História, imagem e narrativas
No 5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br
Memória e Pioneirismo: batalha de narrativas em uma área de ocupação
recente em Mato Grosso*
Andréia de Cássia Heinst
Professora do Departamento de História da UNEMAT
[email protected]
Resumo: Em Mirassol D’ Oeste, a partir do final de 1980 e início de 1990 são produzidos, na própria localidade,
textos escritos, dirigidos especialmente às escolas do município, sobre a história da cidade, esses textos, utilizam um
modelo de história que cria e fixa a idéia de que o município é um lugar, que desde sua formação já nasceu
“predestinado” ao progresso. Portanto, procura-se questionar a construção de uma determinada memória e
identidade, situando-as no campo da invenção e não de uma essência presumida, desconstruindo um modelo de
escrita homogênea que se propõe contar a história da cidade, a partir de uma determinada memória: a do vencedor.
Palavras-chave: cidade, memória, progresso, pioneirismo.
*
Este texto é um fragmento da minha Dissertação de Mestrado “Pioneiros do século XX: memória e relatos sobre a
ocupação da cidade de Mirassol D’Oeste”, defendida em 2003 pela UFMT.
A cidade de Mirassol D’ Oeste está localizada a sudoeste do Estado de Mato Grosso,
numa distância de 329 Km da capital, Cuiabá, na microrregião do Vale do Jauru. A ocupação da
área de terras onde hoje se localiza a cidade, ocorreu a partir de inícios da década de 1960.
A partir do final de 1980 e início de 1990 são produzidos, na própria localidade, textos
escritos, dirigidos especialmente às escolas do município, sobre a história da cidade, as apostilas
municipais e dois livros publicados1. Nesses textos, inquieta e chama a atenção, o modelo de
história utilizado para criar e fixar a idéia de que o município é um lugar, que desde sua
formação já nasceu “predestinado” ao progresso. Suas terras são representadas como férteis e
produtivas e as pessoas apresentadas como pioneiras2 são consideradas aquelas que se
estabeleceram inicialmente na localidade. Tais pessoas são descritas, nesse discurso, como os
que trabalharam bem a terra, souberam aproveitar a fertilidade do solo, tornaram-se prósperos
proprietários, transformando a cidade também em próspera, portanto, são verdadeiros heróis.
Estes textos representam uma única visão sobre a história da cidade, fazendo uma leitura
linear do passado, historicizando as origens da cidade, chamando a atenção para as
potencialidades do local, e elegendo aqueles que são considerados os moradores pioneiros.
Os pioneiros são representados por essa história como os heróis que conseguiram através
de sua dedicação e trabalho transformar uma área de terras inóspitas em lugar próspero,
produzindo uma memória de vencedores e uma história de progresso.
Para essa produção escrita que tem como público alvo às pessoas que residem em
Mirassol D’Oeste, particularmente as que freqüentam as escolas, interessa instituir uma memória
de vencedores onde se destaquem os que se instalaram inicialmente na área destinada a
1
Apostilas Municipais: material didático, confeccionado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de
Mirassol D’Oeste em finais da década de 1980 e princípios da década de 1990, dirigido às escolas de primeiro e
segundo graus localizadas na municipalidade, constando informações sobre o histórico do município e, informações
gerais, tais como: dados geográficos, datas comemorativas importantes para o município, dados populacionais, etc.
Em meados da década de 1990, foram editados dois livros que fazem uma leitura sobre a “história da cidade ou
município” semelhante a das Apostilas Municipais. Logo estes passaram a ser utilizados em todas as escolas do
município, substituindo assim as chamadas Apostilas Municipais. O primeiro destes livros foi escrito por Ataíde
Pereira Leite que, na época em que escreveu e publicou seu livro: História Poesia, editado em 1995, estava
ocupando o cargo de prefeito do município. O segundo livro foi escrito por uma professora do município, Tereza
Dias Pereira, intitulado: História de Mirassol D’ Oeste: Formação e Organização do Município, 1962-1994, editado
em 1998.
2
Neste texto o termo pioneiro é pensado enquanto uma representação pela qual, mulheres e homens apresentam-se
para si e para os outros como sendo os que primeiro chegaram a localidade onde, atualmente, se localiza a cidade de
Mirassol D’ Oeste.
2
colonização e, obtiveram êxito financeiro/social. Pessoas que, em sua maioria, deslocaram-se do
Estado de São Paulo.
Assim, a cidade retratada por essa memória, lembrando as palavras de Ítalo Calvino, “(...)
é redundante: repete para fixar alguma imagem na mente”3, portanto, a mesma deve sua
formação aos pioneiros/heróis, que a transformaram de “cidade natureza em cidade urbana”4.
Partindo da idéia de que a história da cidade está indissoluvelmente entremeada à história
dos que são, por esta produção escrita, selecionados, como os que primeiro chegaram ao lugar e
que, com sua força e trabalho, conseguiram transformar uma área de terras inóspitas em lugar
próspero, esses textos produzem uma memória de vencedores e, fixam uma história de progresso.
Dessa forma, constrói-se para a cidade uma memória assentada em um tempo retilíneo,
contínuo e progressivo. Tempo do progresso, isto é, marca o local que identifica Mirassol
D’Oeste, como se nascesse para o desenvolvimento, uma vez que os personagens escolhidos para
fazer parte dessa memória e compor a “história” da cidade são pessoas que conseguiram
ascensão, seja social, seja financeira.
Essa produção escrita que se propõe a contar a história de Mirassol D’Oeste e que cria
para isso uma determinada memória, usando mais uma vez as palavras de Calvino, repete os
símbolos para que a cidade comece a existir5. O símbolo aqui é a figura do pioneiro paulista,
forte, trabalhador e vencedor. Essa figura é enaltecida nos livros, nas apostilas, no hino
municipal, nas comemorações municipais, nas datas comemorativas. Desta forma, falam em
nome de um passado, como se assim “fizessem crer e dessem a conhecer” a “história verdade”
de Mirassol D’Oeste. Uma história contada, que tem no passado de “progresso e
desenvolvimento”, seus autos de veracidade.
Sendo assim, nos textos que são produzidos a partir de finais da década de 1980 e
princípios de 1990 sobre a história da cidade, um determinado olhar para o passado é assumido
como a único possível de sua história.
Cabe, no entanto, ao historiador inquietar-se perante “laudos” que se apresentam como
verdades únicas e imaculadas e que, de quebra, trazem consigo, para afirmarem suas versões, um
3
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis.São Paulo: Cia das Letras, 1990, p.23.
PEREIRA, Tereza Dias. História de Mirassol D’ Oeste: Formação e Organização do Município, 1962 – 1994.
R.G.A. Gráfica e Editora Ltda, 1998, p.11.
5
CALVINO, Ítalo. Op.Cit., 1990, p.23.
4
3
passado entendido também como verdade e, portanto, história. Sobre esse ponto vale lembrar as
análises de Keith Jenkins. Para este autor: “(...) o passado e a história existem livres um do outro:
(...) O passado já passou, e a história é o que os historiadores fazem com ele quando põem mãos
à obra”6.
O passado torna-se tal qual a memória algo de disputa por grupos que querem estabelecer
uma certa versão do passado, a sua versão, para então instituir uma memória que atenda a
determinados interesses, pois: “(...) a memória coletiva é não somente uma conquista, é também
um instrumento e um objeto de poder”7.
Para tanto, os interesses que elaboram a produção escrita sobre a história de Mirassol
D’Oeste e que estabelecem um tipo de memória - a memória do vencedor - tomam como ponto
de partida aquele que deve fazer parte dessa memória: o pioneiro. Selecionam esses indivíduos
que, via-de-regra, têm uma história de ascensão sócia econômica e, ao mesmo tempo, excluem a
multiplicidade das experiências vividas quotidianamente pelas pessoas que fizeram parte da
chegada e vivenciaram o duro trabalho de abertura da área, tomando como parâmetro apenas o
par progresso/pioneiro.
Entretanto, existem outros relatos sobre quem são os pioneiros que deveriam fazer parte
dessa história e estar presente na memória de Mirassol D’Oeste. Assim, os relatos de memória de
pessoas que participaram dos tempos iniciais de ocupação apresentam outros atores como os
verdadeiros pioneiros e os que mais trabalharam. Nesse ponto, estabelece-se uma disputa em
torno das leituras sobre o passado e a história de Mirassol D’Oeste.
Essas leituras querem dar a crer e fazer-se reconhecer como verdadeiras, produzem o que
Michel Foucault aponta como “um combate pela verdade”, entendendo-se por verdade “o
conjunto das regras segundo as quais se distingui o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro
efeitos específicos de poder”8.
É necessário inserir a produção dessa memória, vista não apenas de forma localizada, mas
analisar a partir de coordenadas mais gerais, sobretudo no âmbito da produção de uma identidade
política e cultural para Mato Grosso.
6
JENKINS, Keith. A História Repensada, São Paulo: Contexto, 2001,p.25.
GOFF, Jacques Le, História e memória. Campinas: UNICAMP, 2001, p. 476.
8
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1998, p.13.
7
4
Neste aspecto, torna-se importante refletir que com a ditadura militar, palavras como
desenvolvimento e crescimento, especialmente econômico, circulavam freneticamente por todo o
país. Buscava-se por uma válvula impulsionadora de uma imagem do Brasil como “um país
predestinado a crescer e a se modernizar”. Naquele momento, era necessário que todos os
Estados fizessem ver e crer, para si e para o restante do país, que eram partes importantes e
integrantes de todo o território nacional, em consonância com o ideário político da nação:
segurança nacional, desenvolvimento e integração.
A preocupação em conclamar e instituir um passado de notável responsabilidade na
construção da história do país, é reforçada como missão histórica, pelas autoridades políticas
estaduais, especialmente depois da divisão do Estado, como no documento que se segue:
(...) Um Estado que renasce, pela responsabilidade de seu passado, é muito mais
difícil de administrar do que um outro que apenas nasce. O Estado de Mato
Grosso, mais berço da História do Brasil do que qualquer outro do Centro-Oeste,
está renascendo. Precisa reconstruir sua vida político-administrativa, refazer seus
compromissos e, sobretudo, preservar a história de seu povo, que, mesmo com a
divisão, os que ficaram no Estado do Sul, reclamam a sua origem. Inútil
inobservar tal fato, sob pena de ser julgado pela própria História, o governante que
ignorar esta realidade, porque, quando da proposição, pelo governo Geisel, para
mudar o nome do Estado de Mato Grosso do Sul, sua população foi unânime em
afirmar que precisava manter a tradição, responsabilidade dos dois estados de
Mato Grosso. (...)9.
O trecho acima aponta para uma enorme preocupação em firmar um passado para Mato
Grosso, que estabeleça suas especificidades – culturais, econômicas e sociais – e que
contribuíram ativamente pra a construção da história do território nacional.
Seguindo essa linearidade progressista, entra em cena uma produção escrita sobre os
municípios que compõem Mato Grosso e, necessariamente, é apresentado o histórico de cada
município sempre envolto por uma história de desenvolvimento. Buscam nas origens de cada um
a marca que dê significado a ele e ao papel que desempenha, contribuindo para a imagem do
Estado como grande produtor do país. A figura do pioneiro torna-se um ícone nessa construção.
Conseqüentemente, os pioneiros apresentados são sempre pessoas voltadas para o
trabalho com a terra. Essa história que busca as origens, para dar tons de verdade a certos
interesses do presente, encontra na figura do paulista o pioneiro mais ajustado aos interesses de
9
Revista AGROESTE. Cuiabá, 1982, p.49.
5
fixar uma história de progresso para o Estado. Sendo assim, elegem o paulista que se deslocou
para Mato Grosso como herdeiro dos grandes bandeirantes, responsáveis por seus locais de
origem, as regiões Sudeste/Sul, regiões, segundo tais discursos, mais desenvolvidas que os
demais Estados do país.
Este tipo de discurso dissemina-se nos quatro cantos do Estado e refletir-se-á diretamente
nos municípios que vão tomar como base uma história (suas histórias) sempre de
“desenvolvimento e progresso”, assentada na figura do “pioneiro”, que, em geral, é alguém de
outra localidade, ou seja, de outro Estado.
Várias produções escritas voltadas a difundir/fundir uma imagem e uma história
progressista dos “novos municípios” do Estado são postas em circulação, em todo o território
nacional, como o documento que se segue:
Quando viajamos e vislumbramos as cidades por onde passamos, nem sempre nos
ocorre pensar ou indagar sobre as pessoas que primeiro ali chegaram e puseram-se
a trabalhar como autênticos pioneiros e desbravadores. Nossa história nem sempre
fala, ou nada fala desses audaciosos e destemidos colonizadores. Enquanto isso a
história da colonização americana esta cheia de seus heróis e até filmes são feitos
para imortalizar suas imagens e memórias.
Mato Grosso, tem muito do oeste americano, (...)10.
O texto chama atenção, especialmente, à procura por pioneiros/heróis tal qual a história
da colonização americana. Existe uma necessidade de construir uma história para essas novas
cidades, ressaltando as potencialidades econômicas do local e, recheada de feitos grandiosos e
heróicos dos que são escolhidos e apontados por essa mesma história como pioneiros, os
primeiros a chegarem ao local.
Nesse sentido, a matéria acima traz uma preocupação com a ausência de figuras heróicas
na história recente da “ocupação” em Mato Grosso e reafirma o desejo de produzir novos heróis
para essa história. Essa figura, a do pioneiro/herói, não é única, não existe um único herói, tal
qual o modelo americano, necessitar-se-á de vários heróis.
Sendo assim, esses elementos serão encontrados/produzidos nas cidades criadas, por
exemplo, com a ocupação das áreas de terras do município de Cáceres em Mato Grosso, mais
precisamente. Nessas produções, a figura do pioneiro é envolta por uma aura mítica e profética.
10
Revista O POLICIAL. Cuiabá, 1979, p.24.
6
Esse histórico dos municípios vem sempre acompanhado de uma receita: ao difundir que
as inigualáveis potencialidades das terras em conjunto com a ação bravia dos pioneiros, geram o
progresso, tanto para a localidade como para os pioneiros, que em geral são do sul/sudeste do
país. Através de frases como: “(...) Os paulistas tiveram decisiva participação na formação da
Capitania de Mato Grosso”11, ou, “(...) A ação determinante de migrantes sulinos, gente afeita à
terra, (...)”12. Procura-se fazer crer que o local teve bom desenvolvimento porque seus pioneiros
são pessoas procedentes de locais “desenvolvidos” economicamente e de tradição agrícola. Esse
discurso dissemina-se em todo território estadual, especialmente, nos municípios de ocupação
recente como o de Mirassol D’Oeste.
A produção escrita do local apresenta uma “história” da cidade, de forma a destacar sua
origem e promover o enaltecimento de determinados atores, sempre paulistas. Pessoas que
alcançaram ascensão sócio-econômica, destacando seus feitos para conseguirem seu
enriquecimento e conseqüentemente o do município. Esta história apresenta-se de forma linear e
tenta construir, desde princípios do século XIX, o motivo do desenvolvimento com que Mato
Grosso foi contemplado e posteriormente Mirassol D’Oeste.
(...) A Capital mato-grossense com moldes de vida nativos do lugar, com
costumes adaptados de seu povo, ainda não se desenvolvia. Surge então, a procura
de migrantes do Brasil e de outros países. Pessoas que migravam com culturas
diferentes, com vida voltada para o ritmo europeu chega na cidade desestruturada
e começa e começa a questionar e a procurar meios para a mudança (...). As
pessoas, neste momento, começam a viver em regime semi-capitalista e passa
depois para o próprio capitalismo, onde todos são destinados a trabalhar,
conseguir desenvolver bens e aplicar seu capital(...)13.
Esse discurso reproduz e institui para a cidade a idéia de que, se não fossem os paulistas,
o Estado e conseqüentemente o município estariam desprovidos de desenvolvimento e ainda, a
saída do atraso em que se encontrava Mato Grosso perpassou pela colonização efetuada pelo
paulista. Seguindo as artimanhas do texto, os paulistas transformaram o Estado de “matériaprima em pedra preciosa”, integrando-o ao restante do país, civilizando-o, modernizando-o.
11
Fascículo número 87. Projeto Memória Viva. Fundação Júlio Campos. Várzea Grande – MT, junho 1994, p.03.
Idem, p.03.
13
PEREIRA, Tereza Dias. Op.Cit., p.10.
12
7
Nesse sentido, através dos textos sobre Mirassol D’Oeste cria-se uma memória para a
cidade calcada na idéia do pioneiro/paulista indissoluvelmente ligada ao progresso. Apresentamse os chamados pioneiros como as pessoas que chegaram primeiramente ao local e com sua força
e coragem conseguiram “desbravar heroicamente” o “sertão” que lá existia.
Para a produção escrita local é importante demarcar de onde vieram os que formaram a
cidade, portanto, é significativo destacar especialmente que vieram de São Paulo:
“(...) No ano de 1962 inicia a colonização mirassolense com a percussão dos
pioneiros paulistas e migrantes de Mirassol, São José do Rio Preto, Jales, Tanabi,
Fernandópolis, Votuporanga, Santa Fé do Sul e outras cidades da mesma região
do Estado de São Paulo”14.
Ao se referir aos paulistas, a autora tenta assinalar com supostas evidências históricas as
características e as conquistas dessa gente da qual se pretende descender: “Evidentemente que a
tradição dos paulistas, como bandeirantes, caracterizou sobremaneira a colonização de várias
regiões do Estado de Mato Grosso, dentre elas, a Grande Cáceres”15.
Essas pessoas eleitas para fazer parte da memória da cidade, em geral, são pessoas bem
estruturadas econômica e socialmente. Entretanto, repetir incansavelmente uma mesma
afirmação, silenciando outros personagens é uma forma de dizer o que se pensa a respeito dos
que não aparecem no discurso e afirmar uma postura sobre o que se deseja tornar visível,
perpetuando algo. Essa é certamente uma maneira de expulsar da memória qualquer um que se
diferencie do modelo esperado, que é o do pioneiro trabalhador pobre que chega e com muito
esforço, dedicação e disciplina consegue trazer progresso à localidade e tornar-se próspero
proprietário.
O silêncio, neste caso fala. Fala sobre o que se pensa e como se age perante o outro, o
diferente, o pobre, aquele que não é paulista, que não ficou rico e não representa uma boa
imagem da cidade.
Assim, estes textos se ocupam de uma história linear, ou seja, desde os tempos iniciais da
cidade, descrevendo em tom heróico a saga dos que são reconhecidos por estas leituras sobre a
14
Ibidem, p. 10.
LEITE, Ataíde Pereira. História e Poesia. Gráfica e Editora Pe. Berthier dos Missionários da Sagrada Família,
1995.p.09.
15
8
formação da cidade como os pioneiros, apresentando-os como aqueles que, com muito trabalho,
ao mesmo tempo em que angariavam bens materiais, construíam e transformavam o local em
próspero e vencedor. Nota-se que os discursos, estão sempre representando interesses de um
determinado grupo, nunca são discursos neutros, sem intenção alguma, pois: “(...) produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de
outros, por elas menosprezados (...)”16.
Dessa maneira, os textos sobre a história de Mirassol D’Oeste, que instituem uma
memória vencedora, ao selecionar, eleger e apresentar as pessoas de determinados segmentos
sociais, simultaneamente elegem e selecionam também os que não serão incluídos, os que na
visão desses grupos têm uma história de derrotas, são perdedores, pois, não conseguiram
construir no “novo lugar” uma imagem de sucesso financeiro. Portanto, não podem ser
apontados como os formadores de uma cidade que precisa passar para si (seus moradores) e para
os outros uma história de progresso.
Esses textos instituem uma memória vencedora, excluem uns e enaltecem alguns outros
personagens, porque entendem que alguns representam a melhor imagem de uma cidade que
precisa afirmar-se como aquela que oferece muitas oportunidades. Necessitam apresentar uma
história sempre direcionada para o futuro.
A produção escrita que retrata uma história oficial sobre a cidade constitui um modelo de
explicação que estabelece uma imagem homogênea da cidade de Mirassol D’Oeste, negando,
excluindo, omitindo tudo que escapa a esta linearidade progressista.
A experiência vivenciada nos primeiros momentos da abertura das terras dessa área da
cidade focalizada, ainda que re-significada pelas experiências do presente, emerge nos relatos de
memória como uma ruptura. Ao rememorarem e contarem suas experiências vividas juntamente
com o acontecer da cidade, os relatos de memória apontam para a descontinuidade e
multiplicidade de uma história que se quer ininterrupta e homogênea.
Assim, os que não aparecem nos livros e apostilas municipais escritas sobre a cidade
afirmam-se pioneiros, relembram e narram determinados fatos que lhes ocorreram no desejo de
16
CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. RJ: Editora Bertrand Brasil, S.A.p. 17.
9
valorizar suas pessoas. Estabelecem aí uma forma de luta para tentar ser visto e reconhecido
como importante na história da cidade.
Para isto, nos relatos de memória, sobre o período inicial de ocupação da área de terras
em Mirassol D’Oeste, mulheres e homens vão estar o tempo todo fazendo apropriações do
discurso vencedor, enaltecendo suas pessoas, apresentando-se e representando-se como o que
primeiro chegou no lugar e o que mais trabalhou, merecendo desta forma o reconhecimento
devido, como expressa o relato de memória de dona Preta:
(...) Olha eu trabalhei ali naquele lugar, foi onde criei meus filho, ali no sítio.
Trabalhei que nem uma condenada (...) Sozinha, eu e meu filho mais velho que
tava com oito anos. Agora, que força tem uma criança com oito anos? (...) a
primeira mulher que entrou aqui fui eu e a finada mãe, só que, faz vinte anos que
minha mãe faleceu (...)17 .
Dona Preta é uma pequena proprietária de terras, contudo, em seu relato ela se apresenta
como alguém que, naquele lugar, adquiriu o lote de terra e trabalhou como ninguém. Nesse
ponto, ela reforça em sua fala o fato de ter sido ela quem efetuou a abertura das terras de seu lote,
talvez por entender que essa tarefa é tida como uma tarefa masculina. Assim, isto a habilita a se
afirmar como sendo a primeira mulher sem marido a chegar nessa área de terras. Ou seja, ela se
impõe como pioneira, pois, segundo seu relato, possui as qualidades de um pioneiro reconhecido
como o que primeiro se estabelece em um determinado local e sobrevive com a força de seu
trabalho. Portanto, ela se coloca como no direito de fazer parte da memória de Mirassol D’Oeste.
Isso aponta para o poder e a sedução da memória, em que, “o narrador poderá manejar histórias,
inventar e desinventar, fazendo a trama da vida existir como drama ou comédia”18.
Notamos que uma batalha é travada entre os vários grupos, na intenção de tornar
verdadeiras as suas versões sobre a história de Mirassol D’Oeste e fazer-se visível para si e para
os outros como aquele que tem a “verdade”. Segundo Bourdieu, essas lutas são: “(...) pelo
monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a
17
Entrevista com Dona Preta em sua residência em Mirassol D’Oeste em 2000.
GROSSI, Yone de S. & FERREIRA, Amauri C. Razão narrativa: significado e memória. In: História Oral –
Revista da Associação Brasileira de História Oral, v4, n.4,jun-2001, p. 31.
18
10
definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e desfazer os grupos
(...)”19.
Em Mirassol D’Oeste, de um lado os eleitos como pioneiros pelos textos escritos sobre a
história da cidade representam-se e apresentam-se como sendo os únicos formadores da cidade.
Já os que se dizem excluídos dessa memória coletiva, em contrapartida expõem-se como “reais”
pioneiros, e os que mais trabalharam na construção da cidade. Diante das diversas versões
produzidas sobre a história da cidade, Montenegro diz: “(...) Fica estabelecido o confronto, ao se
demarcar o campo de quem diz, de quem conta; a maneira de contar é a própria afirmação de
uma representação que é particular de um grupo (...)”20.
Para a produção escrita sobre Mirassol D’Oeste, todos os chamados pioneiros da cidade
são paulistas. Dona Preta também veio de uma cidade do estado de São Paulo, Populina,
entretanto, ela não está inclusa na lista dos que são denominados “pioneiros”. Por essa razão, ela
se arma de “provas”, e reclama para si um posto de pioneira:
(...) Eu cheguei aqui em abril de 60/61, (...) é, no tempo que eu falo (...). A ponte
de Cáceres estavam fazendo, não tinha terminado quando nós passamos de
mudança. (...). A mudança nossa passou de balsa. Olha, a gente tem que enfrentar
dureza, viu (...). Pois é, no documento ta 63, né? Mas eu cheguei antes, cheguei
antes (...). Aqui era puro campo, ninguém, ninguém. Depois que eu vim, daí uns
tempo chegou a dona Lázara, depois chegou o povo do finado Cezário. Mas o
povo do finado Cezário chegou um ano depois do começo (...). Olha, nós
sofremos (...). Ah, não, basta dizer, desminto qualquer um se falar que chegou
primeiro que eu, porque a primeira estiva das duas pontes foi eu que tirei com
esses braços magro, foi eu que tirei para o primeiro jipe passar(...), é foi difícil, foi
difícil. E aqui chovia muito criatura, chovia (...). Você conhece o Elias Preto? Pois
é, ele e o finado Agenor, meu irmão, é que fizeram essas ruas tudo no braço, eles
colocaram o finado Cezário como fundador, o Cezário chegou por último de nós.
Era para ser ele meu irmão (...). Mas, nós morava no sítio e o Benedito Cezário
chegou e acampou aqui na rua que já tava aberta. Fizeram lá uma tapera e
entraram dentro, aí foi aumentando até fazer uma casa (...)21.
Dona Preta recebeu um certificado de pioneira emitido pela Prefeitura Municipal de
Mirassol D’Oeste, constando que chegou nessa área de terras em 1963. Ela guarda esse papel
19
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel,1989. p.114.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3ª ed. São Paulo:
Contexto, 1994, p.58.
21
Ibidem, entrevista com dona Preta.
20
11
com muito cuidado e mostra quando lhe perguntam se foi uma das primeiras a chegar no local.
Ela guarda o papel, mas não se rende totalmente a ele. Guarda-o como o único “reconhecimento”
que as autoridades lhe conferiram, porém, sabe que a construção da ponte sobre o Rio Paraguai
dando acesso direto ao que viria a ser o município de Mirassol D’Oeste, é anunciada como um
acontecimento importantíssimo na produção da memória da cidade e para a história política do
estado.
Ela tem conhecimento que a construção da ponte é apresentada como um divisor de águas
que possibilitou a vinda dos colonos para a localidade, promovendo “o rápido progresso” da
cidade22. A ponte sobre o Rio Paraguai é anunciada pelos representantes da cultura dominante
como um “marco” na história da formação da cidade: “(...) Em 1961, o governador de Mato
Grosso, Dr. JOÃO PONCE DE ARRUDA, inaugurava a ponte Mal. Rondon, sobre o Rio
Paraguai, o que veio facilitar aos bandeirantes paulistas a ultrapassarem suas margens, dando
inicio à grande arrancada colonizadora desta vasta Região (...)”23.
Homens e mulheres que não são citados como pioneiros nesses textos escritos também se
apropriam da imagem que a ponte tem para a memória da cidade e fazem dela, lembrando
especialmente desse detalhe, a ponte. Dona Preta, por sua vez, afirma que a construção da ponte,
quando ela foi para o local, ainda não tinha sido concluída, estavam fazendo, não tinha
terminado. Nesse ponto, seu relato desmistifica o certificado de pioneira que lhe foi outorgado,
demonstrando o que Montenegro analisa sobre a relação nem sempre similar entre as “versões”
dominante e popular de um determinado fato, atestando assim: “(...) a complexa formação da
historicidade popular, onde o imaginário se constrói a partir de um conjunto de determinações
que nem sempre se atrelam as versões dominantes da história oficial (...)”24.
Nesse sentido, a fala de dona Preta é de combate, pois o que profere é que tanto o
certificado que recebeu como os textos sobre a história da cidade não levam em consideração as
experiências de pessoas como ela, afirmando: “Ah, não basta dizer!”. O dizer, significa o que a
produção escrita diz no papel, elegendo algumas pessoas como pioneiras e nem sequer fazendo
menção a pessoas como ela. Assim, ao reforçar em sua fala que, quando chegou em Mirassol
22
Cf: FERREIRA, João Carlos Vicente. Mato Grosso: política contemporânea, 1993. Edição: Grupo Futurista de
Comunicação e MB – Vídeo Gráfica. Abril de 1993.
23
LEITE, Ataíde Pereira. Op.Cit., p.10.
24
MONTENEGRO, Antonio Torres. Op.Cit.,1994, p.85.
12
D’Oeste, a ponte não havia sido concluída ela quer dar a crer e fazer reconhecer que foi a
primeira mulher a aportar nessa área de terras e, alerta: desminto qualquer um se falar que
chegou primeiro que eu.
Quais são essas pessoas que ela desmente? Certamente as que foram escolhidas para
fazerem parte da memória de Mirassol D’Oeste e que têm seus nomes inscritos nos textos que
circulam pela cidade. Ao relembrar os nomes das pessoas que chegaram depois dela: (...) Lembro
desses que falei, o finado Cezário com a família dele, o Durvalino também demorou um pouco
pra chegar (...). Ao falar do trabalho de seu irmão na abertura das ruas, Dona Preta se apropria
do discurso vencedor e faz uso das mesmas estratégias utilizadas por este, apresentando, o que
para ela são as provas de que foi ela, juntamente com sua família, a primeira a chegar àquela área
de terras.
Dona Preta sabe que as pessoas reconhecidas como pioneiras nos textos escritos sobre a
história da cidade são pessoas bem estruturadas econômica e socialmente, por isso reclama uma
atenção das autoridades políticas, que para ela seria dar-lhe “uma data, [lote urbano], melhor”
para construir sua casa.
Portanto, dar-lhe pelo menos um lote urbano com uma boa localização na cidade significa
o reconhecimento político para com sua pessoa, porque ela se reconhece como uma pioneira.
Neste ponto, está concentrado toda tensão da luta por fazer parte de uma memória elitizada,
homogênea, triunfante.
Desse modo, os relatos de memória de pessoas que participaram do processo de abertura
da área de terras onde se localiza a cidade de Mirassol D’ Oeste, representam um ponto de
“erosão” nesse discurso vencedor que ser quer absoluto, demonstrando assim que o tempo da
história, que é o tempo do vivido, “(...) não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo
saturado de ‘agoras’”25.
Entretanto, é bom que se diga que esses relatos de memória que narram experiências
sobre a abertura dessa área de terras trazem leituras dessa ocupação. Assim como a produção
escrita sobre a história da cidade apresenta uma certa interpretação de verdade, esses relatos de
memória não encerram, por expressarem as experiências vivenciadas no período inicial da
25
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras
escolhidas. 3ª. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.229.
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abertura, a real história da ocupação, pois experiência é “uma história do sujeito” que narra e
“não evidência autorizada”26.
Referencias Bibliográficas
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cultura. Obras escolhidas. 3ª. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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Fontes
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Futurista de Comunicação e MB – Vídeo Gráfica. Abril de 1993.
LEITE, Ataíde Pereira. História e Poesia. Gráfica e Editora Pe. Berthier dos Missionários da
Sagrada Família, 1995.
26
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Regina (orgs). Falas de gênero: teorias, análises, leituras, Florianópolis: Ed. Mulheres, 1999, p.27.
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PEREIRA, Tereza Dias. História de Mirassol D’ Oeste: Formação e Organização do
Município, 1962 – 1994. R.G.A. Gráfica e Editora Ltda, 1998.
b) Revistas
Revista Agroeste, ano II, nº 11, Cuiabá, jan-fev, 1982.
Revista O Policial, ano I, nºs 1 e 2,Cuiabá, set-1979, 1980.
c) Projeto Memória Viva (Fundação Júlio Campos)
Fascículos nº 87.
d) Relato Oral
Leonina Longoni Oliveira (dona Preta), Mirassol D’Oeste, 2000.
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Memória e Pioneirismo: batalha de narrativas em uma área de