional, para que a guerra não tivesse o aspecto de total barbárie. Portanto, a história do direito da guerra determina a própria trajetória do Direito Internacional Público, condicionando de maneira decisiva a elaboração de todo o conjunto de normas deste último. Os pensadores do direito internacional, ilustrando somente com Hugo Grócio, Francisco de Vitória e Albérico Gentile, consideraram, todos, que as normas das relações internacionais deveriam se organizar ao redor do problema principal da legalidade da guerra22 . O Sistema de Proteção Internacional: Sistema Regional Interamericano e Conflitos com os Sistemas Nacionais O sistema regional de proteção aos direitos humanos na América funciona no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). A OEA constitui um organismo regional, nos termos do artigo 52 da Carta de São Francisco das Nações Unidas. A Carta da Organização dos Estados Cfe. ALVES, J. A. Lindgren. “Direitos Humanos, cidadania e globalização” In: Lua Nova- Revista de Cultura e Política , n. 50, ano 2000, p.188. 22 Cfe. SWINARSKI, Christophe. Direito internacional humanitário como sistema de proteção internacional da pessoa humana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p.20 21 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 67 base, a Comissão irá estabelecer a existência ou não da responsabilidade internacional do Estado pela violação de algum dos direitos protegidos pela Convenção. E, ainda, a Comissão poderá enviar um caso específico para a Corte ou emitir um informe final que determinará a existência ou não de responsabilidade do Estado que foi denunciado. Além disso, são funções da Comissão promover e estimular em termos gerais os direitos humanos através da elaboração de relatórios gerais, elaborar relatórios e estudos sobre a situação dos direitos humanos nos Estados membros da OEA, por meio de dados que são levantados, por exemplo, quando a Comissão realiza visitas in loco; e principalmente processar casos individuais25 . Já a Corte é um órgão de caráter jurisdicional que foi criado pela Convenção Americana com o objetivo de super visionar o seu cumprimento, com uma função complementar àquela conferida pela mesma Convenção à Comissão , tal qual reza os artigos 61 e seguintes da Convenção Americana. A Corte apresenta uma dupla competência: contenciosa e consultiva. A função contenciosa refere-se à sua capacidade de resolver casos em virtude do estabelecido nos artigos 61 e seguintes da Convenção. É necessário que primeiro tenha sido esgotado o procedimento perante a Comissão, para posteriormente a Corte examinar o caso. Uma vez esgotado o mesmo, e respeitando os prazos estabelecidos pela Convenção, a Comissão ou algum Estado pode submeter um caso perante a Corte sempre e quando o Estado denunciado tenha aceitado a sua jurisdição obrigatória, ou aceite a sua jurisdição em um caso concreto. (art. 62) Isto significa que os peticionários, representantes legais das vítimas, não têm acesso autônomo ao sistema interamericano, isto é, não podem enviar um caso concreto à Corte, e nem tampouco uma representação independente perante a mesma. Se a Corte decidir que existe uma violação, disporá no sentido de que sejam reparadas as conseqüências da medida ou situação em que tenha sido configurada a violação destes direitos, além do pagamento de uma justa indenização à parte lesionada. A função consultiva da Corte refere-se à sua capacidade para interpretar a Convenção e outros instrumentos internacionais de direitos humanos. 25 Cfe. art.46 do Pacto de San Jose da Costa Rica. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 69 Um ponto primordial a ser destacado quanto à denúncia perante a Comissão é a demonstração dos fatos alegados. Os critérios de avaliação das provas sobre os fatos narrados na denúncia são geralmente mais flexíveis do que nos sistemas jurídicos nacionais dos Estados, de sorte que favoreça as vítimas. Na jurisprudência do sistema interamericano a prova circunstancial, os indícios e as presunções têm valor probatório. Desta forma, não aplicam-se as particularidades dos tribunais nacionais e nem os critérios dos sistemas penais de cada país. A Corte Interamericana, ao pronunciar-se sobre os critérios de valoração das provas, estabeleceu que26 : - critérios internacionais são menos formais do que os dos sistemas legais internos. Quando no requerimento de prova, tais sistemas reconhecem gradações diferentes que dependem da natureza, caráter e gravidade do litígio. - as provas circunstanciais, os indícios e as presunções também são legítimas para fundamentar a denúncia, assim como a prova direta (testemunhal e documental). - as justiças penais internas dos países diferem do sistema interamericano de direitos humanos, na medida em que a finalidade deste último não é impor penas aos culpados das violações mas amparar as vítimas, dispondo sobre as reparações dos danos que foram causados pelos Estados responsáveis. De fato, a proteção internaconal dos direitos humanos não deve ser confundida com a justiça penal, pois os Estados não comparecem perante a Corte como sujeitos de ação penal. - O Estado denunciado tem a obrigação de cooperar com a obtenção de provas, nos casos em que o demandante alegar a impossibilidade de obtenção da mesma; - Qualquer pessoa poderá testemunhar, independentemente do fato de ter antecedentes penais, ou seja, o testemunho não deve ser considerado como não idôneo, ou sem objetividade, por razões de cunho ideológico, ou de parentesco, dentre outras. A jurisprudência internacional do sistema interamericano confere ainda aos recortes de jornais e outros materiais de imprensa nacional e De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana, em San Jose da Costa Rica, no caso Velásquez Rodriguez, sentença de 29 de julho de 1988. 26 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 71 humanos, quando falham as instituições políticas do Estado. Os mais de três séculos de um ordenamento jurídico, caracterizado pelos Estados nacionais como sujeitos de direito no âmbito do clássico direito internacional público, não foram capazes de evitar as violações maciças dos direitos humanos, praticadas na maior parte das regiões do mundo e as sucessivas barbáries protagonizadas pelo “curto século vinte”, na expressão de Eric Hobsbawn29 . O que claramente despertou uma reação, no sentido de dar outro tratamento ao direito internacional, de modo a materializar o ser humano na posição central do ordenamento. Quando, na última década, foi retirado de cena o contexto internacional do conflito da Guerra Fria, emergiram em seu vácuo novas tensões marcadas pelo regionalismo dos conflitos nacionalistas, étnicos e religiosos . Enquanto o cenário da Guerra Fria dominava a cena internacional, podia-se perceber certo grau de racionalidade na questão de preservação dos direitos humanos, até mesmo para que um bloco pudesse acusar o outro de violação, conforme atesta o professor Cançado Trindade30 . Com efeito, a noção de soberania absoluta dos Estados, desde o período da Guerra Fria, pelas mais diferentes nações, tem sido colocado sistematicamente enquanto óbice à realização dos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos, consagrados nos sistema mundial e nos regionais. Esta noção, como já declara o mesmo Cançado Trindade31 , tem sido invocada de forma bastante repetitiva e sem conteúdo. Os tratados atuais de proteção internacional de direitos humanos, diferentemente dos demais tratados internacionais que aparecem com grandes mecanismos de reservas de interpretação, inspiram-se em considerações de fraternidade e solidariedade do gênero humano. Ao criarem obrigações para os Estados em relação aos seres humanos sob sua jurisdição, suas normas aplicam-se não só na ação conjunta dos Estados partes do tratado, na realização do propósito comum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito do ordenamento jurídico interno de cada HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras,1995. 30 “Do direito econômico aos direitos econômicos, sociais e culturais” In: Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1995, p.12. 31 A proteção internacional dos direitos humanos - fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. p. 132. 29 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 73 Ao ratificar um tratado internacional de direitos humanos, os Estados consentem em proceder a um procedimento de revisão de sua legislação e de sua prática em nível de direitos humanos, executado por um grupo de especialistas independentes que por meio da Assembléia Geral da ONU repassam publicamente para a comunidade internacional ali representada, as informações sobre o grau de observância dos direitos humanos daquele determinado país. Fora isso, por meio dos mecanismos que fiscalizam o cumprimento do tratado, os governos dos países, também voluntariamente, abrem suas fronteiras para outros, isto é, para as Nações Unidas e para o sistema internacional, permitindo-lhes interferir no que era tradicionalmente considerado assunto interno da nação, sistema internacional que antes consagrava o princípio da “não-intervenção” nos assuntos internos dos Estados 32 . O enfoque dos direitos humanos como um horizonte em permanente expansão, cumulação e fortalecimento contrasta com a realidade de muitos Estados, dada a limitação dos meios políticos, econômicos e sociais, produzindo um descompasso que pode incidir sobre o “princípio da governabilidade”, especialmente em países da periferia capitalista, países do chamado Terceiro Mundo . Produzem-se assim tensões, tanto em nível interno como internacional, que variam conforme o poder e a velocidade dos respectivos países, em seus sistemas políticos e econômicos para dar cumprimento às normas e acompanhar as transformações, sem rompimento da chamada solidariedade social, fundamental à estabilidade e ao princípio da “governabilidade” dos Estados. A resolução favorável e eficiente dessas tensões será de sobremodo indispensável para dar continuidade é a expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, de acordo com um visão integrada e não compartimentalizada, tal qual graçou no período da Guerra Fria. Para que tal objetivo possa ser materializado, os Estados e as demais instituições políticas responsáveis, inclusive as organizações internacionais, deverão dotar-se dos meios necessários para assegurar o 32 V. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Princípios do Direito Internacional Contemporâneo. Brasília: UnB, 1981, pag. 64. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 75 O problema da concorrência entre tratados internacionais e leis internas de estatura infraconstitucional pode ser resolvido, no âmbito do direito internacional, em princípio, de dois modos. Num, dando prevalência aos tratados sobre a legislação interna infraconstitucional, garantindo ao compromisso internacional plena vigência, sem embargo de leis posteriores que o contradigam. E outro, tais problemas são resolvidos garantindo-se aos tratados apenas tratamento igual, tomando como paradigma leis nacionais e outros diplomas de grau equivalente34 . Conclusão Assim, os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, como o interamericano aqui analisado, e o sistema global, no âmbito da ONU, constituem-se juridicamente como uma espécie de último recurso de justiça para a defesa dos direitos humanos, entendidos como unos em relação a divisão didática de 1a , 2a ou 3a geração, ultrapassando a tutela jurídica exclusiva dos Estados-nações. A ordem normativa tradicional, no âmbito do direito internacional público, não foi capaz de construir uma proteção jurídica condizente com a pessoa humana desde o surgimento de uma reconhecida sociedade internacional, a partir do surgimento das organizações políticas estatais. Dessa forma, os direitos humanos começaram a alcançar um patamar internacional desde a aprovação da Declaração Universal de 1948, no contexto de construção da Organização das Nações Unidas, e fortalecida com a I e II Conferência Mundial de Direitos Humanos, em 1968 e 1993, respectivamente. Sua lógica é de trazer a pessoa humana, seja de que origem for, como titular de direitos e obrigações, sendo capaz de peticionar aos sistemas regionais e globais devido à prática de desrespeito aos direitos. Mas, na prática, o que ocorre é um uso seletivo do sistema, através do encaminhamento de casos ilustrativos, que pode ter um impacto positivo na situação dos direitos humanos de alguns Estados, assim como pode servir para proteger a vida e a integridade física de várias pessoas que sofreram violações. Neste sentido, os instrumentos internacionais 34 REZEK, Francisco. Curso elementar de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 104. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 77 GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926). Porto Alegre/Brasília: UFRGS/ FUNAG, 2000. HALLIDAY, Fred. Repensando as relações internacionais. Tradução de Cristina Soreanu Pecequilo. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1999. PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. Prefácio de Fábio Konder Comparato. São Paulo: Max Limonad, 1998. _____________Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. RAO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 4a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. SÃO PAULO (Estado). Procuradoria Geral do Estado. Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Direitos Humanos: legislação e jurisprudência. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 1999 (Série Estudos, n.12). SWINARSKI, Christophe. Direito internacional humanitário como sistema de proteção internacional da pessoa humana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. TREVELYAN, George McCaulay. A Revolução Inglesa. Tradução de Leda Bozarian. Brasília: UnB, 1982. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 3 | n. 6 | jul./dez. 2001. 79