Título:
Narrativas (auto)biográficas: professores(as) alfabetizadores(as) e a construção de
(seus) saberes, fazeres e conheceres
Autores:
Flávia Castilho (Mestranda/PPG/Educação/UniRio. Profª Alfabetizadora/SME/RJ. Rede
Formad/Brasil)
Igor Helal (Estudante/Pedagogia e Bolsista IC/UniRio. Rede Formad/Brasil)
Carla Bronzeado (Profª Alfabetizadora/SME/RJ. Rede Formad/Brasil)
Origem:
Rio de Janeiro/ Brasil
E-mails:
[email protected]
[email protected]
[email protected]
Eixo Temático:
Formação de Educadores
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Iniciando a conversa: é-se. Sou-me. Tu te és.
Neste texto intentamos dialogar sobre múltiplos mo(vi)mentos de uma pesquisa
em andamento, cujo percurso é atravessado por experiências que nos tocam, nos
mobilizam (LARROSA, 2002). É também um convite à reflexão sobre narrativas de
vida, de processos formativos, donde emergem práticas, investigações e ações
pedagógicas: um convite para verouvirsentir os imprevistos e desvios constitutivos dos
cotidianos escolares e presentes nos processos de formação (continuada) e nas
(auto)biografias linguajeadas e palavreadas nestes (de)cursos.
O desafio imposto implica potencializar experiências centradas na escola,
contrariando àquelas sentadas neste espaço (CANÁRIO, 1998), as quais silenciam
práticas, narrativas, memórias e histórias de vida dos sujeitos construtores e praticantes
(CERTEAU, 2007) do espaço escolar.
Assim, pensando com o professor, tentamos subverter a ideia de formação
tradicionalmente centrada nas narrativas e conhecimentos do formador, da pessoa
detentora de uma suposta experiência modelar, à qual competiria, por isso mesmo,
transformar a prática do outro, por meio de uma relação vertical e assimétrica.
Nos movimenta pensar e tentar contribuir para/com uma ideia de formação
(continuada) pautada nas experiências e histórias de vida, nas narrativas docentes, no
compartilhamento de saberes, nos espaçostempos de escutafala, diálogo e participação.
É nesse sentido que o Fórum de Alfabetização, Leitura e Escrita (FALE) e o Grupo de
Estudos e Pesquisa de Professoras/es Alfabetizadoras/es Narradoras/es (GEPPAN)1 se
articulam como espaçostempos polifônicos, multissituados (BAKHTIN, 2003) e
privilegiados onde formação, pesquisa e extensão dialogam e se retroalimentam. Tratase de um mo(vi)mento de (com)partilhamento de experiências e narrativas entre
professores/as e pesquisadores/as.
Corroborando a idéia defendida por Connelly e Clandinin (1995), o FALE se
constitui em uma comunidade de atenção mútua, colaborativa. É um momento, porque
é (um) encontro, lócus de diálogo, narrativas de práticas, de escuta, de conhecimento e
experiência. Momento de possível estranhamento, mas, logo, entranhamento,
habitamento (NÓVOA, 2010) de vontade e desejo de falar, narrar, compartilhar. Um
encontro onde as conversas vão sendo compartilhadas com todo o grupo (SOUZA,
2010). Mas é também movimento – individual e coletivo – em que os/as professores/as
narram e cruzam práticas, diálogos, concepções, lógicas e atitudes, colocando-se no
lugar de produtores de conhecimento, visto que narrar é narrar-se, (trans)formar-se por
meio da linguagem, das palavras, na dinâmica de falar com, metarrefletindo sobre o
vivido, experienciado e praticado na escola.
Desta forma, o/a professor/a se desafia a investigar e pesquisar a própria prática
(GARCIA, 2003), imbuída de saberes e ainda não-saberes, além de criarem um
excedente de visão: o FALE não é apenas um espaço físico, é também subjetivo, onde
quem narra toca e é tocado, assim como quem ouve. Esse mo(vi)mento se expressa na
1
Fórum de Alfabetização, Leitura e Escrita (FALE) – encontros (mensais) que reunem, na UniRio,
professores/as da universidade e escola básica, além de estudantes de cursos de licenciaturas, com o
objetivo de conversar, discutir e refletir sobre práticas alfabetizadoras realizadas cotidianamente nas
escolas. Investigamos saberes e fazeres docentes por meio das narrativas docentes, orais e/ou escritas,
produzidas nesses encontros. Como desdobramento, surgiu o Grupo de Estudos e Pesquisa de
Professoras/es Alfabetizadoras/es Narradoras/es (GEPPAN), o qual se encontra após o FALE para a
discussão de textos, práticas, vivências e experiências docentes, a fim de complexificar seus saberes,
fazeres e conheceres. Estes espaços estão vinculados à Rede de Formação Docente Compartilhada
(Formad), formada, atualmente, por grupos de docentes, vinculados à universidade e à escola básica, do
Rio de Janeiro e Campinas, SP.
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proposta perseguida pelo Fórum: tentar romper com a verticalidade usualmente presente
nas relações entre professores/as da escola básica ou da universidade.
Tal postura traz o desafio de investir em relações mais horizontais, no sentido de
romper com a verticalidade entre universidade e escola básica, onde aquela é
compreendida como produtora de conhecimentos a serem postos em prática por esta
última. Nesse sentido, tem nos movimentado, no FALE e GEPPAN, o desejo de
mergulhar nas narrativas e experiências docentes para tentar desinvisibilizar práticas e
percursos emancipatórios silenciados por essa relação hegemônica.
Assim, algumas perguntas se fazem pertinentes: que pistas estes professores
fornecem para tentarmos compreender e nos aproximar de caminhos por eles trilhados?
Como suas narrativas ajudam compreender o que pensam estes sujeitos acerca de seus
(ainda não) saberes e fazeres? Esse processo contribuiu na opção pela docência?
A conversa aqui principiada visa não só ampliar essas perguntas, porém
problematizá-las e complexificá-las, porquanto se consubstanciam em novosvelhos
rastros de uma caminhada iniciada há e entre muito(s) tempo(s), muitas vozes e
lugares...
Mo(vi)mentos de experiências: sobre escolhas de saberes, fazeres e dizeres em
narrativas da/na/sobre vida
Assim como as práticas docentes, o fazer da pesquisa surge, muitas vezes,
imbuído de desafios e escolhas, nas quais os alicerces somos nós mesmos, nossas
experiências, compreensões e olhares. Entretanto, o mergulho nas narrativas docentes
implica também elegê-las, para assim podermos discuti-las e potencializá-las por meio
do diálogo com os nossos estudos sobre relatos (auto)biográficos (e) de (auto)formação.
Deste modo, o FALE tem nos possibilitado (re)pensar e (re)avaliar a maneira
como pensamos a formação docente pautada nas histórias de vida, seus percursos e
percalços tangíveis às práticas nos/dos/com os cotidianos escolares – espaçostempos
constituídos de permanências e mudanças, móbeis, movediças e desobedientes, onde a
realidade e as práticas aí estabelecidas se gazeteiam (CERTEAU, 2007), permitindo-nos
compreender as diferenças e perceber resistências que contribuem para a autonomia e
liberdade docente perante às estratégias de dominações e rigores, as quais são
deslocadas pelas táticas dos praticantes escolares.
Inicialmente, revisitamos algumas transcrições produzidas desde 2007 dos
encontros do FALE e percebemos que alguns professores e professoras, ao relatarem os
trabalhos desenvolvidos em sala de aula, optaram por resgatar memórias de sua história,
denunciando vivências e experiências de escolarização e práticas, saberes e fazeres
como professores/as. Verificamos, desta forma, que, ao mesmo tempo em que
narravam, as palavras iam ajudando o/a professor/a a tecer os fios de sua história,
desvendando a importância da palavra de levar alguém a si mesmo (LAROSSA, 2006,
p.51).
Vendoouvindosentindo o que antes poderia estar silenciado nos pensamentos e
práticas daquelas/es professoras/es, fazemos parte, estamos sendo dentro de um
processo, sem precisar essencializar (e silenciar) nossas identidades (SKLIAR, 2003),
pensando e refletindo, assim, em nossas próprias formações2. Nesse mo(vi)mento – que
2
Permitimo-nos usar a palavra formação no plural, visto que, mesmo sabendo e identificando os sujeitos
como singulares, a nossa pesquisa se inscreve em espaços multissituados e polifônicos, logo, não
podemos enxergar e considerar, nestes espaços, apenas um processo formativo, mas vários, nos quais nós
mesmos nos inserimos, transversalizando e ampliando os nossos saberes e fazeres.
3
não consideramos um ato de imitar, assimilar, mas uma motivação – fomos incitados a
descortinar nossas histórias, tirar o pó das nossas memórias para trazê-las a baila, em
uma dinâmica de aproximação de nós mesmos,
porque se alguém lê ou escuta ou olha com o coração aberto, aquilo que lê
ou escuta ou olha ressoa nele; ressoa no silêncio que é ele, e assim o silêncio
penetrado pela forma se faz fecundo. E assim, alguém vai sendo levado à sua
própria forma (LAROSSA, 2006, p.52).
Neste momento, Larrosa nos convida a pensar essa(s) outra(s) coisa(s) como
salientado por Clarice Lispector: práticas narradas, audíveis e amplificadas pelo/com o
FALE, onde o silêncio se rompe com a energia dos movimentos experienciados e
captados ao longo da vida de professores e professoras, os quais intentam, também,
problematizar essas passagens, caminhos, travessias viajantes, em um processo de
aprender e refletir sobre essa viagem percorrida pela memória. E é nesta viagem de
(auto)formação docente que travamos diálogos com muitos sujeitos, na tentativa de
caminhar com eles alteritariamente (NÓVOA, 2010).
O trabalho com narrativas (auto)biográficas nos instiga pela sua construção de
saber temporal3, permitindo-nos entrever mo(vi)mentos de criação, renovação,
autopoiese, contrários às repetições e réplicas do que é habitado, vivido e experienciado
ao longo de anos de formação – delineiando-se, assim, um processo no qual hesitamos
para criar, refletir frente às possibilidades (BERGSON, 2000; PASSEGI, 2010). Tratase de um conhecimento em que compreendemos uma elaboração pessoal do/a
professor/a, o/a qual confronta-se com acontecimentos vividos, elucidando momentos e
movimentos marcantes e reconstituintes de sua trajetória de vida (e) profissional.
O tentame aqui tecido na rede que é e se desvenda o FALE e GEPPAN, faz
parte, se (des)fia junto e entre práticas que não se esgotam no momento de suas
realizações, mas refletem-se, compartilham-se, rememoram-se além do vivido
(BENJAMIN, 1992). Deste modo, os envolvidos no processo são implicados pela
escuta das narrativas e escritura das mesmas, (com)partilhando e socializando histórias
que corroboram com o aprendizado individual e coletivo, em uma viagem de
interpret(ações) várias.
Provocados pelas narrativas de professores e professoras (os quais, como nós,
compõem o FALE e o GEPPAN), buscaremos ensaiar uma discussão/reflexão acerca de
narrativas e histórias do outro, mas também de nós mesmos, em uma dinâmica dialética
e circular, como cordas desprendidas, em que muitos fios, nós e emaranhados possam
ser desconstruídos e desinscritos para a (re)construção dos sentidos que fluem d(est)as
experiências narrativas e (auto)biográficas (NÓVOA, 2010). Assim, traremos as
histórias de vida narradas por professoras, as quais nos ajudam a (re)pensar a opção pelo
magistério - contudo, por pensarmos que as vozes, pensamentos e diálogos são
transversais, a discussão aqui tecida não se resume apenas à uma posição, uma ação, um
saber narrado: ela se metamorfoseia dentre outros saberes e inquietações. Nossos e seus,
deles e delas, outros e outras contadores e contadoras de histórias...
3
Em nossas pesquisas, nos desafiamos a trabalhar com a noção de tempo não linear, a qual permite
inscrevermo-nos em uma lógica de ações, hesitações e possibilidades de criação, contrária àquela que
enxerga os períodos de tempo como processos de ações, reações e resultados, tentando validar (todas as)
verdades. No desafio de ressignificar o tempo, nos colocamos no lugar do sujeito que escuta, para saber o
que há de singular, de excepcional em cada um de nós, do tempo que permite que cada um seja um
dúvida insolúvel, do tempo que, estendido e intensivo, afasta qualquer necessidade e qualquer pretensão
por estabelecer normas (SKLIAR, 2008, p. 233). Desta forma, tentamos compreender o presente em seus
vários instantes, instâncias e peculiaridades.
4
O diálogo entre muitos outros e eus: buscando a dimensão humana da prática,
ouvindo, sentindo e se permitindo crescer com o outro
O dialogismo proposto por Bakhtin (1997), transitante entre muitos outros e eus,
esbarra-se com a realidade de tantas professoras narradoras que, como nós, compõem o
FALE, propiciando, assim, a (ultra)passagem da/pela experiência vivida, reeditando,
organizando e tentando entender os processos que nos constituem. Nesta dinâmica, nos
envolvemos com incertezas, entretanto, a (nossa) caminhada nos tem mostrado algumas
pistas para nos entendermos e ponderar certas veracidades (auto)biográficas. As nossas
ações surgem continuamente a partir do nosso começo – as quais, às vezes, nos leva a
um novo (re)começo...
Com isso, Flávia percebeu constituir-se em um paradoxo, dividida entre a
militância da qual faz parte e que busca valorizar os saberes dos/as professores/as e a
experiência dissimétrica que também a acompanha por estarserter, presenciar por tanto
tempo como aluna de práticas amortecedoras, silenciadoras. Contudo, lembra-se das
oportunidades de diálogo e (com)partilhamento no FALE e GEPPAN, sentindo-se,
assim, mais valorizada e confiante. E é nessa dinâmica de refletir sobre o vivido que
observaremos a seguir a sua narrativa, com a qual (re)aprendemos olhar para si como e
enquanto o outro (NÓVOA, 2010). Este relato surgiu a partir de algumas conversas e
revela um momento no qual percebemos as histórias de vida se confluindo com a
docência, perpassando os desafios e imprevistos surgidos neste processo de viver, fazer,
ser, estar sendo em uma continuação de seu começo, como sujeitopraticanteprofessora.
A escolha pela profissão docente se deu muito cedo em minha vida. Aos quatorze
anos, descobri que no magistério não havia todas as físicas e químicas que me
tiravam o sono e pensei ser muito tranqüilo estudar matérias para aprender a
lecionar no ensino fundamental, mas aí começou o estágio... A primeira escola em
que fiz o estágio ficava no Rio Comprido. (...) Logo no primeiro dia, as garotas do
quinto ano, turma na qual iria atuar, resolveram se reunir para bater em um grupo de
normalistas no qual eu estava incluída. Fiquei apavorada, mas no dia seguinte voltei
àquela escola com a crença de que se nos conhecêssemos melhor talvez esse malestar pudesse se desfazer. Então fui e, para minha surpresa, a professora da quarta
série havia faltado. Era dia de prova e os alunos não poderiam ser liberados. Quando
me dei conta, estava parada em frente a uma turma com pessoas da minha idade, um
bolo de papéis na mão e pedindo para que todos sentassem em fila única. Então, só
para relaxar resolvi pedir que relatassem sobre o melhor e o pior dia da vida deles.
Assim ficamos eu e a chefe do grupo da pancadaria, frente a frente, quando ela me
disse: “O melhor dia da minha vida foi quando eu porrei uma menina no baile até ela
sangrar toda!”. Perguntei: “E o pior? Ela disse: “Foi quando minha mãe morreu, eu
tinha seis anos, tive que morar com a nova família do meu pai e lá eu apanho e
trabalho muito.” Ficamos cerca de cinco segundos nos olhando fixamente até que eu,
triste e assustada com a história, lhe disse: “Sinto muito! Gostaria que nada disso
tivesse acontecido com você!”Encerramos a dinâmica e apliquei a prova. Quando a
aula acabou, ela me chamou. Pensei que levaria a maior surra da minha vida, mas a
menina chegou perto e apenas perguntou: “Aquilo que você falou, de não querer que
estas coisas tivessem acontecido, era sério?” Respondi: “sim, claro!” A partir deste
dia essa menina se tornou minha defensora na escola. Nós quebramos a barreira de
mundos diferentes a partir do que nos era singular - nós duas - seres humanos,
suscetíveis, firmes e frágeis, cada uma a seu modo, com suas experiências singulares.
(...) Foi a partir desta experiência que comecei a entender a complexidade de ser
professora, e a buscar me tornar uma; o que exige, além de todos os saberes, uma
capacidade específica: a de estar inteiro no que se faz, buscando a dimensão humana
5
desta prática, ouvindo o outro, o sentido e me permitindo crescer com o outro
(CASTILHO, professora alfabetizadora).
As implicações desta experiência narrada evidenciam a busca de Flávia pela
singularidade, pelo diálogo, entendido, em uma perspectiva bakhtiniana, como
comunicação por meio da diferença, reconhecendo e valorizando a alteridade presente
em todos os níveis de relações humanas, porque
viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o
momento tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto de
reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. A razão ética da
abertura, seu fundamento político, sua preferência pedagógica; a boniteza
que há nela como viabilidade do diálogo. A experiência da abertura como
experiência fundante do ser inacabado que terminou por se saber inacabado
(FREIRE, 1999, p. 153).
É por meio dessa narrativa que percebemos um mo(vi)mento de despir memórias
cheias de traços que sublinham a capacidade formadora das confrontações da vida
cotidiana, das contrariedades sofridas, das revoltas declaradas (DOMINICÉ, 2010, p.
87) – a formação de professores/as, homogeneamente, não se processa em um caminho
de horizontalidade, afetividade, conjugado com porém julgado por. Evidencia-se, neste
breve relato de Flavia, como o sistema da escola pública é incipiente, arriscado,
improvisado. O preenchimento de uma vaga que não é sua revela o descompromisso
com os sujeitos envolvidos na/da/com a escola, mas também abre possibilidade de um
crescimento ímpar, de se sujeitar, ter e viver com e para desafios.
Por conseguinte, o caminho perseguido pela memória de Flávia abre novas
passagens de (aproxim)ações para/com a sua prática hoje, como docente. Desta forma,
nos colocamos com a narrativa no lugar de intérprete, para sublinharmos o
distanciamento do texto em relação à experiência (não pode introduzir-se toda a
experiência da formação numa narrativa) (...) e o sentido da transformação
pressuposta em toda a experiência de formação (CHIENÉ, 2010, p. 133), onde as
reflexões surgem como escolhas, das quais Flávia se debruça para melhor compreender
a sua opção pela carreira docente hoje - um continuum de desafios formativos...
Na continuidade de nossos diálogos cotidianos, compartilhamos agora uma
narrativa que nos ajuda a crescer e a refletir sobre nossa prática. Este relato foi narrado e
experienciado pelo grupo no I FALE, em 2007, criando condições para que o outro se
faça autor de si mesmo (NÓVOA, 2010) e nas quais a professora explicita sobre a sua
opção pela docência:
Eu não gostava de ir para escola, chorava, atrapalhava minha família toda, minha
mãe tentava me consolar, de um lado eu não conseguia ver o prazer que aquele lugar
poderia ter na minha vida. Isso se arrastou até a quarta série e aí, repeti o ano, fui
reprovada, minha mãe se desesperava porque ela não conseguia me ajudar nas
tarefas de casa, eu me desesperava junto, era um “trelelê” porque as coisas não
caminhavam e na escola também. Depois de ter sido reprovada novamente na quarta
série, eu tive uma professora que dizia assim: confia em você, confia no que você
sabe, ponha no papel porque você sabe muita coisa! E eu tinha isso internalizado eu
não sabia expressar quando eu estava nesta fase de alfabetização e primeira série...
Eu sabia que sabia, mas não sabia me expressar da maneira que a professora queria,
pedia... E na prova eu tirava sempre nota baixa. E quando essa professora disse isso,
parecia ter tirado um peso de cima das minhas costas. E as provas eram diferentes, o
modo de ensinar era diferente, talvez fosse até o meu jeito de olhar, mas ela ensinava
de uma maneira diferente, eu ia pra escola bem, eu passei o ano bem. Daí pra frente
6
eu não fui mais reprovada. Mas aquilo que me fez lá atrás no início, eu tinha uma
fascinação por dar aula, eu não gostava de ir à escola, mas adorava dar aula. (...) eu
colocava minhas bonecas em roda e ia conversando com elas. Eu perguntava: “Por
que você não fez o trabalho de casa?” e eu passava horas brincando deste jeito. Esse
tempo passou e eu fui para a Escola Normal, fui trabalhar isso, continuei a aprender
muitas coisas (...) Eu estudava, mas aquela dúvida que eu tinha lá atrás quando era
criança, (por que a professora fazia deste jeito e não daquele?) continuava me
incomodando (VENÂNCIO, I FALE, 03/03/2007).
Optamos por reproduzir este trecho do relato da Ana Paula em função das
importantes in(ter)ferências estabelecidas no que tange à estreita relação entre as
experiências de vida, a formação e a opção de ser docente. O que o relato da Ana Paula
nos revela? O desejo de ser professora? A insatisfação por não ser vista/legitimada no
espaço da sala de aula? A consciência de saber que sabe, mas não conseguir alcançar o
que era esperado pela professora? O envolvimento e o desespero da família? A angústia
e o peso da reprovação?
A dialética entre o eu e a persona se encontrou muito cedo na existência de Ana
Paula, estudante que, desde a escolaridade obrigatória, estabelecia uma distinção entre o
seu mundo interior e o que deve fazer para satisfazer o seu papel de criança na escola
(JOSSO, 2010, p.75). A inquietação imposta por estas perguntas e assertivas sobrevém
do contato e relação presente densamente com/na realidade apresentada, que
não é uma coisa - uma situação, uma condição, um estado - que possa ser
vista, analisada e investigada “no que realmente” é; (...) porque as questões
feitas àquilo que chamamos de “realidade” são constituídas pela(s)
perspectiva(s) de onde olhamos e pensamos ser esta mesma realidade
(CORAZZA, 1996, p.115).
Seguramente, ao falarmos de formação e narrativas docentes constituintes do
espaço escolar, esbarramos, também, nas concepções aí permeadas no que tangem às
crianças, (suas) infâncias. A narrativa da Ana Paula discorre e critica o lugar da criança
compreendida na falta, nas carências, na negação, na constatação do que não sabe,
desconsiderando-a na perspectiva de suas potencialidades; uma concepção centrada no
ponto de vista adulto como efeito de fixidez normalizadora (MELLO, 2009, p.65) e da
qual Ana tenta romper. Porque ao normalizarmos, não questionamos sobre, correndo o
risco de que nossas crenças se traduzam em práticas centradas no professor e não
reconhecentes das crianças como outros legítimos (MATURANA, 1998).
Por que, talvez, nossas práticas resistem em considerar o erro traduzido e
travestido pela incapacidade que precisa ser atestada e não desexperienciada? Subverter
esses estigmas é o desafio de Ana Paula e dos/as tantos/as professores/as com os quais
dialogamos cotidianamente, dentrofora do FALE, pensando, nesse processo, que
encontrar o que o aluno sabe é tão importante quanto encontrar o que ele
não sabe, mas numa perspectiva de que ainda não sabe, o que afirma a sua
potencialidade para novas aprendizagens e a parcialidade de todo
conhecimento. O que ainda não sabe demarca uma síntese entre o
conhecimento e o desconhecimento, devendo ser um direcionador da
atividade pedagógica (ESTEBAN, 2001).
A discussão acerca do erro no âmbito escolar nos ajuda a pensar na nossa
inserção e relação com o que é e não é errado, entendendo o mo(vi)mento no qual ele
surge como processo de aprendizagem, onde alunos/as e professores/as erram, porque
estão sendo, aprendendo, errando, ensinando. Se o conhecimento é provisório e parcial,
7
também apresenta perspectivas e limites, com os quais poderemos nos lançar e nos
aventurar em novos caminhos, buscando novos conhecimentos e possibilidades outras
de atuar como professores/as.
E, desta forma, contando as nossas histórias, vamos esmiuçando nossas lacunas
e fragilidades, explicitando experiências, práticas e (des)conhecimentos (entre)cruzados
e cruzantes.
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