1 CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JATAÍ – CESUT ASSOCIAÇÃO JATAIENSE DE EDUCAÇÃO - AJE DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAS - DCJS FACULDADE DE DIREITO REVISTA JURÍDICA ANO 13 – VOLUME 1 – NÚMERO 16 JATAÍ - GO 2 2013 REVISTA JURÍDICA CONSELHO EDITORIAL 01. Evaristo Anania de Paula 02. João Geraldo de Souza Braga 03. Patrícia Machione de Paula Maggioni 04. Sirlene Moreira Fidelis 05. Soraya de Carvalho Ferreira 06. Alessandra G.Heronville da Silva 06. Flávia Simões de Araújo 07. Juverci Felício Vieira 08. Marcos José de Jesus Porto 09. Rubens Dias de Melo 10. Tiago Setti Xavier da Cruz SECRETÁRIA EXECUTIVA Viviane Alves da Cunha DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS - DCJS DIRETOR João Geraldo de Souza Braga Esta “Revista Jurídica” é produzida pelo Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais – DCJS, do Centro de Ensino de Jataí – CESUT, a partir da produção intelectual e temática de artigos, pesquisas, resenhas de livros e comunicações produzidos pelos professores, alunos e outros colaboradores. CONTATOS CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JATAÍ – CESUT DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS – DCJS FACULDADE DE DIREITO Rua Santos Dummont, 1.200, Setor Samuel Grahan, CEP – 75800-000 Telefone: (064) 2102-1050. Fax (064) 2102-1069 E-mail: [email protected] Jataí - Goiás 3 2013 ISSN – 1519-9770 REVISTA JURÍDICA, Jataí, GO, CESUT, v.1, nº 16, jan/jun, 2013 REVISTA JURÍDICA Periodicidade: Semestral JATAÍ CENTRO DE ESNINO SUPERIOR DE JATAÍ – CESUT Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais - DCJS 4 2013 CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DE JATAÍ – CESUT – 2013 “A reprodução total ou parcial dos artigos desta Revista Jurídica é permitida desde que citada a fonte. Ainda: as ideias e os conceitos emitidos nesta publicação são de responsabilidade total dos autos.” CESUT Rua Santos Dummont, nº 1.200, Setor Samuel Grahan. Cep: 75.804-045 Jataí-GO Tel.: (064) 2102-1050 Fax: (064) 2102 – 1069 E-mail: [email protected] COMISSÃO EDITORIAL Presidente = José Carlos Ribeiro Membros = 01. Alessandra G. Heronville da Silva 02. Flávia Simões de Araújo 03. Juverci Felício Vieira 04. Marcos José de Jesus Porto. 05. Sirlene Moreira Fidelis 06. Soraya de Carvalho Ferreira 07. Rubens Dias de Melo 08. Tiago Setti Xavier Cruz Secretária Executiva = Viviane Alves da Cunha Dados CIP = Biblioteca Central do CESUT, Jataí – GO ____________________________________________________________ REVISTA JURÍDICA, Jataí-GO; CESUT – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais, v. 1, 16, jan/jun, 2013. Periodicidade semestral I - CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS – Periódico 1 – Título _____________________________________________________________ Índice para catálogo sistemático = Direito Produção, Projeto Gráfico e Editorial Eletrônico José Carlos Ribeiro Revisão Ortográfica 5 José Carlos Ribeiro Normatização José Carlos Ribeiro SUMÁRIO 01. Editorial ............................................................................................. pág. 006 02. O Imposto sobre o valor agregado (IVA) no âmbito do Mercosul.... pág. 007 03. Vedação à prova ilícita no Processo Penal e sua Relativização......... pág. 015 04. Tutelas de urgência e evidência no projeto do novo Código de Processo Penal ........................................................................................................... pág. 027 05. A Ação de Demarcação de Terras Particulares: uma revisão de literatura ..... .................................................................................................................. pág. 054 06. Regime de Bens no Direito Pátrio ..................................................... pág. 085 07. Adoção no Brasil: análise crítica da nova Lei de Adoção – Lei nº 12.010 de 03 de agosto de 2009........................................................................... pág. 109 6 EDITORIAL O Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais – DCJS, em nome do Centro de Ensino Superior de Jataí – CESUT, coloca à disposição da sociedade jataiense e do estudioso da Ciência Jurídica mais uma edição da “Revista Jurídica”, desta feita o volume nº 1, edição de nº 16, açambarcando o semestre de janeiro a junho de 2013. Nesta primeira edição de 2013 da “Revista Jurídica” do CESUT, já notamos a presença de novos autores e a permanência de professores e alunos com artigos de análises importantes, contribuindo para o avanço de novos posicionamentos, inclusive, polemizando com aspectos bem instigantes a realidade jurídica brasileira, o que muito a enriquece. Este importante avanço é um estímulo importantíssimo àqueles que já estão visualizando e mentalizando novos artigos e novo estudo para as próximas edições. Portanto, o propósito precípuo da edição de mais uma “Revista Jurídica” é o de propiciar ao leitor alcançar superiores condições intelectuais, pensando e realizando, ampliando uma profícua visão de mundo e a inserir-se no mundo do trabalho, sendo, sempre, sujeito de si mesmo. Jataí, maio de 2013. João Geraldo de Souza Diretor Acadêmico do CESUT. 7 O IMPOSTO SOBRE O VALOR AGREGADO (IVA) NO ÂMBITO DO MERCOSUL Gerson Santana Arrais1 RESUMO: O MERCOSUL, via do Tratado de Assunción, que foi a sua certidão de nascimento, estabeleceu como um de seus objetivos pragmáticos uma integração legislativa com o intuito de harmonizar a política tributária dentro do bloco, a fim de que os outros objetivos se coadunassem com este. Dos quatro membros originários Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, somente o Brasil ainda não adotou uma postura legislativa condizente com os demais. A Argentina e Uruguai já haviam estabelecido o IVA em seus ordenamentos jurídicos tributários em tempos bem pretéritos à criação do MERCOSUL, já o Paraguai o fez alguns anos depois. Palavras-chave: Imposto sobre o Valor Agregado, Mercosul, Value Added Tax (VAT) - bloco regional. ABSTRACT: MERCOSUL, by means of the Asuncion Treaty, that was its birthday certificate, set up a legislative integration as a pragmatic target of its with intention of reaching a harmony about internal tributary policy, in a way that its other targets go with it. Among the originary members - Argentina, Brazil, Paraguay and Uruguay, just Brazil doesn’t still adopt a legislative position that go with the other members. Argentina and Uruguay ever had established the VAT on their tax law a longer time ago before MERCOSUL setting up, for other hand, Paraguay did it some years after. Keywords: Value Added Tax - MERCOSUL - Value Added Tax (VAT) regional bloc. 1. 1 DEFINIÇÃO DE IVA Graduado em Direito pelo CESUT, especialista em Direito do Trabalho e em Direito Penal Militar, mestre em Direito das Relações Internacionais, doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Buenos Aires UBA, Argentina, ex-professor de Direito Tributário da Faculdade Sete de Setembro - FASETE, de Paulo AfonsoBA, atualmente professor de Direito Penal e de Direito Financeiro no Centro de Ensino Superior de Jataí - CESUT, tradutor e intérprete em língua inglesa, atualmente é oficial da reserva remunerada do Exército Brasileiro. Proprietário do site jurídico www.arraisjuris.com.br. Link no CNPq / Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/3815454436957219. 8 O Imposto Sobre o Valor Agregado é comumente empregado em blocos regionais de cunho político, a exemplo da União Europeia que é uma forma de união política. Este tributo incide normalmente sobre as despesas com produtos e serviços realizados pelos contribuintes em geral. Como o próprio nome denuncia, o tributo recai sobre o valor “agregado” ou acrescentado à despesa realizada. Na União Europeia, recebe o nome de “Value Added Tax (VAT)”2. A ideia corrente do Imposto Sobre o Valor Agregado é voltada para a política antiga, aspirada por muitos países, tendente a implantar um determinado tipo de imposto único. É bastante difícil estabelecer propedeuticamente uma definição formal ou material para o IVA, mas, em linhas gerais, esta definição pode ser esboçada com uma singela explicação de sua ideia universal do campo de incidência do mesmo. Em tese, a ideia do IVA é não incidir (não tributar) sobre o fluxo econômico da produção ou do serviço, como ocorre na União Europeia. Isto implica dizer que o valor final do custo e da produção do produto ou do serviço, por parte do fabricante/produtor ou prestador de serviço, não seja tributado pelo IVA. Insta afirmar que somente o valor econômico adicionado ou agregado ao produto ou serviço seja tributado pelo IVA, quando este valor for agregado pelo distribuidor, vendedor, comerciante etc. Estes, logicamente, figuram na cadeia comercial e não na cadeia produtiva. Sobre este valor agregado ou adicionado pela prestação ou comercialização deve incidir o referido tributo. Carece de grande importância para o assunto em tela esclarecer que a essência material do IVA é a sua incidência sobre o consumo, e o consequente sujeito passivo é o consumidor. 2. O MERCOSUL E O IVA Os Estados membros do MERCOSUL, conhecidos como Estados-partes, são a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, todos em gozo pleno de suas soberanias dentro do bloco regional. Logicamente, não se levando em consideração os problemas enfrentados pelo Paraguai, orbitando os melindres políticos no desdobramento dos objetivos almejados pelo bloco, consideramos incluso no bloco, o referido Estadomembro neste contexto, obviamente, dada a importância da análise e investigação do IVA como foco central deste trabalho. 2 The Value Added Tax, or VAT, in the European Union is a general, broadly based consumption tax assessed on the value added to goods and services. It applies more or less to all goods and services that are bought and sold for use or consumption in the Community. Thus, goods which are sold for export or services which are sold to customers abroad are normally not subject to VAT. Conversely imports are taxed to keep the system fair for EU producers so that they can compete on equal terms on the European market with suppliers situated outside the Union. (http://ec.europa.eu/taxation_customs/taxation/vat/how_vat_works). Consulta em: 8 fev. 2013. 9 O MERCOSUL, atualmente, encontra-se na fase de união aduaneira, na qual foi adotada a Tarifa Externa Comum (TEC)3, apesar dos desencontros acerca da dinâmica em atingir os objetivos nesta área tributária. Paralelamente a essa instabilidade política e comercial no MERCOSUL, o Brasil, membro que mais se intitula “hegemônico” no bloco, é o único dos membros que ainda não adotou o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), conforme mencionado acima, que no mesmo, este tributo ainda se encontra em nível de projeto de emenda constitucional. 3. O IVA NA ARGENTINA A Argentina implantou o IVA (Impuesto al Valor Agregado) através da lei nº 20.631/75, anteriormente à sua integração regional no MERCOSUL. Atualmente, há um projeto de lei no Congresso Argentino objetivando operar modificações na Lei nº 20.631/754. Este projeto de lei, ao que nos parece, encontra-se prejudicado ou parado naquele parlamento. O projeto tinha como objetivo estabelecer uma alíquota única de 13% (treze por cento), a partir de uma redução final de aproximadamente 8% (oito por cento) da então alíquota. Atualmente, há diversas alíquotas definidas pela Lei do IVA argentino, conforme se infere dos dispositivos constantes do artigo 28 da citada lei. Na Argentina, o IVA alcança a venda e as importações de bens móveis, com algumas poucas restrições, obras, locações e prestações de serviços, bem como algumas prestações de serviços realizadas no exterior, nas condições esboçadas pelo artigo 1º da lei. Ainda em matéria de alcance ou de incidência tributárias relativas ao IVA, o artigo 7º da Lei nº 20.631/75 estabelece algumas exceções materiais como livros, folhetos, periódicos, revistas, selos de toda ordem, ouro cambial, moedas metálicas, incluídas nestas as forjadas em metal precioso, água comum para consumo, leite in natura ou em pó, pão comum, estes três últimos itens no caso se o adquirente for o consumidor final ou ente público, conforme estabelecido pelo citado dispositivo legal, transporte aéreo de passageiros, bem como transporte ou serviço prestado por aeronave ou embarcação pública e outros produtos e serviços. O que é intrigante neste rol argentino de exceções é a grande quantidade de itens que integram a lista de exceções ao tributo. A lista de exceções na Lei nº 20.631/75, ao que nos parece, é tão extensa que dá a entender que o campo material de incidência do tributo é inferior às exceções, tornando a indigitada lei pouco incidente concretamente no campo tributário interno argentino em relação aos demais tributos. Nota-se, salvo melhor juízo, que um imposto unificado no ordenamento jurídico argentino está longe de existir. 3 A finalidade prática da TEC (Arancel Externo Común - alínea c do art. 4 do Tratado de Assunção) é evitar a formação de reserva de mercado dentro do bloco. A TEC foi adotada pelo MERCOSUL desde 1995, com o objetivo de implementar a salutar competitividade comercial de seus membros. Em gênese, a TEC serve para estabelecer uma taxa comum dentro do bloco para importações por parte de seus membros. No âmbito do MERCOSUL, com o advento da TEC, alguns produtos ou serviços foram colocados em situação de transição pelos membros, como exceção à incidência da TEC, até que pudessem integrar a tabela definitivamente. Infelizmente, o que ocorre atualmente é que produtos nacionais que antes integravam a tabela da TEC vêm migrando para uma lista de exceções conhecida informalmente como “lista de convergência”. 4 Projeto com expediente nº 0979-D-2007 que objetivava, até 2011, reduzir a alíquota do IVA ao patamar comum de 13% (treze por cento) sobre a operação adicional (valor líquido). 10 O artigo 10 da lei argentina sobre o IVA estabelece a base de cálculo do referido tributo, como sendo de forma geral, o valor líquido da venda, da locação ou da prestação de serviço. Após uma análise acurada da lei do IVA argentino, percebe-se que aquele país, diante da federalização de vários tributos regionais e locais, preocupou-se com a divisão ou repartição do mesmo, conforme se infere da leitura do artigo 52 do referido diploma legal, ao estabelecer que do produto do IVA arrecadado em um determinado exercício financeiro, 11% (onze por cento) serão destinados à previdência social nacional, sendo que desse montante, 90% (noventa por cento) serão destinados ao financiamento do regime nacional de previdência social, que serão creditados ou depositados na conta da Secretaria de Seguridade Social. Os outros 10% do montante serão distribuídos às províncias argentinas (o que equivalem às unidades federativas brasileiras) e à cidade autônoma de Buenos Aires, capital argentina. O restante do produto arrecadado pelo IVA, 89% (oitenta e nove por cento), será distribuído de conformidade com o que determina a Lei nº 23.548/885, que estabelece a repartição fiscal geral, relativa à arrecadação de todos os tributos argentinos, aos demais entes políticos daquele país (art. 2º, 3º e 4º). Essa sistemática de distribuição é melhor visualizada na tabela abaixo: IVA - RECEITA TRIBUTÁRIA ARRECADADA PERCENT DESTINAÇÃO UAL (REPARTIÇÃO) 11% Previdência Social Nacional 89% Conforme Lei nº 23.548/88 OBS. Financiamento regime nacional de previdência social (90%). Províncias argentinas e Buenos Aires (10%). Nesta situação, esta parcela do IVA integra o rol comum de repartição do montante total de todos os tributos argentinos. 4. AS IDEIAS DO IVA NO BRASIL Alguns idealizadores ou defensores da adoção do IVA no Brasil se referem a tal tributo com uma nomenclatura similar - Imposto sobre Valor Acrescentado. 5 Coparticipación Federal de Impuestos. Con las modificaciones de la Ley 25.049 (B.O.: 14/12/98). 11 Alguns diferentes projetos estão em trâmite no âmbito do Congresso Nacional. Vale ressaltar a PEC nº 233/20086, de autoria do Executivo Federal, que objetiva a adoção do IVA-F, de competência da União, e do IVA-E, de competência dos Estadosmembros e do Distrito Federal. 5. O IVA NO PARAGUAI O IVA foi implantado no Paraguai7 através da Lei nº 125/91, modificada pela Lei nº 2.421/2004, incidindo sobre a circulação de bens em geral, prestação de serviços, exceto os serviços prestados em relação de dependência e importação de bens em geral (art. 77), com as exceções (exonerações) trazidas pelo artigo 83 da citada lei. Os contribuintes do IVA paraguaio são, a título de exemplo, em razão da extensiva lista da lei, os professores universitários (privados ou públicos), pessoas físicas prestadoras de serviços independentes (autônomos), cujas receitas brutas no exercício fiscal anterior sejam superiores a um salário mínimo mensal, em média, as cooperativas, na forma legal, empresas individuais ou em sociedade, incluídas as de pequeno porte, as sucursais de empresas estrangeiras com domicílio no Paraguai, sociedades com ou sem personalidade jurídica etc. Segundo o artigo 91 da Lei do IVA paraguaio, a alíquota variará até um patamar máximo de 10% (dez por cento), de acordo com o produto ou serviço. Segundo o artigo 82 da Lei do IVA paraguaio, a base de cálculo do citado tributo compreenderá o preço do bem ou serviço adicionado de todos os impostos, exceto o próprio IVA. 6. O IVA NO URUGUAI Atualmente, no Uruguai, o IVA encontra-se regulado diretamente pelo Código Tributário local, após ter sido adotado pela Lei nº 14.100/72, com as alterações e inovações trazidas por leis posteriores, a exemplo da Lei nº 18.083/2006. O IVA uruguaio originou-se do antigo Imposto sobre Vendas e Serviços que fora criado pela Lei nº 13.637, de 21 de dezembro de 1967. 6 Insta ressaltar que a PEC nº 33/2008 visa simplificar o sistema tributário federal, criando o imposto sobre o valor adicionado federal (IVA-F), que unificará as contribuições sociais: COFINS, PIS e CIDE-combustível; extingue e incorpora a contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) ao imposto de renda das pessoas jurídicas (IRPJ); estabelece mecanismos para repartição da receita tributária; objetiva instituir um novo ICMS que passará a ter uma legislação única, com alíquotas uniformes, e será cobrado no estado de destino do produto; desonerar a folha de pagamento das empresas; acabar com a contribuição do salário-educação e parte da contribuição patronal para a Previdência Social. Altera a Constituição Federal de 1988. Reforma Tributária. Fonte: site da Câmara dos Deputados (http://www.camara.gov.br). Consulta em: 8 fev, 2013. 7 Apesar dos problemas políticos internos que culminaram com a suspensão do Paraguai do MERCOSUL, é de suma importância mencionar que o referido Estado foi o único, até o presente momento, que mais cumpriu todos os programas e metas do MERCOSUL. Vale mencionar, v.g., que foi o único membro que, até a presente data, estabeleceu eleições populares (internas) para a escolha dos deputados do Parlamento do MERCOSUL. 12 O IVA uruguaio somente grava as operações de consumo, não alcançando a renda, o capital e outras operações típicas de outros tributos existentes na legislação tributária daquele país, como o IRPF8, IRNR9, IRAE10 etc. Mais claramente, incide sobre as operações de circulação interna de bens dentro do Uruguai, a prestação de serviços dentro do referido território, sobre a entrada de bens no país e sobre a valorização de bens imóveis, após modificações operadas pelo proprietário. Uma das principais características jurídicas do IVA uruguaio é ser um tributo indireto11, pois o seu ônus recairá sobre uma terceira pessoa, além de ser plurifásico e não-cumulativo. Com isso, ele é incidente em todas as fases das operações de consumo de bens e serviços, e, por ser sobre “valor agregado”, e, em sendo não-cumulativo, somente incidirá, a exemplo do ICMS brasileiro12, sobre o valor adicionado a cada operação de consumo. São exemplos casuísticos de contribuintes do IVA uruguaio, aqueles que adquirem rendas empresariais, exceto aqueles produtores empresários que fizeram a opção de serem gravados pelo IMEBA13, como uma forma uruguaia de elisão fiscal14. Nesta opção, o empresário é tributado pelo IMEBA somente na primeira operação de alienação de bens15elencados pela normativa uruguaia, serviços autônomos e descentralizados, cooperativas de créditos e seguros, aqueles que realizam alterações em seus imóveis - objetivando valorizá-los, fundos de pensões e de aposentadorias etc. Insta ressaltar que o IVA uruguaio sobre os produtos agropecuários ficará suspenso na fatura, vindo a incidir sobre esses mesmos produtos somente após a primeira transformação hábil a alterar a natureza dos mesmos. A alíquota básica16 do IVA uruguaio é da ordem de 22% (vinte e dois por cento) sobre o valor adicionado ou agregado à operação de prestação de serviço ou alienação do bem17. 8 Imposto de Renda da Pessoa Física e de Sociedades de Capital (Art. 28 da Lei nº 13.637/67 e Decreto 147/007). Imposto de Renda de Não-Residentes (Decreto 149/007). 10 Imposto de Renda Anual Empresarial (Decreto 150/2007). 11 Tributo indireto é classificado em razão de sua configuração legal, ou seja, é uma espécie de tributo que, em razão de sua característica plurifásica, permite a transferência do seu encargo econômico-financeiro para terceira pessoa que não a que se prevê em lei como contribuinte ou responsável tributária. 12 Segundo nos informa Valter Marcos de Brito, “o ICMS brasileiro adota a estrutura de IVA tipo produto que, apesar de ser da mesma forma não-cumulativo, somente proporciona créditos fiscais às atividades inseridas dentro do seu campo de incidência, ficando de fora a prestação de serviço em geral, tributada pelo ISS. Isso faz com que o efeito cumulativo seja parcialmente eliminado (Marcos de Brito, 2013, p. 49). 13 Imposto da Alienação de Bens Agropecuários (Art. 7º da Lei nº 13.637/67). 14 Elisão fiscal, ao contrário da evasão fiscal, traduz-se numa forma integrativa ou alternativa lícita de se pagar menos tributo ou, quiçá, se eximir de pagá-lo, v.g., o caso no Direito Tributário Brasileiro, em que cônjuges fazem a opção de declararem imposto de renda em conjunto ou em separado (opção legal pelo pagamento mais módico) ou, em determinadas situações, pagar menos fazendo opção pela declaração simplificada. 15 Lãs e couros ovinos e bovinos; gado bovino e ovino; cereais e oleaginosos; produtos derivados da avicultura, ranicultura e da apicultura; produtos hortifrutigranjeiros etc. 16 Após uma análise da legislação uruguaia sobre as alíquotas previstas para o IVA naquele país, conclui-se que a chamada “alíquota básica” (tasa básica) deve ser considerada como uma alíquota residual (genérica), tendo em vista que há uma lista com produtos taxados por alíquotas diferenciadas com relação ao IVA, como no caso do arroz, açúcar, erva-mate, margarinas, sal e farinhas, cuja alíquota é da ordem de 14% (quatorze por cento), que é considerada como “alíquota mínima” do IVA. 17 Art. 99 do Decreto 220/998. 9 13 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS De uma análise detida do presente artigo, é notória a inércia do Brasil em implantar um tributo aos moldes do IVA pretendido pelo MERCOSUL, como se pode depreender de uma breve leitura do artigo 1º do Tratado de Assunção. Mesmo diante da tentativa de implantar no Brasil o chamado IVA-F e o IVA-E, os Estados da federação temem a perda de sua principal arrecadação. A implantação do IVA no Brasil iria federalizar dois tributos que representam a grande monta em termos de arrecadação para os Estados-membros e para os municípios brasileiros - o ICMS e o ISS. Esta é, mutatis mutandi, a mesma linha de raciocínio do magistério do eminente tributarista pernambucano Ricardo Alexandre. Por óbvio a criação de um IVA federal, com a extinção do ICMS, do IPI e do ISS resolveria todos esses problemas. Mas a solução tecnicamente perfeita é politicamente impossível, pois mesmo que se garanta o integral repasse dos recursos arrecadados com o sonhado IVA federal, os Estados e o Distrito Federal não vão assentir na perda do poder político que o tributo representa nas negociações para atração de investimentos para os seus territórios.18 Os problemas em que o jurista Ricardo Alexandre se refere, em seu fragmento de texto acima, são exatamente ligados à guerra fiscal. Esta guerra fiscal teve a sua gênese na falta de uniformidade legislativa territorial provocada pelo constituinte originário com a distribuição, em várias vertentes legiferantes, da competência legislativa complementar para as unidades federativas legislarem complementarmente sobre o ICMS. Para um Estado como o Uruguai não houve e não há esse problema de guerra fiscal. Aquele Estado não é dividido em unidades federativas como o Brasil. Somente existem os departamentos que são equiparados aos nossos municípios brasileiros. Esta inércia do Brasil em adotar o esperado IVA tem provocado uma desarmonização tributária nos propósitos e objetivos do MERCOSUL, conforme assevera o Prof. Teodorovicz, citando Edison Carlos Fernandes. Com base nesse dispositivo, Edison Carlos Fernandes conclui que o texto acima demonstra que a construção do MERCOSUL implicará na ‘(...) coordenação de políticas macroeconômicas com particular referência à área fiscal (tributária)’. Para Fernandes, a citada coordenação visa ‘(...) assegurar o compromisso dos parceiros de harmonizar as suas legislações nas áreas pertinentes, o que inclui a tributária’. Logo, conclui o autor que ‘(...) o MERCOSUL deseja a harmonização das legislações tributárias dos Estados-Membros, porém, inicialmente, buscar-se-á a sua coordenação’19 Ainda sob o manto do destacado magistério do Prof. Teodorovicz, faz-se necessário complementar que esse processo de integração legislativa não se daria de forma abrupta, mas por estágios de adaptações legislativas dos integrantes do 18 Alexandre, 2011, p. 603. 19 FERNANDES, 2000, p. 199, apud TEODOROVICZ, 2009, p. 140. 14 MERCOSUL. Ainda citando o magistério de Edison Carlos Fernandes, o ilustre jurista leciona que: [...] a última etapa da integração legislativa, ocorreria pela superação da aproximação legislativa, e consistiria na ‘(...) identidade de texto’. Assim, os enunciados legislativos são redigidos pelos representantes dos diversos parceiros, e dessa forma são adotados. Portanto, não há uma adaptação das normas comunitárias às normas nacionais existentes, existindo, na realidade, a ‘(...) recepção do texto integral, com força, inclusive, para revogar disposições internas incompatíveis’.20 Sem embargo de registrar, a partir desta exposição jurídica, que o processo de integração na América Latina sempre andou a passos de tartaruga, o IVA mercosuliano nos traz à baila um exemplo casuístico dos males que um multiculturalismo regional pode trazer, em sede de dificuldades, em se estabelecer um cronograma político, administrativo, econômico e fiscal no âmbito do MERCOSUL. Isto implica dizer que o MERCOSUL, diante dessas problemáticas, que não são poucas, ainda não atingiu a fase final de sua meta principal, a de ser, efetivamente, um mercado comum21regional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário esquematizado. 5. ed.- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. 02. BRITO, Valteir Marcos de. A Harmonização Tributária e a Solução de Controvérsias Tributárias no MERCOSUL. Revista do Mestrado em Direito / UCB, p. 279, Brasília-DF. http://portalrevistas.ucb.br/index.php/rvmd/ article/viewFile/2543/1547. Consulta em: 23 fev, 2013. 03. FERNANDES, Edison Carlos. Normas Tributárias no MERCOSUL. In: MARTINS, Ives Gandra. Direito Tributário no MERCOSUL. Forense: Rio de Janeiro, 2000. 04. TEODOROVICZ, Jeferson. Integração Econômica e Tributação sob o Consumo sob a Perspectiva da Sustentabilidade - aspectos científicos e políticos. 2009. 549 f. (Mestrado em Direito Econômico e Socioambiental) - Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2009. 20 Ibidem. Mercado comum em uma determinada região significa que há integração livre e total na circulação dos fatores sociais da produção: capital e trabalho. 21 15 VEDAÇÃO À PROVA ILÍCITA NO PROCESSO PENAL E SUA RELATIVIZAÇÃO Cleber Alboy Monaro Inácio(1) Simone Rodrigues de Souza(2) 22 RESUMO: Este artigo apresenta os aspectos relevantes acerca das provas ilegais, seus subtipos e, com enfoque maior, as provas ilícitas e sua inadmissibilidade. Aborda-se, também, uma posição que vem sendo adotada com maior robustez no direito brasileiro, qual seja, a relativização da vedação à prova ilícita, visando-se conscientizar o leitor para a necessidade de sopesar questões jurídicas sem perder de foco o aspecto social, que reclama uma solução. Palavras-chave: prova ilícita, relativização. 1. ASPECTOS GERAIS SOBRE AS PROVAS Uma pretensão consubstanciada em uma demanda judicial pode ser focada em fatos ou questão jurídica. Quando foca-se em direito, o caderno processual encontra seu fim sem muitas delongas, pois ao juiz cabe saber o direito (“iure novit curia”), porém, caso a cognição esteja dependente da elucidação dos fatos, verifica-se a indispensabilidade da colheita probatória. Dá-se o nome de prova à demonstração dos fatos aduzidos por alguém ou, até mesmo, ao conjunto de elementos que auxiliam na busca da verdade. Fernando Capez define a prova como sendo “o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz e por terceiros destinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. 1. Advogado Militante no Estado de Goiás, Pós-graduado em Direito Processual lato sensu pela Faculdades Jataiense – FAJA, 2. Assistente Legislativa da Câmara dos Vereadores de Jataí, Pós-graduada em Direito Processual lato sensu pela Faculdades Jataiense – FAJA. 16 Trata-se, portanto, de todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com a finalidade de comprovar a verdade de uma alegação” (CAPEZ, 2009. p. 297). O conjunto probatório é um caminho que leva à certeza dos fatos, devendo o magistrado focar-se em informações constantes dos autos, pois “quod non est in actis non est in mundo”. A prova pode ser vista sob dois aspectos, o objetivo, que é o meio pelo qual se produz a certeza, ou seja, o aspecto material que leva a uma consciência da verdade fática. Existe também o aspecto subjetivo, que é a convicção formada por cada pessoa acerca de um fato quando tem acesso à alegação e complexo de provas materiais. As provas podem ser admissíveis, que são as legalmente produzidas e que não violam disposições jurídicas, sejam de ordem formal ou material. Há também as provas inadmissíveis, também chamadas de ilegais, expressamente vedadas pela Carta Magna de 1988, em seu artigo 5º - LVI. Trata-se, a prova ilegal, do conjunto de elementos que, para a busca da verdade, viola direito material ou formal. As provas, assim como diversos outros institutos jurídicos, devem respeitar princípios estatuídos que sirvam como fonte de interpretação e aplicação de normas. Os princípios gerais das provas no âmbito processual penal são: a) contraditório - corolário do artigo 5º inciso LV da Constituição Federal de 1988, assegura que a parte adversa, seja ela o acusado ou o Ministério Público, tenha direito a tomar conhecimento de prova produzida contra suas pretensões; b) comunhão da prova - a partir do momento em que uma prova integra os autos, esta prova deixa de ser da parte que a produziu e passa a ser do processo, mesmo porque, a prova é indivisível, não há como aceitar o que seja conveniente para uma parte e rejeitar o que lhe seja desfavorável, vez que se procura, com a prova, a certeza da verdade real; c) autorresponsabilidade das partes - à parte que produziu a prova, cabe a responsabilidade pela mesma, devendo arcar com o resultado da prova, seja ele benéfico ou não. Agindo de má-fé, fazendo juntar aos autos documentos inverídicos ou que, para sua obtenção, violem direito material, e a parte que o fizer responderá nos termos da legislação penal, civil e, se aplicável, administrativa; d) publicidade - o processo (o que inclui as provas nele produzidas), deve ser do acesso de todos, sejam eles interessados na causa ou não, salvo os processos cuja lei atribua procedimento sigiloso pelos motivos de praxe; e) oralidade - em busca de maior dinâmica, transparência e celeridade, o processo penal prima pela prova falada, a fim de, inclusive, proporcionar maior aproximação entre o magistrado e o caso “sub examine”; f) concentração - resultado natural do princípio anterior, a concentração denota que se deve executar o máximo de atos em um único momento, incluindo a busca probatória; g) livre convencimento motivado - o juiz presidente do feito, quando debruçar-se sobre os autos, tem liberdade para valorar as provas de acordo 17 com sua convicção, devendo motivar seu entendimento em provas constantes dos autos quando da prolação de uma decisão; h) vigora também o princípio da Vedação à Prova Ilícita, cuja nomenclatura utilizada em diversas doutrinas, a nosso ver, é equivocada, pois, o que a Constituição Federal proíbe em seu artigo 5º - LVI, são todas as provas obtidas por meios ilícitos, e não apenas as que violem direitos materiais. Entendemos que o termo mais correto seria “Vedação à Prova Ilegal”, que compreende todas as formas de provas legalmente inadmissíveis, que são a verdadeira extensão do texto constitucional em questão. A prova ilegal, vedada pelo ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, será adiante abordada. 1. PROVAS ILEGAIS A nossa lei maior veda às provas obtidas por meios ilícitos, seja tal violação de ordem formal ou material. Uadi Lammêgo Bulos aduz que as provas obtidas por meios ilícitos, também chamadas de provas ilícitas “lato sensu”, são “as contrárias aos requisitos de validade exigidos pelo ordenamento jurídico. Esses requisitos possuem a natureza formal e a material. A ilicitude formal ocorrerá quando a prova, no seu momento introdutório, for produzida à luz de um procedimento ilegítimo, mesmo se for lícita a sua origem. Já a ilicitude material delineia-se através da emissão de um ato antagônico ao direito e pelo qual se consegue um dado probatório, como nas hipóteses de invasão domiciliar, violação do sigilo epistolar, constrangimento físico, psíquico ou moral a fim de obter confissão ou depoimento de testemunha etc.” (BULOS, 2001. p. 244). Depreende-se do entendimento supra e do expresso texto constitucional do inciso LVI do artigo 5º, o qual alude que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (BRASIL, 2010), que nosso ordenamento jurídico, via de regra, não apoia a premissa de que “os fins justificam os meios”, proibindo qualquer tipo de prova que viole direitos e procedimentos assegurados e estabelecidos por norma legal. O texto constitucional supracitado possui a concordância infraconstitucional do artigo 157 “caput” do Código de Processo Penal, que em sua redação determina que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” (BRASIL, 2010). Trata-se, evidentemente, de um escudo a proteger o princípio da Segurança Jurídica, assegurando que um terceiro na relação jurídica, ou até mesmo um integrante de dita demanda, não tenha seu direito violado pela busca de provas de uma parte interessada. José Frederico Marques, adotando posição obstativa, esclarece que referidas normas “de proteção e garantia da pessoa humana, impedem que, para a procura da verdade, lance-se mão de meios condenáveis e iníquos de investigação e prova, além de 18 outros fundados em superstições, crendices ou práticas não mais consagradas pela ciência processual” (MARQUES, 2000. p. 353/354). A prova obtida por meio ilícito, também chamada de prova ilegal, subdivide-se em duas espécies, quais sejam, a prova ilegítima e a prova ilícita. A citada divisão é anuída por Damásio Evangelista de Jesus que diz serem “inadmissíveis no processo as chamadas provas ilegais, gênero que se subdivide nas espécies: prova ilegítima e prova ilícita. Ilegítima é a prova cuja produção é vedada por norma processual. Ilícita é aquela cuja produção ofende norma de Direito Material” (JESUS, 2009. p. 160). É óbvio que a definição dada pelo incólume doutrinador não pode preencher completamente os aspectos dos institutos em mesa, motivo pelo qual passa-se a abordálos de forma mais detalhada. 2.1 PROVA ILEGÍTIMA Espécie do gênero prova ilegal, a prova ilegítima é a que afronta norma processual, ou seja formal. Sua localização está na forma de proceder dentro de uma demanda. É sabido que o Código de Processo Penal e legislações processuais penais extravagantes elencam diversas normas procedimentais que são corolários da busca pelo cumprimento de princípios de direito, por exemplo, o contraditório é assegurado quando o artigo 479 do caderno processual penal aduz que “durante o julgamento não será permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte” (BRASIL, 2010). Através da compreensão de referido princípio, assevera-se que o legislador, através de norma processual, buscou assegurar o princípio do contraditório, possibilitando à parte adversa tomar conhecimento de prova que é de seu interesse, vez que, a partir do momento em que uma prova integra os autos, passa a ser do processo, e não apenas de quem a produziu. Outro exemplo que auxilia na compreensão da prova ilegítima é nos casos de crimes que deixam vestígios. O artigo 158 do Código de Processo Penal alude que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado” (BRASIL, 2010), logo, colhida a confissão de um acusado buscando-se suprir um exame de corpo de delito que haveria de ter sido feito, tal prova é tida como ilegítima, e não poderá ser utilizada pelo juiz da causa como meio de motivação para uma eventual condenação. Em caso uma prova seja declarada ilegítima, a legislação, doutrina e jurisprudência, à unanimidade, entendem pela nulidade processual, desde que reste provado o prejuízo à parte que não guarde nexo de causalidade com a prova. Dita nulidade, se disser respeito a ato do qual os demais eventos processuais guardem dependência, acarreta também a nulidade dos atos subsequentes. 1.2 PROVA ILÍCITA 19 A prova ilícita “strictu sensu” diferencia-se da ilegítima, pela espécie de direito violado. Enquanto nesta o direito processual foi o objeto não observado, na prova ilícita, o direito material é que não foi respeitado. Pode-se citar como diferencial entre os dois institutos, o lugar em que ocorreu a violação, enquanto a prova ilegítima é decorrente de uma infração dentro do processo, a prova ilícita é uma violação fora do processo. Fernando Capez traz que “serão ilícitas todas as provas produzidas mediante a prática de crime ou contravenção, as que violem normas de Direito Civil, Comercial ou Administrativo, bem como aquelas que afrontem princípios constitucionais” (CAPEZ, 2009, p. 301). Igualmente corrobora Grinover, Scarance e Magalhães, alertando que a prova ilícita é fruto de uma “encruzilhada entre a busca da verdade em defesa da sociedade e o respeito a direitos fundamentais que podem ver-se afetados por esta investigação” (GRINOVER et. al., 1996. p. 130). Assim, conceitua-se a prova ilícita como aquela que, para sua obtenção, houve violação de direito individual assegurado por alguma norma, seja ela legal, constitucional ou até mesmo um princípio de direito material. Decretada a invalidade da prova por ilicitude, esta será desentranhada dos autos, o que proíbe que o magistrado motive sua sentença em referida prova, respondendo o infrator pelas penas decorrentes da violação, não excluindo a responsabilidade civil e administrativa, se houverem. 2.2.1 PROVA ILÍCITA POR DERIVAÇÃO: TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA Fora dito que, via de regra, o Direito brasileiro repugna as provas obtidas por meios ilícitos, a fim de assegurar diversos direitos de ordem formal ou material, porém, aspecto que merece especial atenção são as provas que são lícitas e legítimas em si mesmas, decorreram de outra prova que desrespeita ordenamento jurídico. O fenômeno ao qual nos referimos tem o nome de Prova Ilícita por Derivação, também chamada de Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada (“fruits of the poisonous tree”), que teve origem na Suprema Corte Norte-Americana, onde, no julgamento do caso “Silverthorne Lumber Co. VS. United States”, no ano de 1920, passou-se a não se admitir as provas que, mesmo que legais, sejam oriundas de outra que não observou ditames legais. Damásio de Jesus esclarece o significado do instituto em questão, inclusive, da nomenclatura da teoria ao dizer que “para a doutrina dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), desenvolvida no âmbito da Corte Suprema dos Estados Unidos da América, todas as provas obtidas a partir da prova ilícita (árvore) são 20 contaminadas pela ilicitude (frutos envenenados), ainda quando sejam, por si, lícitas. Trata-se de uma metáfora jurídica em que a ‘árvore envenenada’ representa a prova ilícita e os ‘frutos’, aquelas provas lícitas a partir dela obtidas” (JESUS, 2009. p. 161). Igualmente à Suprema Corte Norte-Americana, o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do poder judiciário brasileiro, fixou o entendimento pela inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, consubstanciado pelas decisões no HC 93050/RJ, HC 87654/PR dentre outros. 2.2.1.1 RESTRIÇÕES À DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA À luz da jurisprudência Norte-Americana, a doutrina, a jurisprudência e a lei brasileira adotaram duas exceções à Prova Ilícita por Derivação. O artigo 157 do Código Instrumental Penal, não obstante em seu parágrafo 1º vede a prova ilícita por derivação, ainda sim, abre margem a duas hipóteses expressas de admissão para a mesma, quais sejam, a fonte independente e a descoberta inevitável. 1.2.1.1.1 Fonte Independente Caso a prova obtida por origem ilícita pudesse ser obtida de modo respeitoso aos ordenamentos legais e constitucionais, esta prova é aproveitada, pois possui uma outra forma de obtenção legal, que é paralela à forma de fato obtida. Nas palavras de Grinover, Scarance e Magalhães, a prova derivada de outra será considerada como independente da ilícita que lhe originou se “a conexão entre umas e outras for tênue, de modo a não se colocarem as primárias e secundárias numa relação de estrita causa e efeito” (GRINOVER et. al. 2007. p. 96/97). Assim, ocorrendo o evento da independência entre as fontes para obtenção da prova maculada, não se aplica a regra da proibição das provas ilícitas por derivação. 1.2.1.1.2 Descoberta Inevitável A descoberta inevitável é aquela em que, produzida ou não a prova por fonte ilícita, a mesma seria produzida pelas diligências comuns de praxe, ou seja, caso a prova obtida em decorrência de outra prova ilícita não tivesse sido produzida, a mesma seria produzida legítima e licitamente pelos meios persecutórios normais de investigação. A prova foi produzida antecipadamente, quando se o órgão interessado houvesse aguardado, a prova seria encontrada de forma lícita. Damásio de Jesus abordou o tema aludindo que na descoberta inevitável, “a prova derivada da ilícita poderá ser utilizada, quando sua descoberta for, pelos meios 21 regulares de investigação, inevitável. Não se exige grau de certeza, mas de probabilidade” (JESUS, 2009. p. 161/162). Muito embora o texto do parágrafo 2º do artigo 157 do Código de Processo Penal faça alusão ao termo “Fonte Independente”, a conceituação constante de referido dispositivo guarda relação com a Descoberta Inevitável, verificando-se, “data máxima vênia”, uma confusão por parte do legislador. 2.3 POSIÇÕES QUANTO À ADMISSIBILIDADE DAS PROVAS ILÍCITAS Quando de seu nascedouro, o instituto da prova ilícita era inquestionavelmente proibido e vedava-se por completo qualquer prova obtida por violação a direito material. Ocorre que, com a evolução do direito e, principalmente, emersão dos direitos fundamentais individuais, referido postulado começou a sofrer diversos questionamentos. Com o tempo, criaram-se correntes com entendimentos diversos quanto à admissibilidade da prova ilícita, passando-se, agora, a abordá-las. 2.3.1 Teoria Obstativa ou Corrente da Inadmissibilidade Absoluta Posicionamento adotado desde o início, entendimento inflexível que prega a não admissão da prova ilícita independentemente do caso em concreto. Corrente doutrinária, que possui como afiliados Ada Pellegrini Grinover e José Frederico Marques, que defende a mesma, alertando que não é aceitável “na justiça penal, a adoção do princípio de que os fins justificam os meios, para assim tentar legitimar-se a procura da verdade través de qualquer fonte probatória. Por isso, a tortura, as brutalidades e todo atentado violento à integridade corporal devem ser banidos da investigação e da instrução. E o mesmo se diga do que se denomina, com eufemismo, de torturas lícitas, como the third degree da polícia americana ou os interrogatórios fatigantes, penosos e exaustivos. Igualmente condenáveis são os procedimentos desleais, como, por exemplo, a captação clandestina de telefonemas, o emprego de microfones dissimulados e do registro, em aparelhos telefônicos, de conversações íntimas” (MARQUES, 2000. p. 354). Cumpre salientar que os juristas, prestadores de assessoria aos congressistas na elaboração do texto constitucional de 1988, pertenciam a esta corrente, principalmente em virtude do regime autoritarista que vigorava na época. Ocorre que a rigidez da corrente obstativa viola princípio basilar do processo penal, qual seja da verdade real, que preza pela realidade dos fatos e não apenas pela verdade constante dos autos que, graças à teoria obstativa, pode ser diversa da verdade. Trata-se de um dever do Estado-Juiz a busca pela realidade fática. 22 2.3.2 Teoria Permissiva ou Corrente da Admissibilidade Absoluta Ao revés da Teoria Obstativa e um posicionamento radical, surgiu a Teoria Permissiva que prega a admissibilidade da prova independentemente da forma de sua obtenção. Doutrinadores, como Fernando de Almeida Pedroso, defendem que a finalidade precípua do processo é auferir a realidade dos fatos, em absoluto acatamento ao princípio da verdade real, o que tornaria qualquer prova passível de avaliação e formação de convicção pelo juiz do feito. Tal entendimento prega ainda que o responsável pela violação que torne a prova ilícita seja processado pela conduta perpetrada, o que não deve contaminar a prova em si. Porém, tendo-se em vista que a prova produzida o foi em um estado de necessidade do acusado, em eventual processo contra este, tal tese de excludente de ilicitude poderia ser levantada, excluindo uma responsabilidade penal do infrator e havendo sua absolvição sumária pelo artigo 397, inciso I, do Código de Processo Penal. Poder-se-ia pregar que o infrator que obteve a prova ilicitamente não responda por seu ato, mas, mesmo assim, violaria um direito e caso não logre êxito na obtenção da prova, embora agrida direito alheio, haveria um apoio a condutas antijurídicas, e prejudica a segurança jurídica como um todo. 2.3.3 Corrente Intermediária Com o objetivo de equilibrar o “pêndulo” entre as duas teorias anteriores, criouse a corrente intermediária, que prega a vedação à prova ilícita com ressalvas, aduzindo que, havendo o conflito entre dois direitos, deve prevalecer o que for sopesado como de maior valor. Opõe-se à teoria permissiva no passo que leva como regra a proibição das provas ilícitas. Contrapõe-se também à teoria obstativa, encarando-a como demasiadamente inflexível, o que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito. Defensores da presente teoria, José Carlos Barbosa Moreira e Camargo Aranha, apóiam que deve ser cada caso estudado com cautela, a fim de se decidir sobre a admissibilidade ou não de uma prova de origem ilícita. Trata-se esta corrente de um dos expoentes da Relativização da Vedação à Prova Ilícita. 2.3.4 Teoria da Admissibilidade “pro reo” 23 Existe ainda uma teoria que vem sendo aplicada na jurisprudência e aceita na doutrina, que reza a possibilidade de admissão da prova ilícita desde que a favor do réu. A teoria da admissibilidade da prova ilícita “pro reo”, em atendimento ao princípio do “favor rei”, busca equilibrar uma relação entre acusado e órgão acusador, vez que este dispõe de meios para a busca da verdade sem precisar abrir mão de condutas ilícitas, enquanto o réu encontra-se em posição inferior na busca por seus direitos e verdade dos fatos. Fernando Capez, embora adote posição parcialmente diversa, concorda que o direito à comprovação da inocência sobrepõe-se ao poder de punir do Estado, aludindo que “o princípio da proporcionalidade pro reo não apresenta maiores dificuldades, pois o princípio que veda as provas obtidas por meios ilícitos não pode ser usado como um escudo destinado a perpetuar condenações injustas. Entre aceitar uma prova vedada, apresentada como único meio de comprovar a inocência de um acusado, e permitir que alguém, sem nenhuma responsabilidade pelo ato imputado, seja privado injustamente de sua liberdade, a primeira opção é, sem dúvida, a mais consentânea com o Estado Democrático de Direito e a proteção da dignidade humana” (CAPEZ, 2009. p. 306). Trata-se do posicionamento mais aceito no Brasil atualmente. 2. RELATIVIZAÇÃO DA VEDAÇÃO À PROVA ILÍCITA Embora a teoria obstativa tenha sido a primeira utilizada no instituto da vedação à prova ilícita, e não obstante a teoria permissiva tenha tentado equilibrar a balança da vedação, puxando uma interpretação totalmente diversa, a flexibilização da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos consubstanciada nas teorias da admissibilidade “pro reo” e intermediária estão em maior voga e são até hoje matéria de discussão. O presente instituto pode ser subdividido nas duas últimas teorias estudadas (admissibilidade “pro reo” e intermediária), porém, aspecto relevante, é lembrar que, embora semelhantes, ambas correntes possuem divergências e, para a adoção de uma posição, é mister examiná-las e, posteriormente, demonstrar nossa posição. Nos dizeres de Antonio Scarance Fernandes, o inadmissível é uma pessoa inocente responder por crime somente porque “a demonstração de sua inocência só pôde ser realizada por prova obtida por meio ilícito” (FERNANDES, 2002. p. 87/88). De fato, respeitando o princípio da ampla defesa, assegurado constitucionalmente, e também, a premissa de que, quando o direito se puser contra a justiça deve-se optar pela segunda, mostra-se razoável sobrepor-se à determinação expressa da lei e da Constituição Federal (com o devido respeito aos órgãos legisladores), a fim de garantir direito fundamental individual, desde que seja a expressão da justiça e busca pela verdade real. Logo, mostra-se, a nosso ver, parcialmente acertado o entendimento da admissibilidade “pro reo” quando flexibiliza uma imposição absoluta a fim de assegurar direito indisponível. 24 Ocorre que, diversamente do que estatui a teoria “pro reo”, entende ser admissível a prova ilícita apenas em favor do acusado, posicionamo-nos a favor da teoria intermediária, desde que, vale lembrar, observe rigorosamente o princípio da proporcionalidade. De acordo com Fernando Capez, que partilha de nosso entendimento, para o princípio da proporcionalidade, “não existe propriamente um conflito entre as garantias fundamentais. No caso de princípios constitucionais contrastantes, o sistema faz atuar um mecanismo de harmonização que submete o princípio de menor relevância ao de maior valor social” (CAPEZ, 2009. p. 304). De origem alemã, no pós-guerra, o princípio da proporcionalidade é instituto embasador da teoria da admissibilidade “pro reo” e intermediária, reza que deve haver um balanceamento entre direitos e valores, buscando-se o de maior relevância e sobrepondo-o ao menos latente. Referido balanço somente poderá ser feito pelo exame do caso concreto, tornando o trato do magistrado para com os autos mais individualizado. A proporcionalidade defende, acima de tudo, a comparação, para evitar a injustiça e rigidez, sendo esta muito frequente nos textos legislativos. A fixação de uma proibição absoluta de que o órgão acusador faça uso de meios idênticos aos do réu, vai de encontro ao espírito do princípio em questão, mesmo porque, o que se busca, flexibilizando a norma da vedação à prova ilícita, é adequá-la aos tempos hodiernos e realidade social na qual vivemos. Tendência que ganha força no meio jurídico brasileiro, é no sentido de atribuir aos princípios o valor de norma, sendo suficiente para servir de fundamentação para decisões judiciais. É uma nova onda que vem com força na doutrina. Porém, no direito, vigora a premissa de que “nada é absoluto”, e os princípios podem ser flexibilizados se violarem bem mais precioso. É o caso de antinomia jurídica, em que dois princípios se contrapõem, necessitando-se valorá-los e atribuir preferência por um em detrimento de outro e, para tanto, utiliza-se da proporcionalidade. Justificando nosso apoio à corrente intermediária ou teoria da proporcionalidade, trazemos sábia e pertinente indagação de Fernando Capez: “Suponhamos uma carta apreendida ilicitamente, que seria dirigida ao chefe de uma poderosa rede de narcotráfico internacional, com extensas ramificações com o crime organizado. - Seria mais importante proteger o direito do preso ao sigilo de sua correspondência epistolar, do qual se serve para planejar crimes, do que desbaratar uma poderosa rede de distribuição de drogas, que ceifa milhões de vidas de crianças e jovens?” O princípio da proporcionalidade “pro societate”, desde que assegurado também ao réu, é uma forma de garantir valores da coletividade, principalmente visando uma atuação preventiva. Insta salientar que não só o réu e o ministério público, que não é órgão eminentemente acusador, têm interesse na persecução probatória, mas também o juiz, vez que no processo penal, o princípio do dispositivo sobre drástica redução, justamente para dar espaço a um princípio de maior relevância, o da verdade real. 25 Com rara propriedade, Roberto Prado de Vasconcellos aduz sobre a necessidade de adoção do princípio da proporcionalidade também “pro societate”, aludindo que “é um vício constante da doutrina afirmar que as provas ilícitas incriminatórias não podem jamais ser utilizadas contra o réu. O problema de se tratar assuntos tão importantes apenas no âmbito da abstração, sem testar suas construções doutrinárias com exemplos hipotéticos, leva a injustiças freqüentes, bem como ao esquecimento dos problemas crônicos que necessitam de soluções urgentes. Exemplifique-se com o caso do combate ao tráfico. Não se pode negar que é notória a freqüência com que os meios convencionais fracassam na resolução destes problemas” (VASCONCELLOS, 2001, p. 465). Igualmente é o entendimento de Camargo Aranha, aduzindo que “em nome de um exagerado dogmatismo, grandes crimes e poderosos e perigosos criminosos podem ficar impunes. Não devemos esquecer que o crime organizado é, quanto à sua execução, quase perfeito, porque planejado cientificamente, o que exige investigações mais apuradas” (ARANHA, 1996, p. 60). Colocamo-nos contra a utilização de garantias constitucionais para dar amparo e proteção a práticas ilícitas, motivo pelo qual mostramo-nos adeptos à teoria intermediária, que expressa a alma da proporcionalidade com observância dos aspectos sociais hodiernos. CONCLUSÃO O presente trabalho abordou de forma sucinta a prova no processo penal, trazendo seus princípios gerais de aplicabilidade mais focada ao tema em comento. Concentrou-se, posteriormente, na prova vedada, ou seja, nas provas tidas como ilegais, obtidas por meios ilícitos, trazendo à baila também sua subdivisão em prova ilegítima e prova ilícita. As provas ilegítimas, como dito, são as que foram obtidas com violação a normas processuais, que ignoram procedimento estatuído em lei e são obtidas com violação a normas formais. As provas ilícitas foram conceituadas como as que foram adquiridas às custas do sacrifício de direito material. Trouxemos à baila a teoria dos frutos da árvore envenenada, que prega a inadmissão de provas lícitas que são oriundas de outras provas ilícitas, tendo sua proibição ficado como regra no entendimento do Supremo Tribunal Federal. Aludiu-se, também, sobre as duas exceções à proibição da prova ilícita por derivação, quais sejam, a fonte independente e a descoberta inevitável. Debateu-se sobre os diversos posicionamentos acerca da admissibilidade das provas ilícitas no Brasil, sendo que o que é mais aceito, atualmente, é o da 26 admissibilidade da prova ilícita “pro reo”, o que diverge de nosso entendimento e de diversos renomados doutrinadores. Tecemos comentários sobre a relativização da proibição à prova ilícita, reafirmando nossa posição pela Teoria Intermediária, aplicando-se a proporcionalidade ao caso concreto, nunca perdendo de vista o aspecto social hodierno e a tutela urgente de que a sociedade necessita. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. ARANHA, Adalberto Q. T. de Camargo. Da Prova no Processo Penal. 4. ed. São Paulo:Saraiva, 1996. 02. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 15. ed. São Paulo: RT, 2010. 03. BRASIL. Código Penal, Código de Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal, Constituição Federal. 12. ed. São Paulo:RT, 2010. 04. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-Corpus nº. 93050/RJ, Pacte. Luiz Felipe da Conceição Rodrigues. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator Min. Celso de Mello.Julgamento: 10.06.2008. DJU 01.08.2008. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia. asp?s1=prova%20ilícita%20por%20derivação&base=baseAcordaos>. Acesso em: 01 nov. 2010. 05. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas-Corpus nº. 87654/PR, Pacte. Ademar Reis Picironi. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relatora Min. Hellen Gracie. Julgamento: 07.03.2006. DJU 20.04.2006.Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=prov a%20ilícita%20por%20derivação&base=baseAcordaos>. Acesso em: 01 nov. 2010. 06. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 2. ed.. São Paulo:Saraiva, 2001. 07. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo:Saraiva, 2009. 08. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3. ed. São Paulo:RT, 2002. 09. GRINOVER, Ada Pellegrini. et. al. Nulidades no Processo Penal. 6. ed. São Paulo:RT, 1996. 10. _______ Processo Penal Constitucional. 5. ed. São Paulo:RT, 2007. 11. JESUS, Damásio Evangelista de. Código de Processo Penal Anotado. 23. 27 ed. São Paulo:Saraiva, 2009. 12. MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 2. ed. Campinas:Millennium, v. 2, 2000. 13. VASCONCELLOS, Roberto Prado de. Provas Ilícitas (enfoque constitucional) in Revista dos Tribunais, nº. 791, set. 2001. TUTELAS DE URGÊNCIA E EVIDÊNCIA NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (PLS 166/10) Acadêmica ISABELA PRADO LIMA Especialista e Professor Fernando Simões de Araújo RESUMO: O presente trabalho versa sobre as tutelas de urgência, primeiramente através de um apanhado geral acerca das tutelas existentes no atual Código de Processo Civil (1973), sendo elas as medidas cautelares e as tutelas antecipadas. Posteriormente passa-se à análise das medidas de urgência disciplinadas no projeto do novo Código de Processo Civil (PLS-PROJETO DE LEI DO SENADO, Nº 166 de 2010), comparando com as tutelas previstas no atual Código de Processo Civil (1973), analisando as principais alterações feitas. Em síntese o projeto do Novo Código de Processo Civil abrange a extinção das ações cautelares nominadas e da adoção da regra da demonstração do fumus boni iuris e do perigo de ineficácia da prestação jurisdicional para que a providência pleiteada deva ser deferida. O Novo CPC traz claramente a possibilidade de concessão de tutela de urgência e de tutela à evidência. Tanto a tutela de urgência, quanto a de evidência tem por finalidade o cumprimento do princípio da celeridade e eficácia jurisidicional. Ambas as tutelas estão disciplinadas na Parte Geral, tendo desaparecido o livro das Ações Cautelares. A tutela de urgência e de evidência pode ser requerida antes ou no curso do procedimento em que se pleiteia a providência principal. Caso não haja resistência à liminar concedida, o juiz extinguirá o processo depois da efetivação da medida, conservando a sua eficácia, sem que a situação fique protegida pela coisa julgada. Impugnada a medida, o pedido principal deve ser apresentado nos mesmos autos em que tiver sido formulado o pedido de urgência. Há ainda a estabilização de tutela que permite a manutenção da eficácia da medida de urgência, ou antecipatória de tutela, até que seja eventualmente impugnada pela parte contrária. Palavras-chave: medidas de urgência, tutela de evidência, tutela de urgência. RESUMEN: El presente trabajo trata de las tutelas de urgencia, primero a través de una visión general sobre las tutelas existentes en el actual Código Procesal Civil (1973), siendo ellas las medidas cautelares y las tutelas antecipadas. Adelante se passa la análisi de las medidas de emergencia disciplinadas en el nuevo proyecto del Código Procesal Civil (PLS - PROYECTO DE LEY DEL SENADO, N° 166 DE 2010), en comparación con las tutelas previstas en el actual Código Procesal Civil (1973), con análisis de las principales diferencias de los cambios ocoridos. En resumen, el proyecto 28 de nuevo Código Procesal Civil contempla la extinción de las medidas cautelares nominadas y la adopción de la regla de demonstración del fumus boni iuris y del peligro de inoperancia de la prestación jurisdiccional para que la providencia buscada sea aceptada. El nuevo CPC trae claramente la posibilidad de conceder la tutela de urgencia y la tutela de evidencia. Tanto la tutela de urgencia, cuanto la de evidencia tiene por finalidad el cumprimiento del principio de la celeridad y la eficacia jurisdiccional. Ambas las tutelas están disciplinadas en la Sección General, teniendo desaparecido el libro de las Acciones Cautelares. La tutela de urgencia y de evidencia pueden ser pedidas antes o durante el curso del procedimiento en que se busca la acción principal. Caso no haya resistência a la liminar concedida, el juez extingue el proceso de la efectivación desta medida, cuidando de la preservación de su eficacia, sin que la situación se torne protegida por la cosa juzgada. Impugnada la medida, la demanda principal debe ser presentada en el mismos autos en que ha sido formulado el pedido de urgencia. Hay también la estabilización de tutela que permite la manutención de la eficacia de la medida de urgencia, o de la tutela antecipada, hasta que sea eventualmiente cuestionada por la parte contraria. Palavras-chave: medidas de urgencia, tutela de evidencia, tutela de urgencia. INTRODUÇÃO O Código Processual Civil é o instrumento pelo qual se aplica o direito material, Código Civil, ao caso concreto, visando tutelar os litígios existentes entre particulares. Devido ao grande número de lides existente, o legislador precisou criar mecanismos para viabilizar o atendimento de situações que demandam certa urgência. Pensando nisto foram instituídas as tutelas de urgência. Este trabalho visa estudar as tutelas que foram inseridas ao atual Código de Processo Civil/1973 pela Lei 8.952/94, bem como as tutelas que serão amparadas no projeto do Código de Processo Civil (BRASIL, Projeto de Lei do Senado n° 166 de 2010). Inicialmente, este trabalho de pesquisa monográfico exporá as tutelas de urgência previstas no atual Código de Processo Civil, ou seja, as medidas cautelares e as tutelas antecipadas. Buscará expor suas particularidades, as principais diferenças e também a possibilidade de fungibilidade entre essas tutelas. Estudará, ainda, as principais tutelas de urgência, conforme a classificação doutrinária. Num segundo momento, ponderará sobre as medidas de urgência que serão abrangidas pelo projeto do novo Código de Processo Civil, tutela de urgência e tutela de evidência, pontuando os dispositivos gerais e as principais alterações sofridas. Já no terceiro momento, analisará as tutelas de urgência, os requisitos necessários para sua concessão e, ainda, explorará a classificação feita pelo legislador em tutela de urgência cautelar e satisfativa, buscando expor os pontos controvertidos em ambas. 29 Finalmente no quarto e derradeiro momento irá abarcar acerca das tutelas de evidência, analisando seus pressupostos para concessão, as principais inovações e semelhanças em relação ao Código atual. Explanará ainda sobre os procedimentos que deverão ser utilizados. São estes os assuntos abordados no presente trabalho com o intuito de poder esclarecer acerca das tutelas de urgência em geral. 1. DAS PRINCIPAIS TUTELAS DE URGÊNCIA NO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Tendo em vista que o Estado avocou para si a tutela jurisdicional, vedando a autotutela privada, e em virtude da elevada demanda de conflitos existentes foi necessária a criação de mecanismos para tornar efetiva a prestação jurisdicional, não deixando de lado a segurança jurídica. Ressalta-se que a busca pelo amparo judicial deve ser a exceção, visando primeiramente a autocomposição. As tutelas de urgência estão previstas no processo cautelar no livro III e a antecipação de tutela nos artigos 273, 461, 461-A e 527, ambas do atual Código de Processo Civil, além das tutelas nos Tribunais Superiores, e têm por fim combater a morosidade processual. O Código de Processo Civil de 1973, nosso código atual, por meio da alteração feita em sua redação através da reforma realizada em 1994 pela Lei 8.952, introduziu as tutelas de urgência quando houvesse possibilidade de ocorrer dano grave ou irreparável ou de difícil reparação, dependendo do grau de provas e do direito violado. Assim podemos analisar um conceito de urgência no fragmento abaixo. A urgência é o perigo, que é uma situação fática que exige tratamento célere e enérgico. O perigo pode decorrer da iminência ou do agravamento de um dano irreversível ou de difícil reparação, mas pode ocorrer também – e isso é quase sempre esquecido – da iminência ou da continuação de um ato contrário ao direito (ato ilícito), ainda que dele não decorra instantaneamente um dano. (DIDIER, et al., 2008, p. 364) Toda ação tem um trâmite legal a ser seguido, o que demanda certo tempo para atingir o deslinde do litígio. Neste lapso temporal alguns direitos pereceriam, caso tivessem que aguardar o fim do processo. Objetivando a proteção dos direitos pleiteados, e com base no artigo 5º, inciso XXXV , da Constituição Federal de 1988 (CF/88), foi criado o instituto da tutela de urgência. (RUANOBA, Sebastian Watenberg, 2012) As tutelas de urgência são, em poucas palavras, medidas concedidas no decorrer do processo tendo por base o perigo da ineficácia do direito tutelado em virtude de uma emergência, trazendo a possibilidade de antecipação dos efeitos práticos que terá com o pleito final, podendo ser tanto cautelar, como satisfativa, podendo ser aplicado o princípio da fungibilidade pelo juiz, caso a parte ao intentar a medida tenha algum problema técnico ou formal. (DIDIER, et al., 2011, p. 236) 30 Os principais princípios que embasam a tutela de urgência são: o princípio da efetividade do processo, o princípio da celeridade (duração razoável do processo), o princípio da verossimilhança e o princípio do livre convencimento do juiz. A tutela cautelar, por ser considerada um instrumento, depende da ação principal, além disso, há outros dois pressupostos para a sua concessão, quais sejam: fumus boni iuris e periculum in mora. Quanto à tutela antecipada Sebastian Watenberg Ruanoba assim a conceitua: podemos definir a tutela antecipada como um instituto jurídico que autoriza, nas hipóteses ali descritas, que o juiz conceda ao autor da demanda, ou ao réu, no caso das ações dúplices, um provimento liminar que assegure provisoriamente o bem jurídico a que se refere a prestação do direito material reclamada como objeto da relação jurídica envolvida no litígio. Assim, é a antecipação de tutela um direito subjetivo processual, por meio do qual a parte pode pretender que, desde que preenchidos os requisitos legais, lhe sejam antecipados no todo ou em parte os prováveis futuros efeitos da decisão final de mérito. De acordo com o caput do artigo 273 do Código de Processo Civil (CPC) a tutela antecipada possui dois pressupostos imprescindíveis e cumulativos para a sua concessão, que são: prova inequívoca e a verossimilhança da alegação. Há ainda os pressupostos alternativos que estão previstos nos incisos, quais sejam: a) receio de dano irreparável ou de difícil reparação, representado pelo periculum in mora; ou b) o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. As tutelas de urgência, tanto a cautelar, como a antecipada possuem algumas semelhanças como a possibilidade de serem concedidas através de liminar e de não serem definitivas, entretanto, Sebastian Watenberg Ruanoba sabiamente as diferenciou: (…) a tutela antecipatória confunde-se com o próprio resultado final, o que não acontece com a cautelar, que apenas assegura determinado direito. Enquanto a tutela cautelar apenas assegura o direito material da parte, a tutela antecipatória realiza a pretensão. Ainda, quando da análise da concessão ou não da tutela cautelar, devem ser verificados o fumus boni iuris e o periculum in mora, ou seja, a cognição no plano material realiza-se apenas para verificar a plausibilidade e o dano, enquanto quando da análise da concessão ou não da tutela antecipada as exigências vão além da prova do fumus boni iuris e o periculum in mora, exigindo-se a prova inequívoca para convencimento a respeito da verossimilhança das alegações; o juízo de probabilidade é feito desde logo com o fito de se entregar ao autor o bem da vida. Finalmente, é oportuno lembrarmos que, em que pese a inegável fungibilidade entre ambas as espécies de tutela em comento, deve a tutela cautelar ser requerida mediante ação autônoma, enquanto a tutela antecipatória deve ser requerida, em princípio, nos próprios autos. O artigo 273, § 7º do Código de Processo Civil autoriza expressamente a aplicação do princípio da fungibilidade. Conforme entende Theotonio Negrão e outros autores (2010, p. 384), esta fungibilidade tem caráter dúplice, ou seja, tanto a tutela antecipada pode ser convertida em medida cautelar, quanto o contrário. Contudo, é necessário que os requisitos da tutela que será convertida, estejam preenchidos e também, que não se trate de erro grosseiro. 31 Dentre as tutelas de urgência as mais importantes, doutrinariamente, são: 1) Tutela Inibitória A tutela inibitória visa inibir, impedir um ilícito, como o próprio nome sugestiona, seja sua prática, repetição ou continuação. Sendo de caráter preventivo, ou seja, não há necessidade que o ilícito se concretize para suplicar amparo ao judiciário, bastando a simples ameaça. Está embasada no artigo 5º, inciso XXXV da CF/88, onde explicita que “a lei não excluirá lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário”. A tutela inibitória pode ser postulada tanto sozinha, quanto em concurso com a tutela ressarcitória, sendo isolada quando estiver presente apenas ameaça e cumulativa quando tiver por objetivo obstar que continue ou se repita a ação, pois, o dano já ocorreu nestes casos, conforme ensina Humberto Theodoro Júnior (2010, p. 62). As cautelares são ações que dependem de uma ação principal, além de serem de caráter não satisfativo. Com a inserção do artigo 461 do CPC, não há mais necessidade de interposição de uma ação cautelar para inibir a violação de um direito, pois, caso fossem pleiteadas ao obterem êxito estariam sendo satisfativas e não necessitariam da ação principal. Em virtude disto, estando presentes os requisitos da inibitória poderá ser proposta ação de conhecimento, que será autônoma. Para a caracterização da tutela inibitória basta a demonstração da probabilidade da prática do ilícito, sua repetição ou continuação, sendo que o dano e a culpa não enquadram nos pressupostos. Por ser uma tutela que visa amparar lesão ou ameaça, não se faz necessária a ocorrência do dano em si, basta que haja a ameaça para o deferimento da tutela inibitória. Também não é necessária a demonstração de culpa. O artigo 461 do Código de Processo Civil prevê a tutela inibitória individual, enquanto que a tutela dos interesses difusos e coletivos está prevista no artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor . Preceituam os artigos 461, §4º do Código de Processo Civil e 84, §4º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que o juiz poderá, de ofício, impor multa diária ao réu e fixar prazo razoável, independentemente de pedido do autor, visando assegurar o resultado prático equivalente ao adimplemento da obrigação, ou seja, buscando o princípio da efetividade do processo, porém, pautado pelo princípio da proporcionalidade (MARINONI, 2011, p. 441-442). 2) Tutela Inibitória Executiva Também é destinada a evitar o ilícito e é puramente preventiva, entretanto, prescinde da vontade do demandado. Atua através de meios executivos, isto é, quando se designa alguém, pode ser um interventor, administrador, oficial de justiça ou qualquer outra pessoa, para que faça 32 ou deixe de fazer algo no lugar do réu, independentemente de sua vontade. Mostra-se necessária sua aplicação quando for perceptível que o réu não irá adimplir, mesmo com a ordem e ainda quando ele não detém patrimônio, demonstrando que não se sujeitará a multa (MARINONI, 2011, p. 444-445). As medidas executivas estão exemplificadas no §5º do artigo 461 do Código de Processo Civil e no artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor. 3) Tutela Inibitória do Inadimplemento Neste tipo de tutela não há propriamente um ilícito, mas sim um inadimplemento ou sua repetição. 4) Tutela de Remoção do Ilícito Segundo Marinoni (2010, p. 423), esta tutela tem como fito eliminar, remover uma situação de ilicitude ou os efeitos derivados de uma ação ilícita que já ocorreu. Trata-se de uma tutela repressiva, sendo pressuposto a ocorrência de ilícito que deixou efeitos concretos continuados, não levando em consideração o dano e a culpa ou dolo (elemento subjetivo). Com a remoção da ilicitude pretende que os efeitos causados pelo ato não permaneçam, ou seja, é aplicada esta tutela temendo que os efeitos ilícitos continuem a alastrar, cabendo então apenas a remoção dos efeitos em si. 5) Tutela Reintegratória A tutela reintegratória visa remover ou eliminar o próprio ilícito, a causa do dano. Basta que haja a transgressão de uma norma jurídica, não importando se houve lesão ou dano, sendo uma tutela contra o ilícito, independentemente de dolo ou culpa. Também é considerada uma tutela repressiva, pois, o ilícito já está consumado, e independe de comprovar o dano ou culpa. Objetiva eliminar a situação de ilicitude, restabelecendo a situação anterior ao ato contrário ao direito. 6) Tutela Ressarcitória É a tutela contra o dano, sendo este um dos pressupostos, além do elemento subjetivo, culpa ou dolo, isto é a correlação entre o evento danoso ao sujeito. Tem por finalidade gerar a reparação do dano ocasionado, voltando o patrimônio jurídico da vítima ao estado anterior. É uma tutela repressiva, pois é aplicada quando já houver ocorrido o dano. Independe de culpa do infrator e ainda não é necessário que o dano seja decorrente de um ato ilícito, podendo ocorrer, por exemplo, nos casos de legítima defesa (DIDIER, et al., 2008, p. 372). 33 Esta tutela pode ser prestada de duas formas: na forma específica, que é na reparação do dano em si, tentando voltar ao mais próximo do estado que estava antes da lesão e pelo equivalente ao valor da lesão, versa uma compensação em dinheiro. 7) Tutela Ressarcitória na forma específica Para a caracterização desta o infrator deve ressarcir, portanto, eliminar o dano mediante um fazer, reparando, ou seja, fazendo ou entregando a coisa igual a destruída, que significa eliminar o estrago. Esta tutela não pretende apenas restabelecer a situação anterior ao dano, buscando atingir a situação que existiria caso o dano não tivesse ocorrido (MARINONI, 2011, p. 453). 8) Tutela pelo Equivalente Monetário Baseado no artigo 461, §1º do Código de Processo Civil, esta tutela tem caráter residual, devendo ser usada quando o dano ou a obrigação contratual inadimplida não puder ser alcançada através da tutela específica ou a obtenção de resultado prático equivalente, ou seja, através da tutela ressarcitória na forma específica ou da tutela do adimplemento na forma específica. Em outras palavras é a tutela que visa o pagamento equivalente ao valor do dano (MARINONI, 2011, p. 454). 9) Tutela Específica da Obrigação Inadimplida ou Cumprida de Modo Imperfeito (T utela do Adimplemento) Aplicada quando há inadimplemento ou cumprimento imperfeito da obrigação, podendo ser exigida a prestação. Não tem correlação com o dano, ligando-se apenas ao adimplemento. É uma tutela repressiva, contempla apenas a obrigação inadimplida ou adimplida com vícios, podendo ser prestada através de sentença mandamental ou executiva. No caso de tutela do adimplemento o credor tem o direito de exigir a correção do defeito, suas formas estão previstas nos artigos 18, 19 e 20 do Código de Defesa do Consumidor (MARINONI, 2010, p. 424). 2. DAS TUTELAS PREVISTAS NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Conforme estabelece a Constituição Federal de 1988, de acordo com o artigo 5º, inciso XXXV, “a lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”, ou seja, é uma garantia constitucional o acesso à justiça, todos têm direito de buscar no Judiciário a solução para os seus litígios em caso de ameaça ou violação de seus direitos. 34 E ainda, conforme o artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal, é garantido a todos “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Em virtude disso, e com a maior divulgação dos direitos, aumenta a cada dia o número de ações ajuizadas. Entretanto, o Judiciário não está preparado para esta elevação de demandas, além de tudo há litígios que são de caráter emergencial, não podendo ficar a mercê da justiça aguardando ao deslinde da ação, surgindo então a necessidade das medidas de urgência que são de enorme importância para a efetividade do direito (DIDIER, et al., 2011, p. 232). As medidas de urgência foram divididas em tutelas de urgência e tutelas de evidência, estando previstas no título IX, artigo 277 ao 296, do projeto do novo Código de Processo Civil. As tutelas de urgência e evidência visam atenuar eventuais danos emergentes que possam ocorrer em decorrência de circunstâncias de fato ao direito material, em virtude da prestação tardia da tutela jurisdicional. Ao elaborar o projeto do novo Código de Processo Civil os legisladores, visando a efetividade do direito e a celeridade do processo, eliminaram o livro III do atual Código de Processo Civil que tratava dos processos cautelares, trazendo apenas as medidas de urgência, dando um tratamento em conjunto. As disposições gerais estão evidenciadas nos artigos 277 a 282 do projeto conforme a seguir exposto: Art. 277. A tutela de urgência e a tutela da evidência podem ser requeridas antes ou no curso do procedimento, sejam essas medidas de natureza cautelar ou satisfativa. Art. 278. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação. Parágrafo único. A medida de urgência poderá ser substituída, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pela prestação de caução ou outra garantia menos gravosa para o requerido, sempre que adequada e suficiente para evitar a lesão ou repará-la integralmente. Art. 279. Na decisão que conceder ou negar a tutela de urgência e a tutela da evidência, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. Parágrafo único. A decisão será impugnável por agravo de instrumento. Art.280. A tutela de urgência e a tutela da evidência serão requeridas ao juiz da causa e, quando antecedentes, ao juízo competente para conhecer do pedido principal. Parágrafo único. Nas ações e nos recursos pendentes no tribunal, perante este será a medida requerida. Art. 281. A efetivação da medida observará, no que couber, o parâmetro operativo do cumprimento da sentença e da execução provisória. 35 Art.282. Independentemente da reparação por dano processual, o requerente responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a efetivação da medida, se: I – a sentença no processo principal lhe for desfavorável; II – obtida liminarmente a medida em caráter antecedente, não promover a citação do requerido dentro de cinco dias; III – ocorrer cessação da eficácia da medida em qualquer dos casos legais; IV – o juiz acolher a alegação de decadência ou da prescrição do direito do autor. Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida. (BRASIL, Projeto de Lei do Senado n° 166 de 2010). Não foram mantidas as cautelares nominadas como o arresto, sequestro, busca e apreensão, dentre outros, havendo uma generalização. Portanto, ao requerer a liminar o autor não mencionará que é de arresto ou de outra natureza, apenas pleiteará a concessão da medida de urgência. Quando a tutela cautelar era antecedente havia a necessidade da propositura de duas ações, porém, o projeto inova ao determinar que tratando de tutela antecedente esta inaugurará o processo, e nesta mesma relação inicia-se a ação principal (FUX, et al. 2011, p. 17). Em outras palavras, as tutelas de urgência e as tutelas de evidência podem ser ajuizadas nos próprios autos principais, não necessitando a propositura em autos apartados como vinha acontecendo. E ainda pode, de acordo com o artigo 277 do projeto, ser requerida, além de antecedente, no curso do procedimento. Assim como no atual Código de Processo Civil, as medidas de urgência devem seguir as regras de competência. Caso a medida de urgência seja antecedente a causa esta deverá ser requerida ao juízo competente para conhecer do pedido principal. Tratando-se de medida incidental estas serão requeridas ao juiz da causa. A medida deverá ser requerida perante o tribunal, se estiver pendente a este a ação ou o recurso. Há também a possibilidade da aplicação do princípio da fungibilidade, não tendo mais importância o nomen juris, desde que presentes os requisitos da tutela de urgência, por ser mais abrangente (MONTENEGRO FILHO, 2011, p. 275). Caso a parte intente com uma tutela, sendo que se encontram presentes os requisitos da outra, é perfeitamente possível a aplicação da tutela correta pelo magistrado utilizando de tal princípio. O processo cautelar tinha como uma de suas principais características a instrumentalidade, ou seja, na cautelar não discutia sobre a lide e não tinha, portanto, caráter satisfativo. Já as tutelas de urgência do projeto podem ter tanto o caráter satisfativo, quanto cautelar (não satisfativo). Sendo que tanto para uma, quanto para a outra os requisitos exigidos são os mesmos. No caso de tutela de urgência satisfativa os riscos é para o direito da parte, conforme estabelece o artigo 282 do projeto do novo Código de Processo Civil. Admite-se também, baseado no artigo 278 do projeto, que o juiz, de ofício, determine as medidas adequadas, caso haja receio de que uma parte cause lesão de grave e difícil reparação ao direito da outra antes mesmo do julgamento da lide, é o 36 poder geral de cautela outorgado ao magistrado para que, no caso concreto, aplique as medidas que julgar necessárias para a proteção do direito que se busca. Há ainda a possibilidade de substituição da medida de urgência pela prestação de caução ou outra garantia que seja menos gravosa para o requerido, desde que adequada e suficiente para evitar a lesão ou repará-la integramente, podendo ser de ofício ou a requerimento das partes, conforme preceitua o parágrafo único do artigo 278 do projeto. Trata-se de contra-cautela ou caução substitutiva correspondente ao artigo 805 do CPC atual. Igualmente ao atual Código de Processo Civil, as decisões judiciais devem ser motivadas, como estabelece o princípio constitucional da motivação das decisões do Poder Judiciário previsto no artigo 93, IX da CF/88, não sendo diferente aqui nas medidas de urgência, cabendo ao juiz indicar as razões de seu convencimento em ambas as tutelas, evidência e urgência, mesmo que as negue, tendo em vista a alta periculosidade quando se concede ou nega a tutela de urgência. Estando a tutela restrita a cognição sumária, a decisão também será restrita a esta. Agora tratando de cognição exauriente, a motivação da decisão deverá acompanhá-la. A decisão que nega ou concede a medida requerida tem natureza de decisão interlocutória, e não de sentença, pois, segundo artigo 279, parágrafo único do projeto do Novo Código de Processo Civil, o recurso viável é o de agravo de instrumento. O legislador ao introduzir as medidas de urgência de maneira mais simplificada e sem tantos requisitos, visando dar segurança jurídica estabelece regras para que o requerente responda ao requerido pelos prejuízos causados a parte contrária com a efetivação da medida, além da reparação processual no artigo 282 do projeto. Cuida-se de responsabilidade objetiva por dano processual em razão da concessão da tutela de urgência ou tutela de evidência (MARINONI, L. G.; MITIDIERO, Daniel, 2010, p. 110). Esta indenização será liquidada nos próprios autos em que foi concedida a medida, de acordo com o parágrafo único do artigo 282 do projeto. O rol do artigo 282 do projeto do novo Código de Processo Civil enumera as situações em que o autor será responsabilizado, contudo, o rol é taxativo. O primeiro é quando a sentença no processo principal seja desfavorável ao requerente. Em segundo lugar, o legislador elencou a situação em que obtida liminarmente a medida em caráter antecedente, o requerente não promova a citação do requerido no prazo de cinco dias. Outra hipótese foi quando ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer dos casos legais. Em último lugar, quando for acolhida a alegação de decadência ou da prescrição do direito do autor. É evidente que as tutelas de urgência têm caráter prioritário na tramitação, mesmo assim o legislador não quis deixar dúvidas quanto a isto, preceituando que os processos em que tenham sido concedidas as tutelas de evidência e de urgência tramitarão prioritariamente, respeitando as demais preferências legais. Pretendendo que as medidas de urgência alcancem o objetivo principal, que é a efetividade, buscou a utilização de medidas de apoio. Neste sentido o legislador ao 37 elaborar o artigo 281 do projeto do novo Código de Processo Civil (PLS 166/10) autorizou a utilização dos “parâmetros operativos do cumprimento de sentença e da execução provisória, no que couber”, para fazer valer a decisão proferida nos casos de medidas de urgência. Quanto à audiência referida no artigo 288, § 1º do projeto do novo Código de Processo Civil deverá ser designada apenas quando tratar de medida de urgência requerida em caráter antecedente e caso necessite de produção de prova oral. 3. DA TUTELA DE URGÊNCIA Sebastian Watenberg Ruanoba conceitua as tutelas de urgência da seguinte forma: as tutelas de urgência são modalidades de tutela jurisdicional que, em razão das especificidades da relação de direito material a que têm correspondência, ou em razão de técnicas legislativas, podem ser caracterizadas em uma categoria única. Destinam-se, primordialmente, a acelerar a eficácia prática da tutela jurisdicional, evitando que o tempo acabe comprometendo a sua efetividade e caracterizam-se, essencialmente, pela urgência e pela sumariedade da cognição exercida pelo juiz. O legislador disciplinou no título IX, capítulo I, seção II, artigo 283 e 284 do projeto do Novo Código de Processo Civil conjuntamente à tutela de urgência cautelar e a satisfativa, da seguinte forma: Art. 283. Para a concessão de tutela de urgência, serão exigidos elementos que evidenciem a plausibilidade do direito, bem como a demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Parágrafo único. Na concessão liminar da tutela de urgência, o juiz poderá exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que o requerido possa vir a sofrer, ressalvada a impossibilidade da parte economicamente hipossuficiente. Art. 284. Em casos excepcionais ou expressamente autorizados por lei, o juiz poderá conceder medidas de urgência de ofício. (BRASIL, Projeto de Lei do Senado n° 166 de 2010) Conforme estão dispostas na seção II, do capítulo I, do projeto do novo Código de Processo Civil, a tutela cautelar e a tutela satisfativa são espécies do gênero tutelas de urgência. Quanto aos requisitos para a concessão da tutela de urgência não houve alteração expressiva em relação ao atual Código de Processo Civil. Permaneceu o fumus boni iuris expressado pela plausibilidade do direito, bem como o periculum in mora tratado como o risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Sendo os requisitos comuns tanto para a tutela cautelar, quanto a satisfativa. É o periculum in mora que diferencia a tutela de urgência da tutela de evidência, uma vez que na tutela de urgência demanda a comprovação do estado de risco, 38 necessitando do amparo jurisdicional rápido. Enquanto que na tutela de evidência não há a exigência deste requisito (MONTENEGRO FILHO, 2011, p. 277). Tendo em vista que as tutelas de urgência passaram a ser inominadas, basta que haja o periculum in mora e o fumus boni iuris, seja a tutela de urgência cautelar ou satisfativa, o juiz poderá deferir qualquer tipo de tutela que atenda a necessidade da plausibilidade do direito, ou seja, o legislador ao inserir as tutelas sem especificar o nomen juris possibilita ao juiz uma ampla discricionariedade para proteger o direito material da parte que será definido após no pedido principal. A estipulação dos mesmos requisitos para as tutelas de urgência cautelares e tutelas de urgência satisfativas tem sido objeto de críticas. Primeiro elucidam que há uma confusão entre as tutelas antecipadas, que são as satisfativas, e as tutelas cautelares, pesando que apenas o perigo de dano com a demora processual deveria ser comum as duas espécies, mas não a fumaça do bom direito. Outro ponto é que para se acautelar os requisitos deveriam ser menos rigorosos do que os que visam antecipar os efeitos práticos do pedido principal, tornando a antecipação de tutela menos rígido ao mesmo tempo em que se exige um toque meritório para a concessão da cautelar (DIDIER, et al., 2011, p. 245). Em ambas, há a necessidade de demonstrar o risco de dano irreparável ou de difícil reparação, enquanto que este requisito deveria ser exigido apenas nas tutelas cautelares, por se tratarem de tutela temporária, ou melhor, dura por determinado tempo, tendo uma finalidade própria, que não se confunde com o objeto que ela visa assegurar. A proteção, neste caso, dura apenas enquanto permanecer o perigo de dano. Já a tutela antecipatória (satisfativa) é devida quando não se pode esperar o desfecho da ação, antecipando-a. Existe, então, um perigo na demora da prestação jurisdicional, que é traduzida pelo periculum in mora. É, portanto, uma tutela provisória que será substituída por outra ao final, é utilizada até que venha a definitiva para substituir (DIDIER, et al., 2011, p. 244). 3.1 Da tutela de urgência cautelar Como foram expostos, os trâmites processuais demandam certo lapso temporal, o que é inevitável. Neste decurso de tempo o objeto envolvido na lide tende a se alterar, tornando a prestação jurisdicional concedida no desfecho da ação ineficaz. Aparece então a necessidade das medidas cautelares num todo como forma de “prevenção ou cautela necessária para conservação das pessoas, coisas, etc.”, isto é, um instrumento de combate à demora do processo, demora esta que é imprescindível, desde que seja razoável (DIDIER, et al., 2011, p. 239). A finalidade primordial das medidas cautelares é a obtenção de segurança para tornar útil e eficaz o processo em todas as suas fases. Alguns doutrinadores como Elpídio Donizetti, Calamandrei e Wambier chegam a falar que a cautelar é o instrumento do instrumento, considerando que o processo é um 39 instrumento da jurisdição e a cautelar é um instrumento que visa garantir o resultado do processo. As cautelares por serem obtidas através de liminares são mais rápidas e eficazes, tendo em mente seu caráter emergencial. Segundo Ovídio Batista da Silva, a tutela cautelar é uma forma de proteção jurisdicional que, em virtude da situação de urgência, determinada por circunstâncias especiais, deve tutelar a simples aparência do bom direito posto em estado de risco e dano iminente (apud DIDIER, et al., 2011, p. 241) A tutela cautelar é de natureza não satisfativa, necessitando de outro complemento para atender os objetivos materiais da parte. Sua função principal é garantir o resultado útil do processo, assegurando a realização do direito ao final da demanda. Através dela não é aplicado o direito em si, apenas se prepara os meios para que a tutela jurisdicional definitiva seja eficaz, útil e operante (DIDIER, et al., 2011, p. 241-242). É através do poder geral de cautela que o Estado-juiz obtém a autorização para conceder as medidas cautelares visando assegurar a eficácia processual. Poder geral de cautela é o poder que o juiz tem de criar medidas que assegurem o direito da parte diante de situações que não estão previstas ou reguladas expressamente em lei (DIDIER, et al., 2011, p. 242). Para a obtenção da tutela cautelar, com o advento do projeto do novo Código de Processo Civil, basta que ao elaborar a inicial se comprove os requisitos e requeira a tutela cautelar liminarmente, estando diante de uma tutela incidental. Mas caso a parte tenha a urgência, porém, não seja possível demonstrar de plano o seu pedido inicial com relação ao direito violado ou ameaçado, admite-se que intente com a tutela cautelar em caráter antecipatório, desde que indique a lide, seu fundamento e a exposição sumária do direito ameaçado e do receio de lesão, conforme artigo 286 do projeto do novo Código de Processo Civil. O projeto do novo Código de Processo Civil em seu artigo 287 inova ao trazer a estabilização dos efeitos da tutela cautelar, que nada mais é do que nos casos de tutela antecedente em que o requerido ao ser citado não contestar o pedido ou apresentar as provas que pretende produzir, no prazo de cinco dias, constando no mandado a advertência de que, não impugnada decisão ou medida liminar eventualmente concedida, esta continuará a produzir os efeitos independentemente da formulação de um pedido principal pelo autor. Quanto à contagem do prazo acima exposto, ficou firmado que conta-se a partir da juntada aos autos do mandado de citação devidamente cumprido ou se efetivada a medida, quando concedida liminarmente ou após justificação prévia, da intimação do requerido, inteligência do parágrafo 2º, do artigo 287 do projeto do novo Código de Processo Civil. Segundo Fredie Didier (et al., 2011, p. 246), foi acolhida a tese de que mesmo após justificação prévia a medida continua tendo caráter liminar. 40 Havendo contestação e provas a produzir o magistrado designará desde logo audiência de instrução e julgamento (artigo 288, §1º, PLS 166/10). Estipula o artigo 288, parágrafo 2º do projeto do novo Código de Processo Civil, Projeto de Lei do Senado, n° 166 de 2010 (PLS 166/10), que “concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugnação, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia”. Assim, não há razão para prosseguir com o processo se não for contestado o pedido que foi deferido. Entretanto, caso seja proposto o pleito principal a eficácia da medida persistirá até decisão em contrário. Ensina Fredie Didier, et al. (2011, p. 247) que a medida de urgência, só e somente ela, conservará sua eficácia, mesmo que não tenha sido veiculado o pedido principal, durante o período de suspensão do processo ou caso não haja impugnação ou não tenha sido proposta ação por qualquer das partes objetivando discutir os efeitos estabilizados, desde que não revogadas por decisão de mérito. É claro o legislador ao estabelecer que a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, podendo ser afastada a estabilidade dos respectivos efeitos pela decisão que a revogar, proferida em ação ajuizada por uma das partes. Para a discussão da medida estabilizada é necessário a propositura de uma nova ação, podendo ser ajuizada por qualquer uma das partes, conforme estabelece o artigo 293 do projeto, justificando a necessidade de revogá-la ou substituí-la. Sua alteração ou modificação deverá ser realizada através de decisão expressa de acordo com a nova situação demonstrada. A parte poderá também requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida para instruir a petição inicial desta nova ação. Manteve-se para as decisões de tutela de urgência o agravo de instrumento como recurso cabível caso haja discordância com a decisão proferida pelo magistrado, possibilitando a sustentação oral. Em poucas palavras a tutela cautelar é caracterizada por ser útil a proteção do processo, consequentemente não deve ter qualquer relação com o direito material propriamente dito. 3.2 Da tutela de urgência satisfativa O projeto do novo Código de Processo Civil criou instrumentos passíveis de trazer celeridade e efetividade ao direito tutelado, através de um procedimento único (tutelas de urgência) que são ajustáveis caso a caso. Segundo Luiz Fux (et al., 2011, p.18), a diferença entre a tutela satisfativa e a cautelar está no periculum in mora, uma vez que para as cautelares este requisito incide sobre a utilidade do processo, já nas satisfativas o risco é para o direito da parte. 41 Buscando minimizar os efeitos prejudiciais do decorrer do tempo o legislador propôs antecipar os efeitos práticos da sentença sempre que possível, objetivando dividir os ônus decorrentes da demora no transcurso do processo. De acordo com Carreira Alvim (apud DIDIER, et al., 2011, p. 251) buscando a celeridade processual houve a antecipação da prestação jurisdicional, ou seja, a deslocou do fim para o princípio do processo. A partir de então o juiz poderá emitir um provimento no início da demanda desde que fundado num juízo de probabilidade, que no atual Código de Processo Civil é explicitado pelos artigos 273, 461 e 461-A que tratam de tutela antecipada e tutela específica, similares ao instituto da antecipação dos efeitos práticos da tutela. Mesmo com as semelhanças, por serem as tutelas diferenciadas materializadas via liminar objetivando satisfazer a pretensão material que está estremecida pela demora processual, estes institutos são distintos. Os artigos 461 e 461-A do atual Código de Processo Civil são uma antecipação de tutela específica, sendo que a primeira é utilizada nas obrigações de fazer e não fazer e a segunda nas obrigações de entrega de coisa certa ou incerta. O artigo 273 do atual Código de Processo Civil é a antecipação de tutela stricto sensu sendo de caráter eminentemente residual, ou melhor, o que não enquadrar nas obrigações de dar coisa certa ou incerta (artigo 461-A, CPC) ou nas obrigações de fazer e não fazer (artigo 461, CPC) será amparado pela antecipação de tutela (artigo 273, CPC). As tutelas específicas e as tutelas antecipadas são formas de tutelas de urgência, podendo ser deferida uma ou outra, caso a parte tenha feito o requerimento errado de uma e o juiz verifique estarem presentes os pressupostos necessários de outra. Quando a parte requer uma tutela específica na forma de liminar estamos tratando de uma espécie de tutela de urgência satisfativa. O legislador ao elaborar o projeto optou por utilizar o termo tutela satisfativa ao invés de tutela antecipatória. A antecipação de tutela é vista por muitos como um prejulgamento. Entretanto, a antecipação ocorre em todas as liminares, inclusive na cautelar. Já com a tutela de urgência satisfativa “há uma satisfação imediata, no plano prático dos efeitos que somente seriam atingidos com a prolação da sentença de mérito” (DIDIER, et al., 2011, p. 254). A referida tutela de urgência foi instituída para garantir a satisfação da parte e objetivando proteger os resultados perseguidos no processo, ao menos no aspecto fático, mesmo que o momento não seja o ideal, que seria o da prolação da sentença definitiva. Assim, conforme ensina Didier: a antecipação dos efeitos práticos ou externos da tutela jurisdicional tem por escopo concretizar, desde logo, os resultados perseguidos no processo, garantindo a satisfação do direito da parte mesmo antes do momento que seria próprio, a prolação da sentença definitiva, tudo como forma de homenagear os postulados da celeridade e da efetividade do direito via processo (et al., 2011, p. 255). 42 A medida liminar é aquela que objetivando satisfazer a pretensão e assegurar o resultado prático do processo evitando dano irreparável e de difícil reparação para a parte autora determina a entrega da pretensão pleiteada anteriormente a prolação da sentença. As liminares tanto na tutela antecipada, quanto na específica, têm a mesma pretensão, entretanto os pressupostos possuem pequenas diferenças e distintas previsões legais no atual Código de Processo Civil, que no projeto será tratado conjuntamente. A antecipação dos efeitos práticos da tutela e o recebimento da prestação liminar são direitos subjetivos da parte, independe da discricionariedade do magistrado, sendo, portanto, um dever do juiz concedê-los, desde que preenchidos os pressupostos autorizadores como prova inequívoca e verossimilhança que dizem respeito a probabilidade, e o receio de dano irreparável e de difícil reparação. O projeto do Código de Processo Civil, como foi dito, adotou termo tutela satisfativa como a antecipação dos efeitos práticos da tutela, por entender que esta era uma espécie da tutela de urgência, tendo, inclusive, os mesmos pressupostos. Há alguns casos que é de relevante importância que se permita que a parte desde logo comece a gozar faticamente de seu direito violado ou até mesmo ameaçado levando em consideração a urgência, pois, em alguns casos a demora judicial pode causar inúmeros prejuízos ao direito da parte que não tem como esperar até a sentença para ver seu direito protegido. Ao utilizar a expressão plausibilidade do direito no artigo 283 do projeto do novo Código de Processo Civil o legislador envolve todas as tutelas de urgência, cautelar e satisfativa. O rigor para a concessão das tutelas satisfativas foram então amenizados, uma vez que no atual Código de Processo Civil exige-se prova inequívoca que leve a verossimilhança das alegações. Contudo, para o deferimento da tutela cautelar houve uma piora, pois, para esta não há a necessidade de uma prova mais profunda do direito alegado. Enfim, não se pode exigir os mesmos requisitos para satisfazer e para acautelar, mesmo que ambos tenham caráter de urgência (DIDIER, et al., 2011, p. 257). Tendo em vista que a tutela satisfativa exige um rigor maior do que a cautelar, nos casos em que o magistrado entender necessário poderá até ser substituída pela caução. A tutela satisfativa obedece ao procedimento geral estabelecido no projeto, assim como a tutela cautelar. Diferenciam-se apenas quando o autor pleiteia uma tutela cautelar antecedente, sendo que, na verdade, deveria ter pleiteado tutela satisfativa, levando em consideração o princípio da fungibilidade, deverá o juiz ao perceber o equívoco determinar que o autor emende a inicial para acrescentar os pedidos finais (DIDIER, et al., 2011, p. 258). 4. DA TUTELA DE EVIDÊNCIA 43 Nos dizeres de Fredie Didier (et. al., 2008, p. 365): a evidência é uma situação processual que determinados direitos se apresentam em juízo com mais facilidade do que outros. Há direitos que têm um substrato fático cuja prova pode ser feita facilmente. Esses direitos, cuja prova é mais fácil, são chamados de direitos evidentes, e por serem evidentes merecem tratamento diferenciado. Quanto mais provas o requerente tiver mais evidente será seu direito. A tutela de evidência, assim, como as demais medidas de urgência, tem como objetivo primordial a busca da celeridade, levando em conta a efetividade do direito, a economia processual e a segurança. Didier (et al., 2011) assim conceitua a tutela de evidência como: aquela que é dada após se constatar como o próprio nome diz a evidência do direito alegado, ou seja, não há discussão sobre o direito que se quer ver protegido imediatamente, logo não se fala em plausibilidade, mas em constatação de plano do direito alegado. (p. 260) O Projeto do Novo Código Civil no título IX, capítulo I, seção III, no artigo 285 estabelece que a tutela de evidência será admitida nos seguintes casos: Art. 285. Será dispensada a demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação quando: I – ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do requerido; II – um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que a solução será definitiva; III – a inicial for instruída com prova documental irrefutável do direito alegado pelo autor a que o réu não oponha prova inequívoca; ou IV – a matéria for unicamente de direito e houver jurisprudência firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante. Parágrafo único. Independerá igualmente de prévia comprovação de risco de dano a ordem liminar, sob cominação de multa diária, de entrega do objeto custodiado, sempre que o autor fundar seu pedido reipersecutório em prova documental adequada do depósito legal ou convencional. (BRASIL, Projeto de Lei do Senado n° 166 de 2010). Diferentemente da tutela de urgência, na tutela de evidência não há necessidade de comprovação do periculum in mora, basta que se complete o requisito isolado exposto em cada inciso do artigo acima citado. Há uma quase certeza do direito alegado, é uma forte probabilidade ou certeza de existência do direito pleiteado. O projeto propõe que, quando se tratar de direito evidente com prova inequívoca, baseado no princípio da isonomia e na distribuição paritária entre as partes, independentemente do requisito da urgência, não seria justo que a parte aguardasse o término da ação para que se beneficiasse de seu direito, ou seja, é inadmissível que se adie a satisfação da parte que possui o melhor direito (FUX, et al., 2011, p. 18). Caracterizada a tutela de evidência para determinado fato será proferida sentença, sendo considerada resolvida a questão, logo fazendo coisa julgada. 44 Esta tutela se assemelha à tutela antecipada e é empregada como tal, porém, dispensando o risco de dano para o seu deferimento, pois se funda num direito que não pode ser contraposto da parte ré. Tanto as tutelas de cognição exauriente, quanto as sumárias foram disciplinadas no mesmo artigo 285 do projeto. Os incisos I, II, III e IV tratam de cognição sumária, ou seja, é aquela em que o juiz baseia-se na probabilidade, uma cognição superficial. Já o inciso II cuida de cognição exauriente, quer dizer que o magistrado aprofundará no fato, a fase de conhecimento é completa (MARINONI; MITIDIERO, Daniel. 2010, p. 108). Na maioria das hipóteses elencadas no artigo 285 do projeto do Novo Código de Processo Civil, há a necessidade da formação da relação processual, vez que a maior parte dos casos de tutela de evidência se dá após a citação do réu (MONTENEGRO FILHO, 2011, p. 277). As situações explanadas nos inciso I e III necessitam da participação do réu para seu deferimento, enquanto que a do inciso IV pode ser enquadrada inaudita altera parte, em outras palavras sem a necessidade do réu, por ser perfeitamente possível a obtenção da liminar quando se tratar de casos repetitivos ou exista súmula vinculante, desde que a matéria seja unicamente de direito. Em ambos os casos em que é cabível a tutela de evidência, a defesa torna-se inconsistente ou previsivelmente inconsistente (MARINONI; MITIDIERO, Daniel, 2010, p. 109). Não tem como caracterizar o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do requerido sem que este tenha sido citado. E ainda, quanto ao pedido incontroverso só pode ser auferido após o prazo para resposta, consequentemente, após a formação da relação processual, com a citação. Por fim, a prova documental é irrefutável quando o réu não oponha prova inequívoca, também após o decurso do prazo da contestação. Conclui-se que nestes casos é necessária a formação da relação processual, consequentemente é mister a citação do requerido. A questão trazida no inciso I do artigo 285 do projeto se assemelha ao artigo 273, II do atual Código de Processo Civil, uma vez que ambos tratam de casos em que o réu abus a de seu direito de defesa ou age propositadamente de forma protelatória. Este inciso trata de uma tutela antecipada não urgente e sancionadora, por isso depende de requerimento, não cabendo ao juiz aplicá-la de ofício. No que pertine a tutela de evidência relativa a pedidos incontroversos que está inserida no inciso II do artigo 285 do projeto do Novo Código de Processo Civil, instituto que se identifica com o § 6º do artigo 273 do atual Código de Processo Civil, como já foi dito necessita de uma decisão judicial baseada em cognição exauriente, ou seja, o magistrado tem todos os elementos de fato e de direito que o possibilitam esgotar a matéria posta em análise para desde logo decidir. Como todos os elementos necessários, a decisão já está, desde o início, à sua disposição, não há necessidade que o juiz espere o deslinde da ação, pois, a continuação 45 do processo não traria nenhum elemento capaz de alterar sua convicção a respeito daquele assunto (FUX, et al., 2011, p. 81). O inciso supracitado será aplicado quando um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que a solução será definitiva. O inciso III do artigo 285 do projeto preceitua que deve haver prova inequívoca do direito do autor, porém, esta prova por si só não é suficiente para o julgamento procedente, abrindo então espaço para que o réu se defenda. A intimação da parte contrária para manifestar acerca do requerimento de aplicação da tutela de evidência no inciso acima referido se faz necessária, também, para manter incólume o princípio da ampla defesa e do contraditório, momento este que o requerido poderá especificar eventuais provas que demonstram o contrário do que fora requerido pelo autor. Caso não se pronuncie acarretará a revelia e será adiantada a tutela. O autor deverá ter uma prova extremamente forte do fato constitutivo do seu direito. Entretanto, cabe ao réu provar, também através de documentos idôneos, ou seja, por meio de prova pré-constituída, tendo em vista a natureza do instituto, fatos extintivos, impeditivos ou modificativos desse direito, sendo que neste momento, que é o de defesa do requerido, poderá também questionar a idoneidade da prova apresentada pelo autor. Pois, ao mesmo tempo em que se faz uma cognição exauriente quanto aos fatos constitutivos do direito do autor chegando num juízo de certeza, faz-se uma cognição sumária quanto aos fatos extintivos, impeditivos ou modificativos daquele direito. Haverá um provimento provisório de condenação, reservando-se para o final a análise profunda das provas referentes às defesas de mérito (FUX, et al., 2011, p. 82). Com o enquadramento da medida imposta no artigo 285, inciso III do projeto do Novo Código de Processo Civil, no curso do procedimento será deferida a utilidade prática do requerimento, desta forma analisa apenas a satisfação momentânea, sem declarar a existência do direito, em virtude disto, este provimento não faz coisa julgada, porém, se mantém estável até que venha outra decisão judicial que a sobreponha. Conclui-se, portanto, que a referida tutela tem como característica a provisoriedade, sendo que seus efeitos antecipados serão convergidos na sentença. Consequentemente seus efeitos são precários, porém, estáveis. Essa estabilização flui da preclusão pro iudicato, pois o juiz perde o poder de decidir a questão por já ter resolvido anteriormente, não se confundindo com a coisa julgada (FUX, et al., 2011, p. 83). O artigo 293 do projeto do Novo Código de Processo Civil reforça a ideia de estabilidade que as tutelas trazem em seu bojo, conforme a seguir exposto: Art. 293. A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revogar, proferida em ação ajuizada por uma das partes. Parágrafo único. Qualquer das partes poderá requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida para instruir a petição inicial da ação referida no caput. (BRASIL, Projeto de Lei do Senado n° 166 de 2010). 46 Segundo o inciso IV, do artigo 285 do projeto do Novo Código de Processo Civil (PLS 166/2010), a tutela de evidência poderá ser concedida quando “a matéria for unicamente de direito e houver jurisprudência firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante”. A razão de ser é que inexistem questões de fato a serem resolvidas, apenas questões de direito. A hipótese do inciso IV do já citado artigo do projeto não autoriza o julgamento imediato da lide, porque se fosse confundiria com a questão explanada no artigo 353, I do projeto, que disciplina o julgamento antecipado da lide. Assim, só terá sentido se concedida liminarmente para enquadrar como tutela de evidência (MARINONI; MITIDIERO, Daniel, 2010, p. 109). A decisão que concede a tutela de evidência nestes casos não é definitiva, em virtude do princípio do contraditório. Há apenas a transferência para o requerido dos prejuízos causados pela demora processual, por já haver súmula vinculante ou julgamento de casos repetitivos a respeito do assunto. O inciso IV, do artigo 285 do projeto do Novo Código de Processo Civil é o mais inovador. Tendo em vista que vivemos em um estado democrático e consequentemente os juízes são independentes e possuem livre convencimento, este inciso causará certo repúdio nos operadores do direito. Porém, visa uniformizar o direito, estabelecendo teses jurídicas que os juízes aplicarão economizando o andamento processual (DIDIER et al., 2011, p. 263). Este inciso é o único em que a decisão é proferida inaudita altera parte, ou seja, não há a necessidade de citação do réu para um posterior proferimento, o que se faz necessário nos outros casos. O contraditório será postergado. Para a doutrina é clara a existência de um conflito entre os princípios constitucionais do contraditório em relação ao do acesso à justiça e da razoável duração do processo (FUX, et al., 2011, p. 88). O parágrafo único do artigo 285 do projeto do Novo Código de Processo Civil substitui a ação de depósito que está prevista nos artigos 901 a 906 do atual Código de Processo Civil. Segundo o artigo 902 do atual Código de Processo Civil, o autor deveria instruir a petição inicial com a prova literal do depósito e a estimativa do valor da coisa, se não houvesse no contrato. Com o projeto não há mais a necessidade de estimar o valor da coisa que foi deixado para ser apurado em fase de execução, apenas exigindo a prova documental do depósito. Além da desnecessidade de estimar o valor da causa, o projeto exclui a limitação para a defesa que está estabelecida no § 2º do artigo 902 do atual Código de Processo Civil e o prazo para contestação. E não só isto, pois, no atual Código ainda se previa a prisão civil do depositário infiel, porém, não era aplicada em virtude do pacto de São José da Costa Rica, que foi devidamente eliminado no projeto. Apesar de não haver mais a prisão civil, a responsabilidade do depositário judicial está prevista no artigo 130 do projeto do Novo Código de Processo Civil. 47 Afirma, ainda, o legislador no parágrafo único deste mesmo artigo que “o depositário infiel responderá civilmente pelos prejuízos causados, sem prejuízo da responsabilidade penal” (BRASIL, Projeto de Lei do Senado n° 166 de 2010). Quanto ao prazo para a propositura da ação principal estipulado no artigo 289 do projeto do Novo Código de Processo Civil, este não se refere às tutelas de evidência, apenas as tutelas de urgência requeridas em caráter prévio, conforme análise do caput do artigo “Impugnada a medida liminar, o pedido principal deverá ser apresentado pelo requerente no prazo de um mês ou em outro prazo que o juiz fixar.” (PLS n° 166/10) Não há motivos para se aplicar este artigo às tutelas de evidência, vez que seria prejudicial ao autor, em outras palavras seria um ônus a este, cabendo ao réu, portanto, que é o maior interessado na cognição sumária do fato, caso queira, propor ação declaratória negativa. Então, uma vez concedida a tutela de evidência por ter o autor, em processo autônomo, apresentado prova documental idônea do seu direito, sem que o réu oponha prova inequívoca, tal medida deverá conservar sua eficácia até que o sucumbente obtenha decisão favorável, ou em demanda declaratória negativa por ele proposta, ou na ação principal iniciada pela parte ex adverso. Em qualquer caso, ambas as partes podem ter a iniciativa de propor a demanda principal para a defesa de seus interesses (art. 289, § 3º, do Anteprojeto). (FUX, et a., 2011, p. 86). Logo, tratando-se de procedimento autônomo o pedido de qualquer das partes será processado nos mesmos autos. Levando em consideração o princípio da inércia e também pela interpretação do artigo 284 do projeto do Novo Código de Processo Civil (PLS 166/2010) que diz que “em casos excepcionais ou expressamente autorizados por lei, o juiz poderá conceder medidas de urgência de ofício”, ou seja, trata apenas das medidas de urgência, a tutela de evidência não poderá ser concedida de ofício, necessitando de requerimento expresso do demandante, exceto no caso do inciso II do artigo 285 do projeto. Não só por estes motivos, mas tendo em vista a responsabilidade objetiva estabelecida no artigo 282 do projeto do Novo Código de Processo Civil, caso a tutela de evidência fosse concedida de ofício não teria como responsabilizar o autor da ação. Enuncia o artigo 290 do projeto (PLS 166/2010) que “quando um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que a solução será definitiva”. Traz nitidamente a tutela de evidência, não necessitando de qualquer outra medida, caracterizando a estabilização dos efeitos da medida concedida (DIDIER, et al., 2011, p. 247). A tutela de evidência em todas as hipóteses enumeradas em seus incisos não se impõe para tutelar uma situação de urgência, e sim para amparar a celeridade processual baseada na probabilidade, em outras palavras não é necessário o periculum in mora, bastando a presença do fumus boni iuris. E ainda, há que se ressaltar que é um instrumento em prol do requerente apenas. 48 Conclui-se que a tutela de evidência é um dos maiores avanços instituídos pelo legislador neste projeto do Novo Código de Processo Civil por se tratar de uma cognição muito segura e por ter ampliado os casos que já havia no atual Código de Processo Civil. Até mesmo porque há maior certeza sobre o direito da parte, possibilitando a concessão de plano da tutela definitiva, diminuindo o lapso temporal do processo ao mesmo tempo em que garante o contraditório. CONCLUSÃO Como pode ser observado, as tutelas de urgência e evidência são de extrema importância, tendo em vista que a relação processual é dinâmica, apesar da norma e dos fatos permanecerem estáticos, podendo chegar ao deslinde da ação com a situação jurídica posta em análise sem a existência do bem jurídico tutelado. Apesar da possibilidade de que o decurso do tempo possa trazer prejuízos, temos que levar em consideração a segurança jurídica que é uma conquista da sociedade, representada, principalmente, pelos princípios da ampla defesa, contraditório, devido processo legal, publicidade, duplo grau de jurisdição e isonomia. Mas por outro lado, devemos prezar pela celeridade processual, demonstrada pela efetividade e a razoável duração do processo. Há, então, um embate entre estes princípios que deverão ser levados a balança e equilibrados. Para isso o legislador criou institutos próprios para a medida dosadora, que é feito hoje pelas medidas cautelares e tutela antecipada, porém, de acordo com o projeto do Novo Código de Processo Civil passará a ser feito pelas tutelas de urgência e tutelas de evidência. As medidas cautelares e as tutelas antecipadas previstas no atual Código de Processo Civil são espécies de tutela de urgência. As medidas cautelares muito se assemelham as tutelas de urgência tratadas no projeto do novo Código de Processo Civil, enquanto que as tutelas antecipadas assemelham as tutelas de evidência. As tutelas de urgência no projeto foram subdivididas em cautelares e satisfativas, contudo, possuem os mesmos requisitos para a sua concessão, mesmo que possuem certas peculiaridades. As tutelas de evidência que trouxe grandes novidades, vez que não trata de situações urgentes, mas busca a celeridade baseada na probabilidade da existência do direito. Imprescindível, a nosso pensar, as tutelas de urgência e as tutelas de evidência para garantia da efetividade processual combinada com a celeridade, finalizando na eficácia da prestação jurisdicional. É plausível a manutenção destes institutos no projeto do Novo Código de Processo Civil pelo elevado grau de utilidade ao processo e em resposta à sociedade. 49 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Lex: Vade Mecum. 11ª ed. São Paulo: Saraiva 2011. 02. _______. Projeto de Lei do Senado n° 166 de 2010. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf. Acesso em 07 de abril de 2012. 03. _______. Código de Processo Civil. Lex: Vade Mecum. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 04. DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: volume 2. Salvador: Juspodivm, 2008. 05. DIDIER JR., Fredie. MOUTA, José Henrique. KLIPPEL, Rodrigo. Colaboradores: GARCIA, André Luis Bitar de Lima. BASTOS, Antonio Adonias A.. SILVA, Beclaute Oliveira [et al.]. O projeto do novo código de processo civil. Salvador: Juspodivm, 2011. 06. FUX, Luiz. BARBOSA, Andrea Carla. CABRAL, Antonio do Passo [et al.]. O novo processo civil brasileiro (direito em expectativa): reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Coordenador: Luiz Fux. Rio de Janeiro: Forense, 2011. 07. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado artigo por artigo. 2ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 08. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 09. MARINONI, Luiz Guilherme. Processo de conhecimento (Curso de processo civil, v. 2). 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 10. MONTENEGRO FILHO, Misael. Projeto do Novo Código de Processo Civil: confronto entre o CPC atual e o projeto do Novo CPC: com comentários às modificações substanciais. São Paulo: Atlas, 2011. 11. NEGRÃO, Theotonio. GOUVÊA, José Roberto Ferreira. BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar. Colaboração: João Francisco Naves da Fonseca. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 42ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 50 12. RUANOBA, Sebastian Watenberg. Fungibilidade Das Tutelas de Urgência (Antecipatória e Cautelar) no Processo Civil Brasileiro. Disponível em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sebastian%20Watenberg%20Ruanob a%20-%20 formatado.pdf. Acesso em 08 de maio 2012. 13. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento, v. 1. 2a ed. rev. atual. e amp. Rio de Janeiro: Forense, 2010. ANEXOS ANEXO A Projeto de Lei do Senado n°166 de 2010 TÍTULO IX TUTELA DE URGÊNCIA E TUTELA DA EVIDÊNCIA CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS Seção I Das disposições comuns Art. 277. A tutela de urgência e a tutela da evidência podem ser requeridas antes ou no curso do procedimento, sejam essas medidas de natureza cautelar ou satisfativa. Art. 278. O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação. Parágrafo único. A medida de urgência poderá ser substituída, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pela prestação de caução ou outra garantia menos gravosa para o requerido, sempre que adequada e suficiente para evitar a lesão ou repará-la integralmente. Art. 279. Na decisão que conceder ou negar a tutela de urgência e a tutela da evidência, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. Parágrafo único. A decisão será impugnável por agravo de instrumento. Art. 280. A tutela de urgência e a tutela da evidência serão requeridas ao juiz da causa e, quando antecedentes, ao juízo competente para conhecer do pedido principal. Parágrafo único. Nas ações e nos recursos pendentes no tribunal, perante este será a medida requerida. 51 Art. 281. A efetivação da medida observará, no que couber, o parâmetro operativo do cumprimento da sentença e da execução provisória. Art. 282. Independentemente da reparação por dano processual, o requerente responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a efetivação da medida, se: I – a sentença no processo principal lhe for desfavorável; II – obtida liminarmente a medida em caráter antecedente, não promover a citação do requerido dentro de cinco dias; III – ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer dos casos legais; IV – o juiz acolher a alegação de decadência ou da prescrição do direito do autor. Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida. Seção II Da tutela de urgência cautelar e satisfativa Art. 283. Para a concessão de tutela de urgência, serão exigidos elementos que evidenciem a plausibilidade do direito, bem como a demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Parágrafo único. Na concessão liminar da tutela de urgência, o juiz poderá exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que o requerido possa vir a sofrer, ressalvada a impossibilidade da parte economicamente hipossuficiente. Art. 284. Em casos excepcionais ou expressamente autorizados por lei, o juiz poderá conceder medidas de urgência de ofício. Seção III Da tutela da evidência Art. 285. Será dispensada a demonstração de risco de dano irreparável ou de difícil reparação quando: I – ficar caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do requerido; II – um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que a solução será definitiva; III – a inicial for instruída com prova documental irrefutável do direito alegado pelo autor a que o réu não oponha prova inequívoca; ou IV – a matéria for unicamente de direito e houver jurisprudência firmada em julgamento de casos repetitivos ou súmula vinculante. Parágrafo único. Independerá igualmente de prévia comprovação de risco de dano a ordem liminar, sob cominação de multa diária, de entrega do objeto custodiado, sempre que o autor fundar seu pedido reipersecutório em prova documental adequada do depósito legal ou convencional. CAPÍTULO II DO PROCEDIMENTO 52 Seção I Das medidas requeridas em caráter antecedente Art. 286. A petição inicial da medida requerida em caráter antecedente indicará a lide, seu fundamento e a exposição sumária do direito ameaçado e do receio de lesão. Art. 287. O requerido será citado para, no prazo de cinco dias, contestar o pedido e indicar as provas que pretende produzir. § 1º Do mandado de citação constará a advertência de que, não impugnada decisão ou medida liminar eventualmente concedida, esta continuará a produzir efeitos independentemente da formulação de um pedido principal pelo autor. § 2º Conta-se o prazo a partir da juntada aos autos do mandado: I – de citação devidamente cumprida; II – de intimação do requerido de haver-se efetivado a medida, quando concedida liminarmente ou após justificação prévia. Art.288. Não sendo contestado o pedido, os fatos alegados pelo requerente presumir-se-ão aceitos pelo requerido como verdadeiros, caso em que o juiz decidirá dentro de cinco dias. § 1º Contestada a medida no prazo legal, o juiz designará audiência de instrução e julgamento, caso haja prova a ser nela produzida. § 2º Concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugnação, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia. Art. 289. Impugnada a medida liminar, o pedido principal deverá ser apresentado pelo requerente no prazo de um mês ou em outro prazo que o juiz fixar. § 1º O pedido principal será apresentado nos mesmos autos em que tiver sido veiculado o requerimento de medida de urgência, não dependendo do pagamento de novas custas processuais. § 2º A apresentação do pedido principal será desnecessária se o réu, citado, não impugnar a liminar. § 3º Na hipótese prevista no § 2º, qualquer das partes poderá propor ação com o intuito de discutir o direito que tenha sido acautelado ou cujos efeitos tenham sido antecipados. Art. 290. As medidas conservam a sua eficácia na pendência do processo em que esteja veiculado o pedido principal, mas podem, a qualquer tempo, ser revogadas ou modificadas, em decisão fundamentada, exceto quando um ou mais dos pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que a solução será definitiva. § 1º Salvo decisão judicial em contrário, a medida de urgência conservará a eficácia durante o período de suspensão do processo. § 2º Nas hipóteses previstas no art. 289, §§ 2º e 3º, as medidas de urgência conservarão seus efeitos enquanto não revogadas por decisão de mérito proferida em ação ajuizada por qualquer das partes. Art. 291. Cessa a eficácia da medida concedida em caráter antecedente, se: 53 I – tendo o requerido impugnado a medida liminar, o requerente não deduzir o pedido principal no prazo legal; II – não for efetivada dentro de um mês; III – o juiz julgar improcedente o pedido apresentado pelo requerente ou extinguir o processo em que esse pedido tenha sido veiculado sem resolução de mérito. Parágrafo único. Se por qualquer motivo cessar a eficácia da medida, é vedado à parte repetir o pedido, salvo sob novo fundamento. Art.292. O indeferimento da medida não obsta a que a parte deduza o pedido principal, nem influi no julgamento deste, salvo se o motivo do indeferimento for a declaração de decadência ou de prescrição. Art. 293. A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revogar, proferida em ação ajuizada por uma das partes. Parágrafo único. Qualquer das partes poderá requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida para instruir a petição inicial da ação referida no caput. Seção II Das medidas requeridas em caráter incidental Art. 294. As medidas de que trata este Título podem ser requeridas incidentalmente no curso da causa principal, nos próprios autos, independentemente do pagamento de novas custas. Parágrafo único. Aplicam-se às medidas concedidas incidentalmente as disposições relativas às requeridas em caráter antecedente, no que couber. Art. 295. Não se aplicam à medida requerida incidentalmente as disposições relativas à estabilização dos efeitos da medida de urgência não contestada. Art. 296. Tramitarão prioritariamente os processos em que tenha sido concedida tutela da evidência ou de urgência, respeitadas outras preferências legais. 54 A AÇÃO DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS PARTICULARES: UMA REVISÃO DE LITERATURA Acadêmica ESTELLE COSTA SENE Mestre e Professor Tiago Setti Xavier da Cruz. RESUMO: Apresentamos neste trabalho uma revisão de literatura abordando aspectos essenciais da ação de demarcação de terras particulares. Nós tentamos abordar aspectos teóricos que vão desde o histórico deste tipo de ação passando pelos requisitos essenciais para o pedido de ação de demarcação abrangendo os limites, passando pelos aspectos processuais da ação de demarcação, esclarecendo quanto à legitimidade, o litisconsórcio e a cumulação da demarcatória com outras ações e por fim os procedimentos necessários na primeira e segunda fase. Para a realização desta revisão uma vasta bibliografia foi consultada e estudada envolvendo 13 autores pesquisadores nacionais, utilizando artigos científicos, capítulos de livros e obrascompletas impressas e on-line, publicadas entre os anos de 1998 e 2011. Para a obtenção dos resultados nos separamos as referencias bibliográficas por assunto e em seguida analisamos as ideias dos autores a respeito de cada temática referente ao tema estudado. Os resultados deste estudo mostram que a maioria dos autores possuem uma visão ampla a respeito da ação demarcatória, que alguns dentre eles sugerem modelos, fichas e outros instrumentos que favorecem a compreensão do leitor. Para concluir sugerimos que este tema seja pesquisado com maior profundidade por outros acadêmicos a fim de fomentar o debate a respeito desse assunto tão importante para todos os cidadãos. Palavras chaves: demarcação, propriedade, limite, conflito e perícia. INTRODUÇÃO A ação de Demarcação de Terras Particulares tem suas raízes no antigo direito romano desta forma observa-se que há muitos anos a ideia de propriedade faz parte da vida dos cidadãos. Data desta época os primeiros conceitos acerca de direito a propriedade que foi evoluindo de acordo com as ideologias que iam surgindo ao longo da história. Em um primeiro momento a propriedade foi associada a poder e individualismo. Com o passar dos tempos ela passa a ser sinônimo de um bem coletivo social, ou seja, para toda a sociedade. Atualmente no Brasil a lei prevê o direito a demarcação de terras particulares já que está é um dos direitos acerca do direito a propriedade. A ação de demarcação tem como principal objetivo definir os limites entre duas ou mais propriedades particulares. Porém existem outros casos que cabem esta ação como, por exemplo, duvidas a cerca dos limites já existentes ou ainda 55 apropriação indevida de território levando a conflitos no que diz respeito às linhas demarcadas dessas propriedades. Em resumo esta ação trata de procedimentos desenvolvidos por uma equipe multidisciplinar, visando a sanar as dúvidas em um primeiro momento de um ou mais proprietário a respeito da linha divisória que separa a propriedade. Em um segundo momento, as dúvidas esclarecidas saem do papel e os limites são fixados materialmente no território. No entanto para que esta ação seja desenvolvida é necessário que diversos passos sejam seguidos até a definição do limite definitivo entre as propriedades. O objetivo deste trabalho é de verificar o que diz a literatura especializada a respeito dos procedimentos a serem adotados quando houver duvidas ou insatisfações ao envolver o traçado de limites entre uma ou mais propriedades. Trata-se de levantar, quando da realização de uma revisão de literatura, as diversas posturas, teorias, opiniões e teses de diversos estudiosos a respeito dos procedimentos a serem utilizados quando for necessário entrar com uma Ação de Demarcação de Terras Particulares. Atualmente para entrar com uma ação de demarcação, alguns requisitos essenciais previstos nos documentos oficiais como o Código Processual Civil devem ser observados pelo profissional no momento da instrução do processo. Da mesma forma, esses documentos incentivam a utilização dos meios previstos nas Leis para resolver os problemas dos cidadãos. Partindo da definição da temática a ser pesquisada, elaboramos uma ficha orientadora para a leitura dos documentos selecionados. Esta ficha por um lado nos permitira de levantar as ideias, teorias e opiniões fundamentais dos autores a respeito da temática estudada. Por outro lado fornecera informações quanto aos dados necessários para a organização das referencias bibliográficas do corpo do trabalho. Redigimos igualmente um plano de trabalho a partir das referências selecionadas. Este plano de trabalho tem a função de orientar a redação do trabalho escrito de acordo com as referências bibliográficas levantadas e disponíveis. A análise das diferentes fontes pesquisadas mostra que os pesquisadores possuem uma postura coerente ao abordarem os procedimentos para a realização de uma ação demarcatória. Acreditamos que, estas posturas semelhantes são devido à necessidade de terem como documento norteador o Código de Processo Civil. Quanto ao histórico desta problemática poucos estudiosos se interessaram em mencionar em seus trabalhos a origem da ação demarcatória. A conceituação é abordada por alguns autores de forma mais superficial mencionando somente os artigos do Código Civil referente a demarcação enquanto que outros autores se aprofundam explicando desde os conceitos primordiais dos direitos reais, passando pelos de direito a propriedade para então chegar ao de demarcação. Já quanto aos requisitos necessários para efetivar um pedido de demarcação, todos os autores abordaram, uns com maior profundidade que outros mas suas falas foram complementares e esclarecedoras. Todos concordam que é um direito do proprietário recorrer a esta ação, porém alguns autores defendem o direito do terceiro possuidor também ter direito, mas não pleno como o do proprietário. Já em relação aos aspectos processuais da demarcação todos foram unânimes ao abordarem os esclarecimentos de: legitimidades, litisconsórcio e cumulação da ação de demarcação 56 com outras ações. Algumas divergências acerca de conceitos são encontradas principalmente no que diz respeito à imprescritibilidade da ação e as cumulações possíveis com esta ação. Acerca destes conceitos os estudiosos seguem diferentes vertentes com diferentes argumentações para defenderem seu ponto de vista. Por fim, no que diz respeito aos procedimentos a serem seguidos, todos os autores pesquisados detalharam bem os procedimentos que constituem a primeira e a segunda fase, tendo até mesmo a iniciativa de elaborar modelos e fluxogramas para facilitar o entendimento e acompanhamento desta ação. Uma observação interessante também a cerca dos procedimentos é que alguns autores tiveram a preocupação de apresentar conceitos com linguagem simples e esquemas com as fases dos procedimentos e suas etapas tornando possível o entendimento de como funciona a ação demarcatória para pessoas que não são da área do direito. Este trabalho esta organizado em 5 partes específicas sendo que a parte 1 foi destinada a uma introdução, onde o leitor tem a possibilidade de conhecer o trabalho como um todo. Já na parte 2, a abordagem está direcionada para uma fundamentação teórica da problemática, trazendo esclarecimentos de cunho profissional e prático a cerca de conceitos importante. Em seguida, a parte 3 trata primeiramente da Demarcação de Terras Particulares envolvendo todas as particularidades que este assunto exige. Depois se apresenta os aspectos processuais da ação de demarcação contendo opiniões divergentes e convergentes dos pesquisadores. Por fim uma abordagem dos procedimentos a serem adotados em uma ação de demarcação é apresentada para esclarecer alguns passos a serem tomados. A conclusão do trabalho é encontrada na parte 4, onde o autor teve a perspicácia de elaborar uma conclusão sucinta para cada parte do trabalho. E, por fim, a parte 5 apresenta em ordem alfabética os autores analisados e citados no corpo do trabalho. 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 1.1 Um pouco de história A origem das ações demarcatórias não é recente, de acordo com Pereira (2010, p. 68) tudo começou com o Direito Romano no qual foram criadas as primeiras fundamentações acerca da propriedade. Segundo ele: A raiz histórica do nosso instituto da propriedade vai-se prender no Direito Romano, onde foi ela individual desde os primeiros monumentos. Dotada de caráter místico nos primeiros tempos. Somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade; somente o solo romano podia ser seu objeto, uma vez que a dominação nacionalizava a terra conquistada. O autor explica ainda que estes conceitos sofreram pequenas modificações com o passar dos tempos, devido às transformações sofridas no cenário político, econômico e técnico. Com outras palavras, ele afirma que “a invocação do direito Romano guarda hoje um interesse puramente histórico, atendendo a que as transformações políticas, 57 econômicas e técnicas provocaram, necessariamente, sensível modificação nos conceitos jurídicos” (PEREIRA 2010, p. 82). Venosa concorda com esta opinião, já que ele também afirma que o conceito de propriedade evoluiu de acordo com os acontecimentos da época. Segundo ele o conceito de propriedade também estava diretamente ligado ao sistema político em vigor da época (VENOSA, 2011, p. 165). Afirmar um exato momento para o surgimento do conceito de propriedade em Roma parece ser impossível.A este respeito, VENOSA (2011, p. 166) afirma que acredita ser difícil precisar já que “não é muito claro nas fontes a forma de propriedade comum na primitiva Roma”. O autor divide o surgimento de diferentes conceitos para propriedade em duas fases da história romana. Nos primeiros séculos da história romana, somente se admite o dominium ex jure quiritium, propriedade adquirida unicamente sob formas de determinadas, fora das quais não poderia constituir-se. Apenas na época clássica do Direito Romano admite a existência de uso abusivo do direito da propriedade e sua reprimenda. O digesto já reconhece direitos de vizinhança, mas o elemento individual ainda é preponderante. De acordo com o autor, o Direito Romano identificava os direitos reais junto à propriedade, porém este sistema foi parcialmente abandonado na Idade Média (VENOSA, 2011, p. 25). Dando continuidade aos direitos referentes à propriedade, Coelho (2010, p. 70) divide a mesma opinião que o autor precedente no que diz respeito à exatidão das datas que confirmem a origem do conceito de propriedade, o autor garante que é uma definição antiga, que vem acompanhando o homem com sua evolução e que existem duas vertentes em relação à origem do conceito de propriedade. O conceito de que homens e mulheres são donos de coisas, a essência da propriedade, é muitíssimo antiga. Na verdade, não há ainda elementos confiáveis que permitam identificar o momento da pré-história da humanidade em que teria surgido, ou se o conceito acompanha o ser humano desde sempre. Há quem enxergue a propriedade como natural do homem, que por isso, existe desde o início e existira até o fim da aventura da humanidade no universo; e há quem sustente que, nos primórdios da trajetória humana não havia propriedade (Engels, 1884). Essa divergência por enquanto não se consegue resolver por falta de dados arqueológicos ou outros elementos científicos. Marcato (2005, p.186) também aborda as ações que se originavam no Direito Romano. Ele afirma que o direito romano “previa três modalidades de ações divisórias: a finium regundorum, a familiae erciscundae e a comunidividundu”. Segundo o autor a ação demarcatória está representada pela primeira modalidade a (finium regundorum), com o objetivo específico de estabelecer limites e esclarecer as dúvidas a respeito dos mesmos. Seguindo a evolução do conceito de propriedade, passamos agora à idade média. Nesta época a propriedade deixa de ser exclusiva. Venosa (2011, p. 167) explica que este fato se deu devido as diferentes culturas bárbaras, pois estas modificaram os conceitos jurídicos, e que, neste novo cenário “o território mais do que nada, passa a ser sinônimo de poder. A ideia de propriedade está ligada a de soberania nacional”. 58 Com o passar dos tempos aumenta a necessidade de se ter leis que definam a propriedade mais concretamente. De acordo com Coelho (2010, p. 71) o conceito de propriedade surge em dois marcos diferentes da história: na revolução francesa e na origem do sistema capitalista. Segundo o autor é na revolução francesa que “o direito de propriedade é proclamado como natural, ilimitado e individualista”. Venosa (2011, p.167) relata que a necessidade de se definir mais concretamente a propriedade foi percebida a partir do século XVIII principalmente na revolução francesa. A partir do século XVIII, a escola do direito natural passa a reclamar leis que definam propriedade. A revolução francesa recepciona a ideia romana. O código de Napoleão, como consequência, traça a conhecida concepção extremamente individualista do instituto no art. 544: “a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos”. Como sabido este Código e as ideias da revolução repercutiram em todos os ordenamentos que se moderam no Código Civil francês, incluindo a grande maioria dos códigos latinos americanos. Somente no século XIX é que o individualismo da propriedade diminui e passa a surgir um conceito mais voltado para o bem comum do grupo: o social. Segundo Venosa (2011, p. 167) “esse exagerado individualismo perde força no século XIX com a revolução e o desenvolvimento industrial e com as doutrinas socializantes. Passa a ser buscado um sentido social na propriedade”. Já para Coelho (2010, p. 71), o sistema capitalista é o responsável por uma necessidade de mudança no direito à propriedade para tentar controlar o avanço do socialismo. Ele afirma que seria o segundo marco mais importante da história no que concerne à evolução do direito a propriedade “o segundo marco é a flexibilização a que se obrigou o Estado capitalista ao longo do século XX para sobreviver ao avanço do socialismo. Ela reclamou uma profunda alteração no direito de propriedade, cujo exercício passou a se subordinar ao atendimento da função social”. Uma análise do direito a propriedade pelas leis brasileiras na história também é feita por Coelho (2010, p. 72). O autor relata que esta tem origem desde a época da constituição do império e assim como observado no direito romano aqui também seu conceito sofreu modificações de acordo com as ideologias da época. Na ordem positiva brasileira, a propriedade tem sido constitucionalmente protegida como direito fundamental desde a constituição do Império até a Carta de 1937, a única limitação constitucional disse respeito à desapropriação (transferência compulsória da propriedade para o Estado, para atendimento do interesse público). Na Constituição de 1946, estabeleceu-se que o uso da propriedade estava condicionado ao bem estar social; nas de 1967 e 1969, bem como na atual, de 1988, o constituinte empregou o conceito de função social para limitar o exercício do direito (CF, arts. 5º, XXII e XXIII, e 170, II e III). Nota-se que com o passar dos tempos o direito a propriedade foi adquirindo conceitos que se adaptavam as necessidades da época. Primeiramente em 1946 observase um direito da propriedade voltado para o bem estar social. Depois em 1967 com a 59 necessidade de limitar o exercício do direito nasce o conceito de função social, que prevalece na constituição até hoje. Nos tempos passados, para se realizar uma ação demarcatória existiam várias etapas desnecessárias até se chegar ao início dos trabalhos técnicos para a demarcação. Este problema foi solucionado como o novo Código. Para Theodoro Júnior (2009, p. 311) “o Código novo simplificou muito, e com razão, esse procedimento. Para início dos trabalhos técnicos da segunda fase da demarcação não há solenidade alguma nem depende o agrimensor de aguardar deliberação sobre o marco inicial”. Outra mudança que ocorreu com o novo código trata-se das funções atribuídas aos peritos. Theodoro Júnior (2009, p. 314) apresenta uma comparação do papel dos árbitros e agrimensor no sistema atual com o do antigo. No direito antigo, também, os arbitradores participavam de todo o trabalho técnico da fase executiva da demarcação, inclusive na colocação de marcos. No sistema atual, as tarefas foram delimitadas e bem distribuídas entre os peritos: ao agrimensor compete cravar os marcos e elaborar a planta e memorial; aos arbitradores incumbe percorrer a linha, conferir os marcos e rumos, e, finalmente, elaborar o relatório da inspeção. Em seguida, Theodoro Júnior (2009, p. 315) faz um paralelo a respeito da participação do juiz nos trabalhos de campo mais precisamente para a definição da linha demarcatória no antigo código e no atual. Ele explica que antigamente quando dependendo do valor da causa e surgindo duvidas sobre o limite o juiz poderia ter que acompanhar a pericia para verificar o trabalho realizado e os limites a serem definidos. Hoje esta opção é facultativa, sendo necessária somente em casos especiais. O Código de Processo Civil de 1939, embora não tornasse obrigatória a presença do juiz nos trabalhos de autenticação da linha, dispunha que o magistrado poderia determinar que a operação se realizasse em sua presença quando o valor da causa fosse superior a Cr$ 50.000,00, e houvesse dúvidas entre os confrontantes. O juiz, em pessoa, portanto, acompanhava os peritos no percurso da linha, examinando a exatidão dos marcos (CPC de 1939, art. 448, § 1º). O novo código (de 1973) não contém mais regra a respeito da presença do juiz na diligência. Continua, no entanto, como uma faculdade sua. E as partes poderão requerê-la, quando houver razão para tanto, com base nas normas que cuidam da inspeção judicial “in loco” (art. 440), já que esta é sempre possível, seja ex-ofício, seja a requerimento de interessado. Outra comparação que o autor faz no que diz respeito a mudanças do antigo código para o novo é em relação ao prazo de 5 dias para só depois em audiência de instrução o juiz pronunciar a homologação do processo. Theodoro Júnior (2009, p. 322) esclarece que no novo código de 1973 este prazo foi retirado e suprimido a audiência de instrução. Uma vez assinado o auto pelo juiz e pela equipe técnica a sentença homologatória é proferida. O Código de Processo Civil atual esclarece que as ações de demarcação que serão reguladas por ele são especialmente de terras particulares. A este respeito Marcato (2005, p. 187) explica que se trata além de questão histórica também de uma questão sistemática já que a ação demarcatória esta diretamente ligada a lei nº 6.383/76e não ao regime do código. Duas são as circunstâncias que impõem essa ressalva: uma de 60 natureza histórica, pois o Decreto nº 720, de 1890, já dispunha que referidas ações eram pertinentes às terras particulares; outra de natureza sistemática, visto que as terras devolutas não se submetem ao regime do código, mas sim ao da Lei nº 6.383/76, que instituiu a chamada ação demarcatória. Considerando os esclarecimentos acima, percebe-se que no Brasil atualmente, a legislação prevê em seus documentos oficiais orientações destes procedimentos há mais de um século, favorecendo os esclarecimentos aos proprietários. 1.2 Conceito Para compreender melhor a ação demarcatória deve-se em um primeiro momento entender as características que envolvem os direitos reais. Muitos autores declaram que a propriedade é um direito real. Para fim de esclarecimentos aborda-se neste trabalho o conceito de direito real e o direito de propriedade atribuído a ele. Segundo Coelho (2010, p. 22) “o direito de propriedade, por exemplo, é real, mas está limitado pela função social e pelo respeito aos direitos de vizinhança”. De acordo com o autor este limite se deve ao pensamento coletivo, no qual o que for melhor para um todo deverá passar por cima do direito de propriedade de um indivíduo em nome de um bem comum maior. Coelho (2010, p. 23) também afirma que a propriedade é o mais importante dos direitos reais e esclarece, dizendo que são direitos reais sobre a coisa própria a propriedade e os direitos reais em garantia. A propriedade é o mais importante dos direitos reais, a qual corresponde aos mais amplos poderes de sujeição da coisa ao ser humano – quer dizer, os mais amplos admissíveis no atual estágio de evolução da cultura jurídica, que os limitam em atenção aos interesses de outros proprietários e da sociedade em geral (caps. 43 a 46). Já com uma visão mais completa, Venosa (2011, p. 5) explica que os “direitos reais traduzem relação jurídica entre uma coisa, ou conjunto de coisas, e um ou mais sujeitos, pessoas naturais ou jurídicas”. O autor também ressalta que o reconhecimento do seu direito real sob a coisa é importante. O titular reivindica a coisa. O conceito é de direito material, e o processo tão somente considera, não a define. Basicamente nesta ação o autor pede que se reconheça seu direito real (pretensão de declaração) juntamente com a entrega da coisa indevidamente em poder de terceiro. Desse modo, o efeito declarativo (presente em qualquer sentença) da ação reivindicatória julgada precedente é o reconhecimento do direito real. Dividindo a mesma opinião que Venosa, Tartuce e Simão (2011, p. 33) também abordam os direitos reais para falar da relação jurídica entre pessoas e coisas de forma direta citando como exemplo o caso da usucapião. Segundo o conceito por eles apresentados os direitos reais tem como finalidade. As relações jurídicas entre pessoas e coisas, relações estas que podem até ser diretas, sem qualquer intermediação por outra pessoa, como ocorre nas formas 61 originarias de aquisição de propriedade, cujo exemplo típico é a usucapião. Portanto, o objeto da relação jurídica é a coisa em si. Passa-se agora ao direito a propriedade para um melhor entendimento do objeto da ação demarcatória. A este respeito Coelho (2010, p. 78) afirma que o direito à propriedade pode ter tanto a função de ser exclusivo como excludente já que o seu possuidor tem direitos legais para não permitir que usufruam da coisa sem consentimento dele. Ainda abordando o direito a propriedade, Coelho (2010, p. 82) se preocupou em dividir os seus poderes em quatro categorias e explicá-las. Os poderes associados ao direito de propriedade são quatro: usar (desfrutar, aproveitar), gozar (fruir, explorar economicamente) e dispor (destruir, abandonar ou alienar) da coisa, bem como reivindicá-la de quem injustamente a possua ou detenha (buscar em juízo a ordem de imissão na posse do bem). Esta mesma visão é tratada por Tartuce e Simão (2011, p. 128) já que eles também dividem os poderes da propriedade da mesma forma que Coelho. Para fins de melhor compreensão, os autores comparam a propriedade a uma garrafa dividida em quatro partes. Gozar, Reaver, Usar e Reivindicar. Segundo eles esta simbologia trata de “quatro atributos que estão presos ou aderidos à propriedade”. De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 201) quando existe confusão de limites seja por falta de sinais no terreno ou um dos confinados se opõe ao limite que o autor defende cabe à ação demarcatória resolver o conflito. Existem diversos critérios de classificação de ação demarcatória. Theodoro Júnior (2009, p. 189) afirma que são três: O primeiro é aquele que se baseia na extensão material, o segundo é aquele que considera a existência primeira ou não de limites e por fim o terceiro critério que considera o pedido elaborado pelo autor da ação. O autor entra em detalhes sobre o critério que aborda a extensão demarcatória. Para ele este critério pode ser de duas formas. 1) Total - quando se pede o levantamento de todo o perímetro do imóvel. Na verdade, sendo vários os confrontantes, essa forma de procedimento importa cúmulo de diversas demarcações, ou seja, uma em frente a cada confinante. Todos serão réus no processo, mas cada um só terá participação apenas no que disser respeito à testada do respectivo imóvel. 2) Parcial - quando se pede o estabelecimento apenas de parte das linhas delimitativas do prédio. Tão-somente num trecho, o imóvel ficou sem fixação da linha divisória, ou apenas nele desapareceram os limites antes estabelecidos, sem possibilidade de se encontrar os respectivos vestígios. Réus então hão de serem apenas os vizinhos confrontam com o prédio no mencionado trecho da linha perimétrica. No entanto quando não existe nenhum limite fixado anteriormente, a demarcatória pode ser de duas formas segundo Theodoro Júnior (2009, p. 190): “1) Ação de demarcação, propriamente dita (assinalação de limites novos); e 2) Ação 62 de aviventação de limites (restauração de marcos arruinados, destruídos ou desaparecidos)”. Como sempre existem exceções, no caso da demarcação não é diferente, por exemplo, quando o título não apresentar uma definição coerente da linha divisória ou então quando o marco de identificação tenha desaparecido, não importa por qual motivo, nestes casos Theodoro Júnior (2009, p.31) afirma que “cada proprietário confinante tem o direito de obrigar seu vizinho a demarcar com ele os dois prédios, cujas divisas se encontram envolvidas em confusão”. Em sua obra Theodoro Júnior (2009, p.15) esclarece que “para ser exercitado o poder exclusivo e, em certo sentido, absoluto, que o direito de propriedade confere ao respectivo titular, é indispensável que o objeto do direito seja precisamente identificado”. 2. DEMARCAÇÃO DE TERRAS PARTICULARES 2.1 Requisitos para pedido de ação demarcatória Em seu trabalho, Santos (2007, p. 83) aborda o uso e gozo da coisa assim como a delimitação e marcos visíveis. Para o autor, existem diversos motivos para solicitar a demarcação, como o desaparecimento dos mesmos ou ainda a destruição destes, tornando possível o pedido de demarcação. Segundo ele, poderá ocorrer que nas terras, sejam urbanas ou rurais, não haja marcos visíveis que os diferenciem de outras, em correspondência com o título dominial que as representa. Isto se dá por variadas causas. O marcos, por exemplo, foram destruídos ou desapareceram; embora constando do título, na verdade, nunca se apurou in loco a real extensão da propriedade, fixando-se os marcos respectivos, como poderia acontecer na hipótese de haver referências, no título de determinada metragem, sem a correspondente fixação demarcatória. Em casos tais, possível é o pedido de demarcação de um dos proprietários, para obrigar o confinante à fixação de novos limites ou aviventação dos já apagados (art. 946, I). O pedido de uma ação demarcatória só pode ser realizado quando tratar-se de terras particulares. Esta exigência está prevista no art. 946 do CPC aplica-se apenas às terras particulares. Theodoro Júnior (2009, p. 35) concorda plenamente com esta afirmação e complementando afirma que faz parte de terras particulares imóveis rurais ou urbano: “o primeiro requisito, portanto, para exercer o direito de demarcar é a existência de um imóvel do domínio privado, imóvel esse que tanto pode ser rural como urbano”. Em segundo lugar o autor afirma que os prédios devem ser vizinhos o que costuma ser chamado de contiguidade. No entanto, torna-se imprescindível diferenciar dois termos que a priori são parecidos, mas pode gerar confusões. Theodoro Júnior (2009, p.188) distingue o direito de demarcar que está ligado à imprecisão de limites enquanto que a ação demarcatória tem por objetivo esclarecer a confusão de certos limites. 63 Para o autor, o direito de demarcar nasce da imprecisão de limites entre dois prédios, dada à falta de assinalação da linha divisória no solo. A ação demarcatória pressupõe confusão de limites, com conflito de interesses (lide) em torno de qual deva ser o traçado da linha de limitação dos prédios contíguos. Gonçalves (2010, p. 296) nos explica que as terras que não são particulares como as devolutas e as de bens públicos dominicais deverão ser tratadas pela Lei n. 6.383/76. Ao discutir o procedimento em relação às terras devolutas, Marcato (2005, p. 187) complementa as explicações oferecidas pelo autor precedente afirmando que: caso envolvam terras devolutas, adequada será a aludida ação discriminatória, ajuizada pelo Poder Público e processada no rito sumário, com os objetivos de (a) reconhecer o domínio público, ainda incerto, em relação a imóvel não suficientemente extremado do domínio particular, e (b) demarcar a área discriminada. Para que exista a necessidade de um pedido de demarcação é necessário algumas evidencias. Para Venosa (2011, p. 23) o proprietário tem direito a recuperar seus bens. Segundo ele, “permite-se ao proprietário reaver seus bens do poder de quem quer que injustamente os possua ou detenha”. De acordo com Gonçalves (2010, p. 297) o pedido de demarcação só pode ser feito quando existir dúvidas sobre os limites ou a confusão dos mesmos e que se trata de um direito do proprietário. O direito de demarcação é protestativo do proprietário, e não prescreve, podendo ser exercido enquanto existir a relação de confinância. Para que haja interesse de agir, é indispensável que existam dúvidas a respeito dos limites que estremam os dois imóveis, seja porque eles nunca tiveram marcos definidos, seja porque os anteriores desapareceram ou se apagaram. O autor também esclarece que se ambas as partes envolvidas conseguirem entrar em acordo sobre os limites não é necessário fazer o pedido de uma ação, basta declararem em escritura pública os limites que estipularam. Porém se um só dos envolvidos não concordar ou se um deles “for absoluta ou relativamente incapaz” será obrigatoriamente necessário o pedido de uma ação de demarcação (GONÇALVES, 2010, p. 298). No entanto quando houver dúvidas a respeito da demarcação, Marcato (2005, p. 187) esclarece que os interessados poderão lançar mão da via jurisdicional para a resolução das mesmas. Para isso eles poderão promover ação demarcatória regulada pelo CPC. O autor continua afirmando na página 190 que a ação demarcatória “deve ser proposta no foro da situação do imóvel, nos exatos termos do art. 95, 1ª parte, do CPC (fórum rei sitae)”. Acerca da ação demarcatória Tartuce e Simão (2011, p.123) afirmam que é um direito que deve ser exercido através de uma ação petitória que se baseia na propriedade. Segundo eles a mais comum é a ação reivindicatória. Em resumo o autor afirma que “a proteção da propriedade é obtida por meio dessa demanda, aquela em que se discute a propriedade visando à retomada da coisa, quando a terceira pessoa, de forma injustificada, a tenha, dizendo-se dono”. 64 Theodoro Júnior (2009, p.36) sintetiza em forma de esquema os requisitos essenciais do direito de solicitar uma demarcação: a) A natureza privada do imóvel demarcando; b) a contiguidade entre os dois prédios, cujos limites se pretende fixar; c) propriedade distinta dos dois prédios; d) confusão de limites entre eles. Para o autor estas características acerca do conflito devem ser analisadas para verificar se o pedido do autor corresponde com as exigências para se entrar com uma ação de demarcação. 2.2 Prédios contíguos No que diz respeito a opiniões diversas quanto aos limites de prédios contíguos Donizetti (2011, p. 1289) afirma que “Assim, se há controvérsia envolvendo o limite de duas ou mais propriedades (terras), seja em decorrência da não fixação de rumos, seja porque os rumos fixados já se apagaram, a ação cabível será a de demarcação. Pressupõe, prédios contíguos”.Complementando a afirmação do autor precedente, Theodoro Júnior (2009, p.16) ressalta que: o direito de propriedade, que deve ser pleno mais apenas dentro dos limites do imóvel do titular do domínio, impõe a individualização do prédio, que se é possível por meio de identificação dos limites que o separam e o distinguem dos outros prédios contíguos. Portanto, o autor fala da importância de delimitar de forma correta os limites entre prédios vizinhos pois o direito a propriedade é pleno porém somente dentro dos limites da propriedade. 2.2.1 Limites O conceito de limite é tão antigo quanto o conceito de propriedade, este também é percebido no direito romano. Lopes da Costa, apud Theodoro Júnior (2009, p. 20), faz um paralelo do conceito de limite na antiguidade com os atuais. Para o autor por um lado no direito romano o limite é considerado um espaço neutro de terra entre duas propriedades. Por outro lado atualmente o limite é considerado como simplesmente uma linha. Segundo Theodoro Júnior o conceito de limites (20009, p. 21) pode apresentar dois significados diferentes: um sobre um ponto de vista abstrato onde os limites não existem ou estão imprecisos e no outro ponto de vista a visão é objetiva onde os limites estão visíveis. Segundo o autor, no sentido abstrato ou genérico, que é também o que nos fornece a geometria, limite se confunde com intersecção, ou seja, com a linha de corte onde duas superfícies se tocam ou se cruzam. Sob o ponto de vista objetivo ou legal, isto é, no sentido que interessa às divisas de um imóvel, limite indica os sinais (marcos e rumos) visíveis, que materializam no solo a linha de confinação de dois imóveis. 65 Em seguida, o autor esclarece que os limites podem ser representados por “acidentes geográficos ou por pontos assinalados por obra humana”. O autor também atribui uma classificação para os tipos de limites de acordo com características especificas da propriedade. Por um lado, ele apresenta os limites artificiais e naturais e, por outro, os limites de iure e limites de facto. O autor esclarece que os limites artificiais são aqueles feitos pelo homem e os naturais àqueles que a própria natureza estabelece. Em relação aos limites de iure, o autor esclarece que se trata aqueles limites registrados em documentos da propriedade e os de facto são aqueles que são transferidos do documento para a propriedade. Os limites de uma propriedade devem ser claros e bem delimitados. Quando surgem dúvidas sobre estes limites uma ação de demarcação torna-se necessária para definir os mesmos de forma justa.Esta preconização é mencionada por Theodoro Júnior (2009, p. 17) quando ele afirma que “o que, enfim, justifica a demarcação é a ausência ou incerteza dos limites efetivos entre dois prédios contíguos, gerando fenômeno que se costuma definir como confusão de limites”.O autor complementa este esclarecimento na pagina 19 ressaltando que é necessário encontrar com exatidão os terrenos que estejam sobre domínio de cada proprietário. A este respeito Donizetti(2011, p. 1289 ) ressalta o inciso I do art. 946 que “cabe à ação de demarcação ao proprietário para obrigar o seu confinante a estremar os respectivos prédios, fixando-se novos limites entre eles ou aviventando -se os já apagados”. Complementando as afirmações do autor precedente, Theodoro Júnior(2010, p. 185) lança mão de outros artigos existentes na legislação brasileira. No seu trabalho ele aponta que é graças aos limites devidamente bem marcados é que os imóveis são identificados. Este fato justifica então o direito do proprietário a querer demarcar sua propriedade. Aos bens imóveis é pela exata fixação dos limites dos prédios e terrenos que se consegue sua identificação. Daí assegurar o artigo 1297 do Código Civil de 2002 (CC de 1916, art. 569),que todo “proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar de qualquer modo o seu prédio, urbano ou rural, e pode constranger o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas”. Com outras palavras, Gonçalves (2010, p. 297) afirma que a ação de demarcação “diz respeito a dois imóveis diferentes, cujos limites não estejam esclarecidos, ou que seja necessário aviventar”. 2.3 Demarcatória e ação reivindicatória 66 Para solicitar uma demarcação, algumas características específicas são necessárias. Em sua obra, Theodoro Júnior (2009, p.225) esclarece que “o direito de demarcar é atributo da propriedade, de maneira que quem pode reivindicar a coisa própria, pode também demarcá-la.” Já para Marcato (2005, p. 188), existem dois tipos de ação demarcatória. Assim, para o autor, a ação é simples quando o requerente solicita somente a demarcação de áreas; já a ação qualificada se refere a uma solicitação mais complexa, envolvendo além do pedido de demarcação há também o pedido de reintegração na posse ou reivindicatório de domínio. O autor esclarece ainda que a demarcatória pode ser “total”, quando abrange toda a área do prédio, ou “parcial” quando abrange somente uma parte do mesmo. Theodoro Júnior (2009, p. 190) analisa autores que também subdividem a demarcação como Marcato e conclui que: a importância da separação da demarcatória simples da qualificada, para os que a defendem, estaria na circunstância de que a primeira teria força simplesmente de definir os limites, em sua forma material; enquanto que a demarcatória qualificada seria forma adequada não só para a dita definição, como também para a reivindicação de áreas usurpadas pelo vizinho, além da linha de limites. O poder de reivindicar algo que foi possuído ilegalmente é do proprietário. A este respeito Coelho (2010, p. 81) alega que “tem o proprietário o poder de reivindicar o bem das mãos de quem injustamente o possui ou detém”. O autor ressalta também que a reivindicação só pode ser feita através de processo judicial. Venosa (2011, p. 13) também concorda que se trata de um instrumento exclusivo do proprietário e que nesta ação “existem dois pedidos: o de reconhecimento de um direito real e de entrega da coisa indevidamente em poder de terceiro”. Na visão de Tartuce e Simão (2011, p. 125), “o efeito da ação reivindicatória é de fazer com que o possuidor ou detentor restitua o bem com todos os seus acessórios”. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Apud Tartuce e Simão (2011, p. 125) apresentam as principais características desta ação: 1. natureza jurídica: trata-se da ação real, sendo fundamento do pedido a propriedade e o direito de sequela a ela inerente. 2. finalidade: visa à restituição da coisa. É a ação cabível ao proprietário que tinha a posse e injustamente a perdeu. 3. requisitos: prova da propriedade e da posse molestada. O réu pode alegar, em defesa, a exceptio proprietatis (exceção de domínio), o que não pode ocorrer nas ações possessórias. 4. rito: comum ordinário. 5. remissões: art. 1228 do CC (Código de Processo Civil..., 2006, p. 919). Existem casos específicos em que a reivindicatória não pode ser possível. A imprescritibilidade da reivindicatória é tratada por Coelho (2010, p. 81) que relata em quais casos não há possibilidade de recorrer a ela além também de citar exemplos atuais. A autor relata o lado do direito a propriedade que leva em conta que em nome do bem geral da sociedade pode se passar por cima do direito a propriedade de uma pessoa diante das seguintes possibilidades. 67 O poder de reivindicar a coisa não existe quando ela consiste em área extensa na qual possuidores de boa-fé, em número expressivo, realizaram obras ou serviços de relevância social ou econômica, sempre que a posse deles durar mais de 5 anos (CC, art. 1228, §4º). É o caso, por exemplo, da favela erguida em imóvel particular de extensão considerável. Se o dono não o reivindica no prazo referido de 5 anos, perde esse poder sobre a coisa. Garante-lhe a lei, nessa hipótese, o direito a justa indenização, a ser paga, em princípio, pelos possuidores interessados em adquirir a propriedade do bem (§5º). Enquanto o dono não recebe o pagamento da indenização fixada pelo juiz, ainda é ele o titular da propriedade; mas o seu direito é restrito por não ter o poder de reivindicar a coisa. Em relação a cumulações não possíveis com a ação reivindicatória, Venosa (2011, p. 23) nos alerta que esta não pode cumular com pedido de perdas e danos já que não é característica da ação de demarcação, podendo levar a punição de quem tentar agir de má fé usando-se desta ação para tal objetivo: Este decorre de ato ilícito e foge ao âmbito estritamente real do pedido inicial. Essa pretensão decorrente da ilicitude é pessoal, tanto que pode ser versada autonomamente contra o causador do dano a coisa, o qual pode não ser o terceiro contra quem é dirigida a reivindicação. Como analisado anteriormente, existe uma linha de autores que defendem uma ação única para a demarcação e outra para a reivindicação. Outra linha defende que todos os pedidos são de demarcatória, porém eles a dividem em duas: qualificada e simples, em que a simples trataria somente de pedidos de demarcação e a qualificada seria a cumulação de demarcação e reivindicação. Theodoro Júnior (2009, p. 206) faz parte daqueles que acreditam que a ação demarcatória é a mais apropriada para casos que envolvam pedido de reivindicação também e defende seu ponto de vista afirmando que: a remessa das partes para a via da ação reivindicatória é, na maioria dos casos, solução simplista e de menor esforço, que importa total denegação de justiça. Se o proprietário não concorda com o muro feito arbitrariamente pelo vizinho justamente por falta de prévia definição da linha de divisa, e se esta linha é incerta, carecendo ainda de acero judicial, como poderá reivindicar uma porção indefinida ou imprecisa de seu terreno usurpado pelo confrontante? Fatalmente esbarraria na carência da ação reivindicatória por falta de certeza quanto ao objeto reivindicando. Só mesmo a demarcatória, portanto, propiciar-lhe-á remédio para dirimir a incerteza de confins, ainda nesse caso de cercas e tapumes já implantados entre os prédios dos litigantes. O autor também faz uma comparação, logo em seguida na página 207, entre a ação demarcatória e a reivindicatória. Segundo ele, as duas servem para o proprietário recuperar parte de terreno ocupado de forma ilegal, a única diferença entre as duas é que na reivindicatória já se conhece a linha divisória, tendo apenas que recuperar o que foi ocupado indevidamente. Na demarcatória, primeiro define-se as linhas para depois conseguir recuperar as terras ocupadas de forma errônea. 2.4 Acerca da prova 68 Segundo Tartuce e Simão (2011, p. 124), é preciso apresentar provas de acordo com o que se está reclamando: “O autor deve provar o seu domínio com o respectivo registro e descrevendo o imóvel com suas confrontações. O autor da ação reivindicatória deve, ainda, demonstrar que a coisa reivindicada esteja na posse injusta do réu”. 2.5 Proprietário e o terceiro possuidor O terceiro possuidor não pode impedir a ação de demarcação, mas possui direitos que podem dificultá-la. A este respeito, Theodoro Júnior (2009, p. 216) afirma que “embora não possa o terceiro possuidor impedir a discussão dominial entre os verdadeiros donos, pode, todavia, opor embaraços sérios a realização dos trabalhos técnicos da demarcação” mais não o fim da ação. Em seguida, o autor esclarece que este fato não extingue a demarcação obrigatoriamente basta para isto que não seja invadido o território possuído por terceiro nem que este cause impedimentos aos trabalhos desenvolvidos pelos peritos. No que diz respeito aos direitos do proprietário e do usufrutuário em relação a terceiros, Venosa (2011, p. 6) é bem claro. De acordo com o autor eles “podem reivindicar a coisa de terceiro que dela se aposse”. Tartuce e Simão (2011, p. 126) citam um exemplo comum deste tipo de situação que é o caso de uma ação proposta contra um caseiro que ocupa o imóvel em nome de um invasor. Os autores também ressaltam que o projeto do novo Código de Processo Civil facilitará questões como esta, já que ele “pretende banir do sistema a nomeação e a autoria, como forma de intervenção de terceiros”. Coelho (2010, p. 25) divide a mesma opinião que Venosa e nos esclarece que “o proprietário pode ser ou não possuidor da coisa que lhe pertence”. Ele continua nos explicando o que pode ser feito neste caso ou quando o possuidor é ou não dono da coisa possuída: Sendo possuidor, pode defender a posse como direito autônomo, inconfundível com o de propriedade. Do mesmo modo, o possuidor pode ser ou não o dono da coisa possuída; mesmo não o sendo, pode defender sua posse até mesmo contra o titular da propriedade; pode, ademais, em certos casos, tornar-se o legítimo proprietário (Capc. 42). Fica claro que tanto na visão de Venosa, quanto na de Coelho, que nem sempre o proprietário do território é quem cuida dele ou seja ele pode ser o proprietário e alugar para alguém, arrendar e neste caso o inquilino trata-se do possuidor da propriedade. O proprietário tem plenos poderes sobre sua propriedade mais o possuidor também tem o direito de defender sua posse e dependendo da situação pode até conseguir passar a ser o proprietário do território. 2.6 Imprescritibilidade da ação demarcatória 69 A imprescritibilidade da ação demarcatória é analisada por Tartuce e Simão (2011, p. 124). Os autores explicam que existem divergências acerca dos conceitos em relação a prazos onde a duvida fica acerca de 10 anos para a primeira corrente e 15 anos defendia pela segunda corrente para ocorrer a imprescritibilidade da ação: A primeira corrente aponta que a ação reivindicatória está sujeita a prazo prescricional, diante de seu caráter essencialmente patrimonial. Esse prazo de prescrição era de 10 anos (entre presentes) e 15 anos (entre ausentes), na vigência do Código Civil de 1916 (art. 177). Na vigência do atual Código Civil, após 11 de janeiro de 2003, o prazo é de 10 anos, diante da unificação dos prazos gerais de prescrição que consta do art. 205 da atual codificação. Pelo que consta do enunciado 14 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, o prazo prescricional deve ter início da violação do direito subjetivo da propriedade, em regra.Mas não é essa a visão que prevalece em nossos Tribunais, sobretudo no Superior Tribunal de Justiça, havendo várias decisões reconhecendo a imprescritibilidade da ação reivindicatória, diante do seu caráter essencialmente declaratório. Theodoro Júnior (2009, p. 194) levanta algumas situações em que não cabe a ação demarcatória. Segundo ele, quando o pedido envolve prédios que não são contíguos ou divididos por limites naturais, como por exemplos estradas e rios, a ação de demarcação não é possível juridicamente. Outra situação por ele relatada é quando já existem limites fixados como, por exemplo, uma cerca. Neste caso a competência é da ação de reivindicação e não da demarcatória (THEODORO, 2009, p. 200).Mais adiante na pagina 205 o autor ressalta que existe um caso que pode resultar na perca do direito de demarcar: “o usucapião de forma obliqua, fará extinguir o direito de reclamar a demarcação para o que permaneceu inerte durante o lapso de tempo necessário a consolidação do domínio daquele que fixou as divisas, e manteve, continuamente, posse mansa e pacífica conforme ela”. Resumidamente o autor declara a este respeito (2009, p.228) que a usucapião não cabe pretensão de demarcar, pois ele tornou os limites certos. Em resumo, o conceito de imprescritibilidade da ação de demarcação não possui um consenso. Os autores seguem diferentes correntes a cerca destes conceitos. O que para uns seria imprescritível para outros é aceitável. Conclui-se que de acordo com a linha de pensamento a qual o juiz é adepto no que diz respeita estes conceitos ele julgara se a ação demarcatória é ou não imprescritível. 2.7 Objetivos da demarcação A demarcação tem como principal objetivo definir limites apagados ou que estão em posse errôneas. Segundo o Cód. Proc. Civil, art.946, nº 1 a ação de demarcação tem como objetivo “obrigar o seu confinante a extremar os respectivos prédios, fixando -se novos limites entre eles ou aviventando-se os já apagados”. Na definição de Gonçalves (2010, p. 305), a ação demarcatória tem por fim “Precisar os contornos e limites que separam dois imóveis lindeiros. É por meio dela que se vai conhecer a extensão da propriedade de cada um dos vizinhos”. 70 Com uma definição mais ampla Manzo (1998, p. 10) conceitua o objetivo da ação demarcatória afirmando que o autor almeja a definição e demarcação exata dos limites de sua propriedade com as demais propriedades sendo assim necessário nomear os demais confinantes afim do limite ser estabelecido: Na ação demarcatória, ao autor compete demonstrar o “jus in re” objetivando a demarcação ou sejam aviventados e assinalados os exatos limites das divisas de imóvel de sua propriedade, fornecendo as características naturais e distintivos, devendo o pedido ser instruído com os títulos da propriedade, descrevendo os limites por constituir, renovar ou aviventar, nomear todos os confinantes da linha a ser chamada. Para Theodoro Júnior (2009, p. 216), o objetivo desta ação possui duas preocupações: primeiramente adaptar no terreno os limites do prédio seja “de forma originaria, quando ainda nunca foram assinalados, quer de forma superveniente, quando antes já haviam sido assinalados, mas os marcos desapareceram” estabelecendo assim novos limites ou aviventando os antigos. A segunda preocupação do objetivo da demarcação seria a providencia de restituir os terrenos que estiverem de forma ilegal ocupado por alheios. 3. ASPECTOS PROCESSUAIS DA AÇÃO DE DEMARCAÇÃO 3.1 Legitimidades De acordo com cada situação a legitimidade possuirá uma denominação específica. Para Donizetti (2011, p. 1289) e Marcato (2005, p.190), a legitimidade de propor a ação cabe ao proprietário e não ao possuidor. A este respeito, em contraponto Hamilton de Moraes e Barros citados por Marcato (2005, p. 190) entendem que “pode ser também legitimado o promitente comprador, estando o compromisso registrado no Registro Imobiliário (Decreto lei nº 58/37, arts. 5º e 22, e Lei 6.766/79, art. 25), pois ele é titular, nesse caso, de direito real de aquisição”. Já para Dias (2005, p. 7) a legitimidade depende da distinção entre o proprietário pleno e o proprietário limitado. O autor classifica a legitimidade em quatro categorias: legitimidade do espólio, legitimidade do possuidor, legitimidade passiva e legitimidade ativa. Na legitimidade ativa, Dias (2005, p. 7) afirma que existem dois tipos de proprietário: o pleno e o limitado. Este último inclui o nu-proprietário, usufrutuário e co-proprietário. O autor ressalta que todos eles têm legitimidade para propor uma ação de demarcação. Theodoro Júnior (2009, p. 218) esclarece que a propriedade plena é quando “os seus atributos ou faculdades elementares se acham reunidos em torno de uma só pessoa, que, então, se apresenta como o proprietário pleno ou exclusivo (o único dono)”. Na legitimidade do espólio, Dias (2005, p. 8) defende que “espólio é a universidade patrimonial deixada pelo “de cujos” enquanto não ultimada a partilha 71 entre os herdeiros e sucessores.” Sobre esta legitimidade o CPC em seu art. 12, IX preconiza que a representação do espólio se da pelo inventariante. Theodoro Júnior (2009, p. 221) concorda com esta definição e complementa afirmando que “não é o espólio uma pessoa jurídica, mas apresenta-se como massa necessária, dotada de representação e capacidade de agir em juízo, ativa e passivamente, como se pessoa fosse”. Na legitimidade do possuidor, Dias (2005, p. 8) salienta que a demarcação de posse não é especifica para proprietários mais sim de possuidores que querem definir suas posses. Questões desta natureza têm resolução via judicial mais não cabe a ação demarcatória mais sim a ação possessória. A este respeito Dias afirma que: os possuidores têm ação de demarcação de posse. Assim, percebe-se que a disputa de limites não é privilégio dos proprietários, pois podem perfeitamente dois possuidores vizinhos se deparar com a necessidade de demarcar as suas posses. Trata-se de questão possessória que deve ser solucionada em juízo como tal. Este conceito a cerca da legitimidade do possuidor também é defendido por Theodoro Júnior (2009, p. 222) e o autor nos esclarece que neste caso o que está sendo demarcado é a posse, por isso o possuidor pode reivindicá-la. Se fosse uma questão de demarcação de domínio, somente os proprietários teriam direito a solicitá-la. Por fim temos a legitimidade passiva. De acordo com Dias (2005, p. 8),é necessário que os proprietários sejam citados na ação para que ambos tenham obrigação de seguir o que o juiz definir. Se somente o possuidor for citado no processo quando o proprietário retomar os bens ele não serão brigado a seguir o que o juiz estipulou. Para evitar este tipo de problema Dias nos previne que: sempre que o promovente de uma ação demarcatória encontrar uma situação difícil de posse e domínio na área vizinha a linha demarcada, propugna a doutrina que seja requerida a citação tanto do possuidor em nome próprio como o titular do domínio que figura no registro de imóveis. Só assim a sentença prevalecera perante todos os possíveis interessados. Portanto, é importante, quando houver casos de posses nas propriedades vizinhas, que sejam citados além dos possuidores também os proprietários dessas terras. Desta forma a sentença pronunciada pelo juiz será obrigatória a todos os presentes evitando que futuramente ocorram novos conflitos ou ações de demarcação nesses mesmos limites. 3.2 Litisconsórcio Na literatura jurídica, existem diversas categorias de litisconsórcio. Por um lado, Donizetti (2011, p. 1290) nos fala sobre o litisconsórcio ativo e passivo. No primeiro caso, ele defende o direito do comprador propor a ação, bastando para isso citar os demais condôminos. 72 No segundo caso, o legitimado é o proprietário ou possuidor. A este respeito o art.950 do CPC prevê que a inicial tem que mencionar todos os confinantes da área demarcada já que todos estarão envolvidos de forma direta na ação de demarcação. Cumulação da demarcatória com outras ações. Marcato (2005, p. 191) complementa, afirmando que no art. 10 e §1º, I do CPC está previsto que no caso do autor da ação ser casado o mesmo deverá obter a autorização do cônjuge, o autor esclarece que na ação deve conter também a citação do cônjuge do réu casado. Por outro lado, Dias (2005, p. 8) aborda dois outros tipos de litisconsórcio: necessário e facultativo. No primeiro caso, ele explica que, quando a terra a ser demarcada envolve mais de um legitimado, todos os possíveis deverão ser citados. Já o facultativo é destinado para aqueles que possuem direitos secundários. O autor ressalta que: o credor hipotecário e o promitente comprador que são titulares de direitos secundários sobre a coisa podem intervir no processo na qualidade de litisconsórcios facultativos ou como assistentes litisconsorciais, já que sua presença jamais será a condição de eficácia da sentença. A este respeito Theodoro Júnior (2009, p. 227) previne que quando se trata de litisconsórcio passivo para uma ação de demarcação cujos proprietários são um casal “o autor não precisa demandar em conjunto com sua mulher; basta obter sua autorização”. No segundo caso, Dias (2005, p.8) relata o fato em que o proprietário entra com uma ação contra vários vizinhos na intenção de demarcar seu imóvel de vários outros. Com outras palavras, Theodoro Júnior conceitua afirmando que o proprietário “pede a assinalação de uma linha que delimita sua propriedade de varias outras glebas”. Gonçalves (2010, p. 301) nos traz uma nova definição de litisconsórcio: o necessário ativo. Este diz respeito aqueles casos onde os limites a serem demarcados envolvem vários proprietários. Neste caso, todos os confrontantes sofrerão efeitos da sentença sendo preciso todos serem citados já que a sentença atingira a todos: Se o imóvel estiver em condomínio, conquanto qualquer dos condôminos possa ajuizar a ação demarcatória, todos os demais haverão de ser citados, para integrar o polo ativo, porque todos sofrerão os efeitos da sentença. Serão todos litisconsortes necessários ativos. O autor também explica que na ação de demarcação a sentença deve ser a mesma para os proprietários, ou seja,quando o imóvel possuir mais de um dono. Por fim, Santos (2007, p.84) aborda a legitimidade do comprador, porém neste caso é preciso que este tenha um contrato registrado e uma clausula especificando que ele não pode se arrepender. Esta situação especifica é definida pelo autor como litisconsorte necessário unitário: segundo Santos isso pode ocorrer quando: também tem legitimidade para a ação o promitente-comprador quando, no contrato de promessa de venda devidamente registrado, não existir cláusula de arrependimento, sendo certo que, se, ao contrário, a demarcação for por pouco requerida, deverá ele também ser citado como litisconsorte necessário unitário. A legitimidade para propor uma ação de demarcação cabe a vários autores. Um em especial chama a atenção: o comprador do imóvel. Este nem é proprietário ainda, 73 mas se seguir os requisitos tratados por Santos , poderá também solicitar a demarcação de sua futura propriedade. 3.3 Cumulação da demarcatória com outras ações A ação de demarcação pode cumular com outras ações. Dias (2005, p. 9) enumera três tipos de cumulação possível na ação de demarcação: cumulação com a ação de divisão, cumulação com a ação possessória e cumulação com a queixa de esbulho. Já Gonçalves (2010, p.297) primeiro qualifica a ação demarcatória como simples e qualificada. No primeiro caso, ele nos explica que se tratado simples pedido de delimitação dos imóveis. Já no segundo caso a ação pode ter uma cumulação de acordo com o pedido. O autor também relata que é comum ocorrer a cumulação quando se exige a reintegração de posse ou reivindicação. A ação demarcatória pode ser simples, quando formulada apenas o pedido de delimitação dos imóveis confinantes, ou qualificada, quando se postular cumuladamente a reintegração de posse, ou a reivindicatória. É muito comum que haja tal cumulação, porque, em decorrência da indistinção de limites, um dos confiantes pode estar ocupando terreno alheio. A cumulação com a ação e divisão é frequente, já que a decisão da primeira é a continuação da segunda. Manzo (1998, p. 9) explica que esta cumulação é possível e totalmente legal. Segundo ele, primeiro acontece à ação de demarcação e em seguida a de divisão. O autor ressalta que “É lícita a cumulação destas ações, devendo se processar primeiro a demarcação total ou parcial da coisa comum, fazendo-se a citação dos confinantes e condôminos, feito isto, os confinantes serão considerados terceiros no processo divisório”. Para Theodoro Júnior (2009, p. 229), a cumulação é apenas sucessiva, já que primeiro precisa-se resolver as questões dos limites para depois passar para a ação de divisão: “o cúmulo previsto em lei é apenas sucessivo. Primeiro resolve-se a questão da demarcação, para depois passar-se ao trabalho divisório”. Existe entre os autores um debate acerca da cumulação da ação demarcatória com a ação reivindicatória. Theodoro Júnior (2009, p. 320) apresenta seu ponto de vista em relação à cumulação destas ações, alegando que se o autor não conhece os limites do terreno primeiramente ele precisa demarcá-lo para só depois reivindicá-lo, sendo desta forma até mesmo lógico a cumulação dos pedidos. Se o autor não consegue definir, de plano, os limites do terreno com a necessária precisão, não está em condições de reivindicar, desde logo, sua restituição. Mas, se pede primeiro a demarcação, que há de redundar na caracterização e discriminação da área a recuperar, não há nada, de ordem lógica ou jurídica, que em tese possa impedir esse cumulo sucessivo de pretensões conexas e consequenciais. A ação demarcatória pode também ser cumulada com a ação possessória. Segundo Theodoro Júnior (2009, p.233) esta cumulação não possui nenhuma vantagem 74 já que “não tem sentido pretender-se num só feito a substância do direito (domínio) e sua mera aparência (a posse)”. O autor também expõe uma situação que torna visível a não necessidade de cumulação das ações: Se o autor da demarcatória pretende manter-se na posse, que já tem após a demarcação, ou pretende recuperar a posse sobre área usurpada pelo réu, em nenhuma das duas hipóteses terá necessidade de cumular o pedido possessório ao demarcatório, porque é força natural do juízo de demarcação atribuir a posse a quem de direito sobre os terrenos discriminados. A cumulação com queixa de esbulho já foi levantada por Dias. Alguns autores não concordam com esta possibilidade. Segundo Morato, apud Theodoro Júnior (2009, p. 235) esta cumulação não é possível quando se trata de tentar reaver ou reivindicar propriedades invadidas pelo vizinho. Segundo o autor, a própria ação de demarcação já se encarrega de resolver este tipo de conflito: “por sua própria natureza, a demarcatória, ao fixar os limites antes confusos entre os dois prédios contíguos, transmitem ao verdadeiro dono o direito de alcançar a posse dos terrenos que, pela confusão, estavam no poder indevido do confinante”. Na própria ação de demarcação na hora da sentença, poderá o esbulhador ser punido, não precisando desta forma a cumulação das ações. Segundo Theodoro Júnior (2009, p. 238). É na sentença, proferida na fase dita contenciosa do procedimento demarcatório que se incluirá a solução de esbulho atribuído a um dos confinantes. Este julgado, se reconhecer comprovada a violação da posse, além de julgar procedente o pedido de demarcação e define a linha de limites, condenará o esbulhador aos consectários de sua posse de má-fé, ou seja, impor-lhe à, conforme o pedido, restituição de frutos e rendimentos, e o ressarcimento de danos, ocorridos desde a época do esbulho ou turbação. Nas ações onde ocorrera a cumulação da ação de demarcação com a ação de queixa de esbulho quando for pronunciada a sentença da primeira fase será incluída a solução para o pedido de queixa de esbulho também. Se for comprovada a posse indevida, o juiz determinará os limites solicitados pela ação de demarcação e condenara o esbulhador a restituir todos os danos conforme previsto nas ações desta natureza. 3.4 Primeira fase A primeira fase da ação demarcatória de terras particulares está prevista nos arts 950 a 958 do CPC. Segundo Donizetti (2011, p. 291) A primeira fase do procedimento inicia-se com o ajuizamento da ação, com os requisitos dos arts. 282 e 950. Esta fase é denominada por Dias (2005, p.10) de fase contenciosa. O procedimento começa pela elaboração da petição inicial. Esta etapa é muito importante, pois o início do processo começa nela. A este respeito Theodoro Júnior (2009, p. 262) afirma que a “petição inicial, como é da sistemática de nosso direito processual, assume posição de peça fundamental e mestra de todo o processo. Sem ela a 75 relação processual não se inicia e é nos limites por ela definidos que a função jurisdicional, de ordinário, será exercida”. Já Donizetti (2011, p. 1290) nos orienta sobre as informações que deve conter na petição inicial ou simplesmente a inicial como por ele é definida esta etapa: “a inicial deverá ser instruída com os títulos da propriedade e designará o imóvel pela situação e denominação. Deve-se descrever, ainda, os limites por constituir, aviventar ou renovar, bem como a que se nomear todos os confinantes da linha demarcada. ”Algumas exceções em relação à entrega de algumas dessas informações. Segundo Dias (2005, p.10): quando se tratar de posse, o Juiz não deve exigir que o promovente exiba qualquer título de domínio, pois o fundamento da ação é a posse, e, não, a propriedade. Há casos, também, em que o proprietário já detém do domínio, mais ainda não dispõe do título para instruir a petição, como é o caso da usucapião. O autor também levanta cinco informações fundamentais que devem constar na petição inicial. São elas: títulos de propriedade, descrição do imóvel a demarcar, descrição dos limites a demarcar, nomeação dos confrontantes e o valor da causa (DIAS, 2005, p. 11). Completando o conceito de Dias, Theodoro Júnior (2009, p. 263) afirma que dentro dessas informações devem estar o objeto do pedido, o porque de pedir e a pessoa obrigada a submeter-se ao pedido. O autor também explica que o objeto é “aquilo que se espera da prestação jurisdicional: o traçado da linha de divisa entre os prédios limítrofes, que o autor apontará ao juiz para discuti-la com o réu”. Mais adiante na página 265 Theodoro Júnior ressalta que é importante o imóvel está bem definido através de denominação e numeração. Uma observação importante é feita por Gonçalves (2010, p.304) em relação à descrição do imóvel a ser demarcado: “é preciso que o autor esclareça, na inicial, a razão pela qual a demarcação se faz necessária, se para fixar os limites, renová-los ou aviventá-los”. Theodoro (2009, p.265) também concorda com esta observação e divide a mesma opinião transmitida através de um conceito mais simples: “realmente, sendo fim do processo a assinação material de uma linha de divisa entre dois prédios, é necessário que o autor indique qual é alinha que pretende seja traçada materialmente”. No que diz respeito ao pedido de nomeação dos confrontantes, vários fatores devem ser levados em conta. Theodoro Júnior (2009, p. 268) ressalta que todos os confrontantes devem ser nomeados ainda na petição inicial já que segundo ele, eles são os sujeitos passivos da ação. O autor esclarece que deverão ser citados somente os confrontantes que fazem fronteira com a linha que está como pedido de demarcação e deverá conter também nomes, além de “dados necessários a sua qualificação e identificação, como a profissão, o estado civil e o endereço”. Somente com essas informações é que a citação se tornará possível segundo Theodoro. Mais adiante na página 272,o autor fala da importância do pedido de citação, já que, de acordo com ele, é através dela que o réu passa a fazer parte da ação cabendo lhe a partir deste momento o ônus e deveres em relação a coisa julgada. 76 No que diz respeito á citação dos confrontantes, Dias (2005, p. 11) ressalta que seu principal objetivo é “acompanhar a operação de assinalação da linha demarcada e suportar proporcionalmente os gastos do processo”. Em relação á ação que consta também queixa de esbulho, Donizetti (2011, p. 1290) sublinha que “O autor pode requerer a demarcação de queixa com esbulho ou turbação, formulando também o pedido de restituição do terreno invadido com os rendimentos que deu ou a indenização dos danos pela usurpação verificada (art. 951)”. Já Theodoro Júnior (2209, p. 270) afirma que quando ocorrer esta cumulação deverá constar na petição que o condenado deverá devolver a propriedade usurpada seguidos de indenização ou rendimentos. O autor também especifica quais outras informações a petição deverá conter: “a) em que consistiu o esbulho; b) qual a área invadida e sua localização; c) a época do esbulho; d) quais os frutos ou rendimentos a repor; ou quais os danos a ressarcir”. No que diz respeito ao prazo para a contestação do réu, Donizetti (2011, p. 1290) e Theodoro Júnior(2010, p. 196) preconizam da mesma forma: os réus têm um prazo de 20 dias para apresentarem resposta. Gonçalves (2010, p. 307) também concorda com este prazo mais ressalta que ele é válido para todos os réus e que. O prazo de vinte dias vale não apenas para a apresentação da contestação , mas de todas as formas de respostas possíveis na ação demarcatória, como as exceções de incompetência, impedimento e suspeição (a reconvenção não cabe por força da natureza dúplice da ação). Entendemos que o réu da demarcatória tem a possibilidade de contestar ou excepcionar no prazo estabelecido pelo art. 954, onde lemos: “feitas as citações, terão os réus o prazo comum de 20 dias para contestar”. De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 279), entende-se por contestação “a forma processual de se opor ao pedido do autor, tanto no mérito, como em matéria preliminar”. Os contestantes possuem o direito de se defenderem alegando o que consideram ser o verdadeiro. De acordo com Marcato (2005, p. 197), podem se defender apresentando como argumentação ilegitimidade da ação por já existirem limites demarcados, que os imóveis não possuem limites em comum ou ainda que os limites alegados pelo réu não estão de acordo com a realidade. Em sua defesa, poderão os réus, além de arguirem qualquer das matérias indicadas no art. 301 (v. g, carência de ação por ilegitimidade de parte ativa, já que o autor não é proprietário do imóvel), também alegarem que os imóveis não são contíguos, ou que os limites descritos na petição inicial não correspondem à realidade. Theodoro Júnior (2010, p. 187) aponta também os diretos que o contestante tem de alegação. Além dos argumentos afirmados por Marcato, Theodoro complementa explicando que o contestante pode se defender alegando a seu favor o usucapião, inexistência de comunhão ou indivisibilidade do imóvel. 77 Incluir, na matéria a decidir, questões como inexistência do domínio do autor, inocorrência de contiguidade entre os prédios, ilegitimidade da linha perimétrica pretendida pelo autor, desnecessidade da demarcação por já existirem limites certos entre os prédios, usucapião em seu favor, inexistência de comunhão, indivisibilidade do imóvel. Caso o réu não apresente contestação no prazo legal ocorre a revelia. Segundo Theodoro Júnior (2009, p. 278), a revelia faz-se entender que os fatos são verdadeiros, porém não quer dizer que o juiz deva decidir e estipular a demarcação sem antes verificar as linhas demarcadas pretendidas. A inércia do demandado, que deixa de contestar a ação de demarcação, não conduz o juiz a aceitar, necessariamente, como verdadeira a linha indicada na petição inicial para estabelecer a divisa entre os dois prédios contíguos. Mesmo quando inexiste contestação, o magistrado ordenará que se realize a prova pericial para levantar o traçado da linha demarcada (CPC, art. 956). Para a apresentação da sentença em favor da demarcação é necessário, antes que haja a realização de uma perícia. Segundo Donizetti (2011, p.1291), o juiz deverá exigir uma perícia para levantamento da linha a ser demarcada antes de proferir a sentença da primeira fase. Quanto aos profissionais responsáveis pela perícia, Dias (2005, p. 12) explica que o juiz nomeará um agrimensor e dois arbitradores para fazerem a mesma, de acordo com o art. 956. Ainda, segundo ele, as partes envolvidas no processo têm direito a “formular quesitos e apresentar assistentes técnicos”. De acordo com Theodoro Júnior (2009, p.289), o agrimensor deverá ser “legalmente habilitado para o exercício da profissão, conforme registro no Conselho Regional de Engenharia e arquitetura”. Quanto ao trabalho a ser efetuado pelos arbitradores e pelo agrimensor, Marcato (2005, p. 197 ) e Gonçalves (2010, p. 308) apresentam a real finalidade dos mesmos. Eles afirmam que caberá a esses profissionais levantarem e apresentarem o traçado da linha, que deverá estar definido para que o juiz possa proferir sua sentença. Em relação aos trabalhos técnicos feitos pelo agrimensor Theodoro Júnior (2009, p. 294) explica como este profissional chega a uma conclusão sobre os traçados: O trabalho pericial do agrimensor será traduzido na planta e no memorial descritivo. Para chegar a esse estágio, o agrimensor terá de levar em consideração o que deliberaram ou sugeriram os arbitradores, pois a sua tarefa consiste em transformar em dados concretos palpáveis os elementos definidores do traçado da linha demarcada, que lhe foram transmitidos pelos outros expertos. 78 Em resumo, primeiramente o agrimensor vai a campo para colher as informações necessárias como medidas, por exemplo, a fim de desenhar as divisas litigiosas. De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 296) todo o trabalho do agrimensor “fica registrado em três tipos de documentos: a planta, o memorial descritivo e as cadernetas de campo”. Portanto na primeira fase o trabalho do agrimensor fica somente no papel. A parte física onde se coloca o marcos no território fica para a segunda fase. É preciso então um trabalho em equipe do agrimensor com os árbitros para que o resultado final seja satisfatório e justo. Marcato(2005, p. 197) detalha a importância dos procedimentos a serem adotados para a realização da perícia, afirmando que esta é indispensável e que os profissionais devem ser basear nos documentos fornecidos das propriedades assim como depoimentos de vizinhos. Indispensável a perícia visando ao levantamento da área demarcada (art. 956); concluídos os estudos, os arbitradores apresentarão minucioso laudo sobre o traçado da linha demarcanda, tendo sempre em conta os títulos, marcos, rumos, a fama da vizinhança, as informações de antigos moradores do lugar e demais elementos pertinentes (art. 957). Somente após a entrega dos laudos dos arbitradores é que o juiz poderá tomar sua decisão final. Segundo Theodoro Júnior (2009, p. 293) é neste documento que os arbitradores “darão resposta aos quesitos das partes e do juiz, se houver, e emitirão seu parecer sobre o traçado da linha demarcada segundo o estudo feito sobre os elementos de convicção que puderam coligir e manusear”. Theodoro Júnior (2010, p. 188) ressalta que na ação demarcatória “a revelia é de pequena consequência, porque, mesmo sem contestação, o juiz terá de promover a prova pericial”. Em relação à prova, Dias (2005, p. 12) acredita que esta é “indispensável, cuja inobservância acarreta a nulidade da sentença”. Gonçalves (2010, p. 308) é da mesma opinião quando se trata da importância da perícia. Ele afirma que “sem a colaboração deles o juiz não terá condições de estabelecer, com precisão, os limites dos imóveis. Mesmo que não tenha havido contestação eles são indispensáveis”. Segundo Theodoro Júnior (2009, p. 286), a perícia é extremamente importante, já que segundo ele o “juiz não pode ordenar atos inúteis nem satisfazer a meros caprichos da parte”. Porém, existe uma exceção na qual pode ser dispensada a perícia e proferir uma sentença. De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 288), este fato ocorre quando a petição inicial já tenha apresentado um trabalho técnico de descrição do traçado da linha, segundo os padrões da agrimensura, com especificação em planta e memorial. É que aí diante de acordo dos interessados, o juiz já terá elementos para proferir a sentença nos termos exigidos pelo art. 958 do Código de Processo Civil. Antes do juiz proferir a sentença, as partes serão intimidas para conhecerem a conclusão da perícia. Theodoro (2009, p. 300) esclarece que nesta fase as partes podem “apresentar alegações e impugnações ou pedidos de esclarecimento”. Não havendo impugnação, o juiz pode proferir a sentença. Quando há impugnação, 79 Theodoro Júnior explica que o juiz primeiro julga ser razoável ou não a impugnação. Caso o juiz ache razoável os arbitradores são convocados a prestar esclarecimentos. O autor ressalta que: depois dos esclarecimentos técnicos, abrirá prazo para os demais litigantes também se pronunciem sobre a possível retificação. A decisão autorizativa da mudança nos trabalhos técnicos só virá, portanto, após observância do contraditório. Se a impugnação for sem maior fundamentação, o juiz a rejeitará de plano. Não havendo impugnação, o juiz poderá de imediato julgar o pedido, nos termos do art. 958 do Código de Processo Civil. Theodoro Júnior (2009, p. 303) ressalta que “a sentença favorável é a que acolhe o pedido do promovente, quer com base na perícia, quer com apoio em acordo havido entre os interessados a respeito do traçado da linha de demarcação”.Complementando Marcato (2005, p. 197) relata os passos a serem tomados pelo juiz para o pronunciamento da sentença. Verificando ele, com base nas provas produzidas, especialmente a pericial, inexistirem limites para constituir, aviventar ou renovar, rejeitará totalmente o pedido demarcatório. Todavia, sendo acolhida a pretensão deduzida pelo autor, a sentença de procedência determinará o traçado da linha demarcada (art.958) e decidirá a respeito da restituição do terreno invadido, mais os rendimentos dele colhidos pelo réu, ou da indenização dos danos ocasionados pela usurpação (v , supra, nº102). De acordo com Theodoro Júnior (2009, p. 287), uma vez pronto o laudo dos peritos e que todos concordam com o que foi estabelecido, o juiz já estará liberado para proferir a sentença de encerramento da primeira fase do procedimento demarcatório. Donizetti (2011, p. 1289) explica que uma vez “esgotada a fase instrutória, o juiz profere sentença, pondo fim a primeira fase, se procedente; e encerrando o processo se improcedente a pretensão de demarcar”. O autor também nos esclarece que pode haver apelação da sentença previsto no art. 520 caput. Dias (2005, p. 13) ressalta que: a primeira sentença (a do art.958), deve solucionar todas as dúvidas sobre o traçado da linha demarcada, tornando-se impossível discutir-se sobre ele após o trânsito em julgado da decisão. O que sobra para a fase executiva é apenas a marcação material da linha sobre o terreno, ou seja, a efetiva colocação dos marcos sobre o solo, situação essa regulada por uma sentença de natureza eminentemente homologatória (CPC, art.960.). No caso da sentença ser negativa, Theodoro Júnior (2009, p. 303) considera a extinção do processo, para ele isto ocorre “quando faltam pressupostos ou condições da ação, ou quando o pedido, no mérito, é improcedente”. Por fim no que diz respeito à coisa julgada, Theodoro (2009, p. 305) esclarece que alinha que foi estabelecida pela sentença da primeira fase não pode mais ser alterada quando na segunda fase ela for implantada no solo e muito menos ser motivo de conflito novamente em outra ação de demarcação. 80 As linhas de demarcação, no entanto, uma vez transitada em julgado a decisão que encerrou a primeira fase do procedimento, tornando-se imutáveis e indiscutíveis, de sorte que os trabalhos técnicos da segunda fase não poderão afetar o seu traçado, nem se tolerará que em outro processo venha a ser ele objeto de nova polêmica judicial. Concluindo quanto à sentença Gonçalves (2010, p.308), informa que se esta “for de procedência, terá início a segunda fase, no qual o juiz determinará, com a participação de técnicos, as operações essenciais para efetivá-las”. 3.5 Segunda fase A segunda fase, também denominada fase executiva, divide opiniões de alguns autores. Para alguns, como Donizetti (2011, p. 1291), esta fase chama-se executiva. Já para Theodoro Júnior (2010, p. 188) esta denominação é inadequada já que a primeira fase não condenou ninguém só se definiu os limites corretos no papel através de pericia e que agora nesta fase serão demarcados do território pela mesma equipe que fez a pericia da primeira fase. Na verdade não se trata de executar a sentença da primeira, que nem sequer tem a natureza condenatória, mas apenas a declaratória, positiva ou negativa, conforme reconheça ou não, o direito de demarcar. Com outras palavras, em uma explicação mais simples Dias (2005, p. 13) explica que esta fase não pode ser chamada de executiva, já que “a segunda fase do procedimento demarcatório não configura outro processo que executa a sentença da primeira etapa da demarcação”. O autor conclui afirmando que não se pode primeiramente ter uma condenação e em seguida uma execução. Donizetti (2011, p. 1289) também concorda que esta fase é uma continuação da primeira, caso não ocorra nova citação. Adotando o mesmo ponto de vista Lopes (1963) apud Theodoro Júnior (2010, p. 187) ressalta que: embora dividido em duas fases, tal como se dá nas ações de prestações de contas é uno, pois o pedido que o provoca “é um só”, o de assinalar no terreno os limites ou de fixar materialmente os quinhões certos de cada condômino. Há, então, “um só processo”, com duas sentenças, ambas de mérito: a) a primeira sobre o fundamento do pedido; b) a segunda, da mesma natureza; julgando a demarcação. Donizetti (2011, p. 1291) ainda nos esclarece que “na segunda fase procede-se a execução material da demarcação, com a colocação dos marcos necessários (art. 959), realização de trabalho de campo (art. 960), elaboração de plantas (art. 961) e memorial descritivo (art. 962)”. Gonçalves (2010, p. 309) nos explica com mais detalhes sobre os procedimentos que se seguem na execução material da demarcação: Colocados os marcos, a linha demarcatória será percorrida pelos arbitradores, que farão um relatório escrito, do qual consta a exatidão do memorial e da planta apresentados pelo agrimensor, ou as divergências encontradas. Apresentado o relatório, o juiz determinará que as partes se manifestem no prazo de dez dias. Se houver correções ou retificações a fazer, ele as determinará. Em seguida, lavrar-se-á um auto de demarcação em que os limites demarcados serão minuciosamente descritos de 81 acordo com o memorial e a planta (CPC, art. 965). Esse auto será assinado pelo juiz, arbitradores e agrimensor. Quanto ao trabalho do agrimensor nesta segunda fase do procedimento, normalmente se encerra com a entrega das ferramentas utilizadas em juízo. Para Theodoro Júnior (2009, p. 314) o agrimensor “não está isento, porém, de ter de voltar a sua atividade se, por exemplo, o juiz acolher reclamação de interessado ou sugestão de arbitrador, no sentido de modificar marcos irregularmente colocados”. Uma vez terminada a demarcação, o juiz dará a sentença homologatória final dando fim a segunda fase da ação. Dias (2005, p. 14) esclarece que esta sentença é homologatória, porque“ seu conteúdo principal não é ditado pelo juiz no ato de decidir, mas é tomado de empréstimo ao trabalho dos peritos sintetizado no auto de demarcação.” Em relação a este procedimento Donizetti(2011, p. 1291) afirma que: concluída a demarcação, lavra-se o respectivo auto (art. 965), proferindo o juiz sentença homologatória da demarcação (art. 966), que põe fim a segunda fase do procedimento. Contra essa sentença cabe o recurso de apelação, cujo recebimento se dá no efeito apenas devolutivo (art. 520, I). O autor ainda nos esclarece que desta sentença homologatória o único recurso possível é o de apelação. De maneira resumida, Theodoro (2009, p. 324), apresenta uma síntese da natureza e conteúdo da sentença, afirmando que uma vez esta pronunciada fica decidido os limites corretos do território não cabendo mais conflitos acerca dos mesmos. O traçado da linha já foi definido pela primitiva sentença, proferida na fase dita “contenciosa” do procedimento de demarcação. Na segunda fase (fase executiva), apenas se procedeu a materialização da linha no solo. E a sentença que encerra esta fase e, com ela, todo o procedimento demarcatório, tem a força de declarar, judicialmente, que a linha assentada no terreno é a que, efetivamente, corresponde aos limites dos imóveis contíguos. Conclui-se que uma vez a sentença pronunciada não pode mais esses limites serem discutidos ou alvos de nova ação de demarcação. A segunda fase é denominada executiva por ter esse caráter de mandar fixar os limites no território e dar a questão por encerrada. Não há mais conflitos acerca desses limites. CONCLUSÃO A demarcação de terras é um assunto que faz parte do cotidiano do profissional, pois todo cidadão em um momento determinado de sua vida planeja adquirir uma propriedade seja ela, urbana ou rural, e com muita frequência gera dúvidas em relação à linha divisória da mesma surgem, situação que para ser resolvida é necessária a realização de ação de demarcação. Suas utilizações para resolver dúvidas dos proprietários é a única solução para esclarecer as desconfianças entre os mesmos. No entanto, para que uma ação demarcatória seja concluída com sucesso, é necessário que o profissional responsável pela mesma esteja bem fundamentado teoricamente. 82 Neste trabalho, analisamos documentos de 13 (treze) autores estudiosos desta temática. Esses documentos são encontrados em forma impressa e digital e foram publicados entre os anos de 1988 a 2011. A limitação do corpus a este espaço de tempo foi devida a atualização das obras com as leis vigentes, no entanto algum retrocesso a datas anteriores foi necessário apenas para melhor compreensão do assunto. No final deste trabalho, apontamos as seguintes conclusões para cada parte abordada. A origem histórica dos conceitos acerca da propriedade é um tema pouco abordado entre os autores, pois como alguns mesmo explicaram não se tem uma data definida de quando o homem passou a ter noções de propriedade no seu cotidiano. A evolução dos conceitos de direito a propriedade possui uma opinião em total acordo entre a maior parte dos estudiosos analisados: esta em constante evolução de acordo com as necessidades e mudanças que a sociedade exige. Ao fazer um estudo histórico no Brasil conclui-se que estas afirmações fazem sentidos, pois desde a época do império o direito a propriedade é previsto no país e vem passando por mudanças e adequações a fim de se adaptar as necessidades e transformações dos passar do ano. A última atualização feita acerca deste conceito foi na constituição de 1988. O conceito da ação demarcatória é defendido com diferentes visões,sendo umas mais primárias, tendo como preocupação somente conceituar a ação em si, já outras visões se aprofundam mais,procurando explicar a origem da ação de demarcação tomando como ponto inicial conceitos primordiais do direito que justificam esta ação. Conclui-se que as abordagens que se aprofundam no tema partindo dos conceitos ligados aos direitos reais até chegar a uma ligação com a ação de demarcação facilitam a compreensão acerca deste assunto além de proporcionar bases mais sólidas de conceitos básicos do direito em geral. Os requisitos para a Ação de Demarcação de Terras Particulares são abordados igualmente de forma unânime por quase todos os autores no que se referem aos requisitos, conceitos de limites, a prova e o proprietário. Já em relação à ação de demarcação e ação de reivindicatória observam-se duas vertentes de pensamentos: aqueles que defendem a cumulação destas ações e aqueles que defendem que se trata de procedimentos individuais e, portanto sendo necessárias duas ações diferentes. A este respeito conclui-se que a cumulação seria possível já que para reivindicar primeiramente precisam-se estabelecer os limites corretos para só depois reivindicá-los. Poderia ambos os pedidos correrem uma única ação até mesmo por questões de agilidade nos trâmites processuais. Em relação ao proprietário e terceiro possuidor encontramos também divergências de opiniões acerca dos direitos sobre a propriedade. Uma parte acredita que o único com direito a entrar com ação de demarcação é o proprietário. Já outra parte defende que o terceiro possuidor tem também direito acerca da propriedade, porém com certas restrições. A conclusão que se chega nesta questão é que o terceiro possuidor só terá direito de pedido de ação de demarcação sobre a propriedade segundo o tipo de conflito existente a cerca da propriedade. Por fim outra divergência observada foi em relação à imprescritibilidade da ação. O tema é pouco abordado entre os autores e as opiniões são bem divergentes. Para uma conclusão acerca desta questão seria necessária uma leitura de mais autores que abordam este tema no intuito de formar uma opinião concreta acerca deste assunto. 83 Os aspectos processuais abordam em um primeiro momento conceitos necessários para compreensão do funcionamento da ação. Em relação à legitimidade os conceitos possuem a mesma essência ocorrendo somente algumas diferentes visões acerca dos direitos do terceiro possuidor como já foi abordado antes. No litisconsórcio observamos uma preocupação dos estudiosos em classificá-lo de acordo com características especificas para cada tipo de conflito. Os direitos do comprador do imóvel que possui mais de um proprietário a cerca da ação de demarcação é a principal preocupação dos estudiosos. Aqui se defende que ambos possuem o direito igualmente o proprietário, porém as obrigações, punições e decisões devem ter o mesmo peso que a dos proprietários perante o juiz? Em relação à cumulação da ação demarcatória com outras ações a conclusão permanece a mesma que para a cumulação com reivindicatória quando se trata de cumulação com ação de divisão e queixa de esbulho já que ambas precisam inicialmente definir os limites reais e legais. Já em relação à cumulação com ação possessória entendemos que não há necessidade da mesma já que a demarcação por si só já determina a posse do proprietário. Por fim o andamento da ação é apresentado pelos autores. Todos eles fazem a divisão da primeira e segunda fase do processo. As diferenças encontradas de forma geral é que alguns autores apresentaram superficialmente as fases enquanto outros não deixaram para traz nenhum detalhe proporcionando um estudo completo e aprofundado de todas as fases dos procedimentos um após o outro. Os esquemas e fluxogramas também foram fundamentais para facilitar a compreensão e ordem que se segue cada procedimento. Podemos afirmar, de forma resumida acerca da ação de demarcação, que esta se caracteriza por duas ações: a primeira ocupa-se da definição da linha divisória e a segunda a construção de limites na propriedade através de marcos. A primeira fase aborda inicialmente a postulação que vai da petição inicial passando pela citação dos confrontantes, a contestação em um prazo de 20 dias e finalizando com a possibilidade de reconvenção, exceções e ação declaratória incidental. Em seguida vem o julgamento onde ha duas possibilidades a extinção prematura do processo e o julgamento antecipado do mérito. Logo após, vem o saneamento, com ou sem contestação o juiz ordena a realização da prova pericial. Em penúltimo lugar vem à instalação processual com a participação e um agrimensor e dois arbitradores para produzirem a prova pericial e por fim vem decisão, haverá audiência e a sentença do juiz solucionara as questões propostas e a determinação do traçado d alinha conforme a perícia. A segunda fase também chamada de executiva, onde se iniciam os trabalhos de campo com a participação do agrimensor e de dois arbitradores. O agrimensor coloca os marcos no solo, elabora a planta e o memorial descritivo junta a estes documentos a caderneta de campo e passa aos arbitradores para a confecção do relatório e a fase termina com a sentença do juiz encerrando a ação de demarcação. Após o estudo de todos esses autores que abordam diferentes visões acerca dos conceitos que envolvem as etapas da ação de demarcação, conclui-se que é fundamental por um lado conhecer bem as questões e problemáticas acerca de cada conceito afim de poder protocolar uma ação fundamentada conforme as leis brasileiras e interpretada com visões defendidas por autores renomados. Por outro lado, um estudo minucioso do conflito apresentado pelo autor se faz necessário para identificar se cabe ou não a ação de demarcação ou ainda a cumulação com outras ações resolvendo de forma mais ágil o conflito em questão. 84 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869 de 11 de Janeiro e 1073. Institui o Código de Processo Civil. 02. COELHO, Fábio, Ulhoa. Curso de direito civil, volume 4: direito das coisas, direito autoral. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 03. DIAS, R. D. Demarcação e divisão de terras particulares. Disponível em URL http://tex.pro.br/tex/listagem-de-artigos/229-artigos/jul-2005/5092demarcação-e-divisao-deter-. Acesso em 13.fev. 2012. 04. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2011. 05. GONÇALVES, Marcos.Vinicius.Rios. Novo curso de direito processual civil, volume 2: processo de conhecimento e procedimentos especiais.6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 06. MANZO, Airosa, Forestie. Divisão, demarcação e tapumes – teoria, legislação, jurisprudência e pratica. São Paulo: Agá Juris, 1998. 07. MARCATO, Antônio. Carlos. Procedimentos especiais.11 ed. São Paulo: Atlas, 2005. 08. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil, volume IV: direitos reais. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 09. SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil, volume 3: procedimentos especiais codificados e da legislação esparsa, jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 10. TARTUCE, Flavio, SIMÃO, José, Fernando. Direito civil, v.4: Direito das coisas. 3 ed. São Paulo: Método, 2011. 11. THEODORO, Junior. Humberto. Curso De Direito Processual Civil – Procedimentos especiais. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 12. THEODORO, Junior. Humberto. Terras particulares: demarcação, divisão, tapumes. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 13. VENOSA, Silvio, de Salvo. Direito civil: direitos reais. 11. Ed. São Paulo: Atlas, 2011. 85 REGIME DE BENS NO DIREITO PÁTRIO Acadêmico Edson Antelo Nogueira Especialista e Professora Alessandra Gonçalves Heronville da Silva RESUMO: Este trabalho tem por objetivo estabelecer um estudo acerca dos regimes de bens que vigoram no casamento entre os cônjuges. Abordar-se-á conceitos como família e casamento para que sejam entendidos o porquê do regime de bens no direito brasileiro, a evolução no direito brasileiro e seus efeitos. O casamento não poderá subsistir sem um regime de bens que regule as relações patrimoniais dos cônjuges entre si e com relação a terceiros. Logo, os cônjuges ou contraentes estarão livres para fazer sua escolha inicial ou até mesmo modificar regime de bens que vigorará ou já vigora durante o seu casamento, respectivamente; desde que não sejam obrigados a adotar o regime de separação legal de bens. Todos estes regimes estão previstos por disposição legal no Novo Código Civil. Palavras-chave: regimes de bens, cônjuges; família, casamento, pacto antenupcial. INTRODUÇÃO No presente trabalho monográfico de pesquisa bordará o regime de bens no direito pátrio. A partir de estudo dos autores mais renomados no Direito de Família, fazse um breve histórico a respeito do casamento na humanidade e a influência do direito romano no Brasil; analisa-se juridicamente os regimes matrimonias de bens, assim como seus efeitos patrimoniais, e também conceitua-se os requisitos necessários para a mudança de regime, e quais efeitos dessa alteração. Para o cumprimento desse objetivo, a presente pesquisa adota método dedutivo, por ser mais adequado quanto à compreensão gradativa do leitor para concluir o assunto em comento, iniciando a apresentação com um breve comentário a cerca da primeira união estável ocorrida na humanidade, assim como a evolução do regime de bens a partir do Direito Romano, em seguida discorre-se sobre a natureza jurídica do casamento e os princípios fundamentais que regem o regime de bens. Logo depois, conceitua-se o regime de bens no Código Civil de 1.916, assim como as importantes mudanças ocorridas no atual código. Conclui-se com a definição de cada regime adotado no atual código. 1. NOÇÕES GERAIS SOBRE REGIME DE BENS NO CASAMENTO 86 1.1 Breve histórico 1.1.2 Evolução histórica a partir do direito romano A primeira união originou-se nos primórdios da civilização com a captura da mulher pelo homem através da força, em que o macho pegava a fêmea pela qual sentia desejo. O casamento no direito romano quando não seguia a conuentio in manum, os patrimônios de cada cônjuge eram tratado de forma diferente, havendo independência entre os cônjuges. Porém neste regime de separação absoluta de bens foi, desde cedo, amenizado pela instituição dote (ALVES, 1997, p. 304). Porém vigorava o princípio da absorção, segundo o qual o patrimônio da mulher incorporava-se, ao casar-se, ao patrimônio do pater famílias, porque seus bens e a mulher estavam subordinados a ele. Esse tipo de matrimônio, denominado de matrimonia cum manu, a esposa ingressa na família do seu marido com seu patrimônio sendo equiparada à filha.(NADER, 2006). Havia o dote, que era uma massa patrimonial oferecida pelos pais ou familiares destinados a cobrir os gastos ordinários da vida conjugal, além dos bens particulares da mulher que eram levados ao casamento. Este dote no início tinha caráter definitivo, porém com a evolução da sociedade romana, quando havia a dissolução do casamento, o marido era obrigado a restituí-lo parcial ou totalmente. No casamento sine manu, os bens que eram trazidos pela mulher continuavam sob o domínio e administrados por ela, porém exercidos pelo marido ou por terceiros (NADER, 2006). O professor Washington de Barros Monteiro (2004, p. 28) nos explica sobre o casamento no início em Roma, tais como suas espécies. Historicamente, o casamento começa a interessar em Roma, onde se achava perfeitamente organizado. Inicialmente, havia a confarreatio, a coemptio e o usus. A primeira era o casamento da classe patrícia, correspondendo ao casamento religioso. Dentre outros traços, caracterizava-se pela oferta aos Deuses de um pão de trigo, costume que, estilizado, sobreviveu até os nossos dias, com o tradicional bolo da noiva. Esta primeira forma não tardou, todavia, a cair em desuso, e já se tornara rara ao tempo de Augusto. A coemptio era o matrimônio da plebe, constituindo o casamento civil e descrito por GAIO como uma à imaginária venditio. Finalmente, o usus era a aquisição da mulher pela posse, equivalendo assim a uma espécie de usucapião. A professora Giselda Maria F. Novaes Hironaka (2000, p, 23) relata acerca do casamento em Roma. 87 Entre os ancestrais romanos, encontraremos tipos bastante curiosos neste modelo que se pode denominar casamento por compra ou por troca, como por exemplo, a coemptio, que consistia na venda simbólica da noiva ao noivo, de forma ritual, ou a confarreatio, que consistia numa celebração solene, de natureza religiosa, na qual se ofertavam aos noivos o panis farreus, na presença de dez testemunhas. Ou ainda, como a antiga modalidade romana, o casamento cum manus, espécie de casamento pelo usus, que se consolidava pelo usucapião, salvo se a convivência fosse interrompida pela usurpatio trinoctti, isto é, se a mulher passasse três noites fora de casa, provocando assim, o divórcio, pois seria repudiada pelo marido. Sílvio de Salvo Venosa (2011, p.324) discorre ainda sobre a evolução no regime de bens: no Direito Romano vigorava o princípio da absorção: o patrimônio da mulher era absorvido pelo marido, que se tornava único proprietário e administrador. Tratava-se de consequência do casamento cum manu, ao qual já nos referimos. Como a mulher ficava sujeita ao poder do pater família, assim também ficavam seus bens. O antigo direito saxão também estabelecera uma unidade patrimonial entre os esposos e foi aplicado igualmente nos Estados Unidos até meados do século XIX, sendo substituído pelo regime de separação, como consequência da emancipação da mulher. A legislação comparada toma os mais diversos rumos nessa matéria, não se divisando tendência de uniformidade, como ocorre em inúmeros outros institutos jurídicos. Cada país apresenta matiz próprio, porque o regime de bens conjugais depende dos costumes e das necessidades sociais locais. No Brasil, inicialmente o casamento era realizado pela comunhão universal de bens. A Ordenação Lusitana influenciou a elaboração do Código Civil de 1916. Permitia-se, ainda, nesta época, aos nubentes a livre estipulação do regime de bens, sendo o da comunhão total usado subsidiariamente no silêncio deles. Este Código estabelecia quatro tipos de regime de bens: comunhão universal, comunhão parcial, separação total e regime dotal, todos vigentes a partir da data da celebração do casamento. No regime dotal, porém apresentavam-se sobre tal tema notórias discriminações em relação à mulher. O regime era irrevogável, extinguindo-se somente com a dissolução da sociedade conjugal, que se dava mediante erro essencial sobre a pessoa, previsto no art. 219, III do Código Civil de 1916. O atual Código Civil de 2002 equiparou homens e mulheres em direitos e deveres, retirou do ordenamento jurídico o regime dotal, e manteve o regime da comunhão universal, comunhão parcial, separação, inovando com a participação final nos aquestos. O regime legal de bens no país foi modificado, com a Lei do Divórcio (Lei n˚ 6.515/77), para o regime de comunhão parcial de bens, possibilitando ainda a dissolução do matrimônio pelo Divórcio, previsto no art. 2˚ da Lei 6.515/77 e art. 1.571 CC/02. Explica Sílvio Rodrigues (2002, p. 196): nos casamentos mais antigos, ou seja, nos realizados antes de 1978, o regime mais frequente era o da comunhão universal, enquanto nos realizados posteriormente o regime prevalecente é o da comunhão 88 parcial. Isso decorre do fato de a Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) ter alterado o regime legal, dispondo que, não havendo pacto antenupcial, o regime é o da comunhão parcial, quando, anteriormente, no silêncio dos contraentes, prevalecia o regime de comunhão universal. 1.2 Natureza jurídica do casamento O casamento está previsto no artigo 226 da Constituição Federal de 1988, bem como no artigo 1.511 do Código Civil, o qual dispõe: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”. Sílvio Rodrigues (2004, p. 19), ensina que: “casamento é o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência”. Para Sílvio de Salvo Venosa, em seu livro “Os ensinamentos de Guillermo Borba” (1993, p.45): “é a união do homem e da mulher para o estabelecimento de uma plena comunidade de vida”. Etimologicamente a palavra casamento provém de casamentum, que é formada por casa, ae – casa, casebre e pelo sufixo mentum- intenção. O qual significa a vontade de duas pessoas, de diferente sexo, unirem-se, constituindo um lar comum (MARTINS, 2001, p. 05). No que concerne à natureza jurídica, o casamento possui três diferentes correntes doutrinárias, quais sejam: a) Teoria Contratualista. O casamento é um contrato civil, regido pelas normas comuns a todos os contratos, aperfeiçoando-se apenas pelo simples consentimento dos nubentes, ou seja, um acordo de vontades, livremente manifestado, regido por contrato civil. Essa teoria é fundada no Direito Canônico tendo sido adotada por jusnaturalistas. Para Sílvio Rodrigues, o casamento é um contrato que obedece a vontade dos contraentes desde que tal vontade não seja contrária à lei. Ainda, segundo ele, essa natureza jurídica de contrato, argumenta que o casamento pode ser dissolvido pelos contraentes por mero distrato, afastando a ideia do legislador em manter o casamento como uma instituição que gera efeitos, independente da vontade dos cônjuges. Nesse sentido a Constituição Federal expressa em seu artigo 226, § 6˚ que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. b) Teoria Institucionalista. Essa corrente adota que o casamento é uma instituição social, organizada na forma da lei, que estabelece como momento maior a vontade individual dos contraentes, no sentido de entrar para uma instituição. Dentre os defensores dessa corrente está Washington Monteiro de Barros, que afirma que o casamento constitui “uma grande instituição social, que de fato, nasce da vontade dos contraentes, mas que da imutável autoridade da lei, recebe sua forma, suas normas e seus efeitos. A vontade individual é 89 livre para fazer surgir a relação, mas não pode alterar a disciplina estatuída pela lei” (BARROS, 2004, p.13). c) Teoria Mista ou Eclética. Para esta corrente o casamento é um ato complexo que uniu o elemento contratual e o institucional. Ao haver a manifestação da vontade existe neste momento a celebração do contrato, e por sua vez quando o Estado outorga a situação de casados, surge a instituição. Defende essa corrente Maria Helena Diniz que afirma O casamento é um contrato que se constitui pelo consentimento livre dos esposos, os quais, por efeito de sua vontade, estabelecem uma sociedade conjugal que, além de determinar o estado civil das pessoas, dá origem às relações de família, regulados, nos pontos essenciais, por normas de ordem pública (2003, p. 50). 1.3 Princípios fundamentais 1.3.1 Princípio da autonomia da vontade ou da livre estipulação O atual Código Civil em seu artigo 1.639 estabelece que “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”. Logo é deixado ao casal a escolha sobre qual regime de bens elencado no Código Civil, como a possibilidade de combinar as regras, formando regimes mistos, diversos daqueles imaginados pelo legislador. No entanto, o legislador coloca algumas restrições na aplicação deste princípio em nome da segurança de terceiro e dos próprios cônjuges. É o que se observa no artigo 1.641 do Código Civil em que impõe aos contraentes o regime da separação de bens para certas pessoas. Desta forma se protege determinadas pessoas ou se aplica uma sanção àqueles que se casarem, desrespeitando as causas suspensivas da celebração do casamento. 1.3.2 Princípio da vigência imediata Tal princípio decorre do artigo 1.639 do Código Civil que dispõe: “o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento”. Percebe-se que a lei impõe o início da vigência do casamento quando da celebração deste. 1.3.3 Princípio da variedade de regimes O Código Civil de 2002 oferece quatro variedades de regimes em que os nubentes podem escolher, quais sejam: comunhão universal, comunhão parcial, separação total e participação nos aquestos. De tal modo que os contraentes pode m 90 escolher qualquer um dos regimes adotados por lei sem fazer qualquer tipo de modificação em suas cláusulas. Ainda assim a lei possibilita a adoção por parte dos nubentes de regime misto, bem como a elaboração de regime próprio por meio de pacto antenupcial. É o que dispõe no artigo 1.640 do Código Civil : “poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial,fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas. 1.3.4 Princípio da mutabilidade motivada ou imutabilidade O Código Civil de 2002 possibilita a mudança de regime de bens pelo casal, mediante autorização judicial em ação de alteração do regime de bens. Desde que haja consenso entre os cônjuges e não prejudique a terceiros. O artigo 1.639 do código civil dispõe que: “é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. 1.3.4.1 Requisitos para alteração do regime Para que aconteça a alteração do regime durante a vigência do matrimônio é necessário que se cumpram quatro requisitos que estão dispostos na lei, com o objetivo de garantir a segurança a terceiros e dos próprios cônjuges entre si, que são: a) exigência de processo judicial; b) consensualidade na postulação c) motivação; d) ressalva do direito de terceiros. Logo, pode-se afirmar que o novo Código Civil adotou o princípio da mutabilidade controlada dos regimes matrimoniais de bens. 2. DOS REGIMES MATRIMONIAIS 2.1 Conceito de regimes matrimoniais de bens É o conjunto de normas aplicáveis às relações e interesses econômicos que resultam do casamento. É o estatuto matrimonial dos consortes. A partir da realização do matrimônio estabelecem-se as consequências jurídicas de cunho pessoal e patrimonial. É com relação a este último que se encaixa a discussão sobre o regime de bens. Os efeitos patrimoniais são aqueles decorrentes do Regime de bens adotado no casamento, do direito sucessório e das do ações recíprocas (PEREIRA, 2004). Quando celebrado o casamento, os bens trazidos por cada um dos cônjuges e os que futuramente adquirir-se-ão, deverão submeter-se ao regime matrimonial de bens. Tal regime pode ser pactuado antes do casamento, ou quando omisso, será submetido ao regime de bens que a lei estabelecer. Podendo, ainda, ser adotado o de 91 separação legal ou obrigatória de bens, dependendo do caso em questão (ARTS. 1.687 e 1.688 CC/02). 2.2 Regimes do código civil de 1916 Na época do Código de Civil de 1916, a constituição familiar operava-se somente pelo matrimônio. O regime de bens no casamento era imutável. Esta lei previa o regime da comunhão universal de bens, fazendo surgir o que se chama mancomunhão, gerando um estado condominial de todos os bens, de forma igualitária para os nubentes, não importando a origem de tal patrimônio. Ainda existia o regime dotal que consistia nos bens da mulher serem entregues ao homem para administrá-lo. Com o surgimento da Lei do Divórcio (Lei n˚ 6.515/1977), o regime legal passou a ser o da comunhão parcial de bens. Neste regime as heranças, legados e doações percebidos por um dos cônjuges, a qualquer tempo, antes ou durante a vigência do matrimônio, não se comunicam e nem tampouco os bens adquiridos antes do casamento. Eram quatro os regimes dispostos nesta lei, quais sejam: comunhão universal, comunhão parcial, separação e dotal. No silêncio das partes, o casamento seria regido pelo regime de comunhão universal, porém com o advento da lei do divórcio (Lei n˚ 6.515/1977) modificou tal orientação, estabelecendo que o regime de comunhão parcial regeria a vida patrimonial dos contraentes na ausência do pacto antenupcial. O princípio da irrevogabilidade do regime de bens no matrimônio foi tomado pelo Código Civil de 1916, quando prescreveu no seu artigo 230 que “o regime de bens entre cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento e é irrevogável”. 2.3 Regimes do Código Civil de 2002 O atual código manteve a liberdade que há entre os cônjuges de expressarem a sua autonomia privada no que se refere ao regime de bens que desejarem escolher, o qual regerá seus interesses econômicos e patrimoniais; e o farão por meio do pacto antenupcial previsto no artigo 1639, 1640,§ único e 1655 do código civil de 2002. Porém, esse princípio de autonomia da vontade não é absoluto, devido não ter aplicação aos que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento, aos maiores de setenta anos, como também a todos que dependerem para casar-se de suprimento judicial, as quais devem sujeitar-se, obrigatoriamente, ao regime separação de bens, como consta no artigo 1641 do Código Civil. Contudo o atual Código Civil inovou ao inserir no ordenamento jurídico a possibilidade da mutabilidade do regime de bens na constância do casamento. O Código de 1916 proibia a mudança de regime de bens acordado entre os cônjuges. 92 Porém, tal mudança só era permitida na hipótese de estrangeiro que se naturalizasse brasileiro, para o qual a Lei de introdução ao Código Civil (LICC), no seu art. 7˚, §5˚, já guardava regra especial. Outra inovação é que a atual legislação retirou do ordenamento jurídico o regime dotal e elencou quatro regimes de bens: o da comunhão universal, o da comunhão parcial, a participação final nos aquestos e a separação de bens. Ante o silêncio dos cônjuges ou da ineficácia do pacto antenupcial o regime de bens que vigorará será o da comunhão parcial de bens e não o da comunhão universal como o era no Código Civil de 1916. O atual Código Civil inovou ainda com a possibilidade da dispensa de consentimento, ou seja, da outorga uxória, do cônjuge que não é proprietário, para a alienação do bem do outro cônjuge, com a ressalva de que os cônjuges devem estar enquadrados no regime de separação absoluta de bens. Por tanto, ao Código Civil foram introduzidas várias modificações, quando disciplinou o direito patrimonial no casamento, as quais o legislador alterou certas regras. Dentre as principais estão: 1) a possibilidade da mutabilidade do regime de bens no curso do casamento, o qual permite a modificação do regime de bens por meio de um pedido judicial consensual e fundamentado; 2) o Código adaptou-se ao dar preferência à Lei de divórcio ( Lei 6.515/77) no que se refere ao regime da comunhão parcial como legal ou supletivo, colocando estas regras como genéricas; 3) introduziu o regime de participação final nos aquestos; 4) a revogação do regime dotal, o qual também não fora recepcionado pela Constituição Federal de 1988 aos direitos do homem e da mulher, assim como entre os cônjuges; 5) Permitiu a alienação e a oneração de bens imóveis, no regime da separação absoluta, assinada pelo proprietário, sem necessidade de outorga conjugal; 6) inclusão dos direitos e deveres relativos aos bens e interesses patrimoniais, adaptando os antigos direitos e deveres de cada cônjuge à igualdade constitucional; Cabe aqui destacar a importante mudança introduzida pelo art. § 2˚ do art. 1.639 do novo Código Civil, ao permitir a alteração do regime de bens. Declara Venosa (2007, p.305): como vimos e como claramente expressava a lei, a escolha do regime de bens devia necessariamente anteceder ao casamento, pois o Código de 1916 estabelecia a imutabilidade do regime de bens, ou melhor, sua irrevogabilidade ( art. 230). A imutabilidade, como explanado, constava na lei como garantia aos próprios cônjuges e para resguardo ao direito de terceiros[.....] Neste sentido, nosso sistema de 1916 não permitia, pois, que o regime escolhido fosse alterado no curso da vida conjugal, em sentido contrário ao observado em outras legislações. 93 Tomando o exemplo do direito comparado, o Código de 2002 passou a admitir a alteração do regime de bens. “mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões convocadas e ressalvados os direitos de terceiros” (ART. 1.639, § 2˚). 1. MUDANÇAS NO REGIME MATRIMONIAL DE BENS Como mencionado anteriormente por Sílvio de Salvo Venoso, havia a proibição de qualquer modificação do regime matrimonial, após a celebração do pacto nupcial, com o objetivo de dar segurança aos consortes e terceiros. O Novo Código Civil não traz mais vedação, sendo livre aos consortes, desde que preenchidos os requisitos legais, optar pela mudança de regime. Requisitos estes previstos no artigo 1.639, § 3˚: a) vontade de ambas as partes – não se admitindo a alteração unilateral do regime de bens; b) pedido motivado e formalizado ao juiz – o qual devem as partes submeteremse ao crivo do Poder Judiciário que decidirá por sentença devidamente fundamentada considerando a conveniência da mudança e restringindo a possibilidade de fraudes; c) sentença favorável do juiz; d) ressalvados os direitos de terceiros. Sob a ótica da nova ordem jurídica, o qual permite a alteração de regime de bens celebrados pelos consortes, representa uma ideia oposta ao princípio da inalterabilidade. O legislador, preocupado em ampliar a liberdade dos cônjuges, não permitiu que a mudança do regime fosse realizada de forma indiscriminada, porém buscou manter o princípio da segurança. Nesse ponto, o legislador passou a responsabilidade ao judiciário para a autorização do pedido de mudança. À luz da Constituição Federal no que concerne a igualdade entre os sexos, no tocante ao matrimônio foi preciso admitir o sistema de modificação do regime de bens depois de celebrado o casamento, ainda que os cônjuges nada tenham pactuado antes das núpcias. Desde que as alterações não afetem direitos de terceiros, os contraentes podem mudar de regimes ou modificar algumas de suas cláusulas contratadas. 3.1 Causas que legitimam a modificação do regime A mudança de regime não se restringe a tão somente mudar de um regime para o outro ou fazer combinações entre tais modalidades de regimes, mas amplia também a liberdade para introduzirem as modificações que quiserem durante o matrimônio. Dentre as mais importantes causas que legitimam estão: 94 3.1.1 Separação obrigatória de bens O pedido de alteração só será permitido se formulado quando os noivos, na data do casamento, tiverem a liberdade de escolher o regime de bens. Para aqueles cônjuges em que forem obrigados a adotar o regime da separação de bens (CC 1.641), não será autorizada a mudança durante a vigência da sociedade conjugal. “I- pessoas que contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos que dependerem, para casar, de suprimento judicial. 3.1.2 As obrigações estranhas ao interesse da sociedade e terceiros de boa-fé Aqueles que forem atingidos pelas obrigações não realizadas por um ou ambos os consortes são denominados terceiros de boa-fé. Para que haja oposição aos interesses de terceiros, num regime especial de matrimônio, é necessário que o matrimônio seja precedido de pacto antenupcial, elaborado por escritura pública, como previsto no art. 1.640 CC/2002, parágrafo único, devidamente registrado em Cartório de Registro de Imóveis da Circunscrição de cada domicílio firmado pelos cônjuges, como estabelece o art. 1.657 CC/2002 e 167, I, 1 a 12 da lei n˚ 6.015/73, e averbado, ainda, junto à matrícula de cada bem imóvel, art. 167, I e II desta lei de registro. Há vários interesses envolvidos na mudança de regime patrimonial da sociedade conjugal. Porém o maior destes interesses será a proteção dos credores. Para tal situação o Código Civil adotou o critério para que o juiz possa, através de pedidos motivados e relevantes, autorizar a alteração do regime de bens. Para isso é de suma importância o controle jurisdicional, até mesmo para que não haja prejuízo a terceiros de boa fé. Logo se ocorrem alterações no regime de bens que resultem prejuízos a terceiros, este poderão promover medidas cautelares que assegurem seus direitos, principalmente quando esta alteração resultar fraude a credores. (Caio Mário da Silva Pereira, 2011, p. 199) O §2˚ do art. 1.629 do Código Civil refere-se a pedido motivado de ambos os cônjuges. Paulo Nader admite a prerrogativa do Juiz de certificar-se da espontaneidade das declarações, ou seja, da ausência de constrangimento entre os interessados, como também, eventual prejuízo potencial ou concreto de terceiros. Afastando a necessidade de apresentação de razões relevantes pelo casal. O mesmo autor considera que “tal exigência não se encontra no espírito da lei, bastando a ausência de qualquer prejuízo para terceiros e a convicção da voluntariedade do pedido”. Sem tais óbices, os motivos que inspiram a liberdade de escolha do regime e a sua alteração, antes do casamento, continuam a existir após a celebração. 95 Portanto, caberá ao magistrado analisar o pedido de alteração de regime quando estiver devidamente motivado. O juiz analisará as questões relevantes e fundamentos arguidos pelas partes que justifiquem a mudança do regime. Analisará também se tais motivos não prejudicarão terceiros envolvidos, principalmente credores da sociedade conjugal, os quais poderão impugnar o pedido dos autores. 3.1.3 Participação do cônjuge na sociedade empresarial O Código de 2002 inovou quando estabeleceu no art. 977 “faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória”. Portanto, será lícita a contratação de sociedade fora destas hipóteses. Este artigo estabelece a importância, na sociedade conjugal, uma visão acentuada de direito de família, com o objeto de evitar fraudes ao regime de bens. No regime universal, os direitos e obrigações são comunicados, presentes e futuros; os bens permanecem indivisíveis na propriedade unificada dos cônjuges, porém no regime de separação, não há essa comunicabilidade, pois cada cônjuge ficará com seus bens particulares. Nery Júnior e Neri (2006, p. 315) afirmam: a norma não proíbe a contratação de sociedade entre marido e mulher, que podem criar sociedade comercial, desde que casados sob o regime de bens que não seja o da comunhão universal (CC 1667) nem o da separação obrigatória (CC 1.641). Em outras palavras, marido e mulher podem contratar a formação da sociedade comercial, se casados sob os seguintes bens: a) comunhão parcial (CC 1658); b) participação final nos aquestos (CC 1.672); c) separação convencional ( CC 1687). Como o regime subsidiário de bens no casamento – no caso de não haverem os cônjuges estabelecido previamente o regime a ser adotado ou, havendo pacto antenupcial, este for nulo ou ineficaz – é da comunhão parcial (CC 1.640), isto significa, na prática que a norma ora comentada não constitui obstáculo invencível à criação de sociedade comercial entre marido e mulher. Frisa-se, ainda, que o regime de bens não é mais imutável como o sistema revogado (CC/1916 256), pois é possível alterá-lo judicialmente, depois de celebrado o casamento (CC 1.639 § 2˚), mediante procedimento de jurisdição voluntária (CPC 1103). [...] O ponto mais importante da regra sob comentários é a separação entre o patrimônio familiar e o da sociedade comercial. O regime da comunhão universal faz com que haja confusão entre os patrimônios do marido e mulher. Como no sistema anterior não havia norma expressa vedando a sociedade entre casados sob o regime da comunhão universal, elas eram formadas com bastante frequência, gerando problemas de ordem patrimonial para os sócios e para os que contratavam com a sociedade comercial. A proibição é coerente com o sistema de regime de bens do CC, muito embora constitua ruptura na organização societária que vinha funcionando razoavelmente, principalmente quanto às sociedades por quotas de responsabilidade limitada. A regra é coerente com o sistema patrimonial do CC que, para o que nos interessa no caso, envolve o direito de empresa e o direito de família. 96 Há ainda a dúvida de que os cônjuges casados sob o regime discriminado no art. 977 do novo código civil, não possam contratar sociedade entre si, ou ambos com terceiros. Segundo entendimento do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC), a restrição do art. 977 do CC está restrita a sociedades formadas por apenas os cônjuges nos regimes específicos citados entre si e por ambos com terceiros em uma mesma sociedade. É o que se estabelece no Parecer Jurídico DNRC n˚ 50/03, transcrito logo abaixo: EMENTA: Impedimento constante do art. 977 do Código Civil, restringe-se aos cônjuges entre si ou de ambos com terceiros em uma mesma sociedade. (...) entendemos, por ser no mínimo razoável em face do princípio da autonomia da vontade vigente no direito brasileiro, que a restrição da norma ali inserta, limita tão somente a constituição de sociedade entre os cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória ou desses conjuntamente com terceiros, não indo tão longe ao ponto de proibir que pessoas bastando serem casadas nesses regimes de bens, estariam impedidas de individualmente contratarem sociedade, ainda que sem qualquer vínculo entre si. Há que se ressaltar que as sociedades comerciais já existentes deverão adaptar-se ao novo código, mediante alteração contratual com a simples saída de um dos cônjuges. Se houver divergência entre os sócios cônjuges, a alteração dar-se-á do regime de comunhão universal para o regime de comunhão parcial de bens. O art. 1.639 prevê para este caso, a alteração do regime mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os consortes. No caso de mudança de regime o destacado art. 977 CC/02, ampara a alteração, visto que é vedado aos consortes, sob o regime universal, constituir sociedade comercial, e confere aos cônjuges motivos que justifiquem o pedido de alteração do regime. Portanto, no exercício de uma atividade econômica, sem que tal fato se confunda com a sociedade conjugal, percebe-se que pode haver sociedade simples ou empresária entre cônjuges se o regime for o de separação convencional de bens, comunhão parcial ou de participação final nos aquestos. 4. REGIME DE BENS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 A livre escolha do regime pelos nubentes é a regra pelo qual o casamento será celebrado. Porém na falta da escolha de um regime, por força de lei, será o da comunhão parcial, este é considerado o regime oficial ou legal. Adota-se este regime na ausência de pacto antenupcial. Portanto, para que os noivos possam escolher regime diferente ao da comunhão parcial, torna-se necessário a realização do pacto antenupcial. Tal pacto é um acordo entre os nubentes, com vistas a regular o regime de bens no futuro da união conjugal. 97 É nele que se escolherá um dos quatro regimes de bens previstos no atual Código Civil, além de se estabelecerem outras regras que complementarão o pacto. 4.1 Regime da comunhão parcial de bens Nem todos os sistemas jurídicos admitem a Comunhão Universal. O Código Italiano de 1865 admite este regime em caráter facultativo. No Direito Francês previa-se como legal o communion d’acquêts, em que se comunicavam os bens móveis e os adquiridos na constância do casamento, e se excluíam de toda comunicação os imóveis que os nubentes já tinham antes do casamento e os que forem adquiridos posteriormente de forma gratuita. Já o Direito Alemão adota a comunhão administrativa, no qual os bens da mulher ficam subordinados à administração usufrutuária do marido, excluídos os bens reservados, ou seja, os bens de uso pessoal como jóias, roupas e instrumentos de trabalho, assim como os que ela adquire por sua própria atividade e pela exploração independente de empresa lucrativa. No Brasil, também conhecido como Regime da Comunhão de Aquestos ou Separação Parcial, o regime da comunhão parcial de bens compreende três patrimônios diferentes: um só do marido, outro só da mulher e um terceiro de ambos. Neste regime os bens adquiridos após o casamento, os aquestos, formarão a comunhão de bens do casal. Cada cônjuge guardará para si, em seu patrimônio próprio, os bens que trouxera antes do casamento. Este é o regime legal que vigora desde a lei introdutória e regulamentadora do divórcio (Lei n˚ 6.515/77), sem o pacto nupcial ou cujos pactos sejam nulos. Quando não houver convenção do pacto antenupcial ou se for nulo, o regime da comunhão parcial será o que vigorará entre os cônjuges. A essência desse regime é que os bens adquiridos antes do casamento permaneçam com cada cônjuge como de sua propriedade exclusiva. Aqueles bens que forem adquiridos na constância do casamento, constituem bens comuns, isto é, formam patrimônio pertencente ao marido e à mulher, indistintamente. 4.1.1 Bens que integram à comunhão São os denominados bens comunicáveis, que estão no art. 1.660 do Código Civil de 2002. a) Bens adquiridos durante o casamento por título oneroso, mesmo que seja em nome de um só dos cônjuges. A lei presume que os bens adquiridos na constância do casamento far-se-á por esforço mútuo dos dois cônjuges, para que integre o patrimônio de ambos, seja na atividade profissional ou na atividade doméstica. No que se refere aos bens móveis há presunção, juris tantum, de que os bens adquiridos foram durante o matrimônio, se tais bens não puderem ser comprovados por documento autêntico, ou por qualquer outro meio permitido em direito , desde que para isso, seja com data anterior ao ato nupcial. Porém, se houver 98 pacto nupcial relacionando os bens móveis de cada cônjuge, estes bens serão incomunicáveis. b) Bens adquiridos por fato eventual, por exemplo: jogo, aposta, loteria etc., tais fatos integrarão ao patrimônio do casal, ainda que adquirido por um dos cônjuges, com ou sem o concurso de trabalho entre os cônjuges. c) Bens adquiridos por doação, herança ou legado: estes atos terão que ser feito em favor de ambos os cônjuges. Cabe ressaltar que se na doação conjuntiva, na qual os donatários são marido e mulher, haverá para o cônjuge sobrevivo, o direito de acrescentar ao seu patrimônio a porcentagem do bem que pertencia ao cônjuge falecido, é o que dispõe no parágrafo único do art. 551 do Novo Código. d) Também são comunicáveis as benfeitorias feitas em bens particulares de cada cônjuge, desde que sejam realizados com esforço comum dos dois. Isto para que não haja enriquecimento indevido por um dos cônjuges. e) Os frutos, tanto civis ou naturais, dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos durante o casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão. Portanto, verifica-se que tais bens foram adquiridos após o casamento, fazendo parte do patrimônio de ambos. 4.1.2 Bens excluídos da comunhão A comunhão se dá somente com relação aos bens adquiridos na constância do casamento a título oneroso. São excluídos aqueles levados por qualquer dos cônjuges para o casamento e os adquiridos a título gratuito, além de certas obrigações. Logo, excluem-se: a) Bens que cada cônjuge possuía ao casar-se, e os que lhe sobrevierem, durante o casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar. Há uma presunção de cooperação entre os cônjuges durante o casamento, por isso tal disposição se dá em face do princípio de que são comuns os bens adquiridos na vigência do regime a título oneroso. Nas doações e na sucessão testamentária, para que os bens sejam comunicáveis, é necessário que contenha cláusula expressa contemplando os cônjuges como donatários ou legatários. b) Bens adquiridos através de valores exclusivamente de um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares. São bens que ficarão excluídos produtos da venda daqueles existentes adquiridos a título gratuito durante a constância do casamento ou já de propriedade do cônjuge antes do matrimônio. Perdura aqui a manutenção do patrimônio próprio, embora se altere a espécie de bens, em face do princípio da pessoalidade. Portanto, a individualidade do patrimônio será conservada quando houver valores resultantes de créditos ou direitos nascidos das causas anteriores ao casamento. Conclui-se que não se comunicam as indenizações por danos, os pagamentos de 99 seguros, as importâncias advindas de desapropriação, desde que visem satisfazer danos ou o valor dos bens que eram somente de um cônjuge antes da celebração do casamento. É o que estabelece o art. 1.660, V do Código Civil. c) As obrigações anteriores ao casamento. As obrigações contraídas em data anterior ao casamento não revertem em proveito comum. Obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo se houver em proveito do casal. d) Somente responderá pelos danos causados por atos ilícitos o cônjuge que lhe der causa, não importando se ocorreu antes ou depois do matrimônio. Porém, se deste ato ilícito ambos os cônjuges tirarem proveito, responderão conjuntamente, no qual a indenização recairá sobre bens comuns. Segundo Súmula do STJ n˚ 251 : “a meação só responde pelo ato ilícito quando o credor, na execução fiscal, provar que o enriquecimento dele resultante aproveitou ao casal”. e) Bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão. São bens de uso pessoal em que a pessoa necessita e faz uso, como jo ias, roupas e até móveis. São os utilizados na vida quotidiana, na rotina de cada cônjuge, de uso restrito a cada um. Porém, segundo Arnaldo Rizzardo, nestes bens não se incluem aqueles que se prestam ao proveito comum dos outros membros da família ou de terceiro, como os veículos e máquinas. f) Proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge. Opera-se à incomunicabilidade com relação aos proventos, salários, vencimentos, ou rendimentos de atividade pessoal. Os valores do FGTS se incluem nos proventos não ingressando na partilha quando houver separação do casal. Porém, essa incomunicabilidade dos proventos dar-se-á somente quando da percepção dos mesmos, que uma vez percebidos integrarão o patrimônio do casal, contribuindo de forma proporcional para a manutenção da família. Logo, existe comunicabilidade dos bens adquiridos onerosamente com os frutos civis do trabalho, segundo art. 1.660, V do novo Código Civil , e com os proventos, mesmo que em nome de um deles. Ressalta-se então, que o art. 1.659, VI, deve ser interpretado em consonância com o art. 1.660, V. g) Pensões, meios-soldos, montepios e rendas semelhantes. Estes bens são considerados de direito personalíssimos, por isso são incomunicáveis. A pensão é o quantum pago periodicamente por força de lei, sentença judicial, ato inter vivos ou causa mortis a uma pessoa para a subsistência desta. O meio -soldo, por sua vez, é a metade do soldo pago pelo Estado a militar reformado ( DEC. LEI N. 9.698/46, art. 108). Montepio é a pensão que o Estado paga aos herdeiros do funcionário falecido. Não se comunicam também os direitos patrimoniais de autor, excetuados os rendimentos de sua exploração, salvo pacto nupcial em contrário. Deve-se ressaltar que o art. 499, do novo Código Civil, estabelece que é licita a compra e venda entre cônjuges, com relação a bens excluídos da comunhão. 100 4.1.3 Administração dos bens da comunhão parcial A administração dos bens particulares cabe ao respectivo cônjuge proprietário e com relação aos bens comuns, o art. 1.663 do Novo Código estabelece que a administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges. Neste regime, o patrimônio comum arca com as obrigações que ambos contraírem. Se este patrimônio for insuficiente, os bens de cada cônjuge respondem na proporção necessária para a satisfazer em partes iguais o débito. Ocorre também este procedimento quando um cônjuge contrai obrigações sem a participação do outro, desde que tal obrigação seja destinada em proveito da família (art. 1.663, § 1˚ Código Civil). Porém, se a obrigação serviu para interesse particular do devedor, somente os bens próprios e a meação do devedor respondem pela dívida. É importante reforçar o que estabelece os parágrafos 2˚ e 3˚ do art. 1.663 do Novo Código, de que é necessária a anuência de ambos os cônjuges para os atos que, a título gratuito, impliquem cessão do uso ou gozo dos bens comuns, o que se verifica, por exemplo, no comodato. O juiz atribuirá a administração a apenas um dos cônjuges quando verificar a malversação dos bens. Toma-se como exemplo os gastos extravagantes, o desperdício inconsequente de um dos cônjuges com o patrimônio comum. 4.1.4 Dissolução da comunhão parcial A comunhão parcial termina pela morte, separação, divórcio ou anulação do casamento, como estabelece o art. 1.571 do Novo Código Civil. Cabe destacar que a sociedade finda pela morte, nulidade ou anulação do casamento, divórcio e pela separação, porém só se dissolve pelo divórcio ou pela morte. Ao término da comunhão, todos os bens comuns serão divididos e os bens particulares serão retirados por cada cônjuge. Venosa firma (2011, p. 343): a dissolução da comunhão de bens, parcial ou total, traz inúmeros efeitos. Segundo o art. 267 do antigo Código texto não repetido na lei atual, mas certamente aplicável, dissolve-se a comunhão: I- pela morte de um dos cônjuges; II- pela sentença que anula o casamento; III- pela separação judicial; IV – pelo divórcio. A mesma compreensão persiste. Entenda-se que a separação judicial deixa de existir no ordenamento brasileiro com a Emenda Constitucional n˚ 66/2010. Observa-se que a ocorrência de qualquer desses eventos não põe fim imediata à comunhão, o que somente ocorrerá com a partilha.... Se o desfazimento da sociedade conjugal decorrer de separação ou divórcio, a partilha pode decorrer de mútuo acordo. Extinta a comunhão com a partilha, isto é, a divisão do ativo e do passivo, como decorrência lógica cessará a responsabilidade de cada cônjuge para com os credores do outro. (art. 1.671). 101 Referência especial aos arts. 1.829 e 1.831 ao fixarem regras específicas concernentes aos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivo, o s quais corroborarão para a exposição acima. 4.2 Comunhão universal No antigo Código de 1.916, seguindo a tradição do direito lusitano, o regime legal adotado era o da comunhão universal. Acreditava-se existir comunhão espiritual entre homem e mulher no casamento e desta união resultava também a junção de patrimônios. Esse romantismo não tem mais relevância em nossa realidade. É um regime convencional, que deverá ser estipulado por meio de pacto antenupcial. Todos os bens do casal, em princípio, comunicam-se, tanto os presentes como os futuros, salvo algumas exceções previstas no art. 1.667 do Código Civil. Em regra, todos os bens que o cônjuge leva para o matrimônio se fundem com os trazidos pelo outro cônjuge, formando uma única massa, e não voltando à propriedade originária quando do desfazimento do casamento. O que caracteriza o regime da comunhão universal é a comunicação de todos os valores, móveis ou imóveis, de que cada um dos cônjuges é titular ao tempo das núpcias, e bem assim os que forem adquiridos durante o matrimônio, mesmo que adquiridos por um só deles. De igual forma são comunicadas as dívidas, tanto as anteriores como as posteriores. 4.2.1 Bens excluídos da comunhão Apesar de este regime impor a comunicabilidade de todos os bens presentes (art.1.667 do Código Civil), admite, excepcionalmente, a exclusão de alguns bens devido sua própria natureza, além de possuírem efeitos personalíssimos. Segundo o que estabelece o art. 1.668 do Código Civil em que se opera a exclusão da comunhão. I) Bens doados ou herdados com cláusula de incomunicabilidade e os subrogados em seu lugar. O Novo Código Civil autoriza a inserção dessa cláusula, por via da qual os bens assim adquiridos constituem um acervo particular do donatário ou herdeiro, não se comunicando ao seu cônjuge, independentemente de ser a transmissão feita antes das núpcias ou na constância do casamento. Maria Helena Diniz acrescenta ainda duas hipóteses de incomunicabilidade: os bens doados com cláusula de reversão, ou seja, com a morte do donatário o bem doado retorna ao patrimônio do doador que lhe sobrevive não comunicando ao cônjuge do falecido (art. 547, CC/2002); também, os bens doados, legados ou herdados com cláusula de inalienabilidade, pois, “comunicação é alienação. 102 II) Bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva. Ao impor essa condição cessa a resolubilidade, e só daí opera-se a entrada do bem na comunhão; logo esses bens não podem comunicar-se antes da condição suspensiva implementada. O fideicomisso refere-se à situação em que o testador (fideicomitente) dispõe que o fiduciário deve, após sua morte ou a certo tempo ou condição, transmitir o bem ao fideicomissário. O direito do fideicomissário não se comunica enquanto não se realizar a condição suspensiva, devido ser um direito apenas eventual, e só adquirirá o domínio quando houver a condição. III) Dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus aprestos, ou reverterem em proveito comum. Obrigações passivas de cada cônjuge que forem adquiridas antes do casamento não integram a comunhão universal. O credor não pode executar tais obrigações nos bens do cônjuge, contudo somente naqueles que o devedor trouxe para o patrimônio comum. Porém, há exceções, que são aquelas provenientes das despesas com a preparação do casamento e demais que revertam em proveito comum. IV) Doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade. Neste caso, o bem que for doado por um cônjuge ao outro será considerado bem próprio do donatário, não entrando na comunhão. Importante, ressaltar que tal doação não constitui fraude à execução, conforme o que estabelece no art. 593 do Código Civil, nem mesmo fraude a credores com regras que estão nos artigos 158 e 159 do Novo Código. Se o doador tornar-se insolvente pela liberalidade, esta poderá ser desconstituída pela ação pauliana, ou ser considerada ineficaz, se já existente algum processo que requeira o reconhecimento da dívida. V) Os Bens referidos nos incs. V e VII, do art. 1.659 do Novo Código. 4.2.2 Administração dos bens Neste regime, por disposição legal, cabe a ambos os cônjuges a administração dos bens. A comunhão universal atinge todos os bens que não são incomunicáveis e as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges na vigência do matrimônio. É importante dispor o que se refere à administração dos bens na comunhão universal, prevista no art. 1.670 CC/2002 o qual remete ao art. 1.663. O § 2˚ do art. 1.663 do Novo Código, traz consigo regra totalmente nova: “a anuência de ambos os cônjuges é necessária para os atos, a título gratuito que 103 impliquem cessão do uso ou gozo dos bens comuns”. Nestes casos não são abrangidos os contratos de locação, arrendamento e parceria, posto estar aí presente a remuneração. Já o §3˚ abre caminho para o juiz atribuir a um único cônjuge a administração, com o intuito de evitar que um cônjuge arruíne a situação familiar, contraindo obrigações que não trazem proveito à família. 4.2.3 Extinção da comunhão universal O art. 1.671 refere-se à extinção da comunhão, quando cessará a responsabilidade de cada um dos cônjuges com os credores. A comunhão de bens termina, em princípio com a sociedade conjugal, quando se dá a partilha do acervo. Prevê o art. 1.571 cc/2002: I) pela morte de um dos cônjuges; II) pela anulação ou nulidade do casamento; III) pela separação judicial; IV) pelo divórcio; É importante mencionar os arts. 1.829 e 1.831 do Novo Código, os quais fixam regras específicas no que diz respeito aos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivo. 4.3 Participação final nos aquestos É uma inovação do novo Código ao instituir o regime de participação final nos aquestos. Trata-se da participação final de ambos os cônjuges no patrimônio formado durante a sociedade conjugal a título oneroso. É através do pacto antenupcial que os cônjuges manifestam a opção por tal regime. Neste regime não há a partilha automática dos bens, como acontece com o regime parcial e o universal. A característica deste regime é que durante o casamento, os cônjuges vivem sob o domínio da separação de bens, cada um deles com o seu patrimônio separado. Porém, ao ocorrer a dissolução do vínculo conjugal (pela morte de um dos cônjuges, pela separação judicial ou pelo divórcio), far-se-á a divisão do acervo constituído a título oneroso durante o casamento. Logo, verificam-se, segundo o art. 1.672 do Código Civil, dois tipos de patrimônios: aquele dos bens próprios que cada cônjuge possuía antes de casar; e os adquiridos, a qualquer título, durante o casamento. 104 Distingue-se este regime do regime da comunhão parcial, porque neste a comunicação dos bens se dá de forma imediata, na constância do matrimônio, e no regime final a comunicação acontece somente após o fim do casamento. É através do pacto antenupcial que se discriminam minuciosamente os haveres de cada um dos cônjuges, os quais constituem os bens particulares d e cada um deles. Os bens que cada cônjuge possuía antes de casar e mais os bens que eles vierem a adquirir na constância do casamento, a título oneroso ou gratuito, integrarão ao patrimônio do casal. Ou seja, há os bens particulares oriundos de cada cônjuge antes do casamento, dos adquiridos por sub-rogação e daqueles recebidos por herança ou liberalidade. E existem também os bens comuns, que são aqueles adquiridos pelo casal durante o casamento. Com relação a administração dos bens, o art. 1.673, parágrafo único, estabelece que “a administração destes bens é exclusiva de cada cônjuge, que os poderá livremente alienar, se forem móveis”. Ou seja, cada cônjuge tem a disponibilidade dos bens móveis, assim como a administração de seus bens particulares. Para apuração dos valores líquidos, faz-se necessário a realização de um balanço contábil e financeiro. O valor dos bens alienados deverá ser incorporado ao monte (art. 1.676), onde será possível a compensação dos débitos que tenham sido pagos pelo outro (art. 1.678). No que se refere às dividas contraídas posteriores ao casamento, deve-se averiguar se forem em beneficio do casal, constituirão passivo comum, e em negativo responderá cada cônjuge pela obrigação que contraiu. O art. 1.675 diz que se computa no montante dos aquestos o valor das doações feitas por um dos cônjuges sem que seja necessária autorização do outro. Aos seus herdeiros, ou aqueles prejudicados, é garantido o direito de reivindicar o bem, ou imputá-lo ao monte partilhável, pelo valor equivalente ao da época da dissolução. Logo após, o art. 1.676 afirma “incorpora-se ao monte o valor dos bens alienados, em detrimento da meação, se não houver preferência, do cônjuge lesado, ou de seus herdeiros, de reivindicá-los”. Diante do exposto, considera-se que se o cônjuge aliena bens com a finalidade de defasar a meação, ao cônjuge lesado, ou aos seus herdeiros, é permitido tomar as providências legais cabíveis, com a competente ação para desconstituir tal situação. Essa reivindicação, às vezes não é possível, principalmente se a alienação operou-se por meio de venda; tendo em vista que ao adquirir tenha agido de boa-fé. Além disso, o direito do cônjuge lesado atinge apenas a metade do bem, já que existe a propriedade da meação em favor do alienante. Uma forma eficaz, nessa situação, seria a anulação do negócio jurídico viciado (TEIXEIRA, 2008). Durante o casamento não é possível ceder, renunciar ou indicar a pena, a pessoas adio direito à meação (art. 1.682). A meação dos bens só ocorrerá quando do término da união, pela separação de fato ou pela morte de um dos cônjuges. Porém, sobre determinado bem comum é possível a penhora da meação do devedor. Ao ocorrer a penhora sobre a totalidade do bem, o cônjuge poderá, por meio de embargos de terceiros, resguardar sua meação. Ao dissolver a sociedade conjugal por meio da morte de um dos cônjuges, e se houver bens, a meação será transmitida aos seus herdeiros, que serão convocados pela 105 ordem de vocação hereditária (art. 1.685). Se houver dívidas superiores à meação, não responderão por estas os herdeiros nem o viúvo (ART. 1.683). 4.4 Separação de bens É um regime atualmente pouco adotado. Aqui ocorre a incomunicabilidade total dos bens, em que os cônjuges conservam para si aqueles bens que possuíam antes do matrimonio e os bens que irão adquirem durante o casamento. A opção por este regime faz-se por meio de pacto antenupcial. Cada cônjuge possui a propriedade ativa e passiva do capital que existia antes do casamento, como também aquele que se formará durante o matrimônio, no qual que a administração e a posse desse capital compete a cada um dos cônjuges em separado. Não se faz necessária a presença do companheiro para as ações imobiliárias, o qual não se exigirá a lei processual como condição legítima para estar em juízo (CPC 10 § 1˚ I). Salvo estipulação em pacto antenupcial, ambos os cônjuges deverão concorrer para a manutenção da família, na proporção de seus bens ( art. 1.688 CC), por tanto comunicam-se as dívidas ou empréstimos contraídos para o sustento da economia familiar (art. 1.643 e 1.644). Logo, tendo em vista que existem obrigações recíprocas em que os cônjuges são responsáveis pela subsistência familiar, a jurisprudência passou a adotar a presunção da comunicabilidade, admitindo a divisão do acervo adquirido durante o casamento. Atualmente há divergências quanto à aplicabilidade da Súmula 377 do STF no Código Civil de 2002, onde tal súmula dispõe que: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento”. A justificativa da aplicação da súmula é a tentativa de evitar o enriquecimento sem causa de um dos pares. 4.4.1 Separação obrigatória de bens Por disposição legal são três as hipóteses de adoção do regime de separação de bens de forma obrigatória: I) ao casamento feito não obstante a cláusula suspensiva para celebração do casamento; II) à pessoa maior de 70 ( setenta) anos; III) àqueles que dependerem de suprimento judicial para casarem. Por força de lei, subsistirão tais imposições mesmo que não sejam convencionadas tais restrições no ato da celebração. Por tanto, não há a aplicabilidade prevista no art. 1.640. Ou seja, não vigorará o regime de comunhão parcial, mesmo não havendo convenção entre os cônjuges. 106 Os cônjuges casados sob este regime de separação obrigatória não podem contratar sociedade entre si ou com terceiros (art. 977 CC). Ainda que para a venda de bens de ascendentes a descendentes não é necessária a autorização do cônjuge ( art. 496, parágrafo único). Ou seja, cada cônjuge de forma independente pode alienar, gravar de ônus real, prestar fiança e aval. Uma situação que gera polêmica neste regime é o da obrigatoriedade de maiores que 70 anos casaram-se apenas no regime de separação obrigatória. Em 2010, nova redação é dada ao dispositivo, acrescentado pela Lei 12.344/10, em que não mais se considera pessoas maiores de 60 anos e sim pessoas maiores que 70 anos. Entendeuse, pela maioria dos doutrinadores, que não era necessária a intervenção do Estado para a escolha do regime para pessoas maiores que 60 anos, o qual limitava a autonomia da vontade, ferindo princípios constitucionais de igualdade e igualdade. Porém, esse aumento na idade contribuiu para sanar esse efeito de inconstitucionalidade em tal dispositivo? 4.5 Pacto Antenupcial O pacto antenupcial é a manifestação da vontade dos cônjuges, no qual eles podem escolher livremente qual regime de bens pretendem adotar para a comunhão. O pacto antenupcial é necessário para escolha de qualquer regime de bens previsto na legislação, exceto o regime de comunhão parcial de bens. Esse pacto tornar-se-á nulo se não houver a escritura pública, condição de validade do pacto (ART. 1.653 CC). Alguns doutrinadores o consideram um contrato, e outros o conceituam como um negócio jurídico, por isso é chamado também de contrato matrimonial. A eficácia do pacto antenupcial vigora a partir da data do casamento, o qual está sujeita a condição suspensiva (ART. 1.639 CC/02). Com relação às doações recíprocas é possível serem feitas no pacto antenupcial. Porém, para que tenha efeito no regime de comunhão universal, faz-se necessária cláusula de incomunicabilidade, a qual se consigna de forma expressa que o bem doado ficará exclusivamente para o donatário, já que se não o fizer o bem recebido passará também para o doador (ART. 1.668 IV). O pacto nupcial pode ser realizado por menor, porém é necessário de aprovação de representante legal, o qual deverá constar sua autorização na escritura. Para o matrimonio é necessária a autorização de ambos os cônjuges ou dos representantes legais (art. 1.517). 107 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve como objetivo geral identificar o regime de bens no direito pátrio, sua aplicabilidade e efeitos no matrimônio, diante do ordenamento jurídico brasileiro. O trabalho foi divido em quatro etapas, sendo que: a primeira abordou temas sobre a evolução histórica, natureza jurídica do casamento e princípios fundamentais. Verificou-se a importância do direito romano para o regime de bens no Brasil, a partir do antigo Código de 1916; o surgimento de três correntes doutrinarias a respeito da natureza jurídica do casamento: contratualista, institucional e a mista ou eclética. Onde revelam uma união formal, em que são compostas por duas pessoas, com a finalidade de constituírem uma família. E os princípios em que conceituam a vontade dos nubentes, a liberdade para a mudança de regime, assim como a vigência do matrimônio. Na segunda etapa, abordaram-se temas sobre os regimes matrimoniais, conceituando os regimes do código civil de 1.916 assim como o regime atual de 2002. A terceira etapa estabelece a opção que se dá aos nubentes para a mudança de regime matrimonial, quais as causas que legítimas a modificação do regime. Por fim, na quarta etapa deste trabalho, estudou-se o regime de bens previstos no atual Código Civil, quais sejam: comunhão parcial de bens, comunhão universal de bens, participação final nos aquestos, separação de bens e separação obrigatória de bens. Pode-se ter uma visão geral do regime de bens adotados no Código Civil de 2002, quais bens serão comuns a ambos os cônjuges, quais pertencerão a cada um deles de forma independente, e como ficará a administração de tais bens. Verificou-se também os bens excluídos no casamento assim os que se incluem neste. Definiu-se a importância do pacto antenupcial para escolha do regime de bens, excetuando-se o regime de comunhão parcial, que não se faz necessário. Logo, conceituou-se a importância do Regime de bens para a constituição familiar, já esta escolhe determinará os rumos econômicos, e até mesmo emocionais, dos nubentes durante o casamento. Homem e mulher se apaixonam, namoram e se casam ( inclui a união estável) e não pretendem se separar, porém é nessa separação, ou até mesmo durante o matrimônio, que percebem o quão é importante a escolha de um regime de bens. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 108 02. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2003. 03. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 15.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. 04. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. 05. MARTINS, Flávio Alves. O casamento e outras constituições de família. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001. 06. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Família. Vol. 02. 37.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. 07. MOREIRA, José Carlos. Direito romano. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. 08. NADER, Paulo. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 09. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 10. PEREIRA, Caio Mário da Silva Instituições de Direito Civil. 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997. 11. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro, RJ: Forense, 2011. v. 6. 12. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 13. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito de família. Volume 6. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. 14. TEIXEIRA, Ana Carolina. Manual do direito das famílias e das sucessões. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. 15. VADE MECUM. Constituição da república federativa do Brasil, Código Civil de 2002. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. 16. VENOSA, Sílvio de Salvo, op. Cit., p. , “apud”, BORDA, Guillermo A. Tratado de derecho civil: família. Buenos Aires: Abeledo -Perrot, 1993, v.1 17. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2011. 109 ADOÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA DA NOVA LEI DE ADOÇÃO – LEI Nº 12.010 DE 03 DE AGOSTO DE 2009 Acadêmica Débora Carneiro de Brito Especialista e Professora Alessandra Gonçalves Heronville da Silva RESUMO: Existem no Brasil milhares de crianças e adolescentes abandonados em acolhimentos institucionais esperando pela chance de serem adotados. Foi constatado que a imensa maioria desses menores tem família e não possui as características condizentes àquelas desejadas pelos pretendentes à adoção, ao menos por pessoas ou casais nacionais, seja porque tem idade superior a três anos, seja porque pertencem a grupos de irmãos ou porque apresentam alguma insuficiência orgânica ou mental que requer cuidados especiais. Para maioria dessas crianças e adolescentes de nada adianta simples alterações das normas legais relativas à adoção, tornando-se necessário uma revisão profunda das políticas públicas adotadas no Brasil destinadas a garantir o efetivo exercício do direito a convivência familiar, nas suas mais variadas formas. Nesse sentido é que a Lei nº 12.010 de 03 de agosto de 2009, denominada Nova Lei de Adoção ou Lei Nacional de Adoção, inseriu diversas alterações em vários dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/90, que dizem respeito ao direito referido. No estudo da nova lei, observou-se que a mesma busca aprimorar a sistemática do instituto da adoção já existente no Brasil, prevendo a garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, e assegurando à intervenção do Estado prioritariamente para a orientação, apoio e promoção social da família natural. Verificou-se que somente depois de comprovada absoluta impossibilidade de manutenção da criança ou do adolescente na sua família, e por decisão judicial fundamentada, haverá colocação em família substitutiva, sob a forma de adoção, tutela ou guarda. Procurando dar maior celeridade ao processo de adoção, e evitar que crianças e adolescente fiquem “eternamente” esperando por uma família, o legislador fixou em no máximo dois anos a permanência desses menores em programas de acolhimento institucional. A questão foi tratada sob o prisma da Constituição Federal de 1988 que consolidou, mediante exposição de extenso rol de garantias, a teoria da proteção integral, sintetizada em seu artigo 227, e da Lei nº 8.069/90 (ECA). Referidos diplomas normativos certificam absoluta prioridade ao melhor interesse da criança e do adolescente, reconhecendo-os como sujeitos de direito e destacando uma condição especial de pessoa em desenvolvimento. Dessa forma, partindo da lei em exame, foram investigadas suas consequências sociais e jurídicas após a aplicação prática da mesma, traçando uma análise crítica a seu respeito, verificando-se, assim, a efetividade destas mudanças no incremento do número de adoções no Brasil. Palavras-chave: adoção, crianças, adolescentes, convivência familiar, proteção integral, prioridade absoluta, família natural, família extensa, família substitutiva, intervenção estatal. 110 INTRODUÇÃO No Brasil, a lei de adoção sempre foi conhecida por ser extremamente burocrática, o que impede crianças e adolescentes de realizarem o sonho de serem adotados e encontrarem uma família mais rapidamente. Objetivando a mudança dessa realidade, a Lei nº 12.010/2009 - Nova Lei de Adoção busca em princípio, sua agilidade e eficácia. Traz significativas alterações na Lei nº 8.069/90 (ECA), principalmente no que diz respeito ao direito à convivência familiar e comunitária, idealizada como algo primordial para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Fixa em no máximo dois anos a permanência destes em acolhimentos institucionais e exige que o processo seja revisto pela autoridade judiciária de seis em seis meses. Sob a visão legislativa pertinente, considerando as opiniões de vários doutrinadores que comentam e ressaltam as vantagens e desvantagens da nova lei, nesse trabalho far-se-á uma análise, atentando para sua aplicabilidade perante a realidade do nosso país. Inicialmente serão destacadas noções gerais acerca do instituto da adoção, seu conceito e finalidade atual, sua natureza jurídica, e sua evolução histórica no mundo e no Brasil. O Instituto da Adoção passou por diversas transformações no decorrer do tempo, conforme a sociedade e o momento histórico em que estava inserido. Assim, será examinado a partir da antiguidade, passando pelo Código de Hamurabi, pelas Leis de Manu, adentrando no Direito Romano e chegando à Idade Moderna. Em seguida serão dispostas as alterações legislativas no direito brasileiro a partir do Código Civil de 1916 até a atualidade. A concepção inicial da adoção era a de dar filhos a quem não podia tê-los, atendendo especialmente aos interesses dos adultos. Posteriormente, os adotados é que passaram a ganhar cada vez mais importância neste processo. A legislação foi avançando no sentido de proteger os interesses dos menores, o que culminou na proteção integral introduzida na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da criança e do adolescente de 1990 e, por fim, na Nova Lei de Adoção - Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009. A segunda etapa, deste trabalho de pesquisa, tratará da nova regulamentação sobre a adoção introduzida no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Serão expostos, de forma abreviada e descritiva, os requisitos pessoais quanto aos adotantes e quanto aos adotandos; os requisitos formais para o processo de adoção; e os efeitos pessoais e patrimoniais após concretização da medida. Em alguns aspectos, far-se-á uma comparação entre as regras originárias do Estatuto naquilo que se refere à adoção, verificando-se como era antes da nova lei e como ficou após. Em matéria de requisitos pessoais, o ECA segue alguns parâmetros da trajetória histórica da adoção, como a idade mínima para poder adotar, a diferença de idade entre adotante e adotado, e uma série de proibições e algumas restrições. Estes parâmetros se repetem, porém com muita atualidade e seguindo os vários princípios constitucionais. 111 Serão descritos os vários procedimentos exigidos para o deferimento da adoção. Como um pré-requisito formal, a lei exige a habilitação (cadastramento) dos interessados à adoção. A constituição do vínculo adotivo se inicia com a apreciação judicial dos cadastros. Em seguida, segue-se a fase judicial propriamente dita, assinalada, especialmente, pela apreciação da conveniência da adoção. Culmina com a sentença constitutiva da adoção. A lei determina que o Ministério Público deva intervir, obrigatoriamente, em todos os atos do processo. Na terceira etapa, serão explorados os princípios consagrados pela Nova Lei da Adoção, princípios estes que surgiram com o propósito de orientar a intervenção estatal na aplicação das medidas de proteção da criança e adolescente e de suas famílias. A nova lei prioriza a convivência familiar e comunitária e a manutenção da criança e do adolescente na família de origem. Sua colocação em família substituta deve ser a última hipótese. Buscando preservar o convívio da criança dentro de sua família natural, a lei apresenta o conceito de família extensa ou ampliada, a qual tem preferência na adoção, devendo ser inserida em programa de orientação e auxílio. Na colocação de menor em família substituta, a preferência será dada primeiramente aos adotantes brasileiros, em seguida aos brasileiros residentes fora do país, e somente em casos excepcionais aos estrangeiros. A nova lei traz expressa previsão da necessidade de cautelas adicionais quanto à destituição do poder familiar, que é considerada medida extrema a ser tomada antes da colocação em família substituta. Faltando a família biológica com seus deveres, uma das medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente é o abrigamento (que segundo a nova lei passa a chamar acolhimento institucional). O acolhimento institucional é uma medida excepcional e provisória que tem a finalidade de assegurar a preservação dos vínculos familiares ou a integração em família substituta se frustrados os recursos de manutenção na família de origem. Na última etapa desse trabalho, será apresentada uma análise crítica da Nova Lei da adoção. A questão principal será investigar se os objetivos do legislador foram alcançados, ampliando o número de adoções no Brasil e impedindo que milhares de crianças e adolescentes permaneçam esquecidos em acolhimentos institucionais ou, se na tentativa de acelerar e solucionar essa questão a lei acabou criando mais obstáculos para sua concessão, tornando a adoção num processo ainda mais burocrático, ficando cada vez mais distantes as chances de transformar o sonho de tantos menores em realidade. 112 1 NOÇÕES GERAIS ACERCA DO INSTITUTO DA ADOÇÃO 1.1 CONCEITO E FINALIDADE DA ADOÇÃO. O termo adoção é empregado constantemente no direito, porém não possui uma interpretação unívoca. Sugere, no direito de família, a idéia de aceitação de uma pessoa como filho. No Brasil o conceito de adoção apresentado pelos nossos doutrinadores vem sendo modificado no tempo. Clóvis Beviláqua (apud Rodrigues, 2004, p. 340) define a adoção como ato jurídico pelo qual alguém aceita um estranho, na qualidade de filho. Sílvio Rodrigues (2004, p. 340) prefere definir a adoção como ato do adotante pelo qual traz para sua família e na condição de filho, pessoa que lhe é estranha. Para Caio Mário de Silva Pereira (2011, p. 407) é ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe outra como filho, independentemente de existir entre elas qualquer parentesco consangüíneo ou afim. Maria Helena Diniz (2010, p. 522) conceitua a adoção com base em definições formuladas por diversos autores: a adoção vem a ser o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha. Nessa linha de raciocínio, a adoção é ato ou negócio jurídico que cria um liame de paternidade e filiação civil, em que uma pessoa passa a gozar da condição de filho de outra pessoa, independentemente de qualquer laço de consanguinidade. Por ser parentesco constituído em lei, gera uma nova situação jurídica, uma nova relação de filiação, que é amparada sobre a presunção de uma ligação não biológica, mas afetiva (Venoza, 2011) . O que se deve ressaltar é que a ideia central da adoção tratada inicialmente no Código Civil de 1916 tinha em vista especialmente a figura do casal que não podia ter filhos, e suas regras foram estabelecidas principalmente em seu benefício. Entretanto, a perspectiva da legislação atual, sobretudo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990 e da Nova Lei de Adoção – Lei nº 12.010/2009, é claramente inversa, pois o legislador preferiu proteger os interesses do menor. Como consequência, o conceito da adoção na atualidade se tornou mais abrangente, pois o Instituto passou a exigir que seja priorizado o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (inciso IV, § único, art. 100, ECA). Assim, a adoção passou a ter como principal finalidade a inserção integral e definitiva da criança e do adolescente em um novo ambiente familiar. Na atualidade não 113 são os pais que têm direito ao filho, mas sim, e principalmente, o menor que tem direito a uma estrutura familiar que lhe certifique estabilidade e todos os elementos necessários a um crescimento equilibrado (Ferreira, 2009) . A esse respeito, cumpre transcrever a precisa observação de Rolf Madaleno (2009, p. 465): desde o advento da Constituição Federal e depois com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o instituto da adoção sofreu profundas e consistentes alterações na legislação brasileira, passando a proteger integralmente o menor e, finalmente, inserindo-o no ventre de uma família, fazendo desaparecer definitivamente as variações adotivas que cuidavam de discriminar o menor, com sua adoção simples, e não integral, como se o afeto pudesse merecer gradação protegida da lei. Assim, a criança e o adolescente passam a ser consideradas como prioridade na relação adotiva. O adotado deixa de ser visto como aquele que traz para uma família a satisfação da convivência e da presença infantil, porém cheia de ressalvas e de cuidados por se tratar de uma pessoa estranha, que não possui o sangue da família adotiva. Ao contrário, cabe a entidade familiar, na qual o menor foi acolhido, como sendo filho afetivo, o dever de construir um ambiente capaz de proporcionar um pleno desenvolvimento de sua personalidade e a efetiva realização de seus direitos fundamentais. Conforme palavras de César Fiuza (2011, p. 1073), se a adoção antes tinha o objetivo precípuo de dar um filho a quem não tinha, hoje, seu objetivo é acima de qualquer outro, dar um lar a quem não tem. Maria Berenice Dias (2009, p. 434) escreve sobre o tema da seguinte maneira: a doutrina da proteção integral e a vedação de referências discriminatórias na filiação (CF, 227 § 6º) alteraram profundamente a perspectiva da adoção. Inverteu-se o enfoque dado à infância e à adolescência, rompendo-se a ideologia do assistencialismo e da institucionalização, que privilegiava o interesse e a vontade dos adultos. Agora a adoção significa muito mais a busca de uma família para uma criança. Foi abandonada a concepção tradicional, em que prevalecia sua natureza contratual e que significava a busca de uma criança para uma família [...] Enfim, o Instituto da Adoção passou a cumprir um papel de inegável importância humanitária, valorizando o afeto como elo de união natural, social e legal da entidade familiar. 1.2 NATUREZA JURÍDICA A natureza jurídica da adoção é matéria que envolveu e ainda envolve grande divergência por parte dos doutrinadores. Alguns autores a julgam um contrato, alguns a qualificam simplesmente como ato solene, ou então como filiação criada pela lei. Outros entendem se tratar de instituto de ordem pública. Por fim, existem aqueles que defendem a linha de pensamento que a trata como figura híbrida, um combinado de contrato e de instituição de ordem pública. 114 Sílvio de Salvo Venoza (2011) justifica que essa dificuldade existe em decorrência da natureza e origem do ato, uma vez que as categorias gerais da teoria geral nem sempre são aplicadas no campo dos institutos do direito de família, especialmente porque este se encontra repleto de matérias jurídicas de interesse público. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2010), no sistema do Código Civil de 1916 era certa a natureza contratual da adoção. Tratava-se de negócio jurídico bilateral e solene, pois se realizava por escritura pública, sendo exigido apenas o consentimento das duas partes. Portanto, a adoção naquela época sujeitava-se apenas a um ato de vontade, não havendo a interferência do Estado através do Poder Judiciário. Seguindo o entendimento do citado doutrinador, a partir da Constituição Federal de 1988, porém, a adoção passou a constituir-se por ato complexo e impor a existência de sentença judicial, prevista expressamente no art. 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e no art. 1.619, do Código Civil de 2002, com nova redação dada pela lei nº 12.010/2009. E ainda, o fato do §5º do art. 227 da Constituição Federal fixar que a adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros, deixa claro que o tema não se encontra mais limitado a simples análise e julgamento dos cientistas do direito civil, uma vez que passa a ser tratado como assunto de interesse geral, de ordem pública. Rolf Madaleno (2009) entende que referida disposição constitucional realça a natureza eminentemente institucional da adoção, concordando com a manifestação de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 364), A adoção não mais estampa o caráter contratualista de outrora, como ato praticado entre adotante e adotado, pois em consonância com o preceito constitucional mencionado, o legislador ordinário ditará as regras segundo as quais o Poder Público dará assistência aos atos de adoção. Desse modo, como também sucede no casamento, podem ser observados dois aspectos na adoção: o de sua formação, representado pelo ato de vontade submetido aos requisitos peculiares, e o de status que gera, preponderantemente natureza institucional. Dessa forma, e conforme a adoção do Estatuto da criança e do adolescente, se pode mais levar em conta apenas a existência da simples bilateralidade manifestação de vontade, visto que exige a participação ativa do Estado para efetivação e validade, com a imposição de uma sentença judicial, sem a qual ocorrerá adoção. não na sua não Nota-se assim, que qualificar o instituto da adoção simplesmente como contrato, ato solene, ficção legal ou instituição restringe a natureza jurídica do mesmo, desviando-o da realidade a que deve servir e o distanciando de seus objetivos. Caio Mário da Silva Pereira (2011) considera que, embora a adoção tenha adquirido a natureza de instituto de ordem pública, não afastou o consenso de sua estrutura jurídica. A lei 12.010/2009 não revogou a regra do art.45 do ECA, declarando que a adoção depende do consentimento dos pais ou representante legal do adotando. 115 Dessa forma, no entendimento do mencionado autor, bem como no de outros grandes juristas, a interpretação da natureza jurídica da adoção que mais se ajusta aos tempos modernos é aquela classificada como híbrida, que possui fundamento tanto contratual, quanto institucional, apresentando elementos de direito privado e elementos de direito público, no qual ambos são responsáveis por sua formação, pois ainda que ocorra a manifestação de vontade das partes, estas não têm autonomia para regularizar seus efeitos, permanecendo estes pré- determinados pela lei. Esse último posicionamento é o adotado neste trabalho, uma vez que, percebe-se que a adoção requer o acordo de vontades e o cumprimento a certas formalidades legais, e sua análise por parte do magistrado. 1.3 ORIGEM E EVOLUÇÃO NO MUNDO A adoção é um dos mais antigos institutos do Direito, e tem sua origem fundada na religião. A procriação, na antiguidade, era de fundamental importância não só para dar continuidade à espécie humana, mas também para lhes trazer a salvação, pois os homens acreditavam que os filhos eram responsáveis pelas cerimônias fúnebres dos seus antepassados (Magalhães, 2000). Como sustenta Fustel de Coulanges, na sua obra "Cidade Antiga", a origem da adoção repousa no dever de perpetuar o culto familiar. Baseada no sentimento religioso era o último recurso utilizado para impedir que a família escapasse da desgraça da extinção, assegurando posteridade a quem não a tinha por consanguinidade e permitindo a perpetuação do nome e a continuidade do culto (apud, Rodrigues, 2004). Assim, quando das ligações matrimoniais não sobrevinha descendência era admitido ao marido adquiri-la de outra mulher, sendo esse filho, acolhido no seio da família e adotado pela mulher estéril, que o considerava como se seu filho fosse. Até mesmo na Bíblia temos exemplos dessa natureza. Conforme relata Rui Ribeiro de Magalhães (2000, p.267), na passagem de Gêneses 16, Sara, esposa de Abraão, vendo que não podia dar filhos ao marido, acaba por entregar a escrava Agar, dizendo-lhe: visto que o Senhor fez de mim uma estéril, peço-te que vás com a minha escrava. Talvez, por ela, eu consiga ter Filhos. Também na passagem de Gêneses 30, foi Raquel que, não podendo gerar, cede ao marido Jacob a escrava Bilha, dizendo-lhe: aqui tens a minha serva Bilha, vai ter com ela. Que dê a luz sobre os meus joelhos; assim por ela eu também terei filhos. Conforme observa o mencionado autor, nos dois exemplos já ocorria o princípio da adoção quando ambas afirmaram: por ela também terei filhos, referindo-se à concepção da escrava pelo marido. Portanto, a adoção apenas era admitida para aqueles que ainda não possuíssem filhos, pois os que já os tivessem traziam consigo a segurança de perpetuar o culto familiar e dar continuidade à família. 116 O instituto surge legislado com o Código de Hamurabi, por volta do ano 1700 a.C. na Babilônia, que também traz disposições no mesmo sentido. Além disso, esse código já fazia alusão expressa à relação adotiva da forma como a conhecemos. Estabelecia, por exemplo, no art. 185: se um homem adotou uma criança desde seu nascimento e a criou, essa criança adotada não poderá ser reclamada (Magalhães, 2000). Nota-se que já naqueles tempos remotos a preocupação do legislador já era saber, acima de tudo, quando os pais biológicos podiam reclamá-lo do pai adotivo. Além de tratar dessa questão, o Código de Hamurabi previa, ainda, a solução da sucessão hereditária, que segundo Magalhães, funcionava da seguinte forma: se um pai após a adoção tivesse filhos naturais e por esse motivo decidisse rejeitar o adotivo, poderia assim agir, porém dos seus bens móveis deveria dar a terça parte a título de herança a esse filho. Do mesmo modo que a sociedade babilônica, a hindu também tratava em sua legislação, do instituto da adoção. Conforme as leis de Manu, IX, 10, aquele a quem a natureza não deu filhos, pode adotar um para que as cerimônias fúnebres não cessem. O Código de Manu, redigido entre os séculos II a.C. e II d.C., vem novamente enaltecer a maternidade, chegando mesmo a declarar que o papel da mulher na terra era o de dar à luz, o que possibilitava ao marido a sua substituição se casados fossem por mais de 08 (oito) anos sem que a esposa procriasse. No caso de esterilidade do homem, o filho primogênito poderia ser gerado pela coabitação da mulher, expressamente autorizada pelo marido, com o irmão deste ou outra pessoa ligada a ele (Magalhães, 2000). Contudo, ainda anota Magalhães, que é na parte que cuida da questão sucessória, que se percebe que já havia a prática da adoção naquela época. Determinava, por exemplo, o art. 558: um filho dado a uma pessoa não faz mais parte da família de seu pai natural e não deve herdar de seu patrimônio. O bolo fúnebre segue a família e o patrimônio; para aquele que deu filho não há mais oblação fúnebre feita por esse filho. Certo é que ambas as legislações eram leis escritas que já traziam prescrições expressas reconhecendo a adoção. Na Grécia Antiga, somente os homens possuíam o direito de adotar e serem adotados. A adoção era vista como um ato solene, requerendo a intervenção do magistrado, salvo quando realizada por testamento. Se não houvesse outro filho na família adotiva, o filho adotivo era impedido de voltar à sua família natural. E, no caso de ingratidão, a adoção poderia ser revogada. Em síntese, o instituto também tinha inspiração de cunho religioso, no qual a principal preocupação era com a perpetuidade do culto doméstico (Gomes apud Chaves, 1988). Foi no Direito Romano onde a adoção mais se desenvolveu, e encontrou disciplina e ordenamento sistematizado. A forma em que foi apresentada nesse sistema é que fundamenta o incremento da adoção em nosso direito, não obstante tenha deixado 117 de existir àquela inspiração religiosa, substituída pelo desejo de satisfazer a afetividade paternal, assim como o sentimento de solidariedade humana (Pereira, 2011). Sobre o assunto, Artur Marques da Silva Filho (2011, p. 23) faz importante anotação: em Roma o sentido da adoção é diverso do empregado nos dias modernos e foge do campo afetivo. Estando vinculado a um conceito próprio de hierarquia decorrente em grande parte da religião, todos os descendentes estavam ligados ao pater, até o seu falecimento. A religião tinha influência preponderante e cada família possuía seu culto doméstico, sendo sacerdote o pater, a quem cumpria prestar honras e seguir as tradições de seus antepassados. Estes eram reverenciados e havia grande preocupação com a perpetuação da família, visto que ao descendente competia substituir o pater, inclusive quanto ao culto a ele devido. O Direito Romano conheceu dois tipos de adoção: a ad-rogatio que era uma adoção mais complexa e a adoptio, a adoção propriamente dita. A ad-rogatio, modalidade mais antiga, pertencente ao Direito Público, consistia na adoção de uma pessoa capaz (sui iuris), muitas vezes um pater famílias, que transmutava à posição de incapaz (alieni iuris), e se submetia juntamente com sua família à autoridade de outro pater famílias. Nessa modalidade de adoção a família inteira do adotado se extinguia, passando ao pátrio poder do adotante com todos os seus descendentes e bens (Magalhães, 2000). Como se pode ver, a ad-rogação era medida de extrema gravidade e importantíssimas consequências, tornando cidadãos sui iuris em alieni iuris, somente sendo concretizada após ser processada solenemente com a participação sucessiva da Religião e do Estado (Chaves, 1988). A adoptio, ou adoção propriamente dita, era instituto mais recente do Direito Privado reservado aos (alieni iuris), ou seja, aqueles que estivessem sob o pátrio poder. Consistia, portanto, no ato pelo qual um filho incapaz ingressava na família do adotante como filho. Considerado de menor gravidade por não requerer a intervenção do povo nem da igreja, pois sendo o adotado um incapaz, não ocasionaria a extinção da sua família e de seu respectivo culto. Diversamente da ad-rogatio, era preciso à concordância dos dois pater famílias, mas não do adotado. Esse instituto não produzia o efeito de modificação da capacidade, pois o adotado continuava a ser alieni iuris, também não alterava a situação de seus filhos que permaneciam na família de origem (Venoza, 2011). Nos dois tipos de adoção se exigia idade mínima do adotante de 60 anos, bem como não ter filhos naturais, devendo o adotante ter 18 anos mais que o adotado. Também por contrato, perante confirmação da autoridade e por testamento, era praticada a adoção. Como declaração de última vontade, a adoptio per testamentum, tinha o propósito de produzir efeito post mortem do testador (Pereira, 2011). A princípio a mulher não podia adotar, cabendo esse direito somente ao varão. Todavia, à medida que se enfraquecia o fundamento religioso, foi-se abalando essa 118 restrição, até que, já no século VI, o direito Justiniano autorizou a adoção à mulher que tivesse perdido seus filhos, como uma forma de consolação. Em época mais atual do Direito Romano, com Justiniano, passaram a existir duas modalidades de adoção: adoptio plena, que ocorria entre parentes. A adoptio minus plena era modalidade nova, realizada sempre que o filho era dado em adoção a uma pessoa que não fosse seu ascendente, ou seja, a um estranho. Nos dois casos, o adotado preservava os direitos sucessórios da família originária (Venoza, 2011). Na Idade Média, sob influência do Direito Canônico, o instituto da adoção foi perdendo forças até cair em desuso. Foi totalmente ignorado pela igreja, tendo em vista que se valorizava apenas a filiação proveniente do matrimônio religioso. Além disso, o instituto da adoção ia contra os interesses econômicos que predominavam naquele período, pois impedia as doações pós-óbito, deixadas pelos ricos senhores feudais quando morriam sem descendentes. (Madaleno, 2009) O instituto da adoção foi retirado do esquecimento no Direito Moderno, com as reformas sociais da Revolução Francesa, sendo posteriormente incluído no Código de Napoleão de 1804, e deste para quase todas as demais legislações que nele se inspiraram. A adoção passou a ter configuração mais consciente com o surgimento da primeira guerra mundial, diante do inesperado e alto índice de orfandade instaurado pelas baixas parentais suscitadas pelas batalhas. Descentrou-se dos interesses da pessoa do adotante, virando-se para a proteção da criança adotada (Madaleno, 2009). Enfim, o direito experimentou avanços no campo da adoção, que foi estruturado de acordo com a realidade de cada época. Com maior ou menor dimensão, a adoção passou a ser recepcionada por quase todas as legislações modernas, valorizando-se na atualidade o bem-estar do menor e o sentimento humanitário como preocupações preponderantes. 1.4. ORIGEM E EVOLUÇÃO NO BRASIL No direito brasileiro pré-codificado, o instituto da adoção não se encontrava sistematizado. No entanto, existiam especialmente nas Ordenações Filipinas, inúmeras referências, admitindo-se, assim, a sua utilização. A carência de regulamentação levava os juízes a suprir a omissão com o direito romano, interpretado e modificado pelo costume atual. 1.4.1 Código Civil de 1916 Somente com o advento do Código Civil de 1916 a adoção ganha sistematização no Brasil. Entretanto, com fortes censuras, não faltou quem defendesse a sua eliminação por entender ser uma instituição retrógrada e inútil, que não 119 condizia com curso natural das coisas. Alegavam que a adoção favorecia o celibato, que poderia ser introduzido na família filhos incestuosos e adulterinos, seria causa de muitas ingratidões e arrependimentos, favoreceria a fraude fiscal nas sucessões, e permitiria a venda de crianças pobres pelos pais em favor dos adotantes ricos (Chaves, 1988). A existência dessa oposição refletiu claramente no caráter rígido e fechado do instituto, que exigia do adotante a idade mínima de cinqüenta anos de idade, e impossibilitava a adoção para quem já tivesse prole legítima ou legitimada. Clóvis Bevilaqua, ilustre civilista pátrio, defendeu o instituto, e dentro da visão da época, de que a adoção tinha por finalidade proporcionar filhos a quem não os tinha pela natureza, se mostrou entusiasmado com seu surgimento, por compreender exercer função de grande valor para sociedade em que viviam. Assim argumentou o mencionado doutrinador (apud Magalhães, 2000, p. 276): [...]o Código fez bem em reerguê-lo, e dar-lhe feição acentuada, porque na sociedade moderna ele é chamado a desempenhar uma função valiosíssima. Não se trata, simplesmente, de encontrar um continuador da família; nem, por outro lado, nós devemos recear de que pela adoção se possam perfilhar adulterinos e incestuosos. Se somente para esse fim servisse a adoção, já seria de alta valia o seu préstimo. O que é preciso, porém, salientar é a ação benéfica, social e individualmente falando, que a adoção pode exercer na sua fase atual. A adoção civil era regulada na versão original do Código Civil de 1916 nos artigos 368 a 378. Somente era permitida a adoção aos maiores de cinquenta anos de idade, sem prole legítima ou legitimada; a diferença de idade entre adotante e adotado deveria ser de, no mínimo, dezoito anos; somente sendo marido e mulher poderia duas pessoas adotar em conjunto; não se permitia a adoção sem a concordância da pessoa, sob cuja guarda estivesse o adotando, menor ou interdito; o adotando, quando menor ou interdito, poderia desvincular-se da adoção no ano seguinte em que cessasse a interdição ou menoridade; o vínculo da adoção poderia ser desfeito se adotante e adotado anuíssem ou se o adotado praticasse ato de ingratidão contra o adotante. A adoção tinha natureza contratual, se realizando por escritura pública. O parentesco proveniente da adoção era restrito ao adotante e adotado, salvo quanto a impedimentos matrimoniais. E, os direitos e deveres que resultavam do parentesco de origem não se extinguiam pela adoção, salvo o pátrio poder, transferido aos pais adotivos. Apesar do progresso considerável assinalado pela regulamentação do instituto da adoção no Código de 1916, este se mostrava pouco satisfatório, quase impossível de se praticar. Logo ficou evidente que da forma como estava sendo posto não conseguiriam incrementar, como se esperava, o uso da adoção, especialmente em função das exigências apresentadas no que diz respeito à idade do adotante. Diante dessa situação surgiram movimentos para iniciar alterações na lei, procurando estimular a prática da adoção. 120 1.4.2 Lei nº 3.133 de 08 de maio de 1957 A partir da lei nº 3.133/1957 ocorreu a primeira grande inovação produzida pelo legislador, no campo da adoção, que reformulou as bases estruturais do instituto, trazendo transformações bastante significativas à matéria. Mudou-se o enfoque dado ao instituto, pois enquanto, dentro do antigo regime, o objetivo da adoção era de satisfazer apenas o interesse do adotante, trazendo para seu lar e na condição de filho uma pessoa estranha, nesse novo sistema a adoção passou a ter uma finalidade assistencial, que buscava, primeiramente, dar uma melhor condição de vida ao adotado (Rodrigues, 2004). Para Sílvio de Salvo Venoza (2011), essa lei simboliza um divisor de águas na legislação e na filosofia da adoção no Direito brasileiro. Esse diploma suprimiu o requisito da inexistência de filiação para realização da adoção, e reduziu de cinquenta para trinta anos a idade mínima do adotante. Ainda, reduziu para dezesseis anos a idade mínima entre adotante e adotado. Mas apesar da referida lei avançar, eliminando o requisito da inexistência de prole para adoção, continuou fazendo distinções na questão patrimonial. Determinou expressamente no seu artigo 377 que, quando o adotante tivesse filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, o vínculo de adoção não envolveria a sucessão hereditária. Para Rui Ribeiro Magalhães (2000), esta foi uma posição mesquinha do legislador, um retrocesso para o instituto, pois o adotado seria filho apenas no que se referisse à afetividade, ficando excluído da sucessão patrimonial em função dos filhos naturais. 1.4.3 Legitimação adotiva – Lei nº 4.655 de 02 de junho de 1965 Como na adoção disciplinada no Código de 1916, o adotado não fazia parte, completamente, da nova família, continuando ligado aos parentes consanguíneos, criou-se uma situação de insegurança, especialmente porque os adotantes se viam constantemente na possibilidade de dividir o filho adotivo com a família de origem. Isso servia de pretexto para a prática ilegal da adoção, em que os casais passaram a registrar filho alheio como natural, fazendo parecer uma adoção, chamada pela jurisprudência como adoção simulada ou adoção à brasileira (Gonçalves, 2010). Por isso, manifestando plena consciência de que a questão precisava ser enfrentada de forma a proteger principalmente o adotado, a lei nº 4.655/1965 criou a Legitimação adotiva. Tratava-se de uma norma que trazia o benefício de se estabelecer um vínculo de parentesco de primeiro grau, em linha reta, entre adotante e adotado, como na adoção; e de gerar um parentesco semelhante ao que vincula um pai a um filho natural, como na legitimação. Foi também determinada à irrevogabilidade da legitimação adotiva em seu art. 7º, que dizia: a legitimação adotiva é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos legítimos, aos quais estão equiparados aos legitimados adotivos, com os mesmo direitos e deveres estabelecidos em lei. 121 Criou-se então, a igualdade de direitos entre filho legítimo e legitimado ou superveniente, salvo no caso de sucessão, pois seria excluído da mesma, caso concorresse com filho legítimo superveniente à adoção. 1.4.4 Código de menores – Lei nº 6.697 de 10 de outubro de1979 O Código de Menores – lei nº 6.697/1979, revogou a legitimação adotiva, substituindo-a pela adoção plena, praticamente com as mesmas características da constante lei, e também buscou proporcionar a integração da criança e do adolescente adotado na família adotiva. A partir dessa lei teve-se a divisão do instituto em três espécies de adoção, a saber: a do Código Civil, direcionada à adoção de pessoas de qualquer idade; a adoção simples, destinada aos menores em situação irregular; a adoção plena, mais abrangente, que atribuía o status de filho legítimo ao adotado, procurando proporcionar a integração da criança e do adolescente adotado na família adotiva (Magalhães, 2000). A adoção simples criava um parentesco civil abrangendo somente adotante e adotado, era revogável pela vontade das partes e não extinguia os direitos e deveres do parentesco de origem. De acordo com seus artigos 2º e 27 era destinada aos menores de 18 anos que se encontrassem em situação irregular. A adoção plena, ao contrário, apagava todos os sinais do parentesco natural do adotado. Conforme determinava o art. 30 da referida lei, era cabível apenas aos menores em situação irregular de até 07 anos, por meio de procedimento judicial, podendo ser deferida em favor de menores que tivessem com idade superior a esta, desde que já estivessem sob a guarda dos adotantes. Foi então, a partir desta lei que as crianças e adolescentes passaram a receber um tratamento mais condizente com a sua fragilidade, muito embora não tivessem como fundamento o princípio da maior proteção da criança e do adolescente, que somente foi plenamente empregada na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), legislações posteriormente editadas. 1.4.5 Constituição Federal de 1988 A promulgação da Constituição Federal de 1988 foi um grande marco histórico para o Direito da Criança e do Adolescente no Brasil, alterando consideravelmente a situação jurídica da adoção e da família, de forma a prestigiar a dignidade da pessoa humana. A criança e o adolescente passaram a ter o direito fundamental de alcançar à fase adulta sob as melhores garantias morais e materiais, da forma como prevê o artigo 122 227 da Constituição Federal de 1988 que introduziu em nosso direito o que chamamos de Doutrina da Proteção Integral, ou seja: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A concepção de família evoluiu de forma a prestigiar a dignidade humana, personalizando-se as relações entre seus integrantes e distanciando-se do modelo patriarcal que vigorou por muito tempo. A família em nosso direito passou a ter como base primordialmente o afeto mútuo, impondo-se a observância de direitos e deveres recíprocos, com igualdade entre os seus componentes, administração conjunta dos bens e transformação do pátrio poder, que nesse novo contexto assume a forma de poder familiar. Deixou de existir a diferenciação entre os filhos biológicos (legítimos) e os filhos adotivos (ilegítimos). Ambos passaram a serem portadores dos mesmos direitos e deveres. Como consta no§ 6º do art. 227, os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Contudo, a grande alteração referente à matéria em estudo adveio da redação do §5º, do art. 227, ao exigir que a adoção deva ser assistida pelo Poder Público, na forma que a lei estabelecer, não podendo mais ser constituída por escritura pública, revogando assim, a adoção prevista no Código Civil de 1916. 1.4.6 Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/1990 Posteriormente, surgiu a Legislação que trouxe a sistematização dos direitos e da proteção às crianças e aos adolescentes, a Lei nº 8.069/1990, mais conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Com o advento dessa lei, o instituto da adoção passou por nova regulamentação, trazendo como principal inovação a regra de que a adoção seria sempre plena para os menores de 18 anos. A adoção simples, regulada pelo Código Civil, por outro lado, subsistiria para aqueles que já tivessem alcançado essa idade (Gonçalves, 2012). A partir deste momento, os direitos e deveres das crianças e adolescentes do Brasil passaram a ser tratados de forma a garantir, além dos direitos básicos próprios de qualquer ser humano, o direito de ser criado e educado na sua família de origem, e excepcionalmente, em família substituta, garantida à convivência familiar e comunitária num ambiente sadio e livre de qualquer situação que prejudique seu desenvolvimento (art. 19, ECA), proibindo-se quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (art. 20, ECA). 123 Eliminou-se a situação anterior de proteção ao menor em situação irregular, para abranger toda e qualquer criança e adolescente que se ache em situação de desamparo. Artur Marques da Silva Filho (2011) ressalta que por meio do Dec. 99.710, foi aprovada pelo Congresso Nacional, em 14 de setembro de 1990, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20/11/1989. Assim, o Brasil passou a respeitar toda a regulamentação ali exposta. Nessa direção Leila Dutra de Paiva (apud Silva Filho, 2011, p. 39) coloca que: o sentido fundamental de todo esse processo, respaldado nos princípios de proteção à infância das Nações Unidas, é que, na atualidade muito mais frequentemente que no passado, a criança e o adolescente são reconhecidos como sujeito de direito. Isso significa a consagração dos direitos fundamentais da pessoa na legislação referente à infância, ou seja, a ênfase das políticas sociais deixa de centrar-se nas crianças ditas em situação irregular e passa a assegurar a todas as crianças e adolescentes os direitos pertinentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à proteção, à convivência familiar e comunitária. Em linhas gerais, pode-se afirmar que com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção passou a ter nova fisionomia, em tudo idêntica à filiação natural, conferindo legitimidade aos seus requerentes de maneira ampla e responsável, e tornando-os habilitados para exercer completamente a paternidade. 1.4.7 Código Civil de 2002 – Lei 10.406/2002 Como visto antes da entrada em vigor do atual Código Civil - Lei 10.406 de 10/01/2002 - estavam previstas no nosso ordenamento duas formas de adoção: adoção plena ou estatutária, para crianças e adolescentes regulada pelo ECA; e a adoção simples, civil ou restrita para os maiores, regulada pelo Código Civil de 1916. Conforme anotam Flávio Taturce e José Fernando Simão (2011), o Código Civil de 2002 havia consolidado a matéria, não mais existindo a divisão supramencionada, pois o Código Civil de 1916, que cuidava da adoção simples, foi inteiramente revogado. O Código Civil de 2002 passou a servir tanto para adoção de maiores quanto para menores de 18 anos. Entretanto, o Código Civil por conter normas de caráter geral contemplava disposições sobre a adoção não inteiramente compatíveis com as do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei especial para a infância e adolescência, dando ensejo a dúvidas sobre a vigência desse Estatuto. Com a Nova Lei da Adoção eliminou-se todas as dúvidas, pois não existem mais dispositivos no Código Civil regulamentando a adoção. Neste diploma foram expressamente revogados 10 artigos referentes ao instituto (arts. 1.620 a 1.629). Permaneceram apenas dois (arts. 1.618 e 1.619), mas com redação alterada, para dispor, 124 respectivamente, que a adoção de menores passa a ser disciplinada pelo ECA e que a adoção de maiores de 18 anos depende da assistência do poder público e de sentença constitutiva, conformando-se, no que for aplicável, pelas regras gerais do Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, com a Nova Lei, alterando e revogando os dispositivos do Código Civil, a adoção tanto de menores quanto de maiores passou a ser determinada no Estatuto da Criança e do Adolescente, que também teve significativas alterações em vários de seus dispositivos, as quais serão oportunamente comentadas no decorrer deste trabalho. Constata-se, após o exposto, que a evolução histórica das legislações que cuidaram e cuidam do instituto da adoção passou por transformações relevantes ao longo dos anos, pois inicialmente o foco incidia sobre os adotantes, e, posteriormente, os adotados é que passaram a ganhar cada vez mais importância neste processo, culminando na proteção integral introduzida na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da criança e do adolescente de1990 e, por fim, na Nova Lei de Adoção (Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009), fonte de estudo desse trabalho e que será analisada com detalhes a partir do capítulo seguinte. 2 ADOÇÃO NO DIREITO ATUAL. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA NOVA LEI DA ADOÇÃO NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Especialmente após edição da Lei nº 12.010/2009 - Nova Lei da Adoção, em 03 de agosto de 2009, o legislador atribuiu unicidade ao instituto da adoção, regulando expressamente, no ECA - Lei nº 8.069/ 1990, sobre a proteção integral da criança (até 12 anos de idade) e do adolescente (entre 12 e 18 anos de idade). O objetivo desse capítulo é tratar das novas regras introduzidas no ECA. Serão expostos, de forma abreviada e descritiva, os requisitos pessoais, os requisitos formais e os efeitos da adoção no nosso país. 2.1 REQUISITOS PESSOAIS PARA A ADOÇÃO Buscando ordenar o estudo dos componentes pessoais da relação jurídica da adoção, serão apresentados os requisitos quanto ao adotante e adotando, nas adoções singulares e conjuntas. 2.1.1 Em relação ao adotante A adoção é um ato jurídico e como tal requer-se a capacidade para a sua realização. Quando da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, vigorava o anterior Código Civil de 1916, que instituía o fim da menoridade aos 125 21 anos, e por essa razão também o ECA reconheceu essa idade mínima como primeiro requisito de capacidade para aqueles que pretendiam adotar (art. 42). Com o advento do Código Civil de 2002, porém, a maioridade foi reduzida para 18 anos (art. 5º, caput), e em seu art. 1.618 prescrevia, da mesma forma, a idade mínima para o adotante em 18 anos (Silva Filho, 2011). A Nova Lei da Adoção - Lei nº 12.010/10, em conformidade com a capacidade civil estabelecida pelo Código Civil de 2002, assim também instituiu o limite de idade em 18 anos para o adotante. Portanto, como prevê o art. 42 do ECA somente podem adotar os maiores de dezoito anos, independentemente do seu estado civil. Importante ressaltar que além da prática do ato jurídico, o adotante passa a exercer todos os direitos e deveres relativos ao poder familiar, detendo, conforme o caso, os poderes de representar (art. 3º, CC/2002) e assistir (art. 4º, CC/2002) o adotado. Assim, não podem adotar os maiores de 18 anos que sejam absoluta ou relativamente incapazes. Nesse sentido, ensina Artur Marques da Silva Filho (2011, p. 71): aqueles que sofrem restrições em relação a sua capacidade, como por exemplo, os que por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o necessário discernimento para a prática de certos atos, os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade (art. 3º, II e III, CC/2002) e os relativamente incapazes para certos atos – estão impedidos de adotar. A idade de 18 anos é, no entanto, requisito objetivo para o adotante. Como a adoção depende de um processo judicial, questões subjetivas, como maturidade para a adoção, devem ser levadas ao Poder Judiciário e examinadas conforme a oportunidade e conveniência de cada caso concreto. O Código Civil de 2002 não fazia qualquer menção ao estado civil do adotante, admitindo-se apenas a adoção por ambos os cônjuges ou companheiros, que poderia ser consumada desde que um deles já houvesse completado 18 anos. A nova lei desvinculou a adoção do estado civil do adotante (art. 42, ECA), e ampliou significativamente as possibilidades de expansão do instituto. De acordo com a nova regulamentação, tanto o estado civil, como o sexo e a nacionalidade não interferem na capacidade ativa para adoção. Poderão adotar individualmente as pessoas solteiras, viúvas, separadas juridicamente e divorciadas. O art. 41, § 1º, ECA permite ainda, fazê-lo, de forma unilateral, os cônjuges e companheiros. Nesses casos, conservam-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou companheiro do adotante e seus respectivos parentes. Portanto, a substituição da filiação só ocorre na linha materna ou paterna, não perdendo o cônjuge ou companheiro do adotante o seu poder familiar, que será exercido conjuntamente. Caso ocorra a adoção por apenas uma pessoa solteira ou que não possua companheiro, incorre no exemplo de família monoparental, previsto no art. 226, § 4º, da Constituição Federal de 1988, que também teve reconhecimento no ECA (art. 25), e que prescreve: entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 126 A lei prevê ainda que a adoção pode ser efetivada conjuntamente pelos cônjuges ou companheiros. O art. 42, § 2º do ECA, dispõe, para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. Rolf Madaleno (2009, p. 469) faz a seguinte observação quanto à estabilidade familiar: embora a duração do relacionamento seja um forte indicador de estabilidade da união estável, por si só e de modo isolado nada representa, assim como o tempo de casamento também não é indicativo de um casamento estável, devendo a investigação ir muito além do requisito temporal, para descobrir os motivos que demovem o casal conjugal ou convivente a buscar os vínculos da adoção, pois é desta resposta e daquelas que vão surgindo da história de seu relacionamento que irão aparecer as verdadeiras informações acerca da estabilidade da entidade familiar, o que poderá ser melhor identificado com o auxílio de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. De acordo com a nova regulamentação o adotante pode adotar quantos filhos quiser, simultânea ou sucessivamente. Não existe qualquer dispositivo na lei que vede a possibilidade de os cônjuges ou companheiros adotarem separadamente. Nestes casos, o adotante casado não depende do consentimento do outro cônjuge para realizar a adoção, pois referida exigência não faz parte do art. 1.647 do Código Civil, que descreve os atos que um cônjuge não pode praticar sem o outro. Em relação aos divorciados, ao juridicamente separados e aos ex-companheiros, a nova lei deu nova redação ao art. 42, § 4º do ECA ao prescrever a possibilidade de adoção conjunta, desde que o estágio de convivência tenha se iniciado na constância do período de convivência do casal e que seja ajustado entre os mesmos a situação da guarda do adotado e o regime de visitas, ressaltando que a excepcionalidade desta concessão deve ter como base, a comprovação da afinidade e afetividade do adotado com o não detentor da guarda. Vale frisar, ainda, a inovação trazida ao § 5º do art. 42, que passa a permitir, nas hipóteses de separação do casal, a concessão inclusive de guarda compartilhada, se ficar comprovado verdadeiro benefício para o adotando. Se no curso do procedimento da adoção o adotante vier a falecer antes da prolatação da sentença, porém confirmando-se que o mesmo demonstrou em vida de forma inequívoca a sua vontade em adotar a criança ou o adolescente, a adoção poderá ser deferida, como se tivesse sido adotado em vida pelo de cujus, configurando-se a denominada adoção póstuma (§ 6º, art. 42, ECA). Muito se tem discutido, nos últimos anos, sobre a possibilidade de se deferir a adoção de crianças e adolescentes a pessoas homossexuais. A Nova Lei da Adoção não faz qualquer restrição à orientação sexual do adotante. Nem poderia ser diferente, pois se assim o fizesse estaria contrariando frontalmente a Constituição Federal que veda preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV). 127 Posto que, também o art. 5º, caput, expressamente determina que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Todavia, a adoção por homossexual somente é admitida de forma individual, ou seja, apenas um dos indivíduos pode ser o adotante. Conforme posicionamento doutrinário considerado por anos majoritário, mas que vem sofrendo mudanças, como não se trata de uma entidade familiar, não seria possível a adoção por um casal de homossexuais. Embora a nova lei não tenha mencionado a adoção homoafetiva, já existem julgados em diversos Estados apontando para seu definitivo reconhecimento (Taturce e Simão, 2011). Situação comum da realidade brasileira e que passou a ser disciplinada com maior atenção pela nova lei é a adoção intuitu personae, forma de adoção na qual os genitores, mais precisamente, a mãe do adotando expressa sua vontade e anuência em relação à pessoa do adotante. Mesmo com a indicação expressa daquele que vem a ser o adotante, a lei exige que este apresente os mesmos requisitos objetivos, e todas as condições básicas impostas aos que pretendem adotar. Apenas o prévio cadastramento dos interessados na adoção pode ser dispensado nestes casos. Acrescentando o parágrafo 13 ao art. 50 do ECA que trata dessa matéria, o legislador diminui consideravelmente a possibilidade da adoção intuitu personae. Tal dispositivo prevê como hipóteses para este tipo de adoção e, consequentemente, como exceções à regra do cadastro prévio, as seguintes possibilidades: quando se tratar de adoção unilateral, ou seja, quando se tratar da adoção do filho do cônjuge ou companheiro; quando for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; ou no caso de quem detém tutela ou guarda legal de criança maior de três anos ou adolescentes, desde que o lapso de convivência demonstre que se estabeleceu um laço de afinidade e afetividade entre adotante e adotado, e não seja constatada a existência de má-fé no ato, nem tampouco as situações previstas nos arts. 237 e 238 do ECA, que dizem respeito, respectivamente à subtração da criança ou adolescente para colocação em um lar substituto e a promessa de entrega de filho a terceiro, mediante pagamento ou recompensa. Outra prática comum utilizada no Brasil é a denominada adoção à brasileira. A adoção à brasileira trata-se daquela em que uma pessoa ou casal registra, como sendo seu, o filho de outrem, sem passar pelos trâmites adotivos legais. Esse tipo de adoção, além de representar crime de falsidade ideológica punível por lei, também expõe os adotantes à ausência de proteção legal na eventualidade de os pais biológicos desejarem ter seu filho de volta. Como estes “adotantes” atuam às margens da lei, não seguindo os processos de avaliação e preparação exigidos pelo ECA, muitos, mesmo sem condições emocionais de adotar, acabam o fazendo, trazendo prejuízos diversos aos direitos dos adotados. 128 Superados referidos pontos, como outro requisito da adoção temos presente no parágrafo 3º do art. 42 do ECA que o adotante há de ser pelo menos 16 anos mais velho do que o adotando. O Código civil estabeleceu, originalmente, uma diferença mínima de 18 anos. Essa diferença foi reduzida para 16 anos na lei 3.133/1957, a qual foi mantida pelo ECA, e de igual forma pela Nova Lei da Adoção. Destaca a doutrina que entre adotante e adotando deve existir uma suficiente diferença de idade como na filiação biológica, seguindo o princípio clássico que fundamentou a adoção, ou seja, de que a adoção busca imitar a natureza (adoptio imitatur naturam). Washington de Barros Monteiro (apud Gonçalves, 2010, p. 383-384) argumenta: exigindo a aludida diferença, quer a lei no lar instituir ambiente de respeito e austeridade, resultado da natural ascendência de pessoa idosa sob re outra mais jovem, como acontece na família natural, entre pais e filhos. Com forte razão, não se admite que o adotado seja mais velho que o adotante. Semelhante adoção contraria a própria natureza (adoptio naturam imitatur et pro monstro est, ut major sit filius quam pater). A nova lei não fixou limite máximo de idade, admitindo-se assim, que pessoas de idade avançada também adotem. Nesses casos, a adoção somente pode ser indeferida, pelo juiz, se manifestar-se inconveniente aos interesses do menor. Visando evitar fraudes e a proteger as pessoas envolvidas no processo, ou ainda por outras razões, o instituto da adoção sempre impôs certas restrições para que se pudesse estabelecer o vínculo adotivo. Nessa linha de raciocínio, o legislador manteve a disposição do art. 42, § 1º do ECA, quanto a proibição de adoção entre ascendentes ou entre irmãos do adotando. Dessa forma, por absoluta incompatibilidade com o instituto da adoção, não é permitido ao avô adotar o neto, nem a pessoa solteira, ou um casal sem filhos adotar um irmão de um dos cônjuges. No sistema anterior, era permitida a adoção por avós, entendendo a jurisprudência que não existia impedimento para tal, embora houvesse divergência. Atualmente, a lei permite que o avô seja detentor da guarda do neto, seja seu tutor, mas não permite a sua adoção (Gonçalves, 2010). Silva Filho (2011) observa que a perspectiva da adoção é a de se criar um verdadeiro direito parental entre adotante a adotando, e, por isso, já havendo um vínculo natural de parentesco, não teria significado algum se admitir outro. No caso de irmãos, causaria uma confusão de parentesco tão próximo, pois o adotado seria irmão e filho ao mesmo tempo. Quanto à adoção dos próprios filhos, vale lembrar que nossa legislação não mais faz distinção entre filhos legítimos e ilegítimos (art. 227, § 6º, CF/1988). E por essa razão, não é dado o direito aos pais de adotar quem já é filho por natureza. Uma vez que, não há impedimento nem na lei, nem na natureza da adoção atingindo os parentes colaterais de terceiro grau, assim como os parentes por 129 afinidade, é possível à adoção dos sobrinhos pelos tios, e da nora ou do genro pelos sogros, logicamente após o falecimento do filho ou da filha (Gonçalves, 2010). Visando uma maior proximidade entre as pessoas envolvidas na relação adotiva, e por ser a adoção ato pessoal do adotante, a lei proíbe que o adotante busque efetivar a adoção através de procuração. Esse tipo de adoção era constantemente utilizado nas adoções por estrangeiros. A procuração, em regra, outorgava poderes ao mandatário para tomar todas as medidas necessárias para efetivação da adoção. Geralmente o adotante não tinha nenhum contato com o adotando. A inovação estatutária, impedindo a adoção por procuração, demonstrou a predisposição do legislador de converter o ato em exercício de direito personalíssimo, conferindo maior responsabilidade a todos, inclusive ao julgador. Em se tratando de adoção efetuada por tutor ou curador, o art. 44 do ECA segue a mesma linha do Código Civil revogado (art. 371) e do Código Civil de 2002 (art. 1.620, revogado pela Lei 12.010/2009), estabelecendo restrição temporária para tal, qual seja, enquanto não der conta de sua administração e saldar o seu alcance, não pode o tutor ou o curador adotar o pupilo ou o curatelado. A origem dessa restrição é muito antiga e tende evitar que, com a adoção, o administrador de bens alheios se enriqueça indevidamente. Maria Berenice Dias (2009, p. 439) entende ser essa disposição de fundamental importância, e faz o seguinte apontamento: como o tutor e curador têm a obrigação de prestar contas (obrigação que inexiste em se tratando dos pais), não exigir o adimplemento de tal encargo poderia dar margem à busca da adoção como subterfúgio para simplesmente serem dispensados do encargo: bastaria adotar o tutelado ou curatelado. Vale frisar, que a curatela de maiores é permitida no ECA, excepcionalmente, tratando-se de interditos, na restrita hipótese do art. 40, ou seja, quando o adotando, com mais de 18 anos já estiver sob guarda ou tutela dos adotantes. Deve-se deixar claro, ainda, que a tutela faz parte do procedimento jurídico de proteção e amparo à criança e ao adolescente. É instituto complementar do Direito de família. Busca, em última análise, inserir a criança e o adolescente em família substitutiva, iniciando-se com a guarda, que, na maioria das vezes, culmina com a adoção. Não se pode assegurar que a tutela tenha o mesmo propósito da adoção, pela extensão desta última, mas pode-se dizer que é também uma forma de inserção de criança ou adolescente em família substitutiva. A tutela e a adoção precisam ser antecedidas de guarda, salvo no caso de estrangeiro (Silva Filho, 2011). 130 2.1.2 Requisitos quanto ao adotando Em relação à capacidade para ser adotado, nem o ECA, nem o Código Civil fixou um limite mínimo de idade. A Lei 12.010/2009 igualmente manteve-se em silêncio quanto ao referido limite, reabrindo, desta forma, o debate sobre a possibilidade de adoção do nascituro. A polêmica, a propósito, diz respeito à questão da condição jurídica do nascituro. O tema proporciona muitos questionamentos, e estes repercutem na adoção. Há quem sustente que esta possibilidade persiste. A doutrina, contudo, inclina-se em repeli-la, concordando com a manifestação do ilustre doutrinador Antônio Chaves (apud Gonçalves, 2010, p. 382) que a chama de: [...] um contra senso, do ponto de vista humano e do ponto de vista legal. Do humano, porque a ninguém deveria ser facultado adotar uma criatura que ainda não nasceu, que não se sabe se vai ou não nascer com vida, qual seu sexo, seu aspecto, sua viabilidade, sua saúde, etc. Do ponto de vista jurídico, porque a dependência em que fica essa adoção, de um acontecimento futuro e incerto, importa numa verdadeira condição, que o art. 375 (do CC/1916) não admite. Apesar de existir exceções à idéia de que só haverá direito quando houver sujeito, o ECA, mesmo após as alterações introduzidas pela Lei nº 12.010/2009 não veda expressamente a adoção do nascituro, nem sequer faz qualquer tipo de menção ao termo inicial da vida. Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente não estabelecer idade mínima para ser adotado, limitou para no máximo 18 anos à data do pedido. Ressalva-se, portanto, que pode ocorrer a adoção de maior de dezoito anos, quando este já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes, como já previa o art. 40 do ECA. Sobre o consentimento do adotando, o legislador estatutário em três dispositivos, regulou expressamente a respeito, prevendo duas hipóteses facultativas (arts. 28, §1º, e 168) e outra obrigatória (arts. 28. § 2º, e 45, § 2º). Nas primeiras determina que, sempre que possível a criança ou o adolescente será previamente ouvido, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada. Na segunda hipótese, se referindo a casos em que o adotando contar com mais de doze anos, prevê o ECA, que será necessário seu consentimento, colhido em audiência para que a adoção se aperfeiçoe. O termo “colhido em audiência” é uma inovação, que impõe a execução do ato formal de oitiva do adotando pelo magistrado, com a presença do representante do Ministério Público. O consentimento do menor deve ter uma importância relativa no exame a ser feito pelo juiz na sentença. A sua concordância ou não concordância, por si só, não irão impedir o deferimento da adoção. 131 Dentro desse contexto, Silva Filho (2011, p. 156) faz a seguinte ressalva: ainda que a lei exija o consentimento do maior de 12 anos, deve- se entender que, por tratarse de menor absolutamente incapaz, o juiz pode contrariar a sua vontade, se isso importar em benefício. Se a colocação em família substitutiva for a medida que melhor preserva os superiores interesses do adotando, deverá ser decretada. Quanto à diferença de idade e proibições relativas ao adotando, aplica-se o que já foi exposto nos requisitos quanto ao adotante, dada a reciprocidade que as comunicam. 2.2 REQUISITOS FORMAIS DA ADOÇÃO Dentro da orientação da Nova Lei da Adoção, a constituição do vínculo adotivo contempla uma complexidade de procedimentos a serem seguidos, que se inicia com a apreciação judicial do registro das crianças ou adolescentes em condições de serem adotados e das pessoas interessadas na adoção (art. 50, caput, ECA). Assim, quem desejar adotar deve se cadastrar previamente na comarca de sua residência, devendo ter o nome incluído no cadastro de pessoas nacionais habilitadas em sua Comarca. Da mesma forma será elaborado um registro das crianças e adolescentes em condições de serem adotadas. Tais cadastros devem distinguir pessoas ou casais residentes dentro e fora do país, dando-se preferência, ao deferir a adoção, aos postulantes que residam no país (§ 6º, art. 50, ECA). A inscrição nesses cadastros depende de prévia consulta aos órgãos técnicos do juizado da Infância e Juventude e ao Ministério Público (§ 1º, art. 50, ECA). A inscrição não será deferida se a pessoa interessada não satisfizer os requisitos legais, ou se verificada incompatibilidade com a natureza da adoção, ou ainda não oferecer ambiente familiar adequado (§ 2º, art. 50, ECA). Antes da nova lei, o processo só tinha validade na localidade onde a pessoa ou o casal residisse, impondo uma nova habilitação para encontrar uma criança em outra comarca. No entanto, foi criado o chamado Cadastro Nacional, onde estando o requerente habilitado, estará apto para adotar em qualquer lugar do Brasil. O Cadastro Nacional de Adoção é considerado por muitos, instrumento de fundamental importância para dinamizar o processo de adoção no país. Foi criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução 54/08. Acerca deste cadastro, Pereira (2011, p. 430) dispõe que o mesmo tem como objetivo: implantar um sistema informatizado que permite ao Sistema de Justiça o acesso aos pretendentes à adoção e suas preferências em relação às características das crianças que pretendem adotar, unificando os dados no âmbito nacional. Em relação às crianças e aos adolescentes em condição de adoção, aumentam-se as possibilidades de encontro de famílias substitutivas, pois, se antes a pesquisa era realizada apenas entre os pretendentes habilitados na Comarca de sua residência, 132 agora a consulta pode ser ampliada para cerca de três mil Varas da Infância e Juventude do país. A inscrição dos candidatos à adoção deverá ser precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, a fim de esclarecer possíveis dúvidas relacionadas à adoção, ampliar as concepções a respeito do perfil da criança desejada e instaurar uma relação de proximidade com a equipe técnica encarregada pelo acompanhamento do processo. Sempre que possível e recomendável, esse período de preparação incluirá o contato dos candidatos com crianças e adolescentes que se encontram institucionalizados e em condições de serem adotados (§ 4º, art. 50, ECA). Terão acesso integral aos cadastros, as autoridades Estaduais e Federais em matéria de adoção, ficando responsáveis pela troca de informações e a cooperação mútua, para melhoria do sistema (§7º, art. 50, ECA). A autoridade judiciária deve realizar no prazo de 48 horas, a inscrição das crianças e adolescentes que já se encontram em condições de serem adotados e que não foram colocadas em famílias na comarca de origem; bem como das pessoas ou casais que tiveram aprovadas sua habilitação à adoção nos cadastros Estadual e Nacional, sob pena de responsabilidade. Posteriormente ao cadastramento, segue-se a fase judicial propriamente dita, marcada, especialmente, pela apreciação da conveniência da adoção, com a prática de uma sequência conjugada de atos, abrangendo os componentes diretos da constituição da adoção, quais sejam: os pais naturais ou responsáveis pelo adotando, os interessados em adotar e o próprio adotando. Vale relembrar que na intervenção judicial deve prevalecer, acima de tudo, o interesse público, no propósito de proteger integralmente a criança e o adolescente, verificando-se as reais vantagens da adoção e a legitimidade de seus motivos (art. 43, ECA), um dos requisitos mais importantes no processo de adoção. Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho (2011, p.181-182) sustenta que: a criança ou adolescente deve experimentar, com a adoção, uma mudança substancial de vida e para melhor. A mudança pode não ser econômica e patrimonial, mas desde que seja palpável, justifica-se a medida. Se o menor continuar desamparado ou piorar sua condição material, a adoção não poderá ser concedida. É legítimo casais sem filhos procurarem os serviços de adoção para preencher essa grave lacuna em suas vidas. Entretanto, não há legitimidade, por exemplo, se o objeto é simplesmente contar com alguém que ajude nas tarefas domésticas e venha a contribuir com parte dos ganhos de seu trabalho para a manutenção dos adotantes. Enfim, tanto a adoção de menor, como a de maior de idade, deve ser sempre submetida a processo judicial, com a intervenção obrigatória do Ministério Público em todos os atos procedimentais. O Estatuto prevê procedimentos próprios para a adoção de menores de 18 anos sob a competência da Vara da Infância e Juventude. Sendo o adotando maior, a competência para apreciação e deferimento da medida será da Vara da Família. 133 No procedimento adotivo, o consentimento dos pais ou responsáveis legais é condição fundamental à concessão da medida (art. 45, ECA). Silva Filho (2011) explica que, ainda que o poder familiar seja irrenunciável, pois se trata de direito personalíssimo, admite a lei que os pais consintam com a adoção. Nesse caso, o juiz deve tomar por temo as suas declarações (art. 166, § 1º, ECA). Dispensa-se tal intervenção em duas hipóteses somente: se os pais forem desconhecidos ou tiverem sido destituídos do poder familiar (art. 45, § 1º). Deve-se destacar que, tal destituição só pode ser feita com rigorosa observância de procedimento contraditório. A destituição do poder familiar deverá seguir os procedimentos previstos nos arts. 155 a 163 do ECA. Além disso, deve atender o art.1.638 do Código Civil. Dessa forma, se a mãe castigar imoderadamente o filho, deixá-lo em total abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes, ou faltar, reiteradamente com os deveres inerentes a sua condição, e o pai for desconhecido, o processo de adoção deve ser antecedido, obrigatoriamente, da destituição. Não sendo os titulares do poder familiar localizados, devem ser citados por edital. Preenchidas todas as formalidades legais e decretada a destituição por sentença passada em julgado, a autoridade judiciária, ao conceder a adoção, suprirá o consentimento dos pais. A adoção de menores requer ainda, o preenchimento obrigatório do estágio de convivência entre adotante e adotado, que segundo Gonçalves (2010, p. 385) tem a finalidade de comprovar a compatibilidade entre as partes e a probabilidade de sucesso na adoção. Nesse estágio, o juiz e seus auxiliares terão condições de verificar a conveniência da adoção. O estágio de convivência só poderá ser dispensado se o adotando já se encontrar sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo bastante para que seja possível determinar a conveniência da constituição do vínculo afetivo (§ 1º, art. 46, ECA). Na antiga redação, os menores de um ano de idade poderiam ser dispensados do estágio, se isso lhes fosse vantajoso. Alerta, no entanto, que simples guarda de fato não outorga, por si só, a dispensa da efetivação do estágio de convivência (§2º, art. 46, ECA). A nova lei exige que o estágio de convivência seja acompanhado pela equipe interprofissional, formada por assistentes sociais, psicólogos e pedagogos, a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento da medida. (§ 4º, art. 46, ECA). Para Edgard Moura Bittencourt (apud Pereira, 2011, p. 427) esse estágio trata-se de um tempo razoável, nem muito extenso, de modo a desanimar os candidatos à adoção plena do propósito de tomar a criança como filho, nem muito curto, de forma a não satisfazer sua finalidade sentimental e psicológica. 134 Não há prazo determinado na lei. O juiz fixará este período de convivência pelo tempo que julgar conveniente, considerando as circunstâncias e peculiaridades de cada caso (art. 46, ECA). Ao deferir o estágio de convivência, o juiz estará, na realidade, concedendo, a guarda do menor ao interessado na adoção. Ressalta-se que a prova do estágio de convivência é indispensável na adoção por pessoa estrangeira, sendo de: no mínimo trinta dias, independentemente da idade do adotando, e cumprido no território nacional (§ 3º, art. 46, ECA). Antes da nova lei, o prazo era diferenciado (no mínimo quinze dias para menores de dois anos de idade, e no mínimo trinta dias para crianças acima desta idade). Com o relatório do estágio de convivência em mãos, ouvindo as testemunhas arroladas e resguardando a ampla defesa, colhendo as manifestações das partes e comprovada a legitimidade dos motivos do requerente, o juiz estando convicto de que a adoção será benéfica para o menor, profere a sentença constitutiva do vínculo de filiação. A adoção só produzirá seus efeitos após o trânsito em julgado da sentença judicial (art. 47, § 7º, ECA). A sentença judicial deverá ser inscrita no Cartório de Registro Civil, por meio de mandado do qual não se fornecerá certidão (art. 47, ECA), e consignará na sua inscrição os nomes dos novos pais, assim como de seus ascendentes (art. 47, § 1º). Assim, o parentesco entre adotante e adotado será igual ao biológico. Dessa forma, o registro original do adotado deverá ser cancelado (art. 47, § 2º). Nas certidões do registro não poderá constar nenhum tipo de observação acerca da origem da adoção (§ 4º, art. 47). O objetivo do legislador é fazer com que seja esquecida a paternidade original, ficando o adotado totalmente integralizado ao novo ambiente familiar do adotante. A adoção só se completa com o registro da sentença constitutiva, e sua averbação à margem da certidão de nascimento do adotado (Lei nº 6.015/73, arts. 29, § 1º, e, 105), realizada mediante petição acompanhada da decisão judicial. Contudo, os dados referentes aos processos de adoção bem como outros que tenham com ele alguma ligação serão mantidos em arquivo (§ 8º do art. 47 do ECA) e permanecerão disponíveis somente para eventual requisição em que a autoridade judiciária achar necessário. Antes da nova lei havia uma grande dúvida no sentido de se permitir ou não o filho adotivo ingressar com ação de investigação de paternidade para descobrir quem eram seus pais biológicos. A nova redação do art. 48 do ECA tornou a matéria superada, determinando que após os 18 anos o adotado terá esse direito, com acesso irrestrito ao seu processo de adoção. Entretanto, no caso de menor deverá ser assegurada orientação e assistência judiciária e psicológica (§ 1º, art. 48, ECA). As novas disposições relativas à adoção, na verdade, surgem num contexto mais amplo, que visa realçar a excepcionalidade da medida, devendo se revestir de caráter 135 irrevogável (art. 39, § 1º), considerando a importância deste ato, principalmente para os adotados, que entram de forma definitiva na família do adotante. 2.3 EFEITOS DA ADOÇÃO 2.3.1 Efeitos de ordem pessoal Os efeitos de natureza pessoal estão relacionados com o parentesco, poder familiar e nome. Em consonância com o Princípio constitucional do art. 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, a nova lei atribui a condição de filho ao adotado com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, apagando qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. No que concerne aos impedimentos matrimoniais Venoza (2011, p.298) analisa: embora a lei iguale todos os direitos do adotado e insira-os integralmente na família do adotante, ressalva os impedimentos matrimoniais. O impedimento matrimonial, por força do parentesco biológico, é irremovível na esteira de razões morais, éticas e genéticas. Nesse diapasão, os impedimentos atingem o adotado com relação a ambas as famílias, a adotante e a biológica. Haverá ainda, transferência definitiva e de pleno direito do poder familiar dos pais biológicos para o adotante com todos os direitos e deveres que lhe são próprios. Em caso de morte do adotante, deve o adotado quando menor, ser colocado sob tutela, já que o poder familiar não é passível de ser restabelecido aos pais naturais (art. 49, ECA). A sentença certificará ao adotado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá decidir pela modificação do prenome (§5°, art. 47, ECA). Dessa forma, haverá uma liberdade considerável no tocante à formação do nome patronímico do adotado. Quando a alteração do prenome for solicitada pelo adotante, será indispensável à oitiva do adotado (§6º, art. 47, ECA), observado o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 28 do ECA. Essa alteração é uma exceção à regra sobre imutabilidade de prenome regulada pela lei sobre registros públicos (lei nº 6.015/73, art. 58). Em geral é requerida quando o adotado é de pouca idade e até então não atende pelo prenome de origem. Com respeito ao sobrenome é direito do adotado, maior ou menor, ter o mesmo do adotante, que será incluso em seu registro para que não venha a haver discriminações injustas e constrangimentos ao adotado, excepcionalmente quando se tratar de adotantes que já tenham filhos, biológicos ou adotados. Esse sobrenome será transmitido aos descendentes do adotado. 136 No tocante a adoção feita por mulher casada, seu nome pessoal, e não o do esposo, é que será empregado pelo adotado (Diniz, 2010). 2.3.2 Efeitos de ordem patrimonial Os efeitos de ordem patrimonial estão relacionados com: alimentos e direito sucessório. São devidos alimentos, tanto para o adotante quanto para o adotado, pelo fato de ambos tornarem-se parentes, e em decorrência desse parentesco terem assumido direitos e deveres recíprocos. O direito de receber alimentos perdurará enquanto filhos menores, e enquanto maiores se impossibilitados de providenciar o próprio sustento. De igual forma, é dever do adotado, quando capaz economicamente, prestar alimentos aos pais adotantes quando estes necessitarem. Enquanto o adotante estiver no exercício do poder familiar, será usufrutuário e administrador dos bens do adotado (art. 1689, I e II), como um meio de compensar as despesas necessárias que tiver com a educação e manutenção do adotado, em substituição ao pai natural, que como exposto perde total domínio dos bens do adotado. Visto que hoje o filho biológico e o filho adotado estão em pé de igualdade, herdará, em concorrência com o cônjuge sobrevivente do falecido, na condição de descendente do autor da herança (arts. 1.829, I, e 1.790, I e II, Código Civil/2002), sendo afastados da sucessão todos aqueles herdeiros do adotante que não possuam a qualidade de filho. Ensina Gonçalves (2010) que o adotado será colocado na relação de componentes da família, passando a ter também os direitos hereditários que abrangem a sucessão dos avós e dos colaterais, tudo exatamente igual ao que ocorre na filiação natural. Na linha colateral, não havendo parentes mais próximos, o filho adotivo, da mesma forma que o biológico, herda até o quarto grau. Isso significa que pode até ser incluído no inventário por morte dos tios (art.1839, CC). Nessa linha de raciocínio manifesta-se ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto aos direitos hereditários, em seu artigo 41, § 2°: É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4° grau, observada a ordem de vocação hereditária. Portanto, havendo reciprocidade nos efeitos sucessórios, o adotado passa a ter direito quanto aos bens do adotante. E, se ocorrer do adotado falecer sem deixar descendentes com o adotante ainda vivo, caberá a este receber toda a herança, na falta de cônjuge ou convivente do de cujus (artigo 1.829, II, e 1729, III , do Código Civil) . Por fim, Diniz (2010) explica que os efeitos da adoção possuem caráter ex nunc, já que, começam a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto, como já exposto, na casualidade do adotante vir a morrer no decorrer do processo, situação em que terá efeito ex tunc (art. 42, § 6º e art. 47, §7º do ECA), permitindo que a sentença 137 judicial retroaja à data do óbito do de cujus e seja assim, o adotado considerado herdeiro, com todos seus direitos legais quanto à sucessão. 3 PRINCIPIOS CONSAGRADAS PELA NOVA LEI DA ADOÇÃO – LEI 12.010/2009. 3.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A Nova Lei da Adoção - Lei nº 12.010/2009, busca regular o instituto da adoção, aperfeiçoando a sistemática prevista na Lei nº 8.069/90 (ECA) para assegurar o direito à convivência familiar a todas as crianças e adolescentes, em suas mais diferentes formas. Além de revogar e alterar o regulamento existente no Estatuto da Criança e do Adolescente, a nova lei procurou inserir a ele mecanismos com capacidade de garantir sua efetiva concretização, prescrevendo regras destinadas, antes e acima de tudo, a incentivar, fortalecer e preservar a integridade da família de origem. Se conformando ao pensamento de Rui Barbosa Marinho Ferreira (2009, p. 09), a proposta da Nova Lei da Adoção é a de aprimorar o instituto da adoção já existente no nosso país. Segundo informação presente na obra do mencionado autor, o texto da lei foi criado com base em três pilares: prevenir o afastamento do convívio familiar e comunitário, esgotando esta possibilidade antes da adoção. Desburocratizar o processo de adoção, mantendo os cuidados necessários para a garantia da proteção integral à criança e ao adolescente e ainda evitar o prolongamento de sua permanência em abrigos. (Disponível em: <http://Mercadante.com.br/notícias/ultimas/proposta inovaçãoconceito-de-familia-extensa-e-fortalece-a-adoçao-legal>. Acesso em: 11 set. 2009) As novas regras foram inseridas ao ECA sem alterar suas características essenciais, ressaltando a importância e tornando mais claros os princípios que norteiam a matéria (§ único, incisos de I a XII, art. 100, ECA), assim como os deveres dos órgãos e autoridades públicas responsáveis por garantir a realização do exercício do direito à convivência familiar e comunitária para todas as crianças e adolescentes. O Poder Judiciário, dentre outros (Ministério Público e Conselho Tutelar) passa a ficar encarregado de manter uma rigorosa fiscalização e controle sobre o acolhimento institucional de crianças e adolescentes, e de reavaliar periodicamente a condição que se encontra cada criança ou adolescente afastada do convívio familiar. Isto tudo na perspectiva de promover a reintegração destes à família de origem ou, caso tal solução se mostre totalmente inviável, sua colocação em família substituta, em qualquer de suas modalidades (guarda, tutela ou adoção), ou ainda, no último caso, seu encaminhamento a programas de acolhimento institucional (Ferreira, 2009). 138 Nesse sentido, a nova lei consagrou alguns princípios com o objetivo de orientar a intervenção Estatal na aplicação das medidas de proteção a crianças e adolescentes e de suas famílias. É de fundamental importância que se desenvolva um estudo sobre cada um deles para assim compreendermos melhor os objetivos do legislador na criação da lei. 3.2 DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA. Um ambiente familiar onde exista afeto e que satisfaça às necessidades da criança e do adolescente constitui a base para o seu bom desenvolvimento psicossocial. A fixação de limite, o exercício do poder parental, a atenção e a afetividade são essenciais para a formação de sua personalidade e para o desenvolvimento das habilidades exigidas na vida comunitária. A convivência familiar progressivamente torna a criança e o adolescente capazes de se sentirem amados e seguros para que, no futuro, quando lançados à sociedade e ao universo se sintam responsáveis pelos seus próprios atos e sentimentos. A Constituição Federal declara expressamente, no caput do artigo 226, que a família é a base da sociedade, certificando-lhe especial proteção por parte do Estado, deixando evidente o seu valor como primeira unidade social com a qual crianças e adolescentes têm proximidade ao nascer. O direito à convivência familiar é reconhecido como um dos direitos fundamentais garantidos a todas as crianças e adolescentes, conforme prevê o art. 227 da Constituição Federal, já mencionado. É assegurado também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente nos seus arts. 4º e 19, que expressam ser essa convivência tão essencial a uma criança ou adolescente como são a educação, a saúde, o lazer ou os demais direitos básicos. Esses dispositivos dispõem: Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. O direito à convivência familiar deve ser tratado não apenas visualizando a família de origem, mas, principalmente, a proteção das crianças e dos adolescentes que se encontram com relações afetivas ameaçadas ou rompidas, conferindo-lhes a condição de sujeitos de direitos em desenvolvimento. 139 Apenas excepcionalmente, quando a família não cumprir efetivamente com seu papel, e diante de situações de risco, a lei admite o rompimento dos vínculos familiares. Nesses casos caberá ao Estado, ao município e a sociedade a proteção dessas crianças e adolescentes, através do desenvolvimento de programas, projetos e estratégias que possam levar à formação de novos vínculos familiares e comunitários, não deixando de se considerar a necessidade de um compromisso de todos com as mudanças culturais que envolvem as relações familiares, reconhecendo, compreendendo e, principalmente, respeitando as diferenças existentes na sociedade atual. 3.3 MANUTENÇÃO DA CRIANÇA OU ADOLESCENTE NA SUA FAMÍLIA NATURAL OU EXTENSA. Não se mostrando viável a manutenção das crianças e dos adolescentes no seio da família natural, deve-se priorizar a integração à família extensa ou ampliada. Nos termos do art. 25 do ECA, entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Já a família extensa ou ampliada, conforme descrito no parágrafo 1º desse artigo (incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) é aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. A nova lei ao prever a família extensa ou ampliada tem o manifesto propósito de garantir sua primazia em relação à colocação da criança ou do adolescente em família substituta. Assim, somente depois de comprovada a inviabilidade da inserção da criança e do adolescente numa família extensa, pode ser concedida a sua adoção por uma família substitutiva. Nessa direção, temos que o afastamento da criança ou do adolescente de sua família é medida extrema e excepcional. Ocorrerá apenas quando totalmente comprovado pelas circunstâncias, sendo exigida a indicação, na ação judicial a ser submetida, e também na decisão que a determina, dos fundamentos jurídicos correspondentes, assegurando aos pais ou responsáveis o exercício do contraditório e da ampla defesa (Silva Filho, 2011). Advirta-se que o art. 23 do ECA é claro no sentido de afirmar que a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. Logo, o estado de pobreza, por si só, não pode ser considerado elemento decisivo para impossibilitar a adoção. Não havendo qualquer motivo que autorize a decretação da perda ou a suspensão do poder familiar, a criança ou o adolescente deve permanecer em sua família de origem, que será obrigatoriamente incluída em programas oficiais de auxílio (§ único, art. 23, ECA). 140 A lei, priorizando que a criança permaneça em sua família original, pretende evitar situações nas quais o simples fato de uma família se encontrar desestruturada e em dificuldades possa ser motivo para o Estado enviar crianças e adolescentes a acolhimentos institucionais, não se preocupando com os traumas e possíveis prejuízos acarretados a estes menores. Assim, buscando a preservação do direito a convivência familiar, o artigo 101 do Estatuto estabelece oito medidas de proteção, sendo em última instância o acolhimento institucional, cabendo primeiramente à reintegração familiar e na impossibilidade desta é proposta a colocação da criança e do adolescente em família substituta. 3.4 COLOCAÇÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTIVA Conforme disposto anteriormente, o princípio que norteia a Nova Lei da Adoção é o da máxima preservação dos vínculos familiares naturais, o que significa que a colocação em família substituta será realizada apenas quando for fundamental para o desenvolvimento e o bem-estar integral da criança e do adolescente. O artigo 28 do ECA dispõe que: a colocação em família substituta far-seá mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei. Família substituta é aquela que se propõe trazer para dentro dos umbrais do próprio lar uma criança ou um adolescente que por qualquer circunstância foi desprovido da família natural, para que faça parte integrante desta, e que nela se desenvolva e seja servido da estabilidade emocional proporcionada por um lar estável. Estas famílias, por ato de generosidade, demonstração de desprendimento e capacidade de se doar, entendem a necessidade da prioridade em dar uma família a estas crianças e adolescentes. Muitas vezes abdicando de seus próprios afazeres, em prol da compaixão. (Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/colocacaodecriancas-ou-adolescente-em-familia-substituta/2555/#ixzz29KEAQB3U>. Acesso em:12 out. 2012) Vale lembrar que a adoção, tutela e guarda, corresponde, nos dias atuais, a medidas de proteção à criança e ao adolescente (art. 98, ECA), empregadas sempre que os direitos reconhecidos na lei forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; e em razão de sua conduta. Estas medidas pretendem evitar que a criança ou o adolescente seja visto com indiferença, sendo deslocado ou transferido o tempo todo por conveniência dos adultos, sem que se permita restabelecer a segurança, a estabilidade e os vínculos que já foram quebrados com sua família natural, e que são os principais objetivos para que haja colocação em família substituta. Estas rupturas se mostram sempre muito traumáticas e dolorosas, e sua reincidência pode prejudicar demasiadamente o desenvolvimento da pessoa humana. 141 A nova lei regulando sobre o tema alterou os parágrafos 1º e 2º do art. 28 do ECA, e acrescentou a este dispositivo mais 4 parágrafos. Essas modificações tiverem a finalidade de fortalecer os mecanismos para que a família da criança ou adolescente tenha o direito ao contraditório, de dar sua opinião, de encontrar uma solução que assegure a permanência no seio familiar, não obrigatoriamente com os pais biológicos. Conforme dispõe o parágrafo 1º do mencionado dispositivo, sempre que possível, a criança ou adolescente irá manifestar-se a respeito do ato. Será ouvido por equipe interprofissional, não mais pela autoridade judiciária, respeitando seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as consequências da medida, sendo sua opinião considerada pelo julgador nos procedimentos de colocação em família substituta. Para a colocação em família substitutiva em qualquer de suas formas, e não apenas para a adoção, será necessário o consentimento do maior de 12 anos, a ser colhido pelo juiz em audiência, com obrigatória participação do Ministério Público (§ 2º, art. 28, ECA). O Estatuto adota essa idade para a determinação de quem é criança e adolescente, e define este último como a pessoa em desenvolvimento, que ao completar 12 anos tem, por conseguinte, o seu comportamento como elemento fundamental no que se refere ao seu futuro no seio de uma família substituta (Silva Filho, 2011). É de fundamental importância que se considere o grau de parentesco, a relação de afinidade ou de afetividade no exame do pedido, com o propósito de diminuir ou mesmo impedir as consequências advindas da medida. (§3º, art. 28, ECA) A nova lei prevê ainda, a necessidade de manter unidos os irmãos sujeitos a adoção. Nessa direção, determina a nova redação do art. 28, § 4º do ECA que os irmãos sejam colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada motivação muito forte em contrário, como por exemplo, quando algum dos irmãos representar um risco para os demais. De todas as formas, procura-se evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais com a adoção. Deve-se ressaltar que, a inserção da criança ou adolescente em família substitutiva deve ser precedida de sua preparação gradativa, assegurando, da mesma forma, o acompanhamento posterior, realizado pela equipe interprofissional, que como serviço auxiliar do juizado da Infância e Juventude, deve existir e atuar em todas as comarcas, sob responsabilidade do Poder Judiciário, com apoio de técnicos encarregados pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar (§5º art. 28, ECA). Pela primeira vez, o ECA trouxe expressa previsão da necessidade de cuidados adicionais no que se refere à destituição do poder familiar e a colocação em família substitutiva de crianças e adolescentes provenientes de comunidades indígenas e remanescentes de quilombos, tornando nesses casos, dentre outras, obrigatória a intermediação do órgão federal responsável pela política indígena ou de antropólogos, conforme o caso (art. 28, § 6º, inc. III, ECA). 142 Importante destacar que, a nova lei não permite que seja deferida a colocação em família substitutiva a pessoa que revele por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado (art. 29, ECA). Nesses casos a lei não autoriza nem mesmo que seja consentida a inscrição como interessada na adoção. A lei não admite ainda, nos casos de colocação em família substituta, a transferência da criança ou adolescente a terceiros ou a entidades governamentais ou não governamentais sem autorização judicial (art. 30, ECA). Por ser considerada medida excepcional, a colocação em família substitutiva estrangeira somente é admitida na modalidade de adoção (art.31, ECA). Por fim, cumpre registrar que ao aceitar a posição de substituta, a família que receber a criança ou adolescente em seu lar assumirá todos os deveres e direitos inerentes àquela família original. Esses poderes sobre a vida da criança ou adolescente serão maiores ou menores a depender da modalidade de colocação em família substituta. Nos casos de adoção, que possui caráter irrevogável, a família substituta assumirá a totalidade do poder familiar. 3.5 ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E FAMILIAR Visando sempre a prioridade absoluta da criança e do adolescente, a lei indica com clareza que todos são responsáveis pela política de atendimento a esses menores. Conforme a regra do art. 86 do ECA: a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não -governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Como o assunto em pauta é Acolhimento Institucional e Familiar, termos incluídos no Estatuto da Criança e do Adolescente pela Lei 12.010/2009, e que substituem o antigo abrigo, é importante destacar o art. 88, inc. VI do ECA que estabelece: Art. 88. São diretrizes da política de atendimento [...] VI - integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar e encarregados da execução das políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de agilização do atendimento de crianças e de adolescentes inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração à família de origem ou, se tal solução se mostrar comprovadamente inviável, sua colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei. Deve-se distinguir, a princípio, institucional. acolhimento familiar de acolhimento 143 O primeiro consiste na inserção de crianças e adolescentes em residências de famílias acolhedoras cadastradas, selecionadas, habilitadas e assistidas pela equipe profissional do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora. Já o acolhimento institucional ocorre em diferentes unidades para pequenos grupos e casalar (unidade residencial onde uma pessoa ou casal trabalha prestando cuidados a um grupo de crianças e adolescentes). (Disponível em: <http://elviocesar.blogspot.com/2011/03/acolhimento-institucional-e-acolhimento>. Acesso em: 19 set. 2012). Importante ressaltar que ambos são considerados como medidas protetivas provisórias e excepcionais (§ 1º, art. 101, ECA), empregadas como forma de transição para reintegração familiar às crianças e adolescentes em situação de risco, buscando assegurar seus direitos, restabelecer vínculos e referências familiares e comunitários, assim como promover a sua inclusão social. Tanto o acolhimento familiar quanto o institucional não implicam em privação de liberdade. Várias razões podem motivar o acolhimento: os pais podem estar hospitalizados, cumprindo pena, ou serem autores de violência doméstica. Esta última situação é a mais comum no Brasil. Neste caso, busca-se interromper o processo de violência pelo qual crianças e adolescentes vivem dentro de casa. Enquanto não localizada pessoa ou casal interessado em sua adoção, a criança ou adolescente, sempre que possível e recomendável, será colocado sob guarda de família cadastrada em programa de acolhimento familiar (§ 11, art. 50, ECA). O acolhimento familiar na nova legislação prioriza a família natural, convocando também a família extensa e ampliada. A convocação da família extensa reconhece a importância dos parentes próximos na criação e contrapõe-se à cultura dos acolhimentos institucionais, que devem ser utilizados apenas como última alternativa (Pereira, 2011). Priorizando o princípio do melhor interesse da criança, o acolhimento familiar pela família extensa deve ser marcado por uma relação sólida e afetiva com a criança ou adolescente. Tais elementos devem sobrepor-se a ligação unicamente biológica, onde não há compromisso nem responsabilidade com crianças e adolescentes. Daí a importância dessa modalidade, que passa a ser incluída pela Nova Lei da Adoção como uma alternativa a institucionalização no Brasil. Ao invés de encaminhar crianças e adolescentes para o acolhimento institucional, onde serão tratados de forma coletiva, a família acolhedora será capaz de respeitar a individualidade dessas crianças e adolescentes, oferecendo um cuidado especial para o desfecho de cada situação em particular. O fato de uma família acolher em sua casa, uma criança ou adolescente que por algum motivo precisou ser afastados de sua família de origem não significa que a criança vai passar a ser filho da família acolhedora, mas sim, que vai receber afeto e cuidados desta, até que possa ser reintegrado à sua família de origem ou, em alguns casos, ser encaminhado para a adoção. Há de se considerar que a institucionalização por tempo indeterminado reduz, dia a dia, a possibilidade de a criança ou adolescente encontrar uma nova família. Nesse 144 sentido, buscando evitar que tantos menores carentes de família continuem esperando eternamente em abrigos, a nova lei fixou que o prazo máximo para a permanência de crianças e adolescentes em programas de acolhimento institucional não poderá ultrapassar dois anos (§ 2º do art. 19 do ECA), salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária. A referida lei alteradora também estabeleceu a obrigatoriedade de reavaliação periódica da situação jurídica e psicossocial de toda a criança e adolescente que estiver inserido em programas de acolhimento familiar ou institucional no prazo máximo de seis meses (§1º do art. 19 do ECA). Esta reavaliação será feita por equipe interprofissional, integrantes dos serviços auxiliares da Vara da Infância e da Juventude, que desenvolverão trabalho de aconselhamento, orientação, encaminhamento e prevenção, fornecendo ao juiz subsídios para a tomada de decisão fundamentada acerca da possibilidade de reintegração familiar, inclusive com a obrigatória inclusão da família, para esse fim, em programa de auxílio, se necessário, ou colocação em família substituta. Ferreira (2009) lembra que, pelo sistema anterior, o magistrado argumentava e fundamentava apenas a entrada e a saída do abrigo, não havendo uma estrutura de fiscalização periódica daqueles que estavam institucionalizados. Segundo a nova regra deve haver uma constante revisão para cada caso, analisando sempre a necessidade daquela criança ou adolescente continuar na instituição. O afastamento da criança e do adolescente do convívio familiar é de competência exclusiva da autoridade judiciária, isto é, do Juiz da Vara da Infância e Juventude, e será necessária a provocação do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse, de procedimento judicial contencioso, no qual seja assegurado aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa (§ 2º, art. 101, ECA). Antes de se enviar a criança ou adolescente para um acolhimento institucional, é preciso analisar se entre os parentes existam pessoas que lhe tenham afeto e queiram se responsabilizar pelos seus cuidados e proteção. Nos casos de maus tratos, opressão e abuso sexual dentro da família, a medida cautelar prevista no art. 130 do ECA, afastamento do agressor da moradia comum, deve sempre ser considerada antes de se recorrer ao encaminhamento para serviço de acolhimento. Somente em caráter excepcional e de urgência, poderão as entidades que mantêm programa de acolhimento institucional acolher crianças e adolescentes sem prévia determinação da autoridade competente (art. 93, ECA). O acolhimento familiar ou institucional deverá ser o mais próximo possível à residência dos pais ou do responsável e, seguindo a ordem do processo de reintegração familiar, sempre que reconhecida a necessidade, a família de origem deverá participar de programas oficiais de orientação, de apoio e promoção social, auxiliando e incentivando a proximidade da criança ou do adolescente acolhido. 145 Comprovada a possibilidade de reintegração familiar, o responsável pelo programa de acolhimento familiar ou institucional deverá comunicar imediatamente à autoridade judiciária, que dará vista ao Ministério Público, pelo prazo de 5 (cinco) dias, que deverá decidir em igual prazo (§ 8º, art. 101, ECA). Uma vez constatada a absoluta inviabilidade de reintegração do menor à família de origem, depois de esgotados todos os esforços de reestruturação e reintegração familiar, será expedido relatório fundamentado ao Ministério Público, constando a descrição detalhada das providências tomadas e a precisa recomendação, assinada pelos técnicos da entidade ou responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar, para destituição do poder familiar, ou destituição de tutela e guarda (art. 9º, art. 101, ECA). Com o relatório em mãos, o Ministério Público terá o prazo de 30 (trinta) dias para entrar com a ação de destituição do poder familiar, a não ser que entenda ser preciso a realização de análises complementares ou outras providencias indispensáveis ao ajuizamento da ação (§10º, art. 101, ECA). Após a destituição do poder familiar a criança ou adolescente será considerada em condições de ser adotada (não deixando de se cogitar a possibilidade de sua colocação sob tutela ou guarda, inclusive em programa de acolhimento familiar). 3.6 PROGRAMAS DE AUXILIO ÀS GESTANTES OU MÃES QUE PRETENDEM ENTREGAR SEUS FILHOS A ADOÇÃO. O artigo 226, caput e o §§ 7º e 8º da Constituição Federal de 1988 determinam ser dever do Poder Público dar proteção especial à família, assegurando assistência a cada um dos seus integrantes, através da criação de mecanismos que impeçam a violência no âmbito de suas relações. Tal proteção abrange a assistência médica e jurídica, a orientação psicológica e o apoio emocional à gestante, assim como a orientação destinada ao planejamento familiar, conscientizando pais e mães quanto as suas responsabilidades. Nessa direção, a nova lei também prevê que o poder público deve dar atenção especial às grávidas e as mães que desejam entregar seus filhos à adoção (§ 5º, art. 8º, ECA). Busca-se assim, evitar que bebês e crianças sejam abandonados em qualquer lugar ou entregues a pessoas incapazes ou que não estejam inscritas no Cadastro Nacional da Adoção. A gestante ou mãe deverá ser obrigatoriamente encaminhada ao Juizado da Infância e da Juventude (§ único, art. 13, ECA) para que os candidatos já habilitados tenham acesso ao perfil desejado. Para a aplicação da referida norma, o Poder Público municipal, por intermédio dos setores competentes, deve fornecer programas ou serviços de assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós natal, até mesmo como forma de 146 prevenir ou reduzir as consequências do estado puerperal (§4º, art. 8º, ECA). Deve ainda dar assistência jurídica acerca das possibilidades de pleitear alimentos gravídicos, nos moldes do previsto na Lei 11.804/2008, e do ingresso com ação de investigação de paternidade, conforme prevê a Lei 8.560/1990, sem prejuízo de sua inserção em programas de apoio, proteção e promoção social, conforme previsto nos arts. 90, inc. I, 101, inc. IV e 129, inc. I, do ECA. Inicialmente, as gestantes e a mães farão um relato dos motivos que as levaram a entrega dos filhos à adoção. A partir daí o juiz avaliará a possibilidade ou não de que estes permaneçam junto à família biológica. A gestante deve ser encaminhada ao posto de saúde ou ao hospital mais próximo de sua residência para que realize o pré-natal e informe a data provável do parto. Após o nascimento da criança, se a genitora sustentar perante o juiz, o promotor de justiça e o defensor público a sua intenção de entregar o filho, o bebê será colocado para adoção e o juiz autorizará desde já apresentá-lo a uma das famílias previamente cadastradas. O consentimento da mãe ainda é retratável até a data da publicação da sentença constitutiva da adoção (§ 5º, art. 166, ECA). Caso a mãe decida permanecer com a criança, o juiz pode encaminhá-la para atendimento em programas sociais que deverão lhe dar apoio para criar o filho, como o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e o Conselho Tutelar, entre outros. 3.7 PROGRAMAS DE ORIENTAÇÃO ÀS FAMÍLIAS QUE PRETENDEM ADOTAR Para adotar uma criança ou um adolescente é preciso estar consciente e sentir um desejo profundo de ter filhos. Não se pode confundir com a vontade de simplesmente ajudar uma criança ou suprir uma carência da vida. A nova lei estabeleceu, em relação à adoção, a obrigatoriedade da participação dos candidatos à adoção em programas de orientação, direcionados ao estímulo à adoção tardia (crianças acima de três anos), inter-racial, de grupos de irmãos, de deficientes físicos ou mentais ou de criança e adolescentes portadores de alguma doença. Busca-se, por meio destes, colaborar para a redução dos preconceitos, paradigmas e barreiras psicológicas à adoção daqueles que mais precisam, assim como das complicações decorrentes dos seus encaminhamentos a candidatos que não estão preparados para assumi-los. 4 ANÁLISE CRÍTICA DA NOVA LEI DA ADOÇÃO - LEI N°12.010/09 A Lei nº 12.010/09 - Nova Lei da Adoção foi sancionada cheia de promessas inovadoras, visando solucionar o problema de milhares de crianças e 147 adolescentes que vivem em acolhimentos institucionais à espera de um lar. Nesse sentido, faz-se uma análise da referida lei buscando destacar as alterações que beneficiaram e dificultaram o processo de adoção no país, com o objetivo de se determinar a efetividade destas mudanças no incremento do número de adoções no Brasil. 4.1 ALTERAÇÕES QUE BENEFICIARAM O PROCESSO DE ADOÇÃO A princípio cumpre destacar algumas das alterações introduzidas pela referida lei que pensa-se terem facilitado e beneficiado o processo de adoção no nosso país. A nova lei não discriminando o estado civil dos adotantes, destes e a diferença de idade com o adotado trouxe avanços que, permitiram a ampliação das chances de adoção. Mais pessoas isso com certeza aumenta as possibilidades de encontrar novos menores carentes de cuidado e afeto. reduzindo a idade indiscutivelmente, podem adotar, é pais para tantos A não fixação do limite máximo de idade para o adotante também deve ser considerada como positiva, pois dá oportunidade de pessoas mais velhas adotarem. O magistrado certamente deverá agir com cautela, somente deferindo a adoção, se manifestar-se conveniente ao melhor interesse da criança e do adolescente. A fixação de prazos de, no máximo, dois anos para que crianças e adolescentes permaneçam institucionalizadas e de seis em seis meses para que a situação seja reavaliada judicialmente deve da mesma forma ser vista como uma inovação significativa. Essa nova regra possibilita que as crianças sejam adotadas ainda novas, facilitando o processo de adaptação, e impedindo até certo ponto o sentimento de rejeição tão freqüente nesses menores. Outro avanço diz respeito à nova regra que assegura ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica e o acesso ao processo de adoção. O legislador, respeitando a individualidade de cada um abriu a possibilidade para que a pessoa conheça, caso se interesse, a sua história de vida. Muito benéfica e importante é a ampliação da participação das equipes multidisciplinares em todas as fases do processo de adoção, inclusive no estágio de convivência. O acompanhamento por profissionais de várias áreas como assistentes sociais, psicólogos e pedagogos, técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência família, traz maior segurança aos adotandos, aos candidatos à adoção e às decisões do magistrado. Entende-se que o legislador acertou ao criar a regra que determina a obrigatoriedade da participação dos candidatos à adoção em programas de orientação, direcionados ao estímulo à adoção tardia, inter-racial, de grupos de irmãos, de deficientes físicos ou mentais ou de criança e adolescentes portadores de alguma doença. É de fundamental importância que se elimine tantos preconceitos no momento da escolha do perfil da criança ou do adolescente, pois muitas pessoas só aceitam adotar uma criança “perfeita” e acabam não dando chance a tantas outras de 148 ter uma família, de ter uma vida digna, alegre e feliz, conforme garante nossa Constituição. 4.2 ALTERAÇÕES QUE DIFICULTARAM O PROCESSO DE ADOÇÃO Considerando as opiniões de alguns doutrinadores, como Maria Berenice Dias, Eunice Ferreira Rodrigues Granato, Rolf Madaleno, Artur Marques da Silva Filho, que comentam e ressaltam os obstáculos criados pela nova lei, passa-se a fazer uma análise, atentando para os propósitos e praticidade da mesma diante da realidade brasileira. Apesar da intenção do legislador ter sido a de facilitar e aprimorar o sistema de adoções no país, acelerando o processo e reduzindo o tempo de crianças e adolescentes institucionalizados, acabou criando muitos obstáculos para sua concessão, tornando quase insignificantes as chances de transformar o sonho da adoção em realidade. Ao impor o cadastro nacional a lei busca ampliar e agilizar o encontro entre adotantes e adotados. No entanto, na prática, esse objetivo não é alcançado, como declara Eunice Ferreira Rodrigues Granato (2010, p. 83-84): [...] apesar do grande número de crianças abrigadas, é muito pequeno o número daquelas que já estão disponíveis para a adoção [...] Além do mais, como o cadastro não é e nem pode ser público, a ele tendo acesso somente as autoridades estaduais e federais em matéria de adoção, como diz o § 7º do art. 50 do ECA, sua eficácia se torna consideravelmente reduzida. Nesse contexto, a referida doutrinadora afirma ainda, que a burocracia do cadastro de adoção acaba produzindo um efeito contrário ao que o legislador teve em vista, pois impõe exigências excessivas. A pessoa, passando a integrar o cadastro, deve aguardar, uma vez que há várias outras na sua frente, e isso, muitas vezes pode demorar anos, quando, então, as condições do candidato já mudaram, ficando aquele cadastro sem nenhuma utilidade. Além disso, a lei somente admite que constem no cadastro crianças e adolescentes órfãos, que já não tem ninguém da família que as queiram, ou cujo processo de destituição do poder familiar já tenha finalizado. Ao exigir o cadastramento, o legislador não se atentou para a possibilidade de se gerar algumas injustiças irremediáveis, pois mesmo que a entrega tenha sido feita pela mãe, que deu o filho a quem confia e tem certa afetividade, crianças e adolescentes são retiradas das únicas pessoas com as quais conviveram e se sentem seguras e amadas, para entregar ao primeiro casal da lista, sem considerar que lhes estão submetendo a uma nova perda. Isso tudo porque a lei determina que quem não estiver cadastrado simplesmente não pode adotar. Estes cadastros deveriam servir para acelerar a adoção, e não para dificultar, uma vez que é o melhor interesse das crianças e adolescentes que está em jogo. Outro aspecto sobre o qual a Nova Lei da Adoção poderia ter dado mais atenção, diz respeito aos casos em que o cadastro não é necessário, ou seja, na adoção unilateral, quando houver parentesco entre adotando e adotante ou quando se 149 tratar de criança maior de três anos ou adolescente. Como ficam as crianças menores de três anos de idade, que convivem e consideram pessoas como pais por tempo suficiente para que se criem vínculos de afinidade e afetividade? Deveria o legislador ter respeitado o direito de essas crianças permanecerem com quem já lhes proporcionam atenção e carinho, e não entregá-las a primeira pessoa da lista como exige a lei, priorizando os adultos, e não as crianças, apenas pelo fato de estarem cadastrados. Outro grande obstáculo da lei trata-se das regras criadas para a gestante ou a mãe que deseja entregar os filhos à adoção. A intenção do legislador foi boa, uma vez que busca proteger a vida da criança que pode ser abandonada em qualquer lugar ou com qualquer pessoa em um momento de desespero da genitora. Entretanto, a lei impõe uma série de exigências que só dificultam o processo de adoção, transformando-o num caminho cada vez mais longo e demorado, e impedindo que a criança seja desde logo acolhida por família que esteja disponível e decidida para dele cuidar e dar afeto. Pode ocorrer que essa criança fique anos nas mãos de familiares que nem sempre estão dispostos e preparados para criá-los. Além disso, diante de tantos obstáculos, a lei acaba provocando e incentivando a adoção ilegal, quando a mãe escolhe entregar seu filho a um casal específico sem passar pelos trâmites legais. O acolhimento familiar que a princípio parece ser importante alternativa para se preservar o melhor interesse de crianças e adolescentes acaba se tornando outra forma de se criar maiores perdas, pois a família que acolhe a criança ou adolescente no seu lar não pode ser candidata à adoção. Assim, mesmo que se estabeleça um profundo vínculo de afeto com a criança, a lei não permite que ocorra a adoção nessas circunstâncias. Exige-se novamente que a pessoa ou casal esteja inscrita no Cadastro Nacional de Adoção. Quanto à manutenção da criança e do adolescente na família biológica, inicialmente, deve-se considerar que a determinação legal é correta, uma vez que crianças e adolescentes têm o direito constitucional de serem criados juntos de sua família num ambiente onde encontrem afeto e felicidade. O objetivo da nova lei foi certamente de preservar o adotado dos problemas causados pela quebra dos vínculos familiares e pela adoção por pessoas que não possuem o preparado necessário. Todavia, assim determinando, o legislador se esqueceu que em determinados casos esta pode ser a pior solução. Não se pode assegurar que a convivência com os parentes próximos seja mais benéfica do que a busca por uma nova família. Vários são os elementos que podem exercer influência nesta decisão. Deve-se questionar, por exemplo, se crianças ou adolescentes vítimas de maus tratos, rejeitados por pais alcoólatras poderão viver melhor com avós ou tios, igualmente agressivos e alcoólatras, ou com uma família nova, que esteja bem preparada para acolhê-los; ou ainda, se os filhos que perderam seus pais, viverão melhor com um parente próximo que nunca viram ou com uma família nova que lhe tenha afeto. Não se justifica da mesma forma, manter dois irmãos juntos aos genitores que comprovadamente os abusaram sexualmente. Logo, não existe uma garantia neste sentido. Ainda que esta postura pareça correta e necessária, em grande parte dos casos, demora muito e acaba dando oportunidade a novas situações de abusos e maus-tratos. Deve-se analisar ainda, o 150 quanto as diversas tentativas de convivência da criança e do adolescente com a família natural ou extensa poderá causar maiores sofrimentos para esses menores, e ainda deixá-los marcados como filhos de uma família que não os quis. E nestas idas e vindas às possibilidades de sucesso da adoção vão só diminuindo. Nesse sentido, Maria Berenice Dias em seu artigo “Adoção e o direito constitucional à convivência familiar”, declara: é absolutamente equivocado o prestígio que se empresta à família natural, quando se busca manter, a qualquer preço, o vínculo biológico, na vã tentativa de manter os filhos sob a guarda dos pais ou dos parentes que constituem a chamada família estendida. Essas infrutíferas tentativas fazem com que as crianças, ao serem rejeitados por seus pais e parentes, acumulem sucessivas perdas e terrível sentimento de abandono que trazem severas sequelas psicológicas. (Disponível em: <http://www.mariaberenice. com.br/pt/adocao-sem-preconceito.cont.> Acesso em: 20 out. 2012) Vale lembrar, que de acordo com a nova regulamentação, somente depois de vencida a tentativa de reintegração familiar é que se dará a ação de destituição do poder familiar, que geralmente transita em julgado depois de meses ou anos, e finalmente a inscrição no cadastro da adoção. Neste percurso a criança cresce e perde a possibilidade de ser logo adotada. Além dos prejuízos provenientes da privação do convívio familiar, a diminuição das chances de colocação em adoção com o passar da idade é uma realidade no contexto brasileiro. A nova lei dificulta ainda mais o processo de adoção quando passa a não admitir a dispensa do estágio de convivência, a não ser que o adotando esteja sob a tutela ou guarda legal do adotante. Nem mesmo a guarda de fato autoriza a dispensa. O deveria se considerar é se já existem vínculos de afetividade suficientes para que seja deferida a adoção. Outras questões também ocasionam controvérsias, como a adoção por casais homoafetivos e a adoção internacional. O legislador sendo omisso no que se refere à possibilidade de casais homossexuais adotarem, limitou de modo injustificado o instituto da adoção. Esta redução de chances de se viver em um ambiente familiar afronta os deveres de cuidado e de proteção que a Constituição impõe ao Estado e a sociedade. Alega-se preocupação em proteger a criança como desculpa para, em prejuízo dela mesma, fazer predominar mais uma das manifestações conservadoras e preconceituosas existentes na sociedade brasileira. Na verdade, deve-se perceber que essa forma de adoção precisa ser considerada como alternativa as situações de desamparo e abandono dos menores. Aqui entra em cena o melhor interesse para o adotando e os motivos legítimos dos adotantes. O que deve ser apreciado não é o fato de ser um casal homossexual, mas sim um casal que deseja ter um filho e que tem afeto suficiente para proporcionar ao adotado um novo lar, tirando-o do abandono ou da orfandade. Maria Berenice Dias, em seu artigo “Adoção sem preconceito”, também demonstra sua insatisfação diante da não tipificação da adoção homoafetiva. Expressa 151 que A Lei 12.010/09, chamada Lei Nacional da Adoção assume viés conservador ao deixar de admitir expressamente a adoção por famílias homoafetivas. Ainda que venham a doutrina e a jurisprudência de vanguarda reconhecendo a união estável homossexual e admitindo a adoção homoparental, vã é a tentativa de impedir que duas pessoas do mesmo sexo constituam uma família com prole. A postura, além de equivocada, é preconceituosa e discriminatória. Ao depois, comete duas ordens de inconstitucionalidade: cerceia aos parceiros do mesmo sexo o direito constitucional à família (art. 226) e não garante a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar (art. 227). (Disponível em: <http://www. mariaberenice.com.br/pt/adocao-sem-preconceito.cont.> Acesso em: 20 out. 2012) A excepcionalidade da adoção internacional também gera divergência. Mas, é importante verificar que lhe poderia ter sido conferido tratamento igual ao do brasileiro, naquilo que se refere ao superior interesse da criança e do adolescente. Há de se concordar com Rolf Madaleno (2009, p. 481) que assim se manifesta a respeito: Não existem razões para o preconceito da adoção internacional, quando prevalece o princípio dos melhores interesses da criança e do adolescente, e no confronto desses interesses deve ter maior peso a possibilidade de inseri-los em lar substitutivo, convivendo com família nacional ou estrangeira, porque o amor é universal, e usufruindo o adotado de afeto e de carinho parental, com acesso às oportunidades ímpares de integral formação e educação. Fundamenta-se a excepcionalidade da medida como forma de garantir à criança o direito à nacionalidade. A regra seria apreciável se os candidatos brasileiros à adoção não fossem tão exigentes e preconceituosos no que se refere às características do menor. De acordo com o Cadastro Nacional de Adoção, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça em outubro de 2012 (em anexo), existem atualmente no Brasil 28.362 pessoas dispostas a adotar e 5.426 crianças e adolescentes disponíveis para adoção. Mesmo diante dessa diferença, a demora na adoção persiste e a maioria desses menores permanece fora de um convívio familiar, passando mais tempo do que a lei determina em abrigos. Essa disparidade de números está mais ligada à seleção dos candidatos brasileiros sobre o tipo de crianças que eles querem adotar. A maioria quer apenas uma criança, branca, do sexo feminino, até três anos de idade e saudável. No entanto, esse não é o perfil da maior parte daqueles que estão disponíveis para adoção. Enquanto isso a maioria dos estrangeiros interessados na adoção de brasileiros se abstém de tanta exigência, e como dispõem, muitas vezes, de condições financeiras favoráveis, de maior acesso à saúde e à educação podem oferecer aos adotados uma formação privilegiada e integral. Assim, é do melhor interesse de crianças e adolescentes que não haja discriminação entre adotantes brasileiros e estrangeiros. Diante dessa realidade e de tantas exigências impostas pelo legislador, percebese a nova lei não tem alcançado seus objetivos, uma vez que a adoção se 152 transformou num grande processo, ainda mais burocrático. Adotar uma criança no Brasil se tornou extremamente desgastante, o que faz com que muitos interessados desistam no meio do processo ou, simplesmente, nem tentem ao se verificar as exigências do ordenamento. Outros, na tentativa de fugir do processo legal, se colocam numa situação de ilegalidade e risco, ou porque têm medo de esperar por muito tempo na fila da adoção, ou porque temem ser barrados por alguma exigência judicial. Para finalizar este estudo, apresenta-se uma pesquisa feita no município de Jataí -Goiás, a fim de se verificar se a Nova Lei da Adoção ajudou ou não a solucionar o problema das crianças e adolescentes ali institucionalizados, aumentando o número de adoções a partir da entrada em vigor da referida lei. De acordo com Ana Gabriela da Rocha Ramos, assistente administrativa do Doutor Sérgio Brito Teixeira e Silva, Juiz que responde pela Vara da Infância e Juventude do município, desde a edição da nova lei o número de adoções diminuiu consideravelmente. Apenas 01 (uma) criança no município foi adotada pelo novo sistema de cadastro. No entanto, no ano anterior a essa lei houve mais de 20 adoções. Esclarece ainda que, como a lei exige, quando crianças e adolescentes são encaminhadas por alguma denúncia para o Lar Transitório (acolhimento institucional da cidade), cerca de 97% vão para a reintegração familiar. Entretanto, uma média de 40% desses menores volta para instituição, ou porque continuam sendo vítima de maus tratos ou até mesmo porque são devolvidas pelos parentes que haviam ficado responsáveis por elas. Dessa forma, nota-se que a nova regra que prioriza a manutenção de crianças e adolescentes na família natural trouxe benefícios para alguns, mas para aqueles que não conseguem ser reintegrados se torna um grande obstáculo, pois muitas vezes, as tentativas exaustivas de reintegração familiar acabam prejudicando a escolha e a aproximação da família substituta, além de fazer com que sejam acumuladas sucessivas perdas e um terrível sentimento de rejeição que certamente acarretará em muitos e graves traumas psicológicos futuros. Assim, torna-se imprescindível que se analise cada caso concreto com muita cautela, de maneira que a legalidade formal não exceda os limites do bom senso. É preciso facilitar o processo de adoção, priorizando o bem estar da criança e do adolescente. Nada justifica tantos obstáculos, e tanta burocracia quando o assunto é o direito constitucional à convivência familiar e a felicidade, o que equivale a dizer, o direito de receber cuidado, atenção e amor. Se não for possível assegurar o bem-estar desses menores junto à família biológica, o melhor é colocá-los o quanto antes em uma família que lhe deseje e lhe tenha afeto. 153 CONCLUSÃO No decorrer desse trabalho pode-se perceber que as modificações advindas com a nova lei tiveram importantes propósitos. Buscou-se dar maior celeridade ao processo de adoção no país, bem como possibilitar o retorno mais rápido de crianças e adolescentes que estão em acolhimentos institucionais e familiares, priorizando a reintegração destes à família biológica, ou no caso de impossibilidade desta, a colocação em família substituta, sob as formas de adoção, tutela ou guarda. Como importante modificação, foram implantados princípios com a finalidade de orientar a intervenção estatal para aplicação de medidas protetivas a todas as crianças e adolescentes. Com base nesses princípios, notou-se que a nova lei pretendeu garantir a proteção integral da criança e do adolescente, demonstrando que há possibilidades de medidas diversas antes da adoção. Constatou-se que a adoção somente será aplicada quando vencidos todos os esforços para a manutenção da criança ou adolescente com sua família biológica. Essa foi a questão que mais provocou reflexão. Não se questionou que o ideal é que crianças e adolescentes cresçam e se desenvolvam junto a sua família de origem. No entanto, analisou-se que muitas vezes essa convivência pode se revelar muito mais prejudicial do que benéfica ao menor, melhor atendendo ao interesse da criança e do adolescente quando entregues aos cuidados de quem está preparado e sonha reconhecêlos como filhos. Criou-se o Cadastro Nacional de Adoção, com vistas a potencializar as possibilidades entre adotante e adotando. Entretanto, na prática ficou demonstrado que esse objetivo não é sempre alcançado, e que muitas vezes acaba produzindo um efeito contrário ao que o legislador esperava, pois impõe exigências excessivas, podendo gerar injustiças irremediáveis. O legislador sendo omisso em relação à adoção por casais homossexuais, impediu que grande parcela da sociedade que mantém vínculos afetivos estéreis realize o sonho da filiação. Revela assim uma atitude conservadora e preconceituosa, e coloca mais um obstáculo no processo de adoção, retirando o direito de milhares de crianças e adolescentes de serem criados por quem lhes tenha afeto. Ao criar tantas exigências para a adoção por pessoas estrangeiras, a nova lei também diminuiu consideravelmente as chances de crianças e adolescentes saírem do abandono e realizarem o sonho de viver num ambiente familiar. Ao final do presente estudo pode-se concluir que apesar da boa intenção do legislador em proteger o menor, ainda há muito que se fazer, já que a adoção se transformou em medida excepcional e as exigências da nova lei tendem a dificultar o processo de adoção no país. Além disso, constatou-se que um dos motivos que dificultam a retirada de tantas crianças e adolescentes dos acolhimentos institucionais é a preferência dos pretendentes brasileiros à adoção, que continua muito limitada e preconceituosa. Descartam-se crianças e adolescentes pela cor, sexo, idade, por serem portadoras 154 de necessidades especiais. Tal rejeição faz com que elas sejam condenadas a permanecerem nos abrigos, a continuarem excluídas da sociedade e a não concretizarem o direito de ter um lar e uma vida digna. Não se pode negar que a criação da Nova Lei da Adoção – Lei nº 12.010/2009 foi de importância fundamental. Mas, a verdade é que não alcançou um de seus principais propósitos, que é o de facilitar e desburocratizar o processo de adoção, proporcionando assim, uma nova família a um maior número de crianças e adolescentes possível, onde o afeto seja elemento essencial da criação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. BEZERRA, Élvio Cezar. Acolhimento institucional e acolhimento institucional são medidas protetivas. Disponível em: <http:// elviocesar. blogspot.com/2011/03/acolhimentoinstitucional-e-acolhimento.html>.Acesso em: 10 out. 2012. 02. CHAVES, Antônio. Adoção : adoção simples e adoção plena . V. 1, 4. ed. 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