Doença Falciforme ESCOLA SUPERIOR DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INTERNATO – 6ª SÉRIE PEDIATRIA - HMIB Nicole Campos Coordenação: Dra Luciana Sugai e Dra Lisliê Capoulade www.paulomargotto.com.br Brasília, 24/4/2013 Caso clínico IDENTIFICAÇÃO: KAP, 12 anos, feminino, parda, estudante da 4ª série do ensino fundamental Peso: 30kg QUEIXA PRINCIPAL: “Dor abdominal há 2 dias”. CASO CLÍNICO HISTÓRIA DA DOENÇA ATUAL Acompanhante refere que paciente, portadora de doença falciforme, apresentou há 5 dias quadro de tosse seca e coriza. Há 2 dias, mãe relata início de dor abdominal e em membros inferiores, associada a icterícia e colúria. Nega febre e vômitos. Paciente, que faz acompanhamento no Hospital da Criança , compareceu a consulta hoje, com piora da dor e da icterícia, sendo então encaminhada para internação no HMIB. CASO CLÍNICO REVISÃO DE SISTEMAS: Nega febre. Nega acolia fecal e alterações no ritmo intestinal. Nega perda de peso e outras alterações na pele. ANTECEDENTES FISIOLÓGICOS: Nasceu de parto normal, a termo, sem intercorrências durante a gestação. Mãe relata atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Refere dificuldade de alfabetização. Mãe apresenta cartão de vacinação atualizado, constando vacinação para pneumococo. CASO CLÍNICO ANTECEDENTES PATOLÓGICOS: Diagnóstico de anemia falciforme com 1 ano de idade. Mãe relata várias internações anteriores por crises álgicas e pneumonia. Refere história de 3 AVEs anteriores, sendo o último em 2007, tendo como sequela dificuldade de movimentação de mão direita. Relata várias transfusões sanguíneas, com esquema regular de hemotransfusão de 21 em 21 dias. Nega cirurgias anteriores. Relata uso de contínuo de quelante de ferro, mas não soube informar qual. Familiares: Mãe, 35 anos, história de asma,G1P1A0 Pai, 34 anos hígido. CASO CLÍNICO AO EXAME FÍSICO: Paciente em bom estado geral, ictérica (3+/4), acianótica, normocorada, eupneica, ativa e reativa. ACV: RCR, 2T, BNF, presença de sopro sistólico em foco mitral (2+/6), ictus cordis visível e palpável no 5° EI, com 2 polpas digitais. Presença de batimento de fúrcula. FC 98BPM. AR: MV presente bilateralmente, sem ruídos adventícios, sem sinais de desconforto respiratório. Sat 02(aa): 95%; FR: 25irpm ABD: plano, flácido, ruídos hidroaéreos presentes, timpânico, dor leve a palpação, Murphy ausente, sem sinais de irritação peritoneal. Fígado palpável a 3 cm do rebordo costal. Baço palpável ao rebordo costal. EXT: boa perfusão, sem edema, dificuldade de movimentação em membro superior direito. QUAIS AS HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS PARA O CASO? Hipóteses diagnósticas Crise álgica Colelitíase Colecistite Crise hepática QUAIS EXAMES DEVEM SER SOLICITADOS? Exames complementares Exames solicitados: Hemograma Bioquímica USG abdominal TC de abdomen Eletroforese de hemoglobina Hemograma(admissão) ***** Eritrograma ***** ***** Leucograma ***** Hemácias: 3,09 x106/uL (4,50 - 5,50) Hemoglobina: 9,7 g/dL (13,5 - 14,5) Hematócrito: 27,4 % (40,0 - 50,0) VCM: 88,7 fl (82,0 - 92,0) HCM: 31,4 pg (28,0 - 30,0) CHCM: 35,4 g/dL (32,0 - 36,0) RDW: 14,9 % (12,0 - 17,0) Morfologia Hemácias: Anisocitose (Discreta) Policromasia (Discreta) Hipocromia (Discreta) Poiquilocitose (Discreta) Hemáceas em alvo (Discreta) Leucócitos 25,7 x103/uL (4,0 - 14,0) % 103/uL _________________________________________ Neutrófilos Totais: 56,0 % (30,0 - 64,0) 14,4 Metamielócitos: 1,0 % (0,0 - 0,0) 0,3 Eosinófilos: 0,0 % (1,0 - 5,0) 0,0 Basofilos: 0,0 % (0,0 - 3,0) 0,0 Monocitos: 3,0 % (2,0 - 10,0) 0,8 Linfocitos: 40,0 % (30,0 - 70,0) 10,3 Linfocitos Atipicos: 1,0 % 0,3 Eritroblastos: 2,0 / 100 leucócitos Plaquetas: 270 x103/uL (150 - 450) PCT: 0,204 % (0,120 - 0,360) MPV: 7,6 fl (7,2 - 11,0) PDW: 18,9 ratio (12,0 - 16,8) Resultados Eletroforese de hemoglobina: 43% de HbS; Contagem de reticulócitos: 22% Bioquímica 1° DIH GGT Amilase Bilirrubina total: 4°DIH 445 52 8,9 (BD 4,9/BI 4,0) 4,54(BD 2,1/BI 2,44) TGO 272 86 TGP 603 234 Creatinina: 0,3 DHL: 435 Ferritina: 8710 Fosfatase alcalina: 486 1311 USG de abdomen Laudo: FÍGADO homogêneo de volume aumentado (LD 13,5; LE 15,3), ecogenicidade periportal preservada, sem sinais de dilatação de vias biliares intra ou extra-hepáticas. Veia porta e hepáticas de calibres normais, veia porta medindo 0,79cm, colédoco medindo 0,64cm. VESÍCULA BILIAR de volume normal, presença de conteúdo ecogênico sem sombra acústica posterior. PÂNCREAS de volume normal homogêneo sem dilatação de Wirsung. BAÇO de volume aumentado para a idade (12,4cm) exibindo imagem anecóica sem fluxo ao Doppler. RINS: volume normal, relação cortico-medular preservadas e sem sinais de dilatação pielocalicial. BEXIGA: de volume normal,parcialmente cheia, sem conteúdo ecogênico. CONCLUSÃO discreta hepatomegalia, colelitíase com dilatação de colédoco distal, esplenomegalia e cisto esplênico. TC de abdomen TC de abdomen Tc de abdomen Laudo: Esplenomegalia com calcificação esplênica difusa; nódulo hipodenso subcapsular 18mm leve realce ao contraste, outro nódulo semelhante sem avaliação por realce em região superior do órgão, dois nódulos de natureza indeterminada. Provável lama biliar. QUAL O DIAGNÓSTICO MAIS PROVÁVEL? Diagnóstico Colelitíase Conduta Ceftriaxona Parecer para cirurgia pediátrica para a realização de colecistectomia e esplenectomia; Encaminhamento ao CRIE para atualização do cartão de vacinas. DOENÇA FALCIFORME Definição Grupo de alterações genéticas caracterizadas pelo predomínio da hemoglobina S. Hb SS (anemia falciforme) Hb C (SC) Interações com talassemias Hb AS (traço falcêmico) Epidemiologia 2001 - Plano Nacional de Triagem Neonatal, incluindo hemoglobinopatias; A anemia falciforme é a doença hereditária monogênica mais comum do país. 2 a 8% de portadores assintomáticos (traço falciforme) Epidemiologia PERFIL DEMOGRÁFICO DA DOENÇA FALCIFORME • Número de pacientes: conforme dados do PNTN, nascem no Brasil cerca de 3.500 crianças/ano com a doença ou 1/1.000 nascidos • Distribuição: prevalência mais alta nos estados com maior concentração de afro descendentes. • Recorte social: concentrada entre os mais pobres. • Taxa de mortalidade: 25% das crianças não alcançam 5 anos de vida se não tiverem acompanhamento médico adequado. • Mortalidade perinatal: de 20 a 50%. Cançado et al.Rev. bras. hematol. hemoter. 2007;29(3):203-206 Fisiopatologia Mutação no gene da hemoglobina S devido a troca do ácido glutâmico pela valina na posição 6 da cadeia beta. Polimerização da molécula em condições de baixa oferta de oxigênio. Fisiopatologia Manual de condutas básicas na doença falciforme, MS, 2006 Fisiopatologia Zago MA et al Rev. bras. hematol. hemoter. 2007;29(3):207-214 Quadro clínico Manifestações clínicas muito variáveis; Geralmente após 6 meses de idade; Dactilite (síndrome mão-pé); Crises álgicas de repetição; Infecções; Anemia; Icterícia. Manual de condutas básicas na doença falciforme, MS, 2006 Diagnóstico Triagem neonatal (teste do pezinho); Hemograma: anemia normo/normo; Reticulócitos aumentados; Esfregaço de sangue periférico: células em foice; Eletroforese de Hb: 80-90% de HbS; Teste de falcização positivo; Manual de condutas básicas na doença falciforme, MS, 2006 Tratamento Ambulatorial Emergência: manifestações da doença Tratamento ambulatorial Uso de ácido fólico (5mg/VO); Vacinação contra hepatite B, Haemophilus influenzae e antipneumocócica; Profilaxia com penicilina: Penicilina V oral: 3 meses – 2 anos: 125mg 2 x/dia 2 – 5 anos: 250 mg 2x/dia Penicilina Benzatina: 3 meses – 2 anos 300.000 UI 28/28 dias 2 – 5 anos: 600.000 UI 28/28 dias Tratamento ambulatorial Acompanhamento periódico: Hemograma a cada 4 meses; Função hepática e renal anualmente; USG de abdomen anual Ecocardiograma a cada 2 anos Exame oftalmológico anualmente em maiores de 10 anos Tratamento ambulatorial Outras terapias: HIDROXIURÉIA: aumenta a produção de hemoglobina fetal; Tratamento ambulatorial Transfusões sanguíneas: diminuir quantidade de hemoglobina S;* tratamento das complicações anêmicas severas; crise aplástica crise hiper hemolítica crise de seqüestração esplênica ) manuseio do acidente vascular cerebral; ) manuseio pré-operatório; ) doença pulmonar hipóxica progressiva. *Risco de hemocromatose: uso de quelantes de ferro. Pré-operatório Manual de eventos agudos em doença falciforme, MS, 2009 Colelitíase Litíase biliar: ocorre em 14% das crianças menores de 10 anos, em 30% dos adolescentes e em 75% dos adultos portadores de anemia falciforme; Geralmente assintomáticos,mas podem apresentar náuseas, vômitos ou sensação de empachamento; Cálculos radiopacos; Orientação: dieta pobre em gordura Colecistite: iniciar antibioticoterapia e encaminhar para colecistectomia. Síndrome torácica aguda Principal causa de mortalidade (2% em crianças e 5 % em adultos); Presença de infiltrado pulmonar: Infecção é a principal causa em crianças; Vasoclusão em adultos Síndrome torácica aguda Quadro clínico: febre, dor pleurítica, tosse e hipoxemia Principais agentes: Clamydia, Mycoplasma, VSR, pneumococo Tratamento: Oxigenioterapia Hidratação venosa Antibioticoterapia (Ceftriaxona) Broncodilatadores Síndrome torácica aguda Manual de eventos agudos em doença falciforme, MS, 2009 Crise álgica Responsável por 90% das internações Caracteriza-se pelo surgimento de dor óssea, torácica ou abdominal; Obstrução da microcirculação causada pelo afoiçamento das hemácias; Fatores desencadeantes: infecção, frio, estresse emocional. Diagnóstico diferencial: artrite séptica, osteomielite, abdomen agudo Crise álgica Investigar fatores de risco: febre, vômitos, icterícia, tosse; Solicitar exames complementares; Tratamento: Hidratação venosa; O2, se Sat < 92% Analgesia: em horários fixos: 1º)analgésico não-opiáceo/AINE+adjuvante; 2°) Opióide fraco+analgésico não-opiáceo/ AINE+adjuvante 3°) opióide potente+analgésico não-opiáceo/ AINE+adjuvante Acidente vascular cerebral Ocorre em 10% dos pacientes entre 5 e 20 anos; 22% dos pacientes apresentam infartos silenciosos Quadro Clínico: agudo, hemiparesia, alteração do sensório, afasia; Tc DE CRÂNIO Tratamento: Estabilização Hidratação venosa Transfusão sanguínea Sequestro esplênico Alta letalidade (10 a 15%); Vasoclusão dos sinusóides esplênicos com acúmulo de sangue, levando a hipovolemia; Crianças jovens (menores de 1 ano); Aumento agudo do baço; Tratamento: transfusão sanguínea; Após estabilização: esplenectomia (evitar em menores de 5 anos). Referências bibliográficas ACL, Tratado de Clínica Médica, 2ªed, 2009. Brasil. Ministério da Saúde. Manual de condutas básicas na doença falciforme / Ministério da Saúde, Editora do Ministério da Saúde, 2006. Brasil. Ministério da Saúde. Manual de eventos agudos em doença falciforme / Ministério da Saúde. Editora do Ministério da Saúde, 2009. Cançado et al. A doença falciforme no Brasil.Rev. bras. hematol. hemoter. 2007;29(3):203-206 Zago MA et al. Fisiopatologia das doenças falciformes: da mutação genética à insuficiência de múltiplos órgãos Rev. bras. hematol. hemoter. 2007;29(3):207-214