CAPÍTULO 1 O LÚDICO NA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO SOCIAL: DA PRÉ-HISTÓRIA AOS DIAS ATUAIS 1.1 O LÚDICO NA PRÉ-HISTÓRIA A era pré-histórica é o período que compreendeu entre o surgimento dos primeiros homens, há aproximadamente um milhão de anos, e os primeiros registros escritos, datam de 4.000 a.C. Estudos sobre o homem primitivo, respaldadas em análises de pinturas e desenhos encontrados nas paredes das cavernas, denominadas de registros rupestres ou através dos elementos que o homem primitivo usava para fabricar ferramentas, armas e utensílios, confirmam que o homem pré-histórico já brincava, já que registros de brinquedos infantis provenientes de várias culturas que remontam a épocas pré-históricas, foram encontrados, ratificando a ação ( MODESTO, 2009). De acordo com Huizinga (1971, p. 07) “nas sociedades primitivas as atividades que buscavam satisfazer as necessidades vitais, as atividades de sobrevivência, como a caça, assumiam muitas vezes a forma lúdica”, mostrando assim que o ato de brincar é inerente ao homem, em especial, na fase da infância que as brincadeiras são consideradas como conduta espontânea e nas crianças. Modesto (2009) ressalta ainda que ao nascer, a criança tem o seu próprio corpo como objeto referencial para as atividades lúdicas e os corpos do pai e da mãe não ficam fora dessa ação. O autor complementa que o homem é um ser que produz cultura e cria história, sendo esta passada aos seus descendentes, mas isto restringe a sua ação no mundo. Pois sua capacidade de inventar, de imaginação o leva a estar sempre superando seus limites, buscando novos desafios e obstáculos. Estudos realizados pelo autor acima mencionado sugerem que muito antes do surgimento do ser humano, o lúdico esteve presente, principalmente no mundo dos animais, haja vista que o ato de brincar não apareceu com a origem do homem, como alguns autores acreditam. Conforme Huizinga (1971, p. 03): Os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou características essenciais a ideia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções encontram-se presentes todos os elementos essências do jogo humano. Convidam-se (...); Respeitam a regra(...); Fingem ficar zangados(...). Huizinga (1971) afirma também que os outros animais, anteriormente à espécie homo sapiens, já tinham todo um ritual para brincar, seguindo para isto as noções de regra, convite, respeito e divertimento, mesmo que, irracionalmente. O autor supramencionado crê que o jogo e o brincar no mundo animal não se distinguem, não é uma “invenção” humana, não obstante, o homem ter dado relevantes significações ao ato de brincar, e sim um ato mais antigo que a cultura, visto que esta pressupõe sempre o humano. Pesquisas acerca dos primeiros homens relatam que os mesmos pertenciam à família hominídea, mais conhecida como australopithecos. Eram seres pequenos e cobertos por pelos, que ao longo do tempo passaram por mudanças físicas e mentais chegando a uma nova espécie humana, caracterizando-o como – Homo sapiens (MODESTO, 2009). As transformações físicas promoveram ao homem primitivo uma modificação na posição de quadrúpede para bípede, essa alteração refletiu na sua maneira de sobrevivência e defesa, já que, ao assumirem a postura bípede passaram a usar os braços e mãos, para recolher seus alimentos e segurá-los, podendo também se defender de seus inimigos com o ato de jogar pedras. A partir de então, o homem pré-histórico passou a evoluir, nesse quadro de evolução, iniciou a prática de atividades como: dança; aperfeiçoamento da caça; pesca; lutas que eram utilizadas como atos de sobrevivência. Tanto crianças quanto os adultos participavam dessa ação que excedia o caráter restrito de entretenimento e prazer natural. De acordo com Almeida (1988), a característica inerente da cultura dos povos préhistóricos jazia no jogo que fazia conexão com a educação que representava a sua sobrevivência. 1.2 O LÚDICO NA ANTIGUIDADE: EGÍPCIOS, GREGOS E ROMANOS. A História Antiga representa um importante recorte temporal, que compreende o período de 4.000 anos a.C até o ano de 476, onde surgiram as primeiras civilizações no Oriente como: a Egípcia, Grega e Romana, que tiveram importantes contribuições para o desenvolvimento social; assim como a concepção da escrita. De acordo com Cintra, Proença e Jesuíno (2010) uma nova organização social originou o conceito de cidade e promoveu mudanças no processo educativo que era comunitário e passou a ser realizado em escolas, atendendo as famílias tradicionais, estabelecendo uma educação intencional, voltada à preparação das crianças abastadas. Esta postura adotada pelos gregos apoiou-se na ideia de Platão1 (427-348 a.C), que defendia o processo de ensinamento, voltado aos meninos e meninas nos primeiros anos da infância, sob observações, por meios de jogos educativos com a finalidade de contribuir para a formação do caráter e personalidade das crianças (ALMEIDA, 2003). Além da importante contribuição de Platão sob o uso do lúdico e do esporte na formação do indivíduo e o início da educação para as crianças por volta dos sete anos de idade, a civilização grega contribuiu para o universo lúdico infantil com a formulação de brinquedos feitos de cerâmica e com um arco que rolava no chão, e que no ano de 400 a.C tinha seu valor reconhecido por Hipócrates2, que indicava sua prática como atividade física para o fortalecimento corporal (CARNEIRO, 2007). Deste modo, os jogos e as brincadeiras eram considerados pelos gregos, através dos conceitos de Platão, com valores educativos e morais iguais à cultura intelectual. Outros povos como os egípcios, os maias e os romanos também se utilizavam dos jogos como meio de aprendizagem para os mais novos, a partir dos ensinamentos passados pelos mais velhos, que lhes transmitiam - além do conhecimento - valores e normas dos padrões da vida social. (ALMEIDA, 1998) Tais contribuições foram constatadas com a descoberta de algumas ruínas encontradas em diferentes pontos da Europa que possibilitaram a observação do comportamento dos romanos em relação à utilização do lúdico. Sobre isto, Carneiro (2007) relata que as ruínas encontradas em Portugal e Espanha levaram à observação de que as atividades lúdicas realizadas pelos romanos não se restringiam à infância, mas também eram praticadas pelos jovens e adultos como: labirintos, jogo de damas, jogo do soldado. Ainda de acordo com a autora, a amarelinha, brincadeira que se difundiu por toda a Europa tempos depois, fora criada pelos soldados romanos para distrair as crianças por onde os mesmos passavam. Além disto, o jogo de bolinhas de gude, que nesta época usavam-se nozes, pedras e alguns grãos de cereais, também era constantemente praticado pelas crianças romanas. Estas e demais brincadeiras e jogos praticados na Antiguidade denotam a atribuição dada a estes “mecanismos” por esses povos, como fica evidenciado na observação feita pelos autores Cintra, Proença e Jesuíno (2010, p.230) ao inferirem que “No momento histórico 1 Importante filósofo grego da Idade Antiga. 2 Médico da Antiga Grécia, nascido em 460 a.C, considerado o “Pai da Medicina”. explicitado, pode-se perceber que as crianças tinham contato com a brincadeira como facilitador do aprendizado de conteúdos formais, para que pudessem aprender as obrigações sociais, tendo contato com o processo de produção”. Deste modo, este período da história marcado pelo importante desenvolvimento de grandes civilizações, demonstra a relação estabelecida pelas mesmas entre o indivíduo, esteja ele na fase da infância ou adulta, o lúdico e o aprendizado, indicando a importância que o lúdico teve para o desenvolvimento do homem enquanto ser social. 1.3 O LÚDICO NAS IDADES MÉDIA, MODERNA E CONTEMPORÂNEA. A Idade Média iniciou-se no Continente Europeu com as invasões bárbaras no século V, sobre o Império Romano do Ocidente. Esse período estendeu-se até o século XV, com a retomada mercantil e o renascimento urbano. A Idade Média é um período marcado pela economia rural, enfraquecimento comercial, hegemonia da Igreja Católica, sistema de produção feudalista e sociedade hierarquizada. Para Modesto (2009), a Igreja monopolizava a interpretação do cenário social, e para ela o homem tinha um destino espiritual; devia atentar-se para a salvação. Este sistema foi construído substituindo o arcabouço escravista da antiguidade. Com a queda de Roma a população sobrevivente foi para os campos, iniciando assim, a economia baseada na produção agrícola. O bem desta época era bastante disputado e este bem era a terra. Os senhores feudais entravam em disputas ferrenhas, já que quanto mais terras possuíam maior era a demonstração de poder, compreendendo, especialmente, o poder sobre os campesinos e suas plantações. Neste período, o sistema econômico, político, cultural e social sofreram transformações, visto que a zona rural, diferente das cidades, não trazia progresso, sobretudo na arte. A cultura clássica dava assim espaço para a dominação da Igreja. As produções culturais e artísticas refletiam somente simplicidade e rusticidade do dia-a-dia dos indivíduos. A Igreja dominava a educação. A arte era/é uma das maneiras de demonstração do contexto no qual o indivíduo está inserido. Na Idade Média, a arte representava as crianças e o seu espaço na sociedade, estas eram tratadas como adultos em miniatura (MODESTO, 2009). Conforme Lauand (2006 apud ESPIRITO SANTO, 2012), na era medieval o homem defende o brincar, ou lúdico, haja vista que o associa ao contentamento lúdico da Sabedoria Divina demonstrada na obra da Criação: quando Deus criou o mundo com seus recursos e assentou os fundamentos da terra. Quatro pensadores medievais que apresentaram a visão lúdica para a educação são de acordo com Lauand (2006 apud ESPIRITO SANTO, 2012, p. 163). O primeiro deles é Alcuíno, considerado um dos homens mais eruditos de seu tempo, que, numa carta dirigida a um governante, afirma categoricamente que deve-se ensinar divertindo, buscando-se aguçar a inteligência dos jovens. Outro interessante exemplo pode ser encontrado em Petrus Afonsus, que por volta do ano 1100 inclui numa obra para formação do clero diversas anedotas para serem utilizadas na pregação. Também se observam indícios de educação lúdica no mosteiro beneditino de Gandersheim (por volta do ano 1000), em que uma monja chamada Rosvita, reiventa o teatro e introduz peças de caráter educativo. No entanto, é nos escritos de Tomás de Aquino que é possível encontrar importantes pistas que refletem o pensar lúdico da época, ainda que permeado por temas religiosos, como característica marcante da cultura medieval. Uma proposta educativa embasada em concepções lúdicas de aprendizagem é defendida por muitos pensadores medievais. A ludicidade era percebida como condição sine qua non para a vida e o convívio humano, um benefício. Contudo, esse benefício aprazível submergiu no decorrer dos séculos seguintes, de maneira de se desassociar o brincar/lúdico da aprendizagem, colaborando para tornar o processo de ensino-aprendizagem enfadonho e pouco desejável. A Idade Moderna ocorreu entre os séculos XV até XVIII. A sociedade moderna foi marcada pelo renascimento do comércio, das cidades, das artes e do aparecimento da nova classe social, a burguesia, resultando assim na extinção do feudalismo e início da idade moderna. O humanismo é considerado como uma das fases de estudo desse período, que contribuiu para ampliar e revolucionar a ciência e a arte. Com a revolução comercial nasceu também o capitalismo, que é caracterizado pelo desejo e procura de lucro (MODESTO, 2009). A partir dela, a Educação passa a ser um direito de todos assegurado pelo Estado, um dos ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa no século XVIII. Essa tarefa do Estado granjeou especial realidade na França, após a Revolução Francesa (1789). A escola tornou-se, então, não apenas uma importante construtora da nação francesa; bem como, passou a ser a entidade que garantiria uma certa conformidade entre os cidadãos e, daí, pelo merecimento, a grandeza de cada um. Entretanto, o lúdico nesse período existia de modo abafado entre as crianças, já que a recriminação dos adultos quanto a este artefato era acentuada nessa sociedade. Mesmo sendo rejeitados pelos adultos, o jogo, parte integrante e cerne da ludicidade, era o alicerce desta civilização e na maioria das vezes reconhecido na arena da vida, pois “era costume o homem comparar a vida a um palco, no qual cada homem desempenhava seu papel” (HUIZINGA, 2001, p. 8). Segundo Vasconcellos (2011), após o advento da Revolução Francesa e da influência de seus valores pelo mundo, o Lúdico passa a conquistar cada vez mais espaço em sala de aula. Miranda (1984) destaca a relevância das atividades físicas e lúdicas em países europeus desde o século XVIII. Fazendo uma retrospectiva a respeito do significado do lúdico para a humanidade em diferentes tempos, observa-se que tal simbologia teve interpretações diversas adequadas a cada momento vivido. Sobre isto, Vasconcelos (2006) observa que na Idade Média, o lúdico era considerado sagrado, um presente do Deus Ludens, sob a vertente renascentista passa a ter condição natural e humana; e nos dias atuais, é entendido como parte intrínseca do processo de desenvolvimento humano e de suas relações intra e interindividuais, sendo muito utilizado no processo educacional. Entretanto, para o autor, o lúdico encontra-se desde o século XIX, colocado em segundo plano, relacionado ao campo do lazer e passatempo no sistema nacional de ensino, em função do excesso de racionalidade e instruções adotado pelo mesmo. Buscando importantes mudanças no país, e já tendo tomado consciência de que um país só se constrói com educação, no final dos anos 1980, com a Constituição Federal (1988), a criança e o adolescente passam a ter seus direitos assegurados no Artº 227 onde se preconiza que “ é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade [...]”. Deste modo, nascem importantes discussões que criam novas diretrizes para a educação, priorizando o desenvolvimento individual e coletivo dos cidadãos, vendo como fundamental importância o investimento e a atenção dadas a educação, tendo como base a educação infantil. REFERÊNCIAS ALMEIDA, P. N. de. Educação Lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. 9ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998. __________. Atividade Lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. São Paulo, SP: Loyola, 2003. CARNEIRO, M.A.B. A infância e as brincadeiras nas diferentes culturas. Disponível:<http://www4.pucsp.br/educacao/brinquedoteca/publicacoes/index.html> Acesso em: 18 de abr.2015 CINTRA, R.C.G.G.; PROENÇA, M.A.M.; JESUINO, M. dos S. A história do lúdico na abordagem histórico-cultural de Vigotski. Rev. Rascunhos Culturais, Coxim/MS, v.1, n.2, p.225-38, jul./dez.2010. HUIZINGA, J. O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1971. MIRANDA, Nicanor. 200 jogos infantis. 9ª edição. Itatiaia Limitada. Belo Horizonte. 1984. MODESTO, R. D. de L. O lúdico como processo de influência na aprendizagem da Educação Física Infantil. 2009. Disponível em: http://www.eeffto.ufmg.br/biblioteca/1775.pdf. Acesso em: 17 abr. 2015. VASCONCELOS, M. S. Ousar brincar. In: ARANTES, Valéria Amorim (Org.). Humor e alegria na educação. São Paulo: Summus, 2006. VASCONCELLOS, Sheila. Uma breve História do Lúdico na Educação. 2011. Disponível em: https://ogastronomo.files.wordpress.com/2011/01/artigo-lc3badico-naeducac3a7c3a3o.pdf. Acesso em: 17 abr. 2015.