“CACAU”, JORGE AMADO Prof. Volney Ribeiro “Os meninos não pensavam. Trabalhavam, comiam e dormiam. Um literato disse certa vez: — Esses é que são felizes. Não pensam... Assim parecia a ele.” (Jorge Amado, Cacau.) “Li Cacau pela primeira vez no começo da adolescência: foi por seu intermédio que descobri então poder a literatura ser, mais que veículo de entretenimento, uma via privilegiada de descoberta do mundo; no caso, especificamente, da realidade brasileira.” (José Paulo Paes) Jorge Amado e a Obra “Cacau” “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?”. “Fazer um romance proletário era, evidentemente, pura pretensão da minha parte. A consciência proletária ainda estava em formação num país que apenas começava a se industrializar e onde não existia, propriamente, uma classe operária; o que havia era o trabalhador manual - e, neste ponto, a descrição da vida dos trabalhadores rurais é o que torna Cacau muito real.” Tive “a idéia de reunir algumas cartas de trabalhadores e rameiras para publicar um dia. Depois já no Rio de Janeiro, relendo estas cartas, pensei em escrever um livro. Assim nasceu Cacau. Não é um livro bonito, de fraseado, sem repetição de palavras. É verdade que hoje sou operário, tipógrafo, leio muito, aprendi alguma coisa. Mas, assim mesmo, o meu vocabulário continua reduzido [...] Demais não tive preocupação literária ao compor estas páginas. Procurei contar a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau.” Características Gerais da Obra A obra traz o questionamento proletário da visão do trabalhador sobre seu único e maior problema: o explorador. Jorge Amado era um comunista de carteirinha, que nunca escondeu seus propósitos políticos em sua vida e em sua obra literária. Os personagens de Jorge Amado não fogem do debate sobre opressão, repressão social, luta de classes, batalha de valores humanos frente a uma sociedade fundamentada em porções de coronelismo e vastidões de pobres mandados, desvanecidos. Os trabalhadores do cacau entendem a exploração e enxergam a depreciação pela força do dinheiro, do medo e da chantagem, frutos bem avistados do mercado do lucro dos grandes sobre os pequenos. Cacau é um romance-manifesto. O romance-manifesto ilustra muito bem o vasto leque de explorações e opressões, em seus variados níveis: (1) o jovem que vê sua força de trabalho resultar apenas no dinheiro exorbitante do patrão; (2) os trabalhadores que não conseguem se desvencilhar das dívidas com a pequena mercearia (pois o lucro e a exploração estão em todos os níveis); (3) as mulheres “defloradas” tanto pelos trabalhadores quanto pelos estudantes de Direito, filhos de ricos, que passam pelas fazendas apenas para encrencar com a vida das pessoas de lá; (4) as mulheres da vida, os pobres errantes, os pésdescalços. Aspectos Específicos da Obra A obra é Intitulada a partir do nome do fruto que, ao longo da obra, pode transformar-se numa metáfora expansiva da condição humana na região sul da Bahia, então dominada pelo cultivo do cacau para exportação. O livro é uma espécie de romancereportagem composto sob o viés de uma "literatura socialista“. O livro narra a trajetória de José Cordeiro, que, morando no Rio de Janeiro, rememora e narra seu passado nas fazendas baianas. Com ele, o autor traz uma galeria de homens e mulheres que compõem as cenas de exploração, as pequenas alegrias e tristezas, as impotências e transgressões humanas frente ao sistema. Em “Cacau”, um sergipano nos conta a estória da sua juventude, quando saiu de São Cristóvão, excapital do Sergipe, para o sul da Bahia, terra do cacau. Seu pai era dono de uma fábrica. Com a morte paterna, a família perdeu tudo, e o rapaz foi trabalhar como operário na fábrica onde antes era dono. Assim, Sergipano logo se torna pobre, quando há a intervenção do tio – metonímia do capitalismo selvagem – na fábrica da família. Com essa queda primordial, tem início um processo que talvez não se possa chamar de ascensão, mas de retomada gradual das rédeas do destino, uma vez que a real mudança termina sinalizada apenas como possibilidade. Surge, pois, anseio de que a luta mudará a sociedade. O autor descreve, nesta primeira parte do romance, que se passa em Sergipe, a proletarização do jovem, retratando-o como simpático aos proletários, mesmo antes de se tornar de fato um. Ao ser despedido, resolveu migrar para a Bahia, chegando à fazenda de cacau em Pirangi onde se desenrola a maior parte do romance. No capítulo intitulado “Cacau”, o autor, pela voz do narrador, que passa a ser chamado de Sergipano, descreve a exploração do trabalho na fazenda. Os empregados das roças eram responsáveis por todos os processos pelos quais o cacau passava e, se algo errado acontecia, tinham de pagar pela "falha". Era considerado crime imperdoável para os coronéis deixar mofar os sacos de cacau. Um dos trabalhadores da fazenda foi acusado do crime e despedido, sem direito de indenização, e ainda foi obrigado a pagar o prejuízo para o coronel: deveria trabalhar nas roças até quitar o valor. O empregado resolveu fugir. Dois colegas, a mando do patrão, foram à procura dele, encontraram-no e bateram bastante nele . Jorge Amado nos mostra, então, a falta de consciência de classe entre estes empregados das roças. Os questionamentos para saírem daquela situação começam aos poucos a fazer parte das conversas dos trabalhadores. Sergipano questiona: - Isso continuará sempre assim? É impossível. Tem que mudar. - Como? - É o que não sei... Mas se alguns trabalhadores traíam a sua classe, tal não é o caso de Sergipano. Obrigado por Mária, filha do patrão, a entregar um trabalhador que a desacatou, Sergipano se recusou. Fiel à sua classe, não se deixou seduzir, nem mesmo quando ela narrou-lhe um romance cujo personagem, um roceiro, casava-se com uma condessa. Sergipano encerra a conversa afirmando: Mas o roceiro é um traidor. - A quem ele traiu? Embatuquei com a pergunta. Mária sorria Vitoriosa. - Traiu os outros trabalhadores A traição de classe é ainda tematizada, no romance, na "sedução" consentida da roceira Magnólia, noiva de Colodino, por Osório, filho do coronel. Colodino descobre a traição, espanca Osório e foge da fazenda. O capítulo intitulado sugestivamente “Consciência de Classe” descreve o momento em que Honório, colega de trabalho de Colodino, é chamado pelo patrão para "dar cabo" do colega. Honório sai para cumprir sua tarefa, mas erra a pontaria de propósito. Sergipano pergunta: - Por que você não matou Colodino? Por que queria bem a ele? - Eu gostava de Colodino... Mas eu não queimei o bruto porque ele era alugado como a gente. Matá coroné é bom, mas trabaiadô não mato. Não sou traidô...” O episódio dá margem à seguinte reflexão do narrador Sergipano: "Só muito tempo depois soube que o gesto de Honório não se chamava generosidade. Tinha um nome muito mais bonito: “Consciência de Classe”. Algum tempo depois, Sergipano recebe uma carta de seu amigo Colodino, já instalado no Rio de Janeiro: “Venha embora para cá, Sergipano. Aqui se aprende muito. Tem resposta para o que a gente perguntava ahi. Eu não sei explicar direito. Você já ouviu fallar em lucta de classe? Pois há lucta de classe. As classes são os coronéis e os trabalhadores. Venha que fica sabendo tudo. E um dia a gente pode voltar e ensinar para os outros. Antes, porém, de seguir os conselhos de Colodino e ir para o Rio de Janeiro, Sergipano lidera uma greve fracassada dos trabalhadores da fazenda, que voltam ao trabalho no dia seguinte do início movimento, com redução de salário. Sergipano sofrerá ainda mais uma provação no seu processo de conscientização de classe: Mária, por quem ele estava apaixonado, confessalhe a própria paixão e sugere que se casem; ela convenceria o pai a aceitá-lo. Sergipano, no entanto, recusa-se, alegando que não trairia a sua classe casando com a filha do patrão. Quando recebe mais uma carta de Colodino, referindo-se de novo à luta de classes, Sergipano resolve atender aos conselhos do amigo e parte para o Rio de Janeiro. Em nome da consciência de classe abandona a fazenda e abdica do amor por Mária: “Olhei sem saudades para a casa-grande. O amor pela minha classe, pelos trabalhadores e operários, amor humano e grande mataria o amor mesquinho pela filha do patrão. Eu pensava assim e com razão”. O romance mostra um processo de conscientização de classe, tanto de Sergipano quanto de Colodino, o qual se realizará de fato por meio da experiência como operário na cidade, experiência externa ao processo de trabalho na fazenda. Tal situação parece indicar que, se ambos continuassem na fazenda, talvez nada aprendessem. No último capítulo, Jorge Amado registra os locais visitados por ele, ao escrever Cacau (Pirangi, Aracaju e Rio de Janeiro), e as respectivas datas da visita. Jorge Amado parece querer comprovar o trabalho de campo ao elaborar o romance que ele propõe às letras brasileiras como sendo “proletário”. Discurso Neorrealista O livro reforça tal ideia no decorrer da obra, quando o narrador introduz a noiva do amigo Colodino, dizendo que “Magnólia era bonita, sim. Não como essas roceiras heroínas de romances de escritores que nunca visitaram uma roça. Mãos calosas e pés grandes. Ninguém que trabalhe numa fazenda de cacau tem os pés pequenos” (p. 42). Não suficiente, diz que a moça era “um pouco envelhecida talvez para os seus vinte anos”, e “não pensem que Magnólia conversava bem. Isso é coisa que não existe na roça. Ela sabia palavrões e os soltava a cada momento” (p. 42-43). Dessa maneira, desde o início da vida literária, o autor não se filia a um discurso idealizador da modernidade urbana. Panfleto contra a desigualdade social A fome multiplicava os pães, enchia a pastelaria toda, deixando um canto apenas para o empregado. Após multiplicar, dividia. A fome tinha agora um manto de juiz e a mesma expressão terna de Jesus. E dava os pães todos aos ricos, que entravam em procissão com notas de cem mil-réis nos dedos com anéis e mostrava um grande pedaço de língua aos pobres, que na porta estendiam os braços secos. Mas os pobres invadiam, derrubavam a imagem da fome e levavam os pães. Fui entrando com eles. Mas o empregado deteve-me: — O que é que quer? Passei a mão pela testa. O suor corria. Os ratos, no meu estômago, roíam, roíam... Olhei e vi que os pães e o São José continuavam no fundo da padaria. Murmurei para o empregado que se dispunha a chamar o guarda: — Me desculpe. Não quero nada, não. Os criados entravam com dinheiro e saíam com pão. (p. 18-19). Funcionários Alugados O 98 virou-se para mim: — Está você alugado do Coronel. Estranhei o termo: — A gente aluga máquina, burro, tudo, mas gente, não. — Pois nessas terras do Sul, gente também se aluga. O termo me humilhava. Alugado... Eu estava reduzido a muito menos que homem... (p. 23) Autodefinição do personagem Sergipano definirá a si e aos companheiros como “mais animais do que homens”. Segundo ele, “tínhamos um vocabulário reduzidíssimo onde os palavrões imperavam”. O mito do Eldorado Entre os pontos mais altos da obra talvez esteja a metáfora expansiva que se desdobra a partir da imagem do fruto que lhe empresta o título. Se, inicialmente “o cacau exercia sobre eles uma fascinação doentia” (p. 12), conforme declara o narrador, aos poucos, essa relação deverá direcionar-se cada vez mais rumo à “doença” do que à fascinação. O mito do Eldorado A região de influência daquele imaginário transborda as fronteiras da Bahia e chega aos estados vizinhos, criando uma aura em torno do poderio econômico e das possibilidades de ascensão social, que motiva larga migração regional. Nas fazendas do sul baiano, irão encontrar-se tanto retirantes das secas do Nordeste quanto trabalhadores em busca de enriquecimento. Mito desfeito Todavia, essa maravilhosa luz, o eldorado e a terra de Canaã serão aniquilados logo em seguida, no parágrafo que encerra o segundo capítulo, dizendo: “Os filhos dos operários jogavam futebol com uma bexiga de boi cheia de ar.” (p. 15). Mito desfeito Na obra, o autor expõe o comentário de um cearense já habituado àquela vida, cuja fala sentencia a derrocada dos sonhos inocentes: “Isso aqui parece uma terra amardiçoada. Lá no Ceará me disseram que havia uma dinheirama por aqui...” (p. 30). Humilhação e desumanização do ser humano Osvaldo trabalhara para o coronel Henrique Silva, mas não conseguira receber pelo serviço. Num derradeiro rompante de fúria, assassinara o homem a facão, acabando julgado por um conselho de fazendeiros que lhe impôs dezoito anos de pena, como exemplo. Humilhação e desumanização do ser humano Entre a bestialidade do crime e a subumanidade do animal de carga, resta ao homem tornado inútil chorar: “A mulher e os filhos vieram vê-lo na cadeia. Ele chorou pela primeira vez na vida. E amaldiçoou o cacau. Sinhá Margarida andara ao léu. Acabara na fazenda Fraternidade a vender caldo de cana. Os filhos já ajudavam os trabalhadores na juntagem, ganhando 500 réis por dia. Apesar de odiar o cacau, temia voltar para o Ceará com a seca. Ali, pelo menos, ela e os filhos comiam. Jaca havia com fartura.” (p. 66) Cacau – metáfora do Sol “O cacau era o grande senhor a quem até o coronel temia” (p. 75). Tudo na região orbita esse metafórico elemento. Efetivamente, Jorge Amado expande os sentidos do cacau até torná-lo o centro desse universo, dourado e radiante como um sol que retém a tudo. Cacau: síntese do homem e do produto “O cacau era levado para o cocho para os três dias de fermento. Nós tínhamos que dançar sobre os caroços pegajosos e o mel aderia aos nossos pés. Mel que resistia aos banhos e ao sabão massa.” (p. 59) Precisamente aqui, o fruto transita de mito do Eldorado a símbolo metonímico do capital e da consequente coisificação humana. Alugados e caroços fundem-se numa só coisa, conectados pela viscosidade que luta por se tornar parte dos seus corpos. Amor subjugado ao cacau Casar com Mária, cujos cabelos são louros como o cacau maduro, é o ápice da dualidade. Se, por um lado há a beleza da paixão, por outro, essa escolha significaria tornar-se também um dominador, e mais do que isso: para governar os demais, o preço não é apenas a traição aos amigos, mas uma profunda traição existencial, dado que é necessário vender a alma ao fruto e passar a temê-lo assim como o faz o coronel. Condicionar sua existência à desse simbólico elemento é um preço alto demais a se pagar, muito mais alto do que partir para a luta. Valeu, turma!!! www.facebook.com/professorvolneyribeiro