O PODER DOS DOCUMENTOS
ou
Quem decide o que é memorável?
(ensaio sobre a política da escrita)
Lídia Silva de Freitas
Departamento de Ciência da Informação
Universidade Federal Fluminense
Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação IBICT-UFF
maio/2007
[email protected]
Estrutura da exposição
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problematização do mundo da escrita
segmentação de aspectos envolvidos no
regime ou política da escrita
problematização de cada segmento
alguns caminhos tentativos
1. PROBLEMATIZANDO O MUNDO DA
ESCRITA
Da clássica revisão de literatura sobre memória de Le
Goff (1984) podemos sintetizar politicamente dois pólos
quanto ao surgimento histórico dos registros escritos:
os que os abordam como ...
a) neutros suportes auxiliares da memória cerebral
quando esta já não daria conta do grande
número de saberes socialmente úteis
(sobrecarga da memória) ou
b) resultado de luta pela memória social quando,
estabelecida alguma fissura social, já não
haveria consenso sobre os saberes e/ou as
narrativas consideradas socialmente relevantes
e/ou verdadeiras (derrocada da memória).
Adotamos a segunda hipótese
apenas surge registro escrito em sociedades
divididas em estamentos ou classes, onde se
instaura uma luta pela memória social: escrita
como "arcos do triunfo" das narrativas (e
propriedades...) dos vencedores em disputas
inter ou intra sociedades.
(X abordagem evolucionista que naturaliza o
advento da escrita como constitutivo de alguma
"etapa" de uma "sociedade humana" genérica.)

Abordados os registros escritos como marcos
em política de memória, podemos tentar isolar
para análise alguns aspectos de sua densa
rede de co-efeitos político-culturais, institucionais e nas representações imaginárias:
sistema de legitimidades
exclusivas e excludentes
narrativas reguladas
distribuição social desigual
do saber e poder de escrita
registro escrito
sobre o passado, separado do presente
regulação da
circulação social, estoque e guarda: formação
de arquivos
monumentalização:
documento
novos regimes
de verdade
e evidência
produção de saberes
sobre todos esses aspectos (1ª, 2ª e 3ª ordens)
•
1 - Monumentalização:
DOCUMENTO
Instauração de sistemas de legitimidade exclusivas (e
excludentes) sobre o texto escrito: processos sócio-históricos de
inscrição e validação via documentos - e apenas ele - como
garantia e prova - processo de monumentalização
deslegitimação da oralidade/
diferentes formas de atribuição de autoria (Foucault)/
tripla materialidade da enunciação: da língua, do
suporte e dos seus efeitos nas práticas sociais:
DISCURSO-ATO (Foucault; Frohmann)
Poder de criar efeitos sociais
Documentos
... não como meio de comunicação da informação,
mas como retransmissão da energia gerativa e
formativa, através da qual indivíduos
reconhecíveis são institucionalmente
constituídos. (Frohmann, 2006)
O poder institucional do registro migra entre
instituições. Ex.: instituições psiquiátricas e arenas
legais - com repercussões críticas.
Poder da escrita no campo da vigilância/controle e na
constituição institucional de sujeitos. Ex.: Distúrbio
da Dupla Personalidade e o Homossexualismo.
2 - Distribuição social desigual
do poder e do saber da escrita:
Processos de institucionalização, formalização,
distribuição, controle e circulação de saberes novo regime de verdade (e de evidência)
 gramaticalização da língua: norma ‘culta’/outras
 divisão leitura (sacralizada)/ escrita (redatores
X escritores)
 educação formal: conteúdos escolares, formas
didáticas e princípios pedagógicos
 representações imaginárias e instituições para
constituição e reprodução de saber científico
Se a linguagem nunca é apenas instrumento
de comunicação, nas sociedades letradas
assume um duplo poder cultural: objeto de
estudos e cunha de distinção cultural intra e
inter sociedades.
A escolarização como modo formal de
transmissão e apropriação da linguagem
(norma culta) constitui a escola como
agente de socialização (sempre seletivo) e
instrumento quase exclusivo de seleção de
oportunidades econômicas. (Galvão e Batista, 2006)
3 - Narrativas reguladoras do
passado:
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Saber/narrativa sobre o passado pautada por
documentos: marcos instituidores da História (X
pré-história memorial) - completando o processo
de monumentação com a patrimonilização
Crescente, e mais rápida, distinção entre passado
e presente - rompimento de tradições
Saber instituído contra a ‘memória verdadeira’
como sistema permanente de atualização
informal de narrativas sobre o social - maior
suspeição da oralidade, como subjetiva. (Nora,
1984)
SOCIEDADES DE MEMÓRIA
Memória: vivida coletivamente junto com
presente; afetiva; se nutre de lembranças;
assegura identidade do grupo; suporte de
continuidade entre passado e presente.
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SOCIEDADES DE HISTÓRIA
História: construção ‘racional’; ruptura e
estranhamento, representação sobre o
passado; aparência de dessacralização.
Via documentos: História do Estado como

história de todos. Símbolo de unidade nacional
ocultando conflitos. (Cunha, 1992)
A história se torna oficial ao esconder e
silenciar as outras narrativas dos
acontecimentos passados e presentes [...]
afastando-se da memória social, já que
silencia sua diversidade. [O perdedor
perde] não só o poder, mas também a
visibilidade de suas ações, resistências e
projetos. (Paoli, 1992)
* * *
Quem decide o que é memorável? Quem
decide o que é preservável? (Chauí, 1992)
4 - Formação e patrimonialização de estoques documentais (e
seus saberes):
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Acúmulo e guarda institucional de registos de
transações e narrativas: formação de estoques
documentais - Arquivos
A memória verdadeira, transformada por sua passagem em história, dá lugar a uma memória
arquivística: constituição vertiginosa e gigantesca do
estoque material daquilo que nos é impossível lembrar
Há lugares de memória (objetos da história, relíquias,
indícios de processos + aura simbólica) porque não há
mais meios de memória) (Nora, 1984)
Arquivo como dispositivo
histórico significativo (SOUZA, 1996):
Não nos iludamos com seu caráter: não é o
conjunto de textos que uma sociedade deixou,
material bruto a partir do qual se pode perceber
seja as estruturas sociais, seja a emergência de
acontecimentos; ele não é mais do que a moldura
institucional que permite conservar os traços, é um
dispositivo não fortuito que constitui as imagens
distintas, no sentido que cada dispositivo de
arquivo estabelece sua própria ordenação [...] o
arquivo “exibe” de algum modo um sentido
determinado.
(Guilhaumou; Maudidier, 1994 - baseados em Foucault)
Campos de saber instituídos pelo arquivo:
Biblioteconomia, Arquivologia, Documentação e
Ciência da Informação

Seu mito fundador: a “informação” objetificada,
naturalizada.
A ‘informação’ somente emerge como efeito de
práticas materiais legitimadas
institucionalmente sobre inscrições de forma
que enunciados e seus conjuntos ganhem
estabilidade como recurso para uma larga
gama de práticas sociais. (cf. Frohmann)
Que questões não costumam ser abordadas
pelo campo informacional em suas práticas e
teorias?
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Como é definida “informação”, de acordo com que
imperativos de estocagem por máquina, manipulação e
recuperação?

Como os mesmos imperativos determinam um conjunto
paralelo de configurações discursivas sobre usuários e usos?

Que plataforma institucional permite formas específicas de
enunciação dessas identidades?
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Como esse discurso constrói a informação que se torna
objeto de especialização profissional, estruturas administrativas
ou estratégias corporativas?
Como a fala profissional e corporativa configura redes
específicas de conceitos, definições, proposições, hipóteses,
argumentos, especulações e uma miríade de outros elementos
discursivos através dos quais formas específicas de poder
sobre a informação são exercidas?
Caminhos tentativos sobre o
tema da escrita e suas
representações:
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Desnaturalização das estruturas institucionais de
controle e produção de saberes sobre a escrita e
seus poderes diretos e correlatos.
Reconhecimento da mitologia reprodutora
desses poderes nos saberes dos campos
abordados.
Conhecimento dos principais rompimentos com
sua lógica, principalmente os fundamentados em
Foucault.
Referências
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CHAUÍ, Marilena. Política cultural, cultura política e patrimônio histórico. In:
SÃO PAULO (cidade). O direito à memória: patrimônio histórico e
cidadania. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 37-46.
CUNHA, Maria Clementina P. Patrimônio histórico e cidadania. In: SÃO
PAULO (cidade). O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania.
São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 9-11.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio: Forense Universitária,
1997.
_______ . A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996
FREITAS, Lídia S.de. Uma leitura crítica da crise da leitura. Cadernos BAD,
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FREITAS, L.S.; GOMES, S.L.R. Quem decide o que é memorável?: a
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Eletr.
FROHMANN, Bernd. Discourse analysis as a research method in library and
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FROHMANN, Bernd. Discourse and documentation: some implications for
pedagogy and research. Journal of Education for Library and
Information Science, Oak Ridge (EUA), v. 42, n.1, 2001. Disponível
em:http://www.fims.uwo.ca/people/faculty/frohmann/Jelis.htm
GUILHAUMOU, J., MALDIDIER, D. Coordination et discours: “du pain ET X” à
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ROBIN, R. Discours et Archive: expérimentations en analyse du discours.
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PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In:
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SOUZA, Tânia C. Clemente de. O arquivo como espaço de discursividade. In:
Seminário de Estudos de Informação, 1, set. 1996, Niterói. Anais ... Niterói,
set. 1996.
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O poder dos documentos - Fundamentos Teóricos em Informação I