A REVOLUÇÃO CARTESIANA
Apresentação baseada principalmente em Friedrick Copleston:
History of Philosophy, vol. IV.
Descartes (1596-1650) foi educado por jesuítas. Ele iniciou
a filosofia moderna com um sistema original, que apesar
de datado ainda tem a nos ensinar.
Ele foi responsável pela chamada REVOLUÇÃO
CARTESIANA:
Entre os filósofos antigos e medievais, a METAFÍSICA
(ONTOLOGIA etc.) era o paradigma da investigação
filosófica.
A revolução cartesiana consistiu em mudar o foco de
interesse para a EPISTEMOLOGIA (o que persistiu até
Kant). Descartes viu que seria preciso investigar as
origens, natureza e limites do entendimento humano
para só então aplicá-lo na solução de questões
metafísicas.
Essa revolução, aliás, surgiu da tentativa de
Descartes de prover uma resposta epistemológica
às ameaças do CETICISMO.
Em sua época os escritos dos céticos antigos (Pirro,
através de Sextus Empiricus) haviam sido
traduzidos para o latim, colocando em questão
nossa capacidade de conhecer o mundo e mesmo a
crença em Deus.
Era mister que os filósofos respondessem ao
desafio cético, tendo sido esse o principal impulso
para o desenvolvimento do pensamento cartesiano
...............................
Descartes tinha um PROJETO PARA A CIÊNCIA, que
seria como uma árvore tendo
1) Como raiz a METAFÍSICA (baseada na apreensão
intuitiva da existência do EU, no critério de verdade, nas
provas da existência de Deus e do mundo material)
2) Como tronco a FÍSICA (os seus princípios últimos se
seguem dos princípios da metafísica)
3) Como galhos as CIÊNCIAS PRÁTICAS (medicina,
mecânica, moral, que dependem da física)
(Quanto aos mistérios revelados, esses transcendem a
razão humana.)
(Descartes nunca conseguiu desenvolver essa visão.............
em detalhes nem resolver as suas discrepâncias...)
Descartes foi um matemático inventor da geometria
analítica. Por isso era também um RACIONALISTA.
Ele rejeitava a importância heurística da silogística
aristotélica, pois a verdade das conclusões dependia da
verdade das premissas, as quais não eram certas!
Precisava de um MÉTODO para desenvolver o seu
SISTEMA!
Um sistema que fosse imune às ameaças do ceticismo!
Para tal seria necessário alcançar o CONHECIMENTO
CERTO, o único a altura do nome!
Ele não acreditava haver mais de um único método (como
pensava Aristóteles, que acreditava em um método para a
matemática, outro para a ética),
Para Descartes as mente é em si mesma
INFALÍVEL.
O que produz erros são fatores outros como
PRECONCEITOS, PAIXÕES, INFLUÊNCIAS
DA EDUCAÇÃO, IMPACIÊNCIA, PRESSA... Que
cegam a mente.
Ele quer então estabelecer um conjunto de
REGRAS direcionadoras da mente,
Regras essas que pressupõem as OPERAÇÕES
NATURAIS DA MENTE.
Mas primeiro, quais são essas operações?
As operações da mente são duas:
INTUIÇÃO e DEDUÇÃO
1) INTUIÇÃO:
“A intuição é uma concepção completamente livre de
dúvida, que aparece à mente clara e atenta, nascendo
apenas da luz da razão.”
É resultado de
uma VISÃO INTELECTUAL TÃO CLARA E
DISTINTA QUE NÃO DEIXA ESPAÇO PARA A
DÚVIDA.
2) A DEDUÇÃO: é a inferência necessária, a partir de
verdades intuitivas, de outros fatos conhecidos com
certeza.
A intuição é requerida mesmo na dedução, pois precisamos
ver clara e distintamente a verdade de um passo do
argumento para a outra.
(ele também tenta reduzir dedução à intuição... o que fica
difícil com relação a verdades remotas.)
..........................
Note que embora intuição e dedução sejam modos de obter
conhecimento, elas não são o MÉTODO. O MÉTODO
consiste em REGRAS PARA EMPREGAR CORRETAMENTE
ESSES DOIS MODOS DE SE OBTER CONHECIMENTO,
essas duas OPERAÇÕES DA MENTE.
No Discurso do Método ele apresenta 4 regras. As 3
importantes são:
1) Não aceitar nada como verdadeiro que eu não
reconheça CLARA e DISTINTAMENTE como tal
(evitando assim precipitações e preconceitos).
Outra regra importante é a de ANÁLISE ou
RESOLUÇÃO:
2) Dividir cada dificuldade em tantas partes quanto
possível, tal como parecer requerido. (i.e., em seus
elementos. Por exemplo: nas Meditações ele
analisa os dados de modo a chegar à proposição
existencial primária do COGITO ERGO SUM.)
3) Regra de SÍNTESE ou COMPOSIÇÃO:
Começar com a apreensão intuitiva das proposições
simples (às quais chegamos por análise) e tentar
refazendo os passos chegar a conhecer todas as
outras.
Esse é o método da geometria euclideana; análise é o método de
descoberta, síntese é o método da demonstração do que já sabemos...
Ex: corpo tem EXTENSÃO mais FIGURA.
Naturezas simples materiais são extensão, figura, movimento,
intelectuais são querer, pensar, duvidar,
comuns a ambas são existência, natureza e duração.
Comentadores notaram que as naturezas simples permanecem na
ordem IDEAL, enquanto o cogito é um enunciado existencial!
Vale distinguir entre
ORDO COGNOSCENDI (ordem da
descoberta) e
ORDO ESSENDI (ordem do ser)
Na ordem da descoberta nossa própria
essência é anterior. (sei intuitivamente que
existo, então posso concluir que Deus e
depois o mundo existem).
Mas na ordem ontológica a essência de Deus
é anterior.
Questão: podemos deduzir as leis da física?
Descartes é ambíguo, de um lado acha que
sabemos as coisas com certeza porque a veracidade
divina garante a objetividade de nossas idéias claras
e distintas; de outro sabia que não podemos passar
sem a experiência.
O PAN-MATEMATICISMO cartesiano não é
portanto absoluto: o experimento serviria para
suplementar as limitações da mente humana.
Mesmo assim, o ideal é a assimilação da física à
matemática!
Seu racionalismo encontra reforço na TEORIA DAS
IDÉIAS INATAS:
Para Descartes nossas almas já contém certos germes de
verdade, idéias nelas implantadas pela natureza ou Deus.
TODAS AS IDÉIAS CLARAS E DISTINTAS SÃO
INATAS.
A IDÉIA DE DEUS, por exemplo, é INATA.
Não que um bebê a tenha, mas que a mente tem a
POTENCIALIDADE de produzi-la no curso da
experiência. A experiência sensível fornece a OCASIÃO
para a sua formação.
As idéias claras e distintas são diferentes das idéias
ADVENTÍCIAS, realmente advindas da experiência.
MÉTODO DA DÚVIDA:
Como instrumento metodológico para chegar à
certeza Descartes elaborou o MÉTODO DA
DÚVIDA, que consiste em
REJEITAR COMO
ABSOLUTAMENTE FALSO TUDO
AQUILO COM RELAÇÃO AO QUE
PUDERMOS IMAGINAR ALGUMA
RAZÃO PARA CONSIDERAR
FALSO.
Essa dúvida é meramente METÓDICA,
ou seja, heurística, pois com ela se
objetiva apenas encontrar o
conhecimento absolutamente certo.
É também uma dúvida HIPERBÓLICA,
pois vai além dos limites normais da
dúvida.
E é ainda uma dúvida TEÓRICA, pois
em nossa vida prática não precisamos
dela.
DA DÚVIDA HIPERBÓLICA À
CERTEZA DO EU
Que dizer das proposições matemáticas?
2) “2 + 3 = 5” ou “Um quadrado não pode ter mais
de quatro lados”?
Mesmo tais resultados poderiam ser errados se um
poderoso GÊNIO MALIGNO aplicasse toda a sua
astúcia em me enganar...
Note que Descartes precisa dispor de alguma
RAZÃO para tratar algo como falso, seja qual for
essa razão. Essa dúvida de razão improvável é
chamada por ele de DÚVIDA HIPERBÓLICA
(como Descartes nota na Sexta Meditação). Apenas
conhecimento da linguagem e princípios lógicos restam...
(Até que ponto é legítima?)
COGITO
Na Segunda Meditação, após ter colocado em
dúvida o mundo sensível e o conhecimento
matemático, Descartes chega ao ponto culminante
de sua filosofia,
a descoberta do seu famoso:
“Cogito ergo sum”
Não importa o quão hiperbólica seja a minha
dúvida, não posso duvidar de que SOU EU
quem duvido.
Se eu duvido, eu existo, senão não poderia
duvidar. E se duvido, penso, e se penso,
existo, ou COGITO ERGO SUM.
O ponto já havia sido colocado por Agostinho: “Si
fallor sum” (Se me engano, existo).
O cogito se autoverifica. “Duvido que eu exista”.
“Eu não existo”. São contraditórias.
Por pensamento ele entendia qualquer
operação da consciência.
Peculiaridades do cogito:
1)“Eu sou, eu existo” – só enquanto penso!
2)É o cogito uma inferência ou uma intuição?
Tudo o que pensa existe.
Eu penso
.
Logo, eu existo.
Embora Descartes concorde que logicamente o
cogito pressuponha a primeira premissa, ela não
precisa ser pensada.
Eu INTUO EM MEU PRÓPRIO CASO A
IMPOSSIBILIDADE DE PENSAR SEM
EXISTIR.
Ao pensamento pertence para Descartes
O DUVIDAR,
O ENTENDER,
O AFIRMAR,
NEGAR,
QUERER,
RECUSAR,
IMAGINAR,
SENTIR...
(Em suma: qualquer estado mental consciente)
Para Descartes quando afirmo minha própria existência no
cogito afirmo a minha existência como COISA
PENSANTE. Mas que coisa? Não precisa ser um corpo!
Somente algo.
Russell objetou-se que o PENSAR não requer um
PENSADOR, e o cogito poderia ser reduzido a “Há
pensamentos”.
Descartes, ao contrário, acha que O PENSAMENTO
REQUER UM PENSADOR! Um pensamento não pode
existir a parte do pensador, como um acidente não pode
existir a parte de uma substância. Não apreendo o pensar,
mas somente “EU PENSANDO”.
tem de haver ALGO que pensa. E esse algo ele considera
uma SUBSTÂNCIA PENSANTE.
CRITÉRIO DE VERDADE
Tendo descoberto a proposição indubitável, Descartes se
questiona o que é requerido para uma proposição ser
verdadeira e certa.
Ele nota que “Penso logo existo” é uma afirmação
CLARA E DISTINTA.
Portanto “COISAS QUE CONCEBO MUITO
CLARA E DISTINTAMENTE SÃO
VERDADEIRAS”
– esse é o critério de verdade para Descartes!
O que Descartes entende por CLARO E DISTINTO?
a) CLARO = o que é presente e aparente para a mente
atenta (como objetos ao sol).
b) DISTINTO = aquilo que se apresenta como diferente
de todos os outros objetos.
Assim, uma dor muito forte pode ser clara, mas não
distinta. Esse critério de Verdade Descartes tira da
matemática.
...................
Mesmo assim, a dúvida hiperbólica pode atingir idéias
claras e distintas (como a de que 2 + 2 = 4). A menos que
eu prove a existência de um Deus que não seja enganador!
Preciso, pois, provar que Deus existe!
DA EXISTÊNCIA DO EU À
EXISTÊNCIA DE DEUS
Como o mundo externo não está ainda provado, Descartes precisa
provar a existência de Deus independentemente da assunção da
existência do mundo externo.
Na Terceira Meditação ele começa essa tarefa.
Ele começa examinando as IDÉIAS que ele tem em
mente.
Consideradas como modificações subjetivas – MODOS
DE PENSAMENTO – elas são semelhantes.
Mas se consideradas em seu caráter representativo,
em seu conteúdo,
elas podem conter mais ou menos REALIDADE
OBJETIVA!
Ora, todas as ideias são CAUSADAS...
Mas
“aquilo que é mais perfeito, que tem mais realidade, não
pode proceder do que é menos perfeito”.
Ideias adventícias como as de cor podem ser produzidas
por mim.
Ideias de substância e duração também. Como não sou
coisa extensa, as idéias de extensão e movimento
parecem mais dificilmente deriváveis de mim... Mas
como eu próprio sou uma substância:
Elas podem todas estar contidas em mim
eminentemente.
A questão é: de onde veio a IDÉIA DE DEUS?
DEUS = Substância infinita, independente, onisciente,
onipotente, que criou tudo o que existe, inclusive eu
mesmo.
Argumento (1):
Ora, como substância finita eu não posso ter a idéia de
uma substância infinita, a menos que ela proceda da
substância infinita!
(Não posso como substância finita criar a idéia do infinito como
negação do finito, pois há mais realidade no infinito. Mais
admissível é o contrário: que pela idéia do infinito se chegue a
idéia do finito. Não posso pensar o ser infinito como
potencialidade, pois a potencialidade é uma imperfeição...)
Logo, Deus existe!
Argumento adicional (2):
Além disso, posso derivar minha existência de mim
mesmo ou de meus pais?
O que me sustenta em minha existência?
Não tenho o poder de me criar e conservar existindo.
Logo, Deus existe para sustentar minha existência.
Seja como for, a sugestão básica é a de que a IDÉIA DO
SER PERFEITO, QUE É CLARA E DISTINTA, só
podemos ter porque DEUS, COMO CAUSA PRÓPRIA
DESSA IDÉIA, A IMPRIMIU EM NÓS COMO A
MARCA DO CRIADOR EM SUA OBRA!
(Crítica: não é certo que não seja construção nossa. Além
disso não é clara e distinta, mas talvez até ininteligível)
DA EXISTÊNCIA DE DEUS
COMO GARANTIA DO
CONHECIMENTO
Uma vez demonstrada a existência de Deus não é para
Descartes difícil demonstrar outras verdades.
Pois SENDO DEUS O SER SUPREMAMENTE
PERFEITO, ELE NÃO PODE SER
ENGANADOR, POIS POR EXPERIÊNCIA
SABEMOS QUE A FRAUDE ADVÉM DE
ALGUM DEFEITO.
Portanto, aquilo que vemos muito claro e
distintamente deve ser verdadeiro!
Pela certeza da existência de Deus podemos
aplicar universalmente o critério de verdade
sugerido no cogito, concluindo também que o
mundo externo existe.
A certeza da existência de Deus remove qualquer
dúvida hiperbólica, especialmente a da existência
do mundo.
......................................................................................................................................................................................
ERRO
Deus me criou e Deus não é enganador. Mas então como
explicar o ERRO?
R: o erro provém do fato de que minha
VONTADE é ILIMITADA enquanto o meu
ENTENDIMENTO é LIMITADO. Assim,
minha vontade me faz usar meu entendimento
além de seus limites. Trata-se de mau uso do livre
arbítrio...
Terceira prova da existência de Deus:
Na Quinta Meditação Descartes adiciona uma terceira
prova da existência de Deus,
uma PROVA ONTOLÓGICA:
Deus existe necessariamente em virtude de sua
essência, pois...
a divina essência, CONTENDO TODAS AS
PERFEIÇÕES, deve incluir a EXISTÊNCIA,
DADO QUE A EXISTÊNCIA É UMA
PERFEIÇÃO.
E nós percebemos CLARA E DISTINTAMENTE
que a existência pertence à sua verdadeira e
imutável natureza...
Argumento provando existência de corpos físicos:
1) Como posso MOVIMENTAR OS
CORPOS, como meus sentidos são
PASSIVOS, como a experiência do
mundo físico NÃO DEPENDE DA
MINHA VONTADE, eu sou
inevitavelmente inclinado a acreditar
que os corpos físicos existem...
2) Deus não é enganador!
3) Portanto: os corpos físicos existem
realmente!
Argumento provando separação mentecorpo:
1) Vejo que nada pertence a minha
essência, exceto que sou uma coisa
pensante, inextensa.
2) Por outro lado, tenho uma clara
consciência de meu corpo como uma
coisa extensa.
3) Segue-se que sou algo DISTINTO de
meu corpo.
RELAÇÃO MENTE CORPO
SUBSTÂNCIA = (Df) uma coisa que não requer nada além
de si mesma para existir.
Estritamente, essa definição só se aplica a Deus, posto que
dependemos de Deus para existir.
Substâncias criadas, as corporais e pensantes, o são no
sentido analógico de que dependem somente de Deus para
existir.
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Uma substância se define por seu atributo principal.
Assim, há três substâncias:
DEUS = SUBSTÂNCIA PENSANTE INFINITA (sentido
próprio)
ALMAS = SUBSTÂNCIAS PENSANTES FINITAS
CORPOS = SUBSTÂNCIAS EXTENSAS FINITAS
(sentidos analógicos)
Não podemos pensar a substância a não ser por
seus atributos.
O atributo principal é o que define.
1) O atributo principal do EU é o PENSAMENTO,
donde para Descartes em nenhum momento
podemos parar de pensar.
2) O atributo principal dos CORPOS FÍSICOS é a
EXTENSÃO, posto que não podemos pensar na
FIGURA ou no MOVIMENTO, sem pensarmos na
EXTENSÃO.
Os modos (figura, tamanho...) são propriedades
contingentes das substâncias
A conclusão é o DUALISMO CARTESIANO:
Como mente e corpo são duas substâncias, elas
existem independentemente.
A mente está para o corpo como o capitão para o
seu navio.
.......................................................
Daí também o INTERACIONISMO: há uma
interação entre ambos, pela pituitária!
Questão: Como é possível a interação entre
substâncias totalmente diversas, uma pensante e
outra extensa?
Como Descartes não tinha resposta muito satisfatória
para essa questão, opções teóricas alternativas surgiram:
1) OCASIONALISMO (Malebranche): Deus intervém a
todo momento, sincronizando os eventos nos dois níveis.
2) PARALELISMO PSICOFÍSICO (Leibniz): Deus, o
relojoeiro perfeito, sincronizou o mental com o físico no
ato da criação.
3) DUALISMO DE PROPRIEDADES (atual): o mental é
constituido de propriedades emergentes (do cérebro (tal
como a vida é uma propriedade emergente de corpos
físico-químicos, ou seja, dependente deles, mas não
idêntica a eles).
FIM
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