UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO TESE DE DOUTORADO ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA RODRIGO DE SOUZA FILHO Rio de Janeiro Dezembro / 2006 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA Rodrigo de Souza Filho 2006 ii Souza Filho, Rodrigo de Estado, burocracia e patrimonialismo no desenvolvimento da administração pública brasileira. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Orientador: José Paulo Netto Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social/Programa de Pós-graduação em Serviço Social, 2006. Referências Bibliográficas: f. 387-397 1. Administração, a questão do Estado e o fenômeno burocrático: fundamentos da gestão pública. 2. Gênese da administração pública brasileira. 3. A dialética da administração pública brasileira sob hegemonia burguesa: burocracia e patrimonialismo da Era Vargas à Ditadura Militar. 4. Neoliberalismo e contra-reforma administrativa: burocracia monocrática e patrimonialismo em transformismo. À guisa de conclusão: referências para a resistência ao gerencialismo na administração pública. I Netto, José Paulo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Programa de Pós-graduação em Serviço Social. III. Estado, burocracia e patrimonialismo no desenvolvimento da administração pública brasileira. iii ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA Rodrigo de Souza Filho Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Orientador: Prof. Dr. José Paulo Netto. Rio de Janeiro Dezembro de 2006 iv ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA Rodrigo de Souza Filho Orientador: Professor Dr. José Paulo Netto Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Banca examinadora: ________________________________ Presidente, Prof. Dr. José Paulo Netto ______________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos Mazzeo ______________________________________ Profa. Dra. Elaine Behring ______________________________________ Prof. Livre Docente. Carlos Nelson Coutinho ______________________________________ Profa. Dra. Virgínia Fontes v Lucas, trabalho e disciplina são tarefas árduas e necessárias até mesmo para adultos. Porém, podem ser, também, muito prazerosas. Célia, espero que mais este produto de nossa cumplicidade possa servir de estímulo para continuarmos enfrentando juntos os desafios da vida. E a valsa continua a tocar... vi AGRADECIMENTOS Sem dúvida alguma, meu principal agradecimento direciona-se ao meu orientador, Prof. Dr. José Paulo Netto. Não é um agradecimento de praxe. José Paulo Netto é um orientador experiente, um verdadeiro “lobo-do-mar”, capaz de estimular e viabilizar a navegação autônoma do orientando, sempre atento em assegurar a manutenção do rumo, mesmo que o navegante enfrente mares revoltos e mareie demasiadamente. No caso desta “travessia doutoral”, se o rumo não foi mantido, a responsabilidade é inteiramente de um marinheiro que continua tendo muitas dificuldades em viajar de navio... No percurso realizado na companhia deste grande mestre (e educador), fui orientado não apenas no que diz respeito ao trabalho específico da tese. Com ele, descobri e redescobri práticas, valores e sentimentos inestimáveis à arte de ensinar/pesquisar – pérolas raras que certamente influenciarão o desenvolvimento de minha carreira como docente e pesquisador. Por isso, os agradecimentos a José Paulo Netto são necessariamente diversificados: obrigado pela competência, firmeza, apoio, acolhida, humor, disponibilidade e amizade dispensados no decorrer deste trabalho. Aos mestres Carlos Nelson Coutinho, José Maria Gomez e Yves Lesbaupin, referências fundamentais para minha formação acadêmica. À Profª. Ilda Lopes, responsável pela minha iniciação profissional e por me fazer entender a importância do Serviço Social. Aos amigos Cláudia, Rubens e Malu, pela leitura crítica e carinhosa que fizeram da tese, pelo incentivo permanente e pelo acolhimento que me deram nos momentos de fraqueza. À Leila, por ter me possibilitado enxergar com leveza e senso de humor as lacunas e os limites de minha formação intelectual. Ao amigo Glauco pela oportunidade de compartilhar a vida – alegrias, tristezas e possibilidades – e, principalmente por acreditar em mim. À torcida doméstica: mãe, irmãs e cunhado que mesmo distantes estiveram sempre presentes. À Fundação Escola de Serviço Público (FESP) por ter me propiciado coordenar o curso de Gerência de Programas Sociais, experiência que foi essencial para levantar elementos sobre meu objeto de estudo e para “testar” minhas reflexões e “descobertas”. À Escola de Serviço Social/UFRJ e à Faculdade de Serviço Social/UFJF, pelo afastamento parcial concedido. vii RESUMO Esta tese, a partir da reflexão teórica sobre a questão do Estado e o fenômeno burocrático, realizada à luz da tradição marxista, sustenta a idéia segundo a qual a sociedade capitalista, para desenvolver ações voltadas para a universalização e aprofundamento de direitos, requer duas condições básicas: Estado forte na área social e estrutura burocrática ampla como ordem administrativa. Neste sentido, analisou-se a origem e o desenvolvimento da administração pública brasileira, para compreender as razões históricas que levaram à imbricação da burocracia com o patrimonialismo na constituição da nossa ordem administrativa. A relação estabelecida entre setores não capitalistas e capitalistas da economia constituiu a base estrutural do pacto de dominação conservador que operou a industrialização brasileira e forjou a necessidade de uma ordem administrativa que combinasse elementos racional-legais (componente burocrático) e tradicionais (componente patrimonialista). Sobre esta base se processa, nos anos de 1990, a contra-reforma do Estado e, no seu bojo, a contra-reforma administrativa de cunho gerencialista. A análise foca o gerencialismo, em termos gerais, como uma proposta que não se refere a um modelo pós-burocrático, pois nem supera nem suprime a burocracia - pelo contrário: indica a manutenção da burocracia através de um processo que combina “burocracia monocrática”, para os centros de decisão, com “flexibilização burocrática”, via descentralização, para a periferia da ordem administrativa, possibilitando a incorporação de traços patrimonialistas na gestão pública. Na argumentação exposta nesta tese, a “administração pública gerencial” no Brasil, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, configura-se como uma programática que trata a burocracia de forma paradoxal – monocratização burocrática dos centros de decisão e enfraquecimento da burocracia para o conjunto das ações do Estado, principalmente as da área social –, combinando-a com elementos de um patrimonialismo em transformismo. PALAVRAS CHAVE: burocracia, patrimonialismo, administração, direitos. viii Résumé Cette thèse – écrite sous la tradiction marxiste et basée sur l’aspect théorique à propos de l’État et du phénomène bureucratique – soutient l’idée que la société capitaliste, afin de developper des actions tournées vers l’universalisation et l’approfondissement des droits, demande deux condictions fondamentales: un État fort en ce qui concerne l’aspect social et une large structure bureucratique en tant qu’ordre administratif. Dans ce sens, on a analisé l’origine et le developpment de l’administration publique brésilienne ayant pour objectif de comprendre les raisons historiques responsables pour l’imbrication de la bureucratie avec le patrimonialisme dans la constitution de notre ordre administratif. La relation établie entre les secteurs capitalistes et pas-capitalistes de l’économie constitue la base structurale du pacte conservateur de domination qui a opéré l’industrialisation brésilienne et engendré la nécessité d’un ordre administratif laquelle associe des éléments rationaux-légaux (élément bureucratique) et traditionnels (élément patrimonialiste). Sur cette base se passe, aux anées 90, la contre-reforme de l’État et la contre-reforme administrative de caractère gestionnaire. L’analyse met l’accent sur le gestionisme de façon générale comme une proposition qui n’a pas de relation avec un modèle pós-bureaucratique car elle ne surpasse pas la bureaucratie ni la supprime; au contraire, elle indique le maintien de la bureaucratie à travers un processus lequel ajoute “bureaucratie monocratique” (aux centres des décisions) et “flexibilité bureaucratique” (à la périphérie de l’ordre adniminstratif) ce qui permet l’incorporation des traits patrimonialistes dans une gestion publique. Dans notre argumentation, “l’administration publique de gestion” au Brésil, mise en jour par le Plan Directeur de la Reforme de l’Apparat de l’État, elle se structure comme une proposition qui traite la bureaucratie de manière paradoxale – la monocratisation bureaucratique des centres des décisions et l’affaiblissement de la bureaucratie pour l’ensemble des actions de l’État, surtout en ce qui concerne l’aspect social – en l’associant à des éléments d’un patrimonialisme en transformisme. Mots clés: bureaucratie, patrimonialisme, administration, droits. ix SUMÁRIO INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................13 CAPÍTULO I – ADMINISTRAÇÃO, A QUESTÃO DO ESTADO E O FENÔMENO BUROCRÁTICO: FUNDAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA ..................................................................................34 1.1. O conceito de administração em geral 1.2. O Estado em questão ..................................................................................34 ............................................................................................................38 1.3. O fenômeno burocrático: contradição, dominação e racionalidade ...............................65 CAPÍTULO II – GÊNESE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA .............................114 2.1. Patrimonialismo: da tradição ibérica à particularidade colonial brasileira .........................117 2.2. Consolidação do patrimonialismo e a origem burocrática da ordem administrativa brasileira: o período imperial e a primeira república ....................................................................135 CAPÍTULO III - A DIALÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA SOB HEGEMONIA BURGUESA: Burocracia e Patrimonialismo da Era Vargas à Ditadura Militar .................171 3.1. A inflexão de 1930: burocracia e patrimonialismo imbricados como elementos estruturais da ordem administrativa brasileira .............................................................................................171 3.2. A expansão da burocracia no contexto da irrupção do capitalismo monopolista ....210 3.3. Intensificação do insulamento burocrático como estratégia da consolidação da fase monopólica do capitalismo brasileiro ................................................................................226 CAPÍTULO IV - NEOLIBERALISMO E CONTRA-REFORMA ADMINISTRATIVA: BUROCRACIA MONOCRÁTICA E PATRIMONIALISMO EM TRANSFORMISMO ..........................................253 4.1. Antecedentes: anos 80, início dos 90 e a resistência ao modelo neoliberal ................ 253 4.2. Consolidação do neoliberalismo no Brasil e a reforma administrativa .............................289 V - À GISA DE CONCLUSÃO: REFERÊNCIAS PARA A RESISTÊNCIA AO GERENCIALISMO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..........................................................................................................351 5.1. As razões históricas da imbricação do patrimonialismo com a burocracia na administração pública brasileira: breve síntese .............................................................................................351 5.2. Referências para a constituição de uma administração pública democrática BIBLIOGRAFIA .................366 .......................................................................................................................387 x Naturalmente enfatizar a importância de uma perspectiva de longo prazo não significa que possamos ignorar “o aqui e agora”. Pelo contrário, a razão pela qual devemos nos interessar por um horizonte muito mais amplo que o habitual é para poder conceitualizar de maneira realista uma transição para uma ordem social diferente, a partir das determinações do presente. A perspectiva de longo prazo é necessária porque a meta real da transformação só pode estabelecer-se dentro de tal horizonte (...). Por outro lado, a compreensão das determinações objetivas e subjetivas do “aqui e agora” é igualmente importante. Pois a tarefa de instituir as mudanças necessárias se define já no presente, no sentido de que ao menos comece a realizar-se no “exatamente aqui e agora” (mesmo que o seja de maneira modesta, mas com plena consciência das limitações existentes e das dificuldades para sustentar a jornada em seu horizonte temporal mais distante) ou não chegaremos a parte alguma. Embora ninguém deva encorajar uma ação irresponsavelmente precipitada e prematura, não se pode excluir o risco de que seja prematura quando se empreende uma grande mudança estrutural mesmo que os indivíduos atuem da maneira mais responsável. A verdade é que não se poderá conseguir nada se ficarmos esperando as condições favoráveis e o momento adequado. As pessoas que advogam por uma grande mudança estrutural devem estar sempre conscientes das limitações que terão de enfrentar. Ao mesmo tempo, devem estar atentas para evitar que o peso de tais limitações se congele e se transforme na força paralisante de alguma “lei objetiva” fictícia que possa desviá-las de seus objetivos declarados” (Mészáros, 2003: 122). O gestor público de que se necessita hoje é um técnico altamente diferenciado, seja vis-à-vis os gestores do passado (...), seja vis-à-vis seus congêneres privados. (...) precisa ser técnico e político, isto é, operar como um agente de atividades gerais que possui conhecimentos específicos, como um planejador que trabalha “fora” dos escritórios, com os olhos no processo societal abrangente, em seus nexos contraditórios e explosivos; como um profissional cujo êxito depende de uma dinâmica que não é friamente controlável, mas é essencialmente política e, como tal, não se deixa isolar dos interesses e das paixões humanas. Seu raio de ação está colado aos problemas da democracia, da representação e da participação. Entre suas novas atribuições, aliás, encontra-se precisamente, em lugar de destaque, a de atuar como difusor de estímulos favoráveis à democratização, à transparência governamental, à cidadania, à redefinição das relações entre governantes e governados, Estado e sociedade civil (Nogueira, 1998: 189-190). xi INTRODUÇÃO Diferentemente de Oliveira (2003: 29) que, ao desenvolver seu célebre estudo sobre o processo de expansão do capitalismo no Brasil, não possuía como objetivo “avaliar a performance do sistema numa perspectiva ético-finalista de satisfação das necessidades da população”, a perspectiva da tese ora apresentada é a de contribuir com o debate sobre “gestão social”, entendendo-a como instrumento de universalização e aprofundamento de direitos, ou seja, pretendemos analisá-la como uma dimensão do processo de democratização voltada para a construção de uma sociedade efetivamente emancipada. No capitalismo, a possibilidade de existência de uma “gestão social” nessa perspectiva ético-finalista exige, no mínimo, uma estrutura que atenda à sociedade de forma global. Historicamente, o Estado moderno foi um dos mecanismos criados que possibilitou esse tipo de intervenção para o conjunto da população e, como instrumento do Estado, as políticas sociais apresentaram-se como o campo, por excelência, de viabilização dos interesses das classes trabalhadoras na ordem do capital. Por outro lado, o tema “gestão social” e suas variantes (gerência social, gerência de programas sociais, gestão de políticas sociais), problematizados na atualidade, inserem-se, de xii forma mais direta, nos debates referentes à alteração do “paradigma” da administração pública do “modelo burocrático-weberiano” para o “modelo gerencial”. Esse debate, por sua vez, encontra-se inserido no contexto de crise e reforma do Estado - portanto, num debate político (Diniz, 1997). Dessa forma, a crise do Estado só pode contextualizada no ser compreendida processo histórico se do desenvolvimento do Estado capitalista - no nosso caso, um Estado capitalista periférico – para, então, mudanças situá-la na conjuntura das societárias que vêm ocorrendo, principalmente, nestas últimas décadas. Nesse sentido, o processo histórico de desenvolvimento do Estado brasileiro e de sua ordem administrativa, no quadro da introdução e expansão das relações capitalistas, e o contexto atual de globalização, reestruturação produtiva e ideologia neoliberal1, que têm ditado as orientações políticas de enfrentamento do atual contexto, ganham dimensões de extrema importância para decifrar a conjuntura contemporânea da chamada “gestão social”. Sendo assim, consideramos a questão do Estado e o desenvolvimento da administração pública como as determinações fundamentais para o aprofundamento do debate sobre a chamada “gestão social”. Dessa forma, realizamos a investigação de que derivou esta tese centrando na análise da performance da administração pública e dos desafios e limites colocados ao longo da história 1 Sobre os temas globalização, reestruturação produtiva e neoliberalismo ver, respectivamente: Ianni (1993, 1995 e 1996); Antunes (1995 e 1999); e Anderson (1995) e Netto (1995). xiii brasileira para o seu desenvolvimento, a partir de uma perspectiva éticofinalista de satisfação das necessidades da população voltada para a superação da sociedade de classes. Nesse sentido, consideramos oportuno, sempre que possível, no limite do nosso objeto de estudo – administração pública –, inserir a reflexão sobre a administração pública de políticas sociais, concretamente formulações intervenção os explicitarmos rebatimentos numa do para esfera Estado e de nossas particular assim, da mais diretamente, articularmos com a discussão sobre gestão social. O destaque que será dado a essa esfera particular da administração pública também está vinculada ao fato dela ser a área predominante da intervenção profissional dos assistentes sociais. Por isso, além do objeto em si – administração pública – ser estritamente relacionado à gestão da área social e à intervenção profissional do assistente social, na medida em que o Estado é o grande implementador de ações sociais e o principal empregador de assistentes sociais, a articulação com a área das políticas sociais servirá de mediação mais próxima para o xiv interesse do serviço social e para a participação no debate sobre gestão social. Nesses fundamental, termos, antes de consideramos analisarmos a administração pública, determinar, em linhas gerais, a relação entre Capitalismo, Políticas Sociais e Democratização para explicitarmos, nas palavras de Fernandes, a “nossa maneira de ver as coisas” (Fernandes, 1981:14). Obviamente, a finalidade dessa reflexão, no limite desta introdução, não é desenvolver um debate crítico com a polêmica a respeito da democratização como estratégia de superação da ordem burguesa no seio da tradição marxista. Muito mais modesto, nosso objetivo restringe-se a explicitar a concepção que temos sobre o tema a partir das posições defendidas por Carlos Nelson Coutinho (1980) e José Paulo Netto (1990), assim mesmo sem a pretensão de fazer uma exegese dos textos ou explorar a polêmica entre os autores. Nosso enfoque visa apenas salientar as convergências entre os ensaístas para fundamentar nossa posição sobre a questão. A escolha desses autores, além da qualidade e importância de suas produções no campo das ciências sociais, foi também realizada devido a influência de ambos na formação e no debate do Serviço Social e, como trata-se de uma tese que pretende contribuir com o debate e a formação profissional, nada mais adequado do que a utilização dessas referências. Democratização e transição socialista xv Em primeiro lugar, cabe apontar a defesa que ambos fazem da democracia ou, mais precisamente, do processo de democratização, como estratégia para a construção do socialismo. De acordo com Coutinho (1980), a “renovação democrática do conjunto da vida nacional” não pode ser vista como um elemento tático, mas sim como “conteúdo estratégico” da revolução. Na mesma linha de argumentação, Netto (1990: 86) afirma que “a democracia (...) não é degradável ao estatuto de expediente tático e permutável no bojo do processo revolucionário”2 e a defende como valor instrumental estratégico. Apesar de não ser objetivo entrar na divergência existente entre os autores, cabe aqui mostrar o que considero central nessa polêmica. O ponto nodal de embate está na definição da qualidade do valor que a democracia possui. Ou seja, para Coutinho ela possui valor universal e para Netto ela se apresenta como um valor instrumental estratégico. Valor universal x valor instrumental estratégico - eis o cerne da polêmica. Mas o que significa cada uma dessas perspectivas? Resumidamente, a democracia (ou democratização, como posteriormente formula Coutinho, ao agregar a perspectiva lukacsiana que concebe a democracia como processo e não como estado – Coutinho, 1992: 20) como valor universal pressupõe o entendimento de que ela “contribui para explicitar e desenvolver os componentes essenciais do ser genérico do homem (...) em diferentes formações econômico-sociais” (Coutinho, 1992: 21). Ou seja: para o autor, a democracia é o instrumento que possibilita resolver determinadas situações oriundas das divergências existentes na sociedade (capitalista ou socialista) de forma mais positiva para o enriquecimento do gênero humano. 2 Destaque no original. xvi O autor, ao fazer tal assertiva, não está querendo dizer que a democracia socialista será a continuidade da democracia liberal; muito pelo contrário, Coutinho indica que “... impulsionado por condições econômico-sociais mais favoráveis, o processo de democratização poderá alcançar novos patamares no socialismo” (Coutinho, 1992: 22). Para o autor, na sociedade socialista teremos a criação de novos institutos democráticos e a mudança de função de alguns velhos institutos. No entanto, afirma que seria equivocado supor que esse novo patamar do processo de democratização só se manifestaria após a consolidação do socialismo, sinalizando que: Assim como as forças produtivas necessárias à criação de uma nova ordem econômico-social já começam a se desenvolver no interior da sociedade capitalista, também esses elementos de uma nova democracia – de uma democracia de massas – já se esboçam e tomam corpo, em oposição aos interesses burgueses e aos pressupostos teóricos do liberalismo clássico, no seio dos regimes políticos democráticos ainda sob hegemonia burguesa (Coutinho, 1992: 22-23). A ponderação central realizada por Netto a essa abordagem refere-se à qualidade universal que Coutinho atribui à democracia. Para o polemizador, a democracia no máximo pode ser considerada, numa perspectiva socialista, como objetivo-meio, pois o objetivo-fim do processo revolucionário é a criação de novas relações sociais que se desenvolverão no seio da sociedade sem classes cuja estrutura e conteúdo não se pode vislumbrar sem correr o risco de “lançar sobre a sociedade futura as hipotecas ideológicas do presente” (Netto, 1990: 86). Ou seja: para Netto, indicar a democracia como a melhor forma de resolução das xvii divergências de opiniões e interesses na sociedade socialista é antecipar e restringir possibilidades que uma outra ordem societária poderia desenvolver como prática política superior e mais enriquecedora que a democrática, para o gênero humano. No entanto, segundo Netto, a construção dessa sociedade que pode vir a oferecer um instrumento mais avançado que a democracia para o convívio humano só pode ser forjada a partir da própria democracia. Por isso, apoiado em Cerroni, o autor trabalhará com as categorias de democracia-método e democracia condição social. A democracia-método é entendida como “o conjunto de mecanismos institucionais que (...) permitem, por sobre a vigência de garantias individuais, a livre expressão de opiniões e opções políticas e sociais”. Por outro lado, a democracia condição-social refere-se a um “ordenamento societário em que todos, a par da livre expressão de opiniões e opções política e sociais, têm iguais chances de intervir ativa e efetivamente nas decisões que afetam a gestão da vida social”3 (Netto, 1990: 84-85). O autor explica que essa distinção efetivada sobre a democracia é fundamental pois evidencia as conexões existentes entre a estrutura política (método) e o ordenamento econômico (condição social); explicita o motivo da crítica à ordem democrática capitalista, na medida em que ela se restringe ao método; e determina que é a democracia-condição social que organiza uma nova ordem sóciopolítica que inaugura uma nova etapa do desenvolvimento da sociedade humana (Netto, 1990). Nesses termos, a democracia-método, possível no marco do capitalismo, é considerada como instrumento privilegiado e insubstituível para construir a 3 Itálico no original. xviii democracia condição social que só se efetiva a partir do momento de tomada do poder pela classe operária. Pois, só a partir desse estágio é possível “transformar a estrutura econômica de forma a criar as condições da democracia-condição social” (Netto, 1990: 95). Em outras palavras, apenas a partir de uma nova ordem societária é viável possibilitar chances iguais para que todos possam participar da gestão da vida social. Segundo o autor, no capitalismo isso não é possível4. Portanto, de acordo com Netto (1990), a ampliação de direitos civis e políticos no capitalismo é o caminho para o processo de tomada de poder da classe trabalhadora. A partir do estabelecimento desse novo marco societário, configurado pelo fato dos trabalhadores assumirem o poder político, num quadro de expansão de direitos civis e políticos, potencializa-se a incidência política sobre a estrutura econômica, visando adequá-la às exigências sociais qualitativamente novas, promovendo a socialização da economia o que, por conseguinte, facilitará a socialização da política, criando um movimento simultâneo e dialético de produção de novas relações sociais. Apesar de não ser explicitado pelo autor, consideramos que essa abordagem não impede de vislumbrarmos, no contexto do capitalismo, a possibilidade da ampliação de direitos sociais - através de políticas sociais - ser compreendida como um elemento que venha a facilitar, posteriormente à supressão da dominação burguesa, a construção da democracia-condição social. Ou seja, apesar da ampliação de direitos sociais não significar a efetivação da democracia-condição social, ou, de outra forma, apesar das “políticas que incidem no campo da distribuição não serem capazes de afetar substantivamente o modo de produção” (Netto, 4 Fica nítido que a proposição de Netto não se identifica, em nenhum aspecto, com a visão tática sobre a democracia. Apenas abre a possibilidade histórica de numa sociedade sem classes (sem exploração, onde as riquezas produzidas socialmente são usufruídas por todos e o poder esteja efetivamente socializado) poder gerar uma nova forma e conteúdo de gestão societária, radicalmente diferente daquilo que hoje vislumbramos como imaginável a partir das experiências democráticas existentes. xix 1994: 86), não quer dizer que essa ampliação não seja fundamental para a construção futura dessa dimensão democrática. Entendemos que Coutinho, por outro caminho, explicita mais claramente a relação entre a ampliação de direitos civis, políticos e sociais e a construção do socialismo, a partir do que ele vai denominar de reformismo-revolucionário. A partir da definição de democracia como sendo a “presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em conseqüência, no controle da vida social” (Coutinho, 1997: 145), e considerando a articulação existente entre democracia e cidadania em sua acepção moderna, temos que esse processo de ampliação de direitos pode levar a uma colisão com a lógica capitalista. Conforme salienta Coutinho, “a ampliação da cidadania - esse processo progressivo e permanente de construção dos direitos democráticos que caracteriza a modernidade - termina por se chocar com a lógica do capital”5 (Coutinho, 1997: 158). Para chegar a essa conclusão, o autor parte da compreensão de que um dos conceitos que melhor expressa a democracia é o conceito de cidadania, entendido como “a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos de apropriarem-se dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto histórico determinado” (Coutinho, 1997:146). Segundo o autor, a história da modernidade pode também ser entendida como a história das lutas sociais travadas pela ampliação dos direitos de cidadania em suas dimensões civil, política e social. Tais lutas enfrentaram forte reação dos setores capitalistas e foram vitórias significativas da classe trabalhadora que xx possibilitaram a constituição do chamado welfare state, a configuração sócio-estatal que expressou a garantia dos direitos de cidadania, apesar de limitada, pois subordinada à lógica do capitalismo e, portanto, não assegurando direito social à propriedade. Nesse sentido, tornar realidade direitos sociais, é, também, uma condição fundamental para o processo de ampliação da cidadania. A política social como instrumento de materialização dos direitos sociais assume, portanto, um caráter estratégico de luta social e política para ampliação da cidadania. De acordo com a interpretação de Coutinho da obra marxiana, há um entendimento de que Marx, ao referir-se à vitória dos trabalhadores em relação à regulação da jornada de trabalho, “fundamentou a legitimidade e a possibilidade concreta de obter transformações sociais substantivas através de reformas” (Coutinho, 1997: 158), na medida em que percebeu na vitória da classe trabalhadora a vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital. Portanto, conclui-se que o que limita o mercado em favor de direitos sociais universais fortalece a economia política do trabalho. Nesse sentido, ocorre do ponto de vista histórico-social uma mudança significativa no processo de luta social. A variação da correlação de forças, num cenário de Estado “ampliado”, característica dos Estados que desenvolvem-se na fase monopólica do capitalismo, permite que interesses das classes populares, por vezes limitem, ou até mesmo se sobreponham aos interesses capitalistas. Isso tornou-se possível, pois a sociedade burguesa a partir do final do século XIX e, principalmente no século XX, tornou-se extremamente complexa, constituindo um 5 Negrito no original. xxi espaço público entre a esfera econômica e estatal, onde os diversos projetos de sociedade buscam hegemonia e condições para suas respectivas implementações. Essa situação possibilita, hoje, o desenvolvimento de estratégia política de transformação à qual Coutinho denomina de “reformismo-revolucionário”. “Esta nova configuração do Estado abriu a possibilidade concreta de que a transformação radical da sociedade - a construção de um ordenamento socialista capaz de realizar plenamente a democracia e a cidadania - se efetue agora não mais através de uma revolução violenta, concentrada num curto lapso de tempo (...) Essa nova estratégia política poderia também ter o nome de “reformismo revolucionário”. Através da conquista permanente e cumulativa de novos espaços no interior da esfera pública, tanto na sociedade civil quanto no próprio Estado, tornou-se factível inverter progressivamente a correlação de forças, fazendo com que, no limite, a classe hegemônica já não seja mais a burguesia e, sim, ao contrário, o conjunto dos trabalhadores. Nesse novo paradigma de revolução, o socialismo é concebido não mais como a brusca irrupção do completamente novo, mas como um processo de radicalização da democracia e, consequentemente, de realização da cidadania” 6 (Coutinho, 1997: 164) . Nesse quadro de ações voltadas para a socialização da política e socialização da economia, a despeito das divergências entre os autores, o que cabe destacar, mais uma vez, é que ambos defendem o caminho democrático como sendo o caminho7 para a construção socialista. No entanto, convém explicitar que esse processo de democratização, que pode levar à hegemonia da classe trabalhadora e sua efetivação através da conquista do poder político, será realizado no campo das lutas de classes8. Ou seja, 6 Encontramos, neste momento, uma outra divergência entre os autores - apesar de não considerá-la central, merece ser destacada. O processo cumulativo de conquistas e radicalização da democracia, apontado por Coutinho, provoca, em determinado momento do processo histórico, uma mudança qualitativa que implica a efetivação da hegemonia da classe trabalhadora e, consequentemente, a ruptura com o capitalismo – lembre-se que segundo Coutinho a ampliação da cidadania choca-se com a lógica do capital. Esse processo de supressão da dominação política burguesa pode acontecer, segundo Netto (1990), revestido ou não de violência, dependendo das condições históricas e correlação de forças. O que não significa dizer que a estratégia revolucionária defendida seja o assalto frontal e violento para a tomada de poder político. Essa possibilidade de ocorrência de momentos violentos nesse processo de mudança de padrão societário não é explicitado claramente por Coutinho, dando margem a interpretações que conduzam ao entendimento de que o autor não cogita que possa ocorrer violência no movimento de construção socialista, dependendo das condições históricas existentes. 7 De acordo com Netto a democracia não é “(...) um instrumento alternativo (...), mas o único que, na sua operacionalização, antecipa um modo de comportamento social genérico que, no desenvolvimento do processo revolucionário, através de rupturas sucessivas, tenderá pela prática política organizada e direcionada pela teoria social, a permear todas as instâncias da vida social” (Netto, 1990: 86). Coutinho, na mesma direção, resume a questão citando o documento político para o 18º Congresso do Partido Comunista Italiano (1989), o qual afirma que “a democracia não é um caminho para o socialismo, mas sim o caminho do socialismo” (grifos em Coutinho, 1992: 22). 8 Como vimos na nota anterior, o processo de construção do socialismo, via democratização, implica um dado momento em que os elementos fundamentais da sociedade capitalista deixam de existir e a direção social (hegemonia) passa a ser da classe trabalhadora; ou seja: implica na transição socialista, identificada, segundo Netto (1990), pela tomada do poder de Estado pela xxii não se trata da construção de consensos com base numa suposta ação fundada na racionalidade interativa, tal qual formulou Habermas (1988). Refere-se, isso sim, a uma luta estratégica desenvolvida na arena da sociedade civil, em que disputa-se projetos políticos distintos, visando a construção da hegemonia da classe trabalhadora, conforme postulado por Gramsci9. Nesse sentido, entendemos que é na disputa política entre as classes fundamentais do capitalismo, em torno do poder de Estado, que localiza-se o cerne do processo de democratização. Essa disputa, em termos gerais, encontra sua expressão determinante nas lutas sociais desenvolvidas pelas organizações da sociedade civil vinculadas à classe trabalhadora, mediadas e totalizadas pelos partidos políticos do campo democrático-progressista, liderado por aqueles que tenham como proposição a construção socialista. Como conseqüência dessa compreensão, as intervenções sociais e políticas em outros espaços e que não tenham como objetivo imediato a luta pelo poder de Estado, apesar de não se apresentarem como determinação central do processo de democratização, configuram-se como ações fundamentais para a ampliação das condições que venham a contribuir para o fortalecimento e aprofundamento da democracia-método e para a construção da democraciacondição social, nos termos de Netto, ou, se quisermos, para a ampliação da cidadania na perspectiva reformista-revolucionária, na formulação de Coutinho. Portanto, considerando essas questões, cabe indicar como conclusão que a possibilidade de pensarmos a ampliação de direitos sociais, via políticas sociais, apesar de classe trabalhadora. Aqui encontramos mais uma divergência central entre os autores, na medida em que Coutinho não define objetivamente, em sua proposição reformista-revolucionária, o momento em que se dá a efetivação da hegemonia da classe trabalhadora. No entanto, para o objetivo do presente trabalho, o central não é precisar a questão da transição socialista - o problema da ruptura com a ordem capitalista (Netto, 1990: 87) - ou definir a partir de que momento passa a se efetivar tal transição. Para o tema proposto o que interessa é, por um lado, explicitar a importância do processo de democratização para a superação da ordem capitalista e construção do socialismo e, por outro lado, demonstrar que a gestão, como uma dimensão da intervenção social, pode ser pensada e implementada como um dos elementos que compõem o processo de democratização numa perspectiva de construção socialista. xxiii não se configurar como espaço central da luta por hegemonia, inserida no processo reformista-revolucionário ou como contribuição para a construção da democracia-condição social, implica, também, a possibilidade de concebermos a questão da administração de tais políticas no campo do fortalecimento do processo de democratização. Visto que, por um lado, a gestão de políticas sociais configura-se como o modus operandi para implementar os direitos sociais e, por outro lado, a socialização da economia, de acordo com Netto (1990: 94), depende da socialização da gestão pública para sua promoção. Sendo assim, consideramos que a experiência de administração pública no campo da distribuição (gestão social), além de contribuir com a expansão de direitos sociais, pode, também, favorecer a criação de estratégias e instrumentos para a gestão da produção no sentido geral e, dessa forma, ser um elemento fundamental para o processo de socialização da economia, a partir do desenvolvimento da socialização da política. A apresentação dessas possibilidades teóricas e suas respectivas particularidades é a tarefa para ser desenvolvida ao longo do trabalho. Capitalismo e Política Social: determinações fundamentais e a construção de uma nova sociedade As políticas sociais surgem no mundo capitalista, a partir da segunda revolução industrial (último quartel do século XIX), como estratégia de intervenção contínua, sistemática e estruturada do Estado na área social, conseqüência da refuncionalização sofrida pelo Estado para responder à fase monopólica do capitalismo. A fase conhecida como “capitalismo monopolista”10 caracteriza-se por ser uma etapa do capitalismo onde ocorre a tendência à monopolização dos mercados para obtenção de super-lucros. Cartéis, oligopólios, trustes e “acordos de 9 Sobre minha interpretação em relação às concepções de Habermas e Gramsci, ver Souza Filho (2001). 10 A abordagem desenvolvida neste texto sobre a relação política social e capitalismo monopolista tem como referência o livro xxiv cavalheiros” passam a ser as estratégias dos capitalistas para forçarem a elevação de preços e reduzirem os processos de concorrência, visando a produção de superlucros. Além dessa estratégia, esse período é marcado pela aumento da produtividade advindo das inovações tecnológicas do período, tanto em relação à maquinaria, quanto em relação à organização do trabalho. Esse arranjo econômico-produtivo provoca a médio prazo uma grave crise sócio-econômica, gerada pela combinação de desemprego, devido à economia de “trabalho vivo”, alta produção de bens, como conseqüência da introdução de novas tecnologias, e queda da taxa média de lucro. Essa situação transcorre num processo político em que a classe trabalhadora já possui um razoável patamar de organização, o que provoca amplas lutas sociais com o objetivo de superar os limites do capital, tendo, também, como perspectiva o atendimento de demandas dos trabalhadores. Nesse contexto, realiza-se a refuncionalização do Estado, que até então estruturava-se como “vigilante noturno”, resguardando vida, propriedade e liberdade. O Estado, a partir de então, passa a assumir funções na área econômica (investe em infra-estrutura, assume empresas com dificuldades, subsidia o setor produtivo...) e também na área social, através das políticas sociais. Entretanto, o formato e o conteúdo das políticas sociais que serão implementadas dependerão da correlação de forças sociais existentes em cada sociedade em determinado contexto histórico. Portanto, o nível de organização da classe trabalhadora, mediada pelo grau de desenvolvimento societal de cada nação, irá influenciar, sobremaneira, na constituição das políticas sociais e na configuração “Capitalismo Monopolista e Serviço Social” de José Paulo Netto (Netto, 1992). xxv estatal que será estruturada nas diversas nações. Resumindo esse processo, Netto explicita: ... o capitalismo monopolista pelas suas dinâmicas e contradições, cria condições tais que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação política através do jogo democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatos. E que este processo é todo ele tensionado, não só pelas exigências da ordem monopólica, mas pelos conflitos que esta faz dimanar em escala societária (Netto, 1992: 25). Portanto, no marco do capitalismo monopolista, as políticas sociais, a partir de seu objetivo imediato de garantir a reprodução da força de trabalho, atuam em determinadas expressões da “questão social”11 como forma de construir uma base ampla de legitimidade e consenso social, através do atendimento concreto de demandas e necessidades da classe trabalhadora. No entanto, elas encontram-se intrinsecamente relacionadas às políticas econômicas como estratégia de intervenção do Estado, visando a realização da lógica monopólica de maximização dos lucros pelo controle dos mercados. A forma e o conteúdo das políticas econômicas e sociais, por conseguinte, dependerão dos processos de lutas sociais concretas que produzirão a morfologia do Estado interventor e de sua política social, num determinado contexto histórico (Netto, 1992). Assim, se por um lado o Estado interventor e a política social apresentam-se como funcionais ao capital, por outro eles também atendem a interesses da classe trabalhadora. Esse movimento contraditório processa o limite e a possibilidade da ação política junto ao Estado, no aspecto geral, e à política social, especificamente, numa perspectiva de transformação da sociedade. Em outras palavras, o Estado, em sua dimensão de gestor de políticas sociais, não se configura como o centro das 11 Entendemos “questão social”, conforme destaca Iamamoto, como o “...conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana - o trabalho -, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos (...) A questão social expressa portanto disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal” (Iamamoto, 2001: 16-17). Para um mapeamento das determinações teóricas e históricas da categoria “questão social” no marco da tradição marxista, ver, xxvi lutas para a transformação da sociedade; no entanto, é um espaço importante para acumulação de conquistas dos trabalhadores, através da ampliação e aprofundamento de direitos. Portanto, para refletir sobre as organizações da sociedade civil e a execução de políticas sociais é necessário ter clareza dessa relação de limite e possibilidade estrutural. Um outro aspecto que expressa o limite e a possibilidade da intervenção junto à política social diz respeito à sua relação com a política econômica. Nesse sentido, para um enfrentamento das expressões da “questão social” que venha a atender de forma mais ampla os interesses da classe trabalhadora, exige-se uma política econômica também com este objetivo. Portanto, uma política econômica que reforça as desigualdades sociais, que não potencializa o enfrentamento das iniquidades sociais determina as (im)possibilidades de construção de uma política social voltada para os interesses das classes subalternas. Nesses termos, a as políticas sociais públicas, por mais que sejam orientadas para a efetivação de objetivos democráticos12, não viabilizarão um enfrentamento mais amplo das expressões da “questão social”. O que determina, por sua vez, a (im)possibilidade de debitarmos à administração das políticas públicas sociais os condicionantes necessários à reversão do quadro de “exclusão social”13, como se o problema fosse meramente de “reforma institucional”14. Assim posta, uma política social voltada para o atendimento das necessidades das classes subalternas exige uma política também, Netto (2001). 12 Para efeito desse trabalho estaremos qualificando como democrática a política social de “padrão institucional, redistributivista”. É o padrão que se orienta pelo universalismo de direitos, a ampliação e a garantia, por parte do Estado, da proteção e da promoção social, através da organicidade das políticas sociais de caráter público. 13 Para um mapeamento do debate sobre “exclusão social” ver Lesbaupin (2000). 14 Acredito ter deixado claro que a concepção ora apresentada procura se desvincular de qualquer vício “politicista” (Menezes, 1993), apesar de possuir como objeto central de análise à política e a questão institucional. xxvii econômica que privilegie as demandas pela universalização e aprofundamento de direitos, se se pretende que seu desenvolvimento obtenha êxitos na luta contra a pobreza. De outra forma, a política social enfrentará entraves estruturais vinculados à política econômica, não viabilizando a expansão de direitos sociais, apenas agindo independentemente compensatoriamente, de sua configuração institucional. Essas características mostram as articulações necessárias que devem existir entre a política social e a política econômica, no marco do capitalismo, para produzir ampliação e universalização de direitos. Nesses termos, e considerando a perspectiva da estratégia democrática como caminho para a construção socialista e a articulação existente entre democracia e cidadania em sua acepção moderna, temos que esse processo de alargamento da cidadania pode levar a uma colisão com a lógica capitalista15. Em outras palavras, a política social como instrumento de materialização dos direitos sociais assume, portanto, um caráter estratégico de luta social e política para ampliação da cidadania e o aprofundamento democrático, num movimento que, por um lado, fortalece a luta mediata anti-capitalista e, por 15 Como vimos na seção anterior, “a ampliação da cidadania - esse processo progressivo e permanente de construção dos direitos democráticos que caracteriza a modernidade - termina por se chocar com a lógica do capital” (Coutinho, 1997: 158). xxviii outro lado, possibilita o atendimento imediato das necessidades das classes subalternas16. Portanto, a perspectiva de construção de políticas sociais pode ter como orientação uma proposição “reformista-revolucionária”, nos termos de Coutinho, ou ser um passo para a constituição da “democracia-condição social”, nas palavras de Netto. Ou seja, as políticas sociais podem contribuir com o processo de ampliação da cidadania e aprofundamento da democracia, vinculado a um projeto de sociedade da classe trabalhadora. Entretanto, o centro de construção desse projeto e o núcleo da luta social que deve ser travada para a viabilização de um novo padrão societário não estão posicionados no campo das políticas sociais, conforme pôde ser verificado ao longo da primeira seção. Vale ressaltar, mais uma vez, após todas as considerações já levantadas, que isso não significa dizer que esse espaço não se configura como um local onde deva-se travar, também, a batalha pelo socialismo. Sintetizando, poderíamos dizer que a premissa que norteia nossa concepção considera que a sociedade capitalista nunca permitirá a “emancipação humana”; no entanto, a construção de uma sociedade emancipada deve pautar-se em melhoras imediatas para a população. Dessa forma, as políticas sociais podem ser efetivadas num duplo sentido: acumular mudanças para uma radical transformação societária e possibilitar melhorias imediatas na condição de vida das classes subalternas. A partir dessa “maneira de ver as coisas”, partimos da proposição de que no sistema capitalista, para atender à satisfação da população numa perspectiva de universalização e aprofundamento de direitos, necessita-se da intervenção do Estado para implementar 16 Navarro corrobora com essa concepção ao afirmar que: “As reformas gerais baseadas em políticas de redistribuição de recursos entre o capital e o trabalho fortalecem as classes trabalhadoras e as massas populares em sua luta diária contra o capital. Essas reformas guardam uma lógica que conflita com a lógica do capitalismo e com os interesses do capital” (Navarro, 1993: 195). xxix políticas sociais. A mediação entre a intervenção do Estado e a implementação de políticas sociais é realizada pela estrutura administrativa. Assim, a administração pública para implementar políticas públicas, no geral, e políticas sociais, especificamente, orientadas para a finalidade da universalização e aprofundamento de direitos, necessita estar estruturada de forma adequada para atingir o fim proposto. Dessa forma, a determinação em última instância para a efetivação de uma gestão social nos termos propostos está centrada na possibilidade (condições objetivas e subjetivas) de uma construção hegemônica na sociedade civil que conduza o Estado e sua ordem administrativa a desenvolver políticas públicas econômicas e sociais que venham a garantir a radicalização de direitos. Por outro lado, a determinação em primeira instância deve ser buscada na formação estatal constituída ao longo do desenvolvimento capitalista ordenamento administrativo e o correspondente para verificar nessa instância os elementos que obstam e aqueles que podem potencializar a organização estatal e administrativa no sentido da universalização de direitos. Obviamente, esse raciocínio deve ser desenvolvido à luz da xxx particularidade do desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Sendo assim, conhecer as particularidades do capitalismo brasileiro e sua relação com as condições sociais, políticas e culturais manifestadas nas lutas de classes e seu rebatimento na estruturação do Estado e de sua ordem administrativa nos leva a ter uma visão de totalidade sobre as tensões, contradições, desafios e possibilidades sobre a constituição, no Brasil, de uma “gestão social” voltada para a universalização e aprofundamento de direitos. E permite, ademais, que identifiquemos estratégias, mecanismos e instrumentos que possam contribuir com a luta imediata e mediata necessária para a efetivação dessa perspectiva, principalmente, aquelas estratégias e mecanismos possíveis de serem desenvolvidas pelos atuais gestores sociais. São essas questões que constituem o nosso objeto e que pretendemos abordar ao longo desta tese. E queremos destacar quatro aspectos, que, no trato desse objeto, parecemnos as contribuições centrais do presente estudo para o tema em questão. O primeiro refere-se à contribuição que procuramos oferecer ao debate teórico sobre as questões do Estado e do fenômeno burocrático, no xxxi quadro da sociedade capitalista. A escolha da problematização teórica sobre esses temas está relacionada ao fato da expansão do Estado e da burocracia (configuração hegemônica da ordem administrativa no capitalismo) estar inserida no processo de democratização e ampliação de direitos, principalmente sociais, ocorridos na sociedade capitalista, a partir do final do século XIX e, mais intensivamente, ao longo do século XX. Ao final de nossa reflexão teórica, defendemos a tese da impossibilidade de uma sociedade (atendimento de de classes expandir necessidades das direitos classes dominadas na sociedade capitalista, principalmente sociais), se não possuir Estado forte e burocracia estruturada. Desenvolvemos essa argumentação ao longo do Capítulo I. O segundo aspecto diz respeito à tentativa de precisarmos melhor a análise da constituição do Estado e da sua ordem administrativa no Brasil, no sentido de aprofundar a explicação, através da análise histórica, da reiterativa presença do patrimonialismo como traço de nossa administração pública. Dessa forma, identificamos a imbricação do patrimonialismo com a burocracia como resultado mediato da relação estabelecida entre setores não-capitalistas e capitalistas da economia; tal relação constituiu a xxxii base estrutural do pacto de dominação conservador que operou a industrialização brasileira e forjou a necessidade de uma ordem administrativa que combinasse elementos racional-legais (burocráticos) e tradicionais (patrimonialistas). Essa análise é detalhada nos Capítulos II e III. Em seguida, através das reflexões desenvolvidas e das conclusões alcançadas, realizamos a crítica da chamada “reforma gerencial da administração pública”. Analisamos o gerencialismo, em termos gerais, como uma proposta que não se refere a um modelo pós-burocrático, pois nem supera nem suprime a burocracia; pelo contrário, indica a manutenção da burocracia através de um processo que combina “burocracia monocrática”, para os centros de decisão, com “flexibilização burocrática”, via descentralização, para a periferia da ordem administrativa, possibilitando a incorporação de traços patrimonialistas na gestão pública. Nesse contexto, a “administração pública gerencial” no Brasil, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, configura-se como uma programática que trata a burocracia de forma paradoxal centros – de monocratização decisão e burocrática enfraquecimento dos da burocracia para o conjunto das ações do Estado, xxxiii principalmente as da área social –, combinando-a com elementos transformismo. de um patrimonialismo Transformismo consistente em na conversão da lógica de fidelidade existente entre o senhor e o servidor baseada na tradição, em uma lógica fundada em base racional-legal, tipicamente burocrática. A fundamentação dessa análise encontra-se no Capítulo IV, que apresenta o terceiro aspecto que julgamos central nesta tese. Por fim, à guisa de conclusão, apontamos as dimensões que consideramos fundamentais para a implementação de uma gestão pública que se oriente para o fortalecimento do processo de universalização e aprofundamento de direitos no marco do capitalismo, de forma imediata, mas que colabore com o movimento de superação de tal ordem numa perpectiva estratégica. Então, voltamos ao ponto de partida e levantamos os elementos que devem configurar o perfil de um gestor público e sua organização institucional, de modo a fortalecer o Estado, em sua intervenção social, e estruturar uma burocracia permeada pelo controle público e social. Esta tese insere-se no marco da teoria social crítica e busca, a partir das reflexões acumuladas sobre a realidade da sociedade capitalista contemporânea e seu desenvolvimento no Brasil, indicar pistas para xxxiv solucionar alguns dilemas relativos à estruturação de nossa administração pública. Essa orientação advém do entendimento de que sendo o Serviço Social uma profissão eminentemente interventiva, a tarefa propositiva e normativa deve estar, também, no campo das preocupações acadêmicas. E dela decorre que, no campo do Serviço Social, é necessário um aprofundamento teórico-prático que interrogue criticamente a realidade e que produza, também, sugestões para uma conseqüente intervenção na sociedade. A produção global na área deve atender a essa perspectiva, o que não significa dizer que toda a produção da área deve tratar da análise crítica da realidade e de indicações propositivas. xxxv CAPÍTULO I – ADMINISTRAÇÃO, A QUESTÃO DO ESTADO E O FENÔMENO BUROCRÁTICO: FUNDAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA 1.1. O conceito de administração em geral O educador Vitor Henrique Paro nos fornece uma chave heurística que consideramos precisa para a análise do fenômeno administrativo. Segundo o autor, o primeiro passo a dar para realizar a análise da administração é distinguir o conceito em geral da administração de sua manifestação historicamente determinada na sociedade capitalista. Nesse sentido, a administração em geral é conceitualizada como “utilização racional de recursos para realização de fins determinados” (Paro, 2000: 18). Esse conceito abstrato da administração permite desvelar a conexão existente entre os fins e os meios da administração e o papel da razão como elemento de mediação dessa conexão. Dessa forma, identifica que a administração refere-se à organização de recursos (meios) para atingir uma dada finalidade; ou seja: a finalidade determina os recursos que serão utilizados e a racionalidade envolvida na ação. Essa relação dialética estabelecida entre meio-racionalidade-fim apresenta as diferentes articulações que podem ocorrer: fim-meio, racionalidade-fim e racionalidade-meio. Em outras palavras, para uma perspectiva/finalidade democrática e emancipatória não podemos utilizar meios e racionalidade instrumentais17. Isso significa dizer que, embora seja possível uma administração democrática, é necessário que suas dimensões sejam depuradas ao máximo, para que a incorporação de uma racionalidade instrumental na administração e/ou a 17 Para o debate sobre racionalidade e sua relação com as escolhas de estratégia e os meios de intervenção, ver Guerra (1995) e Santos (2006). xxxvi utilização de recursos/meios comprometidos com as relações de dominação sejam evitadas. Cabe, então, detalharmos um pouco mais o conceito de administração desenvolvido por Paro. Para reafirmar a possibilidade e a necessidade de situar a administração numa perspectiva democrática e emancipatória e, por conseguinte, voltada para a transformação da sociedade, Paro mostra, por um lado, que a administração é uma atividade exclusivamente humana, pois teleológica. Por outro lado, a administração é necessária porque, na medida em que o homem propõe-se a realizar objetivos, precisa utilizar racionalmente os meios de que dispõe para efetivá-los. A utilização racional dos meios/recursos pressupõe, segundo o autor, duas dimensões: a adequação dos recursos aos fins e o emprego econômico dos recursos. Ou seja, dentre os recursos existentes deve-se utilizar aqueles que mais se prestam para atingir os fins determinados, de forma que se consuma o menor tempo possível e o dispêndio dos recursos seja mínimo. A razão assim considerada é meramente instrumental. Entretanto, como veremos adiante18 e de forma mais detalhada, Paro não se limita a tratar a razão apenas através de sua dimensão instrumental. O autor incorpora a questão da emancipação na sua forma de trabalhar a razão. Sendo assim, a razão não se limita à utilização dos recursos, mas implica, também, na racionalidade dos fins. A finalidade racional é aquela destinada à liberdade humana, é aquela, nas palavras do autor, que coloca “como questão fundamental a busca de objetivos que atendam aos interesses de toda a sociedade e não de grupos privilegiados dentro dela” (Paro, 2000: 57). Portanto, os fins - a dimensão ético-política da administração, sua orientação e seus princípios – devem ser analisados do ponto de vista racional, em seu sentido 18 Ver item 1.3 xxxvii emancipatório, enquanto os recursos19 devem passar pelo crivo da racionalidade instrumental. Para a nossa questão - administração pública -, a análise dos fins remete à avaliação da orientação da política pública, seus princípios e diretrizes, enquanto a crítica da utilização dos recursos refere-se aos arranjos institucionais e aos procedimentos gerenciais operacionalizados para atingir as finalidades determinadas. Essa concepção busca articular a dimensão política (finalidade) com a dimensão técnica (utilização racional dos recursos) da administração, evitando a cisão entre o político e o técnico. Dessa maneira, rejeita-se a forma tradicional de conceber a administração apenas pelo foco da utilização dos recursos, pois administrar é agir racionalmente para definir fins e utilizar recursos. Assim, a abordagem da administração em sua expressão geral nos permite explicitar dimensões que viabilizam uma análise crítica do fenômeno administrativo, sem perdermos de vista a importância dessa atividade para a sociedade. Como o próprio Paro assinala, é necessário evitar tanto a posição daqueles que identificam a administração capitalista/empresarial como algo de valor universal, quanto combater os radicais ingênuos que identificam a administração como instrumento capitalista de dominação e, portanto, não enxergam as reais determinações da dominação vigente na sociedade. Ambas as abordagens não contribuem para a concepção de uma administração pública numa perspectiva democrática, pois ou reiteram as relações de dominação presentes na sociedade - como ocorre com a abordagem que pretende dar um caráter de universalidade à administração empresarial, reproduzindo, dessa forma, o status quo -, ou negam a administração – posição assumida pela abordagem que não considera as determinações sociais e 19 Segundo Paro os recursos “envolvem, por um lado, elementos materiais e conceituais que o homem coloca entre si e a natureza para dominá-la em seu proveito; por outro, os esforços dispendidos pelos homens e que precisam ser coordenados xxxviii econômicas da administração empresarial/capitalista e imputa à própria administração (e não às relações sociais presentes na sociedade) o caráter de dominação (Paro, 2000). Nessa ótica, o tema administração ganha substância para além de modismos e vinculações estreitas e exclusivistas da questão à ordem burguesa. Ou seja, nas palavras do autor: Captada em sua [da administração] especificidade (ou seja, sua forma geral, aquela que é comum a todo o tipo de estrutura social), é possível identificar quais os elementos que, em sua existência concreta, se devem às determinações históricas próprias de um dado modo de produção. Numa perspectiva de transformação social, é possível além disso, raciocinar em termos dos elementos dos quais esta forma, historicamente determinada numa sociedade de classes, precisa ser depurada para que, numa sociedade mais avançada, se possa pô-la a serviço de propósitos não autoritários (Paro,2000: 18). A concepção apresentada evita tanto a visão “tecnicista” da administração quanto a “politicista”, pois pressupõe uma perspectiva que concebe a administração como uma relação entre a dimensão ético-política e técnico-operativa. Nesse caso, contribui seja para evitarmos a noção que identifica gestão com a dimensão técnica (e que, portanto, não deve confundir-se com a política) seja com aquela que considera que resolvida a questão ético-política a dimensão técnico-operativa resolve-se naturalmente. Assim, o tratamento do tema referente à gestão deve ser realizado inserindoo no campo da política como questão pública, resgatando a articulação dialética entre política/finalidades e utilização de recursos/meios/técnica. A conjuntura neoliberal que privilegia as análises tecnicistas, partindo do entendimento que a finalidade da administração está dada (expansão da sociedade capitalista), não pode ser argumento para que não tratemos da questão da gestão/administração; com vistas a um propósito comum” (Paro, 2000: 20). xxxix muito pelo contrário, devemos enfrentar essa disputa revelando as conexões entre fins e meios de qualquer expressão concreta da administração. Em conseqüência, para avançarmos no debate sobre a fundamentação da administração pública, numa perspectiva democrática, a partir dessa concepção geral de administração, precisamos situá-la no contexto do Estado capitalista e explorar sua forma administrativa concreta de expressão fenomênica, qual seja: a burocracia. Só assim podemos pensar numa perspectiva de administração pública que supere a atual configuração administrativa da sociedade, realizada através do Estado. 1.2. O Estado em questão Tratar a questão do Estado e, posteriormente, refletir sobre o fenômeno burocrático requer retomar criticamente os fundamentos do Estado moderno no marco do desenvolvimento e consolidação da sociedade capitalista. Nesse sentido, torna-se fundamental, por um lado, resgatar a concepção hegeliana de Estado e burocracia, na medida em que foi esse clássico quem primeiro formulou teoricamente a descrição do Estado burguês moderno. Por outro lado, é essencial retomar a análise weberiana sobre a burocracia e o desenvolvimento do capitalismo, pois ela nos possibilita identificar categorias imprescindíveis para decodificarmos os fenômenos em pauta. Esse movimento de resgate da formulação desses autores sobre o tema será tratado a partir de produções marxianas e marxistas, visando o aprofundamento crítico-dialético necessário para estruturar a base dos fundamentos teórico-políticos da administração pública, a partir da concepção geral de administração apresentada anteriormente. xl A partir do enquadramento enunciado acima, um primeiro aspecto a ser destacado na produção hegeliana20, diz respeito ao fato do filósofo alemão - por dominar economia política - compreender as desigualdades existentes na sociedade capitalista. Ou seja, Hegel considera o modo de produção capitalista, como veremos adiante - independentemente se sua visão sobre a sociedade capitalista é positiva ou negativa -, um modo de produção anárquico, devasso e irracional do ponto de vista da produção e distribuição das mercadorias e da construção do interesse comum. De acordo com Marcuse, Hegel reafirma o caráter negativo do sistema econômico na medida em que “(...) a própria natureza da estrutura econômica impede o estabelecimento de um autêntico interesse comum” (Marcuse 1978: 67). No entanto, apesar da estrutura econômica fundada na propriedade privada impedir a construção do interesse comum, Hegel não vê possibilidade de supressão dessa ordem na medida que ela expressa a realização da liberdade. Para o filósofo alemão, o homem tem o direito de manifestar a sua vontade em qualquer coisa; essa manifestação da vontade humana torna a coisa desejada um fim substancial que não existe “em si”, mas passa a existir na medida em que a coisa transforma-se na realização da vontade. A realização da vontade sobre a coisa efetiva-se através da apropriação. O movimento que leva o sujeito a expressar sua vontade através da apropriação da coisa para satisfazer suas necessidades, desejos e livre-arbítrio é o movimento que permite ao homem tornar-se objetivo para ele próprio. Em outras palavras, é através da apropriação que o homem objetiva-se como vontade livre. 20 Utilizaremos como referência central para tratarmos a concepção de sociedade em Hegel sua obra “Princípios da Filosofia do Direito” (Hegel, 1997). xli Nesse sentido, como afirma Hegel, a liberdade tem na propriedade a sua primeira existência, o seu fim essencial para si. Apesar de que, do ponto de vista da necessidade, ela (propriedade) aparece, apenas, como meio e não como fim. A propriedade é a base da liberdade. Como ressalta Marcuse em sua análise, para Hegel “o indivíduo só é livre quando se conhece como livre, e só atinge este conhecimento quando põe a prova sua liberdade. Essa prova pode consistir na demonstração do seu poder sobre os objetos que deseja, deles se apropriando” (Marcuse, 1978: 181). Portanto, uma sociedade que suprime a propriedade privada é injusta com os indivíduos, pois não lhes permite exercer a liberdade. A concepção de liberdade vinculada à propriedade leva Hegel a estruturar o seu sistema buscando garantir a manutenção da propriedade privada. Essa perspectiva é um componente central da resignação hegeliana com a realidade de sua época, na medida em que nitidamente assume o ponto de vista burguês e não vislumbra alternativa para a ordem do capital. Por outro lado, o autor alemão, ao entender que a vontade, em sua verdade, é o Bem – isto é, a essência da vontade em sua subjetividade e universalidade (Hegel, 1997: 115), na medida em que o Bem é a substância universal da liberdade, a liberdade realizada como unidade do conceito da vontade e da vontade particular (idem: 114) -, apresenta uma outra dimensão da vontade que exige outras condições para a realização da liberdade, não sendo suficiente, portanto, sua manifestação através da propriedade privada. Dessa forma, afirma Hegel: Por isso o Bem, que é necessidade de se realizar por intermédio da vontade particular e, ao mesmo tempo, substância dessa vontade, tem o direito absoluto em face do direito abstrato da propriedade e dos fins particulares do bem-estar. Cada momento destes, separado do Bem, só tem valor quando lhe é conforme e subordinado” (ibdem: 115). xlii Podemos dizer que Hegel, assim, estabelece uma ordem social em que a propriedade e os fins particulares de bem-estar devem estar subordinados à dimensão universal do Bem. Ou seja, dialeticamente, a primeira expressão da liberdade que é a realização da vontade particular através da propriedade está preservada sob a condição de existir na sociedade a expressão da vontade em sua universalidade que é o Bem e, dessa forma, ser possível a realização da liberdade em sua totalidade. Em outras palavras, a liberdade está vinculada simultaneamente à propriedade - condição básica para o indivíduo objetivar sua liberdade através da vontade - e ao Bem - a liberdade realizada através da unidade do conceito da vontade com a vontade particular. Portanto, diferentemente de Rousseau, para Hegel não se pode fundar a questão da vontade apenas num postulado moral que parte do indivíduo. Para o filósofo alemão, na medida em que a vontade geral é o racional em si e para si da vontade, que pode ser de conhecimento ou não do indivíduo que pode aceitá-la ou não pelo seu livre-arbítrio, ela estrutura-se de forma objetiva. Ou seja, a vontade individual, subjetividade da liberdade, “apenas contém um momento unilateral da idéia de vontade racional” (Hegel, 1997: 219). Conforme esclarece Coutinho: ... [Para Hegel] a vontade geral tem uma base objetiva, ou seja, sofre um processo de determinações histórico-genéticas que transcende a ação dos indivíduos e seu projetos volitivos singulares. Enquanto componente essencial do mundo ético, a vontade geral não resulta de um postulado moral, não é mero resultado da ação ‘virtuosa’ dos indivíduos ouvindo a ‘voz própria da consciência’, como pensava Jean-Jacques, mas se apóia numa comunidade objetiva de interesses, que o movimento da realidade (que Hegel preferia chamar de ‘razão’ ou de ‘Espírito’) produz e impõe aos indivíduos, independentemente da consciência e do desejos deles, ainda que o faça ‘astuciosamente’, ou seja, valendo-se das ‘paixões’ singulares dos próprios indivíduos (Coutinho: 1998: 63). A partir dessa concepção de liberdade, que implica a expressão da vontade em suas dimensões particular e universal, o autor da Filosofia do Direito desenvolverá, na terceira parte dessa obra, sua concepção de Moralidade Objetiva xliii como o “conceito de liberdade que se tornou mundo real” (Hegel, 1997: 141). Ou seja, a Moralidade Objetiva é a Idéia de liberdade, portanto o conceito de liberdade realizado concretamente. Segundo o filósofo alemão, esse conceito realiza-se na sociedade através de três momentos: família, sociedade civil e Estado. Para Hegel, como bem sinaliza Marcuse, “toda a terceira parte da Filosofia do Direito pressupõe que não exista nenhuma instituição objetiva que não esteja fundada na vontade livre do sujeito, e nenhuma liberdade subjetiva que não seja visível na ordem social objetiva” (Marcuse, 1988: 188). A partir desse pressuposto, ao discutir a sociedade civil, principalmente na esfera do sistema de necessidades21, Hegel analisa as desigualdades existentes na sociedade capitalista. Para o autor, a sociedade civil é uma esfera onde predominam os interesses particulares, apesar de encontrarmos, também, espaços de constituição da universalidade e a formação do interesse comum. Porém, esses espaços presentes na sociedade civil são mediações para o estabelecimento do universal na sociedade, realizado pelo Estado. Ou seja, não são dimensões com força para instituir o universal na sociedade, são apenas expressões do universal (jurisdição e administração) na sociedade civil - penetração do Estado na sociedade civil - e expressão de elementos universais da sociedade civil (corporações) - presença da sociedade civil na constituição do Estado - que realizam a passagem entre o particular e o universal, entre a sociedade civil e o Estado, evitando, dessa forma, a dualidade desses momentos. A sociedade civil, portanto, a despeito de seus momentos universalizantes, configura-se como o espaço para o desenvolvimento e expansão da particularidade (idem: 168), através da satisfação das exigências, livre-arbítrio contingente e 21 A sociedade civil em Hegel é formada por três momentos: sistema de necessidades, jurisdição e administração e corporação. xliv preferência subjetiva, via propriedade e/ou trabalho, e, dessa forma, apresenta-se como “o espetáculo da devassidão bem como da corrupção e da miséria” (idem: 168). Pois, conforme o autor, a propriedade é racional, mas a quantidade e natureza da posse é contingente, o que leva a sociedade civil expressar a situação de desigualdade. Em outras palavras, a propriedade, primeira existência da liberdade, decorre da capacidade individual de satisfazer suas exigências, livre-arbítrio e desejos, ou seja, a quantidade e a natureza da propriedade de um indivíduo é contingencial. Portanto, a desigualdade é um elemento constitutivo da sociedade civil, na medida em que cada indivíduo possui uma determinada capacidade a partir de determinada contingência. Sendo assim, no momento da sociedade onde o vetor predominante é a expansão da particularidade, via constituição de propriedade e desenvolvimento do trabalho, forja-se um movimento de acúmulo de riqueza, por um lado, e miséria, por outro lado. Esse quadro é mais nítido no sistema das necessidades, onde o particular apresenta-se como o oposto ao que em geral é determinado à universalidade da vontade (idem: 173) - diferentemente do que ocorre na jurisdição e na administração e corporação, que são os outros momentos que compõem a sociedade civil, onde o particular apresenta-se como passagem para o universal e não como sua oposição. Nas palavras do autor: A possibilidade de participação na riqueza universal, ou riqueza particular, está desde logo condicionada por uma base imediata e adequada (o capital); está depois condicionada pela aptidão e também pelas circunstâncias contingentes em cuja diversidade está a origem das diferenças de desenvolvimento de dons corporais e espirituais já por natureza desiguais. Neste domínio da particularidade, tal diversidade verifica-se em todos os sentidos e em todos os graus e associada a todas as causas contingentes e arbitrárias que porventura surjam. Consequência necessária é a desigualdade das fortunas e das aptidões individuais (idem: 179). xlv Isso não quer dizer que Hegel considera que os indivíduos devam ser entregues à sua própria sorte. Para o autor da Filosofia do Direito, as contingências físicas e ligadas a condições exteriores, assim como a vontade subjetiva, podem levar os indivíduos à pobreza e à miséria (idem: 206). Essa situação exige que se organize ajuda aos indivíduos necessitados, suprimindo as contingências que inviabilizam o bem-estar de cada particular. Pois, como afirma o filósofo, “o bemestar deve ser tratado como um direito e realizado como tal” (idem: 203). Portanto, a concepção hegeliana reconhece, por um lado, as desigualdades existentes na sociedade e a produção de pobreza e miséria, como resultado da satisfação das carências por meio da propriedade - primeira existência da liberdade e do trabalho. Por outro lado, na medida em que o Bem é a liberdade em sua universalidade que deve estar presente em cada particular, há necessidade de estabelecer mecanismos na sociedade que propiciem o bem-estar particular. Sendo assim, o bem-estar particular, como direito, deve ser viabilizado sem comprometer a ordem da propriedade privada, através de instituições que salvaguardem o momento universal presente na sociedade civil. Para Hegel, essa é a função da “administração”: A previdência administrativa começa por realizar e salvaguardar o que há de universal na particularidade da sociedade civil, sob a forma de ordem exterior e de instituições destinadas a proteger e assegurar aquelas infinidades de fins e interesses particulares que, efetivamente, no universal se alicerçam (idem: 211). É interessante notar que, dessa forma, Hegel aceita o ideal liberal da propriedade privada e, ao mesmo tempo, reivindica uma estrutura universal de intervenção na sociedade para proporcionar o bem-estar particular, numa perspectiva de interesse comum. A administração, apesar de compor a sociedade civil, busca garantir o bemestar particular como condição para o Bem universal, ou seja, é um momento da xlvi sociedade civil que estabelece a mediação com a estrutura universal do Estado. Dessa mesma forma, a jurisdição é o momento da sociedade civil que prima por manter o que nela existe de substancial para a construção da universalidade: a defesa da propriedade. Por outro lado, essas funções exercidas pela administração e pelos poderes jurídicos são funções de domínio do governo que procura aplicar e conservar o que já foi decidido, as leis existentes, as administrações e institutos que têm fins coletivos. Portanto, o poder governativo compreende também os poderes jurídicos e administrativos que diretamente estão vinculados à sociedade civil (idem: 266). Por fim, a corporação que compõe, juntamente com a administração, um dos três momento da sociedade civil, também configura-se como reconstituição do universal que perde-se nas particularidades do sistema de necessidades. Na corporação, o indivíduo encontra-se enquanto grupo, rearticulando o que está fragmentado na sociedade civil, visando recuperar o universal em si no caminho de sua realização para si, o que somente ocorrerá na dimensão do Estado (idem:215). Assim, Hegel traça uma teia de articulação entre o Estado e a sociedade civil, evitando a dicotomia entre público e privado presente na tradição liberal. Anderson, ao comentar esse fato, afirma: O ponto crucial do esquema reside no modo como ele [Hegel] encara a integração da sociedade civil no Estado. Temos aqui uma dupla sobreposição. Por um lado, funções públicas hoje normalmente atribuídas ao Estado - educação, bem-estar social, saúde, comunicações - estão localizadas no espaço da sociedade civil. Por outro lado, as associações corporativas originárias da sociedade civil estão inseridas na estrutura política do Estado, como as unidades eletivas da Assembléia dos Estados (Anderson, 1992: 21). O fundamental a destacar é o fato de Hegel procurar construir um sistema onde exige-se um profundo respeito à liberdade individual xlvii - a partir da manutenção da propriedade privada -, numa ordem onde o privado esteja subordinado ao público. Entretanto, o momento da sociedade civil não é suficiente para ordenar a sociedade na perspectiva de realização da liberdade em sua totalidade, ou seja, para a efetivação do bem-estar comum, do interesse público. Pois, como vimos, a sociedade civil é o espaço da manifestação e garantia das particularidades, via propriedade - o que acaba produzindo pobreza e miséria -, e não da efetivação da universalidade - apesar de também estarem presentes nela elementos que constituem a passagem para o universal. Assim, Hegel necessita de um momento constituinte da sociedade que tenha como principal função garantir a universalidade; um momento que seja a expressão do racional em si e para si, que garanta a realização da liberdade em sua totalidade. Ou seja, um momento que, a partir da propriedade, primeira existência e expressão particular da liberdade, faça com que a liberdade realize-se em sua universalidade enquanto Bem. O Estado, para o filósofo alemão, possui essas determinações, o que o leva a projetá-lo como uma estrutura forte de intervenção social para que possa cumprir essa função. Hegel não visualiza saída definitiva para a situação de produção de pobreza e miséria. Por isso, o Estado apresenta-se como a forma de garantir a vigência do interesse comum, num mundo sob a égide do capital. Para Hegel, a sociedade individualista burguesa precisa da contraposição do Estado para propiciar a realização da liberdade. Nesse sentido, para o autor da Filosofia do Direito, conforme sinaliza Marcuse: O papel do Estado, ou de qualquer organização política adequada, é o de zelar para que as contradições inerentes à estrutura econômica não destruam todo o sistema. O Estado deve assumir a função de frear os processos sociais e econômicos anárquicos (Marcuse, 1978: 67). xlviii que: O sistema hegeliano, dessa forma, indica (...) a ordem social dada, baseada sobre a integração das necessidades através da troca de mercadorias, era incapaz de assegurar e estabelecer uma comunidade racional. Essa ordem permanecia essencialmente uma ordem de anarquia e de irracionalidade, governada por mecanismos econômicos cegos – permanecia uma ordem de contradições sempre repetidas, na qual todo o progresso era apenas uma temporária unificação de opostos. A exigência hegeliana de um Estado forte e independente deriva de sua compreensão das contradições inconciliáveis da sociedade moderna. Hegel foi o primeiro na Alemanha a atingir esta compreensão. Sua justificação de um Estado forte fundava-se em que este seria um suplemento necessário à estrutura contraditória da sociedade individualística por ele analisada (idem: 68). Hegel identifica no Estado a capacidade e o dever de realizar o Bem/universal. Para ele, numa sociedade baseada na propriedade privada (e, para Hegel, a propriedade privada é a condição da liberdade), só o Estado pode atuar de forma a produzir o Bem e garantir o universal, preservando a sociedade civil e seu fundamento: a propriedade privada. Portanto, diferentemente da perspectiva liberal clássica, Hegel defendeu a necessidade de intervenção do Estado na sociedade, visando a eliminar distorções do sistema para garantir a efetivação do interesse comum. Ao mesmo tempo, o autor alemão, em conformidade com os teóricos gregos clássicos, identifica a vida coletiva como o verdadeiro fim do indivíduo e o Estado como a expressão objetiva da vida pública. Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o interesse dos indivíduos enquanto tais é o fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado. Ora, é muito diferente a sua relação com o indivíduo. Se o Estado é o espírito objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem numa vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm o seu ponto de partida e o seu resultado neste ato substancial e universal (Hegel, 1997: 217). xlix Como podemos perceber, do ponto de vista político, Hegel não compartilha com os ideais liberais clássicos. Entretanto, do ponto de vista social, o horizonte hegeliano esgota-se na sociedade fundada na propriedade privada e produtora de mercadorias. Sendo assim, ao reconhecer os limites dessa ordem social e, simultaneamente, estar racionalmente comprometido com a realização do Bem, o autor alemão estrutura seu sistema depositando no Estado a capacidade e as condições de realização do universal - que é o verdadeiro ponto de partida e de chegada do indivíduo -, através de diferentes mecanismos institucionais (poder soberano, legislativo e governativo; administração; jurisdição; corporações, entre outros) que organizam a sociedade a fim de evitar a fragmentação, a anarquia e a produção de miséria, elementos característicos do sistema de necessidades. Esse conjunto de mecanismos, sejam eles vinculados diretamente ao Estado (poder soberano, legislativo e governativo) ou componentes da sociedade civil (administração, corporação e jurisdição), cumpre a função de constituição da universalidade na sociedade fundada na propriedade privada, através de intervenção sistemática na dinâmica social. Entre as instituições do Estado, cabe ao poder de governo efetivar a “integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais” (Hegel, 1997: 246). Hegel, ao tratar do poder de governo em sua relação com a sociedade civil, claramente influencido pela abordagem hobbesiana do estado de natureza, afirma: Assim como a sociedade civil é o campo de batalha dos interesses individuais de todos contra todos, assim aqui se trava o conflito entre este interesse geral e os interesses da comunidade particular e, por outro lado, entre as duas espécies de interesses reunidos e o ponto de vista mais elevado do Estado e suas determinações” (idem: 267). De forma geral, portanto, Hegel vislumbrou a necessidade de intervenção do Estado na sociedade, visando a eliminar distorções do sistema para garantir a l efetivação do interesse comum. E, como vimos anteriormente, o pensador alemão, ao conceber o bem-estar como direito, postula a necessidade de se organizar a ajuda aos indivíduos que, por contingências exteriores ou devido à vontade subjetiva, encontram-se em situação de pobreza e miséria. Dessa forma, Hegel pensa num sistema público amplo como componente de um Estado perfeito. Ou seja a ajuda aos pobres e miseráveis é tarefa do Estado através de “instituições públicas de assistência, hospitais, iluminação das ruas, etc.” Esse fato não elimina a existência de espaços para a ação da beneficência privada; no entanto, o autor é taxativo em afirmar que tal tarefa não pode ser reservada “à particularidade do sentimento e à contingência das suas disposições e informações”; muito pelo contrário, “deve o Estado ser considerado tanto mais perfeito quanto menor, em comparação com o que está assegurado de modo universal, for a parte que se abandona à iniciativa do indivíduo e à sua opinião particular” (idem: 207-208). Em outras palavras, numa versão atual, Hegel está defendendo um sistema público e amplo de políticas sociais, ou seja, o filósofo alemão antecipa, do ponto de vista filosófico, os traços gerais do Estado interventor de bem-estar22. Na esteira hegeliana, vê-se que o Estado no capitalismo possui uma dimensão vocacionada para o atendimento de diferentes interesses presentes na sociedade. E é a instância que Hegel chama de universal que possibilita a intervenção estatal buscando a garantia do bem-estar do conjunto da sociedade, incluindo assim as classes sociais não dominantes. 22 Nessa mesma pista, podemos inferir que a contradição levantada por Hegel entre o sistema econômico e o interesse geral expressa a tensão, muito bem formulada por Marshall sobre cidadania e classe social. Ou seja, o autor inglês ao indicar as lógicas contraditórias entre o funcionamento da sociedade capitalista e a ampliação da cidadania, através da efetivação dos direitos individuais, políticos e sociais, explicita a tensão entre o interesse universal de cidadania e os interesses particulares das classes sociais. Nas palavras do autor: “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status (...) A classe social, por outro lado, é um sistema de desigualdade (...) É, portanto, compreensível que se espere que o impacto da cidadania sobre a classe social tomasse a forma de um conflito entre princípios opostos” (Marshall, 1967: 76). Adiante o sociólogo afirma que o crescimento da cidadania “coincide com o desenvolvimento do capitalismo, que é o sistema não de igualdade, mas de desigualdade” (Marshall, 1967: 76). li Em resumo, podemos ressaltar que Hegel atribui a tarefa de reconciliação entre classes antagônicas ao Estado por não encontrar saída estrutural, objetiva e material para a realização da liberdade fora do sistema de produção de mercadorias, fundado na propriedade privada. Para Hegel, só a partir da propriedade privada é possível realizar a liberdade. No entanto, como ele mesmo analisa, o sistema baseado na propriedade privada leva a anarquia para a sociedade, produzindo desigualdades e miséria que, dessa forma, impede a realização da liberdade para determinados grupos sociais. A partir dessa contradição, Hegel identifica no Estado a capacidade de enfrentar a contraditoriedade existente na sociedade, garantindo, por um lado, a manutenção do sistema produtor de mercadorias – fundamento da liberdade, pois baseado na propriedade privada – e, por outro lado, evitando o acirramento da anarquia, desigualdade e miséria produzidas por esse mesmo sistema, através da viabilização do interesse comum / universalidade. Então, como bem sinaliza Marcuse, para Hegel “só o Estado pode emancipar, embora não possa oferecer a verdade perfeita e a liberdade perfeita” (Marcuse, 1978: 95). Nesse sentido, Hegel não pensa em superar as contradições da sociedade capitalista, mas sim controlá-las através da “dimensão universal” do Estado. No entanto, o Estado, diferentemente do que Hegel pensava, não é “o” momento da universalidade que em última instância constitui a sociedade em sua verdade objetiva para a efetivação da liberdade em sua totalidade. O jovem Marx, em 1843, demostrou, dentro de seus limites teóricos (ainda não dominava a economia política e encontrava-se preso ao materialismo feuerbachiano) e práticos (ainda não havia se inserido no movimento operário revolucionário) da época, a inversão hegeliana traduzida pelo “misticismo lógico” com que Hegel altera de posição o predicado e o sujeito. Ou seja, o Estado, para lii Hegel, não é o produto da família e da sociedade civil, mas sim, o elemento que funda essa família e a sociedade civil. Para Hegel, o universal é racional e manifesta-se na família e na sociedade civil, através de um espírito que não é próprio nem da família nem da sociedade civil. A família e a sociedade civil “devem sua existência a outro espírito que não o seu próprio, são determinações estatuídas por um outro, e não autodeterminações” (Marx, 1978: 323); os sujeitos, pois, são transformados em predicado. Marx, de uma forma mais precisa, escreve, no Prefácio da obra Para a Crítica da Economia Política (1859), a real relação que se estabelece entre o Estado e a sociedade civil23: “...relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de `sociedade civil`, seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa, deve ser procurada na Economia Política” (Marx, 1996a: 51). Portanto, Marx desmistifica a concepção hegeliana, mostrando que o Estado, na verdade, deve ser analisado a partir da constituição da sociedade civil: ...na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência (Idem: 52). O expressão 23 Estado, da dessa forma, universalidade, não mas é a sim a Como muito bem observa Bobbio (1982), em sua análise sobre o conceito de sociedade civil, diferentemente de Hegel, que além do sistema das necessidades inclui na sociedade civil a justiça, a administração e a corporação, Marx considera sociedade civil apenas como sendo as relações de produção que formam a estrutura da sociedade, portanto, identifica-a liii expressão das relações sociais de produção existentes na sociedade capitalista, portanto, uma “universalidade alienada”. No caso da sociedade capitalista, o Estado será estruturado tendo como base a relação de exploração estabelecida pelo capital. O Estado, assim, representa a dominação de classe presente na sociedade civil, para garantir a manutenção e a reprodução das relações sociais estabelecidas pela ordem do capital. Nas palavras de Marx e de Engels (1998), o executivo do Estado configura-se como “um comitê para administrar os negócios coletivos da classe burguesa” (Marx, 1998: 7). Apesar dessa concepção restrita de Estado em Marx (Coutinho, 1994), o autor d`O Capital, ao tratar criticamente a concepção hegeliana do Estado como universalidade, desenvolve uma argumentação que não descarta a dimensão universal presente no Estado capitalista. O que Marx aponta é que esta dimensão é limitada pela estrutura da sociedade civil e não configura-se como essência do Estado. No texto de 1843, quando Marx ressalta que Hegel foi quem melhor descreveu a aparência do Estado capitalista, ou seja, como o Estado capitalista apresenta-se para a sociedade e não o que ele é efetivamente, o autor, nesses termos, considera o caráter universal do Estado como aparência24. apenas com o que Hegel denomina de sistema das necessidades. 24 Segundo Marx: “Não devemos censurar Hegel porque descreve o ser do Estado moderno tal e como é, mas sim por apresentar o que é como essência do Estado” (Marx, 1978: 375) liv Para Marx, então, a dimensão universal do Estado não é falsa, pois compõe a estrutura estatal, na medida em que configura-se como aparência do fenômeno. Aqui cabe uma pequena digressão sobre a relação entre aparência e essência no materialismo dialético, para melhor explicitarmos a assertiva acima. Na concepção ontológica do conhecimento, o movimento de análise do objeto inicia-se com o contato do sujeito com o dado, o fato objetiva e sensivelmente presente. Dessa forma, o primeiro contato do sujeito com o objeto se dá pela aparência do objeto. Portanto, a aparência do fenômeno é a primeira instância sobre a qual o sujeito deve interrogar o objeto para que se atinja a sua essência25. Nesse sentido, o dado, a aparência, o fato em si não é um elemento menor da reflexão dialética26. Ela (aparência) constitui-se como a dimensão a partir da qual o sujeito procurará apreender a essência do objeto em questão, seu movimento interno, suas conexões, estruturas e contradições, para que seja possível captar as determinações do fenômeno e, dessa forma, através da razão, via processo de abstração, expressá-las como categoria lógica, para, posteriormente, retornar ao objeto, visando verificar a adequação da reprodução ideal (categoria construída) com o movimento real do fenômeno e reiniciar todo o processo de novo, a fim de realizar abstrações cada vez mais sutis e, sendo assim, apreender o objeto em sua totalidade27. Esse movimento descrito é o processo de “reprodução do concreto por meio do pensamento” (Marx, 1996b: 40). Portanto, fica claro que a aparência constitui o 25 Cabe sinalizar que a importância do dado, do empírico, não resvala em nenhum posicionamento empirista. Para uma crítica ao empirismo, ver Lukács (1981: 65 - 67) 26 De acordo com Tonet, “(...) para uma perspectiva ontológica, as aparências não são meros epifenômenos, coisas sem importância, trivialidades. Elas constituem um momento do ser social de igual consistência ontológica que a essência” (Tonet, 1995: 42). 27 Lukács destaca, de forma enfática, a relação dialética existente entre aparência e essência, ressaltando sua unidade e distinção, necessárias para um estudo científico. Nas palavras do autor: “Trata-se, de uma parte, de arrancar os fenômenos de sua forma imediatamente dada, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados a seu núcleo e a sua essência e tomados em sua essência mesma, e, de outra parte, de alcançar a compreensão deste caráter fenomênico, desta aparência fenomênica, considerada como sua forma de aparição necessária (...) Esta dupla determinação, este lv objeto e que, dessa forma, a dimensão de “universalidade” é parte constitutiva do Estado, apesar de não ser sua essência. Na realidade, para sermos mais preciso, essa “dimensão universal” diz respeito às ações do Estado que atendem a interesses das classes subalternas. Ou seja, o Estado não expressa o interesse geral e nem está voltado para o bem comum, simplesmente ele também atua atendendo a determinados interesses das classes subalternas, na medida da necessidade de garantia da estrutura de dominação fundada na propriedade privada. Em outras palavras, uma sociedade estruturada em classes sociais não há como haver interesse geral, pois os interesses estão vinculados às estruturas de classe. Marx, ao fazer a análise crítica da Filosofia do Direito, no que refere-se ao poder governativo e à administração corporativa, explicita a antítese que Hegel estabelece entre “propriedade privada e interesses das esferas particulares frente ao interesse superior do Estado: contraposição entre propriedade privada e Estado” (Marx, 1978: 361). Continuando, o crítico analisa que a solução da antítese, apresentada por Hegel, nada mais é que “uma simples acomodação, um pacto, uma confissão do dualismo irredutível” (idem). Em outras palavras, Marx mostra que Estado não viabiliza interesse geral, no máximo ele promove uma acomodação entre interesses. Assim, na medida em que o Estado acomoda interesses ele incorpora, também, interesses das camadas dominadas da sociedade. No capitalismo, as classes fundamentais que representam o capital e o trabalho possuem interesses, do ponto de vista estrutural, antagônicos e inconciliáveis, pois a participação nas decisões fundamentais da produção (o que produzir, quanto produzir e como distribuir) são assimétricas, já que o poder está nas reconhecimento e esta ultrapassagem simultâneos do ser imediato é precisamente a relação dialética. (Lukacs, 1981: 68) lvi mãos de quem detém os meios de produção e se apropria da riqueza produzida e não daqueles que participam do processo a partir de sua força de trabalho. No entanto, isso não significa dizer que alguns interesses da classe trabalhadora não possam ser atendidos no capitalismo. Nesse sentido, o Estado mostra-se como o elemento viabilizador desses determinados interesses, apresentando-se, ideologicamente, como representante dos “interesses gerais”, “expressão da racionalidade e universalidade”. Determinados textos da juventude de Marx, numa nítida perspectiva radical democrática, apresentam essa possibilidade; seja quando o autor afirma que Hegel apresenta a antítese entre propriedade privada e Estado e descreve a aparência do Estado moderno (Critica del derecho del Estado de Hegel, 1978: 361 e 375), seja quando constata que a filosofia alemã do direito e do Estado é coerente com o mundo moderno (Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução, 2002b: 51 e 52), ou, então, quando, ao fazer a crítica aos direitos humanos, Marx discute a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, mostrando que a emancipação política liderada pela burguesia é um avanço em relação à sociedade feudal, mas não leva à emancipação humana (A Questão Judaica, 2002a: 34-37)28. Poderíamos dizer que essas observações marxianas são do tempo em que o autor ainda não tinha amadurecido suas reflexões sobre o funcionamento da sociedade burguesa e, também, não tinha assumido uma clara perspectiva revolucionária de classe. Entretanto, se analisarmos com atenção alguns textos da década de 50 e 70 (Mensagem do Comitê Central à Liga de março de 1850, Crítica 28 Bobbio, numa precisa análise da “Questão Judáica” concorda com a tese de que a emancipação humana é mais ampla que a emancipação política, no entanto resgata a necessidade da emancipação política como elemento da emancipação humana. Nas palavras do autor: “Tese incontestável, contanto que não nos esqueçamos que se a emancipação política não é suficiente, é no entanto sempre necessária, não podendo existir emancipação humana que não passe pela emancipação política” (Bobbio, 1979: 54). lvii ao Programa de Gotha e Anotações ao livro Estatismo e anarquia de Bakunin) podemos perceber com clareza a importância dada por Marx ao Estado, no sentido de que, através dele, alguns interesses das classes dominadas podem ser alcançados. O texto Mensagem do Comitê Central à Liga de março de 1850, cuja centralidade encontra-se no desenvolvimento da estratégia da revolução permanente, expressa em suas conclusões a clareza de Marx e Engels em relação ao processo de mudanças necessárias para a construção do comunismo. Em primeiro lugar, deixam claro que os trabalhadores não poderão, num primeiro momento, propor medidas diretamente comunistas. Em segundo lugar, indicam: 1) a necessidade dos trabalhadores obrigarem os democratas a “concentrar nas mãos do Estado o maior número possível de forças produtivas”; e 2) a pressão que deve ser exercida junto aos democratas para que sejam ampliadas e radicalizadas as propostas reformistas que forem levantadas (Marx e Engels, 1984: 229-230). O texto, então, mostra que mesmo num quadro revolucionário, na perspectiva da revolução permanente, as mudanças não são imediatas e a mediação do Estado, ainda sob direção da classe dominante, apresenta-se como fundamental interesses dos para a conquista trabalhadores, por dos isso a necessidade da pressão junto ao Estado sob direção burguesa. Se a ação junto ao Estado para a ampliação do atendimento dos interesses da classe trabalhadora é estratégica num lviii quadro revolucionário, devido à impossibilidade de, num primeiro momento, viabilizar “medidas diretamente comunistas”, num contexto fora do horizonte revolucionário essa ação, por conseqüência lógica e prática, mostra-se, muito mais ainda, como fundamental para o aprofundamento das conquistas de interesses da classe trabalhadora. Esta concepção reforça o entendimento de que o Estado, enquanto estrutura de dominação, possui uma “dimensão universal”, ou melhor, intervém, também, atendendo a interesses das classes dominadas. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx, ao tratar da divisão da totalidade do produto social, esclarece que antes de ocorrer qualquer divisão entre os produtores individuais da coletividade, deve-se deduzir do produto social o necessário para repor os meios de produção, ampliar a produção e construir um fundo de reserva contra acidentes e transtornos devido a fenômenos naturais. Após essa dedução, segundo o pensador alemão, inicia-se a repartição do ponto de vista do consumo. Despesas de administração não concernentes à produção, necessidades coletivas (escolas, instituições sanitárias, etc.) e fundo de manutenção das pessoas não capacitadas para o trabalho conformam um segundo conjunto de itens que deve ser garantido pelo produto social antes de ocorrer a repartição individual (Marx, sd: 212213). Nesse segundo conjunto de itens o que temos, numa linguagem atual, são as ações do Estado para área social. Dessa forma, fica claro que Marx não despreza a tarefa de organizar recursos na sociedade para garantir as necessidades sociais da lix população. Portanto, do ponto de vista da distribuição em relação ao consumo coletivo, ampliar as chamadas políticas sociais é uma necessidade para o desenvolvimento de uma sociedade que ultrapasse os marcos do capitalismo. Conforme o próprio Marx ressalta, ao comentar sobre os recursos destinados às necessidades coletivas, “esta parte aumentará consideravelmente desde o primeiro momento, em comparação com a sociedade atual, e irá aumentando à medida que a nova sociedade se desenvolva” (Marx, sd: 213). Ou seja, nos termos indicados, a ampliação dos recursos destinados às necessidades coletivas e a manutenção das pessoas não capacitadas para o trabalho são tarefas de extrema importância para a construção do comunismo, sendo a estrutura para a administração dessas ações uma necessidade decorrente. Portanto, a ampliação de políticas sociais, via Estado, é compatível com ações que pretendam a superação da ordem burguesa. Por fim, em suas Anotações sobre o livro Estatismo e anarquia de Bakunin, Marx, além de sublinhar que “uma revolução social radical está vinculada a determinadas condições históricas do desenvolvimento econômico” (Marx, 2003: 152), eliminando qualquer possibilidade de interpretação voluntarista e politicista de sua concepção, explicita que é o Estado que garante ao proletário, no momento em que esse assume a posição de classe dominante – portanto o momento posterior à derrubada da burguesia do poder –, utilizar “meios universais de constrangimento“ para combater as classes economicamente privilegiadas. Nesse sentido, o proletário não se encontra mais isolado em sua luta. O poder do Estado, a partir desse momento, passa a servir aos interesses da classe trabalhadora, enquanto classe dominante, até que medidas cada vez mais amplas sejam implementadas no sentido da coletivização dos meios de produção, visando a supressão da propriedade privada e da condição de assalariado dos trabalhadores, portanto, eliminando a lx divisão de classes e, conseqüentemente, a estrutura utilizada para dominação. Ou seja, extinguindo o próprio Estado. Vemos nesse processo a dialética do Estado: a necessidade de sua intervenção na sociedade, sob a direção dos trabalhadores, para estabelecer o processo de sua própria extinção. Na interpretação leniniana no Estado e a Revolução, o Estado sob a ditadura do proletariado não é mais o Estado propriamente dito, pois está voltado para sua extinção - ou seja, para extinção da sociedade de classes - e não para a manutenção da dominação de classe. Ainda na polêmica com Bakunin, Marx destaca a necessidade da divisão de trabalho e da organização para a administração da sociedade e distingue a estrutura organizativa da estrutura de dominação (idem: 152). O Estado, enquanto estrutura de dominação, extingue-se na medida da constituição do comunismo. No entanto, existirá uma estrutura organizativa/administrativa dessa nova sociedade que não se confundirá com dominação de classe. A idéia utópica de inexistência de estrutura de administração e organização da sociedade não se aplica à concepção marxiana. O autor, portanto, nos três textos tratados acima, procura mostrar que o Estado é a mediação estratégica para implementação de mudanças na sociedade visando a construção do comunismo. Marx reconhece no Estado uma estrutura que deve ser utilizada em favor dos interesses da classe trabalhadora que é a única com possibilidade de expressar-se como classe universal, pois “não pode emancipar-se a si mesma, nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade sem as emancipar a todas (...) só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem” (Marx, 2002b: 58). Cabe aqui registrar que o tratamento dado ao Estado por Marx - apesar de partir, em nossa compreensão, do entendimento de que o Estado possui uma lxi dimensão “universal” (atendimento a determinados interesses da classe trabalhadora) - indica que para ocorrer uma intervenção mais ampla do Estado voltado para os interesses da classe trabalhadora numa perspectiva socialista, o operariado precisa tomar o poder de Estado, através de uma revolução explosiva. Esse fato, no entanto, não anula a compreensão da existência da dimensão universal do Estado, pelo contrário, reforça essa compreensão, na medida em que identifica no Estado a função de mediação numa sociedade de classes, para garantir a manutenção do poder da classe dominante, onde diferentes interesses, de forma diferenciada, são atendidos. Haja vista as propostas presentes no “Manifesto”, na “Mensagem de 1850”, na “Crítica ao Programa de Gotha” e na “Guerra Civil na França” que possuem um nítido caráter progressivo, indicando, portanto, que até a conclusão das reformas para suprimir a sociedade capitalista alguns interesses do capital serão preservados. Essa interpretação pode ser identificada também em Lênin, quando afirma que a justiça e a igualdade só serão realizadas na segunda fase da sociedade comunista. Ou seja, para o autor, durante a existência do “Estado de transição” (ditadura do proletariado) - “primeira fase da sociedade comunista” - a justiça e a igualdade não se realizarão plenamente. Se isso acontece é porque determinados interesses do capital ainda estão em vigência, ratificando o entendimento de que o Estado atende aos diferentes interesses presentes na sociedade. Então, enquanto houver classes sociais haverá Estado, dominação de uma classe sobre a outra e atendimento de diferentes interesses. Paradoxalmente, o Estado só deixa de atender a interesses de diferentes classes sociais quando da extinção das mesmas e, portanto, de sua própria existência. Em outras palavras, enquanto houver classes sociais haverá Estado e enquanto houver Estado os diferentes interesses da lxii sociedade, sob dominação de uma determinada classe, serão atendidos de forma diferenciada, mostrando a aparente perspectiva universal do Estado. Além dos aspectos já destacados, cabe ainda ressaltar que Marx, diferentemente de certas interpretações sobre seus escritos, reconhece explicitamente as diversas formas de expressão estatal no capitalismo, não igualando, de forma alguma, uma estrutura monárquica absolutista com uma república democrática. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx, utilizando a dialética particular-universal, deixa claro que o Estado modifica-se com as fronteiras de cada país e de acordo com o desenvolvimento da sociedade burguesa daquela região, apesar de manter “certos caracteres essenciais comuns” (Marx, sd: 221). A interpretação de Lênin sobre a concepção de Estado em Marx e Engels reforça esse entendimento na medida em que o autor assinala que “na sociedade capitalista, nas condições de seu desenvolvimento mais favorável, temos um democratismo mais ou menos completo na república democrática”. Ou seja, a república democrática expressa uma formação sócio-estatal capitalista mais favorável à classe trabalhadora que outras formas de Estado, apesar, como reitera Lênin, de ser uma formação social comprimida “nos limites estreitos da exploração capitalista e, por isso, permanece sempre, em essência, um democratismo para a minoria, apenas para as classes possuidoras, apenas para os ricos” (Lênin, 1980:281) A partir de nossa interpretação sobre a concepção de Estado em Marx, caberia indagar: se Marx pensava o Estado de forma contraditória, como assinalada acima, por que ele não desenvolveu uma teoria mais explícita e “ampliada” de Estado, buscando apresentar determinações lxiii mais precisas sobre essas contradições e, por outro lado, por que o pensador alemão manteve uma concepção “explosiva” e violenta de revolução? Em nosso entendimento, duas ordens de questões estão presentes no desenvolvimento da produção marxiana. A primeira delas diz respeito à questão que Marx se colocou após elaborar a “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, em 1843. Qual seja: se é a partir da sociedade civil que devemos compreender o Estado, o que é a sociedade civil burguesa? Nesse sentido, seu objetivo passou a ser compreender a sociedade civil e desvelar as conexões existentes entre ela e o Estado para poder desmistificá-lo, dessacralizá-lo. Essa passou a ser a tarefa principal de Marx em relação ao Estado. Por outro lado, e aqui já entro na segunda questão, o século XIX foi um século fundado no clima revolucionário, Marx participou ativamente dos levantes de 48, viveu a crise dos anos 50 e acompanhou a experiência da comuna de 71. Em que pese seu equívoco, para ele, em sua época, havia condições objetivas para a tomada do poder de Estado pelo proletariado. Portanto, do ponto de vista teóricoprático, os objetivos em relação ao Estado estavam mais evidentes no que se refere à necessidade de dessacralizá-lo frente à classe trabalhadora e criar estratégias para a tomada de poder e não levantar alternativas para uma atuação institucional de conquista de espaço. Além disso, é fato também que nesse período, mesmo nos países centrais do capitalismo com estrutura mais democrática, a dimensão de coerção presente no Estado era muito mais acentuada que a de consenso. As bases materiais para o desenvolvimento da concepção de Estado ampliado, nos termos gramscianos, só se efetivarão a partir do final do século XIX e início do século XX, lxiv no marco da passagem do capitalismo concorrencial para o monopólico29. E como ressalta Coutinho: ...parece-nos válido dizer que a ampliação do conceito de Estado em pensadores marxistas mais recentes, quando comparados com Marx, Engels, Lênin ou Trotski, não resultou apenas da escolha de um ângulo de abordagem mais rico (menos abstrato); resultou também, e sobretudo, do próprio desenvolvimento objetivo tanto do modo de produção quanto da formação econômico-social capitalistas (Coutinho,1994: 17). Com as observações desenvolvidas acima, queremos destacar uma visão mais complexa da concepção de Estado em Marx, ressaltando, parafraseando Abensour (1998), o momento maquiaveliano do pensador alemão. Ou seja, o que nos interessa na reflexão desenvolvida acima é explicitar, do ponto de vista político, o traço geral apontado por Marx da dimensão contraditória do Estado - a qual lhe permite atuar atendendo interesses divergentes da sociedade e, portanto, aparecer como ente acima das classes -, para mostrar que, o Estado, apesar de ser essencialmente expressão de dominação de classe, é a única estrutura na sociedade capitalista capaz de realizar interesses das classes e camadas dominadas, mesmo que faça isso apresentando-se acima da sociedade. Nesse sentido, o que realizamos foi uma análise, com uma nítida ênfase política, de textos de Marx, diferindo de Abensour numa questão fundamental: não estabelecemos uma dualidade em Marx entre uma leitura científica – crítica materialista da sociedade e do Estado - e uma filosofia política fundada na liberdade (Idem:60). Muito pelo contrário, consideramos que a crítica materialista da sociedade é fundamental para compreendermos a essência do Estado, e este fato não elimina, em nosso entendimento, a particularidade do momento político em Marx, vinculando, 29 A categoria “Estado ampliado” não é um fenômeno decorrente do capitalismo em sua fase monopólica. No entanto, Gramsci só pode desenvolver a teoria ampliada do Estado, a partir da fase monopólica do capitalismo. O capitalismo monopolista é a condição objetiva e necessária para o desenvolvimento teórico da concepção do Estado Ampliado. lxv dessa forma, o pensador alemão na tradição da reflexão política moderna inaugurada por Maquiavel no início do século XVI. Por outro lado, o cerne do pensamento marxiano, como afirmou Lukács, está em justamente analisar as questões da sociedade capitalista sob o ponto de vista da totalidade. Sendo assim, pensar o político isolado da dinâmica global do capitalismo é ferir a essência do método marxiano. Segundo Netto, ao comentar o fato de Lênin arrancar uma teoria geral do Estado com base em Engels e não no próprio Marx: Salvo erro meu, em Marx inexiste uma teorização deste teor – há sempre, nele, determinações teóricas do Estado moderno (burguês) e em relação, sempre, com a totalidade histórico-social mobilizada pela dinâmica (e não somente pela lógica) do capital; a possibilidade de uma teoria do Estado sem esta imbricação – com tudo o que ela implica para a compreensão do Estado moderno (burguês), imanentemente, e não só como referencialidade ‘econômica’ da célebre ‘última instância’ – tem todas as características, a meu ver, de ilegitimidade enquanto consequência do projeto marxiano (Netto, 2004: 136). Como podemos perceber, nos termos tratados anteriormente, a questão do Estado e de sua extinção na perspectiva marxiana evoca um quadro que distancia essa concepção das análises estatistas de Lassalle, da visão anarquista de Bakunin e da tradição mecanicista e economicista que imperou a partir do chamado “marxismo-leninismo”. Resumindo o balanço sobre a concepção de Estado em Hegel e Marx, poderíamos dizer, utilizando a linguagem e a concepção hegeliana de razão e liberdade, que a essência do Estado é a universalidade e que portanto a tarefa é potencializar essa dimensão do Estado que é uma dimensão racional voltada para a liberdade. Entretanto, segundo Marx, o Estado não pode desenvolver-se nos termos da universalidade se não for superada a estrutura de desigualdade que está presente na sociedade civil, nos termos marxianos ou no sistema de necessidades, conforme Hegel. lxvi No entanto, o Estado atua, também, atendendo a interesses não dominantes da sociedade, o que lhe permite, ideologicamente, apresentar-se como representante de “interesses gerais”. Ao dessacralizar e desvelar a essência do Estado, Marx não descartou a necessidade da classe trabalhadora pressioná-lo e assumi-lo como classe dominante para ampliar a conquista de seus interesses de classe. Ou seja, para Marx o Estado é um elemento estratégico de mediação para o processo revolucionário. A tomada do poder de Estado precede à mudança societária, por isso a transição socialista, na perspectiva marxiana, é estruturada a partir da ditadura do proletariado, que busca, através das ações do Estado, implementar mudanças voltadas para a supressão da propriedade privada dos meios de produção e, por conseguinte, para a extinção da estrutura de classes. Entretanto, com a supressão da divisão da sociedade em classes sociais não existiria mais Estado (expressão da dominação de classe), mas apenas uma administração da sociedade – administração que não seria feita sem conflitos e tensões, porém esses conflitos e tensões não teriam como fundamento antagonismos de classe. A partir da crítica marxiana à concepção de Estado em Hegel, podemos dizer, para finalizar, que a Filosofia do Direito defende um Estado possível, no marco do capitalismo, para viabilizar certas condições que amenizam a desigualdade e promovam a realização da liberdade de forma concreta, ou seja frente as condições objetivas postas. Em outras palavras, só o Estado, tanto para Hegel quanto para Marx - apesar das concepções distintas que os autores têm sobre a sociedade capitalista e o lxvii Estado -, tem poder e capacidade, numa sociedade de classes, de atuar viabilizando interesses das classes e camadas da sociedade não dominantes. Portanto, pensar no aprofundamento e universalização de direitos sociais, ou seja, a ampliação e melhora das condições sociais da vida das classes e camadas não dominantes da sociedade requer, necessariamente, ter o Estado como o elemento estratégico central para a implementação dessa proposição. Nesse sentido, refletir sobre a burocracia, como estrutura clássica de organização e administração estatal, passa a ser uma questão/categoria que deve ser tratada cuidadosamente tanto do ponto de vista teórico quanto prático-político. 1.3. O fenômeno burocrático: contradição, dominação e racionalidade A função da burocracia no Estado Antes de iniciarmos a reflexão sobre a burocracia gostaríamos de deixar claro que nossa abordagem sobre o tema procurará fugir da tentação de defendê-la entusiasticamente, ou de atacá-la enfurecidamente. Evitaremos, portanto, que nossa concepção seja enquadrada, conforme Guerreiro Ramos (1983) propõe, como conceito positivo ou como conceito negativo da burocracia30. Utilizaremos como referências centrais, conforme ressaltado anteriormente, Hegel e, principalmente, Weber, a partir da perspectiva da teoria social crítica vinculada à tradição marxista. Porém, de acordo com a sugestão de Tragtenberg, procuraremos: ...despertar do sono dogmático, pensar e refletir criticamente com Weber [e Hegel] e não polemizar contra Weber [e Hegel], sem subterfúgios, escamoteação dos problemas centrais, penetrando na reflexão efetiva para superar, isto é, absorver a contribuição de 30 Guerreiro Ramos classifica os conceitos sobre a burocracia como sendo negativos (interpretação de Robert Michels, L. von Mises, Mannheim, Merton, Selznick e Crozier, além dos escritores marxistas) ou como sendo positivos (Weber e Eisenstadt). lxviii Weber [e Hegel] e excedê-la. Superar em Weber [e Hegel] as limitações do tempo e contexto social em que situa a sua obra; discuti-la sem compromissos ideológicos que impliquem o sacrifício do intelecto com o respeito que uma obra do porte que ele nos legou implica (Tragtenberg, 1992: 156-157). Nesse sentido, ao analisarmos criticamente as determinações da burocracia, buscaremos captar as categorias que efetivamente correspondam ao fenômeno e que estão presente nas obras de Hegel e Weber. Em relação a Marx e à tradição marxista, o tratamento não será diferente. Dessa forma, não estamos preocupados em definir a burocracia como positiva ou negativa, mas sim extrair os traços essenciais e universais do fenômeno para, nos capítulos seguintes, articulá-los com o desenvolvimento da administração burocrática no Brasil. Assim, conforme ocorreu nos itens anteriores deste capítulo, o tratamento que daremos ao fenômeno encontra-se num nível mais alto de abstração. Isto posto, consideramos que podemos iniciar nossa reflexão a partir de Hegel. O filósofo alemão identificará a burocracia, apesar de não usar esse termo, como a classe universal: A classe universal ocupa-se dos interesses gerais da vida social. Deverá ela ser dispensada do trabalho direto requerido pelas carências seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma indenização dada pelo Estado que solicita sua atividade, de modo que, nesse trabalho pelo universal, possa encontrar satisfação o seu interesse privado (Hegel, 1997:182). A burocracia, sendo um dos componentes da materialidade do Estado - que, como vimos, é a instituição no capitalismo capaz de atender interesses de camadas não dominantes -, expressa, também, as contradições presentes no Estado. Portanto, diferentemente do que Hegel apontava, ela não se efetiva como uma classe universal. A burocracia, por um lado, é a responsável por viabilizar, manter, conservar a ordem social capitalista e, dessa forma, garantir os interesses da classe dominante. Por outro lado, ela também implementa as ações do Estado destinadas ao lxix atendimento de interesses das classes dominadas, na perspectiva de manter a ordem da propriedade privada/liberdade, garantindo, porém, o Bem. Por isso, a aparência de classe universal. Pois, numa perspectiva que não encontra saída estrutural para a sociedade, como é no caso da concepção hegeliana, a classe universal é aquela que permite a realização de interesses das classes antagônicas. Nos termos hegelianos, através da burocracia garante-se a propriedade privada/liberdade e o Bem como expressão da racionalidade em si e para si, que é o Estado (Hegel, 1997: 216-217). Dando continuidade à sua caracterização da burocracia, o filósofo alemão, ao tratar do poder do governo (idem: 266-272), mostra que assim como a sociedade civil é o campo da disputa dos interesses individuais de todos contra todos, o governo é o espaço em que se expressa a luta entre os interesses particulares e o interesse geral. Dessa forma, a tarefa de garantir a conservação do interesse geral do Estado e da legalidade entre os direitos particulares, a redução destes àqueles exigem uma vigilância por representantes do poder governamental, por funcionários executivos e também por autoridades mais elevadas com poder deliberativo, portanto colegialmente organizada (Hegel, 1997: 266267 – negrito nosso). Aqui Hegel apresenta a determinação central do servidor, qual seja: garantir o interesse geral do Estado frente aos interesses particulares. A burocracia, portanto, é um instrumento do governo com responsabilidade de Estado para garantir o interesse geral frente ao interesses particulares apresentados pelas corporações. Marx, em sua glosa da Filosofia do Direito, mostra que na verdade não se trata da garantia do interesse geral frente a interesses particulares, mas sim da garantia de determinados interesses particulares frente a outros interesses particulares. Marx destaca que a burocracia age como uma corporação do Estado ao enfrentar as corporações como se fossem uma burocracia da sociedade civil. lxx Segundo o autor, “na realidade, a burocracia se contrapõe, enquanto ‘sociedade civil do Estado’ ao ‘Estado da sociedade civil’, às corporações” (Marx, 1978: 358). Mesmo não possuindo ainda uma perspectiva revolucionária, Marx consegue perceber que não há na burocracia uma orientação voltada para o interesse geral, identificando nela a materialização de interesses particulares presente no Estado. Nesse sentido, conforme Marx sinaliza, existe uma relação de afirmação-negação da burocracia com as corporações. A relação com a corporação torna-se essencial para a existência da burocracia, pois sua razão de ser encontra-se na existência das particularidades da sociedade civil, expressas pelas corporações, que devem ser subordinadas ao interesse geral, que é vigiado e fiscalizado pela burocracia. Nessa perspectiva, a burocracia tem que negar a corporação. Por outro lado, se não houver corporação, ou melhor, se houver identidade entre os interesses particulares e o interesse geral, não será necessário a existência de um aparato para subordinar o particular ao geral. Nesse sentido, não seria necessária a existência da burocracia. Por isso, a burocracia precisa restaurar a corporação como forma de manutenção/preservação de sua existência. Desse ponto de vista, ocorre a afirmação da corporação por parte da burocracia. De acordo com Marx: O mesmo espírito que cria na sociedade a corporação cria no Estado a burocracia. Portanto, tão logo se vê atacado o espírito corporativo é também objeto de ataques o espírito burocrático, e se antes a burocracia combatia a existência das corporações para afirmar sua própria existência, agora trata de defender violentamente a existência das corporações para salvar o espírito corporativo que é seu próprio espírito (Marx, 1978: 358). A existência de corporações está vinculada a interesses particulares que têm no antagonismo de classe o conflito central. Essa situação de antagonismo é o cerne das contradições e tensões a serem enfrentadas pela burocracia como representante dos “interesses gerais” da sociedade. Portanto, a determinação lxxi fundamental da burocracia deve ser encontrada na estruturação da sociedade de classes, na medida em que são os interesses antagônicos de classe que conformam os conflitos substantivos numa sociedade, exigindo a intervenção do Estado, através de sua ordem administrativa. Dessa forma, encontramos o limite estrutural da burocracia como instrumento de realização da ampliação radical da universalização e aprofundamento de direitos. Em outras palavras, a burocracia, como um dos elementos da materialidade do Estado, expressa também as contradições da sociedade de classes que exigem a existência do Estado como estrutura de dominação política. Portanto, a burocracia apresenta-se como uma das mediações entre o Estado e as classes sociais, visando a manutenção da ordem. Nesses termos, a existência da burocracia está vinculada ao Estado e, por conseguinte, à dominação de classe. Sendo assim, a burocracia responde a uma dada organização social que supõe a existência de dominados e dominantes, social e economicamente falando. Portanto, uma sociedade que não comporta a radicalização e o aprofundamento dos direitos. Eis, então, os limites da organização burocrática. Entretanto, se é correto afirmar que existe um limite estrutural para a burocracia atuar como instrumento de realização da ampliação radical da universalização e aprofundamento de direitos, é também correto afirmar que a burocracia como expressão do Estado capitalista, ou seja de uma sociedade dividida em classes, deve atuar administrando interesses antagônicos para manter a ordem e, nesse sentido, tem que atender a interesses das classes dominadas, como vimos anteriormente. Sendo assim, a burocracia, como estrutura administrativa, ganha relevância para processos de redução de desigualdade. lxxii Assim, encontramos na filosofia hegeliana e na crítica marxiana a relevância e o limite da burocracia enquanto forma de organização administrativa para conduzir as ações do Estado, através do poder governativo. Entretanto, cabe aprofundarmos as determinações centrais da burocracia para explicitarmos de forma mais concreta elementos que podem se apresentar como potencialidades ou como limites desse tipo de organização administrativa para a realização de uma finalidade voltada para ampliação de direitos sociais. O caráter de dominação presente na burocracia e a racionalidade de sua estruturação são determinações centrais que merecem destaques ao analisar a burocracia. E, sem dúvida alguma, Weber é um autor indispensável para refletirmos essas questões. Burocracia e dominação A dimensão de dominação de classe da burocracia já foi apontada anteriormente - mas voltaremos a ela nos momentos que fizerem-se necessários. Agora trataremos de uma outra dimensão da dominação que também está presente na burocracia. Segundo Weber, a burocracia implica dominação na medida em que ela é uma estrutura administrativa e, para ele, toda administração é dominação pois remete à obediência (Weber, 1999a: 32-34). Nas palavras do autor: Toda a dominação manifesta-se e funciona como administração. Toda administração precisa de alguma forma, da dominação, pois, para dirigi-la, é mister que certos poderes de mando se encontrem nas mãos de alguém (Idem, 1999b: 193). Dominação, para Weber, significa “a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas” lxxiii (Weber 1999a: 139). Nesses termos, Max Weber define a burocracia como sendo a forma de dominação legítima de caráter racional, a dominação legal (idem: 141). Em outras palavras, a ordem administrativa implica dominação na medida em que é um conjunto de normas que procura regular a ação associativa, através da orientação do comportamento do quadro administrativo e dos membros em relação à associação. Ou seja, orientar o comportamento implica poder de mando e “obediência” às normas estabelecidas para atingir determinado fim. E, como vimos anteriormente, o conceito weberiano de dominação é justamente a probabilidade de existência de obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas. Assim, administração implica dominação. O conceito de dominação utilizado por Weber tem um sentido mais estreito do que o condicionado “pela situação de mercado ou por situações de interesse”, pois implica apenas a questão da “obediência” (Weber, 1999b: 191). Esse sentido “mais estreito” permite trabalhar com a dominação em diversos tipos de relação de obediência, tornando-se, portanto, paradoxalmente, um conceito mais elástico. A partir da perspectiva marxista, podemos dizer que esse tipo de dominação, apontado por Weber, não desaparece com a extinção do Estado. A extinção do Estado implica a extinção da dominação de uma classe sobre a outra. Assim, a dominação exercida pelo quadro administrativo estatal como probabilidade de encontrar obediência a determinadas ordens por determinadas pessoas pode perpetuar numa sociedade sem classes. A tarefa de eliminar esse tipo de dominação não se limita à estruturação de uma nova ordem social, visto que se um quadro administrativo apropria-se exclusivamente ou majoritariamente do poder de decidir a finalidade da administração e dos meios objetivos para sua consecução (mesmo sendo essa lxxiv apropriação uma possibilidade teórica abstrata), esse quadro administrativo transforma-se numa classe privilegiada em relação aos outros membros da associação, perpetuando a relação de dominação, no sentido marxiano. Ou seja, mesmo estabelecendo uma nova ordem social e econômica, se o poder de mando ficar concentrado nas mão de um pequeno grupo responsável pela condução política e administrativa, a dominação exercida poderá resultar numa dominação de classe, na medida em que esse grupo se apropria, também, dos meios de produção. O que efetivamente apresenta-se como mais opressivo que a dominação como mecanismo de obter obediência. Nas palavras do próprio Weber: ...a dominação puramente condicionada pela situação de mercado ou por situações de interesse pode ser sentida, precisamente por sua falta de regulamentos, como algo muito mais opressivo do que uma autoridade regulamentada na forma de determinados deveres de obediência (Weber, 1999b: 191). Portanto, do ponto de vista social, Weber concorda com Marx em que a questão da dominação econômica é mais opressiva que a dominação como mecanismo para obter obediência. Porém, diferentemente de Weber, Marx enfoca a questão da dominação na sociedade não pelo caráter de “obediência” que ela evoca, mas pelo o caráter político e econômico de classe que ela possui. Por outro lado, convém também ressaltar que Marx não despreza ou minimiza a dominação enquanto relação de mando-obediência, exercida pela burocracia, haja vista a sua valorização da experiência da administração da Comuna de Paris. O autor verifica naquela experiência a realização de uma República democrática: sua essência estava no fato de ser “um governo da classe trabalhadora,(...) a forma política, finalmente descoberta, na qual podia ser feita a libertação da economia do trabalho” (Marx, 1984: 299). Ou seja, apesar da questão central da dominação estar vinculada à questão da classe e sua superação depender da “libertação econômica do trabalho”, Marx lxxv analisa positivamente a estrutura de gestão da Comuna, na medida em que ela procura enfrentar a dominação estabelecida na relação de mando-obediência presente na organização burocrática, a partir da reestruturação da administração, realizada através da incorporação de mecanismos democráticos31. Na tradição marxista, também é significativo lembrar algumas posições de Lênin e Gramsci sobre a burocracia e a questão da dominação em seu sentido estrito. Vejamos rapidamente algumas dessas observações. A primeira questão a ser considerada, a partir da reflexão leniniana, diz respeito à distinção que o autor faz entre burocracia e quadro técnico32. Ou seja, a necessidade de superar a organização burocrática não significa desconhecer a importância da especialização e do conhecimento para as questões da administração da sociedade. Segundo o autor: Não se deve confundir a questão do controle e do registro com a questão do pessoal com formação científica, dos engenheiros, dos agrônomos, etc.: estes senhores trabalham hoje subordinando-se aos capitalistas e trabalharão ainda melhor amanhã subordinando-se aos operários armados (Lênin, 1980: 290). Lênin, dessa forma, distingue, na organização burocrática, a questão do conhecimento e especialização da questão do controle da produção e da distribuição e do registro do trabalho e dos produtos. Ou seja, a dominação da burocracia em sentido estrito está vinculada à forma de controle e registro estabelecidos por ela. Essa dimensão deve ser superada e o controle e registro devem ser realizados pelos trabalhadores. Esse é um passo importante para a extinção da dominação, mas é apenas um elemento restrito dela. Gramsci aborda a dominação em seu sentido estrito quando trata da relação entre comandar e obedecer e quando discute a disciplina. 31 Voltaremos a essa questão quando tratarmos da administração pública democrática. 32 Esta questão foi muito bem observada por Netto (2004: 118). lxxvi Para o autor, todo comando implica obediência e em toda obediência está presente o comando. O comando sempre está relacionando a um fim que deseja-se alcançar e esse comando pode ser hierarquicamente imposto ou ser efetivado por acordo prévio e colaboração (Gramsci, 2000: 273). Nesse sentido, a relação comando-obediência, que Weber considera como dominação, é tratada por Gramsci como uma questão não vinculada diretamente à dominação política, mas presente em toda relação que envolve comando; dessa forma, Gramsci procura distinguir um comando autoritário de um comando exercido por acordo e colaboração, a que poderíamos chamar de democrático. Gramsci deixa mais explícita sua posição quando trabalha a questão da disciplina. Segundo o marxista italiano, a disciplina pode ser autônoma e livre quando apresenta-se “como uma assimilação consciente e lúcida da diretriz a seguir” - ou um acolhimento servil e passivo de ordens - quando realiza-se “como execução mecânica de uma tarefa”. A distinção entre as duas expressões da disciplina encontra-se na “origem do poder que ordena a disciplina”. Se a origem for “democrática” – autoridade exercida num grupo socialmente homogêneo, através de uma função técnica especializada – a disciplina será autônoma e livre; se a origem do poder for arbitrária ou uma imposição extrínseca e exterior, ela será servil (Gramsci, 2000: 308-309). Como vê-se, a questão da dominação, em seu sentido weberiano, não deixa de ser tratada pelos marxistas, apesar da questão central, para autores vinculados à essa tradição, vincular-se à dominação de classe. Retomando nossa argumentação, neste ponto cabe observar que a definição de administração como dominação não é compartilhada pela concepção de administração em geral desenvolvida por Paro: como não trabalha com a concepção lxxvii “estreita” de dominação, mas sim com a concepção da tradição marxista, não faz sentido a sua utilização para determinar o conceito em geral de administração. Paro, em sua definição de administração utiliza a racionalidade como categoria central, seja na perspectiva da utilização dos recursos para atingir os fins, seja na perspectiva da definição dos próprios fins33. Entretanto, se considerarmos o sentido weberiano de dominação (sua relação com a obediência) e analisarmos a formulação de Paro, verificaremos que a questão da obediência está implícita em sua concepção. Pois, segundo o autor, coordenar o esforço humano coletivo é uma das dimensões da utilização racional dos recursos para atingir fins, ou seja, é uma das dimensões da administração. E coordenar o esforço coletivo implica, necessariamente, em mando e obediência, por mais democrática que seja a coordenação realizada. Parafraseando Paro, pode-se dizer que Weber generaliza uma concepção de administração situada historicamente. Ou seja, até hoje, a administração concretamente falando, historicamente determinada, sempre apresentou-se como uma estrutura de dominação, onde o poder de mando do quadro administrativo é exacerbado, devido à dominação da classe dirigente. Portanto, a dominação presente na administração é a expressão das relações de dominação presentes até então em nossa sociedade. Assim, esse conceito de administração não está totalmente depurado. É um conceito que expressa a forma de administração até então existente, onde a dimensão de dominação, enquanto relação poder de mandoobediência, se sobressai na medida que é determinada pela dominação política e econômica de classe. 33 Desenvolveremos o tema da racionalidade e suas implicações na administração, de forma geral, e na burocracia, especificamente, nas próximas duas seções. lxxviii Esse fato não desqualifica o significado do conceito weberiano, apenas indica que devemos trabalhá-lo compreendendo que ele compõe o movimento real da administração na sociedade atual e não se identifica com o conceito em geral de administração. O caráter de dominação é próprio, portanto, a toda ordem administrativa existente até então. Porém, só a administração burocrática exerce a dominação de forma racional, ancorada em parâmetros formais e legais. Ou seja, a definição de Weber de burocracia nos remete a uma forma racional de administração necessária para obter a obediência de um grupo de pessoas. Em resumo, a burocracia é uma estrutura administrativa racional de dominação. Cabe ainda ressaltar que o fato de Weber tratar a dominação sob o ponto de vista da autoridade e da obediência não significa dizer que o sociólogo alemão relativiza os problemas advindo da dominação exercida pela burocracia. Muito pelo contrário, como Tragtenberg sublinha: O que é real é que Weber estudou a burocracia porque via na sua expansão no sistema social o maior perigo ao homem. Estudou para criar os mecanismos de defesa ante a burocracia (Tragtenberg, 1992: 139). Não é sem propósito que o autor de Economia e Sociedade mostra como a burocracia possui e procura manter seu poder, através da articulação entre o conhecimento técnico do especialista e o “saber oficial”34, que transforma em “saber secreto” mediante a utilização do conceito de “segredo profissional”. Dessa forma, a burocracia busca excluir o público da análise de suas ações, sugerindo que não possuem conhecimento adequado para avaliar a ação administrativa ou alegando ser o segredo um elemento da natureza de sua função (Weber, 1999b: 565). 34 Para Weber, o saber oficial é “o conhecimento somente acessível aos funcionários pelos meios do aparato oficial, dos fatos concretos que determinam suas ações” (Weber, 1999b: 565). lxxix Sem desconsiderar a questão do segredo como constituinte de determinadas funções objetivas da burocracia (por exemplo: determinadas funções diplomáticas, estratégias de intervenção econômica, programas de segurança militar, ações estratégicas empresariais), Weber nos esclarece que: O poder da burocracia plenamente desenvolvida é sempre muito grande e, em condições normais, enorme. E o ‘senhor’ ao qual serve (...) encontra-se sempre, diante dos funcionários especializados ativos na administração, na situação de um ‘diletante’ diante do ‘especialista’. Toda a burocracia procura aumentar mais ainda esta superioridade do profissional instruído, ao guardar segredo sobre seus conhecimentos e intenções (Weber, 1999b: 225) Weber continua sua exposição com a seguinte observação: A tendência ao segredo resulta em determinadas áreas administrativas, de sua natureza objetiva(...). Mas muito além destas áreas em que se guarda segredo por motivos puramente objetivos, atua por parte da burocracia o puro interesse no poder. O conceito do ‘segredo oficial’ é sua invenção específica, e nada é defendido por ela com mais fanatismo que precisamente esta atitude (...) (Weber, 1999b: 225-226). O alerta weberiano sobre os perigos da burocracia, no entanto, vai além das considerações acima. O pensador alemão, ao relacionar o processo de burocratização com o processo de racionalização, como veremos detalhadamente na próxima seção, conclui de maneira enfática que é um fato fundamental da sociedade moderna “o avanço irrefreável da burocratização” (Weber, 1999b: 542). Sendo assim, o autor apresenta como essenciais para se pensar formas de organização política as seguintes questões: 1) Como é possível, diante desta tendência irresistível à burocratização, salvar pelo menos alguns resquícios de uma liberdade de ação ‘individualista’ em algum sentido? 2) Em face da indispensabilidade crescente (...), da posição de poder do funcionalismo estatal (...), como pode haver alguma garantia de que existam poderes capazes de manter dentro de seus limites a prepotência enorme desta camada cada vez mais importante, e que a controlem eficazmente? Como será possível uma democracia pelo menos neste sentido limitado? 3) A terceira questão, a mais importante de todas, resulta da consideração daquilo que a burocracia como tal não realiza, pois é fácil constatar que sua capacidade, tanto na área da organização pública, política-estatal, quanto na da economia privada, tem firmes limites internos. O espírito dirigente (...) é algo distinto do ‘funcionário’. Não necessariamente pela forma, mas pela essência (...). Quando lxxx uma figura dirigente é um ‘funcionário’, segundo o espírito de sua direção, mesmo um funcionário muito competente – alguém, portanto, que está acostumado a realizar seu trabalho de acordo com os regulamentos e a ordem dada, cumprindo honestamente seus deveres – então não presta para ocupar uma posição à cabeça de uma empresa da economia privada, nem à cabeça de um Estado” ( Weber, 1999b: 543). Weber, assim, nos oferece três elementos centrais para refletirmos sobre os “perigos” da burocratização para a sociedade. A questão da liberdade individual, a questão do controle da sociedade sobre a burocracia e a questão do “dirigente” da sociedade numa ordem dominada pelo “funcionário”. Nesse sentido, diferentemente do que muitos afirmam, Weber não possui uma atitude positiva, simplista e esquemática sobre a burocracia. Para finalizar a breve reflexão sobre a expressão da dominação presente na burocracia, torna-se mister relacionar, sinteticamente, os elementos centrais presentes na concepção marxiana e da tradição marxista tratada aqui com aqueles trabalhados por Weber. Em termos gerais, pode-se afirmar que tanto a concepção weberiana quanto a marxiana e a da tradição marxista acima referida (Lênin e Gramsci) consideram a dominação exercida pela burocracia como um problema a ser enfrentado. Do ponto de vista weberiano, a preocupação concentra-se na dominação administrativa que a burocracia exerce e a tendência dela vir a assumir o poder governativo, a direção estatal, pois a dominação econômica não é considerada sociologicamente por Weber. Por outro lado, o ponto de vista marxiano e marxista, apesar de considerar a dominação em sua dimensão tipicamente sociológica, como diria Weber (probabilidade de obtenção de obediência), analisa que o elemento central de enfrentamento deve ser localizado na relação que a burocracia possui com a lxxxi dominação de classe - ou seja, dominação política, segundo Marx - e sua tendência a atuar para a perpetuação dessa dominação. Até aqui, pode-se considerar, em tese, que o fato da burocracia exercer dominação administrativa e política - no sentido marxiano do termo – exige como tarefa para transformação da sociedade um movimento que articule a eliminação processual da dominação administrativa exercida pela burocracia, com a superação mediata da dominação de classe efetivada pela ordem burocrática, que está relacionada com o modo de produção baseado na exploração do trabalho. Nesse sentido, as indicações weberianas podem ser úteis para a definição de estratégias mais imediatas de intervenção, desde que não se perca o horizonte da transformação da atual ordem social. A racionalidade burocrática Do ponto de vista da sociedade capitalista, numa perspectiva que pretenda-se de intervenção democrática de aprofundamento e ampliação de direitos, o problema central que se coloca é o da identidade entre os valores burocráticos e os valores capitalistas. Ou seja, até que ponto a estrutura burocrática serve apenas aos interesses da classe dominante (burguesia) e até aonde sua racionalidade é apenas instrumental, visando a ordem capitalista. A resposta a primeira questão foi dada a partir da reflexão sobre a função da burocracia no capitalismo. A segunda questão nos leva a refletir sobre a racionalidade burocrática e sua expressão material, o que faremos a partir deste momento. O primeiro aspecto a ser observado é o fato de Weber, ao definir uma administração de caráter racional, pressupor a existência de administrações não lxxxii racionais vinculadas a outros tipos de dominação legítima (dominação tradicional35 e dominação carismática36). Portanto, weberianamente falando, administração implica dominação (onde há administração há dominação, apesar do contrário não ser necessariamente verdadeiro, pois pode haver dominação sem a existência de quadro administrativo), porém não implica racionalidade. Apenas a administração burocrática é uma administração racional. Por isso, Weber afirma que “só existe escolha entre ‘burocratização’ e ‘diletantização’ da administração” (Weber, 1999a: 146). Sendo assim, a concepção weberiana de administração difere daquela que apresentamos inicialmente fundamentada em Paro. Este, como vimos, define administração pelo seu caráter racional, portanto descarta a possibilidade de encontrarmos administração em atividades irracionais. No entanto, devemos, também, nos perguntar sobre se o conceito de racionalidade de ambos se equivale, pois, se assim não for, a diferença entre as concepções pode ser mais ampla, sutil e complexa que aquela estabelecida apenas entre o corte racional/irracional. Devemos, então, primeiramente e de forma sucinta, discutir a questão da racionalidade, para depois refletirmos sobre a racionalidade da burocracia. Paro trabalha com a concepção de razão vinculada à tradição marxista, portanto tributária da razão moderna. Dessa forma, a razão constitui-se de duas dimensões: a dimensão instrumental-analítica e a dimensão de emancipação. 35 De acordo com Weber: “Denominamos uma dominação tradicional quando sua legitimidade repousa na crença na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais(...). O dominador não é um ‘superior’, mas senhor pessoal; seu quadro administrativo não se compõe primariamente de ‘funcionários’ mas de ‘servidores’ pessoais, e os dominados não são ‘membros da associação’, mas 1) ‘companheiros tradicionais’ ou 2) ‘súditos’. Não são os deveres objetivos do cargo que determinam as relações entre o quadro administrativo e o senhor: decisiva é a fidelidade pessoal de servidor” (Weber, 1999a: 148). 36 A dominação carismática é a dominação baseada na “qualidade pessoal considerada extracotidiana (...) e em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas, ou, pelo menos, extracotidianos específicos(...)” (Weber, 1999a: 158-159). Conforme o autor explicita, o “quadro administrativo do senhor carismático não é um grupo de ‘funcionários profissionais’, e muito menos ainda tem formação profissional. Não é selecionado segundo critérios de dependência doméstica ou pessoal, mas segundo qualidades carismáticas (...). Não há ‘colocação’ ou ‘destituição’, nem ‘carreira’ ou ‘ascenso’, mas apenas nomeação segundo a inspiração do líder, em virtude da qualificação carismática do invocado” (Weber, 1999a: 159-160). lxxxiii Contudo, como o surgimento e o desenvolvimento da razão moderna está intimamente relacionado ao processo de socialização da sociedade, viabilizado pela sociedade burguesa, implicando no processo de industrialização e urbanização, o que provoca a crescente necessidade de controle da natureza, ocorre - como consequência desse desenvolvimento e amadurecimento do capitalismo - uma supervalorização da dimensão instrumental-analítica da razão em detrimento da dimensão emancipatória (Netto, 1994a: 31). Essa hipertrofia é decorrente da própria lógica do capital que exige uma crescente capacidade de manipulação da natureza, provocando a exacerbação da dimensão instrumental da razão, inclusive estendendo essa racionalidade para o “domínio das relações sociais” (Netto, 1994a:32). Nesse sentido, a dimensão emancipatória da razão, vinculada aos fins universalistas, voltada para a liberdade efetiva de todos os seres humanos, apresenta-se como contraditória aos fins da sociedade burguesa. Assim, porque a razão moderna, enquanto racionalidade instrumental, é extremamente funcional ao capitalismo - na medida em que possibilita o desenvolvimento de forças produtivas e processos de produção cada vez mais sofisticados -, a dimensão emancipatória da razão moderna foi inibida e substituída por uma finalidade particularista de manutenção da exploração do trabalho assalariado. Dessa forma, na sociedade burguesa a razão moderna não se realiza por completo e é crescentemente reduzida à sua dimensão instrumental, na medida em que não se questiona a finalidade para qual está sendo desenvolvida e aplicada. Netto, ao abordar esse processo, afirma que: a consolidação da ordem burguesa tende a reduzir a racionalidade à intelecção(...). É a esta tendência que, em termos histórico-culturais, deve-se creditar a hipertrofia prática do comportamento instrumental e lxxxiv a redução teórica da razão à racionalidade analítica (Netto: 1994a: 32). Weber, conforme Tragtenberg sinaliza, ao não colocar em questão, em sua sociologia, a legitimidade dos fins - devido a seu posicionamento sobre o juízo de valor na ciência -, mas apenas referir-se à análise sobre os meios utilizados para atingir fins determinados37, identifica razão e técnica. “A técnica é a mais perfeita expressão da razão e a razão é a técnica do comportamento e da ação” (Tragtenberg, 1992: 115-116). Weber, então, só trabalha com a dimensão da razão instrumental, conforme sublinha Paro, apoiado em Mannheim: a análise dos meios indica uma racionalidade em sua utilização, na medida em que se procura adequá-los da melhor forma possível à consecução do fim visado. É a racionalidade no sentido weberiano, chamada por Mannheim de racionalidade funcional (Paro, 2000: 55). Paro nos esclarece que a dimensão instrumental da razão (ou a racionalidade funcional) se expressa quer pelo emprego econômico (dispêndio mínimo de tempo e de recursos na consecução do fim visado), tanto dos recursos materiais e conceptuais quanto do esforço humano coletivo, quer pela adequação desses recursos aos fins visados” (Paro, 2000: 54). Portanto, o sociólogo alemão trabalha apenas com essa dimensão da razão. Assim sendo, Weber opera uma cisão da realidade entre o mundo da racionalização técnica e a área do irracionalismo que corresponde à esfera dos valores (Tragtenberg, 1992:116). Ao pensarmos na tipologia ideal weberiana sobre a ação social, podemos, apressadamente, julgar que as análises dos autores acima elencados em relação à racionalidade em Weber estão equivocadas, pois o sociólogo alemão trabalha com ação racional relativa a fins e ação racional relativa a valores. Devemos, portanto, esclarecer qualquer tipo de dúvida que possa pairar sobre este tema. 37 Conforme assinala Silva, segundo Weber a ciência contribui para definir os meios mais adequados a determinados fins, indicar as previsíveis consequências da realização dos nossos objetivos, esclarecer a importância do que se procura atingir e ajudar a explicitar os valores relacionados aos fins desejados. “Ou seja - o único dilema a que a ciência não responde é lxxxv A ação racional referente a fins, na definição de Weber, é aquela realizada por quem orienta sua ação pelos fins, meios e consequências secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às consequências secundárias, assim como os diferentes fins possíveis entre si: isto é, quem não age nem de modo afetivo38 nem de modo tradicional39 (Weber, 1999a: 16). A racionalidade encontra-se na ponderação dos fins e dos meios estabelecidos para a ação. Ou seja, pondera-se o fim, não se define racionalmente o fim. Por outro lado, a ação racional referente a valores é aquela determinada “pela crença consciente no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado” (Weber, 1999a: 15). Em relação às ações afetiva e referente a valores, o sociólogo alemão nos esclarece que “distinguem-se entre si pela elaboração consciente dos alvos últimos da ação e pela orientação conseqüente e planejada com referência a estes, no caso da última” (Weber, 1999a: 15). Portanto, o conceito de ação racional referente a valores relaciona-se com a ação realizada a partir da consciência que o ator tem dos valores que a fundamentam e pela orientação planejada com referência a estes. Ou seja, a racionalidade nesse caso está na consciência dos valores que orienta a ação, sejam eles quais forem, e no planejamento estabelecido em função deles. Dessa forma, a racionalidade não se encontra no valor, mas sim na consciência que se tem sobre o valor estabelecido e pela ação planejada desenvolvida. precisamente o mais importante; que fins fixar, que valores escolher” (Silva, 1988: 53) 38 Ação social afetiva é aquela determinada por afetos ou estados emocionais atuais (Weber, 1999a: 15). 39 Ação social tradicional é aquela determinada por costume arraigado (Weber, 1999a: 15). lxxxvi Assim sendo, os fins definidos, na ação racional referente a fins, e os valores, na ação racional referente a valores, não são categorias que Weber atribuía à racionalidade. Essa postura é coerente com a “neutralidade axiológica” defendida por Weber, a partir da distinção que ele estabelece entre “julgamento de valor” e “relação com valores”. Para a concepção weberiana, conforme destaca Aron, a ciência não valida os juízos de valor: ela baseia-se em premissas de valor, relacionando, inclusive, a matéria estudada com valores, mas nunca julgando-os (Aron, 1990: 470). Silva aprofunda essa análise indicando que existe um duplo sentido na neutralidade axiológica de Weber: Duplo já que a radical separação entre conhecer e julgar implica, como sabemos, a incapacidade de fundamentar analiticamente tomadas de posição, mas implica também que, dentro dos limites impostos pelo subjetivismo das operações de seleção, a demonstração científica está ou deve estar liberta de avaliações normativas (Silva, 1988: 59). Mesmo diferentes quando relações Weber que mostra podem as ser estabelecidas entre as ações racionais referente a fins e valores, não está em questão a racionalidade dos fins/valores. Ao tratar essa questão, o sociólogo afirma o seguinte: ...pode suceder que esta [racionalização da ação] corra, de maneira positiva, em direção a uma racionalização consciente de valores, porém de maneira negativa, às custas não apenas do costume, mas igualmente da ação afetiva, e finalmente também em direção à ação puramanente racional referente a fins e não crente em valores, às custas da ação racional referente a valores (Weber, 1999a: 19). Em nenhum momento está em pauta a racionalidade do fim e/ou do valor proposto. Apenas sinaliza que a racionalização da ação pode ser positiva em direção a um valor conscientemente determinado, independente de questões de costume ou afetiva, e, também, puramente relacionada a fins e não a valores. lxxxvii Essas relações ficam ainda mais intricadas quando o autor afirma que: A decisão entre fins e consequências concorrentes e incompatíveis, por sua vez, pode ser orientada racionalmente com referência a valores: nesse caso, a ação só é racional com referência a fins no que se refere aos meios (Weber, 1999a: 16). Essa formulação pode sugerir ao leitor desavisado que Weber, ao indicar que a polêmica entre os fins pode ser resolvida pela racionalidade referente a valores, estaria imputando racionalidade ao valor que servirá de orientação para os fins que se quer atingir, através de meios racionais. Ou seja, o leitor pode interpretar que a racionalidade referente aos valores definirá o fim a ser perseguido por uma avaliação axiológica. Em outras palavras, dentre os fins incompatíveis opta-se pelo mais racional. No entanto, o que está presente na afirmação de Weber é o fato de que a polêmica entre os fins será resolvida fundamentada nos valores que o sujeito em ação opta conscientemente devido às suas referências éticas, estéticas e religiosas, sejam elas quais forem. Vejamos: Do ponto de vista da racionalidade referente a fins, entretanto, a racionalidade referente a valores terá sempre caráter irracional, e tanto mais quanto mais eleve o valor pelo qual se orienta a um valor absoluto; pois quanto mais considere o valor próprio da ação (atitude moral pura, beleza, bondade absoluta, cumprimento absoluto dos deveres) tanto menos refletirá as consequências desta ação (Weber, 1999a: 16). Assim sendo, Weber expõe o caráter “irracional” da racionalidade referente aos valores em relação à racionalidade referente aos fins, na medida em que, para ele, os valores não são racionais - racional é a consciência dos valores que orienta a ação. Weber, então, ao tratar da ação racional referente a fins, não a define adequadamente, pois na verdade não discute a racionalidade dos fins, apenas refere-se à racionalidade instrumental (a definição do melhor caminho e dos lxxxviii melhores instrumentos para a tingir determinados objetivos). Por outro lado, a ação racional referente a valores seria a ação voltada para a definição dos objetivos e finalidades ético-políticas de uma ação, sem levar em consideração, também, a racionalidade dos objetivos definidos. O importante a ressaltar é que sempre teremos uma ação racional referente a fins relacionada a uma outra referente a valores. Ou seja, a ação racional instrumental não existe abstratamente nem de forma neutra; a busca de um objetivo pressupõe uma estrutura axiológica, apesar de nem sempre ela estar explícita ou ser consciente. Por isso, a definição de administração de Paro é mais precisa, pois explicita essa relação dialética entre fins e meios presente na ação racional administrativa. Resumindo, a racionalidade trabalhada por Weber, como já havíamos indicado a partir de Tragtenberg e Paro, refere-se, substantivamente, às questões relacionadas à adequação dos meios aos fins/valores definidos. A problemática da racionalidade não atinge as questões sobre a pertinência racional dos fins e valores definidos. Como vimos, o conceito weberiano de burocracia é definido como a forma de dominação legítima de caráter racional. A partir da explicitação das definições de dominação e de racionalidade, referenciadas acima, podemos dizer que, para Weber, a burocracia é a forma legítima de obter obediência de um grupo de pessoas para atingir determinados objetivos, através do emprego econômico de recursos materiais e conceituais e do esforço humano coletivo, assim como da adequação desses recursos aos fins visados. Ou seja, a burocracia é definida, por Weber, através de um conceito “estreito” de dominação e da dimensão instrumental da racionalidade. Como destaca Tragtenberg: lxxxix A burocracia para ele é um tipo de poder. Burocracia é igual à organização. É um sistema racional em que a divisão de trabalho se dá racionalmente com vista a fins. A ação racional burocrática é a coerência da relação de meios e fins visados (Tragtenberg, 1992: 139). Dessa forma, o conceito de burocracia weberiana não explicita a relação de dominação de classe presente na burocracia (como vimos na seção sobre dominação) e nem o fim a que se propõe tal ordem administrativa. A menção que Weber fará sobre a finalidade da burocracia é mostrar que ela é adequada e necessária ao capitalismo, contribuindo para o desenvolvimento do mesmo. No entanto, o autor não apresenta, diretamente, o capitalismo como determinação de seu conceito de burocracia, pois trabalha com a dimensão instrumental da razão dando ênfase aos aspectos de “emprego econômico” e “adequação” na utilização dos recursos. Essa ênfase dada por Weber à caracterização da burocracia será tratada adiante. Neste momento, cabe explicitarmos melhor a relação entre burocracia e capitalismo no pensamento weberiano. Apesar de Weber apresentar a existência de estruturas burocráticas no Egito na época do Novo Império, no principado romano tardio, na Igreja Católica Romana e na China (Weber, 1999b: 204-205), ele deixa claro que a expressão definitiva da burocracia só se dá com a intensificação do intercâmbio de mercadorias, propiciado pelo desenvolvimento da economia capitalista. Para Weber, o capitalismo ao mesmo tempo em que exige uma administração burocrática oferece as condições para sua existência. O capitalismo necessita de uma “administração contínua, rigorosa, intensa e calculável”, por isso requer uma forma racional de dominação (Weber, 1999a: 146). Por outro lado, o capitalismo possibilita, através dos recursos monetários a existência da estrutura burocrática. xc Do mesmo modo que o capitalismo, em sua fase atual de desenvolvimento, exige a burocracia – ainda que os dois tenham raízes históricas diversas -, ele constitui também o fundamento econômico mais racional – por colocar fiscalmente à disposição dela os necessários meios monetários – sobre o qual ela pode existir em sua forma mais racional (Weber, 1999a: 146). Weber, quando analisa os pressupostos sociais e econômicos da burocracia, mostra que a ampliação quantitativa e, principalmente, qualitativa das tarefas da administração intensifica-se a partir do desenvolvimento da economia monetária que tem no capitalismo seu mais alto grau de manifestação. Essas demandas para a administração vão repercutir tanto na forma de administração privada (empresa capitalista) quanto na pública (Estado). Em relação à administração privada, Weber afirma: A exigência da realização mais rápida possível das tarefas oficiais, além de inequívoca e contínua, é atualmente dirigida à administração, em primeiro lugar pela economia capitalista moderna. As modernas empresas capitalistas de grande porte são elas mesmas, em regra modelos inigualados de uma rigorosa organização burocrática. Suas relações comerciais baseiam-se, sem exceção, em crescente precisão, continuidade e, sobretudo, rapidez das operações (Weber, 1999b: 212). Ele mostra que a grande empresa capitalista moderna é um dos exemplos históricos mais importantes de um burocratismo claramente desenvolvido (Weber, 1999b: 205), na medida em que é por excelência fundada na economia monetária, produzindo receitas contínuas, advindas do lucro privado, o que propicia o surgimento e possibilita a manutenção da estrutura burocrática e de seu quadro administrativo (Weber, 1999b: 208). Em relação à administração estatal, o autor, ao tratar da ampliação qualitativa das tarefas administrativas, afirma: As exigências culturais crescentes, por sua vez, estão condicionadas, ainda que em grau diverso, pelo desenvolvimento das camadas mais influentes no Estado. Neste sentido, a burocratização progressiva é uma função da propriedade crescentemente disponível para o consumo e empregada neste e de uma técnica cada vez mais refinada, correspondente às possibilidades assim criadas, do estilo de vida. Quanto á repercussão na situação geral de necessidades, isto condiciona a crescente indispensabilidade subjetiva de uma xci previdência interlocal e organizada em economia pública, isto é: burocrática, para as mais diversas necessidades da vida, que antigamente eram desconhecidas ou satisfeitas localmente ou pela economia privada (Weber, 1999b: 211). Essa relação entre burocracia e capitalismo revela um aspecto fundamental da racionalidade burocrática. Como a racionalidade trabalhada por Weber é instrumental - emprego econômico e adequação dos meios aos fins visados -, a racionalidade atribuída à burocracia é a da utilização do pensamento, do raciocínio, na manipulação dos meios necessários para atingir um fim determinado (Paro, 2000: 55). No entanto, o fim a que se destina a burocracia não fica explícito diretamente. Mas ao desvelar as conexões entre capitalismo e burocracia, Weber explicita os fins a que serve a burocracia. Ou seja, a burocracia apresenta-se como a ordem administrativa racional para os fins da expansão capitalista. Dessa forma, a racionalidade de fins implícita na concepção weberiana de burocracia identifica-se com a racionalidade da economia capitalista. Ou seja, uma racionalidade irracional, pois de caráter particularista, não universal, baseada na exploração do homem pelo homem, enfim, uma racionalidade não libertária, não emancipatória (Paro, 1990: 54-58). Então, a racionalidade funcional, utilizada por Weber é ideológica, pois escamoteia a existência de um fim determinado, na medida em que não existe emprego econômico e adequação de recursos sem referência a fins. E como no caso o fim não é racional no sentido moderno do termo, os meios também não o são, pois o caráter racional da burocracia é limitado pela finalidade de sua constituição. Entretanto, Weber não analisa a racionalidade da burocracia como sendo adequada apenas à economia capitalista. O sociólogo alemão aponta, também, devido à “disciplina” – obediência às regras – e à “impessoalidade” da estrutura xcii burocrática, a possibilidade da burocracia colocar-se à disposição de diferentes interesses de dominação: inclusive socialista (Weber, 199b: 223-224). A questão, então, é: como a burocracia pode se colocar à disposição de diferentes interesses, se afirmamos, anteriormente, que a utilização racional de recursos para atingir fins determinados necessita de adequação entre fins e meios? Ou seja, como a burocracia pode atender às finalidades distintas do capitalismo e do socialismo? Em nosso entendimento, isto acontece por dois motivos. Primeiro, porque ao trabalhar com a concepção de racionalidade funcional e não explicitar os fins que correspondem a determinado emprego econômico e adequado de recursos, Weber confunde traços da burocracia - relativos ao referido emprego dos recursos para o capitalismo -, que podem ser econômico e adequado, também, aos fins do socialismo, com a totalidade da estrutura burocrática. Em outras palavras, o que ocorre é que certas determinações da burocracia podem servir ao socialismo na medida em que ele (socialismo) refere-se a uma sociedade em transição, portanto, ainda com caráter de classe e necessitando de intervenções planejadas do Estado na sociedade. E, dessa forma, tal como a sociedade capitalista, o socialismo exige uma administração, ainda, com a dimensão de dominação. O segundo motivo refere-se à autonomia relativa entre meios e fins. Apesar de estarmos, até agora, mostrando que não há meios/recursos absolutos e neutros, pois eles sempre estão relacionados a algum tipo de finalidade, isto não significa dizer que os meios/recursos são operacionais apenas quando colocados à disposição daquelas finalidades que os geraram ou às quais eles estão mais diretamente vinculados. Ou seja, as tecnologias produzidas - inclusive as administrativas - em determinado contexto histórico, com determinada finalidade, xciii apesar de não serem neutras, não estão condenadas a servir apenas àquela finalidade. Podemos encontrar, na relação entre fins e meios/recursos, situações diferenciadas, onde determinados meios/recursos, pela sua qualidade, estão visceralmente vinculados a fins específicos e outros que apresentam-se como maior autonomia frente aos fins estabelecidos. Nesse sentido, a necessidade da burocracia para o socialismo está correta parcialmente, pois é uma sociedade em transição e estamos considerando a autonomia relativa entre meios e fins. Na transição, as mudanças fundamentais ainda não foram realizadas, uma nova sociedade, uma sociedade sem classes, ainda não está consolidada e, por isso, são necessários Estado e burocracia como instrumentos de dominação, mas que tenham como perspectiva a superação dessa estrutura. Por outro lado, a autonomia relativa existente entre meios e fins permite vislumbrar meios que possam ser utilizados para fins diversos. Essa compreensão reforça a análise realizada anteriormente sobre o caráter contraditório da burocracia, na medida em que ela possui como uma de suas funções o atendimento a demandas das classes dominadas. Do ponto de vista do conceito de administração de Paro, podemos dizer que a burocracia weberiana é a forma determinada historicamente da administração na sociedade capitalista. A burocracia é a expressão da administração capitalista, na medida em que define racionalmente o emprego econômico e adequado dos recursos para atingir os fins da expansão do capital. Nesse sentido, devemos entender a burocracia não como um dos modelos de administração existente no capitalismo, mas sim como a própria administração capitalista, que pode ser xciv organizada de diferentes maneiras, para garantir a dominação de classe, através de ações que acabam atendendo determinadas demandas das classes dominadas. Então, a partir da análise crítica do conceito weberiano de burocracia, devemos aprofundar a definição explicitada anteriormente e entender que a burocracia é a forma legítima de obter obediência de um grupo de pessoas e exercer o poder de classe para atingir objetivos voltados para a expansão capitalista, através do emprego econômico de recursos materiais e conceituais e do esforço humano coletivo, assim como da adequação desses recursos aos fins visados, que se expressam, também, pela necessidade de atender determinadas demandas da classe dominada. Consideramos que dessa forma o conceito de burocracia fica completo em suas determinações essenciais. Concluindo nossa reflexão, podemos dizer que, ao trabalhar a racionalidade instrumental como racionalidade, Weber não explicita determinados valores que estabelecem e que influenciam o formato de determinada ação social. O tratamento que o sociólogo dá a questão da burocracia é típica. Ou seja, para ele, a burocracia é uma ação racional que possui validade independente da finalidade a que destina-se. Como vimos, em nosso entendimento, esse pressuposto é equivocado, pois é necessário que os recursos sejam adequados às finalidades. Por isso, é fundamental explicitar que, do ponto de vista da perspectiva que pretendemos desenvolver, o valor que define a ação racional administrativa - ou seja: a orientação pautada na ampliação e aprofundamento de direitos sociais -, demarca as possibilidades de analisarmos a interação entre fins e meios. A partir da compreensão da racionalidade, na perspectiva vinculada à tradição marxista, e do entendimento de que a burocracia em Weber identifica-se com a administração capitalista, veremos agora os traços essenciais da expressão material xcv da racionalidade da administração burocrática e suas implicações para uma perspectiva que se pretenda comprometida com uma administração pública democrática. Ou seja, partindo da concepção geral de administração desenvolvida por Paro, buscaremos articular uma finalidade racional - no sentido do atendimento “às necessidades humanas em sua globalidade”, considerando o homem em sua “especificidade e universalidade” (Paro, 2000: 57) - com a utilização racional de recursos para tal fim. Assim, procuraremos explicitar formas de racionalização do trabalho e coordenação do esforço humano coletivo, a partir da crítica da administração burocrática, que possam ser referências para uma administração pública democrática, na medida em que a burocracia expressa uma forma de administração com certo nível de racionalidade, oferecendo condições para atender determinadas demandas das classes dominadas, devido ao seu caráter contraditório, destacado anteriormente. Portanto, procuraremos mostrar, tendo como perspectiva a idéia de que existe uma certa autonomia dos meios em relação aos fins, que alguns parâmetros da administração burocrática podem e devem ser incorporados para uma proposição de ampliação e aprofundamento de direitos. Até porque, essa proposição só se apresenta incompatível com o capitalismo se for efetivada de forma radical, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Expressão material da racionalidade burocrática Consideramos como núcleo da “expressão material da racionalidade burocrática” as características concretas dessa experiência histórica de administração, sistematizadas por Weber. A partir da apresentação dessas xcvi características procuraremos problematizá-las e destacar, na seção seguinte, a partir da contradição burocrática, alguns traços que são importantes para o desenvolvimento de uma administração pública democrática, ou seja, uma administração pública voltada para o aprofundamento e a ampliação de direitos. A racionalidade da burocracia, segundo o sociólogo alemão, está presente, principalmente, na sua estrutura teórico-formal e sua superioridade encontra-se no conhecimento profissional de seus quadros (Weber, 1999a: 146). A burocratização é o processo racional e de especialização da administração. Diferentemente do que comumente atribui-se à burocracia e, pior, ao conceito weberiano de burocracia, ela não se configura como “um” modelo de administração racional. Para Weber, ela é “a” administração racional. Como vimos anteriormente, administrar, para Weber, é exercer dominação, ou seja, obter obediência de determinadas pessoas para determinados objetivos. Porém, nem toda a dominação é exercida através da administração. A burocracia, então, é uma forma racional de dominação exercida por um quadro administrativo. A racionalidade burocrática, segundo Weber, expressa-se através das seguintes características, enquanto um tipo puro, no que refere-se à sua estrutura: a) Princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos administrativos; b) Princípio da hierarquia de cargos e da sequência de instâncias, isto é, um sistema fixamente regulamentado de mando e subordinação das autoridades, com fiscalização das inferiores pelas superiores; c) Baseada em documentos; d) Pressupõe, em regra, uma intensa instrução da matéria; xcvii e) Requisição do emprego da plena força de trabalho do funcionário, quando o cargo está plenamente desenvolvido, independentemente da carga horária fixada; f) Realização da administração dos funcionários de acordo com regras gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos abrangentes, que podem ser aprendidas (Weber, 1999b: 198 – 200). Em relação ao poder de mando e obediência, a burocracia estrutura-se de forma que o senhor legal típico, enquanto ordena e manda, obedece à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições. Por outro lado, quem obedece, obedece às regras e não ao senhor. A obediência, nesse sentido, está vinculada às regras impessoais. (Weber, 1999a: 142). Em relação ao quadro administrativo burocrático, enquanto funcionários, a burocracia expressa-se da seguinte forma: a) São livres e obedecem às obrigações objetivas; b) São nomeados por uma hierarquia rigorosa; c) Têm competências funcionais fixas; d) São contratados formalmente, através de seleção, segundo a qualificação profissional, avaliada mediante prova e certificada através de diploma; e) São remunerados com salários em dinheiro; f) Exercem o cargo como profissão única e principal; g) Têm perspectiva de uma carreira; h) Trabalham em separação absoluta dos meios administrativos e sem apropriação do cargo; i) Estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de disciplina e controle do serviço. (Weber, 1999a: 144). xcviii São essas características, tanto da estrutura quanto do quadro administrativo, que fazem da burocracia uma administração com características de racionalidade, que vem responder a determinadas tarefas que crescem quantitativamente e que intensificam-se qualitativamente, a partir do desenvolvimento da economia monetária capitalista. Porém, não só Weber identifica racionalidade na burocracia. Hegel, na medida em que conceitua burocracia como a classe universal, aquela responsável para garantir os “interesses gerais” do Estado, e sendo o Estado a razão em si e para si, atribui a ela (classe universal) uma intervenção na sociedade segundo as determinações da razão. Mas, diferentemente de Weber, Hegel, um expoente do pensamento iluminista, considera a razão em sua dimensão finalística e não só instrumental. Concretamente, para Hegel, a burocracia é a responsável por executar e realizar os atos do governo. Os indivíduos destinados às funções governamentais (ou seja, a compor a burocracia) são escolhidos através de “provas” de aptidão. Dessa forma, qualquer indivíduo pode vir a compor a burocracia e, nesse sentido, fazer parte da classe universal e, assim, cumprir o dever relativo à profissão oficial que exerce, que é a substância de sua situação. Para isso, deve o profissional ser remunerado e não voluntário, pois a ação voluntária, como ressalta Hegel, tende a ser desenvolvida por finalidades subjetivas e não objetivamente como deve ser uma função de Estado (Hegel, 1997: 266-270 / §287-§294). Como podemos perceber, a expressão material da burocracia em Hegel não difere substantivamente da apresentada por Weber, apesar deste último determinar com mais precisão sua configuração. xcix Por outro lado, Hegel, por que trabalha com uma concepção de racionalidade na esteira do iluminismo, atribui uma racionalidade à burocracia - enquanto classe universal, expressão do Estado racional - voltada para os interesses universais. No entanto, como pudemos constatar anteriormente, através da crítica marxista, a concepção hegeliana é uma concepção fortemente ideológica, na medida em que não existe interesse geral numa sociedade de classe. Assim sendo, a crítica que Marx direciona às determinações hegelianas da burocracia, mostrando que Hegel apenas apresenta elementos que conformam a descrição empírica da burocracia, em parte como ela realmente é e, em parte, como ela se vê40, pode também ser utilizada em relação as características que Weber atribui à administração burocrática. A expressão material da administração burocrática (estrutura e quadro administrativo), nas descrições de Hegel e Weber, manifesta-se formalmente. Parafraseando Marx, podemos dizer que o formalismo é como a burocracia realmente é. Por outro lado, os conteúdos dessa ordem administrativa não são analisadas de forma consistente pelos autores. Hegel ideologiza a burocracia como a responsável em garantir os interesses gerais da sociedade e Weber atribui à burocracia uma racionalidade abstrata. Ou seja, poderíamos dizer que a burocracia racional e responsável pelos interesses gerais é como ela própria se vê. Podemos afirmar que a descrição empírica realizada por Hegel e Weber corresponde a traços efetivos que a burocracia possui e, por outro lado, a finalidade universal, de cunho hegeliano, e a racionalidade abstrata weberiana expressam-se como aparências do fenômeno burocrático. 40 “Hegel nos oferece uma descrição empírica da burocracia, em parte tal e como realmente é e em parte de acordo com a opinião que ela tem de si mesma” (Marx, 1978: 358). c Isto significa que a base material da burocracia expressa possibilidades de uma configuração com algum nível de racionalidade e voltada para interesses diversos, na medida em que a aparência, como vimos anteriormente, faz parte do fenômeno. Na próxima seção, a partir dessa discussão sobre a relação formaconteúdo da burocracia, destacaremos as possibilidades da organização burocrática atuar na perspectiva de ampliação e aprofundamento de direitos. Burocracia e administração pública democrática Como já antecipamos anteriormente, o servidor livre é uma das expressões da materialidade da burocracia que deve ser preservado, na medida em que possibilita a entrada no quadro administrativo de funcionários com conhecimento e liberdade que pode vir a oferecer resistência a determinados projetos colocados em pauta. Vejamos melhor esse aspecto. A possibilidade da burocracia ser um instrumento para uma finalidade de administração pública voltada para ampliação e aprofundamento de direitos está, primeiramente, vinculada diretamente à sua função contraditória como aparelho de Estado. No entanto, é na sua particularidade, enquanto ordem administrativa, que encontramos os elementos concretos de sua potencialidade, no sentido de operar interesses das classes dominadas. Uma das determinações da burocracia, segundo Marx, é o fato dela ser o formalismo de um conteúdo que está fora dela (Marx, 1978: 358). Essa determinação marxiana explicita que o suposto interesse geral que a burocracia procura garantir na sociedade, enquanto expressão material da razão universal do Estado, nada mais é do que um interesse particular privado frente a outros interesses privados. ci Portanto, os fins formais da burocracia, entendidos como a preservação do interesse geral na sociedade, entram em conflito com os seus fins reais que é a garantia de determinados fins particulares. Dessa forma, os fins do Estado são convertidos em fins burocráticos e os fins burocráticos em fins do Estado. Ou seja, a burocracia opera a finalidade real do Estado, enquanto dominação de classe, e o Estado apresenta-se, através da finalidade formal da burocracia, enquanto universalidade. Concluindo, Marx afirma: Na burocracia, a identidade do interesse do Estado e do fim privado particular se estatui de tal modo que o interesse do Estado se converte em um interesse privado particular frente aos outro fins privados (Marx, 1978: 360). De certa forma, a análise do formalismo da burocracia realizada por Marx é também compartilhada por Weber, quando este afirma que “a burocracia puramente como tal é um instrumento de precisão que pode colocar-se à disposição de interesses de dominação muito diversos, tanto puramente políticos ou econômicos quanto outros quaisquer” (Weber, 1999b: 224). Ou seja, para Weber o conteúdo da burocracia também encontra-se fora dela. No entanto, como já verificamos, a administração burocrática não é um instrumento racional abstrato, ela está vinculada a determinado fim (o fim de expansão capitalista). Isto não a impossibilita de expressar-se concretamente através de mecanismos que podem servir a fins não capitalistas, na medida em que ela apresenta contradições inerentes à sua função na sociedade burguesa. A “mecanização rigorosa do aparato burocrático”, estabelecida através de salário, carreira que não depende da arbitrariedade, sentimento de honra estamental e possibilidade de crítica pública, além de ser compatível com a “subordinação incondicional aos superiores”, estrutura o caráter profissional “objetivo” do cargo, facilitando a adaptação às condições objetivas dadas (Weber, 1999b: 207). cii Portanto, segundo Weber, esses elementos que estabelecem a “mecanização” remetem à subordinação do servidor/funcionário ao senhor e à própria estrutura do Estado. Essa subordinação manifesta-se, para o sociólogo, devido à centralidade que a disciplina e a obediência hierárquica possuem como atributos da burocracia. É interessante notar que Marx, nos anos 40 do século XIX, já indicava essa análise sobre a burocracia. Segundo ele, para a burocracia “a autoridade é o princípio de seu dever e a adoração da autoridade sua intenção”, dessa forma a burocracia apresenta-se através da “obediência passiva, da fé na autoridade e de um mecanismo de comportamento formal fixo, de princípios, idéias e tradições fixas” (Marx, 1978: 360). No entanto, simultaneamente, os elementos de “mecanização” combinados com o instrumento de “direito ao cargo”41, propiciam uma autonomia relativa da burocracia, devido à contradição de sua função na sociedade, permitindo, assim também, sua atuação em confronto com o senhor e com a estrutura de dominação do Estado. Dessa forma, conforme Weber sinaliza, viabiliza-se uma aliança entre a burocracia e a disposição democrática dos dominados, na medida em que estes vislumbram uma relação direta entre a diminuição do poder do senhor sobre os funcionários e a diminuição de seu (do senhor) poder em si. Nas palavras do autor: [A burocracia] encontra apoio para isto [direito ao cargo] na disposição ‘democrática’ dos dominados, que exige a minimização da dominação, na crença de que toda diminuição do poder arbitrário do senhor sobre os funcionários implique um enfraquecimento do poder senhorial como tal (Weber, 1999b: 232). Por isso, em nosso entendimento, Weber percebe a possibilidade da organização burocrática ser um instrumento para diversos fins. Pois, ao apresentar- 41 Segundo Weber, “a burocracia aspira, por toda parte, ao desenvolvimento de uma espécie de ‘direito ao cargo’, mediante a criação de um procedimento disciplinar ordenado e a eliminação do poder totalmente arbitrário do ‘superior’ sobre o funcionário, enquanto procura assegurar a posição deste, sua ascensão regular, seu sustento na velhice.” (Weber, 1999b:232). ciii se de forma racional, a burocracia, como o próprio sociólogo admite, não revela a tendência concreta de seu efeito econômico - apesar de sua existência42 - e, nesse sentido, “consiste pelo menos num nivelamento relativo” (Weber, 1999b:224). Para completar, poderíamos dizer que determinados aspectos da estrutura burocrática fortalecem sua dimensão de relativa autonomia. Por exemplo: a) a existência dos princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos administrativos; b) o processo da administração dos funcionários ser realizado de acordo com regras gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos abrangentes, que podem ser aprendidas (Weber, 1999b: 198 – 200); e c) o fato de que, em relação ao poder de mando e obediência, tanto o senhor legal típico quanto a burocracia estão vinculados às regras impessoais (Weber, 1999a: 142). Também Gramsci tratou da autonomia relativa da burocracia. Para este autor, existe uma relação entre a classe social em que o burocrata é recrutado e o seu valor político (Gramsci, 2000: 62-63). Nesse sentido, se um determinado Estado possui um recrutamento difuso de profissionais para a ocupação de sua estrutura burocrática, isso pode gerar uma seleção de quadros que possuem valores políticos diversificados. Num contexto de socialização da educação e de seleção por concurso público, a probabilidade de constituição de quadros burocráticos de valores distintos amplia-se consideravelmente. Pois, como ressalta o autor, “as classes expressam os partidos, os partidos elaboram os homens de Estado e de Governo, os dirigentes da sociedade civil e da sociedade política” (Gramsci, 2000: 201). Essa questão torna-se mais evidente quando Gramsci esclarece que todo o indivíduo é funcionário do Estado “na medida em que, ‘agindo espontaneamente’, sua ação se identifica com os fins do Estado” (Gramsci, 2000: 282) e não porque é 42 Para dirimir qualquer tipo de dúvida, cabe esclarecer que Weber, apesar de relacionar o desenvolvimento da burocracia com o capitalismo, não imputa à burocracia a finalidade de expansão capitalista. O autor considera a organização burocrática civ empregado do Estado e submete-se à hierarquia burocrática. Assim sendo, podemos encontrar na burocracia indivíduos que não se comportam como “funcionários do Estado”43. Dessa forma, garantir a autonomia relativa da burocracia, via proteção do quadro administrativo e seleção baseada na competência, possibilita refratar a luta de classes no interior do Estado, pois permite a entrada de funcionários no Estado que não estão alinhados ao projeto político de dominação existente. Nesse caso, forças de transformação podem ser encontradas, também, no interior da burocracia. Não estamos querendo dizer com isso que a burocracia seja uma força de transformação. Muito pelo contrário, ela encontra-se em autonomia relativa. Então, a existência da burocracia significa a existência de diferentes projetos políticos no interior da administração, mesmo havendo uma tomada de poder do Estado pelos representantes das classes trabalhadoras. Por isso, a quebra da burocracia necessita ser realizada, simultaneamente, à destruição do Estado, embora essas extinções não signifiquem a extinção da administração e nesse sentido de algum nível de dominação, weberianamente falando. A burocracia, portanto, não é uma saída administrativa definitiva do ponto de vista dos dominados. Porém, numa perspectiva imediata, ela (burocracia), por expressar a existência de diferentes projetos políticos no interior da administração pública, apresenta-se como a estrutura mais propícia para viabilizar a luta política no seio da organização estatal, além de possibilitar a existência de qualidades técnicas e profissionais no Estado a serviço de determinadas demandas das classes dominadas. racional para diferentes ordens econômicas. 43 Cabe também ressaltar que Gramsci admite a possibilidade de encontrar burocracias comprometidas com interesses elevados e não utilitários (Gramsci, 2000: 283). A partir da análise histórica concreta, consegue identificar na burocracia posturas políticas distintas. O autor, por exemplo, registra o caráter nacional das burocracias da França e da Inglaterra em contraponto ao caráter de casta da burocracia italiana (Gramsci, 2002: 167). cv Por outro lado, a construção da universalidade e a realização da liberdade, ou seja, a racionalidade da tarefa burocrática, no sentido hegeliano, podem fortalecer na sociedade a luta por transformações estruturais, na medida em que setores da burocracia possuem essa comprometidos com uma concepção de sua função e procuram atuar sociedade que possa realizar efetivamente a universalidade e liberdade. Nesse sentido, esses setores, aí sim, contribuiriam para mudanças radicais do próprio Estado e de sua forma de administração. Nesta seção, até o momento, trabalhamos com as potencialidades concretas da burocracia para o fortalecimento de uma administração pública voltada para o aprofundamento e ampliação de direitos. Cabe agora, explicitarmos, claramente, os limites da organização burocrática para a estruturação de uma administração radicalmente democrática. O primeiro aspecto a destacar é o fato de que a burocracia, ao considerar-se, efetivamente, “classe universal”, dificulta a articulação política com a sociedade, favorecendo um comando autoritário, sem colaboração ou acordo prévio. Pois, ao colocar-se como a portadora dos interesses gerais, atribui os obstáculos para garantir a condução dos negócios públicos numa perspectiva universal à interferência que os setores da sociedade (grupos, movimentos, instituições, partidos) tentam fazer ou efetivamente realizam. Dessa forma, tende a isolar-se e atuar autoritariamente frente às forças sociais concretas, ou melhor, isolam-se para facilitar a influência de determinadas forças sociais com quem se afinam política e ideologicamente. Esse procedimento produz o chamado “insulamento burocrático”, que, segundo Nunes, significa: ... o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias (...). O insulamento burocrático significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel (...); ao contrário da retórica de seus cvi patrocinadores, o insulamento burocrático não é de forma nenhuma uma processo técnico e apolítico ... (Nunes, 1997: 34). Essa questão implica a necessidade de, efetivamente, relativizar a autonomia da burocracia, sob pena dela estruturar uma dominação autoritária, vinculada a determinado setor social. Em decorrência, merece atenção a possibilidade da burocracia vir a apropriarse dos meios de administração e produção e transformar-se numa classe dominante. Essa possibilidade (mesmo que apenas teórico-abstrata) agrava a situação anterior, na medida em que reflete a extrapolação das atividades da burocracia para a área política e configura seu domínio integral da área econômica. Essa situação para Weber é uma possibilidade real e por isso o autor preocupa-se em refletir, como observamos, sobre a liberdade individual, o controle da sociedade sobre a burocracia e a questão do “dirigente” da sociedade numa ordem dominada pelo “funcionário”. Em relação à questão da ordem dominada por funcionário, Weber esclarece que este é um mau estadista, pois a base de sua intervenção é a disciplina e não a ousadia e responsabilidade política (Weber, 1999b:539-540). Conforme ressalta Tragtenberg, em sua análise de Weber: Enquanto o burocrata sacrifica suas convicções pessoais à obediência hierárquica, o líder político caracteriza-se por assumir publicamente a responsabilidade de seus atos (Tragtenberg, 1992: 141). No entanto, cabe ressaltar que a organização burocrática, apesar de ser um meio de poder tecnicamente mais desenvolvido, não significa e nem implica, diretamente, que a burocracia consegue impor suas idéias dentro do complexo social em questão (Weber, 1999b: 224-225). Essa análise sublinha a relativa autonomia da burocracia frente ao Estado e à sociedade e mostra que o poder da burocracia possui limites, não é algo incontrolável, apesar de perigoso e poderoso. cvii Assim sendo, a dimensão de dominação presente na administração, de uma forma geral, e na burocracia, especificamente, exige que, do ponto de vista democrático, se organizem estratégias para conter os traços autoritários inerentes à organização burocrática. Portanto, a questão que se coloca, em relação à administração burocrática, é saber como controlá-la, ou melhor, como estabelecer mecanismos de controle para que ela não se aproprie dos meios de administração e produção da sociedade e se estabeleça como classe dominante. Essa preocupação já está presente em Hegel. O filósofo alemão, apesar de conceber a burocracia como classe universal, indica a necessidade da existência de mecanismos de controle, realizados pelo soberano, enquanto poder de Estado, e pelas corporações, enquanto expressão das particularidades da sociedade civil, para que a burocracia não se transforme em uma casta aristocrática. Assim, afirma o autor: A preservação do Estado e dos governados contra o abuso do poder cometido pelas autoridades e pelos funcionários imediatamente consiste, por um lado, na hierarquia e na responsabilidade e reside, por outro, no reconhecimento das comunas e corporações impeditivo de que o arbítrio individual se confunda com o exercício do poder entregue aos funcionários, assim completando, vindo de baixo, a vigilância que, vinda de cima, é insuficiente quanto aos atos particulares de administração (Hegel, 1997: 271; §295). Em seguida, o autor complementa: As instituições da soberania, pelo lado superior, e os direitos das corporações, pelo lado inferior, impedem que tal inteligência e tal consciência [que os funcionários do Estado possuem] se coloquem na posição isolada de uma aristocracia e que a cultura e o talento venham a constituir-se em instrumentos de arbitrariedade (Hegel, 1997: 272; §297). Weber também propõe mecanismos de controle para a burocracia. Para o sociólogo alemão, a divisão de competências dos funcionários e o controle parlamentar são fundamentais. cviii Em relação à divisão de competências, Weber aponta que essa estratégia não permite a concentração de poder nas mãos de um único setor da burocracia. Então, divide-se para garantir o controle (Weber, 1999b: 265 – 266). A função do parlamento como instrumento de controle da burocracia é ressaltada por Weber como forma de estabelecer um contra-poder de especialistas para avaliar as ações desenvolvidas pela estrutura burocrática. Para isso, ressalta o autor, são necessárias duas condições prévias: conhecimento especializado e o “saber oficial”44, além de ser previsto o direito de argüição para que o parlamento possa investigar, ocasionalmente, determinadas ações dos chefes administrativos e de sua burocracia (Weber, 1999b: 564-565). É interessante observar que, acerca dessa questão, aglutinam-se as diversas matizes de pensamento. Marx, por exemplo, ao refletir sobre a questão do controle da burocracia, a partir da formulação hegeliana, aponta essa questão como uma dualidade não resolvida. Ou seja, o controle frente à burocracia faz-se necessário, pois não se constituem na sociedade efetivos interesses gerais. Como vimos, Marx sinaliza a existência de diferentes interesses particulares em disputa na sociedade e mostra que a burocracia expressa parte desses interesses. Portanto, do ponto de vista estrutural, exige-se o controle da burocracia porque necessita-se controlar determinados interesses contra os demais. Nesse sentido, para Marx, Hegel, ao elaborar o controle como algo vindo da o poder soberano, de cima para baixo, e das corporações, de baixo para cima, mantém a situação de dualidade na sociedade. Em relação ao controle exercido pela autoridade soberana, de cima para baixo, Marx sublinha que ela exerce os maiores abusos de poder - portanto, o controle para 44 Ver nota 34. cix evitar abuso de poder burocrático é realizado, por cima, pelo principal responsável pelo abuso45. O controle vindo de baixo, exercido pelas corporações, na verdade é “o conflito não dirimido entre a burocracia e as corporações” (Marx, 1978: 365). No entanto se pensarmos, hipoteticamente, numa sociedade em transição, onde o poder soberano está nas mãos de representantes das camadas, até então dominadas (por exemplo dos trabalhadores, no caso do capitalismo), o controle da hierarquia sobre a burocracia passa a ser necessário para garantir a estrutura de dominação na sociedade. Essa análise procura enfatizar que a questão relativa ao controle sobre a burocracia é uma questão para a ordem social fundada na sociedade de classes e não para superação desta ordem. Controlar a burocracia não é superá-la; portanto, a questão de fundo que deve ser posta não é a do controle, mas sim a da superação. Entretanto, o controle sobre a burocracia, numa ordem de desigualdade, é um elemento que se coloca como necessário para ampliar os interesses das classes dominadas. Nessa perspectiva, deve ficar explícito que uma estrutura de controle sobre a burocracia, apesar de necessária numa sociedade de classes, não é um elemento que promove a superação dessa ordem. Uma das formas de superação da burocracia é a democratização efetiva da administração. Para Marx, a Comuna de Paris foi o exemplo histórico de sua época, na medida em que “ela arranjou para a República a base de organizações verdadeiramente democrática” (Marx, 1984: 299). A expressão democrática da administração da Comuna configurou-se pela constituição de uma gestão pública exercida diretamente pelos trabalhadores eleitos 45 “Segundo o § 295 [da Filosofia do Direito], vemos que ‘a garantia do Estado e dos governos contra os abusos de poder das autoridades e de seus funcionários’ se faz, em parte, pela ‘hierarquia’ (como se a hierarquia não constituísse o abuso principal e os pecados pessoais dos funcionários pudessem ser comparados com seus necessários pecados hierárquicos ...)” (Marx, 1978: 365). cx por sufrágio universal e responsabilizáveis e substituíveis a qualquer momento, tanto para área executiva-legislativa quanto para judiciária e demais ramos da administração (Marx, 1984: 296-297). Weber também apresenta como determinação central para a efetivação de uma administração democrática o sistema de eleição, sorteio ou rodízio para assumir as funções administrativas, direito de revogação, mandato imperativo e dever rigoroso de prestar contas (Weber, 1999a: 191). Ou seja, a característica essencial da administração democrática é ser exercida a partir por um quadro administrativo eleito diretamente pela assembléia e subordinado a ela. Pois, como ressalta o autor, a administração democrática “se baseia no pressuposto da qualificação, em princípio, de todos para a direção dos assuntos comuns, e porque minimiza a extensão do poder de mando” (Weber, 1999b: 193). Essa determinação weberiana assemelha-se à de Marx. No entanto, para o sociólogo, a administração democrática não é viável para a sociedade de massas, pois, para a sua realização, as associações devem ser limitadas nas seguintes dimensões: 1) localmente, 2) quanto ao número de participantes, 3) no que se refere à situação social dos membros, e ele pressupõe 4) tarefas relativamente simples e estáveis e 5) apesar disso, um grau não totalmente insignificante de desenvolvimento da competência de avaliar, objetivamente, meios e fins (Weber, 1999b: 193). Diferentemente de Weber, para Lênin o capitalismo criou “as premissas para que ‘todos’ possam realmente participar na administração do Estado”, através da alfabetização geral e da educação e disciplina dos trabalhadores propiciada pelo “grande, complexo e socializado aparelho dos correios, dos caminhos de ferro, das grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos, etc” (Lênin, 1980: 290). Lembremos, no entanto, que Lênin remete à burocracia apenas à questão do registro e controle e não descarta a necessidade de utilização do conhecimento do cxi especialista para tarefas a serem executadas sob o comando da classe trabalhadora. Portanto, não há em Lênin nenhuma visão romântica de que a sociedade socialista poderia dispensar os conhecimentos técnicos adquiridos pela sociedade capitalista e manipulados pelos especialistas. O autor enfatiza que o registro e o controle são os elementos principais “para o funcionamento regular da primeira fase da sociedade comunista” (Lênin, 1980: 290). E, de acordo com sua análise: [O registro e o controle] foram simplificados em extremo pelo capitalismo, até operações extraordinariamente simples de vigilância acessíveis a qualquer pessoa alfabetizada, até o conhecimento das quatro operações da aritmética e à entrega dos recibos correspondentes (Lênin, 1980: 290-291). Nesse sentido, Lênin articula o processo de democratização da administração do Estado com a extinção da própria administração. Nas palavras do autor: A partir do momento em que todos os membros da sociedade , ou pelo menos a sua imensa maioria, tenham a prendido a administrar eles próprios o Estado (...) – a partir desse momento começa a desaparecer toda a administração em geral (Lênin, 1980: 291). Torna-se necessário ressaltar que Lênin está tratando da administração do Estado, da organização burocrática, da questão do controle e do registro, mostrando que o processo de democratização suprime a necessidade de uma administração burocrática. Gramsci discute a questão da burocracia e sua organização, a partir do debate sobre “centralismo burocrático” e “centralismo democrático”. Ou seja, o autor também trata da relação burocracia-democracia. A questão central que se coloca, para o marxista italiano, refere-se à forma como se estabelece a relação entre organização e movimento da sociedade. O “centralismo democrático” é o que se expressa efetivamente como orgânico, pois constitui-se como cxii uma contínua adequação da organização ao movimento real, um modo de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o comando pelo alto, uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo da massa na sólida moldura do aparelho de direção, que assegura a continuidade e a acumulação regular das experiências: ele é ‘orgânico’ porque leva em conta o movimento, que é o modo orgânico de revelação da realidade histórica, e não se enrijece mecanicamente na burocracia; e ao mesmo tempo, leva em conta o que é relativamente estável e permanente ou que, pelo menos, move-se numa direção fácil de prever, etc. (Gramsci, 2000: 91). Gramsci trata da relação que deve ser estabelecida entre base e direção para que a organização seja efetivamente democrática. Ou seja, a organização deve estar aberta para incorporar os impulsos vindo de baixo no aparelho de direção, evitando enrijecer-se enquanto burocracia. Dessa forma, o autor ressalta a importância do controle da burocracia ser exercido a partir de baixo, para combater seu centralismo (Gramsci, 2000: 274). Contrariamente ao centralismo democrático, o centralismo burocrático caracteriza-se pelo fato do grupo dirigente encontrar-se saturado, transformado em um pequeno grupo preocupado com seus privilégios e evitando o surgimento de forças contrastantes, mesmo que vinculadas aos interesses dominantes (Gramsci, 2000: 91). Conforme podemos constatar, a partir das análise anteriores, o fundamental a registrar é que as questões de controle sobre a burocracia devem ser pensadas a partir de perspectivas democratizadoras da administração. Só assim pode-se estruturar propostas efetivas de superação da ordem burocrática. Sintetizando, a questão do controle, do ponto de vista dos dominados, remete a estratégias de participação no poder, seja diretamente, como presente nas propostas de Marx, Lênin e Gramsci, seja indiretamente, via corporações, na perspectiva hegeliana, ou através da representação parlamentar na visão weberiana. Por outro lado, do ponto de vista do dominante, o poder do soberano, conforme destaca Hegel, e a divisão de tarefas da burocracia e a centralização do cxiii poder político, conforme apregoa Weber, são instrumentos essenciais para exercer o controle da burocracia. Dessa forma, podemos dizer que, de um ponto de vista radical, a democratização da sociedade no geral e da administração em particular é a forma de superar a administração burocrática. No entanto, num contexto de transição ou de uma situação onde o poder político de governo esteja nas mãos de partido(s) afinado(s) com as demandas e necessidades das classes trabalhadoras, o fundamental deve ser combinar o processo de centralização de poder e comando da nova classe dirigente, visando direcionar as ações da burocracia, com um processo de democratização da administração, onde a proporção dos dois pólos articulem-se inversamente. Ou seja, conforme o avanço e consolidação da nova sociedade ou de um projeto mais afinado com os interesses dos dominados, menos centralização e burocratização e mais democratização. Assim, a partir das considerações levantadas ao longo deste capítulo e considerando o cenário de forte hegemonia liberal e conservadora, nossa tese explicita-se no entendimento de que a estratégia central deve ser a de fortalecer a estrutura burocrática do Estado para além dos centros estratégicos, buscando aproveitar o “caráter racional” da burocracia, por um lado, como forma de ampliar os espaços para propostas efetivas, eficientes e eficazes, comprometidas com os dominados, que viabilizem melhorias imediatas nas condições de vida da população e, por outro, como mecanismo para contribuir com a formação de um quadro administrativo que tenha condições de colocar-se a serviço da classe trabalhadora. Simultaneamente, é fundamental propor o aprofundamento de mecanismos de democratização para combater a tendência autoreferenciada da burocracia e sua paralisia/reação a mudanças (Nogueira, 1998: 260-261), criando maior controle social e controle público (Soares, cxiv 2003), como forma de propiciar transparência e fragilizar a direção hegemônica, criando, dessa forma, condições para o fortalecimento de ações contra-hegemônicas. Nesse sentido, entendemos que: a) o Estado deve ser forte, amplo e intervencionista para viabilizar a construção da “universalidade”, apesar de que ser amplo e forte não garante “universalidade”, mas é uma condição central na sociedade capitalista que pretenda enfrentar com mais ênfase a desigualdade sistêmica; e b) a partir de um Estado forte e amplo a ordem administrativa deve possuir como espinha dorsal a racionalidade burocrática, pois ela possibilita, como vimos, a construção contra-hegemônica. No entanto, há de se frisar que Estado forte e ordem administrativa racionalburocrática não garantem a construção da universalidade, mas são condições essenciais para tal. Sendo assim, é possível, se estivermos atento ao limite estrutural que a burocracia oferece para o desenvolvimento da democracia e às questões de dominação e controle presentes em sua realização, pensarmos numa matriz de administração pública tendo como referência elementos da organização burocrática que potencializam a intervenção administrativa numa perspectiva pautada no atendimento das demandas e necessidades das classes dominadas, na medida em que a “racionalidade” burocrática permite a utilização de algumas das expressões de sua materialidade, visando a ampliação e o aprofundamento de direitos, numa sociedade de classes. O desenvolvimento de tal proposição será realizada a partir da concepção teórica esboçada neste capítulo, mediada pela análise crítica do processo de estruturação e consolidação do Estado brasileiro e de sua cxv organização imperiais administrativa à ditadura de (das 1964), formas para, posteriormente, debater sobre as implicações do capitalismo contemporâneo nesse cenário e apresentarmos sugestões para a construção e fortalecimento de uma administração pública efetivamente democrática, gestão pública da área social. cxvi privilegiando a CAPÍTULO II – GÊNESE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA Reiteramos que a concepção que estamos desenvolvendo pressupõe a finalidade de universalização e aprofundamento de direitos como perspectiva para a administração pública. Repetimos, também, que para a existência dessa finalidade necessita-se de Estado forte na área social - voltado para a “universalização” no sentido hegeliano ou, mais precisamente, orientado para atender, de forma mais ampla, às demandas e necessidades das classes subalternas - e uma ordem administrativa fundada na burocracia, isto é, uma estrutura pautada na racionalidade instrumental, vinculada ao fim universalista de aprofundamento de direitos. Cabe ressaltar que, em nossa concepção, como vimos no capítulo anterior, nem o Estado nem a burocracia são instituições que podem se realizar efetivamente de forma universalista. No entanto, numa sociedade capitalista elas se apresentam como as únicas instituições que podem atender aos interesses das classes subalternas de forma mais substantiva, uma vez que, sem Estado e burocracia, a tarefa de expansão de direitos se torna inviável. O Estado, para se estruturar com fim voltado para a universalização de direitos e, em conseqüência, possuir uma ordem administrativa burocrática que efetive essa finalidade, depende da existência na sociedade de uma hegemonia com essa direção. Em outras palavras, é necessária uma hegemonia na sociedade civil que produza uma ação estatal orientada para a perspectiva de universalização. Portanto, a tarefa central para construção de uma ordem administrativa democrática e universalista é construir essa hegemonia no Brasil (um projeto de democracia de massa ou social-democrata, ou modelo europeu, segundo reflexão de Coutinho). Nesse sentido, o modelo de desenvolvimento econômico deve estar cxvii orientado nessa direção, para que as políticas sociais possam seguir esse caminho. Ou seja, a expressão material dessa direção hegemônica presente no Estado é visível a partir da política econômica desenvolvida e de sua relação com as políticas sociais. Dessa forma, a estruturação de uma burocracia com sentido “universalista”, além de depender da existência de um Estado “universalista”, precisa ser estruturada de forma a potencializar aspectos de sua racionalidade, como por exemplo: a) garantia de um certo nível de “mecanização”; b) o “direito ao cargo”; c) existência dos princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos administrativos; d) realização da administração dos funcionários de acordo com regras gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos abrangentes, que podem ser aprendidas e e) existência de regras impessoais como estrutura central do poder de mando e obediência, que envolva tanto o senhor legal típico quanto o corpo burocrático. Simultaneamente, é fundamental propor o aprofundamento de mecanismos de democratização da burocracia, para viabilizar maior controle social e público (Soares, 2003), como forma de propiciar transparência e possibilitar maior participação das classes subalternas na definição e acompanhamento das políticas públicas. Sendo assim, para pensarmos em alternativas de gestão social voltadas para a universalização e o aprofundamento de direitos, há de se ter clareza que o objetivo central é a construção do Estado nessa perspectiva. Portanto, é fundamental a construção de uma hegemonia na sociedade nessa mesma direção. Dessa maneira, as tecnologias de gestão social empregadas devem favorecer a essas construções e, para identificarmos aquelas mais próprias ao caso brasileiro, cxviii devemos entender a materialidade em que se desenvolvem tais políticas sociais em termos da configuração de nosso Estado e de nossa organização administrativa, visto que estas são as bases concretas a partir das quais devemos pensar as alternativas democráticas de gestão social para o Brasil. As características do Estado brasileiro, então, devem ser primeiramente desenvolvidas, a partir da reflexão sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e da nossa “revolução burguesa”; em seguida/simultaneamente, devemos mostrar as implicações da particularidade da construção do nosso Estado capitalista na estruturação de nossa ordem administrativa estatal, principalmente de nossa área social. Ao explicitarmos os traços predominantes do Estado e de sua ordem administrativa, devemos apresentar pistas para uma gestão social que tenha como perspectiva contribuir com a construção da hegemonia de aprofundamento e universalização de direitos na atual conjuntura. A partir deste capítulo, propomo-nos a realizar tal tarefa. O objetivo deste item é mostrar como o patrimonialismo, como ordem administrativa predominante no Brasil durante o período imperial e na República Velha, vai se articulando com a estrutura burocrática nascente, conformando a base da configuração de nossa administração pública. A idéia básica aqui presente - e que será desenvolvida ao longo deste capítulo e do próximo – resume-se no entendimento de que a administração pública brasileira nasce, desenvolve-se e se consolida a partir de uma espinha dorsal que combina patrimonialismo e burocracia, configurando uma unidade contraditória coerente com a particularidade de nosso capitalismo periférico e de nossa “revolução burguesa” não clássica. cxix O intento é chamar a atenção para o equívoco das interpretações despolitizadas e dualistas que têm predominado nas análises sobre o desenvolvimento da administração pública brasileira e que, por conseguinte, têm apontado propostas equivocadas, muitas vezes ingênuas, para a superação de nossas “deficiências” administrativas. Outrossim, o esforço ora empreendido busca, também e sobretudo, confrontar-se e polemizar com as análises liberal, neoliberal e social-liberal acerca da crise e da reforma da administração pública. O ponto de partida que iremos utilizar é a análise desenvolvida por Nogueira (1998: 93), na qual o autor observa que a “revolução burguesa” no Brasil produziu ...um Estado precocemente hipertrofiado e todo multifacetado, cujas diversas camadas constitutivas – superpostas por sedimentação passiva – acabaram por alimentar a formação de uma macrocefálica bifrontalidade: ligadas aos múltiplos interesses societais por inúmeros e muitas vezes invisíveis fios, duas avantajadas cabeças – uma racional-legal, outra patrimonialista – iriam se comunicar e se interpenetrar funcionalmente em clima de recíproca competição e hostilidade, impedindo a imposição categórica de uma sobre a outra, retirando a coordenação do todo e fragilizando o comando sobre as diversas partes do corpo estatal (destaque no original). O fato de assumirmos esse ponto de partida não significa, como será visto, que concordamos com ele. Tal ponto de partida serviu como sugestão para o início da investigação, uma hipótese que foi testada. Por isso, ao longo deste capítulo e do próximo, exploramos dialeticamente a bifrontalidade - relação entre a dimensão racional-legal e patrimonialista - da administração pública brasileira, buscando explicar sua origem e desenvolvimento históricos e procurando identificar seus limites enquanto categoria de análise. 2.1. Patrimonialismo: da tradição ibérica à particularidade colonial brasileira O primeiro aspecto que abordaremos refere-se ao entendimento que temos sobre a relação que existe entre dominação e ordem administrativa, questão já cxx abordada no capítulo anterior - mas que consideramos fundamental retomar e sublinhar com mais clareza. Do ponto de vista marxista, a ordem administrativa como superestrutura da sociedade sofre, de maneira geral, influência advinda das determinações oriundas das relações sociais de produção. Por outro lado, a ordem administrativa como instrumento de materialização da dominação de classe presente no Estado sofre as interferências da formação social específica. Conforme destacamos anteriormente em relação à burocracia, embora seja pertinente a qualquer ordenamento administrativo numa sociedade de classes, a determinação fundamental de um ordem administrativa deve ser encontrada na estrutura de classes da sociedade, na medida em que são os interesses antagônicos de classes que conformam os conflitos substantivos numa sociedade, exigindo a intervenção do Estado, através de sua ordem administrativa. Isso não significa dizer que a questão da ordem administrativa seja um mero epifenômeno da estrutura de poder e do modo de produção da sociedade. Existe uma autonomia relativa da ordem administrativa que pode vir a fortalecer sua dimensão burocrática, mesmo antes da existência de uma estrutura de dominação prioritariamente racional-legal. Aqui aparece o enigma do ovo e da galinha a que se refere Florestan Fernandes (1981:21) em relação ao debate sobre o que nasceu primeiro - o capitalismo ou o “espírito capitalista”. Ou seja, o “espírito burocrático” pode ir se formando antes de uma estruturação racional-legal de dominação, porém, essa estruturação implicará mudanças no “espírito burocrático” em relação à sua organização e conteúdo. Ao longo desta tese pretendemos empreender o desenvolvimento dessa abordagem dialética. cxxi Por outro viés, a abordagem weberiana também nos permite desvelar as conexões existentes entre dominação e ordem administrativa. De acordo com o sociólogo alemão, para cada tipo de dominação legítima se estrutura um tipo de ordem administrativa. Portanto, a ordem administrativa está intrinsecamente vinculada ao tipo de dominação existente na sociedade. Sendo assim, se considerarmos corretamente a tipologia ideal de Max Weber (1999a) e o que ela pode oferecer ao trabalho histórico empírico46, poderemos estabelecer a conexão entre a estrutura de dominação em diferentes períodos da história brasileira e as respectivas ordens administrativas instituídas, de forma materialista e dialética. Em outras palavras, apropriamo-nos da perspectiva weberiana que percebe com clareza a relação existente entre estrutura de dominação e ordem administrativa e nos afastamos em seguida do sociólogo alemão, na medida em que procuraremos analisar essa relação a partir do método materialista-dialético. É fundamental, para o estudo em tela, decodificarmos, primeiramente, a estrutura de dominação e a respectiva ordem administrativa organizada durante o Império. Como primeiro movimento para realizarmos tal decodificação, devemos entender a origem da dominação e da estrutura administrativa brasileira, que está vinculada ao período colonial. Segundo Faoro (2004), a revolução portuguesa do século XIV organizará uma forte estrutura centralizada de Estado, conduzida pelo rei, para agir como agente econômico ativo, dando maior dinamismo às atividades comerciais. Por outro lado, a 46 De acordo com Weber (1999a: 141 e 142) a tipologia ideal oferece ao trabalho empírico “...somente a vantagem – que freqüentemente não deve ser subestimada – de poder dizer, no caso particular de uma forma de dominação o que há nele de “carismático”, de “carisma hereditário”, de “carisma institucional”, de “patriarcal”, de “burocrático”, de “estamental” etc., ou seja, em que ela se aproxima de um destes tipos, além da de trabalhar com conceitos razoavelmente inequívocos. Nem de longe se cogita aqui sugerir que toda a realidade histórica pode ser “encaixada” no esquema conceitual desenvolvido no que segue”. cxxii nobreza não perde seu papel na estrutura de poder, mas passa a compartilhá-lo com a burguesia comercial nascente. Nesse contexto, forja-se um “quadro administrativo, de caráter precocemente ministerial”, para garantir uma direção mercantilista que mantivesse o poder da nobreza e incorporasse as forças do comércio emergente (Faoro, 2004: 33-45). Essa situação descrita por Faoro indica claramente - apesar de o autor não elaborar, por motivos óbvios, tal análise - que o Estado português que surge após a crise de 1383-1385 expressa os interesses da burguesia comercial e da nobreza, mesmo que o poder não fosse exercido diretamente por essas classes. O Estado português, dessa forma, para exercer a dominação expressando esses diferentes interesses, mas ao mesmo tempo não sendo conduzido diretamente pelos representantes dessas classes, necessitará de uma centralização de poder e de uma ordem administrativa que o possibilite implementar o projeto político de base comercial, ainda que não destitua o papel de influência no poder que a nobreza possuía. Tal questão marca a diferença da história portuguesa em relação à maioria dos países europeus que, na época, ainda se encontravam fortemente estruturados em bases feudais - ou seja, o poder fortemente descentralizado nas mãos dos senhores e a burguesia comercial emergente ainda sem influência política determinante. No contexto português, a materialização da dominação, através da ordem administrativa, exigirá uma estrutura com um nível considerável de especialização para poder viabilizar o projeto comercial. Por outro lado, o poder centralizado nas mãos do rei requisitará um quadro administrativo de confiança pessoal para cxxiii implementar e organizar a ação estatal. Uma combinação de especialização com ausência de impessoalidade. Convém destacar também, para compreendermos a configuração administrativa portuguesa, que a característica patrimonialista, enquanto indistinção entre bens públicos e privados do rei, está presente desde o período das lutas contra os sarracenos e os espanhóis, quando, sob a liderança do rei, juntava-se a sociedade em torno de um destino. Conforme salienta Faoro (2004: 4): A coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imenso patrimônio rural, cuja propriedade se confundia com o domínio da casa real, aplicado o produto nas necessidades coletivas ou pessoais, sob as circunstâncias que distinguiam mal o bem público do bem particular, privativo do príncipe. A revolução de 1383/1385 não colocará em xeque o patrimônio real, mas sim a hegemonia do clero e da nobreza, marcando, dessa forma, definição e implementação do projeto mercantilista. De acordo com Mazzeo (1997: 43), “a revolução de 1383/1385, que põe no trono o Mestre de Avis, liderada pela burguesia mercantil, lançará pioneiramente as bases de um Estado mercantil, de tipo moderno, pressuposto objetivo para a posterior expansão colonial portuguesa”. Sendo assim, o Estado português organizará uma ordem administrativa que precisará de especialistas para desenvolver o projeto comercial, entendido como um empreendimento particular do rei, e que, por conseguinte, exigirá quadros de confiança pessoal para lidar com esse patrimônio real que se confunde com o patrimônio público. Entre os séculos XIV e XV, o Estado português ergue um arcabouço administrativo complexo, objetivando apoiar as atividades tanto de governo, propriamente dito, como as econômico-comerciais da burguesia mercantil (...). Agora a burguesia mercantil participa ativamente das decisões governamentais, pois está incrustada no aparelho do Estado um órgão burocrático-administrativo que expressa a própria passagem do feudalismo para o capitalismo” (Mazzeo, 1997: 44). cxxiv Para Faoro (2004: 47), essa engenharia institucional configurará a “ordem administrativa patrimonialista de estamento” de Portuga, como uma ordem altamente centralizada, com um quadro administrativo com um bom nível de especialização, vinculado pessoalmente ao rei, devendo responder com lealdade ao senhor, responsável pela implementação do projeto comercial, entendido como uma empreendimento privado da realeza. Esse quadro administrativo, na medida que se organiza com base na relação de confiança que estabelece com o rei, vincula-se a uma lógica tradicional de dominação47, fundada na lealdade que se deve ter ao poder exercido pelo senhor. Simultaneamente, ao não se diferenciar o interesse público dos interesses privados do rei, reforça-se o caráter patrimonial dessa ordem administrativa tradicional. Weber define com precisão o patrimonialismo. Para o sociólogo alemão, “ao surgir um quadro administrativo (e militar) puramente pessoal do senhor, toda a dominação tradicional tende ao patrimonialismo” (Weber, !999a: 151 – grifo no original). A dominação patrimonial, continua o autor, como ordem administrativa tradicional, possuirá como uma tendência inerente “submeter ilimitadamente ao poder senhorial tanto os súditos políticos extrapatrimoniais quanto os patrimoniais e de tratar todas as relações de dominação como propriedade pessoal do senhor, analogamente ao poder e à propriedade domésticos” (Weber 1999b: 247). Weber explicita, ainda, as características do quadro administrativo da dominação tradicional, mostrando que a ele faltam: competência fixa segundo regras objetivas, hierarquia racional fixa, nomeação regulada por contrato livre, ascenso regulado, formação profissional e salário fixo e salário pago em dinheiro (Weber, 1999a: 149). O autor também destaca a forma de recrutamento, indicando ser 47 Ver nota 35 no Capítulo 1. cxxv realizado a partir de pessoas tradicionalmente ligadas ao senhor (recrutamento patrimonial) ou em virtude de: a) relações pessoais de confiança; b) pacto de fidelidade com o senhor e c) funcionários livres que entram na relação de piedade com o senhor (Weber, 1999a:148-149). Como podemos verificar, a interpretação de Faoro sobre a ordem administrativa portuguesa é extremamente vinculada ao conceito weberiano de dominação tradicional e sua estrutura patrimonialista. Entretanto, ainda falta considerarmos com um pouco mais de atenção o caráter estamental dessa ordem. Para Weber, no patrimonialismo estamental não há separação total entre os administradores e os meios e recursos para administrar. Ou seja, o quadro administrativo se apodera, pelo menos, de parte essencial dos meios e recursos da administração. Tal situação é identificada por Faoro na administração portuguesa. Portanto, a estruturação de um quadro administrativo vinculado ao rei que dirige e comanda a sociedade, através do monopólio dos meios administrativos, e que não representa as classes sociais fundamentais (apesar de expressarem os interesses presentes na sociedade), produz uma situação de maior autonomia e autoritarismo do Estado frente à sociedade. Porém, em nosso entendimento, isso não configura um estamento que paira acima das classes. Essa ordem administrativa, apesar de possuir maior autonomia frente às classes sociais, monopolizar os recursos da administração e interferir de forma mais autoritária na sociedade, implementa um projeto social adequado aos interesses das classes dominantes, seja através do desenvolvimento do comércio, seja mantendo a influência política da nobreza, mesmo sob uma ótica de imbricação entre o público e o privado. cxxvi É importante destacar que a centralização exigida pela estrutura política portuguesa, aliada à atividade comercial, exige um mínimo de especialização e racionalidade para a organização administrativa. Por isso, o Estado patrimonial vai se burocratizando, na medida do desenvolvimento da centralização política e da expansão capitalista. Conforme ressalta o sociólogo alemão, o funcionalismo patrimonial, com a progressiva divisão das funções, apresenta aspectos que são peculiares da ordem burocrática, como especialização e racionalidade. Entretanto, tais elementos não estabelecem a “distinção burocrática entre a esfera privada e a oficial” (Weber, 1999b: 253). Ora, a estrutura administrativa de Portugal é a base da organização administrativa brasileira que se desenvolverá ao longo do período colonial (Faoro, 2004; Schwartzman, 1988; Prado Júnior, 1981). O Brasil colônia, como empreendimento de exploração da coroa portuguesa, será administrado a partir da configuração do Estado português. A centralização política e administrativa é a estrutura material fundamental para o exercício do poder. Isso não significa dizer que a centralização conseguia fazer com que a administração chegasse a todos os pontos do território brasileiro. Caio Prado Júnior, ao analisar as instituições brasileiras do período colonial, que, segundo ele, na melhor opção “não passam de plágios ou arremedos muito mal disfarçados” da administração da metrópole, indica que o efeito mais nefasto da transposição da lógica portuguesa para o Brasil foi o de “centralizar o poder e concentrar as autoridades; reuni-las todas nas capitais e sedes, deixando o resto do território praticamente desgovernado e a centenas de léguas muitas vezes da autoridade mais próxima” (Prado Júnior, 1981: 302). cxxvii Muito mais importante, no entanto, do que constatar que a ordem administrativa portuguesa foi transplantada para o Brasil, é entender o porquê e como tal ordem conseguiu se instalar e se estruturar na colônia. Como vimos, o Estado patrimonialista português, apesar de centralizador, altamente autônomo, organizado sobre um quadro administrativo estruturado a partir de sua lealdade ao rei e agindo autoritariamente na sociedade, como se estivesse acima das classes, expressa efetivamente as aspirações da nobreza e da burguesia comercial, procurando conciliar os interesses contraditórios dessas elites dominantes. O Brasil colônia entra no circuito do mercantilismo mundial, alimentando o processo de acumulação primitiva dos países centrais48 (Cardoso de Mello, 1998) as riquezas existentes no país são exploradas e encaminhadas à metrópole para sustentar o rei e sua nobreza, garantindo também os lucros da burguesia comercial. Portanto, do ponto de vista econômico, o Brasil irá sustentar a elite dominante portuguesa e participar do desenvolvimento capitalista mundial. O sistema colonial, assim visto, expressa o papel das colônias na produção mundial, isto é, na divisão internacional do trabalho, que efetivamente se estrutura. Dessa forma, a colonização e a produção em grande escala de mercadorias determinarão o surgimento do sistema colonial que, então, deve ser entendido a partir de sua articulação estrutural com o modo de produção capitalista, que surge concretizando-se nas formações sociais particulares americanas, as colônias (Mazzeo, 1997: 61, itálico no original). Nesse sentido, a ordem administrativa portuguesa se adéqua ao objetivo da exploração de nossas riquezas. Dois traços da ordem administrativa colonial serão marcantes no sentido de garantir a função de enriquecimento da metrópole e de manter/aumentar o poder das elites dominantes. O primeiro deles é a ausência 48 Conforme ressalta Cardoso de Mello (1998: 39), “A economia colonial organiza-se, pois, para cumprir uma função: a de instrumento de acumulação primitiva de capital. (...) A produção colonial deveria ser, deste modo, mercantil. Não uma produção mercantil qualquer, porém produção mercantil que, comercializável no mercado mundial, não concorresse com a produção metropolitana. (...) Produção colonial, em suma, quer dizer produção mercantil complementar, produção de produtos agrícolas coloniais e de metais preciosos.” cxxviii quase que absoluta da especialização na estrutura administrativa. Caio Prado Júnior (1981: 333-335) aborda essa questão com precisão, ao analisar a falta de organização, eficiência e presteza do funcionamento administrativo da colônia, a complexidade de órgãos, a confusão de funções e competências, ausência de método e a excessiva centralização de poder na metrópole. O segundo traço que merece destaque refere-se à corrupção instalada na administração colonial: “De alto a baixo da escala administrativa, com raras exceções, é a mais grosseira imoralidade e corrupção que domina desbragadamente” (Prado Júnior, 1981: 335). A transposição da administração portuguesa para o Brasil, tendo como função operar a exploração colonial e manter a estrutura de dominação vigente, não requisitará uma estrutura de especialização, tal qual a existente em Portugal, que é a responsável pela organização de empreendimentos comerciais de vulto. Por isso, a ordem administrativa da corte exigirá uma dimensão burocrática mais presente, que irá se expandindo, como nos mostra Faoro, por dentro do Estado Patrimonial Português. No caso brasileiro, o objetivo centrado na exploração mercantil provocará na ordem administrativa patrimonialista a ausência de especialização e, por conseguinte, um espaço maior para o desenvolvimento da absorção privada das riquezas públicas. A dimensão burocrática, como especialização e ordenamento racional das ações, praticamente não existe na ordem administrativa colonial, enquanto, por outro lado, a dimensão patrimonial se apresenta com todo o seu vigor. Neste sentido, a observação de Caio Prado Júnior (1981: 337) é primorosa: Assente numa tal base, a administração colonial não podia ser outra coisa que foi. Negligencia-se tudo que não seja percepção de tributos; a ganância da coroa, tão crua e cinicamente afirmada, a mercantilização brutal dos objetivos da colonização, contaminará todo mundo. Será o arrojo então geral para o lucro, para as migalhas que sobravam do banquete real. O construtivo da administração é relegado para um segundo plano obscuro em que só idealistas deslocados debateram em vão. cxxix O caráter estamental do patrimonialismo português também estará presente na administração colonial, na medida em que os administradores da colônia irão controlar e se apropriar dos meios administrativos disponíveis, como veremos adiante. Outro aspecto importante a destacar do período colonial, pois irá influenciar a estruturação política e administrativa do Brasil, diz respeito à estrutura social e econômica que, como analisa Prado Júnior, é a base da unidade de agrupamento da população. A propriedade rural organiza a vida social. Em torno dessa unidade vivem os escravos, os agregados e os vadios. O proprietário rural, portanto, expressa o poder de fato existente na sociedade colonial, a vida gira ao redor dessa estrutura básica de raiz local, formando o “clã patriarcal”. “Quem realmente possui aí autoridade e prestígio é o senhor rural, o grande proprietário. A administração é obrigada a reconhecê-lo...”. Nesse contexto, ocorrerá o processo que aristocratiza o proprietário rural, na medida em que ele deixa de expressar apenas a unidade escravista e de exploração econômica da colônia, para estabelecer relações mais amenas, mais humanas que envolvem toda a sorte de sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas relações abrandam e atenuam o poder absoluto e o rigor da autoridade do proprietário, doutro elas a reforçam, porque a tornam mais consentida e aceita por todos (Prado Júnior, 1981: 287-289). Essa situação levará a administração colonial a conviver com o poder local exercido pelos proprietários rurais. Isso projeta uma organização administrativa que, apesar de fortemente centralizada, deverá se articular com o poder local, para dominar as populações dispersas, evitar anarquia e garantir a disciplina. Faoro (2004: 146-153) mostra como a estruturação do governo local será realizada como estratégia de controle efetivada pelo governo central. O poder real centralizado visava criar, pelo alto, a ordem política no Brasil. A repressão e a conciliação dos cxxx interesses em conflito serão as formas utilizadas pela coroa para lidar com o poder local. Mesmo no momento de maior centralização de poder, a coroa se articulará com o governo local. Nesse contexto, os recursos da administração servirão como mecanismos de cooptação das lideranças locais, promovendo uma profunda articulação entre o poder central, exercido pela coroa, e o poder local, dirigido pelos proprietários rurais. Duas estruturas político-administrativas da colônia expressam com clareza essa relação entre o poder central e o poder local, através da submissão do último ao primeiro. A primeira delas são as Câmaras: órgãos da administração local, presididas por um juiz presidente de nomeação feita pela coroa e composta por oficiais eleitos na localidade, tinham como objetivo funções judiciais (processar e julgar crimes de injúrias verbais, pequenos furtos e infrações, além de resolver litígios sobre servidões públicas) e executivas (fiscalização do comércio de gêneros e organização da limpeza pública). As Câmaras também nomeavam os servidores para executar suas funções. Se, por um lado, as Câmaras eram presididas por um juiz de confiança da coroa, por outro lado, também absorviam as lideranças locais, via eleição, dispondo de condições de integrar seu corpo funcional com outros membros da localidade, através das nomeações (Prado Júnior, 1981: 314-317). A segunda estrutura são os corpos de ordenanças, órgãos administrativos que compõem, junto com as tropas de linha e as milícias, o setor militar da colônia. As ordenanças como forças locais eram responsáveis para atender a serviços locais: comoção interna e defesa. Elas, nesse sentido, serão fundamentais para manter a ordem legal e administrativa do Brasil. Todavia, para a coroa viabilizar tal intento, o cxxxi comando das ordenanças ficará nas mãos dos proprietários rurais que, como vimos, formam a unidade econômica e social da colônia, na medida em que expressam um poder tradicional (patriarcal) frente ao grupamento humano que vive gravitando em torno de sua propriedade, riqueza e autoridade. Portanto, nada mais imediato do que transformar o poder real em poder legal. Revestidos de patentes e de uma parcela de autoridade pública, eles [proprietários rurais] não só ganharam em prestígio e força, mas se tornaram em guardas da ordem e da lei que lhes vinham ao encontro; e a administração, amputando-se talvez com essa delegação mais ou menos forçada de poderes, ganhava no entanto uma arma de grande alcance: punha a seu serviço uma força que não podia contrabalançar, e que de outra forma teria sido incontrolável. E com ela penetraria a fundo na massa da população, e teria efetivamente a direção da colonia. (Prado Júnior, 1981: 327). Em nosso entendimento, é esse elan forjado no período colonial que produzirá, simultaneamente, o início do fortalecimento do poder e da dominação dos proprietários rurais e a incorporação da lógica patrimonialista de administração pública na estrutura do poder local. De acordo com a análise de Carvalho (2001:21), Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram, sem dúvida, livres, votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram os “homens bons” do período colonial. Faltava-lhes, no entanto, o próprio sentido da cidadania, a noção da igualdade de todos perante a lei. Eram simples potentados que absorviam parte das funções do Estado, sobretudo as funções judiciárias. Em suas mãos, a justiça (...) tornava-se simples instrumento do poder pessoal. O poder do governo terminava na porteira das grandes fazendas. Por outro lado, convém também destacar, ocorrerá a incorporação dos interesses agrários pelo poder central. Sendo assim, a dimensão patrimonialista da administração pública brasileira será constituída a partir de dois vetores: o da própria estrutura de dominação da coroa, que se expressa através da organização centralizada do poder central, efetivada pela transmutação da ordem administrativa portuguesa para o Brasil, e aquele que será forjado pelo próprio desenvolvimento da estrutura econômica, social cxxxii e política da ordem colonial brasileira, na qual o poder dos proprietários rurais será fundamental para a garantia da ordem legal e administrativa ditada pela coroa. Portanto, desenvolve-se no Brasil uma estrutura patrimonialista que parte do poder central e se irradia como referência administrativa adequada para a formalização do exercício do poder patriarcal dos proprietários rurais. O patrimonialismo nas terras brasileiras, dessa forma, deitará raízes na estrutura do poder central e também na organização do poder local. Esse amálgama administrativo sela a dominação exercida pelos representantes da burguesia comercial - que se alojam nos centros urbanos, são principalmente portugueses e, invariavelmente, são atendidos pela ordem administrativa central - e pelos proprietários rurais que, além de produzir as mercadorias destinadas à comercialização, são os responsáveis pela garantia da ordem legal ditada pela coroa. Dessa forma, podemos perceber como a ordem administrativa construída no Brasil está coerente com a estrutura de dominação, exercida pela burguesia comercial e os proprietários rurais, conduzida pelo Estado Patrimonialista português, que ganhará forma particular ao se organizar no Brasil. Conforme ressalta Faoro (2004: 176), A burguesia, nesse sistema, não subjuga e aniquila a nobreza, senão que a esta se incorpora, aderindo à sua consciência social. A íntima tensão, tecida de zombarias e desdéns, se afrouxa com o curso das gerações, no afidalgamento postiço da ascensão social. A via que atrai todas as classes e as mergulha no estamento é o cargo público, instrumento de amálgama e controle das conquistas por parte do soberano. Nesse sentido, a organização político-administrativa da colônia combinará a dimensão tradicional patrimonialista advinda do Estado português com a que brota da articulação entre o poder central e o poder local patriarcal exercido pelos proprietários rurais. cxxxiii Embora Faoro tenha o mérito de apresentar como o patrimonialismo se estrutura no Brasil a partir da centralização do poder para operacionalizar o projeto mercantilista, em nosso entendimento, não destaca, com a ênfase necessária, o papel da força econômica e política dos proprietários rurais na constituição da dominação no Brasil, bem como o seu desdobramento em relação à estruturação da ordem administrativa patrimonialista. Nem tampouco, obviamente, ressalta a expressão de classe que o Estado colonial representa; muito pelo contrário, acentua a autonomia do Estado frente às classes sociais, como se o caráter patrimonial do poder transformasse a ordem administrativa e a autoridade do rei em estruturas acima das classes. O autor, ao analisar a situação brasileira, afirma: As classes, nas suas conexões com o domínio, o comando e a política, ganham ascendência com a sociedade burguesa, com a revolução industrial. Num período pré-capitalista (...), elas se acomodam e subordinam ao quadro diretor, de caráter estamental (...). As formas sociais e jurídicas assumem caráter constitutivo na estrutura global, estabilizando as manifestações econômicas, freando o domínio das classes. Essa posição subalterna das classes caracteriza o período colonial, com o prolongamento até os dias recentes, sem que o industrialismo atual rompesse o quadro (...). Numa sociedade desta sorte pré-capitalisticamente sobrevivente, apesar de suas contínuas modernizações, a emancipação de classe nunca ocorreu. Ao contrário, a ascensão social se desvia, no topo da pirâmide, num processo desorientador, com o ingresso no estamento. A ambição do rico comerciante, do opulento proprietário não será possuir mais bens, senão o afidalgamento, com o engaste na camada do estado-maior de domínio político (Faoro, 2004: 203). Diferentemente de Faoro, em nossa perspectiva a emancipação da classe burguesa nos países periféricos será feita de forma articulada à oligarquia/aristocracia existente, tendo o Estado como elemento garantidor desse pacto de dominação e a estrutura administrativa como forma de materializar e objetivar tal dominação. O fato de o processo ser diferente dos casos clássicos de estruturação do capitalismo não significa dizer que não há ascensão social da burguesia, nem que o Estado paire acima das classes sociais. cxxxiv Nesses casos não clássicos, a ascensão burguesa ocorre não eliminando a classe pré-capitalista, mas se articulando a ela, e utilizando o Estado e sua ordem administrativa como forma de garantir o novo pacto de dominação, evitando a participação dos setores populares e democráticos. Dessa forma, a burguesia ascendente opta por um processo de transição fundado na aliança com as elites précapitalistas. Assim, incorpora a cultura tradicional do antigo regime, e o Estado e seu corpo administrativo vão se autonomizando mais fortemente, na medida em que são, por um lado, a expressão desse pacto e, por outro lado, o sujeito político responsável para manter o pacto de dominação construído na sociedade. Configurase, dessa forma, uma transição fundada na modernização conservadora (Barrington Moore Jr.), ou, nas palavras de Gramsci, uma “revolução passiva”49, embora, em nenhum momento, isso projete um Estado acima das classes sociais. Por isso, consideramos fundamental sublinhar que a manutenção do patrimonialismo no Brasil não decorre apenas, nem sobretudo, da estrutura estamental do Estado centralizador, pois este tem de ir se burocratizando para atender às demandas da expansão capitalista e da construção da unidade nacional. Nem, tampouco, o patrimonialismo é produto do atraso de parte de nossa elite econômica. Na verdade, o patrimonialismo brasileiro se mantém vivo devido, principalmente, à articulação que se efetiva, no início, sob a batuta do Estado Patrimonial colonial, entre a burguesia comercial e os proprietários rurais, selando uma conciliação entre os interesses divergentes, visando realizar a dominação 49 Gramsci (2001:393), ao tratar do historicismo crociano, explicita de forma precisa a concepção de “revolução passiva” ou “revolução-restauração”; de acordo com o autor, essas categorias “exprimem, talvez, o fato histórico da ausência de uma iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de ‘restaurações’ que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de ‘restaurações progressistas’ ou ‘revoluções-restaurações’, ou, ainda, ‘revoluções passivas’. Seria possível dizer que se tratou sempre de revoluções (...) nas quais os dirigentes salvaram sempre o seu ‘particular’”. cxxxv política no País. Em relação a essa conciliação, Mazzeo (1997: 91) afirma de forma conclusiva: Historicamente débil e, em última instância, subsumida aos desígnios do monopólio metropolitano, a burguesia brasileira [proprietários rurais] esteve direcionada às composições e acordos com os burgueses reinóis, colocando assim, as fronteiras da convivência pacífica nos limites da garantia da produção escravistas do tráfico de negros – o suprimento fundamental de mão-de-obra para as lavouras monocultoras. Assim, forja-se a gênese da influência da estrutura “patriarcal” presente na área rural brasileira, a qual, do ponto de vista da dominação, exercerá seu poder durante toda nossa história imperial e republicana, visto que as mudanças que ocorrerão no país serão efetivadas, sempre, com a participação dessa elite tradicional, a partir do entrelaçamento dos seus interesses com os da burguesia nacional e estrangeira. Mas isso veremos, com mais detalhe, no item seguinte. Entretanto, antes de passarmos para a próxima seção, cabe, ainda, ressaltar três aspectos importantes do período em questão. O primeiro deles diz respeito ao fato, como vimos anteriormente, de a administração colonial prescindir de uma estrutura formal-racional de corte burocrático, devido ao significado da colonização destinar-se basicamente à exploração das riquezas naturais em benefício do comércio europeu (Faoro, 2004: 115), contribuindo, assim, com o processo de acumulação primitiva capitalista. Essa situação se altera com a chegada da corte e de seu aparato burocrático no Brasil, no início do século XIX. Ou seja, a chamada “inversão brasileira”, por ocasião da substituição da capital do Império Português de Lisboa para o Rio de Janeiro, fortalece o caráter patrimonial do poder central nas terras brasileiras. Entretanto, tal “inversão” também traz para cá o que será o embrião da estrutura burocrática brasileira, na medida em que as decisões que requeriam especialização e racionalidade, principalmente relacionadas às questões de comércio internacional cxxxvi e relações exteriores, passaram a ser tomadas no Brasil a partir do aparelho de Estado Português que migrou com a coroa. Em outras palavras, a dimensão burocrática da administração patrimonial portuguesa, que não se encontrava presente na administração colonial, passa a existir no Brasil a partir de 1808. Com a a chegada da corte ao Rio de Janeiro, conforme salienta Faoro (2004: 249), “a nobreza burocrática defronta-se aos proprietários territoriais, até então confinados às câmaras, em busca estes de títulos e das graças aristocráticas. A corte está diante de sua maior tarefa (...): criar um Estado e suscitar as bases econômicas da nação.” O segundo aspecto a sublinhar refere-se ao papel dos proprietários rurais na ordem administrativa colonial. Apesar de tal tema já ter sido objeto de reflexão, consideramos necessário afirmar, para evitar qualquer tipo de dúvida sobre nossa análise que, ao apontarmos a função dos proprietários rurais na organização econômica, social, política e administrativa, não estamos supondo que o centro do poder colonial se encontre nas mãos desse segmento. Certamente, conforme afirmam Prado Júnior e Faoro, a exploração colonial enquanto empreendimento da burguesia comercial portuguesa, conduzida pelo Estado Patrimonial, ao alicerçar, através da ordem administrativa, os interesses da nobreza e da burguesia, não possibilita qualquer margem de dúvida sobre quem detém o poder. No entanto, para esse poder expressar-se em terras brasileiras, evitando a dispersão, fragmentação e anarquia político-administrativa, os proprietários rurais cumprirão um papel fundamental em defesa do poder central, como salienta Mazzeo. Essa situação marcará o início do processo de fortalecimento político desse segmento. Por outro lado, não podemos esquecer que as riquezas exploradas e enviadas a Portugal são extraídas e/ou produzidas sob comando desses proprietários. Sendo assim, apesar de o centro de poder não estar não mãos desses senhores, não significa dizer que cxxxvii eles não cumprem um papel fundamental na estrutura político-administrativa da colônia. Inclusive, consideramos que aí se define geneticamente o poder dos proprietários de terras no Brasil e sua influência na ordem administrativa brasileira, que se expressará, de forma contundente, na República Velha, depois de passar por um processo de amadurecimento no Império. O último aspecto a sinalizar refere-se ao processo de exclusão das massas populares que o pacto de dominação vigente no período colonial desencadeará. De acordo com Mazzeo (1997:88): É nesse contexto histórico-social que se desenvolve a “ideologia da conciliação” brasileira, expressão de uma burguesia débil economicamente [proprietários rurais] – anômala – que, para se manter no poder, concilia sempre com os interesses externos e, internamente, pauta-se pela violenta repressão das massas populares que, em um nível externo, a escravidão encarna e expressa. Para completar a análise de Mazzeo, na perspectiva do que irá ocorrer no período imperial e no da República Velha, diríamos que a nascente burguesia comercial brasileira, além de, também, conciliar com os interesses externos da burguesia estrangeira, conciliará internamente com os interesses das elites tradicionais (proprietários rurais), visando à exclusão das massas da participação política e à possibilidade de usufruir da estrutura do Estado brasileiro de forma compartilhada com os segmentos de origem latifundiária e escravista. Mas este assunto detalharemos a seguir. 2.2. Consolidação do patrimonialismo e a origem burocrática da ordem administrativa brasileira: o período imperial e a primeira república O período imperial possui como uma de suas características o fato de os proprietários rurais saírem do isolamento colonial e conseguirem se constituir como cxxxviii a base do poder político. Tal fato configura-se como central para entendermos o desenvolvimento da ordem administrativa brasileira. Esse processo é produto das contradições que vão se acirrando ao longo do desenvolvimento do “sistema colonial”. Prado Júnior indica três contradições centrais. A primeira é a contradição entre os interesses da burguesia comercial, credora da grande lavoura, e os dos proprietários de terra (a “nobreza” da terra), latifundiários, senhores de engenho, que são os devedores dessa burguesia. A segunda é a contradição étnica baseada na estrutura escravista colonial, que produziu o preconceito racial em relação ao negro e em relação ao índio. A última contradição assinalada pelo autor, apesar de ser utilizada muito mais como justificativa das ações extremadas da época e não pela centralidade de sua importância, vincula-se aos abusos realizados pela ordem administrativa em relação à cobrança de impostos, ao recrutamento militar etc. Segundo o autor, mesmo antes da chegada da corte portuguesa ao Brasil, essas contradições “já estão latentes, e começam a se manifestar em sintomas alarmantes que põem em xeque toda a estrutura colonial” (Prado Júnior, 1981: 70). A contradição, apresentada por Prado Júnior, entre a burguesia comercial e os grandes proprietários de terras configura-se como o centro das questões que influenciarão a modelagem da ordem administrativa do Brasil, enquanto país independente, constituída a partir do Estado Patrimonialista português, mas que ganha traços particulares oriundos do sistema colonial brasileiro. Com a abertura dos portos, após a chegada da família real ao Brasil, cresce a presença dos comerciantes ingleses em terras brasileiras. Segundo Faoro (2004: 248-258), essa situação gera o retraimento da classe mercantil nativa e portuguesa e provoca a ascensão dos proprietários rurais. O comércio vinculado ao aparelho cxxxix governamental perde hegemonia frente às fazendas, na medida da expansão da presença dos ingleses no comércio com o Brasil. Esse quadro se complexifica mais se levantarmos a tensão existente entre a ordem administrativa colonial, com sua vinculação com a estrutura de poder dos proprietários rurais, e a emigrada administração da corte, com sua organização burocrático-patrimonial articulada aos interesses da burguesia comercial. Em outras palavras, tal panorama reflete o início da aproximação dos proprietários rurais da corte, saindo, assim, de seu isolamento, e a perda de força da burguesia comercial portuguesa e de sua contraparte, a ordem administrativa central. Além disso, esse cenário reforça os sentimentos de identidade brasileira. A revolução portuguesa de 1820 precipita as tensões políticas, provocando o retorno de D. João VI a Portugal, em 1821, e gerando no Brasil um receio de regresso ao estatuto colonial de subordinação a Lisboa, a partir da possibilidade do retorno, também, do príncipe regente. Para a burguesia comercial, isso significaria a perda de autonomia para comercializar com diferentes países e, para os fazendeiros, a preocupação se referia às possibilidades de instabilidade e tumulto político (Monteiro, 1996). Nessa conjuntura, segundo Coutinho (1993: 78), efetiva-se a independência brasileira como um “rearranjo do grupo dominante”: ... o fato de o primeiro imperador brasileiro ter sido filho do rei de Portugal; ele foi Pedro I no Brasil e Pedro IV, algum tempo depois, em Portugal. Isso revela quanto foi débil aquela ruptura, a ruptura que nos trouxe de uma situação colonial para a condição de país independente. Além disso, junto com este imperador, herdamos também a burocracia portuguesa, que aqui estava e que foi reforçada com a vinda de D. João VI, em 1806. Portanto, se observarmos bem, o processo de independência não representou absolutamente uma revolução no sentido forte da palavra, isto é, uma ruptura com a ordem estatal e sócio-econômica anterior, mas de certo modo não foi mais do que um rearranjo no grupo dominante. cxl Do ponto de vista econômico, “a queda do ‘exclusivismo metropolitano’ e a subseqüente formação do Estado Nacional marcam, indiscutivelmente, o início da crise da economia colonial no Brasil” e a gênese e desenvolvimento da economia mercantil escravista cafeeira, que teve como origem para seu desenvolvimento o aporte do capital mercantil nacional, expandido a partir da vinda da família real para o Brasil (Cardoso de Mello, 1998: 53-54). Portanto, ao longo do século XIX, no quadro do desenvolvimento do capitalismo industrial dos países centrais, ocorrerá a crise da economia colonial, na medida em que não são mais necessários produtos agrícolas coloniais e metais preciosos, mas sim alimentos e matérias-primas produzidas em massa. Nesse contexto, exige-se da periferia a continuidade de uma produção mercantil complementar, não mais no sentido de participar da acumulação primitiva, mas antes para rebaixar os custos de reprodução da força de trabalho e dos elementos componentes do capital constante, a partir do fornecimento, a baixo custo, de produtos alimentares e matérias-primas (Cardoso de Mello, 1998: 44-45). A economia mercantil-escravista nacional cafeeira terá essa função durante o Império. Em 1830, o Brasil se torna o primeiro produtor mundial de café e este o primeiro produto de exportação do Brasil e da América do Sul. “Neste mesmo momento, a economia mercantil-escravista cafeeira assumirá seus traços definitivos: grande empresa produzindo em larga escala, apoiada no trabalho escravo, articulada a um sistema comercial-financeiro, controlados, uma e outro, nacionalmente” (Cardoso de Mello, 1998: 57-58). Politicamente, a primeira grande tarefa da independência será a constituição do Estado nacional. Isso exigirá a centralização do poder e uma organização cxli administrativa com certo nível de racionalidade e especialização para produzir leis e regulamentos que conformassem a unidade nacional brasileira. No entanto, a base de sustentação do Império se constituiu, fortemente, a partir dos recursos advindos da rápida expansão da economia cafeeira (Monteiro, 1996:131); portanto, os grandes fazendeiros não poderiam ser esquecidos na formação da estrutura de dominação brasileira. Essa situação leva à ampliação da aristocratização dos proprietários rurais. Segundo Faoro (2004: 287), nesse momento é criada a “aristocracia nacional” que, em termos quantitativos, com apenas 8 anos conseguiu suplantar a portuguesa de 736 anos de existência50. A centralização do governo será realizada buscando apoio no poder dos proprietários rurais e, por outro lado, esses proprietários, buscarão continuar se beneficiando das estruturas de poder do Estado patrimonial. Sendo assim, se havia, por um lado, a necessidade de expandir a dimensão racional-legal da ordem administrativa, por outro lado era necessário reforçar os alicerces patrimoniais que ligavam o poder central à ordem senhorial tradicional. A ordem administrativa do Brasil independente será montada sobre a estrutura patrimonialista da corte portuguesa que se manteve no País, porém ampliando sua dimensão racional e de especialização e aprofundando as relações de patrimonialismo que a ligavam com o poder dos proprietários rurais. Portanto, a estrutura do Estado patrimonial-burocrático português e sua centralização serão funcionais para a tarefa de construção da unidade nacional desenvolvida no período imperial, necessária para conter os movimentos radicais que poderiam colocar em perigo a ordem e os poderes dominantes. Por outro lado, essa centralização reduz o poder dos proprietários rurais, que desejam a unidade 50 “...a monarquia portuguesa, depois de 736 anos de existência, possuía 16 marqueses, 26 condes, 8 viscondes e 4 barões, enquanto a brasileira, nos primeiros oito anos de vida, não se contentava com menos de 28 marqueses, 8 condes, 16 cxlii nacional e o controle dos movimentos radicais, mas desejam, também, maior participação na condução do processo político. Nesse movimento, encontramos a determinação central das tensões relativas ao processo de centralização/descentralização presente durante o Império. Era fundamental conter o “jacobinismo” republicano, existente entre os setores que constituíam as camadas médias urbanas, objetivando criar as condições para a unificação da condução do processo político. Essa unidade foi, então, personificada na pessoa do príncipe Regente, o que implicou a continuidade da estrutura burocrático político-administrativa trazida de Portugal (Mazzeo, 1997: 129). Tal processo é muito bem registrado por Faoro, ao analisar a arquitetura político-administrativa baseada no Poder Moderador – “poder minoritário concentrado na aristocracia em construção e na alta burocracia” (Faoro, 2004: 290) – que conviveu com períodos de maior autonomia do Poder Local, através das medidas oriundas da criação da Guarda Nacional (1831), do Código de Processo Criminal (1832) e do Ato Adicional (1834), e maior centralização do poder, efetivada pela Lei Interpretativa do Ato Adicional (1840), pelo restabelecimento do Conselho de Estado (1841), pela reforma do Código de Processo Criminal (1841) e pela subordinação da Guarda Nacional ao Ministro da Justiça (1850). Esse processo - que envolve, primeiramente, a descentralização do poder e, em seguida, a centralização - estrutura e fortalece, em diferentes níveis, as diversas forças dominantes, representadas pela burguesia comercial, a nascente burguesia agrária (restrita, basicamente, a setores paulistas produtores de café) e os proprietários rurais tradicionais. A criação da Guarda Nacional será uma estratégia para garantir a ordem legal, após a abdicação de 7 de abril, procurando afastar o exército de qualquer possibilidade de monopolização e tutela da condução política. Para isso, de certa viscondes e 21 barões” (Faoro, 2004: 287), cxliii forma, será resgatada a experiência colonial das ordenanças. Ou seja, será criado um aparato auxiliar ao exército, que terá como função, de acordo com seu primeiro artigo, “defender a Constituição, a Liberdade, a Independência, e a integridade do Império: para manter a obediência às leis, conservar ou restabelecer a ordem e a tranqüilidade pública...” (Faoro, 2004: 302). Esse aparato ficará sob controle do poder civil, que nomeará chefes políticos locais para exercerem o comando local das guardas, cujo posto de maior graduação será o de coronel. Portanto, essa instituição viabilizará o compromisso entre o poder central monárquico e o poder político local dos proprietários de terra, como forma de garantir o processo de construção da unidade nacional, evitando e controlando os movimentos de radicalização presentes no período. Conforme sublinha Carvalho (2001: 37), a “Guarda Nacional (...) era sobretudo um mecanismo de cooptar os proprietários rurais, mas servia também para transmitir aos guardas algum sentido de disciplina e de exercício de autoridade legal”. O Código de Processo Criminal, ao instituir o juiz de paz como autoridade eletiva, pré judicial, com o objetivo de conciliar litígios e evitar conflitos, reforçará o poder local dos proprietários rurais, na medida em que será um cargo eleitoral municipal. Nas palavras de Faoro: O estatuto processual, conjugado com a guarda nacional, municipalista e localmente eletiva no seu primeiro lance, garante a autônoma autoridade dos chefes locais, senhores da justiça e do policiamento. (...) Não era, em conseqüência, o municipalismo o fruto das reformas, senão o poder privado, fora dos quadros legais, que se eleva sobre as câmaras, reconhecido judiciariamente. (Faoro, 2004: 307). O Ato Adicional estabelecerá uma ordem política que procurará evitar, simultaneamente, o centralismo monárquico e a fragmentação local, através da constituição do poder das Assembléias Legislativas Provinciais, dirigidas por um presidente nomeado pelo Imperador, que tinha como objetivo, a partir da legislação cxliv estabelecida pelas Assembléias, executar e fazer cumprir as leis, prover os empregos, dar posse e suspender funcionários provinciais e municipais (Avellar, 1976: 213-214). Essa engenharia buscava garantir o controle das localidades pelo poder central, através de uma estrutura regional (a presidência da província). Conforme analisa Abrúcio (2002: 33), “face à fraqueza do Estado nacional em controlar todo o território brasileiro, a engenharia institucional do Império fez do presidente de província o elo entre o governo central e as bases políticas locais”. No entanto, o governo central, muitas das vezes, ficava com as mãos atadas frente aos poderes locais, na medida em que estes controlavam todo o aparato político, judicial e administrativo montado. O Presidente da Província, a partir da base de apoio local e do controle dos recursos administrativos que possuía51, poderia expressar uma força que se contrapunha ao poder central, ainda que estivesse vinculado a ele pelo processo de nomeação. Um determinado grupo político, ao assumir a Assembléia Provincial, pressionava a nomeação de um determinado presidente e organizava a criação e distribuição de empregos públicos para seus correligionários, fortalecendo as lideranças municipais de seu partido, que assumiam as funções de juiz de paz, eleitoralmente conseguidas. Essa teia de articulação forçará a nomeação, para a Guarda Nacional, dos proprietários de terra com prestígio municipal e provincial, portanto do mesmo grupo de poder dos vencedores das eleições. Dessa forma, constitui-se “o fechamento do círculo da quase autarquia das fazendas projetada no mundo político” (Faoro, 2004: 307-309). 51 Conforme sinaliza Abrúcio (2002: 34), “o presidente da província tinha vários instrumentos para cooptar a classe política local: primeiro, designava as autoridades municipais, sendo os policiais (...) os mais importantes; segundo, tinha um enorme poder de nomeação para empregos públicos; terceiro, indicava os nomes para o Poder Central de quem poderia ocupar cargos na Guarda Nacional e obter os títulos nobiliárquicos, tão cobiçados pelos grandes fazendeiros". cxlv Entretanto, é forçoso lembrar que, contraditoriamente, o Presidente da província não disporá de total liberdade política, na medida em que será nomeado pelo Imperador e não eleito pelo voto local. Esse fato garante ao governo central um certo poder para influenciar as questões locais e subordinar o Presidente a seus interesses, criando um sistema de tensão entre o poder central e o poder local, tendo como estrutura de equilíbrio a presidência da província. Nesse contexto, as eleições no Brasil se configuravam como processos de disputa entre facções locais, a partir da interferência do governo central, via Presidente da Província, para conquistar os recursos de poder disponíveis nas localidade. Nas palavras de Carvalho (2001: 33): O que estava em jogo não era o exercício de um direito de cidadão, mas o domínio político local. O chefe político local não podia perder as eleições. A derrota significava desprestígio e perda de controle dos cargos públicos , como os de delegados de polícia, de juiz municipal, de coletor de rendas, de postos na Guarda nacional. Tratava, então, de mobilizar o maior número possível de dependentes para vencer as eleições. Nesse quadro, continua o autor, o voto não significava a ação política consciente, em torno de propostas e projetos políticos, como forma de participar do processo político da nação, mas, sim, estava vinculado estreitamente às disputas locais. O votante, dessa forma, agia como dependente de um chefe local. No entanto, quanto mais independente se tornava ou era o votante e na medida em que percebia a importância do voto para o chefe político, mais ele barganhava e utilizava o voto como mercadoria a ser negociada (Carvalho, 2001:35-36). Para a tese, em relação a essa engenharia de descentralização montada sobre o tripé da Guarda Nacional, do Código Criminal e do Ato Adicional, apesar de ter funcionado integralmente apenas durante 7 anos, duas questões merecem destaque. cxlvi A primeira refere-se ao fortalecimento da estrutura patrimonialista que vai se consolidando como lógica da ordem administrativa, nos domínios territoriais mais longínquos das terras brasileiras, pois a administração pública vai se constituindo como extensão da propriedade dos “senhores rurais”, coronéis da Guarda Nacional, que controlam o poder policial, a partir de sua riqueza e prestígio político, e, por isso influenciam as demais estruturas de poder local e são reverenciados pelo poder central, via Presidente da Província. Dessa forma, conforme assinala Faoro (2004: 310), “a moldura legal tem diante de si forças atomizadas, isoladas e não solidárias, perdidas nas fazendas, para as quais o aparelhamento administrativo serviria apenas para consolidar o estatuto de domínio da unidade fechada do latifúndio, dirigido por um senhor”. A outra questão está relacionada ao processo de fortalecimento da dominação dos proprietários rurais, baseada na lógica patrimonialista, que criará as condições subjetivas, sobretudo políticas, sobre as quais se erguerão as fundações do edifício “coronelista” e da “política dos governadores” desenvolvidas durante a República Velha, o que detalharemos adiante. As medidas adotadas a partir de 1841 terão como objetivo a retomada da centralização do poder, devido ao quadro de dispersão e autonomismo e dos focos de pressão oriundos das influências territoriais dos fazendeiros e da ação dos “exaltados” da cidades e das capitais das províncias (Faoro, 2004: 317). Por outro lado, a situação econômica do período reforça o entrelaçamento entre o comissário e o fazendeiro. O crescimento da exportação de café conduz ao fortalecimento econômico da burguesia mercantil e, em conseqüência, estabelece a reaproximação do comerciante à estrutura estatal. Nesse quadro de mudanças econômicas, sociais e políticas, o Estado cxlvii brasileiro irá sofrer a pressão do setor urbano comercial exportador que se constituirá como o polo de concentração de capital. As ações do Estado beneficiando o setor comercial e financeiro, que continua a dominar a economia, muito bem apontadas por Faoro, não significarão, de fato, o abandono do proprietário rural pelo Estado, visto que, como demonstra Cardoso de Mello, se por um lado o produtor rural cafeeiro depende do capital comercial, devido aos elevados custos de produção, o comerciante e o financista dependem do produtor cafeeiro, já que se trata do único investimento existente rentável (Cardoso de Mello, 1998: 6769). Como a dispersão e a fragmentação do poder não interessam às elites dominantes, o movimento de centralização é marcado para garantir a unidade nacional e, simultaneamente, favorece a burguesia comercial e os grandes proprietários, em detrimento da participação no poder dos demais proprietários rurais. A primeira medida de impacto da centralização é a Lei Interpretativa do Ato Adicional. Essa lei buscou reduzir o caráter descentralizador do Ato Adicional, retirando das assembléias provinciais a autoridade sobre os funcionários gerais com exercício nas províncias. Dessa feita, os empregos e a polícia voltam a ser comandados centralizadamente (Avellar, 1976 e Faoro, 2004). A outra medida de destaque é o restabelecimento do Conselho de Estado. Tal medida recoloca uma estrutura vitalícia, composta pela oligarquia, como garantia do exercício do poder político-administrativo sob autoridade do monarca (Faoro, 2004: 332-333). A reforma do Código Criminal e a subordinação da Guarda Nacional ao Ministro da Justiça completam o quadro da reação centralizadora. Através da cxlviii reforma do Código, institui-se o chefe de polícia em cada província, nomeado pela Corte, entre juízes de direito e desembargadores, assessorados por delegados e subdelegados, também escolhidos pelo poder central, que terão competências e atribuições similares aos dos juízes de paz. Dessa forma, esvazia-se o poder dos juízes de paz e, em conseqüência, a dos chefes locais. Por fim, a subordinação da Guarda Nacional ao Ministro da Justiça conclui o processo de esvaziamento da influência do poder local na estrutura político-administrativa do Império. O retorno à centralização produz um processo de burocratização da administração pública, principalmente a partir da reformulação do Código de Processo Criminal, na medida em que aumenta o grau de especialização na condução das questões judiciais, pois os chefes de polícia seriam indicados dentre os quadros de juízes de direito (juízes escolhidos dentre os bacharéis em direito) e desembargadores. Porém, a impessoalidade não é a tônica do processo de escolha, mantendo-se, assim, a característica patrimonial de recrutamento de quadros administrativos, a partir de relações pessoais de lealdade estabelecidas entre o príncipe e o funcionário. Com essa organização elimina-se o equilíbrio de forças entre o poder central e o poder local existente sob a vigência das medidas descentralizadoras. Estruturase a engenharia político-administrativa de cima para baixo. Assumir o poder na alta hierarquia do Império significa ampliar a influência para o conjunto do território nacional. O movimento de baixo para cima se esvaziou. Conforme analisa Faoro (2004: 334), a luta política, portanto, desloca-se da localidade para o centro do poder. Com o esvaziamento do poder local a oligarquia formada pelos grandes fazendeiros e comerciantes concentra o poder em suas mãos, vinculando-se ao cxlix Imperador. Dessa forma, reproduzem-se as relações políticas presentes antes da independência. Faoro decifra o processo interpretando um alijamento do proprietário rural da estrutura de poder. Vejamos a análise do autor que, apesar de extensa, vale ser registrada: A velha armadura política se amolda, sem absorvê-la, à sociedade, que se inquieta, se agita, inconformada, ao braço sufocante e civilizador da monarquia tradicional. Sobre a sociedade dominada, uma realidade colonizadora, minoritária conduz o fazendeiro e lhe impede o orgulho caudilhista, domina o político, domesticando-o à ordem oligárquica (...). A estrutura colonial, filha da tradição, converte, cunha e disciplina os sertões e o campo, burocratizando o agricultor e o senhor de engenho com o uniforme da guarda nacional, sucessor das ordenanças e milícias, a comenda e o título de barão. Réplica política da dependência do homem da terra ao mercador de escravos, ao fornecedor urbano, ao dispensador do crédito e comprador das safras (...). Ocupado o campo de domínio burocrático, a influência política, depois do breve período da Independência e da indefinição regencial, será cada vez mais irradiada do centro para a periferia, numa obra de compressão centralizadora a que não estará alheio o interesse da classe comercial, dona do crédito, do financiamento, do tráfico de escravos e do dinheiro. (...) Tudo indica que a nova categoria política, encharcada de burocratas, se apropriará dos meios e instrumentos eleitorais, domesticando o territorialismo expansivo, afogando a competição num arranjo de controle social e governamental. A fazenda, que emerge poderosa nas lutas da Independência, cede lugar aos legistas, sobretudo aos juízes. Com a prosperidade da agricultura, dado o vínculo escravista, não se tornam mais poderosos os agricultores, mas os donos do crédito e das exportações, propugnadores da ordem centralizadora, que na política, será propícia aos letrados (Faoro, 2004: 335 e 366). Na visão de Faoro há uma estreita relação entre a burguesia comercial e o Estado, alijando os proprietários rurais da estrutura de dominação. Já mencionamos anteriormente, ao tratar do período colonial, como o autor não destaca, com a ênfase necessária, o papel da força econômica e política dos proprietários rurais na constituição da dominação no Brasil bem como o seu desdobramento em relação à estruturação da ordem administrativa patrimonialista. Na questão relativa ao Império, Faoro reproduz, de certa forma, a mesma análise do Brasil colônia, destacando, de forma correta, o papel da burguesia mercantil, pois, como muito bem interpreta Cardoso de Mello, o setor urbano comercial exportador é o polo de concentração de cl capital. No entanto, diferentemente do autor d’O Capitalismo Tardio, Faoro não analisa a mútua dependência entre o capital mercantil e financeiro e a produção cafeeira, fato que o leva a subestimar, mais uma vez, o papel dos proprietários rurais na estrutura de dominação brasileira. Em decorrência dessa forma de analisar a situação, o autor de Os Donos do Poder não consegue perceber que, ao esvaziar o poder local e reorientar a organização política “de cima para baixo”, as medidas centralizadoras do Império, ao invés de alijarem os proprietários rurais do poder, estabelecem um mecanismo de controle das disputas locais, a partir do governo central e da oligarquia composta pelos grandes comerciantes e fazendeiros. Fragoso e Teixeira da Silva (1996: 200) são precisos na análise da Lei de 1841, para mostrar o funcionamento do mecanismo de controle criado: Apesar de seus traços básicos, a lei de 1841 não pode ser encarada simplesmente como um esgotamento do poder local, ou seja, dos proprietários de terra. Na verdade, o que de certa forma se verifica é o estabelecimento do governo como administrador do conflito local e das disputas entre grupos dominantes, pois a nomeação por ele dos delegados e subdelegados não viola a hierarquia local de poder. Assim, faz-se necessário sublinhar que os elementos não integrantes dos grupos dirigentes locais eram excluídos das funções de mando públicas com as medidas de 1841, e o governo, ao reforçar o poder do Estado, o fazia de forma a trazer para a esfera pública a administração do conflito privado, isso sem ferir o conteúdo privado do poder local. A partir dessa perspectiva, concordamos com Mazzeo (1997) sobre o processo de conciliação que se dá no Brasil nesse período. Para o autor, ocorre uma conciliação qualificada por ele como de “bonapartismo colonial”52, principalmente em relação ao segundo reinado. Bonapartismo, pois, visto que se organiza um governo que busca conter as 52 Segundo Mazzeo, o “bonapartismos colonial” estrutura a gênese da autocracia burguesa no Brasil. Nas palavras do autor: “O bonapartismo colonial aparece, desse modo, como o elemento de consolidação políticade uma sociedade extremamente autocrática, comandada por uma burguesia débil e subordinada aos pólos centrais do capitalismo, para o qual a sociedade civil se restringe aos que detêm o poder econômico, e as massas trabalhadoras constituem a ameaça constante aos seus interesses de classe. O bonapartismo colonial será o articulador de uma política de Estado manipuladora e alijadora das massas populares; será enfim, a encarnação e a gênese da autocracia burguesa no Brasil” (Mazzeo, 1997: 133). cli lutas “desencadeadas com o processo de emancipação: a eclosão da luta intestina entre as frações da burguesia agrária, os movimentos populares e rurais e, ainda, os embates com os setores radicalizados da pequena burguesia urbana” (idem: 132). Embora o governo se apresente como “imparcial”, acima das contradições de classes, buscando mostrar-se com bastante independência frente à sociedade, efetivamente, encontra-se vinculado aos interesses das camadas hegemônicas e dominantes. O bonapartismo é qualificado de colonial, pois, diferentemente dos casos clássicos que visava à expansão das relações capitalistas, o caso brasileiro se mostra como responsável pela manutenção da ordem tradicional. Conforme análise de Mazzeo (1997: 133): ...no Brasil, o bonapartismo mantém a estrutura escravista de produção, continuidade da economia colonial, caracterizando a não ruptura com o atraso econômico e social, assim como a debilidade de sua burguesia. A conciliação, dessa forma, direciona-se à subsunção. Concilia-se com o arcaísmo (...) e concilia-se com a Inglaterra, a nova “metrópole”. Por outro lado, conforme sintetiza Florestan Fernandes (1981: 27), o processo de desenvolvimento da economia cafeeira “abrange duas fases: 1º) a ruptura da homogeneidade da ‘aristocracia agrária’; 2º) o aparecimento de novos tipos de agentes econômicos, sob a pressão da divisão do trabalho em escala local, regional ou nacional.” Para o sociólogo paulista, a expansão da grande lavoura, no contexto de constituição do Estado nacional, intensifica a saída do isolamento de parcela dos “senhores rurais”. Essa parcela de proprietários rurais vai se urbanizando e secularizando suas idéias e perspectivas sociais e políticas, ou seja, vai se “aburguesando”. Simultaneamente, ocorre, também, devido à expansão da clii urbanização e dos serviços, o surgimento de tipos humanos53 que não estavam diretamente vinculados e subordinados - de forma a impedir manifestações de opiniões autônomas - aos códigos senhoriais da área rural, apesar de estabelecerem com a “aristocracia agrária” uma relação de lealdade pessoal baseada em valores tradicionais. Segundo Fernandes, serão esses novos tipos humanos que constituirão “os representantes mais característicos e modernos do ‘espírito burguês’” (Fernandes, 1981: 27-28). Nesse processo, conforme assinala o mesmo sociólogo (Fernandes 1981: 103-125), ocorre a intensificação do aburguesamento, principalmente no setor cafeeiro, do proprietário rural e sua transformação em “fazendeiro homem de negócio”, ao mesmo tempo em que ocorre no setor comercial uma busca de status aristocrático, próprio dos proprietários rurais. Nessa perspectiva, embora, ao se transformar em homem de negócio, o fazendeiro perca sua configuração e prestígio aristocrático, ele procura manter seu poder no âmbito da fazenda, da família e da comunidade local. É a dimensão “coronel” (Fernandes, 1981) que o fazendeiro vem desenvolvendo desde a criação da Guarda Nacional. Nesse contexto, rompe-se com uma certa homogeneidade, até então existente, na “aristocracia agrária”. O “fazendeiro homem de negócio” se distinguirá, enquanto proprietário rural, substantivamente do padrão senhorial existente desde a época colonial. Seja devido à sua identificação com a ordem burguesa e à consciência que adquire em desenvolver sua empresa em termos nitidamente racionais e capitalista, não dependendo de medidas irracionais conduzidas pela 53 De acordo com Fernandes (1981: 28), esses novos tipos humanos são: “os negociantes a varejo e por atacado, os funcionários públicos e os profissionais ‘de fraque e de cartola’, os banqueiros, os vacilantes e oscilantes empresários das indústrias nascentes de bens de consumo, os artesãos que trabalhavam por conta própria e toda uma massa amorfa de pessoas em busca de ocupações assalariadas ou de alguma oportunidade ‘para enriquecer’.” cliii estrutura patrimonial de poder, seja porque passa a não possuir mais status senhorial e, deixando, por isso, de ter acesso amplo às benesses do Estado. O quadro econômico nessas circunstâncias vai se desenvolvendo até um ponto em que a lógica escravista e a pouca disponibilidade de terra vão se apresentando como obstáculos para a acumulação tipicamente capitalista. O Estado nesse quadro irá cada vez mais sofrer as pressões dos novos atores (fazendeiros de café e burguesia comercial e financeira). Sua estrutura patrimonial de base aristocrática e rural, apesar de cada vez mais burocrática devido às necessidades postas para a criação do Estado nacional e de organização da economia mercantil escravista, não mais colonial -, não corresponde mais às demandas de desenvolvimento e à nova correlação de forças presentes na sociedade. Por outro lado, no próprio interior do Estado, conforme sinaliza Fernandes (1981: 50 e 159), setores intermediários e superiores da burocracia tendiam a defender “‘soluções políticas’ que mantinham ou ampliavam a modernização do Estado e sua intervenção construtiva na criação do substrato econômico, social e cultural requerido por uma nação integrada e independente”, na medida em que “se identificavam com a expansão interna do capitalismo”, apesar de serem, na origem do recrutamento, vinculados aos interesses e valores tradicionais, marcando, o caráter conservador da origem de nossa burocracia54. Assim, as demandas políticas liberais e republicanas se articulam com as demandas de descentralização e de maior participação no poder operadas pelos fazendeiros, ou melhor, pelo capital cafeeiro, núcleo do poder econômico de então. 54 De acordo com Fernandes (1981: 157), a base de recrutamento do quadro administrativo está localizada no que ele chama de estamentos intermediários, “membro de ‘famílias tradicionais’ ou de ‘grandes famílias’, que pertencia à sociedade civil, mas não possuía condição senhorial propriamente dita. Graças às suas ocupações, alianças e nível social, esse elemento se incluía e era incluído, pela tradição e por motivos especificamente ‘modernos”, nos estamentos dominantes; chegava mesmo, por causa de dotes pessoais ou de necessidades criadas pela fusão do patrimonialismo com a burocracia, a fazer parte das elites (...). Fossem o que fossem (...), na vida prática deviam lealdade a tais interesses e valores e ao ‘código de honra’ tradicionalista”. cliv Dessa forma, a república se apresenta como saída política possível para uma nova correlação de forças econômicas e sociais. Dois processos merecem ser objeto de destaque nesse contexto. O primeiro refere-se à articulação existente entre o proprietário rural tradicional e o surgimento do comerciante que procura possuir o status aristocrático, buscando, dessa forma, aproximar-se do Estado para adquirir as benesses patrimoniais. O segundo diz respeito ao surgimento do fazendeiro homem de negócio que, por um lado, procura manter seu poder de mando - mesmo não tendo as prerrogativas aristocráticas -, através do exercício de seu poder junto à família, fazenda e comunidade, e, por outro lado, busca no Estado a garantia de seu empreendimento. Tais processos expressam as teias que se entrelaçam entre as frações das classes dominantes no Brasil, as quais articulam referências tradicionais e racionais, no sentido weberiano, para objetivar a dominação no país. A burguesia comercial, a despeito de exigir, para seu empreendimento, mecanismos racionais, aproxima-se e busca usufruir dos traços tradicionais do poder, aliando-se à elite agrária senhorial. O fazendeiro, principalmente o produtor de café, apesar de se aburguesar, procura manter seu domínio tradicional na localidade onde atua. Nesse sentido, referências patrimonialistas e burocráticas passam a conformar a ordem administrativa brasileira, devido a essa situação subjetiva presente nas classes dominantes, que possui como condição objetiva para o seu desenvolvimento, a estrutura “patriarcal”, base da economia colonial, que se combina com o desenvolvimento da economia mercantil escravista cafeeira nacional no quadro de constituição do Estado nacional. Se articularmos essas observações com a análise de Cardoso de Mello, podemos chegar à seguinte conclusão: o Estado nacional brasileiro será forjado a clv partir da hegemonia dos proprietários rurais em articulação com setores nativos da burguesia comercial que expressam a composição da classe dominante da economia mercantil escravista nacional, que será estruturada a partir da crise da economia colonial (produto da queda do “exclusivo metropolitano” e da formação do Estado nacional) (Cardoso de Mello, 1998: 53). Portanto, o Estado nacional se estruturará a partir de uma dominação tradicional implicando uma ordem administrativa patrimonialista. Conforme sublinha Fernandes (1981: 152), “como a ordem estabelecida não se alterou em seus fundamentos propriamente societários, as convenções, o código de honra tradicional e os mecanismos de dominação patrimonialista continuaram a diluir e a neutralizar os elementos competitivos”. Simultaneamente, a construção do Estado para consolidar a economia mercantil escravista em nível nacional requer instrumentos administrativos de cunho racional. Nesse sentido, é necessário que a dominação se expresse nacionalmente. O recurso para isso é a utilização da lógica racional que planeja e implementa a integração e unidade da nação como mecanismo de modernização da sociedade brasileira. Nesses termos, a estrutura administrativa brasileira, para objetivar a dominação no nível local e privado, que tinha como elemento cultural os elos tradicionais, organiza-se de forma patrimonialista. Entretanto, para essa dominação realizar-se no âmbito nacional e implantar uma economia nacional, era essencial uma ordem formal-legal, portanto burocrática. Sendo assim, a gênese da ordem administrativa brasileira se funda no patrimonialismo e na burocracia, não porque se forja uma dicotomia entre o “velho” e o “novo” entre o “atraso” e o “moderno”, mas sim devido à clvi necessidade de objetivar a dominação das classes dominantes (proprietários rurais e burguesia comercial) em nível local e nacional simultaneamente, a partir do momento em que ocorre a passagem da sociedade colonial para uma sociedade nacional, que implicou a existência de um sistema tradicional escravista e um sistema capitalista emergente articulados intensivamente55. Em suma, o caráter nacional do Estado, por um lado, e a emergência das relações capitalistas, por outro, exigiram que as elites estruturassem sua dominação através, também, de mecanismos racionais burocráticos e não mais apenas através dos mecanismos patrimonialistas. A dominação, nesse sentido, objetiva-se através de uma ordem administrativa patrimonialista e burocrática. É importante perceber que, na medida do desenvolvimento dessas estruturas administrativas com lógicas distintas e da ampliação dos setores da sociedade desprendidos das relações tradicionais de dominação, crescem os conflitos intraorganizacionais e começam a ocorrer conflitos no campo dominante, produto do esgotamento da economia mercantil escravista e da necessidade de se organizar uma economia exportadora capitalista (Cardoso de Mello, 1998: 88), ou nos termos de Fernandes, um sistema competitivo que indicasse a expansão capitalista no Brasil. Sendo assim, como muito bem percebido por Weber, se o objetivo passa a ser a expansão capitalista, a estrutura de dominação deve ampliar as condições políticas, jurídicas e institucionais, através do ordenamento racional-legal, para que o objetivo seja alcançado, tanto economicamente (expansão do capitalismo) como socialmente (integração e unidade nacional). Ou seja, para tal objetivo o Estado deve possuir uma dimensão burocrática capaz de garantir o desenvolvimento do 55 Nesse sentido, Fernandes (1981: 157 e 159) falará da “fusão do patrimonialismo com a burocracia” e da “combinação da dominação patrimonialista com a dominação burocrática” clvii capitalismo (em termos de uma economia exportadora) e a construção nacional, necessidade inerente ao desenvolvimento capitalista. É mister frisar que esse objetivo, ao ser conduzido pelos proprietários rurais, no sentido de manter sua dominação e preservar seus privilégios, exigirá também uma estrutura vinculada à tradição (patrimonialismo) para conter ímpetos radicais de racionalidade que venham a democratizar o poder e ampliar o leque de cidadãos, restringindo a capacidade de dominação existente. Contraditoriamente aos interesses dos proprietários rurais, a expansão do capitalismo e a estruturação de um Estado Nacional levam à ampliação de setores da sociedade que não estão vinculados aos circuitos da tradição e que começam a se identificar com os objetivos capitalistas e nacionais, assim como parte da própria elite rural também passa a incorporar o projeto capitalista e de integração nacional. Como conseqüência, instaura-se maior pressão para que ocorra a ampliação das estruturas racionais e legais de objetivação da dominação, gerando o fortalecimento da dimensão burocrática do Estado. No entanto, cabe frisar que a dimensão burocrática desenvolvida possui como origem um quadro administrativo vinculado à tradição e à ordem senhorial, não se estruturando como um vetor modernizante central, determinando, dessa forma, o caráter conservador da gênese da burocracia brasileira. Em outras palavras, isso significa dizer que a burocracia brasileira nasce devido à necessidade de especialização apresentada pelo projeto de integração nacional e de expansão da economia mercantil, porém se afasta da dimensão de impessoalidade requerida por uma estrutura efetivamente burocrática. Nesse quadro, o emprego público será também um instrumento para a expansão do poder da aristocracia e um espaço para adquirir status político e social. clviii Na avaliação arguta de Faoro (2004: 390), “a primeira conseqüência, a mais visível, da ordem burocrática, aristocratizada no ápice, será a inquieta, ardente, apaixonada caça ao emprego público. Só ele nobilita, só ele oferece o poder e a glória, só ele eleva, branqueia e decora o nome.” Resumindo, a construção do império independente ocorre mantendo a estrutura de poder colonial e incorporando de forma intensiva os senhores rurais como esteio da nova ordem, através da utilização do Estado para garantia de seus interesses econômicos e conquista de status, caracterizando a lógica tradicional patrimonialista. Por outro lado, a construção de Estado nacional exige ações racionais que pressupõem o fortalecimento do corpo burocrático do Estado. Nesse contexto, a crise da economia colonial está posta e o advento da economia exportadora capitalista está à vista, reforçando, com tal processo, a necessidade de burocratização do Estado. Dessa forma, elementos patrimonialistas e burocráticos se entrelaçam e conformam a ordem administrativa nacional. Isso não significa dizer que será uma relação sem tensão, porém uma tensão sempre delimitada pela conciliação estabelecida entre a ordem colonial e a nova ordem nacional. O final da década de 1860 marca o início da crise da economia mercantil escravista, a partir, como vimos anteriormente na análise de Cardoso de Mello, do momento em que a lógica escravista e a pouca disponibilidade de terra passam a ser obstáculos para a acumulação tipicamente capitalista. Apesar do início da crise, a economia mercantil escravista ainda terá uma sobrevida, na medida em que o desenvolvimento da indústria de beneficiamento de café e da ferrovia acabam poupando trabalho escravo nessas atividades, além de reduzir os preços dos transportes e melhorar a qualidade do produto, possibilitando melhores preços internacionais (Cardoso de Mello, 1998: 81). clix Entretanto, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da estrada de ferro e a indústria de beneficiamento se opõem à economia mercantil escravista, criando condições para o surgimento do trabalho assalariado. Por outro lado, a escassez da força de trabalho começa a ser sentida na medida em que a acumulação “repõe, a cada instante, o ‘problema da falta de braços’, que assume, a cada momento, maior gravidade” (Cardoso de Mello, 1998: 83). Sendo assim, do ponto de vista econômico, a República Velha é produto do esgotamento da economia mercantil escravista nacional e do surgimento da economia exportadora capitalista (Cardoso de Mello, 1998). Do ponto de vista global, o desenvolvimento do capitalismo mundial, em sua fase imperialista, apresenta a exigência de uma nova relação com a periferia (abandono da função da acumulação primitiva para redução dos custos da força de trabalho e dos componentes do capital constante). Nesse contexto, processou-se a transição da economia colonial para a economia exportadora capitalista, em que a intermediação comercial e financeira se expressa como o elo entre a economia brasileira e o imperialismo Inglês. A oligarquia agrária paulista cafeeira, que emerge durante o Império, projetase no cenário político nacional, a partir de sua liderança econômica, na passagem da economia escravista nacional para uma produção capitalista voltada para a exportação. Esse é o cenário onde, segundo Florestan Fernandes, atuará um dos principais autores e fautores de nossa revolução burguesa: o fazendeiro homem de negócios, base da burguesia agrária brasileira. O fundamental para o estudo em questão é destacar o significado político do fazendeiro homem de negócio (principalmente na área do café), como constituinte clx da classe econômica dominante, a partir da década de 60 do século XIX, que assumirá a hegemonia política durante o primeiro período republicano, explicitando sua relação com a ordem administrativa desenvolvida, principalmente no que se refere à manutenção e ao fortalecimento do patrimonialismo no Brasil. Como vimos anteriormente, no quadro de desenvolvimento da economia mercantil escravista nacional cafeeira, processa-se a transformação de setores do senhorio rural em fazendeiros homens de negócio. Os fazendeiros homens de negócio constituirão a oligarquia agrária que dominará política e economicamente a República Velha. Tais fazendeiros dissociaram a fazenda e a riqueza produzida por ela do status senhorial. Essa transição de senhores para fazendeiros se realiza ao longo do século XIX e se explicita, por um lado, o processo de aburguesamento do proprietário rural, por outro lado, determina o vínculo desse setor com a estrutura tradicional de poder. Esse vínculo torna-se mais evidente na dimensão “coronel” que esses atores desenvolverão a partir do final do século XIX, da qual trataremos adiante. Neste momento, cabe compreender o processo econômico que fundamenta a transformação desses “fazendeiros homens de negócio”, protótipo de uma burguesia agrária nascente, numa oligarquia antiburguesa. Como muito bem analisado por Oliveira (1978: 407), esses fazendeiros se constituirão como burguesia agrária, no Império e no início da República, e se metamorfosearão em oligarquia antiburguesa, até o final da República Velha. A constituição como oligarquia antiburguesa é determinada fundamentalmente pela dimensão econômica dos interesses desse grupo. Sinteticamente, conforme analisa Oliveira (idem: 408-410), a especialização na produção de mercadoria de realização externa, desenvolvida pela economia clxi brasileira, acarretou que o financiamento para tal fosse também externo. Essa situação produziu um “círculo vicioso” entre a produção agro-exportadora e a intermediação comercial e financeira externa, em que o valor gerado pela economia agro-exportadora era absorvido substancialmente nos custos da intermediação comercial e financeira, criando, assim, a necessidade de retornar à intermediação para repor a produção. Nesse quadro, produz-se um estrangulamento na capacidade de o país ampliar a divisão social do trabalho no rumo do capitalismo industrial, na medida em que os recursos eram consumidos pela intermediação externa que nada tinha a ver com a realização interna da produção não exportadora. Nas palavras do autor, “o financiamento da acumulação de capital nos setores não exportadores não passava pela intermediação comercial e financeira externa típica da economia agro-exportadora, que consumia a maior parte do excedente social produzido não apenas pelas atividades de exportação, mas pela totalidade do sistema econômico” (Oliveira, 1978: 410). A defesa dessa lógica econômica pelos setores agro-exportadores, principalmente o cafeeiro, ao mesmo tempo em que negava sua sustentação, negava o desenvolvimento de outros setores da economia. Nesse ponto, “a burguesia agrária termina por transformar-se numa oligarquia antiburguesa, e regionalmente cada fração da classe burguesa terminou por configurar-se nas famosas oligarquias regionais” (Oliveira, 1978: 412). Complementando a análise de Oliveira, a observação de Fernandes (1981:171) sobre a forma como a organização capitalista fora absorvida pela ordem senhorial, na passagem do Império para a República, mostra que ...a insensibilidade e relutância não eram ditadas apenas por motivos ‘tradicionais’ (como querem alguns) ou ‘nacionalistas’ (como pretendem outros). Elas se vinculavam a uma defesa sistemática, larga e profundamente consciente, de estruturas econômicas e de poder, que as camadas senhoriais e suas elites consideravam sob clxii sérios riscos – não pelo mercado mundial, em si mesmo, mas por causa do aparecimento de um mercado interno complexamente entrosado ao mercado mundial e amplamente determinado por forças que, com o tempo, não seriam mais controláveis pelas irradiações econômicas do poder da ‘aristocracia agrária’. Sendo assim, a forma de assimilação da ordem capitalista pela ordem senhorial se apresenta, também, como mais uma determinação que contribuirá para o fortalecimento e continuidade das estruturas patrimonialistas, a partir da república, na medida em que estão bloqueadas as possibilidades de avanço da divisão social do trabalho no rumo do capitalismo industrial, seja pelos componentes de ordem econômica, seja pelas opções de cunho político tomadas pelas classes dominantes. Segundo Fernandes (1981: 167): O horizonte cultural orienta o comportamento econômico capitalista mais para a realização do privilégio (ao velho estilo), que para a conquista de um poder econômico, social e político autônomo, o que explica a identificação com o capitalismo dependente e a persistência de complexos econômicos semicoloniais (na verdade, ou pré-capitalistas ou subcapitalistas). Nesses termos, ainda de acordo com Fernandes (1981: 176), a fase aguda da crise do trabalho servil levou consigo a ordem senhorial e escravocrata, “mas não o seu substrato social e político: a base oligárquica do poder autocrático dos ‘ricos’ e ‘privilegiados’”. Sendo assim, a República é realizada com o substrato da ordem senhorial, ou seja, com poder oligárquico e autocrático dos ricos e privilegiados. Portanto, o capitalismo, enquanto ordem social, estrutura-se no País a partir do substrato social e político da ordem senhorial, o que viabiliza a manutenção e o fortalecimento da estrutura de dominação tradicional. Nesse sentido, a descentralização do poder é um elemento chave para conduzir a expansão capitalista da economia sob orientação do setor agrário. O advento da República implica, assim, a extinção dos mecanismos de centralização do poder, presentes no segundo reinado (Poder Moderador, Senado Vitalício, Conselho de Estado e Guarda Nacional), e a introdução do federalismo no país (Teixeira da Silva e Fragoso, 1996). clxiii A estrutura coronelista constitui, pois, a base da engenharia política que consolidará o poder do setor agrário sob hegemonia dos produtores de café, na medida em que viabilizará a participação política daqueles proprietários de terra que estavam alijados do poder e organizará a descentralização política cunhada pelo federalismo. Na formulação clássica de Victor Nunes Leal (1986), o coronelismo seria um arranjo político de articulação, adequação, acomodação entre o regime político de base representativa e o poder local privado decadente. Como vimos anteriormente, após a abolição e o advento da república, apesar da perda de prestígio aristocrático e do declínio econômico de alguns proprietários rurais, o poder político local se mantém sustentado com base na tradição do mandonismo, presente tanto na estrutura patriarcal colonial quanto na hierarquia militar da Guarda Nacional do Império. No entanto, como reforça Queiroz (1978: 159-160), o coronelismo é uma expressão do mandonismo local que se distingue das tradições da colônia e do império, pois se configura como uma estrutura de poder local tipicamente republicana, a despeito de seus vínculos com a lógica tradicional. Conforme aponta Carvalho (2001: 41), o “coronel era o posto mais alto na hierarquia da Guarda Nacional. O coronel da Guarda era sempre a pessoa mais poderosa do município. Já no Império ele exercia grande influência política. Quando a Guarda perdeu sua natureza militar, restou-lhe o poder político de seus chefes”. Queiroz (1978: 156) ratifica essa análise ao afirmar que, depois da extinção da Guarda Nacional, pouco depois da proclamação da República, “persistiu no entanto a denominação de ‘coronel’, outorgada espontaneamente pela população àqueles que pareciam deter em suas mãos grandes parcelas do poder econômico e político”. A expressão do poder dos chefes locais se realizava principalmente através clxiv da proteção que ele oferecia à população, sobretudo junto à população eleitora. Quanto mais condições de distribuir favores, maior a influência do coronel na esfera estadual e nacional, na medida em que possuía maior capacidade de mobilização eleitoral para os candidatos apontados pelas oligarquias. Nessa perspectiva, o coronel, como chefe político local cumprirá, a função de mediação entre a população local e o poder estadual cujo fortalecimento dependia das relações que o chefe do poder local estabelecia com a população. Por outro lado, conforme esclarece Abrúcio (2002: 38), o chefe local era controlado pelo governador do estado, devido a três razões: em primeiro lugar, porque o poder federal era frágil e não competia com os estados; em segundo, devido à pouca autonomia política e financeira dos municípios, que acabavam dependendo do apoio do governo do estado; e, em último, derivado da dependência assinalada, já que o chefe local precisava do governo do estado para acessar recursos estatais não só em seu benefício, mas de sua clientela e para garantir segurança para seus aliados nas lutas entre facções rivais. Faoro (2004: 626) mostra que a subordinação do município ao estado, sob alegação de evitar o anarquismo e proteger a integração nacional, instaura-se respaldada pelo art. 68 da Constituição de 1891, na medida em que o poder estadual passa a ser o responsável pela nomeação dos prefeitos e a possuir os recursos disponíveis para utilização local. Essa relação de mútua dependência estabeleceu o que se convencionou chamar de “compromisso coronelista”. A oligarquia estadual, que controlava o governo do estado, precisava dos votos mobilizados pelos chefes locais e estes, principalmente os que se encontravam em decadência econômica, necessitavam dos recursos do estado para si e para sua clientela. Por isso a formulação clássica clxv de Nunes Leal sobre esse sistema, apresentada anteriormente, é precisa. Como recorda Abrúcio, o autor de Coronelismo, enxada e voto ainda expressa este sistema como sendo de reciprocidade no qual “de um lado, os chefes municipais e ‘coronéis’, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder das desgraças” (Leal, 1986: 43). Nesse contexto, o emprego público, disponibilizado pelo governo estadual para conseguir votos, firmava uma relação de lealdade entre o funcionário e o governante, eliminando qualquer possibilidade de impessoalidade no trato da administração pública, reduzindo a autonomia do servidor, na medida em que seu recrutamento se estrutura em bases tipicamente patrimonialistas. Sendo assim, “formava-se uma rede de lealdade sustentada pela intermediação estatal” (Abrúcio, 2002: 39). Faoro (2004: 622) ratifica essa análise, ao entender que, antes de ser líder político, o coronel é líder econômico, mas será coronel por receber delegação do poder estadual para o exercício do poder político. Nesse sentido, o poder político do coronel não é mero reflexo de seu poder econômico, materializado em seu patrimônio pessoal. O vínculo que lhe outorga poderes públicos virá do aliciamento político. Para nossa discussão é importante perceber que essa forma peculiar de delegar poder público para o campo privado, expresso pelo compromisso coronelista, fortalece a dimensão patrimonialista da administração pública em sua vertente local. Nessa ótica, a dimensão pré-burocrática da administração pública se clxvi consolida na estrutura local de dominação, que se inicia com a dimensão patriarcal do senhor colonial, desenvolve-se, através da experiência descentralizadora do império, principalmente através da organização da Guarda Nacional, e chega ao seu ponto de maturação na República Velha, através do sistema coronelista. O patrimonalismo, nesse quadro, é inconteste. Como afirma Faoro (2004: 631), “obviamente, a linha entre o interesse particular e o público, como outrora, seria fluida, não raro indistinta, freqüentemente utilizado o poder estatal para o cumprimento de fins privados.” Em outra passagem o autor ressalta: “o coronel utiliza seus poderes públicos para fins particulares, mistura não raro, a organização estatal e seu erário com os bens próprios” (idem: 637). A dimensão patrimonialista da ordem administrativa desenvolvida localmente, através do sistema coronelista, não deixará impune a estrutura estadual e federal. A dominação tradicional presente na República Velha se manifesta na relação entre oligarquia estadual e coronel e entre oligarquias estaduais e o Presidente da República. Conforme ressalta Faoro (2004:562), “o velho estamento imperial se dissolve, desta sorte, num elitismo de cúpula, regredindo a estrutura patrimonialista para o âmbito local, local no sentido do entrelaçamento de interesses estaduais e municipais.” A “política dos governadores”, operacionalizada por Campos Sales, amarra as pontas do patrimonialismo, na medida em que estabelece para o âmbito nacional relações de compromisso semelhantes à organizada no sistema coronelista. De forma mais precisa, o sistema coronelista é a base de sustentação da política de governadores, na medida em que viabiliza a “maximização do poder das oligarquias estaduais” (Mendonça, 1996: 252). Assim, através da “política dos governadores” se consolida o poder clxvii oligárquico estadual sob hegemonia dos estados economicamente mais fortes, institucionalizando-se, dessa forma, um pacto entre as oligarquias estaduais e entre estas e o governo federal, sob liderança de São Paulo e Minas Gerais. Dentre os principais aspectos da “política dos governadores”, sintetizados por Abrúcio (2002: 35-37), destacam-se: a centralidade dos governadores de estado no sistema político, seja no âmbito estadual, seja no federal; o processo de definição da presidência da república passar por um acordo entre os governadores de São Paulo e Minas, representantes das elites econômicas desses estados; a fragilidade da presidência da república para dirimir conflitos entre os estados hegemônicos; a inexistência de partidos nacionais, que fortalecia, ainda mais, o poder dos governadores de estado e o fato de esse pacto de governadores ter possibilitado a perpetuação no poder de todas as oligarquias que estavam presentes no Governo Campos Sales, gerando um “congelamento na competição nos estados”. Esse sistema se retroalimenta e enfatiza a “troca de favores” como mecanismo principal de fazer política, na medida em que a ausência de disputa entre projetos políticos distintos leva a ação política a se centrar na “pequena política”, gramscianamente falando, abrindo espaço para a utilização da “troca de favores” e da “corrupção” como mecanismos de “cooptação”. Na ausência de projetos políticos distintos, pouco importa o grupo que estará no poder, o que vale é o poder pelo poder e a possibilidade de ter acesso às suas benesses, portanto, os instrumentos para fazer política se distanciam daqueles necessários para fazer o convencimento em torno de idéias e propostas alternativas para a sociedade. Faoro (2004: 588) sublinha enfaticamente tal questão: O problema do político era o poder, só o poder, para os chefes e para os Estados, sem programas para atrapalhar ou ideologias desorientadas. O agente ideal para esta ação será o realista frio, astuto mais que culto, ondulante nos termos, sagaz na apreciação dos homens, aliciador de lealdades e pontual na entrega de favores. clxviii Nesses termos, a fragilidade do poder federal - embora num período em que se fez necessário agir nacionalmente com certa racionalidade e especialização para comandar a política econômica voltada para a sustentabilidade da economia exportadora capitalista – advinda da “política dos governadores” e do sistema coronelista, enfraquece a já inexpressiva dimensão burocrática da ordem administrativa brasileira. Em outras palavras, o patrimonialismo burocrático centralizado do período imperial não mais condiz com a nova correlação de forças centrada na hegemonia política e econômica da oligarquia cafeeira. Da burocracia centralizada necessita-se apenas da condução da política econômica, com certo cariz de racionalidade, que venha a favorecer a dinâmica da produçãointermediação-exportação do café. A dominação política se irradia nacionalmente através do sistema patrimonialista local, fundado na combinação da “política dos governadores” com o sistema coronelista. O sistema político assim montado esvazia as possibilidade substantivas de expressão política da cidadania, por outro lado, a estrutura social basicamente agrária, a história colonial, a escravidão e a, ainda emergente e incipiente, classe trabalhadora urbana-industrial reforçam o quadro de fragilidade do exercício da participação política na sociedade republicana. Carvalho (2002: 56-57) ressalta a situação fundada no coronelismo da seguinte forma: O coronelismo não era apenas um obstáculo ao livre exercício dos direitos políticos. Ou melhor, ele impedia a participação política porque antes negava os direitos civis. Nas fazendas, imperava a lei do coronel, criada por ele, executada por ele. Seus trabalhadores e dependentes não eram cidadãos do Estado brasileiro, eram súditos dele. (...) Não havia justiça, não havia poder verdadeiramente público, não havia cidadãos civis. Nessas circunstâncias, não poderia haver cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse permitido votar, eles não teriam as condições necessárias para o exercício independente do direito político. clxix A fragilidade da classe operária nascente - seja devido a seu peso quantitativo e qualitativo na estrutura social e econômica do país, seja por conta da orientação anarco-sindicalista voltada para as demandas diretamente econômicas, não se organizando partidariamente, não definindo estratégias de aliança para operacionalizar a luta política – corrobora com o cenário de ausência de cidadania política (Antunes, 1982: 63-66). Do ponto de vista das oligarquias dominantes, a estrutura política montada satisfazia a seus interesses e evitava qualquer possibilidade de inclusão de outros setores sociais no processo político. Nesse sentido, o Estado buscava uma relação mais amistosa com os trabalhadores vinculados aos setores necessários à exportação (ferroviários e marítimos) e tratava os trabalhadores fabris através da forma clássica liberal: repressão (Antunes, 1982: 65). Frente ao exposto, a “questão social” tratada como caso de polícia, dispensa uma estrutura estatal ampliada, o que reduz, também, as possibilidades de fortalecimento da dimensão burocrática da ordem administrativa. Esse contexto, que começa no segundo reinado e se consolida na República Velha, leva Wanderley Guilherme dos Santos a caracterizá-lo como falso laissezfaire, pois restrita a área urbana - na medida em que a penetração dos mecanismos liberais de regulação da força de trabalho foram muito lentamente incorporados na área rural - e no que concerne à economia, devido à aprovação da Lei Eloy Chaves, em 1923, que de certa forma vulnerabiliza a defesa de não intervenção do Estado na área social. É consenso entre analistas de diferentes correntes que o liberalismo no Brasil clxx foi incorporado de forma peculiar. Uma verdadeira “idéia fora do lugar”, conforme observa Schwarz (1977), uma vez que se irradia no Brasil, durante o Império, em plena vigência da escravidão, e se consolida durante a República Velha, em que o sistema de favores, e não a universalidade de direitos e procedimentos, forma a base das relações políticas e da dinâmica do Estado. Nas palavras do autor, “o escravismo desmente as idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e desloca, originando um padrão particular” (Schwarz, 1977: 16). Apesar desse caráter de estar “fora do lugar”, o liberalismo no Brasil, para Fernandes (1981: 38), foi fundamental como impulso para a revolução nacional. Portanto, sem perder de vista as limitações e deformações que sofreu numa sociedade e numa cultura tão avessa às suas implicações sócio-econômicas, políticas, intelectuais e humanitárias, a aceitandose que, ainda assim, ele só se constituiu em realidade histórica para as minorias atuantes dos estamentos senhoriais, o liberalismo foi a força cultural viva da revolução nacional brasileira. Portanto, o liberalismo, a despeito de ter se constituído como essa força viva para a construção da sociedade nacional brasileira, não implicou mudanças na ordem social, econômica e política, entrelaçando-se com os mecanismos patrimonialistas existentes. Mazzeo elabora uma observação extremamente pertinente a respeito da característica do liberalismo no Brasil. Segundo o autor, não se pode debitar à manipulação das elites o caráter do liberalismo brasileiro, esse seria apenas um dos aspectos do fenômeno. A centralidade da compreensão deve se pautar na forma de “absorção colonial” do liberalismo, na medida em que ela é “concretamente, engendrada pela organização produtiva agroexportadora e escravista” (Mazzeo, 1997: 94 – grifo do autor). Por outro lado, o desenvolvimento da economia mercantil escravista nacional, clxxi realizada durante o Império, submetida aos interesses ingleses e tardia em relação ao capitalismo europeu, marcará objetivamente as possibilidades de nosso liberalismo. Nesse quadro, o liberalismo incorporado estará voltado basicamente para viabilizar os interesses econômicos da nascente burguesia agrária. Portanto, a superestrutura jurídica e política refletirá essa opção teleológica direcionada para a acumulação da elite dominante e não para a incorporação dos diferentes setores sociais no processo de desenvolvimento. A opção pela exclusão das classes subalternas e da burguesia industrial emergente nessa lógica é nítida. Por isso, durante a República Velha, de acordo com Antunes, A garantia do pacto de dominação por parte do estado oligárquico deu-se através de um liberalismo excludente que aglutinava os setores burgueses exportadores – que detinham a hegemonia dentro deste pacto – e as oligarquias não exportadoras e excluía, além dos setores subalternos, os interesses ligados à burguesia industrial emergente. Nesse sentido, conforme destaca Mazzeo (1997: 124), “...vemos que a absorção do liberalismo [no Brasil] será restrita em seu aspecto econômico, mesmo assim, mantido em parte, apenas no direito de livre comerciar e produzir (produção esta limitada à agricultura).” Sendo assim, nesse cenário da primeira república, que se complementa com a particularidade da incorporação do liberalismo no Brasil, reforça-se o patrimonialismo existente na administração pública brasileira e a burocracia não se expande, continuando restrita e a serviço da oligarquia. Dessa feita, na República Velha, o Estado, enquanto estrutura de dominação, será capturado para atender às reivindicações dos comerciantes e dos fazendeiros de café, predominantemente, ou seja, do capital cafeeiro. clxxii Nesse sentido, a lógica racional-burocrática, necessária ao desenvolvimento capitalista, deverá ser mantida, porém de forma articulada à lógica patrimonialista, necessária à manutenção do poder e das aspirações tradicionais de status, mando e utilização privada do bem público, presentes proprietários comerciantes. clxxiii de tanto terra na cultura quanto na dos dos CAPÍTULO III - A DIALÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA SOB HEGEMONIA BURGUESA: Burocracia e Patrimonialismo da Era Vargas à Ditadura Militar 3.1. A inflexão de 1930: burocracia e patrimonialismo imbricados como elementos estruturais da ordem administrativa brasileira A Revolução de 30 é um ponto de inflexão na trajetória do Brasil e da administração pública brasileira, na medida em que representa o início de um novo projeto político para a sociedade: industrialização e urbanização, sob comando da intervenção estatal. Do ponto de vista da economia política, esse projeto, como muito bem demonstrado por Cardoso de Mello (1998) e Oliveira (2003), apesar das diferenças de análise existente entre os autores (Antunes, 1982), é conduzido a partir da articulação entre a economia agrária e a indústria emergente, constituindo um entrelaçamento entre características pré-capitalistas e capitalistas de produção, seja através da relação entre o capital cafeeiro e o capital industrial nascente, como aponta Cardoso de Mello; seja através da relação entre a produção agrícola baseada numa intensiva exploração de trabalho e a recente produção industrial que se beneficia daquela exploração, como afirma Oliveira. Ou seja, o importante é assinalar que, de um ponto de vista ou de outro, a industrialização no Brasil surge e se desenvolve de forma integrada aos interesses agrários. Essa é a contribuição fundamental desses autores ao fazerem a crítica à concepção cepalina para interpretar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e pensar a relação entre os interesses tipicamente capitalistas e aqueles vinculados à tradição agrária. De acordo com Cardoso de Mello, o crescimento industrial no período da República Velha se baseia no crescimento da rentabilidade do capital cafeeiro (18901894), quando a opção em investir na indústria requeria apenas que ela gerasse uma clxxiv taxa de rentabilidade positiva, pois “a taxa de acumulação financeira sobrepassou, em muito, a taxa de acumulação produtiva” (Cardoso de Mello, 1998: 100). Nesse quadro, como assinala Cardoso de Mello (1998: 100), o capital industrial nasceu como desdobramento do capital cafeeiro empregado tanto no núcleo produtivo do complexo exportador (produção e beneficiamento do café) quanto em seu segmento urbano (atividades comerciais, serviços financeiros, transporte...). Tal fato mostra como o início do crescimento industrial no Brasil vai possuir como matriz o capital agrário-tradicional. Segundo a análise de Oliveira, “longe de ter havido transferência de recursos ou de renda do setor exportador para os demais setores, houve o contrário” (Oliveira, 1978: 410). Portanto, para o autor, a relação entre o setor agrário e o setor industrial não se estabelece a partir da inversão do capital cafeeiro no setor industrial. Sinteticamente, segundo Oliveira (2003: 45-47), a relação dialética entre a agricultura e o setor industrial emergente se expressa na funcionalidade da agricultura para o crescimento industrial, via fornecimento da força de trabalho e de alimentos, através da manutenção do padrão “primitivo” de acumulação na agricultura, “baseado numa alta taxa de exploração da força de trabalho”. De acordo com o autor: ...a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações nova no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo (Oliveira, 2003: 60 – itálicos no original). A análise dos críticos da concepção cepalina, apesar de divergentes, apresenta uma concepção dialética seja da relação entre o capital industrial e o capital cafeeiro, conforme sinaliza Cardoso de Mello, seja da articulação entre a agricultura e crescimento industrial, de acordo com Oliveira. As análises identificam contradições nas relações apontadas, ainda que tal contradição se constitua como uma unidade. Para Cardoso de Mello (1998: 103-104), a contradição é sempre delimitada pela relação de dependência existente entre capital cafeeiro e capital industrial. Oliveira clxxv (2003: 65) destaca que “esse ‘pacto estrutural’ preservará modos de acumulação distintos entre os setores da economia, mas de nenhum modo antagônicos, como pensa o modelo cepalino”. Nessa perspectiva, essa relação intrínseca entre o capital cafeeiro e o capital industrial (Cardoso de Mello) ou entre a agricultura e o setor industrial (Oliveira) determinará uma dominação de classe composta pela burguesia industrial e a oligarquia tradicional agrária, dominação esta que necessitará de elementos burocráticos e patrimonialistas para a sua materialização/realização. Como a elite rural e oligárquica é a gênese do capital industrial ou elemento fundamental para o processo de crescimento urbano-industrial, a expansão das relações capitalistas no Brasil não pode ser realizada rompendo com a oligarquia tradicional, já que, apesar de a burguesia industrial ir se autonomizando da oligarquia agrária, os laços genéticos e estruturais e os privilégios dessa relação (capitalismo sem risco, concentração de riqueza, utilização privada dos recursos públicos) determinarão as estruturas de dominação do país. Na concepção de Faoro (2004: 685 e 686) o que ocorre nesse período é uma “transformação dentro da ordem”. A estratégia, como lembra o autor, traçada por Antônio Carlos, governador de Minas Gerais, e aceita por Getúlio Vargas, consistia em “revolta sim, reformas sim, mas longe do ‘grave risco do perder o domínio sobre as massas’, suscetíveis de se seduzirem ‘por amantes inesperados e impetuosos’. Nada de tocar nos alicerces sobre que repousa a estrutura social”. Oliveira (2003: 63) assinala de forma precisa que “a mudança das classes proprietárias rurais pelas novas classes burguesas empresário-industriais não exigirá, no Brasil, uma ruptura total do sistema, não apenas por razões genéticas, mas por razões estruturais”. Florestan Fernandes (1981: 241) completa a análise mostrando que o desenvolvimento capitalista no Brasil se processa a partir de uma dupla articulação: “1.°) internamente, através da articulação do setor arcaico ao setor moderno (...); 2.°) clxxvi externamente, através do complexo econômico agro-exportador às economias capitalistas centrais.” Segundo Fernandes, não surgiu no setor empresarial nenhum grupo que combatesse essa dupla articulação. A opção da burguesia industrial foi se aliar à oligarquia rural e se subordinar ao capital internacional. Nas palavras do autor: A dupla articulação impõe a conciliação e a harmonização de interesses díspares (tanto em termos de acomodação de setores econômicos internos quanto em termos de acomodação da economia capitalista dependente às economias centrais); e, pior que isso, acarreta um estado de conciliação permanente de tais interesses entre si. Forma-se, assim, um bloqueio que não pode ser superado e que, do ponto de vista da transformação capitalista, torna o agente econômico da economia dependente demasiado impotente para enfrentar as exigências da situação de dependência. Ele pode, sem dúvida, realizar as revoluções econômicas que são intrínsecas às várias transformações capitalistas. O que ele não pode é levar qualquer revolução econômica ao ponto de ruptura com o próprio padrão de desenvolvimento capitalista dependente (Fernandes, 1981: 250). Esse tipo de transição da economia capitalista brasileira produziu uma aliança entre a burguesia industrial emergente e setores da oligarquia agrária para processar o projeto de industrialização e urbanização de forma dependente ao capital internacional. Nesse quadro, o que está em processo no Brasil é a expansão e desenvolvimento do capitalismo industrial, a partir de seu nascimento e consolidação efetivados no período compreendido entre 1888 e 1933 (Cardoso de Mello, 1998: 109). Do ponto de vista interno, o desenvolvimento do capital cafeeiro produziu as condições para o surgimento do capital industrial, ao mesmo tempo em que inviabilizava sua consolidação, devido ao “círculo vicioso” apontado por Oliveira. Esse bloqueio da industrialização se realizará até a “Crise de 29”, quando se inaugura uma resposta industrializante e urbana para o enfrentamento do contexto econômico e político da época. Nas palavras de Cardoso de Mello (1998: 109), “o intenso desenvolvimento do capital cafeeiro gestou as condições de sua negação, ao engendrar os pré-requisitos fundamentais para que a economia brasileira pudesse responder criativamente à ‘Crise de 29’”. clxxvii Do ponto de vista político, a tentativa de Washington Luís manter a oligarquia cafeeira paulista no poder, não cedendo o mandato presidencial para Minas Gerais, conforme rezava a “política do café-com-leite”, precipitou as articulações entre as oligarquias agrárias não alinhadas com São Paulo, setores das classes médias, militares críticos ao poder oligárquico tradicional e a burguesia industrial emergente. Nesse sentido, a crise interna das oligarquias agrárias propiciou, do ponto de vista político, uma saída econômica para a Crise de 29 que passava pela implementação de um projeto de industrialização e urbanização do País, via protagonismo estatal. Nas palavras de Fiori (1995:127), É somente a partir de 1930, quando se combinam os efeitos da crise econômica internacional com uma revolução política interna que encerra a República Velha (1889-1930) e se abrem as portas ao regime ditatorial do Estado Novo (vigente entre 1937 e 1945), que o Estado passou a assumir ativamente o papel de regulador da economia. O bloco dominante que vai implementar esse projeto tem como base uma articulação entre setores das oligarquias agrárias, a burguesia industrial emergente, setores das classes médias e setores militares. No primeiro período da industrialização (até os anos 1950), a oligarquia agrária será, nessa composição, a classe hegemônica; num segundo momento (dos anos 1950 até os anos 1980), ela perderá hegemonia para a burguesia industrial, apesar de continuar compondo a elite dominante. A incorporação da classe operária será realizada através de uma “hegemonia seletiva” (Coutinho, 1993) efetivada a partir da “regulação da cidadania” (Santos, 1987), conforme detalharemos adiante. Torna-se importante, no momento, destacar que a classe operária, como sinaliza Oliveira (2003), será usada pela burguesia industrial para a conquista da hegemonia no interior do pacto de dominação, no entanto, será preservada a participação das classes proprietárias rurais no poder e nos ganhos da expansão do sistema. Em outras palavras, as mudanças que se processam a partir de 1930 no País evidenciam o fortalecimento da burguesia industrial na estrutura de poder (período de clxxviii 1930 até 1950) e a conquista de sua hegemonia frente aos proprietários rurais (período de 1950 até 1980). Entretanto, devemos enfatizar que tais mudanças não excluem a participação das oligarquias agrárias no poder, apenas deslocam o seu posicionamento na dominação, deixando de ser a classe hegemônica, a partir da década de 1950. A classe operária, nesse contexto, não participa da estrutura de poder, sendo incorporada parcial e seletivamente, para garantir a exploração intensiva da força de trabalho na perspectiva de viabilizar a “acumulação primitiva”56 da economia. Nas palavras de Oliveira (2003: 65), a industrialização no Brasil ocorre numa conjuntura adversa, “portanto, um de seus requisitos estruturais é o de manter as condições de reprodução das atividades agrícolas, não excluindo, portanto, totalmente, as classes proprietárias rurais nem da estrutura do poder nem dos ganhos de expansão do sistema”. Em seguida, o autor conclui que, como contrapartida, “a legislação trabalhista não afetará as relações de produção agrária, preservando um modo de ‘acumulação primitiva’ extremamente adequado para a expansão global”. Nesse quadro, durante o primeiro período Vargas, a intervenção estatal caracterizou-se pelo início da estruturação do chamado Estado desenvolvimentista. Ou seja, diferentemente do que ocorreu nos casos clássicos de transição capitalista, nos quais a industrialização, e, portanto, a ampliação das relações capitalistas, precedeu a construção do Estado interventor, no Brasil foi o Estado que, a partir de 1930, impulsionou e estimulou o processo de desenvolvimento urbano-industrial e, em conseqüência, a ampliação das relações capitalistas, através do processo de industrialização restringida57. 56 Oliveira (2003: 43) faz duas considerações para tratar da “acumulação primitiva” no caso de economias periféricas, a partir do conceito marxiano. Em primeiro lugar o autor afirma que, no caso das economias periféricas, o essencial não é a expropriação da propriedade, mas sim a expropriação do excedente “que se forma pela posse transitória da terra”. Em segundo lugar, o autor sublinha que a acumulação primitiva nas economias periféricas não ocorre apenas na origem da acumulação, mas ela se apresenta como mecanismo estrutural dessas economias. 57 Conforme indica Cardoso de Mello o período compreendido entre 1933 e 1955 refere-se a um processo de “industrialização restringida. “Há industrialização porque a dinâmica da acumulação passa a se assentar na expansão industrial, ou melhor, porque existe um movimento endógeno de acumulação, em que se reproduzem, conjuntamente, a força de trabalho e parte clxxix No contexto da industrialização restringida, conforme salienta Cardoso de Mello (1998: 114), ao Estado cabe: proteger a economia contra as importações concorrentes, evitar o fortalecimento da classe trabalhadora e de seu poder de barganha e realizar investimentos em infra-estrutura. “Quer dizer, um tipo de ação político-econômica inteiramente solidário a um esquema privado de acumulação que repousava em bases técnicas ainda estreitas.” Sendo assim, do ponto de vista da ordem administrativa do Estado brasileiro, essa alteração de projeto político, que tem como base de sustentação a aliança entre a oligarquia agrária e a burguesia industrial, não provocará ruptura com a “bifrontalidade” da administração pública no Brasil. O que ocorrerá será uma ampliação, desenvolvimento e fortalecimento da estrutura burocrática do Estado, necessários para promover a implantação (1930-1950) e a aceleração (1950-1980) da acumulação e da expansão das relações capitalistas no Brasil. Tal fato se dá, porém, com a manutenção do elemento patrimonialista como componente fundamental para operar a dominação de classe existente, na medida em que se necessita do apoio das oligarquias agrárias para impulsionar uma industrialização e urbanização excludente, evitando o risco de rupturas e de ampliação radical de direitos da classe trabalhadora e, portanto, da redução de privilégios das classes dominantes. Para garantir essa industrialização excludente (incorporação seletiva e regulada de setores da classe trabalhadora), além do apoio das oligarquias, o Estado estruturará uma burocracia fortemente autoritária, mesmo porque desenvolvida em períodos ditatoriais (19301945 e 1964-1984). Em outras palavras, nesse quadro, o Estado se fortalece para ser o protagonista central da expansão capitalista de base industrial, numa perspectiva de incorporação seletiva e regulada da classe operária, através de uma coalizão da crescente do capital constante industriais; mas a industrialização se encontra restringida porque as bases técnicas e financeiras da acumulação são insuficientes para que se implante, num golpe, o núcleo fundamental da indústria de bens de produção, que permitiria à capacidade produtiva crescer adiante da demanda, autodeterminando o processo de desenvolvimento industrial” (Cardoso de Mello, 1998: 110). clxxx oligarquia agrária com a burguesia industrial. Tal coalizão necessitará, para objetivar sua dominação, de uma ordem administrativa que mantenha a estrutura genética da administração pública brasileira (bifrontalidade), variando apenas em tonalidades: a burocracia passa a se sobrepor, paulatinamente, à dimensão patrimonialista e possuirá como característica central a negação da política e o autoritarismo (na medida em que identifica política com clientelismo - vê-se como estrutura racional e superior em termos administrativos em relação aos elementos patrimonialistas - e se desenvolve a partir de regimes ditatoriais). Esse traço da burocracia propiciará a criação de estruturas insuladas (Diniz, 1997 e Nunes, 1997), as quais viabilizarão a formação dos chamados “anéis burocráticos” (Cardoso, 1975). Antes, porém, de detalharmos o processo de desenvolvimento da administração pública nesse período, convém tratarmos de uma questão teórica que entendemos ser de fundamental importância para o estudo em tela. Trata-se do aprofundamento da questão da “bifrontalidade” da administração pública elaborada por Marco Aurélio Nogueira, que tem sido utilizada como ponto de partida para interpretarmos a ordem administrativa brasileira. Dessa forma, o primeira questão a apontar, mesmo que sumariamente, referese à necessidade de explicitar que esse caminho a ser trilhado, aberto por Marco Aurélio Nogueira, afasta-se da formulação de Faoro a respeito da construção estatal e da ordem administrativa brasileira pós-193058. A concepção marxista de Nogueira não deixa dúvidas quanto à relação que deve ser buscada entre as classes sociais e a constituição do Estado, mesmo concebendo a autonomia do político em relação à economia. Faoro, a partir da perspectiva weberiana, autonomizará o político e sua estrutura para materializar a dominação (a ordem administrativa), para além das possibilidades efetivas de tal processo ocorrer. Nesse sentido, apesar de uma precisa 58 Nas seções anteriores deste trabalho, em diversas passagens, já havíamos apontado as diferenças entre a concepção presente nesta tese e aquela desenvolvida por Faoro. clxxxi análise sobre o comportamento do Estado varguista frente à sociedade (ou melhor, frente às camadas médias e populares), o autor conclui apresentando o Estado como um ente acima das classes sociais. Vejamos a análise: Liberal, sim, mas de teor tutelador, de caráter positivista e não rousseauniano, com a soberania popular como pressão a ser atendida pelo governo, guardando este a liberdade de selecionar as reivindicações. Os problemas sociais deveriam ser incorporados ao mecanismo estatal, para pacificá-los, domandoos entre extremismos, com a reforma do aparelhamento, não só constitucional, mas político-social. Mudança para realizar o progresso nacional, sem a efetiva transferência do poder às camadas médias e populares, que se deveriam fazer representar sem os riscos de sua índole vulcânica. Estas correntes ocupam o cenário, na verdade, antes que assumam consciência de seus interesses, antecedendo às transformações econômicas que justifiquem seu poder. Daí, na perspectiva do poder, a necessidade de um Estado orientador, alheado das competições, paternalista na essência, controlado por um líder e sedimentado numa burocracia superior, estamental e sem obediência a imposições de classe (Faoro, 2004: 693 – negritos nosso). Essa forma de ver as coisas leva o autor, a despeito de considerar o entrelaçamento entre a expansão capitalista industrial e estrutura tradicional da agricultura (Faoro, 2004: 711-717), a interpretar o processo político como conduzido por poder estatal constituído de uma estrutura burocrática-estamental que arbitra as tensões entre as classes e não como um poder e estruturas constituídos a partir das lutas empreendidas entre as classes e frações de classes. Nas palavras do autor: Trilhando a estrada real, que seus tutelados e adversários deixam aberta, o ditador segue, aparentemente solitário, ao encontro da nação. Um sistema estamental, com a reorganização da estrutura patrimonialista, ocupa o espaço vazio, rapidamente, diante dos olhos atônitos de camaradas e inimigos. Um poder se alevanta, sobre as classes, sobre os partidos e facções, sobre o Exército e o povo, com um líder que poucos vêem (Faoro, 2004: 697). O poder estatal já se sentia em condições de comandar a economia – num regresso patrimonialista, insista-se – com a formação de uma comunidade burocrática, agora mais marcadamente burocrática que aristocrática, mas de caráter estamental, superior e árbitro das classes (Faoro, 2004: 717 e 718). Assim, mais uma vez, Faoro, ao supervalorizar a estrutura central do poder do Estado, não destaca o enraizamento local da estrutura de poder, identificando essa centralização e burocratização como clxxxii um mecanismo de retomada do patrimonialismo e não como uma exigência do novo projeto político (industrialização e urbanização) conduzido por uma coalizão conservadora das classes dominantes. Daí decorrem dois problemas. O primeiro refere-se ao fato de o autor não entender a burocratização processada como um componente de modernização da estrutura administrativa no sentido de viabilizar a criação das condições para a ampliação das relações capitalistas no país, mas sim como um momento reacionário de organização administrativa (“reorganização da estrutura patrimonialista”, “regresso patrimonialista”). Nesse sentido, a estrutura administrativa não ganha densidade burocrática, weberianamente falando, para implementar o projeto de ampliação das relações capitalistas, via industrialização e urbanização. O segundo problema aparece na análise realizada pelo autor que não percebe a continuidade da influência e, portanto, da participação no poder das elites agrárias tradicionais. Segundo Faoro (2004: 706), “entre o povo e o ditador só a burocracia, sem coronelismo, sem oligarquias, mas num vínculo ardente com as massas, gerando o populismo autocrático, esteio hábil para evitar o predomínio de outros grupos”. Em nosso entendimento, como detalharemos adiante, a ditadura Vargas não esvazia as oligarquias e o coronelismo. Via burocracia, ela reforça o poder central, para controlar os poderes oligárquicos e coronelistas, no sentido de enquadrá-los para o novo projeto político e econômico em desenvolvimento. Dessa forma, organiza-se uma outra estrutura para viabilizar a participação das oligarquias tradicionais no poder. Essa nova estrutura, obviamente, não será formal, mas se expressará na direção que será dada à condução da industrialização: não alteração da estrutura de poder oligárquica e coronelista. Por outro lado, a expansão da burocracia se coloca como exigência objetiva clxxxiii para operacionalizar o projeto de industrialização. Especialização e estruturação de regras e normas estáveis são fundamentais para o desenvolvimento capitalista. Assim, em nosso ponto de vista, não ocorre um regresso ao patrimonialismo, mas, como sugere Nogueira, uma compatibilização, ou “bifrontalidade” entre o patrimonialismo e a burocracia. Explicitadas as diferenças entre a concepção de Faoro e aquela que marca o caminho sugerido por Nogueira, para melhor compreendermos a ordem administrativa brasileira, mesmo que resumidamente, cabe agora problematizarmos alguns aspectos referentes à abordagem desenvolvida pelo autor marxista. Nogueira indica que várias vozes diagnosticaram a precariedade da administração pública brasileira, seu “caráter patrimonialista e resistência à introdução de técnicas, procedimentos e estruturas organizacionais de tipo racionallegal, bem como, por extensão, sua ineficácia e sua ineficiência” (Nogueira, 1998: 89) Em nosso entendimento, a questão central da administração pública no Brasil não está relacionada à ineficácia e ineficiência e nem à resistência à introdução de técnicas e procedimentos de tipo racional-legal. É mais adequado falar que a administração pública brasileira correspondeu ao tipo de dominação e projetos políticos a que ela era submetida. Da integração nacional do Império, passando pelo projeto de economia exportadora capitalista, sob hegemonia da oligarquia agrária cafeeira, e chegando ao projeto de industrialização sob direção de oligarquias, numa combinação com a burguesia industrial emergente, todos esses processos foram conduzidos pela administração pública, garantindo a manutenção do pacto de dominação estabelecido em cada momento. Ou seja, a administração pública sempre cumpriu suas funções de operacionalizar os projetos de dominação clxxxiv presentes em cada período histórico, propiciando a realização do projeto e dos interesses dominantes em pauta. O que ocorreu foi sempre a exclusão de setores subalternos na participação das decisões sobre as propostas a serem implementadas e sobre a distribuição das riquezas produzidas. Porém, como a incorporação dos setores subalternos não constava dos projetos em tela, a administração pública não pode ser considerada ineficaz tendo como parâmetro a participação desses setores na definição e distribuição das riquezas produzidas. Por outro lado, se a ineficiência aludida significa indicar que os projetos são desenvolvidos através de um grande custo, visto que a administração é permeada de corrupção e apropriação privada de recursos, o equívoco se encontra ao não se perceber que esses instrumentos patrimonialistas (que não distinguem o público do privado) são fundamentais para garantir o tipo de pacto de dominação estruturado, que incorpora setores tradicionais da sociedade. Ou seja, os projetos definidos para a industrialização brasileira nunca abriram mão da participação dos setores tradicionais, por conseguinte, os custos para sua incorporação não podem ser vistos como problema de eficiência administrativa. Em suma, ineficiência e ineficácia não podem ser tratadas abstratamente, como se estivessem relacionadas a um projeto industrializante clássico de tipo europeu e americano e fundado numa racionalidade típica instrumental capitalista, ou voltada para a “universalidade de procedimentos” numa nítida orientação democrática. Em seguida, Nogueira (1998: 89) afirma que há um descompasso entre governar e a ação administrativa e que a história da República Federativa é a de atenuar tais descompassos e atualizar o aparato estatal. Em minha opinião, o que ocorre ao longo da história da república é a adequação do aparelho administrativo às configurações das diferentes fases do projeto de expansão capitalista, a partir clxxxv sempre de um pacto de dominação que combina a burguesia industrial e a oligarquia agrária e a exclusão (incorporação seletiva e parcial) das classes subalternas. Ato contínuo, o autor faz uma ressalva à questão da adequação da ordem administrativa, ao longo da República, afirmando que simultaneamente ocorre a reiteração das bases que levaram à precarização da máquina pública, mesmo nos momentos de tentativa de atualização do aparato administrativo. Da forma tratada, a reiteração é apresentada quase como se fosse uma questão técnico-administrativa e não como uma dimensão cuja raiz é a estrutura de dominação que dirige a ordem administrativa, como nos ensina Weber. Nogueira (1998: 90), então, corretamente, afirma que esse estado de coisas se explica, por um lado, pela raiz da formação do Estado nacional brasileiro, que tem origem na passagem da Colônia para o Império e, posteriormente, para a República, fortalecendo a lógica do mandonismo local e não os procedimentos racionais. No entanto, nesse trecho, o autor parece conceber que a perpetuação do mandonismo é um desvio de nosso desenvolvimento capitalista e não uma particularidade dele, como afirma no capítulo que trata de nossa revolução burguesa. Nesse sentido, a incorporação do debate sobre a revolução passiva/modernização conservadora na transição brasileira para o capitalismo é feita parcialmente, ao não ser articulada explicitamente com a dimensão administrativa da dominação. Por isso, em nosso entendimento, a análise operada por Nogueira apresenta uma autonomização excessiva da estrutura administrativa. Ou seja, diferentemente de Faoro, a análise de Nogueira, que acaba sugerindo a autonomização excessiva da estrutura administrativa, não se refere à concepção de Estado acima das classes, está relacionada ao fato de o autor não articular explicitamente a revolução passiva com clxxxvi a ordem administrativa brasileira, a qual está subordinada a uma estrutura de dominação que combina setores “atrasados” e “modernos” da sociedade. Por outro lado, Nogueira analisa que a reiteração das bases que levaram à precarização da máquina administrativa pública e seus descompassos e desajustes, decorreram do inchaço da estrutura burocrática, na medida em que a administração pública “esteve sempre marcada pelo desempenho de funções vicárias e compensatórias, empenhando-se em atender à necessidade de absorver o excedente de mão-de-obra que brotava do incipiente sistema produtivo do País” (Nogueira, 1998: 91). Adiante, Nogueira afirma que esse processo de deformação e agigantamento artificial vinculou o sistema organizacional aos mecanismos de troca política. Aqui o autor parece ter invertido o sinal, pois, na verdade, a estrutura tradicional baseada na troca política é que infla artificialmente a máquina pública e não o contrário. Para concluir, o autor de As Possibilidades da Política (1998:91) sentencia: Desde cedo, portanto, o setor público esteve instrumentalizado pelas oligarquias locais/regionais e pelos grupos econômicos dominantes. Acabou, então, por ser fortemente condicionado por interesses, hábitos e estilos do mundo privado, que buscou formatar o espaço público como uma fonte de privilégios pessoais ou grupais e de distribuição de cargos, benesses e prebendas. Nesse trecho, Nogueira, mais uma vez, apresenta uma concepção que remete à excessiva autonomização da administração, na medida em que analisa a instrumentalização do poder público pelas oligarquias como uma distorção e não como essência da expressão da dominação. A administração, para o autor, foi condicionada por estilos do mundo privado e não constituída por um padrão de dominação tradicional. Em nosso entendimento, não há uma invasão no espaço público de padrões privados do mandonismo local, mas sim uma estruturação da administração que comporta o padrão de dominação tradicional que se reflete nas clxxxvii dimensões patrimonialistas existentes. Sendo assim, o que “dificultou a convivência da burocracia estatal com padrões superiores de racionalidade, eficiência e organicidade” não foi a “intimidade entre o mundo público e mundo privado” (Nogueira, 1998:91), mas o fato de a ordem administrativa brasileira ter se constituído a partir de padrões tradicionais e racionais de dominação, em decorrência do pacto de dominação formado a partir da peculiaridade de nossa revolução burguesa. A concepção não radicalmente dialética de Nogueira aparece também quando o autor afirma, baseando-se em Mário Wagner Vieira da Cunha, que a burocracia brasileira, apesar de estimulada pela Revolução de 30, foi vencida na sua disciplina pela pressão direta dos interesses econômicos dominantes (Nogueira, 1998: 92). A pressão direta dos interesses dominantes está presente em qualquer ordem administrativa, o que particulariza o caso brasileiro é o fato de nossa ordem administrativa incorporar estruturalmente uma dimensão patrimonialista que abre espaços diretos para utilização privada de bens públicos. O modelo administrativo cunhado pela revolução de 30 não se constitui como um modelo de tipo racionallegal que encontra obstáculos para se implementar. O modelo proposto é de manutenção da imbricação do patrimonialismo com burocracia a fim de manter o pacto de dominação entre os interesses oligárquicos e os da burguesia industrial emergente, porém sob a ampliação dos mecanismos de tipo racional-legal, por conta da necessidade de implementação do projeto de industrialização e urbanização. Em outras palavras, a Revolução de 30 não apresenta uma proposta de suprimir os traços tradicionais da administração pública para constituir um modelo puro burocrático weberiano que é impedido de se realizar devido à história patrimonialista de nossa administração. Esse parece ser o equívoco de interpretação de muitos clxxxviii autores e, dentre eles, o de Marco Aurélio Nogueira. O autor em análise parece indicar que os “surtos reformadores” da administração pública tinham o objetivo de implementar uma burocracia racionallegal e não adequar a administração a uma determinada fase da expansão capitalista brasileira, sob um pacto de dominação que articulava tradição e racionalismo como componentes das elites econômicas - cuja tradição está mais presente em setores da oligarquia agrária. Apesar do processo de aburguesamento ter ocorrido, o racionalismo intrumental capitalista se expressa, predominantemente, na burguesia industrial que, no entanto, incorpora comportamento tradicional (Fernandes, 1981). A despeito de, acertadamente, Nogueira afirmar que esses diagnósticos têm como referência a forma adquirida pela revolução capitalista no Brasil, o autor não articula dialeticamente essa situação com o desenvolvimento da administração pública. Ou melhor, não incorpora, de forma radical, para a administração pública a concepção de modernização conservadora, entendendo as relações entre patrimonialismo e burocracia no sentido que os críticos da razão dualista fizeram para analisar a imbricação entre o “atraso” e o “moderno” no desenvolvimento capitalista brasileiro. Ou seja, entender que a industrialização burguesa forma uma unidade contraditória com setores agrários e urbanos não capitalistas e que, portanto, esse traço não se constitui como óbice ao desenvolvimento de nosso capitalismo, mas sim estrutura nosso particular desenvolvimento urbano-industrial. Conforme analisa Oliveira (2003: 32), a dualidade enfocada entre o “setor atrasado” e o “setor moderno” não passa de uma oposição formal, uma vez que “de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, clxxxix em que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’, se se quer manter a terminologia”. A idéia de “bifrontalidade” expressa a não radicalidade do pensamento de Nogueira, visto que, se, por um lado, apresenta a interpenetração funcional e a contradição entre os termos patrimonialismo e burocracia, por outro lado, parece indicar uma dualidade presente na administração pública. Nas palavras do autor: Cristalizada e reproduzida ao longo do tempo, tal bifrontalidade expressou-se na situação desigual e desequilibrada da máquina administrativa, na sua permeabilidade ao clientelismo, na sua congênita resistência à mudança, na sua incapacidade de implementar de modo conclusivo os projetos reformadores que desenhava para si própria (negrito nosso). A questão, nos termos de Nogueira, parece se configurar da seguinte forma: a revolução burguesa brasileira que se processa por meio de uma modernização conservadora, de uma revolução passiva, ao incorporar as classes não capitalistas no processo de industrialização e não possuir uma burguesia industrial forte, depende do Estado para operar a transição. Assim sendo, a ordem administrativa burocrática construída para implementar a expansão capitalista em sua dimensão industrial esbarra com a estrutura patrimonialista histórica e sofre com as interferências políticas da incorporação das classes tradicionais, promovendo a bifrontalidade da administração pública. Essa forma de ver as coisas expressa um certo dualismo entre a dimensão burocrática e a patrimonialista da estrutura administrativa brasileira. A coalizão de classes que processa a transição capitalista interfere na ordem administrativa, que precisa ser burocrática, devido ao projeto industrializante em marcha, e obstaculiza o desenvolvimento da burocracia, sobretudo ao se levar em consideração o passado patrimonialista da administração pública brasileira. Ou seja, o patrimonialismo é uma dimensão que permanece presente na administração pública devido ao passado e à cxc interferência de fora para dentro realizada pelas elites dominantes tradicionais, na medida em que nossa modernização possui o caráter conservador. Dessa maneira, a combinação patrimonialismo e burocracia não se apresenta como um imbricação estrutural para realizar a dominação estabelecida por um pacto entre setores tradicionais (com pinceladas modernas) e modernos (com pinceladas tradicionais) que conduzirão o projeto de expansão capitalista de 1930 até a ditadura militar. Por isso, o autor se refere a obstáculos que nossa revolução burguesa apresenta para o desenvolvimento racional-legal da administração pública. Entretanto, nossa revolução burguesa não apresenta obstáculos para o desenvolvimento racional-legal da administração pública. Antes, nossa revolução burguesa determina o imbricação estrutural entre burocracia e patrimonialismo na configuração da administração pública. Nesse sentido, parafraseando Oliveira (2003: 31), poderíamos dizer que a lógica dualista de Nogueira procura articular rigor científico da análise com consciência moral, visando apresentar proposições reformistas para a questão da administração pública. Essa forma de precisar a questão não se trata apenas de um preciosismo semântico ou acadêmico, ela possui conseqüências prático-políticas fundamentais para o aprimoramento da administração pública no sentido do aprofundamento de sua racionalidade e legalidade. Se a análise sobre a bifrontalidade da ordem administrativa brasileira está baseada na existência, por um lado, de um passado de estrutura patrimonialista e, por outro lado, da interferência “de fora para dentro” na administração, devido à pressão política das elites dominantes tradicionais, a lógica indica que a superação da situação passa pela mudança da cultura patrimonialista herdada de nossa história administrativa e por evitar a interferência das elites tradicionais na condução da administração pública. cxci No entanto, como consideramos que ocorre uma imbricação dialética entre patrimonialismo e burocracia, derivada de nossa revolução burguesa passiva e negociada, não existe apenas uma cultura patrimonialista incrustrada na administração, o que ocorre de fato é um pacto de dominação que requer a manutenção dos elementos tradicionais da administração. Portanto, não existe apenas um padrão cultural patrimonialista, existe uma estrutura de dominação que exige a manutenção desse padrão como lógica administrativa. Conseqüentemente, a questão central não está na pressão de fora para dentro na administração, mas sim na organização de uma administração que incorpora elementos tipicamente tradicionais para realizar a dominação. Sendo assim, em termos ideais, a consolidação de uma administração racional-legal no Brasil implica, por um lado, a ruptura do pacto de dominação que combina setores tradicionais com a burguesia industrial e, por outro lado, a incorporação da classe trabalhadora. Isso não significa dizer que medidas técnicas e racionais não possam e devam ser implementadas na administração pública, mas sim que existe um limite estrutural para a efetivação de uma administração racional-legal sob a égide de um pacto de dominação que combina tradição e racionalismo capitalista. As seguintes passagens ratificam minha análise sobre o texto de Nogueira: Naqueles anos [referência aos anos 1930], começou a ser visualizado o desafio de criar uma administração pública moderna, burocrática, sintonizada com os novos tempos que se previa para o País (1998: 94). O impulso reformador do Dasp, porém, não chegou a se completar: dele não nasceu a administração pública moderna, ágil, eficiente e eficaz (...) (1998: 95). ... o reformismo daspiano não sanou as contradições básicas da vida administrativa estatal, nem chegou a inverter as tendências que modelavam o amadurecimento da administração pública (1998: 9596). cxcii Em nosso entendimento, a interpretação de que nesse período está presente um projeto de modernização burocrática da administração não passa da aparência do processo, pois a essência é o desenvolvimento de uma ordem administrativa baseada no imbricação do patrimonialismo com a burocracia. Continuando com a apresentação das análises de Nogueira, temos: ...o esforço da administração para consolidar os inúmeros códigos legais que disciplinassem a atividade educacional, agrícola, sanitária, e ganhar maior racionalidade e maior agilidade (...) tendeu a se fazer à margem da administração formal, substituída por órgão da denominada administração indireta ou autárquica, criados (...) para facilitar a utilização política do aparato administrativo (...). ... a experiência reformadora ativada noas anos 30 não pode preservar-se das injunções de natureza política e cultural que acompanharam a explicitação daquela etapa do desenvolvimento capitalista brasileiro. Impregnou-se das tendências e características do ambiente em que havia nascido, sendo paulatinamente devorada pelo autoritarismo, pelos mecanismos de controle e regulação da cidadania, pelo clientelismo e pela incorporação, às estruturas estatais (...), dos interesses sociais que se desejava constituir como base privilegiada de apoio político ao novo regime. O Dasp perdeu, por exemplo, a batalha pela introdução e universalização do sistema do mérito no serviço público, atropelado pelas nomeações de funcionários, "extranumerários", pelas indicações políticas, pelos concursos manipulados (Nogueira, 1998: 96-97 – negrito nosso). Essa última citação expressa bem a concepção de que o processo de modernização da ordem administrativa sofreu "injunções de natureza política e cultural" e, por isso, não se efetivou. Ora, a ordem administrativa é produto da estrutura de dominação, portanto derivada das relações políticas. Nesse sentido, o autor, ao relacionar a não modernização administrativa às questões de injunções políticas, não percebe que a ordem administrativa estruturada a partir de 1930 não poderia possuir caráter racional burocrático típico e que os elementos clientelistas e de incorporação de determinados interesses sociais, necessariamente, deveriam fazer parte da organização administrativa brasileira. Dessa forma, não foi uma injunção "de fora para dentro" na administração pública que preservou sua natureza patrimonialista. A dimensão patrimonialista se faz necessária devido ao pacto de dominação existente, portanto, ela é intrínseca à ordem administrativa, tanto quanto a dimensão burocrática, que está se fortalecendo devido ao projeto de industrialização cxciii que precisa ser implementado. Sendo assim, a lógica racional-legal não foi "devorada" pelo traços tradicionais da administração, não houve "batalha" perdida, mas sim a estruturação de uma ordem administrativa que combina burocracia e patrimonialismo, pois está relacionada a um pacto de dominação que articula interesses das oligarquias agrárias com interesses da burguesia industrial emergente. Apesar do ponto de partida do autor, para analisar o desenvolvimento da ordem administrativa brasileira, ser original, já que se vincula à tradição marxista e articula o desenvolvimento da administração pública à revolução passiva, o desdobramento de sua análise absorve concepções “culturalistas” e/ou desvinculadas do processo de nossa revolução burguesa. Esse desvio da análise de Nogueira está presente na forma corrente como o tema vem sendo tratado por diferentes intérpretes do desenvolvimento da administração pública. Vejamos, sumariamente, alguns exemplos. Bresser Pereira (1996: 271-272) parte da concepção de que a “administração pública burocrática foi adotada para substituir a administração patrimonialista”, embora o patrimonialismo mantivesse sua força no quadro político brasileiro. Para o autor, o cenário atual de avanço democrático apresenta um quadro cultural e político que condena tanto o patrimonialismo quanto o burocratismo, abrindo possibilidades para um novo modelo de gestão: a administração pública gerencial. Dessa maneira, o desenvolvimento da administração pública é analisado de forma evolucionista, pois o processo de implantação da ordem burocrática é visto como aprimoramento e superação da ordem patrimonialista, assim como o gerencialismo se coloca num patamar acima do modelo burocrático, partindo de um diagnóstico, “no mínimo discutível por não corresponder à realidade brasileira” - conforme ressalta Lima Júnior (1998: 18) - de que o quadro atual condena o patrimonialismo e a burocracia. Luciano Martins (1997) relaciona, explicitamente, a cultura política brasileira (patrimonialismo, clientelismo, etc) aos processos que obstacularizaram a eficiência e eficácia da administração pública. Segundo o autor, “a tentativa feita na década de cxciv 1930 e nos meados da década de 1940 para modernizar a administração e formar em todos os níveis do aparelho do estatal algo parecido com uma burocracia weberiana foi parcialmente distorcida e, mais tarde, abandonada pela cultura política clientelista profundamente enraizada” (Martins, 1997: 19). Portanto, na visão do autor, a partir de 1930 se implantou um projeto de organização burocrática weberiana que não se efetivou devido à cultura patrimonialista existente no País. A análise de Pinho (1998), bastante inspirada em Martins (1997) e Nogueira (1998), apesar de apresentar pistas corretas ao relacionar ordem econômica, ordem política e ordem administrativa59, mantém um viés culturalista, ao afirmar que, a partir do Dasp, “as mesmas mãos que queriam ser weberianas não conseguiam, ou não podiam resistir ao poder histórico do patrimonialismo” (Pinho, 1998: 3). Em outra passagem o autor conclui que na atual conjuntura é possível a administração pública brasileira incorporar uma dimensão gerencialista, porém adverte que “os riscos são dessa nova camada também se contaminar pelo vírus patrimonialista” (Pinho,1998: 9). Na concepção do autor o patrimonialismo é entendido como um óbice, presente na cultura política brasileira, ao desenvolvimento de modelos de gestão mais racionais, eficientes e eficazes. Assim sendo, o patrimonialismo se expressa como um traço cultural que se mantém no País interferindo de forma negativa no desenvolvimento da administração pública. Ribeiro (2002) caminha na linha interpretativa de que após a revolução de 30 o projeto de administração pública que se propõe é um projeto voltado para viabilizar a industrialização, através da instauração de uma ordem burocrática, “superando-se a forma patrimonialista de administrar a coisa pública” (Ribeiro, 202: 2). Como se pode observar, a análise desenvolvida pela autora segue a perspectiva de que, a apartir de 1930, o objetivo da estruturação da ordem administrativa é implantar a lógica racionallegal, eliminando os traços patrimonialistas. 59 Conforme destaca o autor, ao tratar da persistência do padrão patrimonialista na administração pública, “Quem gere a ordem econômica é fundamentalmente a mesma ordem política. Assim, a burocracia pode ser weberianizada até um ponto que não atrapalhe os intereses patrimonialistas fortemente enraizados e instalados, assim também o capitalismo no Brasil não poderia cxcv Lima Júnior (1998), apesar de concluir que poucas foram as tentativas reais de organizar uma ordem efetivamente burocrática no País e que o patrimonialismo e o clientelismo “têm sido os traços estruturais de nossa administração pública” (Lima Júnior, 1998: 18), não explica o porquê desses traços estruturais, dando margem a interpretações de cunho exógeno. Ou seja, as influências políticas tradicionais inviabilizam o desenvolvimento da racionalidade burocrática da administração pública brasileira. Segundo o autor, no período de 1930-1945 “não foram bem-sucedidas as tentativas de se profissionalizar o servidor público e torná-lo imune às relações espúrias com os políticos” (1998: 9), adiante, continua o analista, “a burocracia sempre foi permeável ao processo político como um todo, ao clientelismo, desempenhando funções muito específicas, porém quase nunca em nome do interesse público” (1998: 11). Torres (2004) analisa com precisão a necessidade de uma ordem administrativa racional-legal para o desenvolvimento do capitalismo. No entanto, o autor, ao vincular essa necessidade à questão meramente técnica, entende que a superação ou a relativização da ordem administrativa patrimonialista se dará pela adequação das demandas tecnológicas a uma oferta de administração burocrática60. Nesses termos, o autor não percebe a particularidade do capitalismo brasileiro, que se desenvolve a partir de condições pré-capitalistas, não estabelecendo a conexão entre a questão da dominação e a ordem administrativa, o que determina a exigência da manutenção de padrões tradicionais de administração (patrimonialismo). Além disso, o autor incorre no equívoco de atribuir a injunções políticas os problemas de implantação do modelo burocrático no Brasil. Nas palavras de Torres (2004: 150), “o processo de implantação de um modelo weberiano no Brasil é marcado por características e injunções políticas ainda permeadas por um viés patrimonialista muito intenso”. ser também suficientemente ‘weberianizado’” (Pinho, 1998: 8) 60 ”Um processo histórico de expansão quantitativa e qualitativa da administração pública e privada, exigida pelo desenvolvimento do capitalismo, irá relativizar a total supremacia da administração patrimonial no Brasil , que se mostra em descompasso com os novos avanços tecnológicos e institucionais que o capitalismo promove e potencializa” (Torres, 2004: 146). cxcvi Edson Nunes (1997), de forma precisa, aborda a questão a partir dos seguintes aspectos: a) critica a visão dualista sobre o Brasil; b) parte de uma perspectiva que combina “preocupação com a economia e um foco sólido na interação entre várias dimensões institucionais, dentro da esfera política de um caso nacional” (1997: 16); c) tem como objetivo “demonstrar como emergiram novos tipos de organizações políticas e sociais, como se tornaram institucionalizadas e que impacto causaram em grupos, resolução de conflitos, padrões de intermediação de interesses e governabilidade” (1997: 17); d) evita o dualismo, ao trabalhar com o que ele denomina de quatro “gramáticas” que estruturam a relação entre Estado e sociedade no Brasil (clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos); e) conclui que não houve uma “canibalização da ordem tradicional”, mas sim uma combinação sincrética da “gramáticas” na institucionalização das relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade. No entanto, apesar dessa abordagem – que entendemos ser correta -, interpreta esse processo como sendo conseqüência da operacionalização de reformadores de mentalidade dualista, visando fugir dos obstáculos tradicionais. Ou seja, segundo o autor, o sincretismo das “gramáticas” se institucionalizou devido a uma condução dualista das reformas necessárias para modernizar o país. Em outras palavras, para impedir que o atraso interferisse na modernização, foram criadas estruturas de relação entre Estado e sociedade para proteger as ações modernizantes daquelas vinculadas à ordem tradicional, gerando, assim, o sincretismo, uma vez que as estruturas arcaicas se mantiveram e se combinaram com aquelas que foram criadas para viabilizar uma orientação modernizante. Dessa forma, a interpretação do autor não articula o desenvolvimento do capitalismo brasileiro a um pacto de dominação que combina “atraso” e “moderno” e que, portanto, implica uma ordem administrativa “sincrética” entre elementos patrimonialistas e burocráticos. Diversas passagens do livro de Numes (1997) ratificam a interpretação desenvolvida. Vejamos: cxcvii O uso extensivo de agências estatais insuladas foi uma resposta ao dilema criado pelo imperativo da liderança estatal no desenvolvimento econômico, associado à incapacidade de reformar o aparelho de Estado tradicional, para que ele pudesse desempenhar a função desenvolvimentista. Dadas as circunstâncias concretas do período pós-45, o clientelismo gerou um espaço para o insulamento burocrático, solução que as modernas forças capitalistas encontraram para fugir à dominação política do clientelismo (1997: 98 – negritos nosso). O movimento em prol da modernização do país ganhou um grande alento a partir da Revolução de 30. A despeito das freqüentes dúvidas sobre o processo (...) e sobre os agentes da modernização; há um razoável consenso de que a oligarquia rural e a ordem particularista por ela mantida impediam a modernização (1997: 103– negritos nosso) Os criadores das burocracias insuladas, igualmente escravizados pela percepção da dualidade, trabalharam para criar no Brasil uma sociedade moderna que pudesse fugir precisamente dos constrangimentos criados pela ordem tradicional (1997: 120– negritos nosso) As elites modernizantes freqüentemente encaravam o Congresso, os políticos e os partidos como obstáculos ao progresso. (...) O objetivo de superar a fragmentação da política tradicional justificou a criação de instituições corporativas nos anos 30. As tentativas de escapar à natureza clientelista do Congresso e dos partidos políticos levou à institucionalização das burocracias insuladas na década de 50. O objetivo de escapar à natureza esquerdista, populista, clientelista e corrupta dos partidos políticos conduziu ao aprofundamento do insulamento burocrático e ao banimento e à cassação de direitos civis dos políticos profissionais depois de 1964 (1997: 120– negritos nosso). É mister frisar que, longe de se estar criticando as produções apresentadas em seu conjunto – ao longo desta tese, vários aspectos das análises dos autores em pauta são incorporadas para compreender o desenvolvimento e as determinações da administração pública brasileira -, o objetivo aqui é apenas ressaltar a diferença de nossa concepção, em relação ao processo de desenvolvimento da burocracia no Brasil, da maioria das interpretações vigentes que tendem a analisar a implantação da ordem racional-legal no Brasil, a partir de 1930, como uma forma de superar os traços patrimonialistas da administração, identificando o fracasso como sendo produto das interferências políticas e da cultura tradicional remanescente no país. Entretanto, nossa análise aponta para a perspectiva de que a partir de 1930 ocorre o desenvolvimento e o fortalecimento da dimensão burocrática da ordem administrativa cxcviii brasileira, não porque se pretende superar o patrimonialismo, mas porque são necessários padrões racionais para viabilizar a expansão capitalista no Brasil, via projeto de industrialização e urbanização. Assim, não se implementa um projeto de superação da ordem patrimonialista, já que a particularidade periférica do capitalismo brasileiro se estrutura a partir do entrelaçamento de interesses agrários tradicionais e pré-capitalistas com interesses da burguesia industrial emergente, exigindo-se, portanto, a manutenção da ordem administrativa tradicional, de cariz patrimonialista. Nessa perspectiva, a observação de Fernandes (1981: 262) é primorosa para compreendermos a relação estabelecida no Brasil entre a “oligarquia agrária tradicional” e a “burguesia moderna”: ...o estilo de dominação da burguesia reflete muito mais a situação comum das classes possuidoras e privilegiadas, que a presumível ânsia de democratização, de modernização ou de nacionalismo econômico de algum setor burguês mais avançado. Por isso, ele antes reproduz o ‘espírito mandonista oligárquico’ que outras dimensões potenciais da mentalidade burguesa. As coisas tornariam outro rumo se, de fato, aqui e alhures os setores urbano-comerciais e urbano-industriais fossem levados a tomar uma posição antioligárquica irredutível, o que exigiria que a dupla articulação se diluísse automaticamente através do próprio desenvolvimento capitalista.” Essa forma de compreender a relação entre a “oligarquia agrária tradicional” e a “burguesia moderna” e sua implicação na estruturação da ordem administrativa brasileira parece ser o divisor de águas entre as interpretações correntes do desenvolvimento da administração pública brasileira e aquela que estou propondo nesta tese. Assim sendo, tendo como referência o entendimento de que ocorre no Brasil uma imbricação da dimensão burocrática com a dimensão patrimonialista na estruturação da administração pública, veremos, a partir deste momento, os elementos que constituíram historicamente tal estruturação, ao longo do período compreendido entre os anos 30 e o início dos anos 80 do século passado. O primeiro aspecto a desatacar refere-se ao entendimento que no período de 1930 até o final da ditadura militar, o que ocorre no Brasil, em termos de desenvolvimento cxcix da ordem administrativa, é a sua organização para operacionalizar a expansão de nosso capitalismo periférico, dependente e associado, do início da industrialização até a fase de consolidação monopólica, conduzido, desde sua origem, pelo pacto de dominação estruturado pela articulação entre interesses agrários tradicionais e a burguesia industrial, incorporando os setores populares de forma “seletiva” e “regulada”. Portanto, a linha de análise proposta entende que as mudanças processadas na administração pública respondem ao movimento global do capitalismo brasileiro, devendo ser entendidas sob esse prisma e não como um processo de racionalização da administração. Assim sendo, procuramos fugir das leituras endógenas e evolucionistas da administração pública - que interpretam a história da ordem administrativa brasileira como se fosse a história das ações voltadas para a sua racionalização e/ou o processo que articula patrimonialismo, burocracia e gerencialismo, enquanto diferentes modelos de gestão – daquelas que interpretam a administração pública brasileira como uma estrutura que não se alterou substantivamente ao longo do desenvolvimento da sociedade brasileira, mantendo-se permanente ou predominantemente patrimonialista, independentemente das mudanças operadas na hegemonia do pacto de dominação e de sua ordem administrativa necessárias para impulsionar a expansão capitalista. Do ponto de vista da ordem administrativa, a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), em 1938, como órgão responsável para organizar e desenvolver a administração numa perspectiva racional-legal, apresentase como marco fundamental do fortalecimento da estrutura burocrática brasileira, com contorno nitidamente weberiano. Além disso, como lembra Torres (2004: 147), “é iniciado um amplo processo de criação de estatutos e normas para as áreas mais fundamentais da administração pública, especialmente quanto à gestão de pessoas (1936), compras governamentais (1931) e execução financeira (legislação de 1940)”. Nunes qualifica essa dimensão da intervenção do Dasp como a tentativa de institucionalizar o “universalismo de procedimentos” na administração pública brasileira. Edson Nunes (1997) utiliza o conceito de “universalismo de cc procedimentos” para definir o processo de regulação do espaço público onde as normas formalmente elaboradas são utilizadas por todos os membros da comunidade política, ou aplicadas a eles, de forma impessoal, para viabilizar a representação política, a proteção contra os abusos de poder do Estado, a organização das demandas sociais, dentre outras ações. O universalismo de procedimentos constituise como um dos componentes essenciais da democracia. Nas palavras do autor, “em geral o universalismo de procedimentos é associado à noção de cidadania plena e igualdade perante a lei, exemplificada pelos países de avançada economia de mercado, regidos por um governo representativo” (Nunes, 1997: 35). Dessa forma e de acordo com o ponto de vista teórico desenvolvido neste trabalho, podemos entender o “universalismo de procedimentos” como um produto da dimensão racional da burocracia que pode ser utilizada para fins de aprofundamento e universalização de direitos. Portanto, o “universalismo de procedimentos” não se estrutura como um mecanismo distinto da burocracia, ele se manifesta a partir da existência de determinados aspectos presentes na expressão material da racionalidade burocrática que pode ser potencializada para uma administração pública democrática61. Como visto anteriormente, a ampliação da dimensão burocrática da ordem administrativa brasileira está diretamente relacionada à necessidade de operacionalizar o projeto de industrialização e urbanização, que implica a ampliação do aparelho de Estado62, na medida em que este se configura como protagonista central do processo em voga. Nas palavras de Oliveira (2003: 42), “o crescimento das funções do Estado implica necessariamente o crescimento da máquina estatal, portanto da burocracia e da tecnocracia”. 61 Ver no Capítulo 1, as seções sobre Expressão material da racionalidade burocrática e Burocracia e administração pública democrática. 62 A título de exemplo podemos verificar a ampliação dos órgãos públicos no período. Em 1861, o País contava com sete ministérios (Império, Negócios Estrangeiros, Justiça, Fazenda, Guerra, Marinha e Agricultura, Comércio e Obras Públicas). Durante a República Velha, a situação não se alterou, em 1906, tínhamos, também, sete ministérios (Fazenda, Justiça e Negócios Interiores, Viação e Obras Públicas, Relações Exteriores, Guerra, Marinha e Agricultura, Comércio e Indústria). A partir de 1930, além da criação de três ministérios (Aeronáutica, Educação e Saúde e Trabalho, Indústria e Comércio), cresceram consideravelmente o número de agências estatais (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de econoia mista) (Ramos, 1983: 344-345). De acordo com Lima Júnior (1998: 8), “até 1939, haviam sido criadas 35 agências estatais; entre 1940 e 1945 surgiram 21 agências”. cci Fiori (1995: 128) ressalta que a reforma institucional implementada “a partir da Revolução de 30 e, sobretudo, a partir do Estado Novo, em 1937, permitiu a constituição de uma burocracia especializada e meritocrática, a qual capacitou o Estado a controlar e administrar funções macroeconômicas e centralizar e normatizar as principais áreas da atividade produtiva nacional”. No entanto, como se refere a um projeto conduzido por um pacto de dominação que incorpora a elite tradicional agrária e exclui setores significativos das classes subalternas, a ampliação da dimensão burocrática não significará a eliminação de estruturas vinculadas à ordem tradicional patrimonialista. Conforme sinaliza o próprio autor (1995: 109), ...trata-se de um pacto conservador no qual o seu braço forte, o capital agrário-mercantil e bancário, nunca viu no Estado o condotieri de um projeto de afirmação nacional, econômica ou militar. Sempre optou pela associação subordinada com o capital internacional, produtivo ou financeiro, como única forma possível de financiar uma industrialização tardia e periférica que jamais tornou-se um projeto verdadeiramente nacional, ao estilo prussiano ou japonês. Nessa perspectiva, o desenvolvimento da administração pública, a partir de 1930, não se configurará como um processo de racionalização ampla da ordem administrativa, para implementar o projeto de industrialização e urbanização, mas sim num processo que, ao ampliar a dimensão burocrática, combinará a lógica racionallegal com os traços patrimonialistas da lógica tradicional. Assim, a autonomia da burocracia pública será limitada “pelo diâmetro desse compromisso conservador entre as várias facções de nossa burguesia, flexível à sua ampliação e absolutamente intolerante às arbitragens penalizadoras” (Fiori, 1995: 110), e, nós complementaríamos, pela sua expansão de forma imbricada com os elementos patrimonialistas. Simultaneamente, considerando que a partir de 1937 se instaura a ditadura varguista, a expansão burocrática será realizada sob um quadro de ausência democrática, produzindo um efeito de distanciamento da burocracia da esfera política, reforçando, dessa feita, sua dimensão autocrática. Por outro lado, o governo Vargas utilizará a expansão da burocracia, via Dasp, como um dos elementos para viabilizar ccii sua sustentação política, pois garantirá o controle da administração pública em suas mãos (Abrúcio, 2002; Torres, 2004 e Lima Júnior, 1998). Ou seja, a expansão da burocracia pública, via Dasp e seus braços nos estados (os chamados Daspinhos), combinada com a nomeação dos interventores dos estados, contribuiu para o fortalecimento do poder central contra os poderes locais, numa perspectiva, nitidamente centralista. As interventorias serão, do ponto de vista político, “verdadeiras correias de transmissão do Governo federal para os estados (...) [formando] um sistema e não peças isoladas entre si” (Abrúcio, 2002: 45). Os “Daspinhos”, por outro lado, “faziam o papel de extensão administrativa do Poder Central, pois eram subordinados ao Dasp e ao Ministério da Justiça” (Abrúcio, 2002: 46)63. Conforme observa Nunes (1997: 53-54), essa utilização do Dasp para efeito da operacionalização da ditadura Vargas implementou o “insulamento burocrático”64 na administração pública brasileira. A implementação do “insulamento burocrático” efetivou uma ação paradoxal com o “universalismo de procedimentos” também operado pelo órgão. Ou seja, a estrutura burocrática organizada a partir de 1930 será constituída por uma dimensão “insulada” e outra “democrática”, sob predomínio da primeira. Além disso, ressalta Nunes (1997: 53), a Lei dos Estados e Municípios (1939) pôs fim à autonomia local, na medida em que “a arrecadação (...) foi praticamente toda transferida para o governo federal (...) [reduzindo] drasticamente os recursos para o clientelismo, antes à disposição das elites regionais”. Portanto, o desenvolvimento da dimensão burocrática da ordem administrativa brasileira, além de funcional para a tarefa de expansão capitalista, será utilizado, 63 Faoro (2004: 686-687) também destacará a importância da ampliação burocrática e o estabelecimento das interventorias para o fortalecimento do poder central. 64 Conforme vimos no capítulo anterior, “...o insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. (...) O insulamento burocrático significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel (...) ao contrário da retórica de seus patrocinadores, o insulamento burocrático não é de forma nenhuma uma processo técnico e apolítico...” (Nunes, 1997: 34). cciii também, para o processo de centralização do poder, num movimento de ruptura com o excesso de descentralização presente na República Velha, combinando “universalismo de procedimentos” com “insulamento burocrático”. Nesses termos, a burocracia se expande no Brasil a partir de três determinações fundamentais: a) criar condições institucionais para implementar o projeto de expansão capitalista, estruturando “universalismo de procedimentos”; b) manter relações com o esquema de privilégios patrimonialistas já existente e que será ampliado e centralizado; c) viabilizar a sustentação do regime ditatorial, via fortalecimento do poder central, através de estratégias de “insulamento burocrático”. Esse processo constitui a modernização conservadora na administração pública. Dessa forma, a administração pública brasileira terá um caráter racional-legal e de especialização nas questões relativas à industrialização e centralização do poder; buscará formas de articular a dimensão burocrática com a patrimonialista tradicional que permanecerá em certas áreas da gestão pública e, transversalmente, incorporará uma cultura autoritária e insulada, devido a sua utilização pelo regime ditatorial como instrumento de sustentação política. Assim se estabelecem dimensões diversas na estruturação do quadro administrativo brasileiro. Por um lado, estrutura-se a distinção entre “áreas nobres” (Fazenda, Forças Armadas, Itamaraty e Banco do Brasil, Banco Central...) e “áreas subalternas” (principalmente as vinculadas à área social), onde as condições de trabalho, a estrutura burocrática profissional e os salários se distinguem de acordo com o status da área. Por outro lado, estabelece-se uma distinção entre “altos escalões da burocracia”, organizados com base no mérito, especialização e impessoalidade e os “escalões inferiores”, organizados por uma frágil burocratização combinada com a lógica tradicional-patrimonialista efetivada através do clientelismo (Martins, 1997). É por isso que serviços diplomáticos estrangeiros e instituições internacionais, que somente lidam com esses altos escalões, percebem a burocracia brasileira como competente e eficiente; a cciv população, que precisa tratar no dia-a-dia como outro lado da moeda, tem uma percepção completamente diferente (Martins, 1997: 18) O Estado interventor varguista, com o firme propósito de consolidar a ordem capitalista no Brasil, também se preocupará com a questão social. Dessa forma, "progressivamente, o Estado brasileiro passa a reconhecer a questão social como uma questão política a ser resolvida sob sua direção" (Sposati et alli, 1998). Mesmo porque, a intervenção do Estado na área social era essencial para regular as relações entre capital e trabalho, criando, assim, as bases para o desenvolvimento industrial. Em 1933, são criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que constituem a base do sistema nacional de previdência gerido pelo Estado brasileiro. Os IAPs eram entidades autárquicas, organizadas por categoria profissional, vinculadas ao Estado, através do Ministério do Trabalho, e filiavam compulsoriamente todos os componentes sindicalizados da categoria profissional que abrangia. Em outras palavras, para possuir um IAP, uma categoria profissional precisava, primeiramente, ser reconhecida legalmente como profissão pelo Ministério do Trabalho e possuir sindicato regulamentado. Ou seja, o Estado regulava o acesso dos trabalhadores aos direitos sociais. Essa engenharia político-institucional caracteriza uma concepção de “cidadania regulada”, já que as políticas sociais e, portanto, os direitos sociais são estabelecidos não com base em valores políticos, mas na regulação ocupacional dos trabalhadores. A partir de então, a intervenção social passa a se constituir como um instrumento privilegiado do Estado para prover serviços, visando à ampliação “regulada” da cidadania e à construção de uma “hegemonia seletiva” para garantir a implementação do projeto de “modernização conservadora”, no marco da ordem capitalista. Os conceitos de “cidadania regulada” e “hegemonia seletiva” possuem uma interessante correlação. O primeiro conceito, como visto, mostra a forma pela qual, durante o período varguista e populista, os governos no Brasil viabilizavam direitos ccv sociais. Assim, apenas as categorias profissionais urbanas reconhecidas legalmente pelo Estado é que possuíam acesso a determinados direitos sociais (Santos, 1987). O segundo conceito, desenvolvido por Carlos Nelson Coutinho, mostra que , no período em tela, utilizou-se, para governar, uma estratégia que não estabelecia uma hegemonia ampla na sociedade, mas sim promovia alianças com alguns setores das classes subalternas, conquistando, dessa forma, uma hegemonia limitada, baseada na seletividade dos segmentos sociais com os quais definia se aliar. O instrumento utilizado pelos governos para conquistar essa “hegemonia seletiva” era, justamente, a concessão de determinados direitos sociais. Em outras palavras, a “cidadania regulada” foi a forma utilizada para se estabelecer a “hegemonia seletiva”, que caracterizou a forma da relação do Estado com as classes trabalhadoras durante o período compreendido entre 1930 e 1964 (Coutinho, 1993). A organização institucional para materializar os serviços previdenciários e a assistência médica, via IAP’s, apresenta-se como uma estrutura exemplar que articula organicamente as dimensões burocráticas e patrimonialistas da ordem administrativa brasileira, além de formatar a estrutura pela qual se fará a incorporação seletiva da classe trabalhadora no processo de industrialização e urbanização do país. Cada IAP, destinado à determinada categoria profissional, possuía um conselho administrativo com participação paritária de empregadores e empregados, sendo a escolha da presidência reservada ao poder público, via Ministério do Trabalho. Ao presidente do IAP cabia designar um funcionário do instituto para secretariar o conselho administrativo. Dentre as atribuições do conselho administrativo dos IAP’s encontrava-se a tarefa de admitir o pessoal para trabalhar no instituto. Tal engenharia produziu diversas conseqüências. Em primeiro lugar, a organização por categoria profissional dos IAP’s, regulada pela ação do Estado, promoverá a incorporação seletiva da classe trabalhadora através do recurso do corporativismo65 estatal. Grosso modo, o corporativismo estatal possui como característica principal a identificação entre Estado e sociedade. No caso do corporativismo estatal vinculado às classes subalternas, as 65 Para Philippe Schmitter “o corporativismo pode ser definido como um sistema de representação de interesses no qual as unidades constitutivas são organizadas em um pequeno número de categorias únicas e obrigatórias, não competitivas, organizadas hierarquicamente e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas pelo Estado que concede deliberadamente o monopólio da representação no interior das respectivas categorias” (Schmitter, 1981: 52-53, in Araújo e Tapia, 1991). O autor ainda distingue dois tipos de corporativismo: o “estatal” e o “societal” (ou neocorporativismo). Para um maior detalhamento da temática sobre corporativismo e neocorporativismo ver: Araújo e Tapia, 1991; Diniz e Boschi, 1991. ccvi representações e representantes dos interesses sociais se encontram subordinados à autoridade estatal, quando não são criados por ela. Ou seja, não há autonomia da sociedade civil frente ao Estado, o que propicia o estabelecimento de uma relação de controle partindo do Estado para a sociedade66. Em segundo lugar, a atribuição de admissão de pessoal para trabalhar nos institutos constituía um recurso de poder fundamental para a elite sindical, o que gerava a “submissão política dessa liderança à orientação de quem controlasse o Ministério do Trabalho”, produzindo, assim, o “que se convencionou denominar, na literatura, de peleguismo” (Santos, 1987: 71). Além disso, essa forma de admissão de pessoal se caracteriza por estabelecer uma relação de lealdade entre o dirigente e o funcionário, configurando-se como um elemento típico da administração patrimonialista. Por fim, cabe registrar que a escolha de um técnico, servidor do instituto, para secretariar o conselho administrativo, expressa “uma das remotas raízes do poder da burocracia estatal em administração de instituições públicas” (Santos, 1987: 29). Outrossim, como ressalta Malloy (1976: 104), desenvolve-se, a partir desse momento, um grupo de especialistas em questões previdenciárias no interior da máquina pública, que “viriam desempenhar papéis proeminentes (...) como analistas, como administradores e como ativistas de previdência social”. Assim sendo, a estrutura previdenciária consolida uma organização pública que combina especialização burocrática com lealdade patrimonialista, para promover a incorporação seletiva da classe trabalhadora no projeto industrializante em desenvolvimento. Entretanto, a legislação previdenciária implementada no período não abrangia os trabalhadores rurais (diga-se de passagem, a maioria da população) e nem todas as profissões urbanas foram regulamentadas simultaneamente ou em um curto 66 Adiante veremos a forma que se processa o corporativismo estatal brasileiro vinculado às classes dominantes. ccvii espaço de tempo. Assim, havia necessidade de atender às demandas sociais dos excluídos do sistema previdenciário. Essa população excluída da política social organizada pelo Estado através dos IAPs buscará suas necessidades de proteção social no campo da assistência social, desenvolvida por instituições filantrópicas, vinculadas, principalmente, a entidades religiosas ou a ações de políticos. Sônia Fleury (1991) interpreta essa situação como de uma “cidadania invertida”, na qual determinados segmentos da sociedade (aqueles que não possuem profissão regulamentada pelo Estado) têm acesso à assistência social, uma vez que não são reconhecidos como cidadãos. A condição de nãocidadania é o que possibilita o acesso a benefícios sociais, daí a inversão da cidadania sinalizada pela a autora. Para constituir o Estado Nacional e fortalecer o poder central para implementar o projeto urbano-industrial capitalista, era necessário organizar as ações destinadas à população excluída da proteção pública e, também, buscar o apoio do poder local. Visando ao atendimento dessas necessidades, uma das estratégias utilizadas foi a centralização dos recursos da assistência social no âmbito de instituições federais (Conselho Nacional de Serviço Social/CNSS, Legião Brasileira de Assistência/LBA e Serviço de Assistência ao Menor/SAM)67, para propiciar, simultaneamente, a organização das ações assistenciais e a adesão dos políticos locais ao projeto em implantação, através da manutenção de relações clientelistas. A assistência social se desenvolverá, então, tendo como elementos predominantes as práticas caritativas e assistencialistas desenvolvidas pela igreja e o clientelismo típico, oriundo da República Velha, que encontrará na centralização do poder uma nova forma de processá-lo. Nesse contexto, as instituições da sociedade civil que atuam na área da assistência social, para obterem recursos junto aos órgãos públicos, via de regra, terão que solicitar o apoio dos políticos locais que 67 Conforme destacam Iamamoto e Carvalho (1982), essas instituições estatais ampliaram significativamente o mercado de trabalho para os assistentes sociais, categoria profissional estruturada a partir da segunda metade dos anos 1930. ccviii intermediarão a relação entre os dois pólos (instituições da sociedade civil – organizações públicas federais). Dessa forma, cria-se uma cadeia de troca de favores entre o poder central e o poder local - o primeiro necessitando do apoio político do segundo e este necessitando de recursos para manter seu controle junto à população, na medida em que, a partir da Lei de 1939, como vimos, a arrecadação foi transferida para o governo central - e entre o poder local e as instituições assistenciais – o líder local reivindicando apoio político da população e as instituições necessitando de recursos para manter suas ações. Simultaneamente, para operar a distribuição de recursos, organizar as informações sobre as instituições e desenvolver intervenções de apoio técnico ou atendimento direto, era necessário organizar uma estrutura burocrática com um corpo de especialistas. Portanto, no campo assistencial também será forjada uma estrutura imbricada de elementos burocráticos e patrimonialistas. Sendo assim, a população destituída de cidadania terá que recorrer a instituições privadas (seculares ou vinculadas às igrejas) para prover algumas de suas necessidades sociais e o Estado promoverá, através de suas instituições e/ou de sua omissão, a proliferação de organizações da sociedade civil destinadas ao atendimento assistencial a diferentes segmentos sociais. De forma geral, podemos dizer que a política social no Brasil será constituída tendo como base as concepções de “cidadania regulada”, na perspectiva da política previdenciária - destinada aos trabalhadores urbanos que possuíssem sua profissão reconhecida legalmente -, a qual será implementada com base na lógica corporativoestatal, e a “cidadania invertida” como expressão da ação assistencial - destinadas aos demais segmentos da população -, configurando-se como recurso de clientelismo do poder central. Criou-se, então, no País um sistema diferenciado de intervenção na área social. Para os trabalhadores urbanos regulamentados estruturou-se um sistema público de ccix proteção social, baseado na previdência social e assistência médica, desenvolvido pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões; para os demais trabalhadores e o restante da população, ou seja, aos excluídos do sistema público, destinou-se o aparato assistencial existente, apoiando sua expansão, através de subvenções públicas (Mestriner, 2001). É importante destacar que esse formato de desenvolvimento de políticas sociais no Brasil se adéqua ao processo de incorporação seletiva e limitada das classes subalternas às riquezas produzidas nacionalmente pelo advento da ordem industrial. Ou seja, não existe um projeto de universalização e aprofundamento de direitos sociais e, portanto, a estrutura burocrática organizada para operar as políticas sociais se efetiva, também, de forma seletiva e limitada. Em linhas gerais, esse padrão de operar as políticas sociais não sofrerá alteração até o advento do golpe de 1964. 3.2. A expansão da burocracia no contexto da irrupção do capitalismo monopolista A partir da década de 1950, conduzir a economia brasileira para um novo patamar de desenvolvimento capitalista passa a ser o objetivo central da coalizão dominante. Segundo Cardoso de Mello (1998: 117), a partir da década de 1950, mais precisamente entre 1956 e 1961, estrutura-se no país um novo padrão de acumulação caracterizado por um processo de industrialização pesada que “implicou um crescimento acelerado da capacidade produtiva do setor de bens de produção e do setor de bens duráveis de consumo antes de qualquer expansão previsível de seus mercados”. Fernandes (1981: 251- 288) identifica esse período como sendo o de início da irrupção do capitalismo monopolista no Brasil e mostra, com precisão, como esse processo se desenvolve no país mantendo a “dupla articulação”. Ou seja, para impulsionar o salto industrializante a opção da burguesia industrial foi subordinar-se ao capital estrangeiro e articular-se aos setores tradicionais. Portanto, “o novo padrão ccx de desenvolvimento capitalista terá de gerar, em termos estruturais, funcionais e históricos, novas modalidades de dependência em relação as economias centrais e novas formas relativas de subdesenvolvimento” (Fernandes, 1981: 259). Do ponto de vista da economia nacional, conforme salienta Fernandes (1981: 269), ...o capitalismo monopolista terá de adaptar-se para coexistir com uma variedade de formas econômicas persistentes, algumas capitalistas, outras extracapitalistas. Não poderá eliminá-las por completo, pela simples razão de que elas são funcionais para o êxito do padrão capitalista-monopolista de desenvolvimento econômico na periferia. Em outras palavras, para se aninhar e crescer nas economias capitalistas periféricas, esse padrão de desenvolvimento capitalista tem de satelitizar formas econômicas variavelmente “modernas”, “antigas” e “arcaicas”, que persistiram ao desenvolvimento anterior da economia competitiva, do mercado capitalista da fase neocolonial e da economia colonial. Tais formas econômicas operam, em relação ao desenvolvimento capitalista monopolista, como fontes de acumulação originária de capital. Além da já citada análise desenvolvida por Oliveira (2003) sobre articulação entre o setor agrícola tradicional e o setor industrial, o autor, para complementar o quadro de articulação entre padrões pré-capitalistas e capitalistas para o desenvolvimento urbano-industrial brasileiro, mostra a funcionalidade da expansão extracapitalista do setor terciário nesse empreendimento, fazendo a crítica às interpretações acerca da “inchação” do setor. Segundo Oliveira, não existe “inchação” do setor terciário, na medida em que sua ampliação está relacionada à acumulação urbano-industrial, a qual exige das cidades um conjunto de serviços para operacionalizar o crescimento que se encontra em processo. No entanto, o crescimento industrial intensivo operado no período, “em 30 anos passa de 19% para 30% de participação no produto bruto, não permitirá uma intensa e simultânea capitalização nos serviços, sob pena de esses concorrerem com a indústria propriamente dita pelos escassos fundos disponíveis para a acumulação capitalística”. Essa contradição, como ressalta o autor, será resolvida pelo “crescimento não capitalístico do setor Terciário” (Oliveira, 2003: 56-57). Portanto, não existe “inchação” no setor terciário. Oliveira, dessa forma, decodifica a ccxi funcionalidade do crescimento não-capitalístico do setor Terciário para acumulação nesse período e, por conseqüência, como ele engendra a forma arcaica no espaço urbano. Esse quadro traçado por Oliveira ressalta as articulações entre os setores capitalistas e pré-capitalistas ou extracapitalistas para operar a industrialização brasileira, sobre a qual o capital monopolista deverá interagir, conforme destacado por Fernandes. A expansão monopolista verificada no período se apóia, por um lado, no capital internacional68, que se transfere para o Brasil na forma de capital produtivo, e, por outro lado, na ação desempenhada pelo Estado que, segundo Cardoso de Mello (1998: 118), foi decisiva, em primeiro lugar, porque se mostrou capaz de investir maciçamente em infra-estrutura e nas indústrias de base sob sua responsabilidade (...). Coube-lhe, ademais, uma tarefa essencial: estabelecer as bases da associação com a grande empresa oligopólica estrangeira, definindo claramente, um esquema de acumulação e lhe concedendo generosos favores. Nesses termos, o projeto desenvolvimentista se consolida no País. Politicamente, o desenvolvimentismo se apresenta, conforme analisa Ianni (1989: 98), como ideologia da conversão do capital agrícola, comercial e bancário em capital industrial, a conversão do poder econômico da burguesia em poder político e, por fim, a conversão do Estado patrimonial em Estado burguês. A partir da década de 1950 será consolidado o Estado desenvolvimentista brasileiro, cujo início se encontra na inflexão econômica, política e social ocorrida no País a partir da revolução de 30. Segundo Fiori (1995: 123), o consenso em torno do projeto de criar uma economia nacional industrializada liderada pela intervenção planejada do Estado, consolidou-se a partir dos anos 1950 na América Latina. De acordo com o autor, “pode-se dizer que 68 “Naturalmente, a presença da grande empresa estrangeira não se explica apenas pela existência de excelentes oportunidades de inversão a serem colhidas, mas, também, em última instância, pela própria dinâmica de competição oligopólica nos países centrais, cujo ponto de chegada consistiu, como se sabe, na conglomeração financeira e na expansão oligopólica a escala mundial” (Cardoso de Mello, 1998: 119). ccxii a supremacia Estado desenvolvimentista na América Latina foi a contraface da hegemonia Keynesiana na Europa”. Apesar de certas diferenças entre as concepções sobre o que significa esse período do ponto de vista do desenvolvimento da economia capitalista brasileira, cabe destacar que o pacto que conduzirá esse processo para todos os intérpretes citados será o mesmo que conduziu a Revolução de 30, porém a partir deste momento, a hegemonia estará sob a condução da burguesia industrial. A ordem administrativa brasileira deverá se adequar a esse contexto de aceleração do desenvolvimento industrial e de início da “irrupção do capitalismo monopolista”, para poder operar o projeto em tela, no marco da manutenção da “dupla articulação”. A estratégia operada, do ponto de vista administrativo, será marcada pela reprodução das características centrais da administração pública que se estrutura a partir de 1930. Entretanto, essa estratégia expandirá, significativamente, a dimensão “insulada” da ordem burocrática - dimensão utilizada para viabilizar a ação racional destinada à organização institucional, legal e econômica necessária para a fase da industrialização em pauta, combinada com a exclusão dos setores populares –, fortalecerá a dimensão patrimonialista através, principalmente, da manutenção do poder dos governadores de estado e da implementação das políticas sociais (prioritariamente as de assistência social) e, por fim, estagnará as iniciativas pautadas para a ampliação da dimensão do “universalismo de procedimentos” presente na ordem burocrática. O processo de expansão do “insulamento burocrático” é realizado a partir da Assessoria Econômica instituída no segundo governo Vargas e, principalmente, através dos Grupos Executivos formados por JK (Nunes, 1997: 101 e 110). Ou seja, a ordem burocrática brasileira vai se fortalecendo a partir da dimensão que reduz o “escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um ccxiii papel” (Nunes, 1997: 34). Portanto, as potencialidades democráticas da ordem burocrática não serão desenvolvidas e exploradas. O pacto de dominação e o projeto industrializante a ser implementado vai sendo definido ao longo do processo de nossa revolução burguesa, a partir da articulação política entre os setores dominantes que estão vinculados à ordem tradicional e à burguesia industrial, sob as condições de um capitalismo periférico, em que, como já foi visto, capital agrícola e industrial interagem dialeticamente, numa mútua dependência (Oliveira, 2003 e Cardoso de Mello, 1998). A divisão de trabalho entre os setores da economia para promover a acumulação estava definida e os espaços do Estado para operar o projeto de industrialização com participação dos setores agrários foram se constituindo a partir da montagem da ordem administrativa que expressava o pacto de dominação estabelecido. Nesse sentido, conforme sinaliza Fiori (1995: 135-136), a ação do Estado para articular o financiamento da industrialização estava condicionada ao veto político e ideológico do suporte conservador que compunha o pacto de dominação estabelecido69. Nesse quadro, os limites gerais, do ponto de vista econômico e político, que demarcavam a implementação da industrialização foram determinados70. Cabia à fração dirigente das classes dominantes operacionalizar as ações necessárias para efetivar a industrialização nos contornos delimitados. A ordem administrativa brasileira deverá ser adequada a esse processo de expansão capitalista que mantém a “dupla articulação” e exclui as camadas populares. No contexto do pacto de dominação conservador, a constituição de uma burocracia insulada foi a estratégia administrativa adotada para responder à aceleração da industrialização, em termos políticos e técnicos. Nesse sentido, podemos dizer que o insulamento operado, muito mais que evitar a interferência 69 Abrúcio cita um estudo no qual indica “que de 1946 até 1962 mais de duzentos projetos de reforma agrária foram bloqueadas pelas elites políticas das regiôes menos desenvolvidas”. Corroborando com a análise de Fiori, segundo o autor, “os grupos do norte e Nordeste permaneceram com o poder de veto no Congresso em questões que alterassem o status quo das oligarquias dessas regiões” (Abrúcio, 2002: 52). 70 Vale ressaltar, mais uma vez, que esses limites não são estáticos e nem isentos de contradições. Dependem sempre da ccxiv clientelista e populista no planejamento do processo de industrialização e urbanização do país, conforme sinalizam Nunes (1997)71 e Fiori (1995)72, visava excluir a classe trabalhadora da participação das definições sobre os rumos da expansão capitalista, na medida em que os grandes contornos do projeto desenvolvimentista eram determinados pelo veto político e ideológico do pacto conservador e a ocupação do Estado, em seu conjunto, deveria corresponder à dominação existente. Portanto, as determinações centrais da expansão do “insulamento burocrático” no Brasil se referem à necessidade técnica e política de processar a “irrupção do capitalismo monopolista”, mantendo a “dupla articulação”, e de controlar as classes trabalhadoras em relação à sua participação política e seu acesso às riquezas produzidas. Assim, a tarefa principal do insulamento burocrático no Brasil não se destina a evitar o patrimonialismo presente na cultura político-administrativa, apesar de contribuir, também, para obliterar as interferências indesejadas de frações das classes dominantes, fossem elas vinculadas a setores urbanos ou rurais. Portanto, concordamos inteiramente com Nunes (1997: 34) quando afirma que “o insulamento burocrático não é de forma nenhuma um processo técnico e apolítico”. Nesse contexto, o que se efetiva, do ponto de vista político, a partir da expansão da burocracia insulada é a privatização do Estado pelas frações dirigentes das classes dominantes. De acordo com Fiori (1995: 137): O poder de veto dos vários blocos de interesse regional ou setorial, reconhecidos pelo pacto original e reafirmados graças à sua contribuição financeira ou eleitoral para a reprodução política da ordem dominante, acabaram sedimentando grupos que se apropriaram, literalmente, dos centros de decisão estatal responsáveis pelo proteção de seus mercados cativos. A expansão do “insulamento burocrático”, a partir da década de 1950, propiciará a estruturação de uma nova forma de apropriação do público pelo privado, correlação de forças que se expressa na sociedade, a partir das lutas de classes efetivadas concretamente. 71 Ver citações acima. 72 De acordo com o autor, no plano da gestão “o Estado formou os grupos executivos (...) para desenhar e acompanhar a implementação das várias metas setoriais do Plano de metas, gerando uma espécie de burocracia paralela, mas enxuta e impermeável às pressões da política populista e clientelista que caracterizavam, naquele momento, os traços fundamentais de funcionamento do sistema político democrático brasileiro” (Fiori, 1995: 129). ccxv que não se confundirá com a ordem patrimonialista em relação a não distinção entre o interesse público e o privado fundada na tradição. Ou seja, existem diferenças entre gestão patrimonialista e gestão racional capitalista, apesar de ambas propiciarem a acumulação privada. A gestão patrimonialista confunde bem público com o bem privado, na medida em que todos os bens pertencem ao senhor cuja dominação é de caráter tradicional. A gestão racional capitalista, obviamente, privilegiará uma determinada classe social ou frações dessa classe a partir da utilização de recursos públicos para promover a acumulação. Porém, essa ação não é desenvolvida a partir de atributos tradicionais e da falta de limites entre a esfera privada e a pública, mas sim dentro de um racionalidade instrumental voltada para o desenvolvimento capitalista. Por isso, discordamos das interpretações que colocam tudo sob o manto do patrimonialismo ou identificam a privatização do Estado unicamente como vinculada à estrutura patrimonial. As ações legais desenvolvidas pelo Estado são racionais e não patrimonialistas, ainda que beneficiem privadamente setores, grupos ou pessoas. O Estado não foi criado para garantir universalidade e interesses gerais, ele existe para garantir a ordem capitalista e, portanto, a apropriação privada das riquezas produzidas na sociedade. Tal fato não pode ser confundido com patrimonialismo. Conforme destacam Diniz e Boschi (1991: 17), pelo viés do corporativismo, o modelo político implantado no País para impulsionar a industrialização “forneceu as bases institucionais para um novo padrão de regulação público/privado, que diferiu fundamentalmente das relações prévias fundadas na visão do público como mera extensão do poder privado.” O caso do “insulamento burocrático” é exatamente este. Não podemos confundi-lo com patrimonialismo, mas identificar, na sua configuração, os traços que não correspondem à dimensão impessoal e formal de uma ordem burocrática típica ideal. ccxvi Nesse sentido, concordamos com Schwartzman (1988: 7) que os canais informais criados pelo Estado para se relacionar com a sociedade – mais precisamente com os setores das classes dominantes - referem-se à lógica patrimonial, na medida em que não estabelecem impessoalidade e regras formais para definir a configuração da relação a ser estabelecida. Além disso, a forma de recrutamento do quadro administrativo que constituirá as agências responsáveis pelo planejamento e acompanhamento do processo de industrialização será feito a partir de uma escolha discricionária da Presidência da República e não a partir de uma seleção pública por mérito, precarizando a lógica burocrática devido à ausência de impessoalidade. Porém, a existência desses traços tradicionais na estrutura da administração paralela não configura tal estrutura como fundada na ordem patrimonialista. Conforme anota Nunes (1997: 110), As agências encarregadas do desenvolvimento econômico precisavam de dois recursos para levar seus planos efetivamente adiante: pessoal competente e capital suficiente. JK imaginou maneiras de providenciar ambos e utilizou o privilégio do Executivo para preencher os cargos na burocracia insulada sem adotar qualquer procedimento formal. Os Grupos Executivos foram compostos com pessoal requisitado à SUMOC, à CACEX, ao BNDE, ao DASP, aos ministérios, etc. (...) Em parte, ao requisitar os funcionários mais competentes dos vários órgãos, Juscelino contornou não só a burocracia tradicional, mas também qualquer tipo de universalismo de procedimentos porventura existente. Dessa forma, a dimensão racional da burocracia será desenvolvida parcialmente. Como essa dimensão estará combinada a mecanismos de recrutamento que não privilegiam a impessoalidade - apesar de garantir competência técnica para o projeto em tela –, impedir-se-á a possibilidade de existir um quadro administrativo comprometido, direta ou indiretamente, com interesses das classes trabalhadoras. Por outro lado, a existência de canais informais de articulação entre o Estado e a sociedade promoverá a privatização do público pelos setores que ccxvii terão acesso a tais canais. Assim, a potencialidade da dimensão burocrática para operar ações que atendam a interesses das camadas não dominantes, e, portanto, ampliar o “universalismo de procedimentos”, será extremamente restrita. Por outro lado, ao se instituirem espaços burocráticos insulados para operar o projeto industrializante, será retirado do congresso o papel de negociador político entre as diferentes forças sociais. Esse fato enfraquecerá, ainda mais, a dimensão democrática da luta política e sua relação com o aparelho administrativo do Estado, criando uma arena decisória na burocracia federal afastada da democracia. Assim, cabe ressaltar que ocorrerá uma mudança na função que a dimensão insulada da burocracia exercia. No período compreendido entre 1937 e 1945 o “insulamento burocrático” serviu, prioritariamente, para a sustentação da ditadura Vargas A partir da década de 1950 ele servirá, prioritariamente, para viabilizar o projeto de expansão capitalista brasileiro. Porém, o cariz antidemocrático de então permanecerá, na medida em que, através do insulamento, será impedida a participação das classes trabalhadoras no desenho do desenvolvimento capitalista a ser expandido no país. Assim sendo, o desenvolvimento da burocracia insulada contribuirá para a manutenção da estrutura de concentração de renda, riqueza e poder, distanciando a ordem administrativa brasileira de uma perspectiva de aprofundamento e universalização de direitos. O arranjo político institucional baseado no “insulamento burocrático” complementará, no entendimento de O´Donnell (1976) e Diniz e Boschi (1991), o corporativismo estatal brasileiro que se caracterizará por ter dois componentes. O primeiro deles é o “estatizante”, que se expressa através da relação que o Estado estabelece com as organizações da sociedade que representam interesses do ccxviii trabalho, visando subordiná-las às suas orientações, ou seja, uma ação de controle das classes populares. O outro componente é o “privatista”, que corresponde ao processo de avanço de setores da sociedade civil, vinculados às classes e setores dominantes, em direção ao Estado, criando áreas institucionais de influência desses setores nas decisões políticas. Portanto, existe um caráter segmentar do corporativismo estatal brasileiro na medida em que há distinção da forma com que o Estado se relaciona com os setores populares em relação àquela com que ele se relaciona com os setores dominantes73. Dessa forma, estará criada a possibilidade política de conduzir a expansão capitalista, excluindo as classes populares e garantindo às frações dirigentes das classes dominantes processar a privatização do Estado. Nunes (1997: 113) sintetiza esse movimento de forma precisa: O insulamento burocrático forneceu ao país uma administração econômica racional, gerida por elites profissionais modernizantes associadas a grupos empresariais internacionalizados. Embora essas elites se percebessem como portadoras legítimas de valores modernos e universalistas, o resultado de sua ação não foi absolutamente a criação de um “domínio público”. Suas atividades não tinham por objetivo a expansão das bases para uma cidadania universalista no país; ao invés disso contribuíram para manter inalteradas as bases da “cidadania regulada”... Diferentemente do que pode ser sugerido por esse arranjo da ordem administrativa brasileira, a burocracia insulada não expressa autonomia nem neutralidade técnica do corpo administrativo que a compõe. A falta de autonomia se manifesta por um lado, como vimos anteriormente, a partir dos contornos definidos da expansão capitalista ditados pelo pacto de dominação conservador e, por outro lado, pela participação direta de setores empresarias no planejamento das ações destinadas à industrialização. A inexistência de neutralidade técnica em qualquer campo é fato amplamente debatido nas ciências sociais (Meszáros, 1996; Lowy, 1985 e 1989). No caso em 73 De acordo com O’Donnell (1976), este arranjo caracteriza um “corporativismo bifronte”. ccxix questão, tal fato fica demarcado, na medida em que a forma de recrutamento operada para compor as agências insuladas estava definida politicamente. “As novas agências, embora tecnicamente competentes, eram profundamente politizadas e pautaram suas atividades por opções políticas claras, atitude que também influenciou o recrutamento de seu pessoal” (Nunes, 1997: 19). Nesse contexto, abre-se o caminho para a privatização do Estado por parte das elites dominantes que, como lembra Fiori (1995: 110 e 154), “se o empresariado sempre resistiu ideologicamente ao intervencionismo estatal, acabou cedendo sempre, em troca da proteção indiscriminada que produziu, do ponto de vista institucional, o que alguns chamaram de cartorialização e outros de privatização do Estado”. Nesse sentido, encontramos uma relação direta entre a dimensão insulada da burocracia, produzida pela ausência de impessoalidade no recrutamento e no estabelecimento de canais de interlocução com os diferentes setores da sociedade, apesar da existência da especialização e competência técnica do corpo burocrático, e o processo de privatização do Estado que esvazia a dimensão pública republicana da estrutura político-institucional brasileira. Dessa maneira, cabe registrar que se a expansão da burocracia não for realizada preservando a dimensão impessoal e “universalista de procedimentos” de sua racionalidade, não contribuirá para um projeto que se pretenda voltado para o projeto destinado à universalidade e ao aprofundamento de direitos. Portanto, isso não significa dizer que a burocracia seja incompatível com um projeto de democratização no quadro do capitalismo, muito pelo contrário. No contexto da consolidação do Estado desenvolvimentista, combinando com a expansão insulada da burocracia (eliminação dos aspectos formais e impessoais ccxx de sua racionalidade), que tinha como objetivo central planejar e executar o projeto de expansão capitalista no marco da “irrupção do capitalismo monopolista” sob a égide da “dupla articulação”, será efetivada a ampliação dos mecanismos clientelistas, vinculados à lógica patrimonialista coerente com a manutenção da dominação tradicional, ainda em vigor. Os espaços institucionais prioritários para efetivar a ampliação dos mecanismos clientelistas serão, por um lado, o campo das políticas sociais e, por outro, a forma de organizar o poder regional no quadro democrático. No campo das políticas sociais, será mantido o padrão criado na década de 1930, seja na previdência e assistência médica, seja na assistência social. Portanto, não haverá alteração nas lógicas de funcionamento das instituições, tampouco da estrutura administrativa criada para operá-las. Ocorrerá apenas a expansão do modelo forjado na década de 193074, no qual as classes trabalhadoras continuarão sendo incorporadas seletivamente e de forma parcial. Sendo assim, as características da administração pública na área das políticas sociais serão mantidas. Por um lado, a expansão quantitativa das instituições da área previdenciária promoverá a intensificação da combinação de especialização burocrática com lealdade patrimonialista, conquistada através da manutenção da política tradicional de empreguismo em troca de apoio político, visando à incorporação seletiva e parcial da classe trabalhadora, via institutos de previdência. Conforme analisa Nunes (1997:112): Juscelino impediu que o DASP realizasse concursos para o serviço público, com a justificativa de que era um processo muito caro, mas ele próprio é acusado de ter feito perto de sete mil nomeações políticas, apenas no primeiro ano de governo. Entretanto, a maior parte delas foi feita por João Goulart nos ministérios do Trabalho e da 74 Há um consenso na bibliografia que trata o tema que no período compreendido entre 1945 e 1966 não ocorre mudanças na estrutura de organização das políticas sociais brasileiras. Neste período há uma expansão das instituições e da lógica de funcionamento das políticas sociais criadas na década de 30. Para maior aprofundamento ver Santos (1987), Vianna (1998), Draibe (1989), entre outros. ccxxi agricultura e em suas autarquias, principalmente os institutos de previdência... Por outro lado, a ampliação da estrutura clientelista da assistência social, apontada anteriormente, articular-se-á com a necessidade de ampliação de especialistas que possibilitem a organização das ações de distribuição de recursos públicos e apoio técnico para as instituições filantrópicas existentes, agora em maior volume. A manutenção do poder regional - mais especificamente, a forma principal como as elites oligárquicas tradicionais continuarão exercendo a dominação política de caráter tradicional em nível nacional -, será realizado a partir da não alteração das relações de propriedade da terra. Apesar de extensa, cabe citar a análise de Fiori (1995) sobre a questão, pois, além de precisa, é central para entendermos, adiante, o poder que os governadores possuirão neste período: Como, entretanto, jamais tivesse tido poder, condições ou mesmo disposição de alterar as relações de propriedade da terra, a proposta centralizante do Estado desenvolvimentista acabou sendo atenuada, corroída ou mesmo pervertida por uma relação de permanente tensão – e cooptação – entre a vontade central e o poder político dos inúmeros e heterogêneos interesses regionais (Fiori, 1995: 142). Em seguida, destaca o autor: Não há dúvida de que, com a industrialização, as relações entre atraso e modernidade se complexificaram, afastando-se de um simples modelo dualista. A idéia de heterogeneidade estrutural aponta exatamente para essa nova configuração, onde bolsões de atraso político e econômico distribuem-se através de todas as regiões e setores de atividades. Mas não há dúvida, entretanto, de que do ponto de vista estritamente político-eleitoral, mantém-se uma certa superposição capaz de permitir a existência, até hoje, de regiões do País onde predominam as velhas oligarquias apoiadas em relações políticas de tipo pessoal, assentadas no favor ou na dependência econômica. Graças a isso, durante todo o ciclo desenvolvimentista, essas oligarquias que controlaram a economia e o poder político, nessas regiões mais atrasadas, obtiveram posições e favores junto ao Estado central graças, exatamente, a esse seu grande poder de mobilização eleitoral, indispensável à reprodução política da ordem conservadora (Fiori, 1995: 143). Dessa forma, a oligarquia agrária tradicional participará efetivamente da estrutura de dominação no País, via seu poder local de mobilização político-eleitoral. ccxxii Abrúcio (2002) nos esclarece como esse processo se realiza concretamente. Segundo o autor, após a abertura política processada depois da queda de Vargas, o poder dos estados é recuperado, porém não nos mesmos termos da primeira república, visto que o poder central, então, já se encontrava mais forte no país, tornando as relações federativas mais equilibradas, seja entre União e estados, seja entre os próprios estados. Nesse quadro, afirma o autor, “uma nova política dos governadores surgiu e as bancadas estaduais na Câmara Federal possuíam poder suficiente para barganhar por mais recursos do tesouro nacional para suas clientelas” (Abrúcio, 2002: 50). Nessa recomposição política, os estados do sudeste, principalmente São Paulo e Minas Gerais, passam a ser sub-representados na Câmara Federal. No entanto, como ressalta lucidamente o analista, a subrepresentação não fora de todo ruim, pois, além dos interesses dos estados mais industrializados serem melhor articulados via agências burocráticas insuladas, a subrepresentação “evitaria o fortalecimento dos setores emergentes dos grandes centros urbanos e industrializados” Abrúcio (2002: 51). Um aspecto fundamental nesse quadro, como ressalta Abrúcio, diz respeito ao papel dos governadores. Como as eleições presidenciais não ocorriam no mesmo período que as proporcionais e que as destinadas aos governos dos estados, os candidatos a deputado preferiam estar vinculados aos candidatos mais fortes ao executivo estadual. Assim, criava-se uma dependência do deputado ao governador eleito que o apoiara. Além disso, como destaca o autor, os governadores controlavam os chefes políticos locais, através da distribuição de cargos públicos. Dessa forma, analisa Abrúcio (2002: 54): A realidade “coronelística”, fortalecedora do Executivo estadual frente aos chefes locais, permaneceu em boa parte do país na Segunda República, dada a continuidade da estrutura agrária arcaica em ccxxiii diversas regiões. Os vetos aos projetos de reforma agrária no Congresso tinham uma intrínseca ligação com o pacto entre Executivos estaduais e chefes locais, pois grande parcela dos deputados federais precisava desse pacto para conquistar a reeleição ou otimizar sua carreira para cargos majoritários. Por detrás dos vetos dos deputados, estava o veto do sistema político estadual, cujo maior beneficiário era o governador. Então, a ordem administrativa no contexto de consolidação do Estado desenvolvimentista se desenvolverá a partir da expansão da dimensão da racionalidade capitalista e da especialização técnica da burocracia, num quadro de insulamento de uma estrutura paralela de gestão, evitando a utilização dos mecanismos de mérito e impessoais na composição de seus quadros. Essa expansão será articulada à manutenção dos espaços patrimoniais e clientelistas no campo das políticas sociais - visando à incorporação seletiva e parcial das classes trabalhadoras - e na forma de participação das camadas dominantes tradicionais na estrutura de poder. Dessa forma, a dimensão de racionalidade da burocracia em seu sentido de estruturação formal e impessoal de procedimentos será bloqueada, inviabilizando a construção de uma ordem administrativa que pudesse contribuir substantivamente com o fortalecimento de ações voltadas aos interesses das classes populares. As agências estatais, principalmente aquelas não insuladas e não identificadas como agências clássicas do Estado (relações exteriores, forças armadas e arrecadação fiscal), serão formadas por um segmento de especialistas, recrutados ou não por mérito, combinado com um quadro não especializado, formado através de contratações de caráter nitidamente patrimonialista75. Esse tipo de composição do quadro administrativo prejudica profundamente o desenvolvimento da racionalidade burocrática, no sentido de seu aproveitamento para a estruturação de uma 75 “A despeito das tentativas, durante anos, de reforma do serviço público e da retórica moralizadora de muitos governantes, somente 12% dos empregados de todo o serviço público tinham sido admitidos sob as bases do mérito no final da década de 1950. Segundo o Censo dos Servidores Públicos de 1966, somente 12,93% dos servidores tinham sido admitidos, até 1966, ccxxiv perspectiva de universalização e aprofundamento de direitos. Por outro lado, a estrutura burocrática formada por funcionários recrutados por mérito, via concurso público, e outros através de mecanismos extrapatrimoniais de lealdade introduz nas agências a forma clientelista de operar (ausência de sentido público), o que acaba fazendo com que esse comportamento seja também incorporado pelos segmentos burocráticos tradicionais. Nunes (1997: 33) analisa essa situação da seguinte forma: As instituições formais do Estado ficaram altamente impregnadas por este processo de troca de favores, a tal ponto que poucos procedimentos burocráticos acontecem sem uma “mãozinha”. Portanto, a burocracia apóia a operação do clientelismo e suplementa o sistema partidário. Este sistema de troca não apenas caracteriza uma forma de controle de fluxo de recursos materiais na sociedade, mas também garante a sobrevivência política do “corretor” local. Todo o conjunto de relações característico de uma rede está baseado em contato pessoal e amizade leal. Dessa feita, conforme resume Nogueira (1998), o insulamento burocrático simbolizou a tendência de relegar a administração direta a um plano secundário. Esse cenário da administração pública dos anos 50 do século passado será radicalizado, a partir da ditadura militar, através da sua institucionalização, operada via Decreto-lei n.º 200/67. 3.3. Intensificação do insulamento burocrático como estratégia da consolidação da fase monopólica do capitalismo brasileiro O Decreto-lei n.º 200/67 expressa o coroamento legal e institucional da estrutura administrativa desenvolvida na década de 1950 para operar a “irrupção do capitalismo monopolista”. Ou seja, o Decreto-lei n.º 200 não apresenta inovação substantiva em relação à estrutura da ordem administrativa que já vinha sendo adotada desde a década de 1940 e que foi intensificada na década de 1950, ele apenas aprofunda e institucionaliza a tendência esboçada naquele período. Obviamente, ao aprofundar e institucionalizar os traços presentes na expansão da administração sob as bases do mérito” (Nunes, 1997: 118). ccxxv pública ocorrida na década de 1950, a expressão fenomênica dos processos sociais, econômicos, políticos e culturais em curso serão evidenciados. Nesse sentido, em sua aparência, a reforma administrativa de 1967, se expressará como um novo modelo de gestão a ser desenvolvido no Brasil (Bresser Pereira, 1996 e Torres, 2004). No entanto, em sua essência, ela apenas potencializará os elementos advindos da década de 1950, através da normatização e institucionalização de seus mecanismos, para consolidar o processo de monopolização capitalista no quadro da estratégia desenvolvimentista. A reforma administrativa de 1967, no contexto da ditadura militar, é, portanto, um imperativo necessário para lançar definitivamente o capitalismo brasileiro à fase monopólica de seu desenvolvimento, após sua passagem pela industrialização restringida (1933-1955) e industrialização pesada (1956-1967). Assim, essa reforma se apresenta como continuidade e ruptura da realizada na década de 1930. Continuidade, pois se encontra vinculada ao projeto de industrialização iniciado com a revolução de 30, no marco do desenvolvimentismo, e ruptura, posto que, no quadro de esgotamento da estratégia utilizada para a construção dos alicerces para o desenvolvimento industrial capitalista, manifestado na depressão de 1962-1967, eram necessárias mudanças para retomar a expansão ocorrida entre 1956-196176, visando à consolidação monopólica do projeto de capitalismo periférico, associado e dependente. Na análise de Fiori (1995), esse processo se caracteriza, uma vez mais como uma “fuga para frente”. Para fugir dos conflitos e contradições do projeto de economia dependente e associada, o Estado desenvolvimentista projetava-se para frente, buscando ampliar as condições de acumulação, através de sua maior intervenção na economia. 76 Conforme assinala Oliveira (2003: 101), a aceleração econômica do período introduz uma mudança qualitativamnete significativa: “a implantação, nos ramos ‘dinâmicos’, das empresas que requerem uma homogeneidade monopolística da economia como condição sine qua non de sua expansão” ccxxvi Dessa forma, entendemos que a reforma de 1967 é a expressão mediata do projeto econômico de monopolização do capitalismo, no contexto de uma opção política das classes dominantes orientada, por um lado, para manter a “dupla articulação” e, por outro lado, para excluir as classes trabalhadoras do processo de participação política das decisões sobre o desenvolvimento e da ampliação do acesso às riquezas produzidas, mantendo assim, como destaca Oliveira (2003), o caráter concentrador de poder, renda e propriedade. De forma clara, o sociólogo afirma que a diferença fundamental do sistema pós-64 do de etapas anteriores talvez se expresse “na combinação de um maior tamanho com a persistência dos antigos problemas. Sob esse aspecto, o pós-64 dificilmente se compatibiliza com a imagem de uma revolução econômica burguesa, é mais semelhante com o seu oposto, o de uma contra-revolução” (Oliveira, 2003: 106 – itálicos no original). Netto (1991: 27) sintetiza de forma precisa esse contexto: a articulação político-social que fundava o Estado brasileiro às vésperas de 1964 problematizava a continuidade do padrão desenvolvimento dependente e associado que se engendrara em meados da década de cinqüenta. O Estado que se estrutura depois do golpe de abril expressa o rearranjo político das forças socioeconômicas a que interessam a manutenção e a continuidade daquele padrão, aprofundadas a heteronomia e a exclusão. Tal Estado concretiza o pacto contra-revolucionário (...), readequando-o às novas condições internas e externas que emolduravam, de uma parte, o próprio patamar a que ele chegara e, de outra, o contexto internacional do sistema capitalista (...). Readequado, aquele esquema é definido em proveito do grande capital, fundamentalmente dos monopólios imperialistas. Para complementar e aprofundar a análise sobre o significado do golpe militar de 1964, considero fundamental destacar duas observações de Fernandes (1981). A primeira delas está diretamente relacionada ao conceito de “autocracia burguesa”. O autor sublinha a necessidade de um elevado grau de estabilidade política para viabilizar o desenvolvimento capitalista em sua fase monopólica. Ou seja, para garantir o processo de monopolização no capitalismo dependente é necessária “uma extrema concentração de poder político estatal” (Fernandes, 1981: 269). Por outro ccxxvii lado, como sinaliza o sociólogo, nos momentos críticos operou-se uma dissociação entre o desenvolvimento político e o econômico. Nas palavras do autor: Isso fez com que a restauração da dominação burguesa levasse de um lado, a um padrão capitalista altamente racional e modernizador de desenvolvimento econômico; e, concomitantemente, servisse de pião a medidas, políticas, militares e policiais, cotra-revolucionárias, que atrelaram o Estado nacional não à clássica democracia burguesa mas a uma versão tecnocrática da democracia restrita, a qual se poderia qualificar , com precisão terminológica, como uma autocracia burguesa (Fernandes, 1981: 267-268). O segundo aspecto refere-se à manutenção da articulação entre setores précapitalistas e capitalistas para viabilizar a consolidação monopólica, o que implica a manutenção da participação da elite tradicional, principalmente agrária, na estrutura de dominação do estado nacional. Consideramos oportuno, reproduzir a análise do autor que, apesar de extensa, mostra-se essencial para fundamentar a perspectiva de ordem administrativa que tem sido desenvolvida nesta tese: ...o capitalismo monopolista terá de adaptar-se para coexistir com uma variedade de formas econômicas persistentes, algumas capitalistas, outras extracapitalistas. Não poderá eliminá-las por completo, pela simples razão de que elas são funcionais para o êxito do padrão capitalista-monopolista de desenvolvimento econômico na periferia. Em outras palavras, para se aninhar e crescer nas economias capitalistas periféricas, esse padrão de desenvolvimento capitalista tem de satelitizar formas econômicas variavelmente “modernas”, “antigas” e “arcaicas”, que persistiram ao desenvolvimento anterior da economia competitiva, do mercado capitalista da fase neocolonial e da economia colonial. Tais formas econômicas operam, em relação ao desenvolvimento capitalista-monopolista, como fontes originárias de capital (Fernandes, 1981: 269). Diferentemente, portanto, das interpretações (Bresser Pereira, 1996 e 1998b e Grau, 1998) que identificam a reforma administrativa de 1967 como um marco no processo de aprimoramento do desenvolvimento da ordem administrativa brasileira no caminho da incorporação de mecanismos gerencias voltados para maior eficiência na condução administrativa, distinguindo a reforma de 1967 da de 1936 e do desenvolvimento da administração paralela na década de 1950 -, consideramos que, efetivamente, o que ocorre no Brasil, do ponto de vista administrativo, a partir do golpe de ccxxviii 1964, é a institucionalização e expansão da estrutura anterior, porém sob a égide da consolidação monopólica do capitalismo brasileiro. A expansão da estrutura administrativa se processa através da descentralização77, operada, principalmente, pela ampliação da administração indireta. Os diferentes dados a respeito dessa ampliação são contundentes (Martins, 1997; Lima Júnior, 1998; Pinho, 1998; Rezende, 2004)78. Portanto, a experiência da burocracia insulada dos anos 1950 se expande nesse período, a partir de uma orientação formal-legal expressa no Decreto-lei n º. 200/67. Se, como vimos anteriormente, o insulamento dos anos 1950 se configura como uma estratégia para processar o projeto de “irrupção do capitalismo monopolista”, sob a perspectiva da “dupla articulação” e da exclusão das classes trabalhadoras - obliterando, também, diga-se de passagem, as interferências indesejadas de frações das classes dominantes -, a partir da ditadura, a situação se agrava de forma exponencial, mudando qualitativamente o formato de articulação entre o setor privado e o setor estatal para operar, agora, a consolidação de tal estratégia. Do ponto de vista administrativo, a mudança qualitativa se expressará através da ampliação quantitativa da administração indireta e da substituição das assessorias e grupos executivos de planejamento por uma estrutura fundada nas empresas estatais, autarquias, fundações e sociedades de economia mista79 e no poder executivo federal, via Ministério do Planejamento (Fiori, 1995; 24). 77 Conforme indica Torres (2004: 153 e 154), a descentralização proposta em 1967 se refere a três planos: na própria administração direta, através da distinção entre direção e execução; na relação estabelecida entre administração federal e unidades da federação e, por fim, na transferência para a administração indireta e iniciativa privada de determinadas ações. 78 Martins (1997: 22) informa que, na metade dos anos 1970, em relação a empresas públicas e controladas pelo Estado havia, no Brasil, 571 delas, nos três níveis administrativos, sendo que 60% haviam sido criadas entre 1966 e 1976; Lima Júnior (1998: 14) aponta que de 440 empresas públicas, abrangendo o período entre 1939 e 1983, foram criadas 267 no período 1964-1983; Pinho (1998: 4 e 5) apresenta o levantamento realizado por Braz Araújo, o qual indica que de 173 informações conseguidas sobre as empresas estatais federais existentes em 1975 (total de empresas estatais existentes em 1975 era de 217), 130 foram criadas entre 1965 e 1975; para finalizar, Rezende (2004: 61), a partir de vários volumes do “Orçamentos da União”, elabora um quadro sobre as organizações públicas criadas pelo governo federal (1908-1984), o qual informa que do total de 384 organizações criadas ao longo do período, 274 foram instituídas entre 1964 e 1984, sendo que 216, a partir de 1967. 79 Para um sumário das distinções entre esses tipos de instituições que compõem a administração indireta, ver Torres (2004: 155). ccxxix Como sugere Nunes (1997: 42), o insulamento burocrático, processado na década de 1950, permitiu o surgimento daquilo que Fernando Henrique chamou de “anéis burocráticos” (Cardoso, 1975). Os “anéis burocráticos”, de acordo com o sociólogo e ex-presidente, traduzem-se nos mecanismos políticos criados para incorporar as forças econômicas privadas beneficiárias do sistema80 nos processos de decisão necessários para a implementação do projeto em tela. Dessa forma, os “anéis” se diferenciam dos lobbies, na medida em que se estruturam em círculos de poder (informação e pressão) constituídos para viabilizar a articulação entre setores do Estado e setores das classes sociais. Portanto, de acordo com Cardoso (1975: 208), O que os distingue de um lobby é que são mais abrangentes (ou seja, não se resumem ao interesse econômico) e mais heterogêneos em sua composição (incluem funcionários, empresários, militares etc.) e, especialmente, que para ter vigência no contexto político-institucional brasileiro, necessitam estar centralizados ao redor do detentor de algum cargo. Ou seja, repetindo, não se trata de um instrumento de pressão da sociedade sobre o Estado, mas da forma de articulação que sob a égide da “sociedade política”, assegura ao mesmo tempo um mecanismo de cooptação para integrar nas cúpulas decisórias membros das classes acima referidas que se tornam participantes da arena política, mas a ela se integram quae personae e não como “representantes” de suas corporações de classe. Dessa feita, os “anéis burocráticos” formados a partir da expansão da administração indireta, principalmente, através de sua intervenção na economia, institucionalizam um processo de participação política de setores das classes dominantes independentemente da existência de mecanismos de democracia, eliminando, portanto, os espaços políticos possíveis de participação das camadas populares e dos setores democráticos da sociedade. Assim, a privatização do Estado operada nos moldes da década de 1950 expande, intensifica e se institucionaliza (a despeito da inexistência de uma relação orgânica entre a burguesia nacional e o Estado); a burocracia se concentra na sua 80 Cardoso (1975: 206) aponta como beneficiários do regime “os setores industrial exportadores, os setores contratistas de obras, os setores extrativo-exportadores, o grande capital multinacional – ligado às atividades anteriores ou à industria de transformação – e o capital financeiro mobilizado para sustentar a nova etapa de acumulação e do crescimento econômico”. ccxxx dimensão de especialização e de expansão da racionalidade capitalista; e, por fim, fragiliza-se, ainda mais, o desenvolvimento das potencialidades democráticas da ordem burocrática. Dentro desse panorama, consideramos a idéia dos “anéis burocráticos” como fecunda para compreendermos a relação de continuidade e ruptura existente entre as estratégias da década de 1950 e aquelas operadas a partir do golpe de 64. No entanto, é fundamental explicitar que o desdobramento operado por Cardoso, a partir dessa reflexão, não é incorporado nesta tese. Estamos nos referindo à polêmica e equivocada análise sobre a constituição de uma “burguesia de Estado”. Para o autor, nesse processo de expansão das empresas estatais, a elite burocrática se configurará como agente econômico estatal capitalista com interesses próprios competindo com os agentes privados e buscando hegemonia. Como esclarece Coutinho (1980: 104), em seu ensaio crítico sobre a tese da burguesia de Estado, o equívoco de Cardoso se encontra no fato de que ele “não vê a dinâmica básica do CME [Capitalismo Monopolista de Estado], que se funda na articulação orgânica entre Estado e monopólio numa totalidade concreta. Para ele, ao contrário, nosso atual sistema econômico é um ‘sistema híbrido’”. Continuando a análise, o autor verifica que, nos termos indicado por Cardoso, nosso capitalismo apresenta uma contradição interna que se expressa na luta entre as variantes “Capitalismo de Estado” ou “Capitalismo de Empresa”. Em seguida, Coutinho mostra que Cardoso utiliza também a categoria “burguesia de Estado” para compreender a raiz de nosso autoritarismo. Para Cardoso, a razão de ser dos regimes autoritários das sociedades dependentes se encontra nos “interesses sociais e políticos dos estamentos burocráticos que controlam o Estado e que se organizam cada vez mais no sentido de controlar o setor estatal do aparelho produtivo” (Cardoso, 1975: 40). Nesse sentido, o analista aponta que, implicitamente, a concepção do sociólogo é de fundo liberal, “segundo a qual a intervenção estatal é em si autoritária, ccxxxi oposta ao liberalismo (econômico e político) que seria próprio do setor privado” (Coutinho, 1980: 110). Em conseqüência, conforme questiona Coutinho - diga-se de passagem de forma brilhante e com 15 anos de antecipação -, tal concepção, ao estabelecer uma relação orgânica entre expansão estatal e autoritarismo, “não poderia levar água ao moinho dos antiestatistas, dos que defendem (dentro da ‘lógica’ do CME) a devolução à iniciativa privada de todos os setores estatais que cessada a fase de maturação dos investimentos, possam agora gerar diretamente lucros para o setor privado?” Nessa esteira de raciocínio, o crítico observa que a discussão sobre a empresa pública “sem colocar o problema de quem controla o aparelho executivo do Estado (ou seja, sem colocar a questão do CME) significa, em última instância, consciente ou inconscientemente, adotar o ponto de vista do liberalismo ou neoliberalismo econômico”. De forma generosa, o analista finaliza: “Estou certo de que Cardoso recuaria de conclusões desse tipo. Mas sua tese de ‘burguesia de Estado’ – da ligação orgânica entre estatismo e autoritarismo – não conteria as premissas que preparam essas conclusões?” (Coutinho, 1980: 111). Sendo assim, a noção dos “anéis burocráticos” é aqui incorporada como sendo um mecanismo político criado para que o Estado pudesse viabilizar o desenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil, articulando e integrando os diversos capitais. Ou seja, a forma particular encontrada pelo Estado brasileiro para defender os “interesses globais da reprodução capitalista, o que, em nosso tempo, significa objetivamente a reprodução do capital como capital monopolista; e [que] para isso, tem de criar um corpo executivo numeroso e relativamente autônomo, que se legitima em nome da ‘racionalidade técnica’ (...) e se situa acima das ‘paixões’ imediatas dos capitalistas singulares” (Coutinho, 1980: 99). A ampliação da administração indireta, que possibilitou o surgimento dos “anéis burocráticos”, provocará, também, duas outras consequências para a administração pública. ccxxxii A primeira delas refere-se à incorporação de critérios empresariais na administração pública, gerando um processo de competição intra-burocrático, em que a cooperação e a solidariedade entre agências é substituída pelo ethos da concorrência. Por isso, mais uma vez, expressa-se a aparência de um novo modelo de gestão sendo introduzido na administração pública. A segunda conseqüência diz respeito ao tratamento diferenciado que se estabeleceu entre a administração indireta, priorizada para receber investimentos em termos de infra-estrutura, qualificação profissional e remuneração dos servidores e a administração direta, “responsável pelas poíticas públicas mais fundamentais na área social, era sucateada, desmotivada, mal remunerada e desaparelhada, deixando boa parte da população brasileira sem uma ação estatal minimamente razoável” (Torres, 2004: 156 e 157). Essas duas conseqüências serão nefastas para o desenvolvimento e fortalecimento do universalismo de procedimentos e expansão de direitos no interior da ordem burocrática da administração pública. Em primeiro lugar, o espírito de competição e concorrência entre as agências da administração indireta se expandirá para o conjunto da administração pública, prejudicando fortemente a integração e articulação dos diferentes organismos da administração direta que são fundamentais para o desenvolvimento das políticas sociais. Em segundo lugar, o sucateamento da administração direta afetará de forma substantiva as estruturas destinadas à implementação de políticas sociais, preservando as áreas vinculadas à fazenda, relações exteriores e forças armadas. Vejamos as mudanças operadas no campo social, durante o período em questão, buscando compreender a lógica que produziu o sucateamento da área. Em relação à intervenção do Estado na previdência social, foram excluídos das decisões os representantes dos trabalhadores, embora o regime tenha imprimido velocidade à expansão da cobertura previdenciária legal à população. Em ccxxxiii novembro de 1966, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), unificando todos os institutos existentes até então (com exceção do IPASE) e uniformizando os benefícios81. A partir desse momento, a lógica da “cidadania regulada” passa a ser desmontada pela nova estrutura da política social brasileira. Ainda no que diz respeito à previdência social, em 1971 foi criado um programa para atender ao setor rural. Em 1972 instituiu-se a inclusão obrigatória dos empregados domésticos no sistema do INPS. Em 1974, foram também criadas unidades permanentes de planejamento nos ministérios e a carreira de técnico em planejamento. O Ministério do Trabalho e Previdência Social foi desmembrado, dando origem ao Ministério do Trabalho e ao Ministério da Previdência e Assistência Social, ampliando-se, assim, a atuação dos serviços sociais. O Ministério da Previdência e Assistência Social passa a ser a instituição dirigente do sistema de previdência social, com a função de supervisionar e coordenar programas específicos, como o do INPS, bem como de desenvolver programas de previdência e assistência social no âmbito dos planos globais sociais e econômicos. Em 1977, cria-se o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS) com o objetivo de reorganizar e racionalizar a previdência social, que se encontrava em situação crítica em face do extraordinário crescimento dos gastos de atendimento médico do INPS. Com a restrição dos direitos civis e políticos, os direitos sociais implementados pela ditadura militar, por meio de suas políticas sociais, marcaram o início do desmonte do aparato de regulação da cidadania, unificando, uniformizando 81 Cabe registrar que a uniformização dos benefícios ocorreu em 1960 após aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social. ccxxxiv e ampliando os serviços sociais, com certa tendência universalizante. Como não se procedeu a uma alteração substancial das bases de financiamento das políticas sociais, ampliaram-se os serviços de baixa qualidade. Na palavras de Werneck Vianna: ...a ditadura recente disseminou direitos sociais entre os antes excluídos, mas nivelou esta cidadania social em patamares tão baixos que a estigmatizou, afastando do sistema público os trabalhadores formais e a imensa gama de novos segmentos médios assalariados – também criaturas do projeto modernizante” (Werneck Vianna, 1998: 143). Nesses termos, conforme sinaliza a autora, institui-se uma “americanização perversa” na seguridade social brasileira. A universalização das políticas sociais se processa de maneira combinada à mercantilização de serviços. Dessa forma, forjase um sistema público de baixa qualidade para a massa da população brasileira, devido a não priorização de investimentos na estrutura da administração direta ressaltada acima. Por outro lado, cria-se um sistema privado (principalmente nas áreas de saúde e educação) para as camadas média e alta da sociedade. Portanto, desenvolvem-se políticas sociais de tendência universalizante, conduzidas pelo Estado, porém constituídas sobre uma estrutura institucional residual e precária para desenvolver tal tarefa. Nesse sentido, como ressalta Fiori (1995: 131), criam-se as condições para a manutenção da “submissão de certas políticas estatais (sobretudo as sociais) aos interesses de uma ação parlamentar restrita ao varejo da troca de voto pelos serviços e favores públicos...”. Outras características das políticas sociais do período são a fragmentação, a centralização e a burocratização das instituições responsáveis por sua implementação. Destaque-se ainda que, sob a orientação da doutrina de segurança nacional, as políticas sociais e, principalmente, as ações assistenciais servem, sobretudo, para desenvolver a “política do controle” da sociedade (Vieira, 1995), ccxxxv articulando assistência e repressão82, ou como assinala Fiori (1995: 46), “em vez do Estado de bem-estar social, o que temos é uma combinação de paternalismo e repressão”. A não efetivação da universalização dos serviços possibilitou que se mantivesse, dessa forma, a situação de “cidadania invertida” para a grande maioria da população brasileira em combinação com a expansão de serviços sociais públicos de baixa qualidade. Mestriner (2001) destaca, no caso da assistência social, o crescimento da estrutura e racionalidade da área, apontando para uma burocratização contínua do setor, através de instituições organizadas nacionalmente, como a LBA e a então criada Fundação Nacional para o Bem-estar do Menor (FUNABEM). As políticas sociais de baixa qualidade foram organizadas através de uma estrutura administrativa também de baixa qualidade, a expansão de serviços não foi acompanhada por um incremento proporcional nos investimentos para sua implementação, devido à priorização destinada a outras áreas da administração direta (relações exteriores, forças armadas e fazenda), mas principalmente pelo investimento nas organizações da administração indireta responsáveis pela intervenção econômica do Estado. Apesar disso, houve no período uma expansão da estrutura administrativo-burocrática do setor social. Cabe ainda ressaltar que o campo das políticas sociais e, principalmente, na área da assistência social, a articulação com padrão tradicional patrimonialista continuou vigendo como forma de processar a ordem administrativa da área, principalmente através do Conselho Nacional de Serviço Social e de suas relações com o Congresso Nacional e com determinadas entidades filantrópicas (Mestriner, 2001: 176-179). 82 De acordo com Sposati et ali (1998), o processo de negação de assistência, por parte dos profissionais do serviço social, é reforçado nesse período devido aos elementos autoritários e tecnocráticos que são incorporados às ações assistenciais. ccxxxvi Outra dimensão importante para destacar a continuidade da estrutura patrimonialista e clientelista no Brasil refere-se à utilização da patronagem no âmbito da administração direta nos estados. Conforme analisa Abrúcio (2002), os governos militares, apesar de restringirem o poder das esferas estaduais, através da mudança na sistemática orçamentária, que reduzia a interferência do Congresso, e da alteração do quadro tributário, que centralizava os recursos na união, penalizando os entes estaduais, mantiveram a estrutura administrativa estadual como recurso para o clientelismo. Nesse sentido, os governos militares tiveram que controlar os governos estaduais, visto que estes ainda possuíam recursos para influenciar a base local. Assim, conforme destaca Abrúcio (2202: 82): O importante é sublinhar que as Administrações Diretas estaduais continuaram sendo o principal locus de patronagem da esfera subnacional. Por isso, enquanto o Governo Federal tivesse o controle das governadorias o poder de patronagem das Administrações Diretas estaduais seriam usadas a favor do regime; no momento em que o regime perdesse o controle das governadorias, as máquinas estaduais tornariam mais difícil a manutenção do esquema de patronagem baseado na relação União/municípios. Tal situação explicita que, além da forma de recrutamento da administração indireta não exigir seleção por mérito, pelo lado da administração direta, a reforma de 1967 também “não conseguiu introduzir e consolidar o mérito como princípio organizador da nova burocracia” (Rezende, 2004: 58). Nesse quadro, cabe frisar que o processo de privatização do Estado brasileiro ocorre em duas diferentes frentes. A primeira delas refere-se à privatização do Estado operada pelas elites dominantes, principalmente, aquelas vinculadas à burguesia industrial. Nesse caso, as análises de Fiori (1995) e Oliveira (2003) são precisas em relação à articulação estabelecida entre o empresariado industrial nacional, o Estado e o capital estrangeiro. ccxxxvii Conforme a análise dos autores, o empresariado nacional optou por uma relação de subordinação ao capital estrangeiro em detrimento de uma relação orgânica nacionalista e estatizante com o Estado Nacional. ...o Estado atuou deliberadamente no sentido de privilegiar o capital, poderia ter atuado transferindo tecnologia para as empresas de capital nacional. Tal não ocorreu (...). É preciso pensar que a figura do Estado onipresente nunca foi pensada, nem era da perspectiva ideológica do empresariado industrial nacional (Oliveira, 2003: 77). ... um Estado que nunca conseguiu ir além dos limites que lhe foram impostos por um empresariado que, contraditoriamente, conseguiu ser profundamente antiestatal, não obstante sua longa história de anemia schumpeteriana e dependência do próprio Estado (Fiori, 1995: 58). Essas análises deixam explícito que a burguesia brasileira não quis se aliar ao Estado para promover o desenvolvimento com bases nacionais. Um dos motivos, certamente, refere-se ao fato de que se aliar ao Estado aumentaria a possibilidade de uma incorporação mais intensa da classe trabalhadora que, na segunda metade dos anos de 1950 e na década de 1960 já se manifestava de forma mais crítica e combativa em relação à estrutura de super-exploração da força de trabalho e ao formato de incorporação regulada e seletiva, via relação estabelecida com o Estado, que demarcavam as possibilidades restritas de acesso às riquezas produzidas. Assim, como destaca Fernandes (1981: 346): As classes e estratos de classe burgueses patrocinaram (...), portanto, um intervencionismo estatal sui generis. Controlado, em última instância, pela iniciativa privada, ele se abre, em um pólo, na direção de um capitalismo dirigido pelo Estado, e, em outro, na direção de um Estado autoritário. Ambas as noções são ambíguas. Contudo, elas traduzem uma realidade concreta. O Estado adquire estruturas e funções capitalistas, avançando, através delas, pelo terreno do despotismo político, não para servir aos interesses “gerais” ou “reais” da Nação, decorrentes da intensificação da revolução nacional. Porém, para satisfazer o consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar viabilidade histórica ao desenvolvimento extremista, a verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista da periferia. Como vimos, o processo de privatização do Estado pelas elites empresarias se processou, primordialmente, através dos chamados “anéis burocráticos”, cujos “canais informais”, criados para efetivar a influência do empresariado nas definições ccxxxviii sobre as orientações do projeto industrializante, possuíam um forte caráter tradicional e patrimonialista, apesar de a estrutura administrativa global não poder ser confundida com uma ordem patrimonialista, na medida em que esses canais viabilizavam, em última instância, uma racionalidade para o desenvolvimento da fase monopólica do capitalismo. Ou seja, esses mecanismos propiciaram o desenvolvimento do capital em seu conjunto, através da ação de uma burocracia competente, racional e especializada para implementar os objetivos em tela. Portanto, esses mecanismos, embora se utilizem de elementos da ordem tradicional, não se configuram, em seu conjunto, como uma administração patrimonialista. Nesse contexto, de acordo com Fiori (1995: 78-82), processa-se a “rejeição de uma via prussiana clássica”, pois marcada por ambigüidades: antiestatismo e desenvolvimentismo; desorganização da via desenvolvimentista, através da substituição do setor financeiro privado pelo financiamento estatal, que levou ao endividamento e à especulação improdutiva; o fio da navalha de uma aliança conservadora e de uma estratégia econômica liberal-desenvolvimentista, que possibilitou, por um lado, que a ação estatal garantisse a ordem, os subsídios, os insumos e a infra-estrutura, mas que, por outro lado, impediu a intervenção do Estado para realizar a monopolização e centralização financeira necessárias para a expansão capitalista; inexistência de solidariedade efetiva entre o empresariado e o Estado e a postura predominantemente predatória do primeiro em relação ao segundo83. O outro processo de privatização do Estado ocorre através da manutenção da lógica tipicamente patrimonialista, senão como lógica hegemônica, pelo menos como uma dimensão fortemente estruturada, principalmente nos setores da administração pública responsáveis pela implementação de políticas sociais e nas administrações diretas estaduais. No sentido inverso da privatização operada via agências vinculadas às questões relacionadas à política econômica, essa estrutura, que preserva o 83 Behring (2003: 102), baseada em Florestan Fernandes, resume a situação da seguinte forma: “Com a opacidade do regime militar, abriam-se novas condições para as elites associarem-se mais intimamente com o capital financeiro, reprimirem a subversão da ordem e se literalmente do Estado, num contexto de crescimento acelerado e sob controle”. ccxxxix patrimonialismo na esfera das políticas sociais e na administração direta subnacional, será desenvolvida incorporando, também, traços racionais e de especialização, devido ao crescimento da máquina pública e à necessidade de organizar determinadas ações que efetivamente produzam impacto social junto à população. Portanto, mesmo nessa área onde o patrimonialismo continua fortemente presente, isso não acontece isoladamente, muito pelo contrário, a dimensão burocrática da administração pública se expande consideravelmente, apesar de, nesse quadro, imiscuir-se com o clientelismo ou se afastar da política, evocando ser a portadora da universalidade ou da neutralidade técnica. Nesse cenário, dois aspectos podem explicar a distância da burocracia da política/democracia: a) o fato de seu desenvolvimento no Brasil estar relacionado às ditaduras Vargas e dos militares (Torres, 2004: 152 e Nogueira, 1998: 92) e b) a estratégia que a burocracia utilizou para se distinguir da estrutura patrimonialista/clientelista: o afastamento da política entendida (de certa forma com razão, apesar de uma concepção equivocada) como o espaço do fisiologismo. Nogueira (1998; 98), em sua análise sobre a questão, mostra que a dimensão racional-legal burocrática da ordem administrativa brasileira acabou reforçando o papel do Estado como interventor na sociedade, porém sem estabelecer uma canal transparente e universalista com a sociedade, constituindo uma via não democrática de intervenção. Nesse sentido, a democracia se transformou em retórica liberalpatrimonialista, pois pregava a não intervenção do Estado (maior liberdade do indivíduo) e/ou o estabelecimento de uma relação mais próxima do Estado com a política, porém com o intuito de privatizá-lo no sentido tradicional. Assim posto, o resgate da análise de Fernandes (1981), realizada por Behring (2003: 101), mostra-se extremamente pertinente. A autora relembra que, para o sociólogo, assim como para Caio Prado, “o horizonte histórico da burguesia brasileira dificilmente seria/será suficientemente amplo, no sentido da realização de uma revolução nacional democrática”. ccxl Historicamente, isso se comprovou na construção do Estado brasileiro. A burguesia sempre utilizou o Estado nos momentos em que ele poderia garantir seus privilégios. Reforçou a estruturação do Estado para atender a seus interesses particularistas com pouca atenção à incorporação das massas. Os impulsos democratizadores sempre foram combatidos e, a cada momento de acirramento do combate, as estratégias escolhidas pelas classes dominantes para o enfrentamento da situação eram as manobras autoritárias e ditatoriais. A conseqüência dessas estratégias era o reforço do Estado para controlar as pressões democratizadoras num quadro de “hegemonia burguesa crítica” (Vasconcelos, 1989). Portanto, o Estado sempre foi utilizado pelas classes dominantes como um instrumento de garantia de seus privilégios e, nesse sentido, era defendido. Em termos gerais, poderíamos sintetizar o período militar como sendo o momento em que fica explicitado que a estrutura do Estado e da administração pública, no quadro da expansão capitalista brasileira, organiza-se de forma que os interesses da classe trabalhadora ficassem subalternizados. O significado da ditadura militar e seu processo de modernização conservadora implicou uma liberalização da administração pública (Decreto-lei n.º 200), um enrijecimento burocrático e fortalecimento do Estado para o capital e uma expansão de baixa qualidade com burocracia precária para a área social. Resumidamente, no contexto do desenvolvimento e consolidação da fase monopólica do capitalismo brasileiro (1950-1979), a materialidade da configuração da administração pública brasileira pode ser vista da seguinte forma: a) para as questões de segurança, relações internacionais e questões fiscais – BUROCRACIA valorizada e reconhecida; b) para a questão social – Mix de BUROCRACIA centralizadora, autoritária e sucateada, fundada no corporativismo estatal (Estado controlando as instituições da sociedade civil, principalmente as vinculadas ao trabalho, para viabilizar a incorporação seletiva e regulada) e PATRIMONIALISMO, fundado na estrutura clientelista (para garantir a lealdade política de setores tradicionais, através da relação entre Poder central-Poder local ccxli e Poder local-população - clientela); c) para a intervenção nas questões diretamente econômicas (política mometária, fiscal, industrial) - BUROCRACIA INSULADA, baseada no corporativismo estatal (Estado privatizado por interesses do capital – a expressão material dessa estrutura burocrática são as administrações indiretas criadas no regime militar e, conseqüentemente, a formação dos “anéis burocráticos”). O Estado brasileiro, no contexto do processo de industrialização e urbanização (pós-1930), estrutura-se como o protagonista central desse processo de forma autoritária (era Vargas e ditadura militar). Nesse sentido, hipertrofia-se e beneficia as elites (velhas-oligárquicas e novas-burguesas) no desenvolvimento desse projeto. Por outro lado, a racionalidade burocrática nunca fora fortemente estruturada no País, convivera com patrimonialismo e evitara a “política”, apesar de ter criado mecanismos para sofrer influência das elites econômicas. Como foi possível constatar, o processo de desenvolvimento da administração pública, apresentado e analisado nesta seção, longe de se configurar como uma continuidade estática dos traços presentes desde a época colonial até a finalização da República Velha, manifesta-se num movimento de continuidade e ruptura, em que o novo se apresenta, principalmente, nas seguintes dimensões: a) na conquista da hegemonia, no seio da classe dominante, de um projeto tipicamente burguês de industrialização e urbanização do país; b) na incorporação da classe trabalhadora, mesmo que seletiva e parcial, até os anos 1960, e universal, com baixa qualidade e repressiva, pós-1964 e c) na ampliação da esfera burocrática da administração pública - fosse para a implementação e desenvolvimento da estrutura econômica capitalista, fosse para a organização e expansão das políticas sociais -, a qual se tornou predominante, a partir da década de 1960 . Nesse contexto, no Brasil, não houve o problema de se ter Estado frágil, mas sim forte para a oligarquia e, posteriormente, para a burguesia, e nunca para a classe trabalhadora, ou, pelo menos, que procurasse atender, de forma mais substantiva ou conseqüente, aos interesses dessa classe. Assim, nosso problema se expressou na ccxlii ausência de um Estado que assumisse um papel mais forte de mediador dos interesses da classe trabalhadora e não apenas de agente que reforça a ação voltada para subjugar as camadas subalternas, além de ter desenvolvido uma burocracia forte para as finalidades econômicas capitalísticas e frágil para implementar políticas sociais (Nogueira, 1998: 12-14). Esse tipo de configuração estatal brasileira levou Simom Schwartzman (1982) a classificar a dominação em nosso país como “neopatrimonial”. Trata-se de um tipo de dominação moderna, exercida pela burocracia e a chamada classe política, que se distingue, por um lado, da dominação racional-legal, devido à estruturação de um papel mínimo ou inexistente do contrato social e da legalidade jurídica, típicos da dominação tradicional, e, por outro lado, distingue-se do patrimonialismo, na medida em que possui racionalidade técnica. A ênfase dada por Schwartzman, em relação à concepção neopatrimonial se configurar como um sistema moderno de dominação, recai sobre a dimensão contratual da dominação e não na racionalidade técnica do sistema. Portanto, a denominação neopatrimonial apresenta a dimensão contratual/legal como determinação central do sistema moderno e não a da racionalidade técnica (a especialização). A questão problemática, nos termos colocados pelo autor, refere-se, como bem sinaliza Cohn (1982), à utilização da noção de “moderno” no mesmo nível analítico de “tradicional”, quando Weber trabalha com “tradicional” e “racional-legal” como níveis analíticos típico-ideais e “moderno” numa perspectiva empírica (Estado moderno). Essas inversões de níveis distintos de categorias de análise, conforme aponta Cohn (1982), deveriam passar por um processo de “argumentação muito mais cuidadosa do que a adotada para acomodar o esquema construído por Schwartzman no quadro teórico weberiano. Trata-se de tarefa intricada que ele nem chega a contemplar”. Outro aspecto a destacar diz respeito ao fato de Weber trabalhar a dominação tradicional como fundada nas relações de lealdade pessoal baseadas na tradição, que ccxliii podem ser operadas num sistema com nível maior (feudalismo) ou menor (patrimonialismo) de contratualidade. Assim, parece-nos equivocado o tratamento dado à dimensão tradicional da dominação no caso brasileiro, na medida em que a inexistência ou existência ínfima do contrato significa a manutenção da discricionaridade pessoal baseada nos laços de lealdades advindos dos mecanismos tradicionais da ação social, os quais tornam a dominação legítima, posto que, do contrário, teríamos uma dominação ilegítima (sem relação formal/contratual e sem relação de vínculos pessoais de lealdade), saindo completamente da matriz weberiana. Contraditoriamente a essa observação, o termo “neopatrimonialismo” acaba induzindo uma análise que relativiza o papel e a função que a burocracia desempenhou no Brasil em relação à expansão do capitalismo brasileiro desde sua fase de industrialização restringida até a consolidação monopólica. Por sua vez, weberianamente falando, o sistema de racionalidade típica do Estado moderno está diretamente vinculado à criação das condições para o desenvolvimento capitalista, através de uma ordem administrativa burocrática. Dessa maneira, parece correto afirmar que a determinação central da dominação, no contexto da modernidade, é a racionalidade que possibilita a implementação e desenvolvimento do capitalismo, como mais ou menos presença de elementos que constituem sua formação típicoideal. Nesse sentido, a identificação de traços da dominação tradicionalpatrimonialista presente numa ordem administrativa vinculada ao processo de desenvolvimento capitalista já se encontra incorporada na proposição weberiana se entendermos a utilização dos tipos ideais84. Sendo assim, concordando com Gabriel Cohn (1982), consideramos muito mais pertinente, do ponto de vista metodológico, trabalharmos os tipos-ideais de dominação desenvolvidos por Weber como instrumento para explorar a análise de uma dada realidade que para caracterizar um dado sistema político. Nesse sentido, o conceito de “neopatrimonialismo”, criado por Schwartzman, tende a reduzir as 84 Ver nota 46. ccxliv possibilidades analíticas que a utilização dos tipos ideais weberianos permite efetivar. Em outras palavras, o conceito de “neopatrimonialismo” é mais pobre, do ponto de vista de sua capacidade heurística, do que os conceitos de Weber, na medida em que o novo conceito sintetiza diferentes aspectos de tipos ideais distintos elaborados pelo sociólogo alemão, colocando-os sobre um mesmo rótulo. Esse procedimento, por um lado, produz uma criação, no mínimo, polêmica, a qual mereceria um maior cuidado conceitual, como observa Cohn (1982). Por outro lado, ao sintetizar num conceito diferentes traços típico-ideais, Schwartzman inviabiliza a exploração da riqueza dos tipos ideais como mecanismos de interpretação da realidade, “dada pelo estabelecimento de relações significativas entre tipos” (Cohn, 1982). Portanto, para evidenciar os diferentes traços da administração pública brasileira, parece muito mais fecundo, em vez de criar novas nomenclaturas, que mais obscurecem que esclarecem a realidade social, trilhar pelo caminho proposto de interlocução com diferentes analistas, visando à apreensão das determinações constitutivas da essência de nossa ordem administrativa, ou seja, seu movimento interno, suas conexões, estruturas e contradições, para que seja possível captar os elementos constituintes desse fenômeno, a fim de apreender o objeto em sua totalidade. Por fim, para concluir nossa crítica ao “neopatrimonialismo”, cabe registrar que o ponto de partida do conceito desenvolvido por Scwartzman vai de encontro à perspectiva adotada neste trabalho, na medida em que relaciona o exercício da dominação a uma “classe política” e à “burocracia”, não estabelecendo articulações claras entre essa elite dominante e os interesses de classes, autonomizando radicalmente a política, de tal forma que parece considerar que a “classe política” e a “burocracia” se encontram acima da sociedade. Assim, para finalizar o presente capítulo, cabe sintetizarmos as reflexões desenvolvidas até aqui. Nesse sentido, é fundamental, primeiramente, retomarmos a análise sobre a formação do Estado brasileiro e a estruturação de sua ordem ccxlv administrativa, lembrando que a orientação da industrialização, desde a fase inicial até a consolidação monopólica, pautou-se na perspectiva da “dupla articulação” e da exclusão das camadas populares. Tal situação implicou, na dimensão política, a formação de um pacto conservador de dominação, a partir do comportamento presente na esfera econômica. Dessa forma, a relação arcaico-moderno aparece também na configuração do Estado brasileiro e na constituição da ordem administrativa. Portanto, a ordem política se entrelaça dialeticamente com os rumos do desenvolvimento do capitalismo brasileiro, influenciando as decisões econômicas, visando à garantia da manutenção do poder dos setores agrários tradicionais combinado com o da emergente burguesia. O Estado e a administração pública, então, vão expressar essa hegemonia. A coalizão das classes dominantes, composta pelos setores agrário e industrial, através da estrutura de dominação, agirá para reproduzir a ordem estabelecida, incorporando, parcialmente, os setores populares, de acordo com a pressão existente e importância para a acumulação. Do ponto de vista da ordem administrativa, articulam-se elementos “novos” (burocráticos) e “arcaicos” (patrimonialistas) como forma de garantir o pacto de dominação conservador existente, via implementação das ações do Estado. Logo, a ordem administrativa é composta de um imbricação entre a dimensão patrimonialista e a burocrática que, dialeticamente, são funcionais, do ponto de vista estrutural, para a operação de dominação presente. Por um lado, é necessário formular e implementar o projeto de expansão capitalista. Necessita-se, então, de um quadro administrativo especializado e profissional, assim como certas regras e normas bem definidas, ou seja, necessitase de burocracia. ccxlvi Entretanto, esse planejamento deve garantir a manutenção e a reprodução dos interesses das classes dominantes. Nesse sentido, criam-se canais informais de comunicação entre elites empresariais e a burocracia. Como o projeto é de industrialização, faz-se necessário atender a determinados interesses das classes trabalhadoras. Assim, a administração pública deve possuir mecanismos burocráticos para viabilizar o atendimento de tais interesses, desde que não estejam estratégica e diretamente ligados aos centros de decisão dos projetos de expansão capitalista, nem que possam interferir significativamente em sua condução. Simultaneamente, os setores tradicionais, como participantes do pacto de dominação, apresentam-se como fiadores do projeto de expansão capitalista, apesar de não serem mais a fração dominante. Sendo assim, a ordem administrativa do Estado deverá organizar um espaço para a continuidade da influência dos setores tradicionais na condução política do projeto de industrialização. Dessa forma, a dimensão patrimonialista se apresenta como necessária – embora deixe de ser hegemônica - para a manutenção da estrutura de dominação da sociedade brasileira. Nesse sentido, o patrimonialismo se configura como uma determinação central do nosso modelo de desenvolvimento capitalista, não se constituindo como um obstáculo para tal. Portanto, não se apresenta como um elemento de atraso que deve ser superado. Dessa maneira, a ordem administrativa brasileira vai ser uma imbricação de patrimonialismo e burocracia não por uma dualidade entre o “arcaico” e o “novo”, mas sim pela necessidade de ter uma ordem administrativa adequada à lógica de dominação e à estrutura de poder forjada por nossa “revolução burguesa”. Nessa perspectiva, o patrimonialismo na ordem administrativa brasileira não ccxlvii se configura como uma dimensão cultural que precisa ser modernizada para a superação do “velho” (tradicional). Ele se configura como elemento constituinte da particularidade de nossa administração pública, advinda da particularidade do nosso pacto de dominação conservador, responsável pelo projeto de implantação, desenvolvimento e consolidação das relações capitalistas no Brasil. Essa argumentação ainda pode ser reforçada, do ponto de vista teórico, a partir de Weber. Segundo o autor, como já ressaltado anteriormente, os tipos de administração estão vinculados a determinadas estruturas de dominação e, do ponto de vista metodológico, os tipos puros não existem, são apenas recursos para interpretar a sociedade. Portanto, se temos no Brasil uma estrutura de dominação que articula o tradicional com o racional, a ordem administrativa expressará tal articulação. Assim sendo, o desenvolvimento do Estado moderno no Brasil e a ordem administrativa burocrática não foram fortes na perspectiva da universalização de direitos, devido à coalizão conservadora das classes que conduziu o projeto de expansão das relações capitalistas e à parcialidade da racionalidade burocrática desenvolvida. A estruturação e o desenvolvimento da administração pública brasileira para implementar o projeto de industrialização não efetivou plenamente uma estruturação burocrática. Por um lado, a ordem administrativa contemplou a articulação com o patrimonialismo/clientelismo, visando garantir a manutenção dos interesses dos setores tradicionais e propiciando sua participação na estrutura de dominação. Por outro lado, para atender aos interesses imediatos da burguesia industrial nascente, organizou e expandiu o “insulamento” e os “anéis” burocráticos. Por essas razões, o Estado e a burocracia no Brasil não produziram ampliação significativa de direitos. ccxlviii No entanto, o Estado e a burocracia, no período em análise, mesmo nas condições brasileiras de reduzida permeabilidade para as classes trabalhadoras e produto de uma coalizão conservadora de classes, atenderam a determinados interesses das classes trabalhadoras. Sendo assim, sob o processo de desenvolvimento e consolidação do projeto de expansão das relações capitalistas no Brasil, conduzido por um pacto de dominação conservador, que produziu uma determinada particularidade de Estado e de administração pública, será formulado e implementado no País o projeto neoliberal de reforma do Estado e de reforma administrativa, os quais analisaremos no capítulo seguinte. ccxlix CAPÍTULO IV - NEOLIBERALISMO E CONTRA-REFORMA ADMINISTRATIVA: BUROCRACIA MONOCRÁTICA E PATRIMONIALISMO EM TRANSFORMISMO 4.1. Antecedentes: anos 1980, início dos 1990 e a resistência ao modelo neoliberal A crise mundial que eclodiu no início dos anos 1970 já se manifestava no final dos anos 1960, a partir da desaceleração do crescimento econômico (crise de superprodução), do déficit comercial americano e da intensificação, no mercado financeiro, das apostas contra o dólar, devido à impossibilidade de o governo americano sustentar simultaneamente o valor da moeda e a competitividade das exportações norte-americanas. No entanto, a crise só se expressa claramente quando da ocorrência de dois fatos: o fim da conversibilidade do dólar, efetivada pelos Estados Unidos para recompor sua balança comercial, e o primeiro choque do petróleo. Assim, se projeta o fim da paridade fixa entre o dólar e o ouro (ruptura do acordo de Bretton Woods), gerando uma crise monetária internacional e, devido ao choque do petróleo, gera-se uma crise energética. Nesse cenário, Japão e Alemanha, como importadores de petróleo e exportadores de bens de capital, fazem a reestruturação produtiva e elevam os preços dos bens de capital para fazer frente ao contexto de desvalorização do dólar e aumento do preço do petróleo (Tavares e Fiori, 1993 e Teixeira, 2000). Os EUA importam petróleo e exportam bens de capital. Não fazem reestruturação, atuam na desvalorização da moeda para controlar o balanço de pagamentos, através da melhora das exportações. Entretanto, esse controle é frágil, pois, ao desvalorizar o dólar para viabilizar preços competitivos, provocam, simultaneamente, a fuga de capital, prejudicando as contas de capitais. Nesse quadro, o Brasil, apesar de exportar produtos agrícolas e manufaturas, sofre duplamente: importa petróleo e importa bens de capital. Simultaneamente, o superávit obtido pela OPEP, devido ao aumento do preço do petróleo, amplia o investimento no mercado financeiro europeu. O euromercado, ccl que já vinha crescendo devido ao crescimento econômico produzido a partir dos anos 1950, se ampliou com a entrada dos dólares da OPEP. Dentro desse panorama, devido ao excesso de liquidez, o mercado financeiro europeu (euromercado) promoveu empréstimos a juros baixos, baseados em taxas flutuantes. No Brasil, com a "crise do milagre", esboçada a partir de 1973, vindo no contexto da crise mundial do capitalismo, o controle social imposto pelo regime militar começa a entrar em declínio. No entanto, no início da década de 1970, o Brasil conseguira passar pela crise econômica, através do processo de endividamento externo. O endividamento serviu para enfrentar a elevação dos preços do petróleo e dos bens de capital e continuar estimulando e apoiando o crescimento econômico pautado no processo de industrialização85. “Com os empréstimos os países pobres e em desenvolvimento compravam produtos das economias desenvolvidas, azeitando economias que estavam em recessão e contribuindo para que elas suportassem melhor a crise” (Gonçalves e Pomar, 2000: 12). Nesse contexto, o processo de "modernização conservadora", implementado pela ditadura militar, tanto no período conhecido como "milagre econômico" quanto ao longo do governo Geisel, produziu a aceleração do processo de industrialização e urbanização da sociedade brasileira. Com isso, trouxe à tona um novo quadro de relações sociais e de organização sociopolítica. O novo operariado, o trabalhador rural sindicalizado, a nova classe média e os moradores dos bairros populares, entre outros, complexificaram o tecido social do Brasil pós1970. 85 De acordo com Gonçalves e Pomar (2000: 11), “a dívida passou de US$ 13,8 bilhões de dólares (fins de 1973) para US$ 52,8 bilhões de dólares (em 1978)”. ccli A estruturação do mercado de trabalho, realizada a partir de 1930 até 1980, efetivou-se através da ampliação dos empregos assalariados, sobretudo dos registrados e da redução de ocupações por conta própria, sem remuneração e do desemprego. Segundo Pochmann (2002: 68): Para uma taxa média anual de expansão da População Economicamente Ativa de 2,6% entre 1940 e 1980, o emprego assalariado com registro aumentou 6,2%. No mesmo período, o emprego assalariado total cresceu a uma taxa média anual de 3,6% e o emprego sem registro a uma taxa de 0,6%, enquanto o desemprego variou 0,5%, por conta própria 1,8% e o sem remuneração 0,6%. Essa expansão “ocorreu, em grande medida, por força da implementação e consolidação do projeto de industrialização nacional, bem como devido à institucionalização das relações de trabalho, compartilhada pelo conjunto de normas legais difundidas a partir de um código de trabalho no país (CLT)” (Pochmann, 2002: 70). Em outras palavras, conforme assinala o autor, as políticas macroeconômicas voltadas para a expansão produtiva e exportação viabilizaram, de forma permanente, o crescimento do número de ocupações. Fiori (1993: 141) corrobora com essa análise: ... como resposta ou ‘ajuste’ diante do primeiro choque energético, o governo Geisel (1974-1978), através de seu II Plano Nacional de Desenvolvimento, desencadeia um ambicioso programa destinado a completar a industrialização pesada e redirecionar a economia brasileira para as exportações. Entretanto, apesar da intensa estruturação do mercado de trabalho no período 1940/1980, nossas taxas sempre foram abaixo das taxas dos países desenvolvidos. Nestes, a taxa de assalariamento urbana passava de 80% em 1980. No caso brasileiro, a taxa passou de 42% (1940) para 62,8% (1980) (Pochmann, 2002: 70). Outro aspecto que marca a estruturação do mercado de trabalho brasileiro, como destacado anteriormente, é o fato de ter sido realizada cclii sob um processo de grande concentração de renda e riqueza86. Ou seja, a situação de desigualdade social existente no país se manteve mesmo no período de estruturação do mercado de trabalho. Oliveira (2003: 100-105) demonstra que a situação de manutenção da desigualdade social durante a expansão capitalista no período pós-1964, mais precisamente a partir de 1967, explica-se pela necessidade de se realizar um processo de acumulação compatível com a estratégia de monopolização e aceleração da industrialização do período, através do aprofundamento da exploração do trabalho como mecanismo central para resolver as contradições entre relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas, na medida em que é “necessário aumentar a taxa de lucros, para ativar a economia, para promover a expansão” (idem: 100). Nesse sentido, afirma o autor, o aprofundamento da taxa de exploração do trabalho se apresenta como requisito estrutural da expansão monopólica: Levado inicialmente pelas exigências da aceleração dos anos 1957/1962 a aumentar a taxa de exploração do trabalho, a fim de financiar internamente a inversão, o sistema caminhou para um conflito entre as relações de produção e forças produtivas, cujo desenlace foi aprofundar, como condição política de sua sobrevivência (...). No entanto, isso seria apenas uma “morbidez” do sistema, se não fosse um requisito estrutural. Contudo, essa necessidade estrutural do desenvolvimento do capitalismo brasileiro só pôde se efetivar pelo fato de não existir escassez de trabalho e nem organização autônoma e forte o suficiente dos trabalhadores. Dessa feita, são criadas, também, do ponto de vista do trabalho, as condições para aprofundar a exploração87. 86 Oliveira (2003: 97), baseado em trabalho de João Carlos Duarte, mostra o aumento de concentração de renda no Brasil: “enquanto o 1% superior em 1960 se apropriava de 11,72 da renda total, em 1970 essa porcetagem aumenta para 17,7%; os 5% superiores em 1960 detinham 27,35%, enquanto em 1970 passam a reter 36,26%. Em contrapartida, et pour cause, os 40% inferiores da população participavam em 11,20% da renda total, enquanto em 1970 sua participação decai para 9,05%.” 87 Segundo Oliveira (2003: 111-113), apenas dois fatores podem se opor ao movimento de concentração de renda e riqueza: a escassez de trabalho e a organização da classe trabalhadora. Conforme analisa o autor , no período em questão, nenhum dos dois fatores estão presentes no Brasil. ccliii Nesse contexto, é reafirmada a opção da burguesia brasileira de se aliar ao capital internacional, mantendo, mesmo que de forma subordinada, as oligarquias agrárias no poder, em detrimento de uma aliança progressista com a classe trabalhadora voltada para um projeto nacional-democrático. Portanto, a emergência desse novo quadro sociopolítico não eliminou a existência da tradição arcaica e partrimonialista das instituições, da cultura política e dos procedimentos que sempre inviabilizaram a possibilidade de a sociedade brasileira romper e superar o seu passado escravagista e oligárquico. Entretanto, esse cenário desenhado após os anos de 1970 abre um campo de potencialidades significativas para a redefinição da correlação de forças no Brasil. Somou-se à insatisfação econômica a indignação política com o sistema ditatorial instaurado no País. Começavam a aumentar as pressões da sociedade sobre o governo militar. Esse contexto social de insatisfação e indignação crescente e a ascensão de um militar contrário aos adeptos da “linha dura” possibilitou o estabelecimento, pelo governo, de um Projeto de Abertura. No entanto, longe de se pretender o fim da ditadura militar num curto espaço de tempo, esse projeto pretendia uma abertura "lenta, gradual e segura". Ou seja, uma forma de tentar garantir o controle social, durante o processo de abertura, para manter o status quo dominante voltado para a consolidação da fase monopólica do capitalismo brasileiro. Para expressar o quadro de insatisfação da sociedade, as eleições parlamentares de novembro de 1974 vão se configurar como uma manifestação plebiscitária contra o regime. Grande parte do eleitorado brasileiro, restrito ao bipartidarismo, transformou estas eleições num plebiscito contra o governo, num enorme protesto social, votando maciçamente no MDB. Este ganhou em 16 estados, principalmente nos das regiões sul e sudeste e na maioria dos grandes centros urbanos. sua representação no congresso subiu de 94 para 185 cadeiras - mais de um terço do total -enquanto a da Arena caiu de 282 para 245 cadeiras (Habert, 1992: 47). ccliv Além desse momento, as eleições de 1978 também se transformaram numa grande manifestação de apoio ao MDB e rejeição ao regime militar. Inserido nesse panorama social, político e econômico, vamos encontrar o ressurgimento dos movimentos sociais no Brasil. Esses atores entram em cena na luta pela redemocratização do País, nas suas mais diversas dimensões (econômica, social, política, cultural...), a partir da metade da década de 1970. Como sintetiza Habert: "Para a classe trabalhadora, a crise significou o aprofundamento do arrocho salarial, do desemprego, da miséria; enfim o agravamento das suas condições de vida e de trabalho. Esta situação, combinada às mudanças da conjuntura política de abertura da segunda metade da década e das importantes transformações ocorridas na classe trabalhadora pós-64, foi o ponto de partida para o ressurgimento dos movimentos populares (a partir de 1975) e do movimento operário ( a partir de 1977)" (Habert, 1992: 46). O final da década de 1970 e os anos 1980 formam o palco do desenvolvimento desses “novos” movimentos no Brasil. Grupos organizados reivindicando melhores condições de educação, saúde, moradia, urbanização - além de buscarem fortalecer suas próprias identidades (mulher, índio, negro...) e lutarem a favor dos direitos humanos e de preservação do meio ambiente -, combinados com o surgimento de um movimento sindical autônomo e combativo e de partidos políticos com base social, expressam, sem dúvida alguma, o fortalecimento da sociedade civil brasileira. O final dos anos 1970 (1978 e 1979) é marcado pelas greves do ABC, mobilizadas por lideranças autônomas, vinculadas à construção do novo sindicalismo. Em 1979, Geisel faz seu sucessor. O General João Batista de Figueiredo assume a Presidência da República, com o compromisso de levar adiante o projeto de abertura política. Numa tentativa de dividir a esquerda para garantir o controle do processo de transição, o governo militar enviou ao Congresso, em 1979, o projeto de lei que reformulava o sistema cclv partidário, terminando com o bipartidarismo. No entanto, apesar do sistema pluripartidário, a oposição, mais uma vez, saiu vitoriosa das urnas em 1982. Ainda em 1979, o Governo enviou ao Congresso o projeto de lei referente à anistia, que foi aprovado, possibilitando a volta ao Brasil de diversas lideranças políticas. Desse modo, o projeto de abertura do governo, iniciado em 1974, transformou-se, como bem destacou Coutinho, num processo de abertura, com ampla mobilização social, no qual as eleições se constituíram como momentos de pressão para acelerar a transição democrática e todo o processo de luta acabou se configurando como uma forma de provocar a ampliação da abertura proposta pelos militares (Coutinho, 1993). Entretanto, esse período (pós-1974 até início dos anos 1980) não foi somente de vitórias das forças democráticas; muito pelo contrário, ele foi entrecortado por diversos momentos de retrocesso. O “Pacote de Abril”, o assassinato de Herzog e Fiel Filho, as bombas nas sedes da OAB e ABI, o caso do Riocentro são alguns exemplos que mostram que o processo de democratização não foi linear. No final dos anos 1970, a crise internacional que se esboçara em 1973 aflora abruptamente. A política de desvalorização do dólar não garantiu o equilíbrio da economia dos EUA, na medida em que a indústria americana continuou perdendo competitividade em relação ao Japão e à Alemanha, devido à reestruturação produtiva operada por esses países. Por outro lado, a desvalorização estava levando a um enfraquecimento da moeda americana, fazendo com que ela fosse perdendo sua função de reserva de valor. Nesse contexto, houve nova elevação dos preços do petróleo e uma elevação das taxas de juros americanas, visando atrair o fluxo de recursos para os EUA. Simultaneamente, os EUA promoveram uma valorização do dólar na ordem de 50%, baseada na sua política de juros altos e controle dos agregados cclvi monetários (aumento das reservas compulsórias exigidas dos bancos; imposição de reservas sobre a captação de empréstimos em eurodólar por parte dos bancos; bloqueio dos ativos iranianos, devido à invasão da embaixada americana no Irã e controle creditícios). Esse processo de retomada do controle monetário pelos EUA durou quatro meses em que o FED e as grandes corporações efetivaram uma verdadeira queda-de-braço (Teixeira, 2000: 7-8). Tais medidas tiveram algumas conseqüências, quais sejam: a revalorização do dólar; a implosão do Euromercado - juros altos americanos provocam fuga de recursos da Europa para os EUA -; a perda da “aura de inatingibilidade” do euromercado em relação às crises políticas, devido ao bloqueio dos ativos iranianos; a reconcentração da riqueza nos EUA; a crise da dívida externa na periferia - com a fuga dos recursos para os EUA, ocorre uma crise bancária na Europa, forçando a cobrança dos devedores e a elevação das taxas de juros (que eram flutuantes), produzindo, dessa forma, a crise da dívida. Nesse quadro a economia americana e mundial entram em recessão controle de créditos, flutuação cambial e juros altos (a Europa tem que elevar seus juros para atrair competitivamente o capital). Nesse sentido, conforme sinaliza Tavares (1993a: 22-23): ... o desajuste global do balanço de pagamentos dos EUA foi acompanhado de um desenvolvimento descontrolado do sistema financeiro privado internacional, que agravou a instabilidade do sistema global, tornou independente as políticas macroeconômicas de ajuste, e teve impactos geradores de crises financeiras em vários Estados Nacionais, tanto no centro como na periferia. A crise da dívida externa será a expressão da crise mundial nos países periféricos. O padrão de renegociação se altera radicalmente em relação a 1930, com prejuízo para os países devedores88. 88 Em 1930 o problema da crise da dívida também já havia ocorrido, porém foi “resolvido pela interrupção do pagamento da dívida, negociações de governo a governo, e posterior desvalorização ou liquidação dos títulos dos países devedores. Desta vez, ao contrário, produziu-se uma revalorização do estoque total da dívida (...) Cabe notar ainda que, desta vez, a cclvii Os anos de 1980, no plano internacional, configuraram-se como o período de “retomada da hegemonia norte-americana” (Tavares, 1998) realizada através da diplomacia do dólar forte e da “adoção de programas armamentistas de alto conteúdo tecnológico, visando dobrar a União Soviética e exaurir sua capacidade financeira” (Teixeira, 2000: 3). Nesse cenário se processa o que se convencionou chamar de “globalização” que, do ponto de vista econômico, deve ser tratada em três dimensões: financeira, produtiva e comercial (Gonçalves, 2003). A financeirização da economia mundial se intensificou a partir da implementação da “política de juros altos e flutuações cambiais patrocinadas pelos EUA na década de 80”, levando “à progressiva internacionalização dos bancos privados dos demais países da OCDE” (Tavares, 1993a: 56). Por outro lado, a “política de ajuste de balanço de pagamento dos EUA, bem como suas tentativas de manter a hegemonia do dólar, levaram os demais países da OCDE, em particular o Japão e a Alemanha, a formular respostas reestruturação bem sucedidas industrial, de provocando acentuadas mudanças na divisão internacional do trabalho” (Tavares, 1993a: 21-22). Outra estratégia desenvolvida para enfrentar a situação de crise e propiciar uma nova inserção internacional foi a “diversificação e expansão renegociação da dívida se dá mediante relações de governo periféricos com o cartel dos bancos privados e com organismos multilaterais, e não de governo a governo, o que enfraquece a posição dos países devedores” (Tavares, 1993a: 61). cclviii do comércio exterior” (Tavares, 1993a: 56). Dessa feita, o processo de mundialização da economia se efetiva a partir da intensificação da internacionalização financeira, comercial e produtiva. Nesse contexto, instala-se uma crise financeira mundial (aumento das despesas com serviços da dívida) que, aliada à recessão econômica, à crise da previdência social (ligada à estrutura demográfica e de emprego e à base tributária dos contribuintes centrada sobre a massa de salários) e às mudanças na organização industrial (concentração de capital e descentralização da produção promovendo a perda da base tributária, transferências patrimoniais e crescimento da economia informal), provoca uma crise fiscal do Estado (os gastos públicos aumentam em maior volume que a receita) (Tavares, 1993a: 64-66). Sendo assim, o comportamento do gasto público entre 1980 e 1993 nos países da OCDE mostra que houve uma diminuição de recursos para despesas sociais e aumento no pagamento de juros, num quadro de ampliação do gasto público total. Conforme destaca Fiori (1998: 167), “apesar de toda a retórica, neste mesmo período cresceu em todo o ‘mundo desenvolvido’ o gasto público em relação ao PIB. E o que ocorreu de fato foi uma queda dos gastos sociais compensada pelo aumento exponencial dos gastos financeiros”. Do ponto de vista político, para viabilizar a continuidade da acumulação via intensificação da internacionalização financeira, produtiva e comercial era necessária uma direção que valorizasse o mercado como elemento central da regulação da sociedade, reestruturando o Estado para conduzir o processo nesses moldes. Para os países periféricos, principalmente para a América Latina, o enfrentamento da crise deveria passar por programas que possibilitassem a inserção internacional cclix (diga-se de passagem, subordinada) desses países, a partir da garantia do pagamento de seus compromissos internacionais. Dessa forma, a hegemonia do pensamento político e econômico pregava a diminuição dos gastos sociais, privatização das empresas públicas, garantia de liberdade de comércio e de capitais como o cerne das recomendações de ajustes, configurando a chamada orientação neoliberal. Nesse contexto de mundialização, processou-se uma violenta crítica ao padrão sistêmico de integração social que conduziu o capitalismo à sua época de ouro: crescimento ecnômico, pleno emprego e proteção social sob coordenação do Estado. Como ressalta Pochmann (2002: 15), As medidas econômicas implementadas [à luz do ideário neoliberal] buscaram contrair a emissão monetária, elevar os juros, diminuir os impostos sob as rendas mais altas, desregulamentar o mercado de trabalho, o comércio externo e mercado financeiro, alterar o papel do Estado, privatizar o setor público, focalizar o gasto social, reduzir a ação sindical, entre outras. Essas medidas, cujo objetivo era a retomada do crescimento, a partir da liberação dos lucros das empresas (redução dos gastos sociais, redução dos impostos, desregulação do trabalho), não geraram novo ciclo de investimentos em produção. A internacionalização financeira, as políticas de juros altos e de valorização cambial empurraram os lucros para o sistema financeiro, onde a rentabilidade passou a ser maior que a da produção. Por outro lado, a reestruturação produtiva baseada nas inovações tecnológicas poupadoras de mãode-obra e na reorganização do processo de produção (substituição do “padrão fordista” pelo “padrão flexível”), articulada ao processo de globalização produtiva, produz um sistema de produção baseado numa pequena matriz na qual circulam diversas pequenas empresas que são acionadas na medida em que se faz cclx necessário desenvolver a produção. Terceirização, trabalho temporário, subemprego e desemprego estrutural conformam a situação da classe trabalhadora no período (Antunes, 1995). Para finalizar o quadro adverso, no intuito de arcar com as políticas de juros altos (aumento dos gastos com serviços da dívida) e, simultaneamente, reduzir impostos e apoiar o capital para sua reestruturação, o Estado passa a restringir os gastos sociais89. Sendo assim, a reestruturação que ocorre nas políticas sociais são determinadas pelas exigências da nova ordem do capital. Portanto, a determinação central da chamada crise das políticas sociais está situada na relação que se estabelece entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo, sua orientação macroscópia de fortalecimento do mercado e hegemonia financeira, e a restrição (subjetiva e objetiva) para a expansão de direitos sociais. O projeto neoliberal, visando à redução (não eliminação) da intervenção do Estado na área social - a partir da concepção global de que o bem-estar social pertence à dimensão privada (família, comunidade e mercado) e que ao Estado cabe apenas o atendimento residual para os indivíduos que não conseguem ter suas necessidades atendidas no campo privado -, propõe estratégias para o desenvolvimento de políticas sociais baseadas, principalmente, na privatização, focalização e descentralização (Laurell, 1995; Soares, 2000; Draibe, 1990). Ou seja, ações destinadas à redução do custo da intervenção do estado na área social, através da organização de serviços sociais oferecidos pelo mercado (diretamente ou indiretamente); redução do contingente a ser atendido pelas políticas sociais, 89 “Entre 1980 e 1993, enquanto o gasto público medido como percentual do PIB registrou crescimento entre 2 e 5 pontos nos EEUU (+2,1%), Fança (+6,2%) e Inglaterra (+5,2%), a participação das despesas sociais no gasto público sofreu queda quase simétrica (EEUU, - 6,1%; Almenha -4,3%; França, -5,1%) ao mesmo tempo em que creseu mais que propocionalmnte a participação das despesas com juros no gasto público total (EEUU, +5,5%; França, +5,1%; Inglaterra, +0,8%; Alemanha, +7,8%)” BIRD, 1995 in: Schwartz, G. - Como reformar o Estado não é consenso, Folha de São Paulo, 10/12/1995). cclxi concentrando as ações sociais na população em situação de pobreza absoluta90 e desresponsabilização do governo central dos custos para manutenção de serviços sociais. Nesse quadro o apelo à solidariedade da sociedade, via voluntariado e parcerias com a sociedade civil, e programas de renda mínima se apresentam como instrumentos adequados para a operacionalização das estratégias de intervenção social91. Desse modo, do ponto de vista político e ideológico, a matriz neoliberal se contrapõe à perspectiva dos direitos sociais e do Estado de Bem-estar como provedor desses direitos. “Rechaça-se o conceito dos direitos sociais e a obrigação da sociedade de garanti-los através da ação estatal. Portanto, o neoliberalismo opõe-se radicalmente à universalidade, igualdade e gratuidade dos serviços sociais” (Laurell, 1995). O Estado, portanto, ao restringir os gastos sociais, vulnerabiliza a proteção social, num quadro de desemprego e subemprego. O produto social desse processo constitui o acirramento da “questão social”92. Em síntese: esse processo de ênfase nas políticas econômicas ortodoxas voltadas para o controle da inflação, via ajustes do balanço de pagamentos -, através de controle cambial e políticas de juros (financeirização da economia); articulado a uma reestruturação produtiva não destinada à expansão do consumo de massa (ou seja, sem preocupação com o “pleno emprego”) e baseado numa estrutura do Estado reduzida em termos de desenvolvimento de políticas de 90 A pobreza absoluta está relacionada à carência das necessidades biológicas exigidas para um indivíduo sobreviver. “Pobreza absoluta constitui, portanto, uma categoria restrita, consagrada pela ideologia liberal ou neoliberal, a qual justifica e prioriza ações focalizadas e emergenciais, que suprem paleativamente (quando suprem) sintomas de carências profundas” (Pereira, 1996: 25). 91 É importante sinalizar, conforme ressalta Draibe (1990), que as estratégias de seletividade, descentralização e parcerias não são exclusivas de propostas neoliberais. A exclusividade neoliberal se encontra no sentido dado às estratégias que, como procuramos mostrar, está voltado para a redução da intervenção do Estado na área social, a partir do entendimento de que os indivíduos devem buscar suas necessidades na esfera privada. 92 “O desemprego na Europa Ocidental subiu de uma média de 1,5% na década de 1960 para 4,2% na de 1970 (Vander Wee, 1987, p.77). No auge do boom, em fins da década de 1980, estava numa média de 9,2% na Comunidade Européia, em 1993, cclxii proteção social, produziu a expansão da chamada “exclusão social” com destaque para o desemprego. Essa condução política foi possível devido à guinada à direita dos governos da Inglaterra (1979), Estados Unidos (1980) e Alemanha (1982). Nesse sentido, podemos afirmar com Netto (1995:81) que a “ofensiva neoliberal” organiza um “Estado mínimo”, voltado para a erradicação de qualquer mecanismo regulador democrático do movimento do capital, para “viabilizar o que foi bloqueado pelo desenvolvimento da democracia política [e social] – o Estado máximo para o capital”. Corroborando essa análise, Toledo (1995: 84) afirma: O neoliberalismo realmente existente não é senão o Estado do grande capital que, por meio da derrota da classe operária, impôs rupturas ou limitações aos pactos corporativos do pós-guerra; implantou uma nova disciplina fabril e uma austeridade salarial, também nos gastos sociais; e descontou sobre os trabalhadores os custos da crise. A derrota proletária foi econômica e política, mas também ideológica, onde o keynesianismo e marxismo estão desprestigiados, e a intervenção estatal virou sinônimo de ineficiência, inflação e privilégios. No Brasil, a crise da dívida nos anos de 1980 apenas explicita o problema de maior envergadura da economia brasileira, qual seja: a fragilidade do padrão de financiamento. Assim, conforme observa Fiori (1993), a convergência da crise mundial com a crise do padrão de desenvolvimento brasileiro determina a crise vivida nos anos da década de 1980. Segundo o autor: Na prática, e cronologicamente, a soma do segundo choque dos preços do petróleo e do aumento das taxas de juros internacionais (ambas ocorridas ainda nos anos 70) com a desaceleração do comércio internacional e a permanência dos preços das commodities durante toda a primeira metade dos anos 80, passando pela moratória mexicana de 1982, acabou explicitando e expondo as fragilidades endógenas das economias latino-americanas. Fragilidades concentradas, no caso brasileiro, no padrão de financiamento de sua industrialização, articulado por um Estado gigantesco, mas cronicamente debilitado do ponto de vista fiscal (Fiori, 1993: 130). Ainda de acordo com o autor (idem: 149), o período final da ditadura militar (1982-1985) concentrou “a crise do autoritarismo, a desmontagem do ‘tripé’ [Estado, 11% “ (Hobsbawm, 1995: 396). cclxiii capital nacional e capital internacional] em que se sustentara a industrialização desde os anos 50 e o esgotamento do modelo de desenvolvimento seguido pelo país desde os anos 30.” No entanto, diferentemente do que ocorria nos países centrais, no Brasil, os anos da década de 1980 são de revigoramento das forças democráticas da sociedade civil e da ampliação das lutas sociais. Do ponto de vista democrático, o clímax ocorreu com o desenvolvimento do movimento pelas eleições diretas (Movimento Diretas-Já). Considerado como uma das maiores mobilizações da história do País, o movimento, coordenado suprapartidariamente, não logrou êxito e, mais uma vez, o acordo entre as elites dirigentes - para evitar o aprofundamento da participação popular, como forma de enfrentar as questões sociais e econômicas - e o relativo refluxo da mobilização social, viabilizaram a repetição de uma “revolução pelo alto”93 no País, mantendo, dessa forma, o pacto de dominação conservador. Sendo assim, em 1985, o mineiro Tancredo Neves foi eleito, indiretamente, Presidente do Brasil, através de uma aliança entre os setores burgueses da oposição e os setores dissidentes do partido que apoiava o regime militar - Aliança Democrática, realizada pelo PMDB e pela Frente Liberal. A primeira fase da transição democrática brasileira foi extremamente longa (1974-1985) e, apesar de ter sofrido influência das organizações da sociedade civil de base popular, isso não foi suficiente para impedir que o processo de transição se desse pela institucionalidade vigente e, portanto, não permitiu que ocorresse uma ruptura significativa com as formas arcaicas e autoritárias que caracterizam, no Brasil, a tradição política de exercício da autoridade e da relação do Estado com a sociedade. No essencial, a estrutura de dominação do país se manteve. 93 Coutinho (1993), em seu artigo “Crise e Redefinição do Estado Brasileiro”, percorre a história brasileira analisando, de forma contundente, que as transformações políticas no Brasil sempre o alto. foram realizadas pel cclxiv Pouco antes da posse, o candidato eleito à Presidência da República, Tancredo Neves, foi hospitalizado, assumindo em seu lugar o Vice- Presidente José Sarney, recém filiado ao PMDB (para viabilizar sua candidatura à vice-presidência), que até pouco tempo era o presidente do partido que dava sustentação ao regime militar - PDS. Tancredo Neves morre em 21/04/85 e José Sarney assume, definitivamente, a Presidência da República. José Sarney, Presidente da República, primeiro governante civil desde o golpe de 64, que até há pouco era o presidente do PDS, representa, claramente, os fortes elementos de continuidade do antigo regime, que a transição democrática brasileira preservara. O cientista político Guilhermo O’Donnell destaca o peso e a presença institucional das Forças Armadas, a presença marcante no governo de políticos que sustentaram o regime autoritário e o estilo de se fazer política e governar baseado em “conchavos”, clientelismo, troca de favores, regionalismo (tradição política existente antes mesmo do regime militar) como elementos que marcam o alto grau de continuidade do regime autoritário, após o final da primeira fase da transição brasileira (O’Donnell, 1988). Por outro lado, podemos destacar que não só de continuidade se deu a transição brasileira. O indubitável fortalecimento das organizações autônomas da sociedade civil, o surgimento do sindicalismo combativo desatrelado do Estado, a criação de um partido orgânico de base popular, apesar de não terem sido suficientes para provocar uma ruptura no sistema político, formaram um conjunto de elementos de contraponto não só ao regime autoritário, como também à prática política tradicional brasileira fundada em fortes traços patrimonialistas. Assim, o início da “Nova República” se dá num contexto de instabilidade e crise econômicas advindas do esgotamento do próprio modelo de desenvolvimento brasileiro, cclxv aliado às sucessivas crises pela qual passava o sistema mundial capitalista, num contexto de fortalecimento das forças democráticas. Essa conjuntura propicia uma situação de resistência ao modelo neoliberal, tanto pelo lado das forças democráticas quanto pelo lado das classes dominantes. Pelo lado das forças democráticas a resistência se apresenta em defesa de um modelo de desenvolvimento pautado na incorporação efetiva da classe trabalhadora no sistema social, político e econômico, via distribuição de renda e riqueza, participação política das classes subalternas no poder e pela expansão de direitos, principalmente sociais, através da organização de uma estrutura estatal institucional-redistributivista implementadora de políticas sociais universalistas. Do ponto de vista das classes dominantes, a resistência à mudança está relacionada ao sucesso do modelo desenvolvimentista, na medida em que ele possibilitou a articulação de um conjunto heterogêneo de grupos econômicos e, sem submetê-los à coordenação estratégica de longo prazo, propiciava o acesso privilegiado ao Estado para esses grupos garantirem seus interesses particulares (Tavares, 1993b: 108). Nesse contexto, em linhas gerais, a política macroeconômica brasileira na década de 1980, para enfrentar a crise, foi baseada na geração elevada de superávites comerciais para honrar os compromissos da dívida, tanto durante o último governo militar quanto durante a “Nova República”. A política econômica, apesar de conseguir manter uma taxa de crescimento do PIB positiva e superávites comerciais, não obteve sucesso em relação à estabilização monetária (Fiori, 1993: 152). Contudo, a implementação de uma política de estímulo à exportação e de substituição de importações impediu a queda acentuada na geração de postos de trabalho. cclxvi Não houve expansão do assalariamento, mas também não houve redução. Os empregos assalariados cresceram na mesma proporção da PEA (2,8%). Entretanto, a quantidade de empregos assalariados com registro caiu fortemente: de cada cem empregos assalariados criados entre 1980 e 1991, cerca de 99 foram sem registro (Pochmann, 2002: 72). Todavia, é importante destacar que a política econômica em voga na década de 1980 não viabilizou a saída da crise: Durante os anos 80, o Brasil conseguiu um superávit de 99,5 bilhões de dólares na sua balança comercial. Mas acumulou um déficit de US$ 141,9 bilhões na balança de serviços. Desse déficit, 97,3 bilhões de dólares eram referentes a juros e 9,1 bilhões de dólares a remessa de lucros e dividendos. Noutras palavras, o Brasil enviou para o exterior, durante a década de 80 a quantia líquida de 42, 3 bilhões de dólares. Tornara-se um “exportador” de capitais (Gonçalves e Pomar, 2000: 13). Em relação à política social, a Nova República foi extremamente contraditória. Embora tenha adotado uma retórica progressista, manteve a prática tradicional na área social. Os discursos e documentos da Nova República destacavam a necessidade de enfrentamento da imensa “dívida social” e de resgate da cidadania. Os Programas de Prioridades de 1985 e 1986, o I Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República, de 1985, e o I Plano de Metas, de 1986, expressam a orientação de que para reverter o quadro social seria necessário adotar uma política econômica que possibilitasse a expansão da política social. Para Draibe (1989), as produções da Nova República apresentavam diagnósticos precisos e críticos sobre a situação da política social no Brasil, fazendo referência ao grau de pobreza de nossa sociedade, ao modelo organizacional instituído para operacionalizar a política social (centralização, fragmentação, superposição institucional, burocratização etc.) e a seu padrão de financiamento (caráter regressivo, recursos baseados em fundos sociais etc.). Como estratégias de enfrentamento do padrão diagnosticado foram criados e implementados dois Programas de Prioridades que, embora modestos (recursos previstos da ordem de cclxvii 1,6% do PIB), tinham como perspectiva o combate à miséria. Visando ao reordenamento institucional, foram criadas comissões setoriais responsáveis pela proposição de reformulações gerais na área social. No entanto, a prática política da Nova República, devido à manutenção do pacto de dominação conservador, reforçou o padrão assistencialista e clientelista das políticas sociais brasileiras e não produziu as mudanças esboçadas nos documentos e defendidas em discursos. A despeito de não se ter avançado no campo econômico e de as mudanças pretendidas na área social terem ficado restritas à retórica, houve durante a Nova República uma ampla demonstração de que se estava consolidando uma sociedade civil organizada e forte, de que se estava firmando uma sociedade do tipo “ocidental”94 no Brasil. Dessa forma, o País não superou sua crise econômica e não avançou, substantivamente, na ampliação das políticas sociais, chegando ao final do governo da “Nova República” com um déficit social ainda maior que do início do governo. Entretanto, do ponto de vista político, tivemos uma ampla demonstração de que estava se consolidando no país uma sociedade civil organizada e com expressões democráticas mais significativas, que apontava para a consolidação de uma sociedade de tipo “ocidental” no Brasil. Essa demonstração se deu em decorrência do processo constituinte. Os movimentos sociais organizados foram protagonistas de uma ampla mobilização popular, visando à participação no processo de elaboração da nova Constituição Federal, através da emendas populares. A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos sociais95, apontando, claramente, para a construção de um Estado de Bem-Estar 94 95 Expressão utilizada no sentido gramsciano (equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil). A CF-88 define a Seguridade Social como direito social, sob competência do Estado, constituído pela previdência cclxviii social provedor da universalização dos direitos sociais96. Conforme observa Netto (1999: 77): ... o essencial da Constituição de 1988 apontava para a construção – pela primeira vez assim posta na história brasileira – de uma espécie de Estado de bem-estar social: não é por acaso que, no texto constitucional, de forma inédita em nossa lei máxima, consagram-se explicitamente, como tais e para além de direitos civis e políticos, os direitos sociais (coroamento, como se sabe da cidadania moderna). Com isto, colocava-se o arcabouço jurídico-político para implantar; na sociedade brasileira uma política social compatível com as exigências de justiça social, eqüidade e universalidade. Além disso, a Constituição introduziu “mecanismos institucionais de participação popular na atividade legislativa e na definição de políticas governamentais” (plebiscito, referendo e iniciativa popular) (Benevides, 1991: 17) e abriu possibilidade, através dos incisos VII do art. 194 e II do art. 204, de se criarem mecanismos de democracia participativa. Entretanto, no que se refere à ordem econômica e a alguns aspectos significativos da ordem política (como, por exemplo, o maior peso dos votos do Norte e Nordeste, áreas de maior possibilidade de manipulação dos eleitores, em relação ao do Sul e Sudeste), dimensões fundamentais para viabilizar a efetivação de um Estado de Bem-Estar no Brasil, a CF-88 foi extremamente conservadora. Essa contradição da Constituição expressa a falta de hegemonia presente na sociedade naquele momento. Como bem sinaliza Coutinho, existia no Brasil, grosso modo, a disputa entre dois projetos de sociedade, aplicáveis e existentes nas sociedades contemporâneas de tipo “ocidental”: o de “democracia de massa” ou (contributiva), saúde (não contributiva) e assistência social (não contributiva), possuindo como objetivo: a universalidade do atendimento e da cobertura; uniformidade dos benefícios; participação da comunidade na gestão; diversidade de financiamento; e irredutibilidade dos valores dos benefícios. Dessa forma a seguridade social brasileira se aproxima a uma perspectiva de Estado de Bem-Estar Social. No caso da assistência social, pela primeira vez, ela é enquadrada como política pública, dever do Estado e direito de cidadania, compondo a seguridade social. 96 Utilizando a tipologia organizada por Fleury (1994: 110), a Constituição de 1988 expressa a tendência de se construir no país um modelo de proteção social fundado na concepção de seguridade social e cidadania universal, apesar da existência de contradições em sua formulação. Ou seja, um modelo baseado num “conjunto de políticas públicas que, através de uma ação governamental, centralizada e unificada, procura garantir à totalidade dos cidadãos um mínimo vital em termos de renda, bens e serviços, voltada para um ideal de justiça social. Correspondentemente, o Estrado é o responsável principal tanto pela administração quanto pelo financiamento do sistema. Os benefícios são concedidos (...) como direitos. Reconhece-se (...) o predomínio da relação de Cidadania Universal...” cclxix “modelo europeu” e o do “liberal-corporativismo” ou de “modelo americano”. O projeto baseado no “liberal-corporativismo” ou “modelo americano” se caracterizaria por possuir partidos frouxos, representantes de múltiplos interesses e sem organicidade, aliado a uma forma de representação de interesses extremamente pulverizada, atuando através de “lobbies” específicos. O projeto baseado na “democracia de massa” ou “modelo europeu”, ao contrário, seria caracterizado por possuir partidos orgânicos e programáticos de base homogênea, sindicalismo classista, que busca representar a classe trabalhadora e não apenas a corporação, em que a representação de interesses possui canais articulatórios para a formação de unidade na pluralidade (Coutinho,1993 e 1992). Podemos dizer que Tavares (1993b: 114-116), do ponto de vista do projeto de desenvolvimento, analisa essas duas alternativas como propostas de substituição do “tripé” desenvolvimentista (Estado, capital nacional e capital internacional): uma baseada na redução para “dois pés” (desmontagem do Estado para reforçar o pé do capital nacional - modelo americano de Coutinho) e outra fundada na “articulação a quatro pés” (inclusão do trabalho – modelo social-democrata). Certamente, os setores que possibilitaram os avanços na Constituição possuíam, como norte, o projeto societal de “modelo europeu”, base da construção do Estado de Bem-Estar social-democrata. Por outro lado, os setores que mantiveram os aspectos conservadores da Constituição baseavam-se na perspectiva do “modelo americano”, mesmo porque, como ressalta Coutinho: “... o ‘modelo americano’ (...) é, sem dúvida, o mais adequado à conservação do capitalismo, por causa das quase insuperáveis dificuldades que apresenta para a constituição de uma proposta hegemônica alternativa à dominante” (Coutinho, 1993: 91). As lutas na área social, por diversas razões, foram aquelas em que os grupos democráticos mais obtiveram vitórias (capítulo da seguridade, criança, educação cclxx etc.). Esses movimentos lutavam tanto pela democracia social quanto pela ampliação da democracia política. Procuravam garantir, por um lado, as bases de um sistema social institucional-universalista e, por outro, a criação de mecanismos de participação, complementares à tradicional base representativa parlamentar, com o objetivo de garantir institucionalmente a influência e o controle público das políticas sociais. Torna-se mister lembrar, como já sinalizamos, que nos anos 980 as práticas e a organização sociopolítica clientelismo, patrimonialismo, (autoritarismo, insulamento burocrático, corporativismo estatal bifronte) brasileiras são criticadas e combatidas pelos movimentos democrático-progressistas. Nesse sentido, a Nova República, assim como ocorrera na área das políticas sociais, produziu um excelente diagnóstico, do ponto de vista de uma perspectiva democrática, sobre as principais questões da administração pública97, apesar de suas ações nessa área terem sido restritas98, ou como analisam Nogueira (1998; 108) e Martins (1997: 30), respectivamente: “as generosas intenções reformadoras dos primeiros anos do Governo Tancredo/Sarney não saíram do papel” e “[o governo Sarney] parecia ter marcado um tento ao designar uma 97 Para o detalhamento deste diagnóstico ver Nogueira (1998: 106-108). 98 Torres (2004) e Lima Júnior (1998) apontam como os principais aspectos implementado pela Nova República, em relação à administração pública, a criação do Cadastro Nacional do Pessoal Civil e a extinção de 45 órgãos e comissões especiais que cclxxi comissão de alto nível para a reforma administrativa – um esforço, entretanto, que nunca produziu resultados”. Na prática, traços patrimonialistas, vinculados à dimensão tradicional da estrutura de dominação vigente à época, ainda permaneceram fortes na estrutura da administração pública. No entanto, conforme ocorrera, também, com as políticas sociais, são inseridas, na carta constitucional, propostas democráticas para a administração pública voltadas para o fortalecimento de sua dimensão burocrática: reforço dos procedimentos para garantir a impessoalidade e o mérito na estruturação do quadro de pessoal (contratação através de concurso público), organização de princípios para a estruturação de plano de carreiras e salários, definição de ordenamento para contratar obras, serviço e compras, garantia de direitos trabalhistas, mecanismo de estabelecimento proteção ao cargo. de Dessa maneira, prioriza-se a administração direta e se expandem essas regras para a administração indireta. Por outro lado, como vimos, são também criados mecanismos democratizadores e de controle social e público para acompanhar a formulação e a implementação de políticas: não possuíam mais função e continuavam existindo. cclxxii participação da população e o fortalecimento do ministério público. Dessa forma, os preceitos aprovados na Carta de 1988, em relação à administração pública, buscavam garantir uma espinha dorsal burocrática para o Estado brasileiro fundada na impessoalidade, no mérito e na proteção ao cargo, expandindo instrumentos de controle democrático para administrativa estruturar permeável à uma ordem sociedade em relação à participação da definição de suas intenções e ações. Mesmo considerando a existência de certos privilégios para o funcionalismo público e, talvez, um excesso de rigidez, a lógica proposta possuía uma direção referenciada na necessidade de estruturar no Brasil uma ordem administrativa fundada na impessoalidade, mérito e normas a serem seguidas, porém com mecanismos de controle democrático para evitar a “burocratização” (excesso de normas, regras e rigidez administrativa), a ação auto-referenciada da burocracia e seu “insulamento”. Sendo assim, diferentemente do que preconiza Bresser Pereira (1996 e 1998), a Constituição Federal de 1988 não foi um retrocesso aos anos 1930, em relação à estruturação da administração pública, tampouco um retrocesso aos anos 1950, no que se refere ao plano político. cclxxiii Em relação aos anos 1930, a Constituição busca completar, como o próprio autor reconhece99, a estruturação burocrática da administração pública, o que, para o caso brasileiro, como foi exaustivamente demonstrado, colocava-se como um requisito fundamental para o fortalecimento democrático, mesmo porque, os preceitos constitucionais estavam orientados para robustecer a dimensão impessoal, meritocrática e formal-legal da burocracia. Portanto, em que pesem certos exageros e privilégios corporativos (que poderiam e deveriam ser ajustados), a concepção presente no texto constitucional, ao invés de ser retrógrada, estava, na verdade, apontando para a construção de uma espinha dorsal burocrática em sua totalidade (envolvendo as dimensões de especialização, formalismo e impessoalidade), combinada com mecanismos de controle, imprescindível para o avanço democrático. Torres (2004: 164-166) apresenta uma análise detalhada dos preceitos constitucionais e mostra como a avaliação do ex-ministro é equivocada. De acordo com a análise do autor, as regras estabelecidas para serem cumpridas, também, pela administração indireta, não prejudicaram a eficiência dessas agências. Em relação à adoção de concurso público como ingresso do servidor, o autor afirma que foi “propiciado a profissionalização e a moralização do setor estatal, atacando de maneira contundente o clientelismo e o empreguismo que imperavam na administração pública”. Dessa forma, conclui o analista: “os ganhos propiciados pela obrigatoriedade do concurso público para o ingresso na administração indireta em muito ultrapassam os custos e as limitações burocráticas impostas por este critério de seleção e contratação”. No que se refere às regras relativas às compras e contrato, o autor destaca três aspectos que demostram que não houve comprometimento da agilidade e 99 O autor reconhece esse movimento, porém, analisando-o de forma negativa, pois segundo Bresser Pereira (1996: 274), dar ênfase à estruturação burocrática significava ignorar “as novas orientações da administração pública”, revelando “uma incrível cclxxiv eficiência na administração indireta. O primeiro aspecto está relacionado ao fato de que a constituição permite que essas agências possuam processo próprio de licitação, adequando o perfil da agência aos preceitos constitucionais. O segundo parte do pressuposto de que, explicitada na EC nº 19 de 4 de junho de 1998, a possibilidade de leis específicas para as agências da administração indireta regularem o processo licitatório e a, conseqüente, não regulamentação de tal preceito sugere “que a administração indireta está prescindindo dessa lei para funcionar a contento”. Por fim, Torres (2004: 165) mostra, a partir de dados do Banco do Brasil e da Petrobras, que “o desempenho das empresas públicas e sociedades de economia não tem sido comprometido pelos rigores do processo de compras públicas”. Em nosso entendimento, a questão efetivamente controversa, em relação aos dispositivos constitucionais destinados à ordenação da administração pública, está ligada aos direitos conquistados pelos servidores públicos: regime jurídico único, estabilidade no emprego e, no âmbito da aposentadoria, tempo de serviço e remuneração integral, num quadro de incorporação de aproximadamente 400 mil servidores celetistas da administração indireta que possuíam mais de cinco anos de serviço. A despeito da discutibilidade de alguns desses direitos, que podem até ser considerados como privilégios100, em relação ao cerne da questão tratada neste trabalho (organização de uma espinha dorsal burocrática), os desvios que possam ter ocorrido não comprometeram a lógica para a efetivação da construção de uma estrutura burocrática em sua totalidade e, mais que isso, os preceitos constitucionais falta de capacidade [dos constituintes e da sociedade] de ver o novo”. 100 Para a crítica a esses aspectos ver Martins (1997). cclxxv mostravam-se coerentes com uma perspectiva de aprofundamento e universalização de direitos que setores da sociedade clamavam à época. Portanto, longe de uma “visão equivocada por parte das forças democráticas”, conforme considera Bresser Pereira (1996: 275), as forças democráticas, conscientemente ou não, propuseram, coerentemente com a finalidade de universalização e aprofundamento de direitos numa sociedade de classes, a estruturação de uma ordem administrativa burocrática, a partir de suas determinações de impessoalidade, mérito e estrutura formal-legal101. Assim, não houve equívoco das forças democráticas. O que deve ficar explicitado é que a concepção de ordem administrativa de Bresser Pereira é contrária à expansão da racionalidade burocrática, pois o autor não vislumbra o aprofundamento e a universalização de direitos como finalidade social a ser alcançada. Isso já pode ser observado na medida em que o ex-ministro critica o plano político da Constituição Federal de 1988, analisando-o como retrocesso aos anos 1950. Em outras palavras, o autor, apesar de não ser explícito, identifica a expansão de direitos, presente na Carta Constitucional, com a “euforia democrático-populista” como se fosse possível “voltar aos anos dourados da democracia e do desenvolvimento brasileiro, que foram os anos 50” (Bresser Pereira, 1996: 274). Ou seja, o ex-ministro, numa nítida manobra neoliberal, transmuta a idéia de direitos (principalmente os direitos sociais) para as de paternalismo e populismo. Conforme analisa Nogueira (2004: 66): 101 Tudo indica que a defesa de uma ordem burocrática pelas forças democráticas estava mais relacionada a uma estratégia voltada para romper com os traços tradicionais da administração pública brasileira, portanto, uma perspectiva centrada numa dimensão instrumental e endógena da burocracia. Ou seja, parece que não havia clareza entre as forças democráticas da possibilidade da existência de uma relação finalística entre a ordem administrativa burocrática e a universalização e aprofundamento de direitos. Em outras palavras, a burocracia foi interpretada como remédio contra a doença patrimonialista, que se expressava no clientelismo e na corrupção. cclxxvi O próprio capitalismo, ao se reproduzir, força uma conversão das políticas sociais em operações tópicas destinadas a aliviar os que são por ele penalizados. Reduz direitos em favor de equilíbrios fiscais. Reformula e dá novos significados à própria idéia de direitos: por um lado, faz com que sejam associados a privilégios que oneram a comunidade; por outro, transforma-os em benefícios merecidos por aqueles que exibem melhor desempenho, têm maior poder de compra ou mais “sorte”. Dessa maneira, Bresser Pereira não reconhece que, para o aprofundamento democrático, a formalização de direitos configura-se como o pilar fundamental para a conquista de um outro patamar de sociabilidade. Sendo assim, no final da década de 1980 estrutura-se no país um paradigma legal-institucional, via Constituição Federal, que delineia os fundamentos para a construção de um Estado de Bem-estar de cunho universalista e institucional, com fortes elementos democratizadores, viabilizador de direitos e estruturado a partir de uma ordem administrativa burocrática, fundada na impessoalidade e no mérito. O período da “Nova República” se configurou como o período da (re)institucionalização democrática e da consolidação de uma sociedade de tipo “ocidental” no País. O fortalecimento das forças democráticas, que vinham se articulando desde o final dos anos 1970 - que possibilitou, do ponto de vista da classe trabalhadora, o surgimento do “novo sindicalismo” e de um partido com base na classe trabalhadora, e que viabilizou, também, a criação de movimentos sociais reivindicativos - propiciou, pela primeira vez no Brasil, uma interferência mais substantiva das camadas populares na estrutura de dominação do país, apesar de não ter tido influência para fragilizar a coalizão das classes dominantes, de forma a reordenar o projeto de sociedade numa direção mais clara para a universalização e o aprofundamento de direitos, “social-democrata” ou para um projeto de desenvolvimento fundado em “quatro pés”. Assim, a coalizão de classes na estrutura de dominação do país ainda preservava a aliança fundamental entre a burguesia nacional associada e dependente e os velhos setores tradicionais, preservando, dessa forma, os traços conservador, patrimonialista e autoritário de nossa história. Porém, essa coalizão cclxxvii dominante não pôde, nesse período, agir desconsiderando as demandas e as forças democráticas da sociedade. As ambigüidades da “Nova República”, manifestadas no texto constitucional, entre uma ordem econômica conservadora e uma ordem social e administrativa democrática, nos diagnósticos precisos, do ponto de vista democrático, sobre a estrutura das políticas sociais e da administração pública, e as ações pífias ou mesmo conservadoras nessas áreas e a resistência à implementação do modelo neoliberal, demonstram a crise de hegemonia existente no período e a influência que os setores democrático-populares tiveram sobre a definição das diretrizes do novo projeto nacional que se encontrava em construção. Como vimos, a década de 1980 nos mostrou, então, a consolidação de um outro tipo de articulação social no Brasil, à qual Gramsci, certamente, chamaria de "Ocidental", pois dotada de uma sociedade civil organizada, atuante e autônoma em relação ao Estado, mantendo equilíbrio, portanti, com a "sociedade política". O jogo político tornou-se mais complexo, o espaço para exercer a dominação baseada na coerção restringiu-se, a busca do consenso passou a ser uma necessidade mais presente. Os atores políticos em cena são múltiplos (partidos, sindicatos, governos, ONG's, movimentos populares, entre outros) e os interesses diversos. No entanto, é fundamental reafirmar que, no período da Nova República, a situação da classe trabalhadora era extremamente adversa, uma vez que não se conseguia diminuir o desemprego, os empregos criados eram sem registro, a inflação corroía os salários (no final de 1989, a inflação chegou ao patamar de 80% ao mês), a concentração de renda e riqueza permanecia e as políticas sociais não passavam de projetos. Por outro lado, do ponto de vista das classes dominantes, a situação não permitia a continuidade do processo de acumulação para enfrentar as mudanças advindas da Terceira Revolução Industrial e da conjuntura econômica internacional. Nesse quadro foi se forjando o consenso de que a crise não era conjuntural, mas sim estrutural, estando relacionada, por um lado, às mudanças operadas na cclxxviii dinâmica do capitalismo, a partir de sua lógica mundializada financeiramente, produtiva e comercialmente e, por outro, ao esgotamento do modelo de desenvolvimento implementado no País responsável pela industrialização nas bases da Segunda Revolução Industrial. Nesse sentido, havia uma convergência de todas as forças sociais sobre a necessidade de processar mudanças na condução da política econômica, na estrutura produtiva do país e, como elemento central, implementar uma profunda reforma do Estado (Fiori, 1993: 152-153). Entretanto, se havia consenso em relação à agenda das questões, não havia em relação à direção que as propostas deveriam assumir. O País se encontrava dividido entre uma direção “social-democrata” e outra “liberal-corporativa” (Coutinho, 1992 e 1993), ou, conforme analisa Tavares (1993b), entre um projeto baseado na “articulação a quatro pés” e outro fundado na redução para “dois pés”. No entanto, o contexto global do final dos anos 1980 e, principalmente dos anos 1990, marcam a consolidação de mudanças significativas na sociedade capitalista. O desenvolvimento tecnológico — robótica, microeletrônica, informática, novos mecanismos de comunicação on line —, assim como as mudanças na organização do processo produtivo, que passa de uma orientação fordista para uma orientação flexível102, provocam transformações radicais no mundo do trabalho. Simultaneamente, as crises econômicas que se manifestavam desde os anos 1970, a redução da taxa de crescimento mundial e o aumento da expectativa de vida nos países desenvolvidos põem em xeque o padrão de regulação da sociedade baseado no welfare state. A esses fatos aliam-se o desmoronamento das experiências de socialismo de Estado e a ofensiva liberal-conservadora que, 102 De acordo com Antunes (1995), a produção fordista está baseada em grandes linhas de montagem, amplo corpo de empregados, salários pactuados e sindicatos fortes. A produção de orientação flexível baseia-se em pequenos núcleos estratégicos vinculados à empresa, no emprego da informática e da robótica em substituição ao “trabalho vivo”, na utilização de novas tecnologias gerenciais e na fragmentação da classe trabalhadora. cclxxix representada pelos governos Thatcher, Reagan e Kohl, impõe ao mundo uma hegemonia ideológica e de experiências concretas norteadas pela liberalização do mercado. Portanto, o esvaziamento do Estado e de seu papel regulador da sociedade entram na pauta de uma nova reestruturação estatal. Todas essas mudanças ocorrem num mundo altamente interconectado, tanto no aspecto econômico quanto nas esferas social, política e cultural. Parte mínima da população do Terceiro Mundo apresenta padrões de consumo do Primeiro Mundo e em uma parcela já significativa do Primeiro Mundo verificam-se padrões de miséria do Terceiro Mundo. Nesse contexto, há, por um lado, uma certa uniformização de valores; por outro lado, adeptos do fundamentalismo e do racismo (por exemplo) que procuram resguardar, de forma autoritária e violenta, sua identidade. No aspecto político há uma pressão dos organismos internacionais e dos países hegemônicos para a adesão dos países em desenvolvimento ao chamado “Consenso de Washington”103 o que constitui outro elemento a tornar mais complexo o contexto do início da década de 1990. Em 1989, durante a primeira eleição presidencial direta após decorridos 29 anos, ficou nítida a polarização entre os dois projetos de sociedade. Lula, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), que representava o que Coutinho chamou de “democracia de massa”, obteve 37,86% dos votos no segundo turno das eleições e Fernando Collor de Mello, candidato do Partido da Renovação Nacional (PRN), que representava o chamado “liberal-corporativismo”, obteve 42,75% dos votos. Tal vitória não se caracterizou como hegemônica, apesar do clima ideológico e 103 Fiori (1997: 12) sintetiza o “Consenso de Washington”, como um “plano único de ajustamento das economias periféricas”, sistematizado por John Williamson, organizado como um programa de “três fases: a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário, envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, (...) dedicada [às] ‘reformas estruturais’; liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa, definida como de retomada dos investimentos e do crescimento econômico”. cclxxx programático em defesa das teses neoliberais104, como analisa Fiori (1993: 153), já se encontrar formado, a partir de um amplo consenso liberal presente em diferentes setores sociais: político, intelectual, quase totalidade dos meios de comunicação e dos chamados formadores de opinião. O candidato vencedor, que construíra sua carreira política durante os anos da ditadura, inclusive ocupando cargos por indicação indireta, realizou sua campanha através da combinação dos mais modernos recursos de propaganda e marketing com o estilo populista de comunicação direta com a povo, além de aplicar táticas de agressão pessoal a seu adversário. Em linhas gerais, defendia as teses neoliberais de privatização das estatais, diminuição do Estado, integração do país no mercado internacional, entre outras. A campanha refletiu o que seria o governo. Ou seja, um governo que seguia a matriz neoliberal, impregnado da tradição política patrimonialista, que buscava o apoio da população pobre, desorganizada e despolitizada. Conforme analisa Teixeira da Silva (1996: 352), “Collor surgia, assim, em uma terrível convergência de interesses ilusórios, dos segmentos mais pobres e mal informados da população, com os interesses concretos, da elite nacional, em desmontar os mecanismos distributivistas do Estado”. Por outro lado, o Presidente Collor imprime como forma de governar um perfil “delegativo”105, haja vista as 20 medidas provisórias assinadas - ato permitido pela 104 “...reforma administrativa, patrimonial e fiscal do Estado; renegociação da dívida externa; abertura comercial; liberação dos preços; desregulamentação salarial; e, sobretudo, prioridade absoluta para o mercado como orientação e caminho para a nova integração econômica internacional e modernidade institucional” (Fiori, 1993: 153). 105 De acordo com O’Donnell (1991) A “democracia delegativa” seria um tipo específico de democracia surgida durante as décadas de 1970 e 1980, em contextos nacionais imersos numa profunda crise econômica e social, com uma tradição histórica de grande atomização da sociedade e do Estado e de cultura patrimonialista como forma predominante de fazer política e governar. Esse conjunto de fatores, aliado a um processo de transição democrática que não efetiva rupturas definitivas com o regime autoritário precedente (como foi o caso do Brasil), potencializa, sobremaneira, a estruturação de uma democracia na qual o governante se considera o principal fiador dos interesses nacionais, acha que pode governar de acordo com suas conveniências, coloca-se acima de todos os partidos políticos e interesses organizados e considera a ação de prestar contas às instituições e organizações da sociedade como sendo um impedimento ao exercício de sua plena autoridade conquistada nas urnas. A despeito da polêmica sobre se a “democracia delegativa” é um tipo específico de democracia ou se é uma fase do processo de democratização, consideramos que a caracterização da “democracia delegativa” descrita por O’Donnell é extremamente pertinente para compreendermos e analisarmos o processo de transição democrática do Brasil. cclxxxi Constituição somente para ocasiões excepcionais - no dia de sua posse e de seu vice (Itamar Franco), objetivando reordenar a economia e extinguir órgãos públicos ligados à cultura e à educação. O governo Collor, do ponto de vista econômico, tanto no primeiro momento, com a equipe comandada pela ministra Zélia C. de Mello, quanto no segundo, com o ministro Marcílio Marques, implementou medidas de liberalização comercial e financeira e de redução da máquina pública, tal qual recomendação liberal. Entretanto, em relação ao combate inflacionário, as ações não surtiram efeito substantivo. No período compreendido entre 1990-1992, apesar da situação fiscal e comercial superavitárias e o retorno de capitais, “o país enfrentou sua recessão econômica mais séria desde os anos 30”, num quadro de manutenção da concentração de renda, aumento de desemprego e “deterioração das condições de infra-estrutura e dos serviços públicos, em geral, e sociais, em particular” (Fiori, 1993: 155-157). Simultaneamente às ações de governo e à participação política referente a temas gerais (eleição presidencial), os movimentos sociais organizados, que participaram ativamente do processo constituinte, continuaram, após a aprovação da Constituição de 1988, a atuar politicamente em questões específicas, visando interferir na elaboração das leis complementares que viessem a consolidar, institucionalmente, os avanços conquistados em suas áreas. Essa atuação representava, em termos mais amplos, uma ação política contrária à dominante, voltada para a criação e o fortalecimento de estruturas propiciadoras de uma construção institucional que viabilizasse os direitos sociais e estimulasse a participação popular, com base no “modelo europeu” de Estado de Bem-estar. cclxxxii Essa ação ocorreu de forma emblemática nas áreas da saúde (elaboração e aprovação da Lei Orgânica da Saúde — LOS), assistência social (elaboração e aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social — LOAS) e infância e adolescência (elaboração e aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA), e tinha por finalidade consolidar os dispositivos constitucionais referentes às respectivas áreas de atuação. Todavia, esse momento não se passou sem conflitos. Se, por um lado, havia apoio de determinados setores da sociedade para a consolidação dos dispositivos constitucionais, por outro, havia grande resistência, principalmente por parte de setores afinados com o ideário neoliberal que, naquele momento (1990), aprofundava-se no país. Paralelamente ao foco central da luta de elaboração/aprovação de leis complementares (LOS, LOAS e ECA), ocorria o processo constituinte nos estados e municípios. Isso sinalizou os limites/fragilidades e a falta de condições das organizações da sociedade civil, de corte democrático, para uma ação de intervenção no Legislativo que cobrisse a dimensão do país. Em que pesem todas as dificuldades, a Lei Orgânica da Saúde, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica da Assistência Social foram aprovados pelo Congresso e sancionados pelos presidentes da República que governaram entre 1990 e 1993. Dessa forma, temos leis extremamente avançadas num Estado, como vimos, de forte perfil autoritário e patrimonialista, que incluíra parcialmente e seletivamente a classe trabalhadora e, quando iniciou o processo de universalização dos serviços sociais, fê-lo de forma excludente, de baixa qualidade, estruturando o que Maria Lúcia Werneck Vianna chamou de “americanização perversa” da seguridade social. cclxxxiii No entanto, o realismo não impede de vislumbrar o significado políticoinstitucional dessas leis. Como afirmado anteriormente, as leis complementares, enquanto orientação política e institucional, enquadram-se no paradigma de construção de um Estado de Bem-estar provedor de direitos sociais. Nesse sentido, elas se expressam como um verdadeiro instrumento político-cultural e institucional de contribuição para transformar a configuração predominante do Estado brasileiro, no que se refere às políticas sociais. No aspecto conceitual, essas leis complementares representam um grande avanço para a continuidade da luta pela construção de um Estado provedor da universalização dos direitos sociais. Além disso, a existência dos conselhos deliberativos propicia um processo de redefinição da relação entre o Estado e a sociedade civil na dinâmica de gestão da sociedade. O reflexo desse processo na assistência social é inequívoco. A Lei Orgânica da Assistência Social apresenta a assistência social como política pública, direito de cidadania e dever do Estado numa perspectiva de universalização dos direitos sociais. Além dessa concepção, a legislação propõe a descentralização e a participação como elementos democratizadores para a implementação dos serviços sociais, projetando uma organicidade da política, através da articulação Estado – sociedade civil, União-estado-município e entre os diferentes setores que compõem a política pública. Nesse quadro, conforme destaca Pereira (1996), a política de assistência social se caracteriza por ser: a) genérica na atenção e específica em relação aos destinatários - diferentemente das políticas setoriais; b) particularista - pois destinada exclusivamente aos segmentos pior situados na escala de distribuição de riqueza; c) desmercadorizável - pois não se vincula à lógica do mercado e d) universalizante - cclxxxiv pois, apesar de não ser universal, atua reforçando a universalização dos direitos sociais (Pereira, 1996: 29, 53 e 54). Nos primeiros momentos do Governo Collor, a oposição parecia perplexa (talvez não tenha absorvido a quase vitória eleitoral) e pouca mobilização social de expressão pública ocorreu. Entretanto, ao vir à tona o esquema de corrupção montado no aparelho do Estado, que envolvia o Presidente e seus principais colaboradores, diversas organizações da sociedade civil mostraram-se, mais uma vez, atentas às questões políticas e se manifestaram a favor do "impeachment" do Presidente da República, inclusive, setores vinculados aos grupos dominantes. Essa situação, mostra, também, a falta de organicidade existente entre o presidente e os setores que o apoiavam. O processo de “impeachment”, assim como o trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada para apurar as denúncias de corrupção existente na Comissão de Orçamento da Câmara, transcorreram sem afetar a estabilidade institucional da recente democracia brasileira. O Presidente Collor foi “impedido” de continuar o seu mandato e, em 1993, assumiu a Presidência da República o Vice-Presidente Itamar Franco. Essa conjuntura viabilizou o surgimento do Movimento pela Ética na Política, que se organizou por ocasião do "impeachment" e que mostrou o crescimento, na sociedade, do repúdio às práticas patrimonialistas historicamente presentes no Estado brasileiro. Esse movimento, posteriormente, contribuiu com a constituição do Movimento da Ação da Cidadania Contra a Fome e Pela Vida, o qual cclxxxv impulsionou setores da sociedade civil a se organizarem em comitês de combate à fome, colocando na agenda nacional o tema da fome. No plano institucional ocorre uma tentativa de articulação de centro-esquerda para dar sustentação política ao Presidente Itamar Franco. Temos, nesse sentido, uma conjuntura política que, apesar de inserida num contexto marcado por forte ideologia e propostas neoliberais, ainda possibilita a disputa dos dois projetos de sociedades. Coutinho (1992: 62), analisando a conjuntura da época, a partir da reflexão sobre os dois projetos de sociedade, sublinha: “penso que a luta entre esses dois projetos alternativos ainda não está decidida no Brasil” (itálico no original). No entanto, para enfrentar a crise econômica (principalmente a alta taxa inflacionária) e superar uma questão de política interna, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), então Ministro das Relações Exteriores, assume o Ministério da Fazenda. Neste momento, rearticulam-se as forças de centro-direita no sentido de conduzir e consolidar o projeto fundado na hegemonia neoliberal. 4.2. Consolidação do neoliberalismo no Brasil e a reforma administrativa A reedição do pacto conservador de dominação e o projeto de transnacionalização Fernando Henrique e sua equipe formulam e implementam um plano de estabilização econômica, fundado nos preceitos neoliberais. cclxxxvi A inflação é derrubada, Fernando Henrique se projeta a nível nacional, o PSDB faz aliança com o PFL - partido, como vimos, que congrega políticos de perfil tradicional, oligárquico e clientelista que apoiaram o regime militar - e lança Fernando Henrique para Presidente. Ou seja, uma rearticulação orgânica entre setores da burguesia industrial, principalmente paulista, e intelectuais com passagem pela esquerda, mas que se encontravam afinados com as teses liberais, aglutinados em torno do PSDB, e as forças oligárquicas e tradicionais, principalmente do nordeste, vinculados ao PFL. Conforme análise de Fiori (2001b: 285): “uma aliança bem-sucedida entre o que se poderia chamar de ‘cosmopolitismo de cócoras’ de uma parte da intelectualidade paulista e carioca atrelada às altas finanças internacionais, e o localismo dos donos do sertão e da malandragem urbana brasileira.” Dessa forma, é reeditado, de forma orgânica, o pacto de dominação conservadora que implementou o projeto desenvolvimentista, mas que, na conjuntura da crise daquele modelo, organiza-se para orientar uma intervenção social pautada nas teses neoliberais. Isso posto, observa Fiori (1998: 17): ...diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia revolucionar o sistema político e social brasileiro, (...) FHC preferiu (...) e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL (...). Uma aliança que obviamente não se explica por razões puramente eleitorais (...). O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é algo mais sério e definitivo: remontar à tradicional coalizão em que se sustentou o poder conservador no Brasil. Este é o verdadeiro significado direitista de sua decisão... A campanha do PSDB/PFL é baseada no “sucesso” do plano real e no convencimento do eleitorado de que a estabilidade econômica, para perdurar, necessitava da continuidade do trabalho. Para surpresa de muitos, que há três meses das eleições consideravam certa a vitória do candidato da esquerda, Fernando Henrique se elege no primeiro turno das eleições. cclxxxvii A política implementada pelo Governo Fernando Henrique para viabilizar o desenvolvimento do país é marcada por forte orientação neoliberal: privatizações indiscriminadas e com possibilidade de utilização de “moeda podre” para compra das estatais; reforma da previdência baseada em ônus para os trabalhadores; diminuição da máquina administrativa e enfraquecimento da intervenção social do Estado; inserção subordinada do país no mercado internacional, entre outras. Assim, reafirma-se um projeto de internacionalização subordinada ao capital internacional, agora hegemonizado pela sua fração financeira, através de um processo facilitado de transferência patrimonial do Estado para as empresas privadas e de redução da intervenção distribitivista do Estado na sociedade. Nesse sentido, delineava-se no país a vitória hegemônica do projeto de sociedade “liberal-corporativista”, com forte presença do componente patrimonialista como prática de fazer política e governar, aliado ao fortalecimento do perfil “delegativo” de nossa democracia. Do ponto de vista econômico, efetivou-se a implementação de um modelo de desenvolvimento que buscava desmontar o “pé” estatal para reforçar a estrutura privada, nacional e internacional, colocando o mercado no centro das estratégias econômicas e alijando a incorporação da classe trabalhadora do processo de decisão e da participação dos frutos do desenvolvimento. “FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de Washington valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o Estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária” (Fiori, 1998: 18). A economia do plano real, implementada no governo Itamar Franco e prosseguida ao longo do governo FHC, baseou-se na estratégia ditada pelo sistema financeiro internacional nos anos de 1990: renegociação das “dívidas velhas”, para cclxxxviii possibilitar empréstimos novos (Plano Brady); desregulamentação dos mercados locais (eliminação de barreiras para entrada e saída dos investidores); intermediação para o deslocamento de capital de curto prazo para os países, independente da capacidade de absorção dos recursos pela base produtiva local. Nesse quadro, a sobrevalorização do câmbio e abertura comercial conformaram uma combinação explosiva: com a sobrevalorização cambial o país fica com maior capacidade de importar; a abertura comercial facilita a importação, pois restringe as barreiras; a entrada de produtos internacionais pressiona para baixo os preços do produtos internos e força a competitividade (contenção da inflação). Por outro lado, a exportação cai – os produtos brasileiros ficam caros, os preços não são competitivos no mercado internacional; a balança comercial entra em déficit crescente; perdem-se reservas cambiais. Para honrar os compromissos internacionais, manter a moeda estabilizada e importar, o país gasta dólares. “O déficit acumulado, entre 1995 e 1999, na balança de transações correntes alcançou 134,7 bilhões de dólares!” (Gonçalves e Pomar, 2000: 20). Assim, para equilibrar o balanço de pagamento, num cenário de balança comercial deficitária, o país necessita de reservas cambiais para honrar seus compromissos. É necessário, então, permitir e fomentar a entrada do capital de curto prazo, aumentando a taxa de juros. Nesse contexto, o Estado assume a remuneração desse recurso, emitindo títulos e aumentando a dívida pública. O resultado é o enorme crescimento da dívida pública interna (Gonçalves e Pomar, 2000: 24). Além disso, com a privatização de empresas estatais, ocorreu um crescimento do passivo externo brasileiro. “A remessa de lucros e dividendos para o cclxxxix exterior triplicou de 9 bilhões de dólares, no período 1981-90, para 27,3 bilhões de dólares no período 1991-99” (Gonçalves e Pomar, 2000: 26). Nessa conjuntura, como o Estado tem que arcar com a remuneração dos investimentos especulativos de curto prazo, com os serviços da dívida externa já existente e com a dívida interna, é necessário cortar gastos públicos para obter superávites primários. Conforme analisam Gonçalves e Pomar (2000: 24-25), A íntima ligação entre o crescimento da dívida interna e o crescimento do passivo externo (aí incluída a dívida e outras obrigações do país em moeda estrangeira) explica porque o recente acordo entre o governo brasileiro e o FMI estipulou metas precisas de superávit fiscal. Trata-se de garantir ao investidor estrangeiro que a dívida interna será honrada. Caso contrário, os portadores abandonarão os títulos do governo, transformarão seus reais em dólares e sairão do país, gerando uma crise cambial. Por outro lado, as empresas num cenário de juros altos não conseguem investir na produção. A opção do mercado financeiro passa a ser mais atrativa para os investimentos (empresários brasileiros pegam empréstimos no exterior e aplicam no Brasil, aproveitando o diferencial da taxa de juros). Nessa situação, não há crescimento, aumenta o desemprego e o país permanece preso nas armadilhas de juros, abertura comercial e sobrevalorização cambial. Após a queda de Gustavo Franco do Banco Central, o grande defensor da política de sobrevalorização cambial, o Governo FHC desvalorizou o Real. No entanto, a política de juros para atrair o capital de curto prazo e a manutenção de superávites primários, para honrar os compromissos externos e controlar a inflação, em detrimento de uma política voltada para o crescimento econômico como forma de melhorar a produção brasileira e equilibrar o balanço de pagamentos, continuou sendo a tônica da política econômica até o final do mandato de FHC. Nesse contexto, aumenta o processo de desestruturação do mercado de trabalho. “Em cada dez ocupações geradas entre 1989 e 1995, apenas duas eram ccxc assalariadas ante oito não-assalariadas, sendo quase cinco por conta própria e três sem remuneração” (Pochmann, 2002: 75). O desassalariamento também cresceu: em 1989, 64% da PEA eram assalariados; em 1995, apenas 58,2% da PEA eram de assalariados (Pochmann, 2002: 75). O desemprego cresceu, entre 1989 e 1995, 16% em média ao ano - acréscimo de 442 mil pessoas por ano (Pochmann, 2002: 75), chegando a junho de 2003 à taxa de 20,3% (maior taxa desse mês desde 1989). Na área das políticas sociais, como ressaltado anteriormente, a Constituição Federal de 1988 refletiu as contradições e disputas entre projetos políticos distintos (“liberal-corporativista” e “democracia de massa” - Coutinho, 1993). A institucionalidade legal da ordem social, com a CF-88, projetou para o País os marcos para estruturação de um Estado voltado para universalização dos direitos sociais, participação da sociedade na definição das políticas sociais e descentralização políticoadministrativa, ou seja, um modelo próximo ao “welfare state social democrata”. Sendo assim, o cenário brasileiro na conjuntura neoliberal, apresenta um eixo central de contradição. Por um lado, o processo de democratização da sociedade, dos anos 1980, leva-nos à construção de um padrão legal de política social baseado na lógica do welfare state universalista, através de mecanismos que promovem maior participação da sociedade na definição e implantação de políticas sociais, redefinindo, assim, a noção de espaço público numa perspectiva de aprofundamento da democracia. Por outro lado, as mudanças ocorridas em plano mundial e a hegemonia liberal-conservadora conduzida pelo governo FHC impõem limites ao ccxci desenvolvimento imediato de tal padrão (Farah, 1997). Dessa forma, podemos vislumbrar, do ponto de vista das políticas sociais no Brasil, um cenário com as seguintes tendências: Padrão Democrático de Política Social; Padrão Neoliberal de Política Social e Padrão Tradicional de Política Social. O Padrão Democrático de Política Social se pauta numa perspectiva de garantia universal de direitos sociais, popular e baseada na participação descentralização político- administrativa, resguardando o papel do poder central como elemento que propicia a unidade da política social e o apoio técnico, administrativo e financeiro para sua efetivação. Nesse sentido, o Estado tem o dever de formular e executar (direta ou indiretamente) as políticas sociais, garantindo a realização dos direitos sociais. A Constituição Federal, as Leis Orgânicas da Saúde e da Assistência Social (LOS e LOAS), bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ratificam essa proposição. O Padrão Neoliberal de Política Social fundamenta-se na lógica do receituário neoliberal proposto pelo Consenso de Washington - pautado na estabilização monetária, abertura comercial e privatização - e nos preceitos de um “social-liberalismo” que não se distingue concretamente das experiências neoliberais de redução do Estado na área social. Configura-se contrário ao padrão democrático. ccxcii Essa orientação política tem tido adesão de grande parte da sociedade e de quase todos os órgãos da mídia. O exemplo emblemático dessa política é o Comunidade Solidária, que desconhece a LOAS e a legitimidade do Conselho Nacional de Assistência Social e desenvolve uma política de desresponsabilização do Estado no trato das expressões da “questão social”, através de ações focalizadas, fragmentadas e privatizadas, depositando a maior parte da responsabilidade, para o sucesso das ações, na própria sociedade, apelando, assim, para solidariedade social (Sposati, 1995), no que a mídia colabora fazendo um apelo à sociedade civil para o desenvolvimento de medidas de caráter assistencialista, voluntário e filantrópico. Outro aspecto a destacar refere-se à “descentralização destrutiva” (Soares, 2000) operada pelo desmonte de instituições nacionais (LBA e FCBIA), sem planejamento prévio, combinada com a transferência das ações para os municípios, sem o devido apoio técnico e financeiro para que os mesmos fossem capazes de assumir as ações. Por fim, os programas de renda mínima têm sido implementados sob uma nítida concepção liberal de focalização e pobreza absoluta, o que contribui para a redução de gastos sociais (Silva et alli, 2004). Nesse quadro, as estratégias de focalização, via programas de combate à pobreza, e descentralização, contribuem, como sinalizam Laurell (1995) e Soares (2000) para a manutenção de mecanismos clientelistas na área social. Esse aspecto parece bem razoável em se tratando de um governo fundado num pacto conservador, que precisa de articular politicamente apoio para a direção estratégica maior: a transnacionalização da economia. ccxciii Em termos gerais, a Política Social desencadeada pelo governo FHC seguiu os passos de reestruturações social-democratas, num país que não constituiu um padrão de intervenção do Estado na área social do porte de tais experiências. Portanto, diminuiu o que não existia e redefiniu o que não foi construído, numa nítida adesão aos preceitos neoliberais. Sendo assim, assistencialização e mercantilização das políticas sociais formam a tendência de tal proposição (Mota, 1995). O Padrão Tradicional de Política Social possui como orientação a lógica assistencialista, fisiológica, caritativa, enfim, um padrão típico da nossa República Velha, combinado com o corporativismo do pós-1930 desenvolvido, principalmente, na área da previdência social106. A partir desses padrões - que se conformam como determinações existentes na realidade brasileira em relação às políticas sociais -, podemos desenvolver uma análise de conjuntura mais precisa sobre o estado das políticas sociais sob responsabilidade dos municípios brasileiros. Vejamos. Após a CF-88, aos municípios foram destinados mais recursos e maior autonomia para a implementação de políticas sociais. Na prática, a diretriz constitucional da descentralização promoveu, por um lado, a desresponsabilização das esferas estaduais e federal no processo de 106 A previdência social foi desenvolvida de forma segmentada. Cada categoria profissional regulamentada pelo Estado tinha acesso a determinado conjunto de políticas sociais; a população que estava fora do mercado formal de trabalho - e seus respectivos filhos - não tinham acesso ao sistema de previdência pública operado pelos IAP`s (Institutos de Aposentadoria e Pensões). Essa população era atendida pelos serviços de assistência social desenvolvidos, principalmente, pelas organizações da sociedade civil. Nessa lógica, a atuação dos sindicatos se pautava numa orientação particularista voltada apenas para o atendimento imediato da corporação, não visando a uma luta pela universalização das políticas sociais públicas (Santos, 1987). ccxciv implementação das políticas sociais, dando abertura para que a prática patrimonialista imperasse nos municípios de baixa organização da sociedade civil e possibilitou o estabelecimento de relações utilitárias entre Estado e instituições da sociedade civil, visando, por um lado, à privatização (no sentido da desresponsabilização estatal) da política social e , por outro lado, ao atendimento de interesses particularistas de organizações da sociedade civil que, “vendendo” seus serviços, resolviam seus problemas financeiros – desenvolvendo, portanto, políticas sociais de caráter neloliberal e tradicional. Contraditoriamente, a descentralização também possibilitou aos municípios de maior mobilização e organização da sociedade civil construir, mesmo que tímidas, políticas participativas identificadas com o padrão democrático, com conteúdos mais adequados às demandas sociais - aproveitando experiências bem sucedidas da sociedade civil -, implementadas sob novas formas de gerenciamento, através de relações com organizações da sociedade civil, garantindo maior eficácia, eficiência e efetividade das ações. Sendo assim, experiências de determinadas prefeituras mostram-se como um campo em que se pode observar a ampliação da ação do poder público intervindo na situação social e provocando melhorias na área social, enfrentando a chamada “exclusão social” e redefinindo as relações entre o Estado (em sua expressão municipal) e a sociedade civil, através da implementação de políticas sociais de corte democrático107. Cabe aqui destacar a funcionalidade do padrão tradicional ao modelo neoliberal. Em outras palavras, o padrão tradicional da política social contribui para o desenvolvimento da ccxcv lógica de mercado, da lógica neoliberal. Nesse sentido, o padrão tradicional e o padrão neoliberal podem estar extremamente articulados e o padrão tradicional pode ser utilizado funcionalmente para a potencialização do padrão neoliberal. A partir do quadro exposto, tendo em vista a relação entre a política econômica e a política social e considerando a orientação neoliberal de ambas, podemos afirmar que o cenário global no campo das políticas sociais no Brasil, ao longo do governo FHC, apesar da co-existência de diferentes padrões e referências para a estruturação das políticas sociais em nosso país, é constituído, indubitavelmente, pelo padrão neoliberal. Assim, a tendência hegemônica de política social, a despeito da existência dos marcos constitucionais de uma política social institucional e redistributivista e dos esforços de estruturação de políticas municipais que se aproximem mais do padrão democrático que daquele padrão, é pautada pela lógica da privatização, focalização e desconcentração financeira e executiva (Montaño, 2002). Contrastando com essa conjuntura, o crescimento e fortalecimento de organizações autônomas e democráticas na sociedade civil, apresentava um contraponto ao projeto dominante. Do ponto de vista político, essas organizações combatiam o caráter “delegativo” de nossa democracia, procurando contribuir na estruturação de uma lógica estatal racional e direcionada para prover a universalização dos direitos sociais previstos constitucionalmente (tais como: a LOS, a LOAS e o ECA). Além disso, existia toda uma concentração de esforços para a implementação de conselhos deliberativos e fiscalizadores (como, por exemplo, os 107 Para um balanço das experiência de prefeituras em políticas sociais, ver Lesbaupin (2000) e Jacobi (2000). ccxcvi conselhos de saúde, da assistência social e dos direitos da criança e do adolescente), mecanismos de democracia participativa para gestão de políticas públicas. Entretanto, nesse contexto, as forças que defendiam essa perspectiva, além de não se apresentarem como hegemônicas, tiveram muitas dificuldades para exercer uma oposição efetiva ao projeto de FHC. Nesse sentido, a efetivação da política social no Brasil sofre os constrangimentos e determinações de uma política econômica e social de corte liberal e regressiva, reduzindo as possibilidades de efetivação de políticas sociais de cunho universalista e de espaços públicos democráticos nesse campo. No entanto, é fundamental enfatizar que essa assertiva não desconhece a existência de propostas de contra-tendência no cenário nacional sendo efetivadas, principalmente, pelos governos sub-nacionais, contando com instituições da sociedade civil que compartilham um projeto público, democrático e universalista para as políticas sociais. Portanto, no contexto da reestruturação capitalista, no qual se desencadeia uma verdadeira “contra-revolução liberal-conservadora”, como denomina Cardoso de Mello (1998), a condução neoliberal da política macroeconômica do governo Cardoso, implementa, como demonstra Behring (2003), uma “contra-reforma conservadora e regressiva” do Estado brasileiro108. Nessa perspectiva, na década de 1990, essa “contra-reforma” “tem a envergadura das mudanças da década do pós-1930 e do pós-1964 e guarda nexos com o passado” (Behring, 2003: 115), porém em sentido contrário. Ou seja, naqueles períodos, o projeto desenvolvimentista apontava para um processo de industrialização, que necessitava do Estado como um dos “pés” do desenvolvimento. 108 Nesta tese utilizaremos a definição proposta por Behring (2003), na medida em que particularizaremos a questão no Brasil e concordamos com a autora que o ocorrido no país foi um movimento contrário às reformas realizadas ao longo do projeto desenvolvimentista e, principalmente, frente às propostas presentes na década de 1980. ccxcvii Nesse sentido, mesmo nas condições brasileiras de reduzida permeabilidade aos interesses das classes trabalhadoras, o protagonismo estatal e sua expansão viabilizou a ampliação do atendimento dos interesses dos trabalhadores - via expansão do mercado interno e das políticas sociais e da estruturação do mercado de trabalho - ainda que de forma parcial, seletiva e com pouca qualidade; num movimento crescente de concentração de renda, riqueza e poder das classes dominantes, a partir da intensificação da exploração da força de trabalho. No entanto, do ponto de vista da classe trabalhadora, com a redução do Estado a situação se agravaria, ou sem ele, o quadro poderia ser muito pior. Desse modo, do ponto de vista teórico, como ressalta a autora, devemos rejeitar a utilização do termo “reforma” pelos neoliberais, mostrando que eles fazem uma “apropriação indébita” da concepção reformista, na medida em que eles a utilizam para identificar qualquer proposta de mudança ocorrida, independente do sentido, da orientação sociopolítica e da finalidade de sua implementação. Dessa forma, retira-se da concepção de reforma todo o arsenal histórico e teórico que sempre a relacionou com a orientação da intervenção dos movimentos progressistas e de esquerda na sociedade. Conforme assinala Nogueira (1998: 17), “devemos reafirmar a cosangüinidade entre reformismo e esquerda.” Apesar de longa, convém apresentar a síntese de Behring (2003: 282) sobre esse movimento de contra-reforma: ...o que estamos analisando, embora mantenha elementos em comum com períodos históricos anteriores, a exemplo do conservadorismo político na condução dos processos decisórios e do patrimonialismo, é muito diferente daqueles “saltos para adiante”, modernizações conservadoras ou processos de revolução passiva e “pelo alto” que engendraram a industrialização e a urbanização brasileiras, acompanhados da formação de um mercado interno significativo, embora sempre estreito diante das potencialidades. Diferença que reside no fato de que se tratou de um salto para trás, sem o sentido da ampliação das possibilidades de autonomia ou de inclusão de segmentos no circuito “moderno”, diferente das transformações estruturais anteriores, apesar dos limites também ccxcviii destas últimas. Este retrocesso é o que configura uma contrareforma, por meio da qual houve quebra de condições historicamente construídas de efetivas reformas, dentro de um processo mais amplo de profundas transformações. Portanto, é fundamental frisar: as mudanças de 1930 e 1964 foram mudanças dentro do projeto desenvolvimentista, conduzido por um pacto conservador, e a dos anos 1990 é um “projeto radical de transnacionalização da economia brasileira” (Fiori, 2001a), conduzido de forma liberal e subordinada (Fiori, 1998), implementado no contexto de reestruturação capitalista, guiado pelo mesmo pacto conservador. De acordo com a análise de Fiori (1998: 187), para manter os mesmos interesses a estratégia tinha que mudar: a economia é aberta, o Estado se retira do setor produtivo, e as empresas nacionais ou quebram ou são internacionalizadas. Do tripé para um modelo de um só pé, onde passamos a ser ainda mais dependentes do que antes dos humores da economia internacional, e apostam todas nossas fichas nas virtudes dos mercados desregulados, segundo eles, de fazerem uma correta, eficiente e equilibrada alocação dos recursos provenientes dos investidores privados, sobretudo os internacionais. Assim, conforme analisa o autor (2001: 283), o projeto neoliberal no Brasil foi operacionalizado, através da manutenção das “mesmas regras e estruturas básicas do velho e permanente ‘pacto conservador’”. Segundo o analista (idem: 283-286), essas estruturas se mantiveram nas relações estabelecidas entre o Estado e o capital privado, na regulamentação do mundo do trabalho, na organização das instituições políticas e na construção de uma nova soberania nacional. Na relação entre o Estado e o capital privado, o discurso neoliberal pregava o fim do “Estado cartorialista” e do “populismo econômico”, através da abertura e ccxcix desregulamentação dos mercados, em nome da “competitividade global” e do fim do protecionismo. No entanto, a privatização do Estado, via transferência do patrimônio público a grupos privados, “escolhidos a dedo”, e a feudalização das novas agências e das velhas instituições e empresas públicas, continuou como forma de acomodar os interesses heterogêneos da “coalizão de forças conservadoras e das várias facções oligárquicas ou regionais da base parlamentar do governo” (Fiori, 2001b: 283). Em relação à regulamentação do trabalho, a proposta neoliberal defendia o fim do corporativismo que interferisse negativamente na definição, pelo mercado, do “preço justo” da força de trabalho e que enfraquecesse o capital e prejudicasse a “competitividade global”. Assim, os governos neoliberais desregulamentaram o mercado de trabalho, restringindo direitos trabalhistas, congelando salários do setor público e reduzindo a participação salarial na renda nacional, de 45% para 36%, além de não expandir a produção de bens públicos e básicos de consumo popular (idem: 284). As regras e instituições políticas, outro aspecto da agenda, no essencial, ficaram inalteradas. Manteve-se, dessa forma, a estrutura de poder compatível com uma coalizão que incorporava, também, os segmentos mais tradicionais e “atrasados” da política regional ou oligárquica brasileira. Sendo assim, como ocorrera no período desenvolvimentista, também na atual conjuntura “as oligarquias que controlam parte significativa do poder regional agrário e urbano, seguiram obtendo posições e favores junto ao Estado central, em troca de sua capacidade de mobilização eleitoral e parlamentar, indispensável à reprodução da ordem política conservadora” (Fiori, 2001b: 284-285). ccc O último aspecto abordado por Fiori diz respeito à promessa neoliberal de construção de uma nova soberania nacional, eliminando o “nacionalismo anacrônico” do período desenvolvimentista. No entanto, a “transnacionalização radical da estrutura produtiva e dos centros de decisão da economia brasileira”, operada pelos neoliberais, produziu a fragilização do Estado e da economia nacional, “que ficaram dependentes do capital privado internacional e do apoio do governo norte-americano, nas situações de crise” (idem: 285). Dentro desse panorama, a partir da reedição do pacto conservador, será implementado o projeto liberal-conservador de transnacionalização radical da economia brasileira, consolidando o neoliberalismo em nosso País. Diniz (2000) apresenta dados significativos sobre a transnacionalização radical de nossa economia, a partir do intenso processo de fusões, aquisições ou associações de empresas nacionais com grupos estrangeiros (374 fusões e aquisições entre 1992 e o primeiro semestre de 1997). Segundo a autora, “entre 1991 e 1997, foram adquiridas por empresas estrangeiras 96% das empresas brasileiras do setor eletroeletrônico, 82% das empresas do setor de alimentos e 74% das indústrias de autopeças” (idem: 92). Corroborando com Fiori, afirma conclusivamente Diniz (id: 94): “do ponto de vista ideológico, tais mudanças apontam para a progressão de uma perspectiva internacionalista, em contraposição à visão nacionalista do passado”. Nesses termos, será processada a contra-reforma do Estado, que estabelecerá as determinações fundamentais da contra-reforma da administração pública: o projeto de transnacionalização radical e a estrutura de dominação fundada no pacto conservador que comandará a implementação de tal projeto. ccci A primeira determinação (o projeto em tela) organiza o fundamento economicista e gerencial da proposta de contra-reforma da administração pública, e a segunda (estrutura de coalizão de classe) articula esse fundamento com a particularidade brasileira de manutenção dos traços tradicionais do pacto conservador de dominação estabelecido. O fundamento economicista e gerencial da proposta de contrareforma da administração pública: centralidade do mercado e burocratização monocrática A principal gerencialismo administração é determinação a pública identificação com do da administração privada. O gerencialismo não considera a distinção existente entre a administração destinada a fins públicos – administração pública – e aquela destinada a fins lucrativos – administração empresarial. No entanto, Kliksberg (1997: 87) adverte: Gerenciar organizações públicas, nos tempos atuais, é bem diferente de gerenciar organizações privadas, seja quanto aos dilemas que a gerência pública tem de enfrentar, seja quanto às suas opções, aos problemas compatibilização de objetivos, aos problemas de restrições e de proibições seja quanto à eleição de meios. Todas estas questões que exigem, da gerência pública, respostas técnicas específicas. Apesar da concepção explícita de Kliksberg (1997) e outros autores – Grau (1998), Paula (2005), Nogueira (1998 e 2004) e Abrúcio (1997), apenas para citar alguns – que distinguem a administração pública da empresarial, nos Estados Unidos, por exemplo, centro de influência do ensino da administração pública no Brasil, a administração pública e a empresarial, apesar de comporem comunidades cccii acadêmicas separadas, são fortemente relacionadas entre si, tendo como espinha dorsal a chamada administração científica, que é inerente à administração empresarial (Gaetani, 1999). Portanto, mais que uma articulação ou relação estreita, o que ocorre efetivamente é o desenvolvimento da administração pública sobre as bases da administração empresarial, ou seja, sobre um conjunto de componentes ético-políticos que não expressam as finalidades vinculadas a uma dimensão pública de universalização de direitos. O debate sobre administração pública, revigorado a partir da década de 1980 no contexto da chamada Reforma do Estado, reatualizou a discussão acerca da existência ou não da distinção entre administração pública e a empresarial. Essa reatualização se fez a partir do que se convencionou denominar de “Nova Administração Pública”, ou seja, propostas nem sempre homogêneas que orientaram as reformas administrativas, a partir dos anos 1980, numa perspectiva de substituição ou superação do modelo burocrático de administração (Ferlie et al., 1996; Gaetani, 1999; Grau, 1998; Fedele, 1999). De maneira implícita, uma determinada vertente da “Nova Administração Pública” considera haver identificação entre as duas administrações, num posicionamento semelhante ao desenvolvido nos EUA na década de 1960, conforme analisam Ferlie et alli (1996), Gaetani (1999), Grau (1998) e Fedele (1999). Por outro lado, esse mesmo contexto propiciou o fortalecimento da corrente vinculada à “Nova Administração Pública” que se posiciona claramente a favor de uma distinção entre a administração pública e a empresarial, tendo como fundamento as diferentes motivações, valores, objetivos e estratégias que conformam uma e outra administração. Tal corrente busca reforçar o caráter democrático da administração pública, a preocupação com a cidadania, mas também defende modificações na ordem burocrrática, a partir da utilização de ccciii mecanismos e ferramentas gerenciais que permitam maior agilidade e eficiência administrativa, sem perder a preocupação com a efetividade, voltada para a democratização. Essa concepção tem sido defendida, entre outros, por Nogueira (1998 e 2004), Abrúcio (1997), Kliksberg, (1997), Grau (1998) e pelo Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (CLAD, 1998). Assim, cabe ressaltar, mais uma vez, que essas duas vertentes da “Nova Administração Pública”, diferentemente uma da outra, partem da crítica ao modelo tradicional burocrático de gestão. Paula (2005), no entanto, analisa que as concepções que partem do gerencialismo não são concepções de cunho democrático, apenas adaptam o gerencialismo a alguns elementos de democratização. No entanto, consideramos que, em que pesem as distinções existentes entre as concepções dos diferentes autores que incorporam mecanismos e ferramentas gerenciais, essas propostas buscam, em linhas gerais, submeter tais mecanismos e ferramentas à finalidade democrática, sendo que algumas de forma mais radical, voltadas para a universalização de direitos no caminho da transformação social, enquanto outras se colocam mais próximas do campo gerencial. O que orienta nossa análise é o entendimento, como desenvolvido no capítulo 1, que existe uma autonomia relativa entre meios e a finalidade da ordem administrativa. Nesse sentido, Paro (2000; 151), ao defender uma administração escolar orientada para a transformação social, portanto antagônica à administração empresarial, afirma: Isto não quer dizer, obviamente, que se deva desprezar pura e simplesmente todo o progresso técnico havido na teoria e na prática administrativa empresarial. Significa apenas que, em termos políticos, o que possa haver de próprio, de específico, numa Administração Escolar [ou, em nosso caso, na Administração Pública em geral] voltada para a transformação social, tem de ser necessariamente antagônico ao modo de administrar a empresa, visto que tal modo de administrar serve a propósitos contrários à transformação social. ccciv Continuando, o autor explicita a centralidade da finalidade da administração na determinação de sua orientação fundamental. Nas palavras de Paro (2000: 151): “a possibilidade de uma administração democrática no sentido de sua articulação, na forma e no conteúdo, com os interesses da sociedade como um todo, tem a ver com os fins e a natureza da coisa administrada”. Portanto, o fato de propor mecanismos e ferramentas gerenciais para a administração não determina, em si, sua finalidade. Assim, consideramos aquelas propostas como situadas no campo democrático, porém, não necessariamente, de uma forma mais radical e socialmente referenciada, como desenvolvida por Paula (2005), ou explicitamente revolucionária, conforme defendida por Paro (2000) e Nogueira (1998 e 2004), com as quais concordamos e defendemos nesta tese. Apesar de compreendermos que existem duas perspectivas no campo da “Nova Administração Pública” - uma voltada para o projeto hegemônico neoliberal, a qual identificaremos como proposta gerencial e a outra voltada para a perspectiva democrática, que pode estar ou não vinculada a um projeto de superação da ordem capitalista – nesta seção, apenas analisaremos a concepção gerencialista, deixando para a conclusão do trabalho considerações acerca da perspectiva democrática. Sendo assim, o primeiro aspecto que deve ser destacado está relacionado à finalidade da ordem administrativa que se pretende estruturar. A proposta hegemônica de reforma administrativa, no contexto dos anos de 1980 e 1990, como uma das dimensões da reforma do Estado, estava diretamente vinculada ao projeto neoliberal. Essa vinculação se apresenta explícita pela afinidade teórica existente entre as propostas filosóficas, políticas e econômicas das escolas neoliberais austríaca e de Chicago e a escola de Virgínia, que será a base fundamental das propostas cccv neoliberais para o campo da administração pública, a partir da teoria da “escolha pública” - desenvolvida, por volta de 1968, por J. M. Buchanan e incorporada aos estudos administrativos realizados por Niskanem, em 1971 -, a qual utiliza os princípios da economia, numa perspectiva utilitarista, nas escolhas individuais (Toledo, 1995; Paula, 2005, Fedele, 1999 e Grau, 1998). Conforme assinala Grau, Os fundamentos desse enfoque são o individualismo metodológico, o homo-economicus e a política como intercâmbio, tomando a liberdade como valor supremo em clara conexão com as chamadas teses neoliberais da Escola de Chicago e com o neoconservadorismo imperante (Grau, 1998: 223). Borges (2001: 161) também nos oferece um resumo preciso da lógica da teoria da escolha pública: Para a TEP [teoria da escolha pública] (...) é da maior relevância a noção de comportamento maximizador dos agentes individuais (homo economicus). O egoísmo e a busca incessante do lucro, na visão da economia clássica, constituem a força motriz dos mercados, cujos resultados, num ambiente de concorrência perfeita, seriam o equilíbrio e a eficiência geral. A teoria da escolha pública entende que o comportamento dos homens de governo é ditado pelos mesmos princípios utilitários e não pelo altruísmo ou interesse público. Do ponto de vista político, a relação entre neoliberalismo e a dimensão administrativa da reforma do Estado é apresentada por Montaño (2002). Segundo o autor, o “projeto/processo neoliberal”, como estratégia hegemônica de reestruturação do capital, desdobra-se em três dimensões articuladas: ofensiva ao trabalho, reestruturação produtiva e a reforma do Estado. A reforma do Estado, então, “está articulada com o projeto de liberar, desimpedir e desregulamentar a acumulação de capital, retirando a legitimação sistêmica e o controle social da ‘lógica democrática’ e passando para a lógica da concorrência do mercado” (Montaño, 2002: 29). O autor, assim, desvela a conexão existente entre a dimensão econômica (interesses de classe/ofensiva contra o trabalho e reestruturação produtiva) e a dimensão política e técnica da reforma do Estado. Nesse caminho, poderíamos afirmar que, da mesma maneira que ideologicamente os neoliberais cccvi buscam cindir a dimensão econômica da dimensão política e técnica das mudanças em curso, isolando as mudanças da ordem econômica das mudanças da ordem política/técnica, no campo da chamada reforma do Estado ocorre uma outra cisão: a da dimensão política com a dimensão técnica das propostas. Desse modo, a reforma administrativa se apresenta como uma dimensão autônoma e independente da política (reforma do Estado em seu conjunto) e da economia (mudanças nas relações de produção – ofensiva contra o trabalho e reestruturação produtiva). No entanto, a orientação da reforma do Estado está subordinada ao projeto político que a define. Dessa forma, as dimensões que compõem a reforma do Estado (reforma econômica, reforma fiscal, reforma previdenciária, reforma administrativa...) também estão subordinadas ao projeto político hegemônico. Nessa medida, a reforma administrativa não possuiu autonomia absoluta frente ao projeto político que orienta as propostas de reforma do Estado. Grau (1998: 221) sintetiza a vinculação teórica e política entre a proposta hegemônica de reforma administrativa e o projeto neoliberal de forma precisa: A matriz dominante do projeto modernizador, contudo, é uma combinação de um projeto ideológico de redução do tamanho do Estado , liderado pela cúpula do governo e pelo partido que lhe dá sustentação política – casos de Inglaterra e da Nova Zelândia – e de uma forte influência da corrente da “public choice” na interpretação do comportamento do aparelho do Estado. Paula (2005: 33) apresenta de maneira direta a relação entre a orientação política neoliberal e a formulação teórica da escolha pública que fundamentará a proposta de contra-reforma administrativa: “enquanto os neoliberais reforçavam suas visões sobre a eficiência do mercado em relação ao Estado, os teóricos da escolha pública elaboravam análises que sustentariam a crítica da burocracia do Estado”. cccvii Assim, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista político, não há dúvidas sobre a relação entre a concepção neoliberal e a proposta hegemônica de mudanças da administração pública. Nesses termos a proposta de reforma administrativa de cunho neoliberal se apresenta como uma contra-reforma, pois possui como finalidade uma ordem centrada no mercado e na crítica às estruturas e políticas de universalização de direitos. Portanto, a finalidade das mudanças propostas para a administração pública, na medida de sua vinculação téorica e política com o neoliberalismo, não pode estar voltada para a universalização e aprofundamento de direitos. Assim, a proposta hegemônica de mudanças da administração pública aponta para a valorização do mercado como regulador societal e de redução do Estado para área social. A crítica fundamental da teoria da escolha pública ao Estado, no geral, e à burocracia, particularmente, está relacionada ao seu caráter de rent-seeking (orientação para renda). Ou seja, de acordo com os teóricos dessa escola, os governos e a burocracia agem buscando maximizar seus interesses individuais e/ou organizacionais das agências estatais, prejudicando, dessa forma, a eficiência econômica e social (Grau, 1998). Conforme analisa Borges (2001), a respeito da concepção presente na teoria da escolha pública, a expansão do Estado e, conseqüentemente, o aumento dos orçamentos públicos criam as condições para políticos “orientados para renda” ampliarem os gastos públicos, visando a vantagens individuais, levando, dessa forma, a um processo de crescimento dos déficits públicos. Por outro lado, os burocratas procuram canalizar esses novos recursos para suas agências, interpretando regras de acordo com seus interesses, na perspectiva, também, de cccviii obtenção de rendas. Assim, de acordo com os teóricos da escolha pública, “governos grandes e orçamento inchados significam menor liberdade para o cidadão comum” (Idem: 169). Portanto, conforme assinalam Andrews e Kouzmin (1998: 122): a teoria neoclássica da Escolha Pública adquiriu um desgosto bethamiano pelo setor público (Betham [1789] 1970), que é constantemente posto sob suspeita de ser ineficiente, desperdiçador (...), porque a ausência de qualquer mecanismo disciplinador permite o comportamento predador (rent-seeking) de burocratas, de seus clientes e dos políticos que o governam”. De forma enfática os autores sublinham que esse raciocínio leva à crença de que, tendencialmente, os burocratas públicos são inerentemente manipuladores, ou até mesmo corruptos, pois distorcem informações destinadas aos superiores e promovem políticas voltadas a seus próprios interesses, maximizando o tamanho de suas agências em termos de pessoal e orçamento (Andrews e Kouzmin, 1998). Nessa perspectiva, ganha fundamento teórico a proposta neoliberal de redução da intervenção do Estado, a partir de mecanismos voltados para a privatização de empresas públicas, desregulamentação econômica, redução de gastos socias - via focalização, descentralização e privatização - e a conseqüente redução do funcionalismo público. Portanto, se a finalidade é o mercado e a redução do Estado para a área social, num quadro de ineficiência econômica e social derivado do comportamento rent-seeking dos políticos e da burocracia, os instrumentos administrativos devem ser adequados a essa finalidade, buscando superar os comportamentos inadequados. Conforme analisa Borges (2001), James Buchanan, principal expoente da teoria da escolha pública, ao entender que a anarquia, num mundo de indivíduos racionais egoístas, cccix seria inviável, uma vez que ninguém obedeceria a regras que não fossem de seu interesse, defende a necessidade de um agente externo para garantir a implementação e o cumprimento das regras, evitando o estabelecimento de uma guerra hobbesiana de todos contra todos. Assim, coloca-se a necessidade do Estado. Entretanto, no quadro da situação das democracias modernas, Buchanan analisa que os cidadãos se sentem alheios às decisões do governo e que os gastos realizados “refletem mais as preferências de políticos e burocratas auto-interessados do que as suas próprias. Por outro lado, (...) a regra majoritária de votação traria o risco da ‘tirania da minoria (...), [apresentando] ‘custos externos’ ao indivíduo”. Por isso, na perspectiva da escolha pública, a “troca no mercado é quase sempre um mecanismo decisório mais eficiente” (Borges, 2001: 168 e 169). Dessa forma, na medida da inviabilidade da anarquia, da deficiência do processo democrático e da eficiência das trocas no mercado, a preferência da organização sociopolítica deve ser por governos pequenos e mercados livres. Nesse sentido, Buchanan sugere, do ponto de vista institucional, “a criação de regras legais rígidas, capazes de cccx limitar o escopo da deliberação democrática”, visando impedir a expansão do Estado, através do isolamento de questões como estabilidade monetária e controle orçamentário (Borges, 2001). Sendo assim, como perspectiva institucional, para fortalecer o mercado, reduzir o escopo democrático, evitar o comportamento rent-seeking dos políticos e dos burocratas e a conseqüente expansão do Estado, a teoria da escolha pública propõe a centralização da estrutura burocrática, sob comando político centralizado109 e, dialeticamente, aponta para sua flexibilização, via mecanismos gerenciais, através da descentralização, da transferência de atividades estatais para o mercado e da incorporação de mecanismos de concorrência na administração pública, na medida em que não se pretende expandir o Estado para a área social (Grau, 1998; Borges, 2001; Fedele, 1999 e Paula, 2005). Então, o cerne da proposta administrativa vinculada à concepção neoliberal supõe a separação entre política e administração (Fedele, 1999), formulação e execução (Paula, 2005) e contratação e prestação de serviços110 (Ferlie et alli, 1999), por intermédio de uma estrutura que combina uma centralização de poder para a formulação e deliberação política e controle da alocação dos recursos e descentralização da autoridade operacional (Grau, 1998). 109 Conforme analisa Borges (2001: 174), apoiado em Gray: “Subjacente a estas medidas estava a idéia de centralizar todas as decisões governamentais nas mãos de poucos tecnocratas fiéis ao ideário neoconservador, indicados pelo partido. Como não poderia deixar de ser, o processo de implementação de das reformas pró-mercado em países tão distintos como a Nova Zelândia, a Inglaterra, o México e a Rússia se caracterizou pelo estilo tecnocrático e avesso à negociação com grupos sociais e políticos opositores.” 110 Conforme apontam Ferlie et alli (1999: 170): “Há crescentes tentativas de se criar ‘paramercados’ no setor público, onde organizações antes verticais são separadas em dois setores – o de compra e o de prestação de serviços -, sendo a relação entre elas governadas por contrato e não por hierarquia.” cccxi Desse modo, convém destacar que, do ponto de vista social, a burocracia continua sendo a forma predominante da administração pública e privada devido, principalmente, ao seu caráter de especialização. “Precisão rapidez, univocidade, conhecimento da documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa, diminuição de atritos e custos materiais e pessoais alcançam o ótimo numa administração rigorosamente burocrática (especialmente monocrática)” (Weber, 1999b: 212). As mudanças que hoje se têm operado na administração capitalista, de uma forma geral, vêm ao encontro de melhorar esses preceitos. A diminuição de instâncias hierárquicas não é a quebra da hierarquia para garantir agilidade nas tomadas de decisões. As “reengenharias” estão voltadas para alcançar as necessidades descritas acima. A redução dos mecanismos processuais da administração não indicam o desaparecimento da burocracia, mas sua adequação à sociedade capitalista atual. A agilidade exigida pelo capitalismo para a tomada de decisão foi atendida pela organização burocrática. Hoje, como a velocidade das informações e processos aumentou, necessita-se de outros procedimentos (descentralização em determinados níveis, por exemplo) como forma de garantir a agilidade das respostas administrativas. Porém, isso não altera o caráter burocrático da organização. Em outras palavras, as características determinantes da burocracia se mantêm intactas, até hoje, como proposta predominante para organização e direção dos centros de decisão do capitalismo em sua fase atual (financeira e flexível), nas sociedades com relações capitalistas estabelecidas, ou se apresentam como modelo a ser perseguido para a estruturação de uma racionalidade adequada ao desenvolvimento das referidas relações, nas sociedades onde o capitalismo ainda se encontra em processo de expansão e enraizamento na cultura local. cccxii Por outro lado, na periferia dos centros de decisão das empresas e dos Estados as propostas são de enfraquecimento da administração burocrática: seja por conta dos processos de terceirização e flexibilização dos contratos de trabalho que ocorrem nas empresas privadas, seja por conta do processo de diminuição da estrutura estatal – proposto pela chamada reforma administrativa -, realizada através da combinação público-privado (privatização, terceirização ou “publicização”) para a efetivação das ações estatais e da estruturação do quadro administrativo por vias não burocráticas (terceirização e cargos comissionados/cargos de confiança). Podemos considerar que esse formato de enfraquecimento/flexibilização principalmente quadro através da administrativo da burocracia, estruturação por vias do não burocráticas, pode assumir uma feição que se assemelha ao que Weber define como “burocracia patrimonial”. De acordo com o autor: Quando trabalham funcionários não-livres (...) dentro de estruturas hierárquicas, com competências objetivas, portanto de modo burocrático formal, falamos de ‘burocracia patrimonial’ (Weber, 1999a: 145). Na medida em que parte do quadro administrativo passa a ser composto de funcionários que não passam por uma seleção de competência impessoal, via concurso público, mas através de uma relação direta com o dirigente/senhor, forja-se uma situação típica de dominação tradicional, pois, conforme ressalta Weber, em relação à dominação tradicional: ...seu quadro administrativo não se compõe primariamente de ‘funcionários’ mas de ‘servidores pessoais’ (...) Não são os deveres objetivos do cargo que determinam as relações entre o quadro cccxiii administrativo e o senhor: decisiva é a fidelidade pessoal do servidor” (Weber, 1999a: 148). Em outras palavras, podemos afirmar que parte do quadro administrativo, atualmente, pode se aproximar da situação de recrutamento na dominação tradicional definida por Weber como recrutamento extrapatrimonial. Ou seja, um recrutamento em virtude de um pacto de fidelidade com o senhor ou então devido à relação de piedade para com o senhor que os funcionários livres estabelecem (Weber, 1999a: 149). Portanto, hoje ocorre, do ponto de vista administrativo, um processo de burocratização combinado com elementos gerenciais de flexibilização - que podem tender à patrimonialização111 -, ou seja, um modelo que em hipótese alguma pode ser considerado pós-burocrático. Vejamos esse aspecto um pouco mais detalhadamente. A intensificação da centralização burocrática configura uma burocracia monocrática. Segundo Weber, a característica monocrática da burocracia se expressa pela concentração do poder necessária para alcançar “tecnicamente o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, rigor e confiabilidade – isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados -, intensidade e extensibilidade dos serviços e aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas” (Weber, 1999a: 145). 111 Diniz (2000: 56), apesar de não aprofundar esse aspecto teoricamente, levanta esta possibilidade: “A implantação de um padrão gerencial, com base em mudanças de técnicas e procedimentos, não elimina a possibilidade de persistência ou mesmo do reforço do intercâmbio clientelista no relacionamento do Executivo com a estrutura parlamentar-partidária.” cccxiv Sendo assim, a estruturação de uma burocracia monocrática garante a direção do capital num cenário de baixa contra-hegemonia. Nesse contexto, a concentração de poder viabiliza a organização da sociedade, em termos legais (abertura comercial, financeirização, redução do papel regulador do Estado...), no sentido de propiciar a expansão capitalista em sua formatação atual, dispensando a necessidade de uma estrutura burocrática para além dos núcleos de poder. O processo de burocratização monocrática, na atual conjuntura, refere-se à dominação monopólica que está ocorrendo e sua implicação na transformação desse poder econômico em dominação autoritária, visto que, como ressalta Weber, a dominação em virtude de uma posição monopólica pode transformar-se numa dominação autoritária. “... a dominação puramente condicionada pela situação de mercado ou por situações de interesse pode ser sentida, precisamente por sua falta de regulamentos, como algo muito mais opressivo do que uma autoridade expressamente regulamentada na forma de determinados deveres de obediência” (Weber, 1999b: 191). Historicamente, a intervenção burocrática na sociedade se apresentou como uma condição necessária para constituição das sociedades de mercado, como muito bem sinalizou Marx, em relação ao processo de acumulação primitiva, Weber, ao pensar a relação capitalismo e burocracia112 e Polanyi ao mostrar como isso se processou ao longo do século XX. Portanto, o fortalecimento da burocracia no quadro atual é uma necessidade para o desenvolvimento do capitalismo flexível. Conforme analisa Borges (2001: 177): No processo de construção e manutenção do livre-mercado os governos sempre enfrentam pressões contrárias poderosas, seja de grupos organizados como sindicatos e associações empresariais, seja de políticos de oposição ou de elementos da própria burocracia estatal. Ao defender regras legais rígidas capazes de reduzir o escopo da deliberação democrática, a construção de burocracias fortemente insuladas e a centralização política dos governos a TEP 112 Conforme Oliveira registra, há um reducionismo quando o conceito de burocracia é identificado com serviço público, pois, como lembra o autor, para Weber o “conceito de burocracia tem capacidade heurística para entender o que é capitalismo, e não apenas a administração do Estado” (Oliveira, 2001: 142). cccxv [teoria da escolha pública] apenas trata de reconhecer o fato já apontado por historiadores econômicos como Polanyi e outros de que a construção de mercados livres tem como contrapartida a ação de um Estado forte e centralizado. Por outro lado, a expressão desse poder econômico monopólico cria as condições para a cadeia administrativa ser estabelecida através do processo de burocratização monocrático combinado com elementos de flexibilização gerencial, que tende a ter um corpo de servidores com base na lealdade para com o senhor, propiciando a submissão de parte considerável do quadro administrativo ao grupo dominante. Em outras palavras, a burocratização é limitada aos nichos de decisão central. A cadeia administrativa pode e deve ser processada por uma estrutura gerencial flexível, podendo assumir um caráter patrimonial, que garanta lealdade máxima à condução determinada pelo pólo dirigente e pela alta burocracia, visando impedir/diminuir as possibilidades de intervenções administrativas contestatórias. A estrutura burocrática, pelo caráter de liberdade, especialização, conhecimento e seleção por competência do servidor, pode colocar em risco a direção hegemônica proposta, na medida em que abre possibilidades dos níveis intermediários e operacionais da administração burocrática constituírem movimentos de resistência ao projeto dominante. A possibilidade de estruturação do caráter patrimonial da administração atual se apresenta, principalmente, no recrutamento e seleção dos servidores “periféricos” e de níveis intermediários e operacionais, tanto nas empresas quanto no Estado, que combinam um certo nível de competência com “pacto de fidelidade” cccxvi com o senhor. Dessa forma, articulam-se as regras formalmente definidas com uma estrutura patrimonial para garanti-las e não colocá-las em questão. Com isso fragilizam-se ainda mais as possibilidades de construção contra-hegemônica na sociedade, na medida em que se combina servidor livre cooptado, por suas condições especiais de trabalho, para contribuir com a condução hegemônica posta, e servidores não livres que dependem do senhor para manter seu emprego e por isso devotam lealdade máxima para com o projeto hegemônico. No contexto traçado acima, será possível falar da organização estatal ou de uma empresa privada sem mencionar princípios de competência definidos formalmente, hierarquia, documentação e administração baseada em regras? Ou ainda: existe alguma organização (estatal ou empresarial) cujo núcleo estratégico do quadro administrativo não seja livre, nomeado por uma hierarquia, com competências definidas, contratados formalmente (segundo qualificação reconhecida), remunerados com salários em dinheiro, que exercem o cargo como profissão única ou principal, com perspectiva de carreira, trabalhando em separação com os meios administrativos e submetidos a um sistema de disciplina e controle? Nesse sentido, o que estamos enfatizando é que a burocracia weberianamente falando, e nos termos determinados aqui - não é um modelo de gestão como o taylorismo, fordismo ou toyotismo, pois todos são modelos de gestão burocrática com a presença de mais ou menos determinações do chamado tipo cccxvii puro. Porém, sem sombra de dúvidas, os traços essenciais da burocracia permanecem nesses modelos. Do ponto de vista teórico, conforme desenvolvido no primeiro capítulo e sublinhado por Paula (2005) e Diniz (2000), a burocracia não é apenas uma estrutura administrativa; ela é, acima de tudo, uma relação de dominação, sendo seu estatuto teórico, portanto, distinto do estatuto de um estilo específico de gestão. Por outro lado, “é importante evitar a utilização do tipo ideal como referência para identificar a burocracia, pois isso vem ajudando a legitimar a idéia de que as organizações burocráticas estão se convertendo em organizações pós-burocráticas” (Paula, 2005: 95). Adiante a autora (idem: 140) analisa a questão de forma sintética e precisa: “é importante lembrar que a transição para a organização pós-burocrática é um mito, pois temos uma flexibilização da burocracia e uma manutenção da dominação”. A empresa privada, portanto, não deixou de ser burocrática em seus traços e determinações essenciais. O máximo que acontece é que ela mudou determinados procedimentos e organização do trabalho, incorporando estruturas não burocráticas (pensemos em atividades terceirizadas fundamentais para a lógica atual do capitalismo e a situação dos trabalhadores e gerentes dessas empresas periféricas), porém sem alterar, e até mesmo fortalecendo, a estrutura burocrática do centro estratégico. A carreira e a proteção na burocracia empresarial são compensadas pelos altos salários, o que leva o funcionário a ter uma relação maior de subordinação com seu senhor. E, do ponto de vista do empresário, a possibilidade de rotatividade de pessoal, mesmo em escalões estratégicos, devido à existência de oferta de mão-deobra qualificada, possibilita a entrada e saída de gerentes sem que ocorram cccxviii mudanças abruptas de continuidade na burocracia empresarial. Ou seja, o funcionário empresarial está pressionado pelos dois lados: falta de proteção trabalhista e oferta de mão-de-obra qualificada. No caso da empresa, talvez o elemento que possibilita uma certa garantia/segurança para o funcionário é o “segredo burocrático” conquistado pela prática profissional. Assim, o taylorismo, fordismo e toyotismo, enquanto modelos de administração, nada mais são do que formas diferentes de organizar a estrutura burocrática da empresa e seu processo de produção. Portanto, não existe modelo de gestão que não seja burocrático desenvolvido pelas empresas, pois a incorporação de elementos de flexibilização gerencial – que podem tender a ser elementos “patrimoniais” -, requer uma forte burocratização. Nesse sentido, se formos rigorosos com os conceitos e reflexões apresentados até aqui, diferentemente do que o modismo neoliberal apregoa, mudar a gestão do Estado numa perspectiva gerencial não significa implantar um modelo pósburocrático oriundo e desenvolvido na empresa privada, pois ele não existe. O que existe são possibilidades de modelos de gestão dentro da ordem burocrática, através do desenvolvimento de algumas características e redução da importância de outras, reforçando os elementos de flexibilização gerencial, que podem até se constituir como determinações de uma administração patrimonialista113. Ao criticar a arrogância da tese do esgotamento da burocracia e da formulação de uma nova modalidade de administração pública, Nogueira (2004: 42) destaca: 113 Nesse sentido, a tese expressa vai ao encontro da hipótese sugerida por Paula (2005: 95): “a organização pós-moderna é uma nova expressão da burocracia, pois trata-se de uma adaptação do antigo modelo organizacional ao novo contexto histórico. Por outro lado, sua aparente aproximação do modelo pós-burocrático está relacionada com a confusão entre a cccxix Na verdade, nenhuma reforma do aparelho do Estado feita sob o capitalismo tem como se objetivar contra a burocracia, em nome da superação de algum “defeito estrutural” que esse modelo conteria. Se for pensada com critérios políticos e pragmáticos consistentes, e não como agitação, ela só pode ter como meta reconstruir a burocracia (...). Não havia nos anos 1900, e nem há hoje, qualquer motivo justificável para que a reforma do aparelho do Estado seja “orientada pelo mercado” em vez de se concentrar na recuperação e na atualização das capacidades burocráticas. Eventuais sugestões derivadas dos procedimentos de mercado deveriam ser recebidas como um elemento reformador adicional, não como eixo principal. Por outro lado, retirar do setor privado sua relação com a burocracia significa projetar a lógica administrativa empresarial como referência de administração (Oliveira, 2001), viabilizando a incorporação dessa lógica na administração pública. Conseqüentemente, esse mecanismo faz com que a finalidade economicista passe a ser o elemento central da administração estatal. Nesse sentido, a burocracia estatal, além de servir mediatamente para a manutenção da ordem do capital, é pressionada para atuar diretamente com esse objetivo Em outras palavras, num quadro de profunda concentração do poder econômico nas mãos de poucas empresas e numa situação de hegemonia significativa da burguesia, todas as instituições da sociedade passam a ser forçadas a operar mais diretamente dentro da lógica do capital. Esta se configura como a orientação da ideologia e da ação política dominante. E a estrutura do Estado não foge a essa regra. Conforme salienta Diniz (2000: 21), a globalização é conduzida, também, e, sobretudo, por uma lógica política: Esta por sua vez, tem a ver com a nova configuração das relações de poder entre as potências mundiais, com a formação de blocos e instâncias supranacionais de poder, ou ainda com as redes transnacionais de conexões, através das quais se articulam alianças estratégicas, envolvendo atores externos e internos, como as grandes corporações multinacionais e as organizações financeiras internacionais, ou ainda tecnocratas em posição-chave, burocratas de alto nível e outros segmentos das eleites estratégicas. Tais redes permitem não só a difusão de argumentos técnicos, mas também o delineamento de novos parâmetros e valores, dando origem a uma ideologia da globalização com alto poder de contágio e capaz de burocracia e o tipo ideal.” cccxx promover um verdadeiro choque semântico, que subverte conceitos e significados. Fiori (1998:26) reforça essa análise ao mostrar que a globalização “é também o resultado de decisões políticas e econômicas tomadas de forma cada vez mais concentrada por alguns oligopólios e bancos globais e alguns poucos governos nacionais”, não se tratando, portanto, de um processo derivado, exclusivamente “do progresso técnico ou da evolução competitiva dos mercados.” De acordo com Diniz (2000), esse processo de centralização burocrática é potencializado, em termos globais, pelas chamadas “comunidades epistêmicas”, constituídas a partir da difusão internacional de determinado conhecimento especializado na área das políticas públicas, que passa a ser consensual entre especialistas que acabam formando uma rede de tecnocratas (nacionais e estrangeiros), cujo prestígio e reconhecimento internacional funcionam como uma nova fonte de poder para socializar determinados paradigmas de análise. Conforme salienta a autora, ...a comunidade-chave de teor transnacional é constituída de economistas treinados nas universidades americanas ou européias, que tendem a adquirir grande influência como mentores das reformas e programas de estabilização. Muitos desses economistas integram durante algum tempo o staff de agências multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, levando para seus países de origem orientações afinadas com o pensamento canônico nos círculos internacionais. Ademais, o recrutamento para postos de direção, nas agências estatais estratégicas, como o Ministério da Fazenda e o Banco Central, tende a subordinar-se a essa rede de conexões, já que um trânsito fácil nos círculos financeiros internacionais torna-se requisito importante para ascender a tais funções (Diniz, 2000: 22). Enfim, podemos dizer que a exigência de maior racionalidade do ponto de vista do capital, ou seja uma administração contínua, rigorosa, intensa, calculável, visando ao máximo de rendimento, requer a centralização de comando cada vez mais intensa. As decisões da empresa capitalista não podem ficar à mercê de regras e normas controladoras estabelecidas pelo Estado. A reforma do Estado e, em seu interior, a reforma administrativa visam reestruturar a burocratização da sociedade cccxxi enquanto mecanismo de administração/dominação da sociedade de massas, buscando “monocratizar” cada vez mais a burocracia nas mãos do grande capital financeiro e inserir elementos de flexibilização gerencial no restante da cadeia administrativa, visando à agilidade e à redução de custos – o que abre possibilidades para o desenvolvimento de traços patrimonialistas na administração. Nesse sentido, não estamos frente a um modelo pós-burocrático, mas exatamente o contrário, vivemos um processo de aprofundamento da burocratização da sociedade capitalista. Sendo assim, a reforma da administração pública - chamada gerencial nada mais é, em sua essência, que uma proposta vinculada ao neoliberalismo baseada na sugestão de procedimentos gerenciais flexíveis, num quadro de centralização burocrática, para adequar a ordem administrativa a uma nova forma de comando, mais direta e mais explícita, efetivada pelas classes dominantes. Por outro lado, o fortalecimento do Estado realizado, também, através da estruturação burocrática de suas ações, pode ser um empecilho para os interesses do capital transnacional, na medida em que amplia as possibilidades de diferentes projetos políticos no interior do funcionalismo. Assim, para poder tomar decisões e expandir, o capital transnacional necessita de determinadas regras que devem ser adotadas pelo Estado. Por isso, através de seu poder e de seus interlocutores ou representantes políticos (FMI, BIRD, BID), provocam as mudanças necessárias para melhor administrar sua ação e exercer sua dominação. Nesse quadro, o recurso à flexibilização gerencial ou a uma “burocracia patrimonial” ou a elementos “patrimonialistas”, combinado com a burocratização do núcleo central das decisões políticas e econômicas - expresso através da ação e das cccxxii propostas de sua burocracia empresarial e política -, contribui com o processo de fortalecimento “monocrático” do grande capital. Essa configuração cria obstáculos para a construção de possibilidades de estabelecimento de um contraponto aos interesses do capital, na medida em que enfraquece a organização burocrática estatal em sua amplitude. Nesses termos, os neoliberais não são contrários nem ao Estado nem à burocracia. Eles são contrários aos aspectos do Estado e da burocracia que podem fortalecer a construção da universalidade, a realização da liberdade, ou seja, de sua racionalidade, no sentido hegeliano. Em outras palavras, eles são contrários a determinados aspectos do Estado e da burocracia. Esses aspectos, como procuramos demonstrar no capítulo 1, podem fortalecer na sociedade a luta por transformações estruturais que levariam, aí sim, a mudanças do próprio Estado e de sua organização administrativa. O que o neoliberalismo faz não é destruir a burocracia, enquanto ordem administrativa racional, “núcleo de toda administração de massa” (Weber, 1999a: 146), mas definir uma organização burocrática mais adequada à configuração do capitalismo contemporâneo. Conforme destaca Paula (2005: 97): Partindo do pensamento de Weber, constatamos que a burocracia flexível continua se baseando nas relações associativas racionais, que o autor considera a base da dominação burocrática. No entanto, uma vez que a rigidez não é mais o melhor caminho para responder às contingências e obter a obediência dos funcionários, várias transformações organizacionais estão em curso. Efetivamente, a proposta neoliberal implica desmobilizar o Estado, enquanto possibilidade de universalidade (ampliação do atendimento aos interesses das camadas dominadas da sociedade), buscando, conseqüentemente, inviabilizar estruturalmente uma burocracia, também, com essa orientação. cccxxiii Sendo assim, os elementos de flexibilização gerencial nada mais são do que estratégias para estruturar uma burocracia flexível que combina descentralização, monocratização separando a política e da técnica e a formulação da execução. Nesses termos, o gerencialismo, além de não se constituir como um novo paradigma de administração, possui vinculação orgânica com a teoria da escolha pública, apesar de seus defensores evitarem se identificar com tal corrente do pensamento neoclássico, buscando se apresentar como uma solução “pós- moderna”, sem ideologia, para os problemas administrativos do governo (Andrews e Kouzmin, 1998: 98). Paula (2005: 53) corrobora essa análise afirmando que “o gerencialismo contribuiu para esvaziar as práticas neoconservadoras de sua substância política original, pois atribuiu às medidas de reforma um verniz de eficiência e significados aparentemente progressistas como excelência, renovação, modernização e empreendedorismo.” Conforme destaca Andrews e Kouzmin (1998: 118), a essência da administração gerencial “tem sido a de reorientar o ‘negócio’ do setor público de forma que não mais sirva ao cccxxiv Estado de Bem Estar Social, mas sim a um Estado que clama como seu principal objetivo dar apoio a uma economia competitiva global”, através da transposição da lógica do mercado para a administração pública (Andrews e Kouzmin, 1998 e Fedele, 1999). Em síntese, o gerencialismo não passa de tecnologias de flexibilização e valorização do mercado que compõem a proposta de monocratização burocrática necessária para a implementação do projeto de transnacionalização radical. Assim, o projeto gerencialista ataca a finalidade de universalização de direitos e sua dimensão racional/impessoal da ordem administrativa burocrática que potencializaria aquela finalidade. Ratifica-se uma finalidade fundada no atendimento de necessidades mínimas da população, coerente com a proposição neoliberal de reforço do mercado, e na mudança da estrutura burocrática para flexibilizá-la, na medida em que não se propõe a universalização de direitos. A particularidade brasileira da proposta de contra-reforma da administração pública: o tratamento paradoxal da burocracia e o patrimonialismo em transformismo114 Para a análise da particularidade brasileira da proposta de contra-reforma da administração pública, devemos trabalhar com as duas determinações fundamentais antes assinaladas: o projeto social, econômico e político hegemônico e a coalizão de classe que dirige a implementação desse projeto. 114 Desenvolvo, quanto à noção de transformismo aplicada à crítica do “neopatrimonialismo”, as breves sugestões que a Profª Drª Ana Elizabete Mota ofereceu durante a defesa da Tese de doutoramento de Ana Maria Amoroso Costa, na Escola de cccxxv Na medida em que Bresser Pereira foi o ideólogo da proposta de contrareforma administrativa do governo FHC, utilizaremos seus textos (1996, 1998a e 1998b) e o Plano Diretor da Reforma Administrativa, como base da análise que desenvolveremos. O caminho analítico que seguiremos parte da crítica às tentativas (Bresser, 1996, 1998a e 1998b e Grau, 1998) de negar a articulação da proposta de alteração da administração pública do governo FHC com as orientações do gerencialismo neoliberal. Nesse sentido, buscaremos mostrar a vinculação orgânica existente entre o Plano Diretor e a perspectiva neoliberal, a partir de três dimensões distintas, mas articuladas dialeticamente, quais sejam: política, teórica e institucional. Do ponto de vista político, podemos destacar diferentes aspectos que mostram nitidamente a vinculação entre o gerencialismo neoliberal e a proposta de mudanças administrativas do governo FHC. Em primeiro lugar, como demonstrado anteriormente, o projeto implementado pelo governo FHC é um projeto orientado para a transnacionalização radical da economia brasileira, numa perspectiva liberal conservadora. Dessa forma, a finalidade que orienta a reforma do Estado e, no seu interior, a reforma administrativa brasileira é uma orientação claramente neoliberal, portanto, uma orientação política que determina uma verdadeira “contra-reforma” na administração pública. Outro aspecto a destacar refere-se à valorização do mercado explicitada pelo ideólogo da contra-reforma. Segundo o autor: o novo conservadorismo realizou uma crítica útil dos problemas enfrentados pelo mundo, particularmente para as distorções que vitimaram o Estado, mas que (...) apresentou soluções parciais senão equivocadas para esses problemas. O mercado é certamente um mecanismo maravilhoso. Não tenho restrições à idéia de que todas as reformas econômicas devem ser orientadas ao mercado. Eu diria até que elas deveriam ser market biased – ter um viés a favor do mercado. O que eu quero dizer com isso é que devemos sempre partir do pressuposto de que o Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em janeiro de 2006. cccxxvi mercado terá um papel positivo na coordenação da economia (Bresser Pereira, 1976: 17). Esse aspecto mostra como Bresser Pereira se fundamenta na concepção neoliberal, ainda que negue logo em seguida. A negação da vinculação ao ideário neoliberal é argumentada dizendo apenas que sua posição não mitifica o mercado, como fazem os neoliberais, e que a economia orientada para o mercado não se confunde com a idéia de uma economia coordenada pelo mercado. Segundo o autor, a orientação deve ser o objetivo de qualquer economia que pretenda ser competitiva. A coordenação centrada no mercado é um equívoco, uma vez que a coordenação de uma economia deve ser realizada a partir da combinação da competitividade, desenvolvida pelo mercado, e da cooperação, articulada pelo Estado. Substantivamente, esses aspectos não são antagônicos aos preceitos do neoliberalismo, visto que é possível não mitificar o mercado, mas privilegiá-lo como o melhor regulador societal e, por outro lado, a combinação mercado-Estado para coordenar a economia é algo defendido e implementado pelos neoliberais - por isso, argutamente, Netto (1995), como vimos, qualifica a proposta neoliberal como a defesa do Estado máximo para o capital. O terceiro aspecto que podemos destacar é a forma como o ideólogo da contra-reforma administrativa do governo FHC interpreta a crise dos anos 1970 e 1980. Segundo Bresser Pereira (1996 e 1998b) , a crise econômica dos anos 1980 se configura como uma crise do Estado: crise fiscal, crise do modo de intervenção do Estado (keynesiano na economia e welfareano no social) e crise do modelo burocrático de administração do Estado. Portanto, segundo o autor e ideólogo, a crise contemporânea não se configurou como uma crise econômica do capitalismo, mas sim como uma crise do Estado. cccxxvii Entretanto, como vimos anteriormente, as crises econômicas que se manifestam desde os anos 1970 e sua conseqüente redução da taxa de crescimento mundial contribuem para colocar em questão o padrão welfare state de regulação da sociedade, sob o argumento de uma suposta crise fiscal. No entanto, conforme análise de Teixeira (2000), Tavares (1993a, 1998), Cardoso de Mello (1998), Fiori (1993, 1995 e 1998), o que ocorre de fato nesse período é uma crise financeira profunda que provocará uma crise fiscal, devido ao aumento do gasto público com juros e serviços da dívida, e não uma crise fiscal decorrente do aumento do gasto público em investimentos, custeios e programas sociais não acompanhados pelo aumento de receita. Simultaneamente, o desenvolvimento tecnológico pautado na robótica, microeletrônica, informática, novos mecanismos de comunicação on line, assim como as mudanças na organização do processo produtivo que se translada de uma orientação fordista para uma orientação flexível provocam mudanças radicais no mundo do trabalho (Antunes, 1995). A esses fatos aliam-se o desmoronamento das experiências de socialismo de Estado e a ofensiva liberal-conservadora. Tal ofensiva, através dos governos Tatcher, Reagan e Kohl, impôs ao mundo uma hegemonia ideológica e de experiências concretas pautadas na liberalização do mercado como elemento central para atingir melhor regulação social. Dessa forma, estabeleceu-se uma ideologia com projeção mundial pautada na proposta de esvaziamento do Estado e de seu papel regulador da sociedade, produzindo uma agenda política centrada na reestruturação estatal. De fato, a análise de Bresser Pereira sobre a crise do Estado é tipicamente neoliberal. Em decorrência da análise realizada acerca da crise, o autor define a estratégia social-liberal como aquela que tem como prioridade a orientação para o mercado, afirmando que: “a interpretação da crise e a correspondente estratégia social-liberal tomam emprestado do paradigma neoliberal a sua orientação ao mercado e a crença de que as funções do Estado foram severamente distorcidas“ (Bresser Pereira, 1996: 20). Assim, completa o autor, é necessário reformar o Estado cccxxviii tendo como primazia “reformas econômicas orientadas ao mercado, privatização, desregulamentação, liberalização comercial, assim como disciplina fiscal e as políticas monetárias restritivas” (idem: 22). Ou seja, Bresser Pereira defende um receituário tipicamente neoliberal, uma cópia do Consenso de Washington. Como ressalta Andrews e Kousmin (1998: 99): “a reforma administrativa brasileira tem sido guiada pela mesma filosofia impulsionadora do programa de privatizações”. Ratificando essas análises, Paula (2005: 117) sintetiza a direção política da proposta de contra-reforma administrativa do governo FHC de forma precisa: A crise do nacional-desenvolvimentismo e as críticas ao patrimonialismo e autoritarismo do Estado brasileiro estimularam a emergência de um consenso político de caráter liberal que se baseia na articulação entre a estratégia de desenvolvimento dependente e associado, as estratégias neoliberais de estabilização econômica e as estratégias administrativas dominantes no cenário das reformas orientadas para o mercado. Esta articulação sustentou a formação da aliança política que levou o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) ao poder, viabilizando a reforma dos anos 1990 e a implementação da nova administração pública no Brasil. No entanto, para se distanciar do neoliberalismo, o ex-ministro rotula a estratégia defendida por ele e pelo governo FHC de social-liberal. Uma tentativa de se apresentar como uma esquerda moderna, alternativa, vinculada ao movimento da “terceira via”. Paula (20045: 70-77), então, mostra as conexões e continuidades entre esses movimentos e a concepção neoliberal. A autora conclui que, apesar de dirigir críticas ao neoconservadorismo, esse movimento mantém o eixo liberal e o adapta à globalização; por outro lado, não despreza determinadas reformas neoconservadoras, pois têm fundamento liberal. Dessa maneira, o traço de continuidade entre a terceira via e o neoconservadorismo se estabelece pela via liberal. Portanto, do ponto de vista político, a “reforma” de FHC não se distinguiu do neoliberalismo, como resalta Nogueira (2004: 53), “a reforma estacionou nos limites da propalada desconstrução neoliberal do Estado, dedicando-se a desenhar uma cccxxix imagem negativa do fenômeno estatal e a conceber a reforma como uma operação para comprimir o Estado, não para melhorá-lo”. Do ponto de vista teórico, a primeira questão a destacar refere-se à concepção de Bresser Pereira que identifica administração pública com administração privada. A partir da segunda metade dos anos 1960 ,o debate, iniciado nos Estados Unidos, sobre a integração necessária entre a administração pública e a empresarial - sob o argumento de que no mundo moderno não há distinção nítida entre as duas administrações -, apesar de não ter prosperado naquele país, encontrou no Brasil um campo fértil para o seu desenvolvimento: Constituição de 1967, Decreto-Lei 200, o “milagre econômico” e a radicalização do regime autoritário (Gaetani, 1999). No caso brasileiro, portanto, essa relação tornou-se uma efetiva “absorção da administração pública pela administração empresarial”, nas palavras de Gaetani: Embora esse debate [sobre a integração necessária entre a administração pública e a empresarial] não tenha prosperado nos EUA, no Brasil o desenrolar dos acontecimentos revela que se encaminhou para uma fusão ou integração, que na prática resultou na absorção da administração pública pela área de administração de empresas, em termos gerais. O resultado foi a adoção de currículos integrados nos cursos de Administração, sem adjetivações. (...) Ao longo do tempo, administração tornou-se sinônimo de administração de empresas (Gaetani, 1999: 103). Bresser Pereira (1998b), ao fazer uma crítica a Pollitt e a Abrúcio, desconsidera a distinção entre administração pública e administração empresarial. Depois de afirmar que a identificação do gerencialismo com idéias neoliberais se faz devido ao fato de as primeiras reformas terem sido implementadas por governos conservadores (Thatcher e Reagan) e introduzidas simultaneamente aos programas de ajuste estrutural para enfrentamento da crise fiscal do Estado, desenvolve o seguinte argumento para tentar mostrar que uma possível perspectiva democrática ou centrada no cidadão, que distingue administração pública de administração privada, seria, apenas, uma tentativa de reatualização do modelo burocrático tradicional: cccxxx “ As reações políticas à idéia da administração pública gerencial têm uma origem ideológica óbvia. O livro Managerialism and the public service, de Pollitt (1990), é bom exemplo desse fato. O managerialism é visto como um conjunto de idéias e crenças que tomam como valores máximos a própria gerência, o objetivo de aumento constante da produtividade, e a orientação para o consumidor. Abrúcio (1997), em panorama da administração pública gerencial, compara esse ‘gerencialismo puro’, pelo qual designa a ‘nova administração pública’, com a abordagem adotada por Pollitt, ‘orientada para o serviço público’ e que visa ser uma alternativa gerencial ao modelo britânico. Na verdade esse modo de ver as coisas é apenas uma tentativa de dar atualidade ao velho modelo burocrático, não é uma alternativa gerencial. A idéia de opor a orientação para o consumidor (gerencialismo puro) à orientação para o cidadão (gerencialismo reformado) não faz sentido algum (Bresser pereira, 1998b: 32-33). O segundo aspecto a ser considerado é a crítica ao modelo burocrático realizado pelo ideólogo da contra-reforma administrativa do governo FHC. De acordo com Bresser Pereira, a “Administração Pública Gerencial” expressa o processo de mudança do modelo burocrático de administração para o modelo gerencial (Bresser Pereira, 1998a, 1998b, 1996). O autor considera que o advento do modelo burocrático de administração foi necessário para que se estabelecesse a distinção entre o público e o privado, elemento fundamental de construção do Estado moderno. Portanto, superar o modelo patrimonialista de administração pré-capitalista, em que os bens privados do príncipe se confundiam com os bens públicos e as relações pessoais estruturavam a condução das coisas do Estado, era uma tarefa central para o desenvolvimento capitalista. No entanto, segundo Bresser Pereira, a crise econômica dos anos 1980, ao se configurar como uma crise do Estado, no geral, e, particularmente, numa crise do modelo burocrático de administração do Estado, requer uma reforma do Estado que passa, necessariamente, pela reforma do modelo de administração do Estado. De acordo com o autor, o padrão burocrático de administração pública entra em xeque devido, principalmente, à rigidez e à ineficiência do serviço público cccxxxi (Bresser Pereira, 1996: 20) e seu caráter antidemocrático (Bresser Pereira, 1996: 272). Essas características do serviço público burocrático teriam como causas os seguintes aspectos: apropriação privada do aparelho público, através de processos de corrupção de seus agentes; exagerada ênfase nos procedimentos – fato que não propiciava uma atenção adequada aos resultados da administração e gerava processos extremamente dispendiosos e lentos; atuação auto-referenciada da burocracia - a partir da formação de uma classe tecnoburocrata -, não privilegiando, dessa forma, a centralidade do cidadão como referência para o serviço público; falta de accountability. Nesse quadro de crise do modo burocrático de administração do Estado, inserido numa crise do Estado - causa da crise econômica dos anos 1980 -, é que se encontra, segundo o ex-ministro do governo FHC, a administração pública gerencial como alternativa ao modelo administrativo existente. A crítica de Bresser Pereira à burocracia deve ser problematizada por dois ângulos. O equívoco teórico do autor no trato da burocracia e a fragilidade empírica de seus argumentos. Em relação ao aspecto teórico sobre a burocracia, o autor incorre na mesma concepção equivocada, criticada na seção anterior, que trata a burocracia num mesmo nível teórico que o gerencialismo, buscando apresentá-lo como uma alternativa de ordem administrativa à burocracia e ao patrimonialismo, quando, na verdade, o gerencialismo se estrutura como uma proposta que combina um processo de monocratização e flexibilização da burocracia, podendo incorporar traços do patrimonialismo. Oliveira (2001: 142), de forma incisiva e irônica, aponta para o reducionismo operado por Bresser Pereira quando trata o conceito de burocracia identificado com cccxxxii serviço público, enquanto para Weber o “conceito de burocracia tem capacidade heurística para entender o que é capitalismo, e não apenas a administração do Estado”. Oliveira (id, ibid) sinaliza, também, que o ex-ministro “retira do setor privado, de sua administração, qualquer relação com a burocracia”, possibilitando, dessa forma, concentrar o ônus desse modelo de administração nas mãos do Estado, liberando o setor privado para se projetar como espaço privilegiado e exclusivo de modelos eficientes de administração. Essa engrenagem é utilizada para reforçar a idéia da necessidade de incorporação pelo Estado de modelos de gestão desenvolvidos pelas empresas privadas, reforçando o modelo economicista funcional à lógica do capital no contexto neoliberal. Outro aspecto a ser destacado da crítica de Bresser Pereira diz respeito à forma como ele a articula com democracia. Como ressalta Sônia Fleury (1997), além de a burocracia ter sido fundamental na construção do Estado democrático moderno, as questões relativas à centralização/descentralização, responsabilização da gestão pública e controle social não são inerentes à administração burocrática, mas, antes, trata-se da questão política de assegurar a utilização do Estado para a promoção do interesse público (Fleury, 1997). Portanto, não podemos debitar o caráter antidemocrático do modelo de administração burocrática apenas às forças intrínsecas ao desenvolvimento da burocracia. Na mesma linha de raciocínio, Oliveira (2001) reage ao fato de que Bresser Pereira considera a crise do Estado como produto da expansão democrática e, em nenhum momento, levanta a possibilidade de identificar essa crise como expressão (e não causa) de uma crise democrática ou, pelo menos, considerar que essa crise cccxxxiii pode colocar em risco a democracia. Nesse sentido, Oliveira inverte radicalmente os argumentos de Bresser Pereira, abrindo um leque de alternativas analíticas bem mais profundas e complexas para situarmos a crise do modelo burocrático de administração. Para concluir a crítica a Bresser Pereira, no que tange ao tratamento dado pelo autor à questão burocrática, cabe ressaltar a fragilidade de seus argumentos, do ponto de vista empírico. Nesse caso, o estudo de Peter Evans (1993) é conclusivo. De acordo com o autor, o problema dos Estados do Terceiro Mundo não é a sua natureza burocrática, mas a falta de burocracia. No caso particular do Brasil, conforme destaca Evans, os problemas são: a) excesso de recrutamento não meritocrático – cargos de confiança; b) bolsões de eficiência; c) incrementalismo ou reforma por acréscimo, dificultando a coordenação política e estimulando o recurso a soluções personalistas; d) relação do Estado com as elites agrárias tradicionais; e) falta de estrutura burocrática estável prejudicando o estabelecimento de laços do tipo “orientação administrativa”, jogando a relação público-privado para canais individualizados – “anéis burocráticos” (Evans, 1993: 140-143). Para finalizar a análise, do ponto de vista teórico, da vinculação da proposta de mudança administrativa elaborada e conduzida pelo governo FHC ao ideário neoliberal, apresentaremos a afinidade existente entre a concepção gerencialista de Bresser Pereira com a teoria da escolha pública. Nesse sentido, Paula (2005) e Andrews e Kouzmin (1998), através de análises rigorosas, desmontam qualquer possibilidade de separação entre os fundamentos da proposta de contra-reforma administrativa de FHC e a perspectiva da teoria da escolha pública. O trabalho de Paula (2005) analisa, num primeiro momento, a construção e consolidação teórico-prática das propostas neoliberais para a administração pública. cccxxxiv A autora, dessa forma, mostra as conexões existentes entre o neoliberalismo, a teoria da escolha pública, o movimento “reinventando o governo”115 e a terceira via, afirmando que, apesar de algumas diferenças entre as perspectivas, todas possuem como núcleo teórico-prático o neoliberalismo e a teoria da escolha pública. Paula (idem) inicia o trabalho explicitando a fundamentação neoliberal e da teoria da escolha pública da chamada “Nova Administração Pública” (gerencialismo). Em seguida, mostra a relação do movimento “reinventando o governo” com o movimento gerencialista americano e compara os princípios daquele movimento com preceitos do neoliberalismo e da teoria da escolha pública, concluindo que o movimento “reinventando o governo” possui a mesma concepção teórico-prática daqueles preceitos, porém adequando-a à linguagem gerencialista116. Em relação à terceira via, a autora, a partir da análise crítica do pensamento de Anthony Giddens, mostra o paradoxo dessa corrente, na medida em que ela, do ponto de vista do discurso, critica o neoconservadorismo, mas, do ponto de vista teórico-prático preserva os elementos econômicos e morais do neoliberalismo para defender sua proposta de modelo de gestão. A partir desse trabalho teórico, Paula (2005), ao identificar o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado com a vertente gerencial, relaciona explicitamente a fundamentação da proposta com os preceitos de neoliberalismo e, implicitamente, com a teoria da escolha pública. A relação entre a fundamentação do Plano Diretor e a teoria da escolha pública é realizada de forma explícita e rigorosa por Andrews e Kouzmin (1998), Conforme sintetizam os autores117: 115 Movimento de “reforma” administrativa originado nos Estados Unidos, no contexto do governo Clinton, baseado nas indicações sobre a necessidade da descentralização administrativa e incorporação de mecanismos gerenciais na administração pública, sugerido pelos consultores David Osborne e Ted Gaebler, através do livro “Reinventando o Gogerno”. 116 Grau (1998: 222-223) também mostrará a relação entre trabalho de Osborne e Gaebler e o enfoque mercadológico da administração pública. 117 A análise dos autores é realizada com base no trabalho de Bresser Pereira “A Reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle”, apresentado pelo autor, em 1997, por ocasião da segunda reunião do círculo de Montevideo, em Barcelona. cccxxxv “Reconstrutir o Estado“, de acordo com o Ministro Bresser Pereira (...) significa diminuir o tamanho do Estado, desregular a economia, aumento a governança e a governabilidade. O primeiro objetivo seria alcançado por meio das privatizações, da terceirização e da transferência de serviços públicos para organizações não governamentais (publicização). Uma menor intervenção do Estado na economia seria alcançada com a adoção de mecanismos de mercado. Para aumentar a governança (...) seria necessário realizar o ajuste fiscal , implantar a administração gerencial e separar a formulação da implementação de políticas públicas. O aumento da governabilidade (...) seria realizada pela melhoria da democracia representativa e pela introdução do controle social. Todos estes objetivos, com exceção da governabilidade, estão baseados nos pressupostos teóricos da Escolha Pública (Andrews e Kouzmin, 1998: 100). Partindo desta síntese, os autores, detalhadamente, demostram as relações entre cada um desses aspectos e a teoria da escolha pública. Para o objetivo desta seção, parece-nos suficiente sublinharmos alguns elementos analíticos desenvolvidos pelos autores, já que não é o caso de proceder a um resumo de seu brilhante trabalho. A primeira relação identificada pelos autores entre a concepção de Bresser Pereira e a teoria da escolha pública refere-se à concepção do ex-ministro sobre o “pressuposto de que o crescimento do Estado é inerente ao próprio Estado, uma vez que os teóricos da Escolha Pública acreditam que os servidores públicos agem apenas na busca de seus interesses pessoais (rent-seeking)” (Idem: 103). Os autores destacam de forma enfática a relação entre a idéia de redução do Estado, defendida por Bresser Pereira, e a teoria da escolha pública, na medida em que tal teoria defende essa concepção “tanto pelo pressuposto de que os políticos agem para maximizar os votos ou de que burocratas agem para maximizar o orçamento de seus bureaux” (idem: 106). Outro aspecto que os autores destacam é sobre a identificação entre a proposta presente no Plano Diretor de constituir “quase-mercados” para o desenvolvimento dos serviços sociais e a defesa da “expansão da analogia de mercado para a esfera política e, portanto, para os serviços públicos e sociais” (idem: 108) feita pela teoria da escolha pública. cccxxxvi Por fim, gostaríamos de ressaltar que o ex-ministro, ao considerar o mercado como o melhor mecanismo de controle para a administração pública, em detrimento do controle social e do controle da administração gerencial, ao proclamar “a superioridade hierárquica do mercado sobre o controle social (...), endossa as propostas da Nova Administração Pública e da teoria da Escolha Pública“ (idem: 110). Sendo assim, nada mais afinado com o ideário neoliberal e da escolha pública que a concepção teórica que fundamenta o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Vejamos, então, para concluir a análise da particularidade brasileira da contrareforma administrativa, o Plano Diretor sob o ponto de vista institucional. A estratégia do Plano Diretor era viabilizar o ajuste fiscal118 e a mudança institucional da administração pública, através de dois mecanismos. O primeiro mecanismo estava voltado, por um lado, para a redução do aparelho do Estado (o que provocaria um impacto imediato nas contas públicas), via privatização, terceirização, extinção de órgãos e focalização dos gastos sociais e, por outro lado, para a centralização e fortalecimento dos núcleos de decisão e controladores das políticas (núcleos estratégicos). Do ponto de vista da ordem administrativa, esse mecanismo que combina redução dos gastos com fortalecimento dos centros de decisão, estrutura uma ambigüidade no tratamento da burocracia. Por um lado, a centralização das decisões é realizada através do processo de “monocratização” da burocracia. Essa concentração de poder se efetiva nos chamados núcleos estratégicos do Estado. No caso da organização administrativa do governo FHC, esse procedimento é inconteste. Diniz (2000: 90) analisa de forma contundente: O padrão tecnocrático de gestão persistiu durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que reforçou o processo de 118 Conforme sinaliza Diniz (2000: 52-53), “a orientação básica do governo esteve voltada para as questões relativas à crise fiscal e à necessidade de alcançar a austeridade orçamentária”. cccxxxvii insulamento burocrático, atribuindo papel primordial ao Ministério da Fazenda, ao Banco Central e ao Tesouro Nacional, que formariam, ao lado do BNDES, o núcleo responsável pelas decisões, sobretudo no que se refere à política econômicofinanceira, controlando as informações estratégicas, principalmente aquelas que circulam nos meios internacionais, e dispondo de canais privilegiados de acesso às decisões externas. Aos demais ministérios caberia uma posição relativamente periférica, em geral tendo conhecimento das decisões depois de estas terem sido tomadas. Ou seja, o círculo de poder decisório tonou-se extremamente restrito, operando sob condições de confinamento burocrático, sem transparência e freqüentemente de forma sigilosa. O estilo tecnocrático foi fortalecido pelo amplo uso, por parte do Executivo, do instrumento das medidas provisórias, editadas e reeditadas numa proporção significativamente superior a que se verificara nos governos anteriores. Essa estruturação segue tipicamente a cartilha neoliberal e da teoria da escolha pública. Ou seja, desideologiza-se a política e despolitiza-se a gestão visando garantir a direção social neoliberal a ser implementada pelos governos (Fiori, 2001a: 135 e 142). Corroborando essa análise, Borges (2001) destaca que a proposta de autonomia do Banco Central e a Lei de Responsabilidade Fiscal configuram-se como estratégias para consolidar essa ordem administrativa fundada na centralização burocrática. “É melhor confiar em burocracias altamente insuladas e adeptas ao pensamento econômico liberal ou em regras legais rígidas definidas constitucionalmente do que na pureza ideológica dos representantes eleitos” (idem: 175). Pelo lado da estratégia de redução dos gastos públicos, encontraremos a diminuição da estrutura burocrática da administração pública. A Emenda Constitucional nº 19 e o processo de terceirização, a que voltaremos adiante, são expressões emblemáticas dessa estratégia. A EC nº 19 formalizou, no plano institucional, uma série de possibilidades para restringir a estruturação do quadro burocrático da administração pública. De acordo com Diniz (2000: 51-52): ...o cerne das propostas do Executivo estaria constituído pela flexibilização do serviço público, notadamente em relação à estabilidade (admitida apenas para o núcleo estratégico e as cccxxxviii atividades exclusivas), ao regime jurídico único, à isonomia, à isonomia e à forma de ingresso via concurso público, mudanças que em seu conjunto, afetariam as bases do sistema em vigor. Pessoa (2000) ratifica a análise de que a EC nº 19 expressa a incorporação do gerencialismo neoliberal na medida em que, em conjunto com outras ações do governo, implementa a adoção em larga escala do regime celetista em substituição ao estatutário, com possibilidade de dispensa nos moldes privados; quebra da estabilidade; freqüentes cortes orçamentários e aviltamento da situação dos servidores públicos; ênfase nos "resultados", nas "metas", e menosprezo aos "procedimentos", com a conseqüente "flexibilização" (entenda-se descaso) do princípio da legalidade em matérias vitais, tais como licitações, contratações de bens e serviços, nomeação / contratação / dispensa de servidores públicos (Pessoa, 2000: 3). Nessa perspectiva, consolida-se o tratamento paradoxal da burocracia. Por um lado um movimento de monocratização burocrática, via núcleos estratégicos e, por outro, o esfacelamento do quadro burocrático, via medidas de flexibilização, voltadas para a redução do gasto público. O trabalho de Rezende (2004) é essencial para identificarmos a ligação umbilical entre a redução do quadro burocrático e a finalidade do ajuste fiscal. O autor mostra que houve grande cooperação dos ministérios econômicos com o Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) para reduzir os custos de pessoal da administração pública, devido a sua importância para a obtenção do ajuste fiscal. De acordo com Rezende, o MARE foi extremamente eficiente, pois, de 1995 a 1999, a despesa com pessoal passou de 56,2% da receita corrente líquida para 39,7% e o número de funcionários públicos civis do poder executivo caiu de 630.763, em 1995, para 536.321, em 2000119. O segundo mecanismo reorganizava a relação entre formulação e implementação de políticas, redefinindo a relação de controle, através da descentralização e estabelecimento de critério de performance, que seriam 119 Rezende (2004) não apenas menciona eficiência, como também qualifica como “sucesso” as ações empreendidas para redução de custos e de pessoal do quadro burocrático. A avaliação de sucesso e a eficiência estão relacionados apenas ao critério econômico do ajuste fiscal; o autor em nenhum momento explicita o que está considerando como finalidade social a ser alcançada pelo Estado e sua relação com o tamanho do quadro burocrático e os níveis salariais atingidos. Além disso, como apontam Diniz (2000) e Martins (1997), o Brasil não possui excesso de quadro burocrático. cccxxxix acompanhados via contratos de gestão, a partir da transformação de determinados órgãos administrativos em organizações sociais ou em agências executivas. Por outro lado, essa mudança institucional também levaria a uma maior interação entre o poder público e o terceiro setor (programa de publicização – criação do status de organização da sociedade civil de interesse público/OSCIP e criação do Termo de Parceria como instrumento legal para facilitar a relação formal entre Estado e OSCIP, viabilizando a transferência de recursos). Nesse sentido, na lógica do Plano Diretor, a mudança institucional visava manter a situação de ajuste fiscal (objetivo primário) e melhorar a eficácia e eficiência das agências administrativas, através da proposta clássica gerencialista de combinar centralização burocrática (núcleo estratégico, formado pelo presidente, ministros e cúpula dos ministérios) com flexibilização gerencial (Agências Executivas, órgãos estatais voltados para a implementação das atividades exclusivas do Estado: polícia, forças armadas, órgãos de fiscalização, regulamentação e de transferências de recursos; Agências Reguladoras, órgãos estatais voltados para a regulação e regulamentação do serviços públicos prestados pelo mercado: Agência Nacional do Petróleo, Agência Nacional de Telecomunicações, Agência Nacional de Energia Elétrica, Banco Central e Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e Organizações Sociais/OS e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público/OSCIP, órgãos públicos-não estatais, voltados para serviços não exclusivos, ou seja, serviços vinculados aos direitos sociais). A análise de Rezende (2004) sobre a implementação da reforma administrativa no Brasil mostra como o objetivo do ajuste fiscal foi alcançado, contudo sem a efetivação da mudança institucional em termos da descentralização. De acordo com o autor, as resistências vinham de duas frentes: dos órgãos controladores e responsáveis econômicos pelo ajuste fiscal (principalmente Ministério da Fazenda) e das próprias agências que deveriam mudar de status institucional. cccxl A resistência dos primeiros estava centrada na desconfiança de que a estrutura descentralizada pudesse efetivamente garantir a manutenção do ajuste fiscal, melhorar a performance do Estado e não pressionar o aumento do gasto público, através da corrupção e descontrole das ações do Estado, assim como ocorrera com a descentralização radical implementada durante a ditadura militar. Nesse sentido, fica nítido que, para o ideário neoliberal, o aumento do gasto público - seja para a expansão das ações do Estado, seja para alimentar a corrupção ou o clientelismo necessários para a efetivação do projeto - deve ser contido. O limite é o ajuste fiscal. Se é necessário utilizar mecanismos clientelistas para sua viabilização, esses mecanismos não podem ficar sem controle do centro de decisão político e burocrático, sob pena de comprometer a finalidade precípua do ajuste fiscal que garante o superávit primário. Dessa forma, os mecanismos clientelistas devem obedecer, de maneira direta, à racionalidade econômica neoliberal. Essa preocupação do centro de decisão político-burocrático reafirma a possibilidade teórica, aventada na seção anterior, da utilização prático-política das ferramentas gerencias para estruturar elementos patrimonialistas na ordem administrativa. As razões da resistência das agências administrativas se colocavam em outro patamar: receio de que a descentralização levasse à redução orçamentária e desresponsabilização do governo federal sobre a sobrevivência das agências; análise de que a reforma priorizava as atividades exclusivas do Estado e, assim, essas agências, ao mudarem seu status institucional se afastaria, mais ainda, da proteção do governo federal, além do fato de que a criação desses órgãos fosse vista como forma de desresponsabilizar o Estado de suas ações na área social. Essa descrição das resistências à reforma administrativa apontam para quatro questões que merecem atenção. Primeiramente, cabe destacar que, do ponto de vista estratégico, não havia discordância no governo sobre a posição do ajuste fiscal como finalidade central da reforma e que as medidas institucionais deveriam estar subordinadas a tal preceito. cccxli Portanto, privatização, focalização de gastos sociais, redução de pessoal eram pontos incontestes. Em segundo lugar, podemos observar que, administrativamente, também não havia divergências em promover a centralização burocrática e definir uma hierarquia de comando “monocrático” na administração pública e desenvolver programas sociais através de articulação com organizações da sociedade civil. A terceira questão refere-se à clivagem tática no comando do governo sobre a eficiência e eficácia da descentralização das agências administrativas em relação à capacidade de controle da burocracia centralizada em relação a essas novas instituições, para garantir a manutenção do ajuste fiscal120. Nesse caso, os ministérios econômicos se comportam defendendo a posição de que a centralização é fundamental para a eficiência macroeconômica imposta pelo neoliberalismo. Nesses termos, diferentemente da análise de Rezende (2004), não consideramos que ocorreu uma “falha seqüencial” na implementação da reforma administrativa, na medida em que o objetivo de “mudança institucional” estava subordinado ao objetivo maior do “ajuste fiscal”. Ou seja, na avaliação dos responsáveis pela reforma, a “mudança institucional” proposta inviabilizaria atingir a meta do “ajuste fiscal”. Portanto, abandonar as propostas de redefinição da relação entre formulação e implementação, via descentralização, e reforçar a estrutura de centralização burocrática para garantir o “ajuste fiscal” não significou uma “falha seqüencial”, mas sim uma reorientação de rumos voltada para a efetivação do objetivo precípuo da reforma. Nesse sentido, a tese da “falha seqüencial” desenvolvida por Rezende é meramente formal, ou seja, a falha ocorreu porque a mudança institucional prevista no Plano Diretor não foi realizada. 120 É interessante perceber, através da pesquisa realizada por Rezende (2004), como o MARE procurou convencer os ministérios controladores de que a descentralização proposta no Plano Diretor era mais eficaz para o ajuste fiscal do que manter as agências na estrutura burocrática tradicional. Ou seja, não havia qualquer divergência estratégica entre as posições. Conforme analisa o autor: “Enquanto o MARE entendia que a mudança institucional era fator decisivo para o ajuste fiscal, para as demais agências essa mudança imporia perdas, descontrole e, fundamentalmente, redução da performance” (idem: 115). cccxlii O último aspecto a destacar está relacionado à resistência democrática presente no interior da estrutura burocrática, que se posicionava de forma reativa contra o desmonte do Estado que estava se processando, mesmo que no interior dessa resistência ocorressem motivações de tipo corporativo-particularista. Nesse sentido, a radicalização da contra-reforma administrativa, via mecanismos e ferramentas gerenciais, principalmente a criação de agências executivas e organizações sociais, não se efetivou por completo devido a avaliações realizadas no centro do comando político e burocrático, que questionavam se essas estratégias seriam efetivamente funcionais ao ajuste fiscal, e devido à resistência democrática de setores da burocracia e da sociedade civil. Dessa maneira, esses elementos gerenciais pautados na descentralização e flexibilização institucional, via organizações sociais e agências executivas, não foram possíveis de servir à lógica tradicional, mantida pelo pacto de dominação conservador do governo FHC, pelo simples fato de sua não implementação efetiva. No entanto, o pacto de dominação conservador exige alternativas para a incorporação dos setores tradicionais na estrutura de poder e dominação. Assim, para viabilizar a influência dos setores tradicionais na ordem administrativa, através dos mecanismos gerenciais de descentralização, foram mantidos os excessivos cargos de confiança, intensificou-se a terceirização de serviços (estratégia de contratação de servidores periféricos e de níveis intermediários e operacionais), foi ampliada a ação pulverizada de programas sociais realizados em parceria com organizações da sociedade civil e refuncionalizou-se a liberação das emendas parlamentares121. Os recursos disponíveis para a efetivação desses mecanismos ficaram sob o controle do centro de decisão política e burocrática. Dessa forma, a estrutura patrimonialista se altera. A determinação da lealdade entre o senhor e o servidor se mantém, todavia a base de seu fundamento deixa de 121 Conforme sublinha Diniz (2000: 56), “a implantação de um padrão gerencial, com base em mudanças de técnicas e procedimentos, não elimina a possibilidade da persistência ou mesmo do reforço do intercâmbio clientelista no relacionamento do Executivo com a estrutura parlamentar-partidária. Neste sentido, mais uma vez teríamos a sobrevivência de um sistema cccxliii ser a tradição para ser a racionalidade economicista e o poder coercitivo e discricionário da burocracia monocratizada. Vejamos melhor essa assertiva. Uma das particularidades da ordem administrativa brasileira sob o gerencialismo é que ela realiza a lealdade entre senhor-servidor não mais de forma típica, ou seja, baseada na tradição. A lealdade senhor-servidor, na ordem administrativa gerencial brasileira, é obtida através da centralização burocrática e difusão ideológica do pensamento único (só existe uma forma de conduzir a política a economia e a sociedade), portanto racional-legal, combinada com os estratégias de flexibilização gerencial que possibilitam, num quadro de monocratização burocrática, agir coercitivamente, através de mecanismos legais (liberação de recursos para programas sociais, emendas parlamentares, terceirização, cargos de confiança), para obter apoio político dos setores tradicionais para o projeto de transnacionalização, viabilizando, dessa forma, a incorporação desses segmentos na estrutura de poder. A título de exemplo sobre o funcionamento desses mecanismos, como recursos voltados para organizar a participação política de setores tradicionais na estrutura de dominação, as estratégias baseadas na refuncionalização das emendas parlamentares e na intensificação da terceirização são emblemáticas. A liberação de emendas parlamentares para a base do governo tem sido um instrumento utilizado para garantir a lealdade política, a partir de um mecanismo formal-legal. A compra do apoio do político se dá através de um mecanismo legal: as emendas parlamentares. Assim, para viabilizar a racionalidade neoliberal da reforma da previdência, por exemplo, utiliza-se a forma legal das emendas parlamentares, visando garantir o apoio dos setores político-tradicionais. A liberação legal das emendas orçamentárias dos parlamentares, para efetivar a racionalidade neoliberal da reforma da previdência, é uma forma “racional-legal”, portanto, tipicamente burocrática, de realizar a lealdade senhor-servidor, através de uma relação de submissão, tipicamente patrimonialista. híbrido, desafiando a meta de uma transformação drástica do legado histórico”. cccxliv A estrutura de obtenção da lealdade via coerção se intensifica e se manifesta, através da terceirização dos servidores, em diferentes níveis da administração pública. Os servidores terceirizados, por serem contratados sem obedecer a um processo de seleção pública, ainda que sejam qualificados para o exercício profisional, são mais suscetíveis à coerção e à discricionaridade dos gestores, na medida em que não possuem autonomia por não possuírem, principalmente, o “direito ao cargo” e a estrutura de “impessoalidade” da burocracia. Dessa maneira, a racionalidade neoliberal da terceirização cumpre duas funções; reduz a despesa pública com pessoal, flexibilizando a administração de recursos humanos, e limita o poder do quadro burocrático permanente (Borges, 2001). Os mecanismos gerenciais que viabilizaram a flexibilização da administração pública foram o que, no caso brasileiro, possibilitaram articular a ordem administrativa neoliberal centralizada burocraticamente, baseada na finalidade precípua de redução do Estado e ajuste fiscal, com a lógica tradicional patrimonialista necessária para contemplar uma dominação fundada na continuidade do pacto conservador. De outra forma, Diniz (2000: 102) ratifica essa análise ao afirmar que: ...tanto a alta tecnocracia insulada na burocracia, quanto a ampla e heterogênea coalizão parlamentar de sustentação do governo foram cruciais para a implementação do programa governamental. Este dependia da aprovação das reformas constitucionais para alcançar seus objetivos. Para tanto, o presidente disporia não só de uma ampla base de apoio, como também de uma distribuição interna de poder que favorecia os líderes dos partidos e as presidências da Câmara e do Senado, cabendo ainda mencionar o recurso ao intercâmbio clientelista para distribuição de cargos na administração pública, como forma de assegurar a coesão da base governista. Cabe destacar que, por um lado, ao restringir a descentralização, o núcleo estratégico burocrático buscou garantir seu controle sobre a possibilidade de expansão dos gastos públicos, garantindo a hegemonia do ajuste fiscal necessária ao projeto de transnacionalização. Por outro lado, para viabilizar o apoio político para o projeto, era necessário incorporar na estrutura de poder a participação dos setores tradicionais. cccxlv A incorporação desses setores na estrutura de dominação exigia uma ordem administrativa que contemplasse traços de patrimonialismo. Ou seja, o novo ordenamento administrativo, além de garantir o projeto de transnacionalização, via uma ordem monocrática da burocracia, deveria também manter, através da estruturação de uma ordem administrativa com elementos de patrimonialismo, a participação dos setores tradicionais no poder, para viabilizar o pacto de dominação conservador articulado pelo governo FHC. Nesse sentido, podemos dizer que ocorre um transformismo na ordem patrimonialista brasileira, em que os setores tradicionais, para se manterem no poder, aderem à finalidade neoliberal de transnacionalização radical da economia nacional e se adéquam aos novos instrumentos administrativos para viabilizar a manutenção da dominação tradicional. Diferentemente do transformismo italiano que implicou um movimento de adesão de setores democráticos a propostas moderadas e conservadoras (Gramsci: 2002: 286), o transformismo operado na ordem administrativa patrimonialista refere-se ao movimento de adesão dos setores políticos tradicionais à lógica neoliberal, portanto, um transformismo realizado no próprio campo conservador. Em outras palavras, a ordem administrativa patrimonialista, fundada na dominação tradicional, alterou-se parcialmente, para se adequar à lógica de dominação racional-legal neoliberal122. O gerencialismo do governo FHC, portanto, estrutura-se possibilitando a manutenção da dominação tradicional. Não suprime nem supera o patrimonialismo. Na verdade, como vimos, a contra-reforma administrativa, através da dimensão flexível/gerencial, repõe o patrimonialismo sobre bases racional-legais. 122 De forma análoga, Pinho (1998: 8), apesar de não aprofundar a questão, sugere que analisemos a manutenção do patrimonialismo na ordem administrativa brasileira como sendo um movimento “camaleônico” “que consegue não só sobreviver como, ao que parece, se reforçar mesmo sofrendo a ordem econômica mudanças modernizantes apreciáveis”. cccxlvi A possibilidade, exposta na seção anterior, de o mecanismo gerencial se estruturar a partir de orientação patrimonialista, realiza-se no caso brasileiro, via, principalmente, as emendas parlamentares e a terceirização. No entanto, cabe frisar mais uma vez que o gerencialismo, através da refuncionalização das emendas parlamentares e da terceirização, não reproduz de forma direta o caráter típico do patrimonialismo, fundado na relação tradicional de lealdade entre o senhor e o servidor. Portanto, a ordem administrativa brasileira se reestrutura mantendo a imbricação da burocracia com o patrimonialismo, porém num contexto de monocratização burocrática e patrimonialismo em transformismo123, mediado pelos mecanismos de flexibilização gerencial. Em relação à burocracia, ocorre um tratamento ambíguo, pois ao mesmo tempo em que reforça as decisões burocráticas centrais em determinadas áreas, esvazia a burocracia em nome de uma descentralização que na verdade se materializa através da desresponsabilização e privatização das ações que deveriam ser estatais e da constituição de quadro profissional extrapatrimonial. Nesse sentido, divergimos da análise que identifica a existência de uma trifrontalidade, baseada na presença simultânea da burocracia, patrimonialismo e gerencialismo na administração pública brasileira dos anos 1990 (Pinho, 1998 e Nogueira, 2004). Primeiramente, como vimos na seção anterior, o gerencialismo não pode ser considerado um paradigma de 123 Paula (2005) analisa o processo de combinação de “monocratização” da burocracia com elementos do patrimonialismo, no quadro da programática gerencialista, recorrendo ao conceito de “neopatrimonialismo” de Schwartzman (1982). Porém, como vimos anteriormente, consideramos inadequada a formulação de Schwartzman para analisar a estrutura da ordem administrativa. Conseqüentemente, também discordamos de sua utilização para interpretar o caso do gerencialismo. Entendemos que a categoria “burocracia monocrática” e “patrimonialismo em transformismo” possui muito mais capacidade heurística para a interpretação crítica da proposta gerencial. cccxlvii ordem administrativa do mesmo estatuto teórico do patrimonialismo e da burocracia. Além disso, os recursos gerenciais de flexibilização da ordem administrativa não possuem finalidade em si, eles são funcionais para a manutenção da relação de tradicional dominação que se racional-legal mantêm necessárias e e imbricadas para implementar o projeto de transnacionalização radical da economia nacional, sob condução do pacto de dominação conservador. Sendo assim, esse quadro de contrareforma do administrativa Estado produz e de o contra-reforma estreitamento de condições para a ampliação e universalização de direitos e a redução das possibilidades de construção e fortalecimento da espinha dorsal burocrática necessária para conduzir políticas públicas universalistas. cccxlviii V - À GUISA DE CONCLUSÃO: REFERÊNCIAS PARA A RESISTÊNCIA AO GERENCIALISMO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 5.1. As razões históricas da imbricação do patrimonialismo com a burocracia na administração pública brasileira: breve síntese Como vimos, o Estado patrimonialista não possui vínculo genético com a oligarquia agrária cafeeira, ele é produto do processo de colonização portuguesa que traz para o Brasil sua estrutura estatal e administrativa e organiza a sociedade colonial a partir do padrão patrimonialista vigente. Essa estrutura protege e controla os senhores rurais, pois eles são os elementos fundamentais para a exploração dos recursos existentes em benefício da coroa. Embora os senhores rurais desejem a proteção e o status garantidos por sua vinculação à coroa, não querem o controle da coroa sobre seus negócios. O Estado, então, afigura-se como a possibilidade de status para os proprietários rurais e, ao mesmo tempo, com a expressão da opressão a que se submetem. O Estado, durante o período colonial, será a expressão do poder da nobreza, da burguesia comercial (que só se interessa na exploração colonial) e do poder senhorial. A dimensão patrimonialista da administração brasileira advém, de um lado, do poder do Rei de Portugal que controla o reino, baseado numa organização centralizada e, de outro lado, da tradição descentralizada da estrutura “patriarcal” dos proprietários rurais. A dimensão burocrática, apesar de praticamente ausente, existe devido à necessidade de se organizar os empreendimentos da coroa (comércio, navegação). A partir do Império e, mais fortemente, durante a República Velha, abre-se espaço para a presença/influência política de setores não diretamente identificados e relacionados com a dominação tradicional; possibilita-se a identificação de setores cccxlix do estamento senhorial com a ideologia e utopia liberais, tanto do ponto de vista político quanto econômico e gera tensões entre as lógicas distintas presentes na ordem administrativa estatal. Nesse quadro, não há uma relação entre “atraso” e “moderno”, a dominação senhorial/coronelista, para se objetivar, num contexto marcado por um projeto de integração nacional e expansão da economia exportadora capitalista, necessitará combinar estilos de dominação tradicional - pois a estrutura social (primeiramente mercantil-escravista, posteriormente capitalista-exportadora) nasce e se desenvolve a partir da escravidão e de setores livres que vivem e sobrevivem da relação de favor que estabelece com o proprietário rural (seja em sua versão senhorial, seja em sua versão coronel) - com elementos de racionalidade e formalismo de tipo burocrático necessários para integração nacional e expansão capitalista na sua dimensão de comercialização, já que a produção é realizada à base da escravidão, num primeiro momento, e por uma extensa exploração da força de trabalho, no momento pós-abolição. Nesse período (Império e República Velha), o elemento patrimonial se sobrepõe ao elemento burocrático da administração pública, na medida em que temos a oligarquia agrária como classe dominante de uma economia mercantil escravista e da economia exportadora capitalista, ambas exportadoras de produtos agrícolas. A exigência da racionalidade burocrática se limita a determinadas ações relativas à política econômica de proteção à exportação, segurança e integração nacional. A ausência de direitos civis, políticos e sociais reduz a necessidade de estruturas burocráticas do Estado. Nesse sentido, o Estado deve expressar essa dominação cuja base é uma elite tradicional que deve organizar a economia exportadora capitalista. Mais uma cccl vez a manutenção da dimensão racional-legal se faz necessária devido ao fato de o projeto econômico em tela ser nitidamente capitalista. Por outro lado, a questão de tal projeto ser dirigido por uma elite tradicional exige a manutenção de mecanismos patrimonialistas na organização da dominação. Portanto, a ordem administrativa brasileira se realiza através do imbricação do patrimonialismo com a burocracia, na medida em que está vinculada (genética, estrutural e funcionalmente) à dominação constituída por frações senhoriais/oligáquicas e burguesas para conduzir o processo da expansão capitalista, que tem início no Império e se consolida na República Velha. Nesse sentido não há dualismo. O novo se imbrica com o velho, o velho é funcional ao novo. Resumindo, o fato relevante que ocorre na primeira república, que implica a ordem administrativa do Estado brasileiro, diz respeito à consolidação do processo originado durante o Império que combina patrimonialismo e burocracia com especialização, um certo nível de racionalidade capitalista e ausência de impessoalidade. Contudo, diferentemente da centralização presente no segundo reinado imperial, a ordem administrativa passa a expressar a dominação hegemonizada pela oligarquia cafeeira, através de uma estrutura descentralizada do poder. Assim, a dialética patrimonialismo-burocracia, sob hegemonia do primeiro termo, consolida-se como marca genética da estruturação da administração pública brasileira, durante a primeira república. O patrimonialismo, a partir da origem ibérica e centralizadora, combina-se com a estrutura “patriarcal” colonial, fortalecendo essa lógica de dominação tanto a partir da superestrutura estatal, quanto da organização do poder local. A neófita cccli burocracia brasileira será desenvolvida a partir da necessidade de especialização e racionalidade instrumental capitalista, porém evitando a impessoalidade como critério para a composição de seus quadros, reforçando, dessa feita, a lógica patrimonialista de recrutamento baseada na lealdade pessoal (fundada na tradição, relação de confiança, pacto de fidelidade ou relação de piedade). Esse amálgama é consolidado na República Velha, através da organização política descentralizada e da ausência de participação das classes subalternas na estrutura de poder, para viabilizar o projeto nacional da economia agro-exportadora capitalista, conduzido pelas oligarquias agrárias, sob hegemonia da oligarquia cafeeira paulista. Esse é o cenário que se inicia na Independência, consolida-se com a Proclamação da República e encontra seu esgotamento no final da República Velha, quando entra em crise a economia exportadora capitalista e a hegemonia da oligarquia cafeeira, o que projeta um novo objetivo político: a industrialização e urbanização do País. Assim sendo, no contexto do projeto desenvolvimentista de expansão capitalista, Fiori (1995: 27) apresenta uma síntese consistente sobre o ordenamento estatal e sua ordem administrativa: O Estado, mormente o seu setor produtivo e financeiro, estabelece uma relação corporativa com o empresariado nacional, protegendo seu lucro relativo, aumentando o potencial de acumulação e absorvendo o custo desta expansão. A administração pública, através de suas agências previdenciárias e múltiplas instâncias administrativas, dispensa serviços sociais e cria vínculos empregatícios absorvendo, na dinâmica estatal, parcelas cada vez maiores da população economicamente ativa. Como a negociação salarial dos pólos mais dinâmicos da indústria processava-se de forma individualizada em acordos de empresas, os conflitos salariais e redistributivos perdiam seu potencial político; ou melhor: tinham limitado potencial de ccclii difusão, o que por sua vez, permitia que as atividades de bemestar do Estado se processassem clientelisticamente, embora sem o vigor das negociações corporativas. Para completar esse quadro, lembremos que o projeto de expansão capitalista, de sua fase restringida até a consolidação monopólica, orientou-se sob o signo da “dupla articulação” e da incorporação seletiva e parcial das camadas populares. Tal situação implicou uma manifestação particular na esfera política e na máquina estatal brasileiras, a partir do comportamento presente na esfera econômica. Mesmo porque esse processo de expansão capitalista foi conduzido pelas forças sociais fundamentais presentes nesse movimento. Portanto, a relação arcaico-moderno aparece também na configuração do Estado brasileiro e da sua direção política, assim como na estruturação de sua máquina estatal. Obviamente, longe de ser apenas o “reflexo” do econômico na política, essa situação se entrelaça dialeticamente com os rumos da expansão capitalista, influenciando as decisões econômicas no sentido de garantir, ao máximo, a perpetuação do poder das elites agrárias tradicionais combinadas com a emergente burguesia. Isso significa dizer que não há uma evolução natural - ou mecanicamente amarrada nas condições objetivas - do processo de expansão capitalista no Brasil, devido a sua situação periférica (desenvolvida a partir da sua economia exportadora capitalista no momento de dominação em escala mundial do capitalismo monopolista – Cardoso de Mello, 1998); mas sim que a correlação de forças da época propicia tomadas de decisão econômica dentro desse quadro objetivo que reforça a concentração de renda, propriedade e poder. Sendo assim, a configuração do Estado e de sua máquina pública vão expressar essa hegemonia. Do ponto de vista do Estado, as classes dominantes cccliii (agrário e industrial) garantirão a reprodução da ordem, incorporando setores populares de acordo com a pressão existente e importância para a acumulação. Para implementar as ações do Estado combinam-se, dessa forma, elementos “novos” (burocráticos) e “arcaicos” (patrimonialistas) como forma de garantir a estrutura de dominação existente. Portanto, a ordem administrativa é composta de um imbricação entre a dimensão patrimonialista e a burocrática que, dialeticamente, são funcionais, do ponto de vista estrutural, para a operação de dominação presente. Por um lado, é necessário planejar a industrialização desde sua fase restringida até a consolidação monopólica. Para isso, necessita-se de um quadro administrativo especializado e profissional, assim como certas regras e normas bem definidas, ou seja, necessita-se de burocracia. No entanto, esse planejamento deve garantir a manutenção da concentração de renda, propriedade e poder das elites dominantes, por isso essa burocracia deve criar canais de comunicação com as elites empresariais. Tal planejamento, portanto, não deve incorporar, substantivamente, os interesses das classes trabalhadoras. A máquina estatal deve possuir, então, estruturas para atender a determinados interesses das classes trabalhadoras, mas que sejam estruturas que não estejam estratégica e diretamente ligadas aos projetos de expansão capitalista, nem que possam interferir significativamente em sua condução (aqui a articulação dialética entre a economia e o social é nítida). Nesse sentido, a matriz burocrática vai ser necessária nessa dimensão, porém criando canais de comunicação com a representação da classe operária e, também, dos empresários, como forma de regular o atendimento dos interesses do trabalho. cccliv Simultaneamente a esses mecanismos, ainda que a elite tradicional se mantenha como fiadora do projeto de desenvolvimento - deixa de ser a fração dominante hegemônica -, na medida em que oferece apoio político ao projeto de expansão tipicamente capitalista (industrial). Sendo assim, a máquina estatal também abrigará um espaço para a continuidade de sua influência nas diferentes questões a serem debatidas e na garantia da reprodução de sua fatia de domínio político. Dessa maneira, a lógica patrimonialista se apresenta como necessária – todavia deixando de ser hegemônica - para a manutenção da estrutura de dominação da sociedade brasileira. Desse modo, o patrimonialismo não se apresenta como um elemento de atraso que deve ser superado para o desenvolvimento do País. Ele é uma determinação central do nosso modelo de desenvolvimento capitalista, não sendo um obstáculo para tal. A lógica dialética de Oliveira (2003) e Cardoso de Mello (1998) ajudam a desvelar a não dualidade da ordem administrativa. Patrimonialismo e burocracia se imbricam como estruturas de poder e estilos de dominação necessários para a particularidade do desenvolvimento capitalista brasileiro. A manutenção do processo de relações de produção não-capitalista (na agricultura e no setor terciário) se desenvolve sob uma estrutura de poder tradicional que exige uma ordem administrativa tradicional não-capitalista, ou seja, patrimonialista. No entanto, como a manutenção dessas relações de produção são necessárias para a acumulação capitalista brasileira, a estrutura global de poder deve incorporar as classes dominantes tradicionais. O Estado, então, ao expressar essa coalizão de classes para conduzir a expansão e consolidação capitalista, precisa contemplar os diferentes tipos de dominação e as diferentes lógicas ccclv administrativas (dominação racional e burocracia e dominação tradicional e patrimonialismo) que compõem essa estrutura de poder. Dessa forma, como vimos no capítulo 3, a ordem administrativa brasileira vai ser uma imbricação de patrimonialismo e burocracia, não por uma dualidade entre o “arcaico” e o “novo”, mas sim pela necessidade de ter uma ordem administrativa adequada à lógica de dominação e à estrutura de poder forjada por nossa “revolução burguesa”. As implicações desse entendimento nos remetem a pensar o patrimonialismo na ordem administrativa no Brasil não como uma dimensão que precisa ser modernizada para a superação do “velho” (tradicional) - elemento inercial que teima em persistir e que precisa ser expurgado, pois é um óbice para a eficiência da administração pública. Antes precisa ser entendido como constituinte da particularidade de nossa administração pública, advinda da particularidade de nossa estrutura de poder responsável pela expansão do capitalismo no Brasil. Nesses termos, a configuração estatal e a burocracia criadas e desenvolvidas no Brasil foram precárias para proporcionar a universalização de direitos, devido à coalizão conservadora das classes que conduziu a modernização capitalista – a qual constituiu um Estado forte, porém não permeável aos interesses populares/das classes subalternas - e à parcialidade da racionalidade burocrática desenvolvida, na medida em que sua realização plena foi evitada ou interferida, através de sua ccclvi articulação com patrimonialismo/clientelismo, objetivando garantir a manutenção de privilégios e, simultaneamente, visando viabilizar os interesses imediatos da burguesia industrial nascente, via expansão do “insulamento burocrático” e estruturação dos “anéis burocráticos”. Portanto, o Estado e a burocracia no Brasil não produziram ampliação significativa de direitos124. No entanto, o Estado e a burocracia, mesmo nas condições brasileiras de pouca permeabilidade para as classes trabalhadoras e produto de uma coalizão conservadora de classes, atenderam a determinados interesses dos dominados. A redução do Estado e da burocracia, certamente, poderia criar uma situação muito mais grave ou causar uma deterioração de grandes proporções no quadro vigente. No contexto da redemocratização brasileira, abre-se pela primeira vez no cenário nacional a possibilidade de maior incorporação dos interesses da classe trabalhadora na estrutura de poder. Os anos de 1980 e início dos anos 1990 se apresentam como um período de forte disputa hegemônica entre dois projetos: liberal-corporativismo e social-democrata (Coutinho, 1993). Mesmo sofrendo as influências internacionais tanto do ponto de vista econômico: a crise, suas derivações (financeirização, reestruturação produtiva e mundialização) e o conseqüente rebatimento na questão da dívida externa; quanto do ponto de vista político: o contexto hegemonizado pelo pensamento neoliberal direcionado para a programática de apoio à internacionalização da economia e para a crítica à intervenção do Estado na área social (crítica ao Estado de Bem-estar capitalista e às experiências socialistas); a década de 1980, no Brasil, expressou a resistência ao alinhamento imediato a esses ideários. 124 Fernandes (1981: 254), ao analisar as transições para o capitalismo adverte: “Na periferia, essa transição torna-se muito mais selvagem que nas nações hegemônicas e centrais, impedindo qualquer conciliação concreta, aparentemente a curto e a longo prazo, entre democracia, capitalismo e autodeterminação.” ccclvii Essa resistência contou efetivamente não apenas com o fortalecimento dos setores democráticos da sociedade civil, mas também com um certo receio das classes dominantes em abrir mão do apoio do aparato público estatal para a manutenção de seus privilégios, que poderia advir de uma política pautada na refuncionalização do Estado, e sua conseqüente redução, para efetivar um projeto radical de transnacionalização econômica. A Constituição Federal de 1988 é o exemplo material emblemático de resistência nacional aos preceitos neoliberais in toten. A área social e a questão da administração pública foram os aspectos centrais que expressaram a influência das forças democráticas e populares no destino do país. A universalização e o aprofundamento de direitos de cidadania como dever do Estado e a estruturação de uma ordem classicamente burocrática, no sentido do fortalecimento das dimensões de formalidade, mérito e impessoalidade da administração pública, previstos na carta magna de 1988, mostram um caminho democrático a ser seguido do ponto de vista político e institucional, portanto, antagônico à hegemonia internacional da época e à história de desenvolvimento do Estado brasileiro e de sua ordem administrativa. Essa possibilidade aberta se apresentava factível pelo fortalecimento dos setores democráticos que propunham um projeto de desenvolvimento que incorporasse substantivamente os interesses populares e que, politicamente, exigiam uma ruptura da burguesia com os setores tradicionais. Dessa forma, buscava-se articular um projeto para o país baseado na incorporação substantiva da classe trabalhadora no desenvolvimento econômico e social, a ser conduzido por uma coalizão de classes que excluísse os setores tradicionais. Por isso, a necessidade de um Estado forte na área social e o conseqüente fortalecimento da estrutura da burocracia, nas dimensões de impessoalidade e formalidade. Nessa configuração, abre-se a ccclviii possibilidade teórica e política para romper com a imbricação da burocracia com o patrimonialismo que marcou a origem e o desenvolvimento da ordem administrativa brasileira. No entanto, essa possibilidade teórica e política não se efetivou. A situação econômica do país não melhora e, a partir do início dos anos 1990, um novo consenso entre as forças conservadoras foi se constituindo em torno da idéia da inexorabilidade de, mais uma vez, o Brasil inserir-se de forma subordinada ao capital internacional, porém, agora, no contexto capitalista hegemonizado pelo mundo das finanças. As forças tradicionais foram rearticuladas e convencidas de que, nas novas condições da economia internacional, era necessário, para manter o pacto de dominação conservador, que houvesse uma mudança de estratégia em relação ao papel do Estado na sociedade. A negação do papel do Estado como agente produtivo direto e como provedor de políticas sociais seria o cerne das mudanças que se faziam necessárias para a manutenção do pacto conservador de dominação (Fiori, 1998). Em outras palavras, em meados da década de 1990, sob liderança de Fernando Henrique Cardoso, o projeto de transnacionalização radical da economia nacional foi incorporado como o objetivo a ser perseguido, através de uma coalizão conservadora de classe, que reatualizou o pacto de dominação conservador, via aliança política estabelecida entre o PSDB e o PFL. Dessa forma, o ideário neoliberal e suas conseqüências políticas, econômicas e sociais foram introduzidos no Brasil, a partir da manutenção de nosso tradicional pacto conservador. Assim, implementa-se uma verdadeira “contra-reforma” do Estado brasileiro (Behring, 2003). ccclix Do ponto de vista do projeto desenvolvido, a partir do receituário neoliberal aplicado no país, ocorre um processo intensivo de internacionalização da economia, através das privatizações, abertura comercial e desregulamentação econômica, e de reestruturação da intervenção do Estado na área social, onde o processo de universalização de direitos sociais foi estancado para garantir o ajuste fiscal necessário para honrar os compromissos internacionais com o capital financeiro. Nesse sentido, a dimensão social do Estado é enfraquecida e se organiza um Estado máximo para o capital (Netto, 1995). A conseqüência administrativa do projeto de transnacionalização radical, que implica uma forte coordenação das ações e a redução da intervenção do Estado na sociedade, tanto como setor produtivo quanto como provedor de políticas sociais, é, por um lado, a concentração de poder burocrático e, por outro, a diminuição da burocracia estatal. Entretanto, a dimensão administrativa sofre também as conseqüências do pacto de dominação estabelecido, que incorpora os setores tradicionais da sociedade e que, por isso, exige a manutenção de mecanismos patrimonialistas na ordem administrativa. Para realizar essas mudanças administrativas, será efetivada a contra-reforma administrativa, fundamentada teoricamente nos pressupostos da teoria da escolha pública (Andrews e Kouzmin, 1998). Nesse sentido, a proposta da “Administração Pública Gerencial”, conforme denomina Bresser Pereira (1996, 1998b), pauta-se na centralização burocrática, via núcleos estratégicos do governo, combinada com a descentralização e flexibilização burocrática, via agências executivas/reguladoras, organizações sociais e o processo de terceirização de serviços e parcerias. ccclx Através da centralização burocrática, que se configura como a estruturação de uma burocracia monocrática, viabiliza-se a coordenação das ações necessárias para o projeto de transnacionalização. Por intermédio da flexibilização da burocracia, alcançam-se três objetivos: diminuição de gastos públicos para contribuir com o ajuste fiscal, redução do poder da burocracia permanente e manutenção de traços patrimonialistas na administração pública para propiciar a participação dos setores tradicionais da estrutura de dominação. Nessa perspectiva, a flexibilização da burocracia se apresenta como a mediação necessária para a manutenção do patrimonialismo na ordem administrativa brasileira, que precisa se efetivar para viabilizar a participação dos setores tradicionais na estrutura de dominação. Tal mediação provocará mudanças na fundamentação do patrimonialismo brasileiro que passará, da utilização dos elementos tradicionais de garantia de lealdade entre o senhor e o servidor, para a estruturação de determinações racional-legais voltadas para viabilizar a lealdade, baseadas na difusão ideológica do pensamento único da racionalidade economicista e no poder coercitivo e discricionário da burocracia monocratizada, que definirá padrões formais para repasse de recursos públicos. Portanto, a contra-reforma administrativa efetiva um transformismo do patrimonialismo brasileiro. Nesses termos, além de reduzir a intervenção do Estado no sentido democrático e social, o projeto neoliberal promove a reorganização da burocracia pública, buscando centralizar as decisões e o controle burocrático, enfraquecer os quadros permanentes e permitir a manutenção da sua imbricação com o patrimonialismo, através de uma proposta que combina monocratização com flexibilização da burocracia. Nesse sentido, o projeto de transnacionalização radical da economia nacional, conduzido pelo pacto conservador de dominação, promove uma contra-reforma do Estado - que o ccclxi enfraquece em sua dimensão social e democrática - e uma contra-reforma administrativa que inviabiliza o fortalecimento da dimensão formal, meritocrática e impessoal da burocracia. A contra-reforma operada destrói as condições necessárias para o Brasil trilhar no caminho da universalização e aprofundamento de direitos. Consideramos que a tese, então, pôde demonstrar, nos limites de nossa capacidade e das condições de sua operacionalização, que a origem e o desenvolvimento da adminstração pública brasileira se efetivou através da imbricação da burocracia com o patrimonialismo, determinada por dois elementos fundamentais. O primeiro elemento refere-se ao projeto de implantação e expansão das relações capitalistas no país, do início da industrialização até a atual fase de transnacionalização radical da economia nacional. A gênese e a consolidação desse processo se realizou através do protagonismo e ampliação da intervenção estatal, combinando uma “dupla articulação” (relação do capital nacional com o capital internacional e com os setores “pré-capitalistas”) com uma inclusão parcial e fragmentada da classe trabalhadora. Na conjuntura atual, o projeto capitalista neoliberal intensifica a internacionalização da economia nacional, esvaziando a intervenção do Estado no setor produtivo, tanto como agente direto quanto como indutor de uma política industrial de desenvolvimento estratégico da economia nacional, e nas ações voltadas para a incorporação da classe trabalhadora, via políticas sociais de caráter institucional e universalista. O segundo elemento determinante do processo de imbricação da burocracia com o patrimonialismo diz respeito à estrutura de dominação constituída para desenvolver os projetos de expansão capitalista, que sempre fora baseada num pacto conservador que congregava a burguesia nacional e os setores tradicionais da sociedade. A opção de dominação conservadora de nossa burguesia determinou, ao longo de nossa história, a inclusão parcial e fragmentada da classe trabalhadora na participação do usufruto ccclxii das riquezas produzidas e a manutenção dos setores tradicionais na estrutura de poder e dominação da sociedade. Essas duas determinações produziram um Estado frágil para atender aos interesses da classe trabalhadora e uma administração pública que não se realizou efetivamente como uma estrutura racional-legal, imbricando-se, desde as origens, a mecanismos voltados para a manutenção da lógica patrimonial, em sua forma tradicional ou em sua expressão transformista. Nesse sentido não há dualidade estrutural na ordem administrativa brasileira. Há uma totalidade que compreende o projeto socioeconômico e o pacto de dominação que necessita de lógicas administrativas contraditórias. Essa situação gera tensões e conflitos intra-administrativos que só se resolvem efetivamente com a alteração do projeto e da estrutura de dominação (Fernandes, 1981:44). Enquanto houver no Brasil um pacto de dominação que combine uma ordem racional-legal com uma ordem tradicional, não iremos superar os estrangulamentos da administração pública enquanto campo de clientelismo e patrimonialismo. Assim sendo, o projeto de expansão do capitalismo brasileiro e o pacto conservador de dominação que o conduziu não propiciaram a construção das duas condições necessárias para desenvolver uma proposta de universalização e aprofundamento de direitos: um Estado forte do ponto de vista social e uma ordem administrativa fundada numa estrutura burocrática racional-legal, que garantisse o mérito, a impessoalidade e o desenvolvimento de regras e normas formais para a intervenção estatal. Complexificando a situação, diferentemente do que ocorrera durante as fases de início e de consolidação da industrialização, quando o Estado, ao assumir o protagonismo do processo, abria espaços para a incorporação das demandas da classe trabalhadora (mesmo que parcial e fragmentada), pois necessitava expandir a dimensão burocrática da administração, na conjuntura atual apresenta, no quadro da contra-reforma do Estado e administração pública, um movimento político-institucional de bloqueio e regressão desses espaços. ccclxiii 5.2. Referências para a constituição de uma administração pública democrática A orientação político-institucional das propostas: a construção contra-hegemônica ao neoliberalismo Como vimos, ao longo desta tese, para desenvolver uma “gestão social” voltada para efetivar a universalização e o aprofundamento de direitos sociais, necessita-se de um Estado interventor expressivo para o social e uma estrutura administrativa racional-legal, ou seja, burocrática. Hoje, no Brasil, não temos condições estruturais para esse desenvolvimento, ou seja, não possuímos um Estado expressivo para a área social nem tampouco uma estrutura administrativa racional. O que fazer, então, na medida em que o assistente social, dentre outros profissionais, assume a gestão de Políticas e Programas Sociais? No quadro geral de uma perspectiva de longo prazo, nosso interesse, para concluir esta tese, é clarear quais as possibilidades do “aqui e agora” que nos permitam agir no campo da prática sociais, profissional, no caso sem a sedução irresponsáveis e nem de gestores pelas atitudes tampouco cair na armadilha das “leis objetivas” que impedem a intervenção. Cumpre apresentar/explicitar, àqueles que atuam na área de gestão social, estratégias e orientações para a intervenção que, como Mészáros (2003: 122) aponta, são ações ccclxiv modestas, “mas com plena consciência das limitações existentes e das dificuldades para sustentar a jornada em seu horizonte temporal mais distante”. Assim sendo, quais as pistas, do ponto de vista do emprego de mecanismos/estratégias gerenciais, para a intervenção de profissionais comprometidos com uma perspectiva de universalização e aprofundamento de direitos que assumem a responsabilidade de gerenciar políticas e programas sociais no contexto atual? Essa é a questão com que concluiremos esta tese. Para fazer frente ao quadro exposto, no sentido de uma construção contrahegemônica, a administração pública numa perspectiva democrática não pode se confundir com o “tecnicismo” nem com o chamado “gerencialismo”. A perspectiva proposta pelo presente trabalho encontra-se referenciada numa matriz voltada para a ampliação da cidadania e democracia que reconhece as especificidades e dilemas da gestão social pública (Kliksberg, 1997; Nogueira, 1998; Grau, 1998; Paula, 2005), enquanto responsabilidade do Estado, contextualizada no cenário das mudanças societárias contemporâneas e que evoca direitos sociais universais, transparência, accountability, participação política, eqüidade e justiça como elementos essenciais para a gerência de programas sociais. Tal perspectiva está referenciada numa concepção que denominamos de “administração pública democrática”. Nessa ótica, é fundamental situarmos, inicialmente, a questão central da administração pública, qual seja: a finalidade voltada para eqüidade, justiça social, accountability e democracia, numa orientação aprofundamento dos direitos. ccclxv de universalização e Como vimos, a sociedade capitalista nunca permitirá a emancipação humana, no entanto, defendemos que a construção de uma sociedade emancipada deve se pautar em melhoras imediatas para a população. Dessa forma, a estruturação da administração pública pode ser efetivada num duplo sentido: acumular mudanças para uma radical transformação societária e possibilitar melhoras imediatas na condição de vida das classes subalternas, através de uma perspeciva reformistarevolucionária. Nesse sentido, a administração pública deve ser realizada à luz dessa concepção. Ou seja, deve-se gerir baseando-se na finalidade de universalização e aprofundamento dos direitos sociais. Como temos sinalizado de forma reiterada, não podemos prescindir de Estado forte na área social e burocracia estruturada, principalmente na dimensão de sua racionalidade, para conduzir a universalização e aprofundamento de direitos numa sociedade de classes. Apesar de não serem suficientes, são estas as condições necessárias. No entanto, a estruturação de um Estado com fim voltado para a universalização de direitos e, em conseqüência, uma ordem administrativa burocrática que efetive essa finalidade, depende da existência na sociedade de uma hegemonia nessa direção. Assim, como já enunciamos em outros momentos, a tarefa central para a construção de uma ordem administrativa democrática e universalista é construir essa hegemonia no Brasil (um projeto de democracia de massa ou social democrata ou modelo europeu, segundo reflexão de Coutinho). Dessa forma, o modelo de desenvolvimento econômico deve estar orientado nessa direção. ccclxvi Portanto, a questão essencial para a efetivação de uma administração pública democrática é eminentemente política (Diniz, 2000). Ou seja, depende da capacidade de as forças democráticas conquistarem hegemonia em torno de uma finalidade ético-política voltada para a universalização e para o aprofundamento de direitos, que venha a ser conduzida pelo Estado. Conforme sinaliza Nogueira (1998: 179), ao refletir sobre as possibilidades de uma reforma democrática do Estado: As condições de avanço e êxito dependem, como nunca, de um grande esforço para articular as várias dimensões da questão do Estado, que é, como se sabe, uma questão intrinsecamente política, pertinente, antes de mais nada, ao campo do relacionamento entre o Estado e a sociedade. Que depende por isso mesmo, da construção de consensos, pactos políticos e projetos e requer o alcance de um equilíbrio dinâmico entre vontade política e razão crítica. Fiori (1998: 139) ratifica essa análise apresentando mais uma mediação para o êxito de uma reforma democrática. Segundo o autor, é necessária uma outra direção política que permita implementar outra política econômica que se adéqüe à finalidade de universalização e aprofundamento de direitos. Em outras palavras, para implementar uma reforma administrativa democrática, exige-se uma ação política voltada para a construção de hegemonia pautada na finalidade de universalização e aprofundamento de direitos que, ao se efetivar como direção social através do Estado, possa aplicar uma política econômica coerente com essa orientação finalística. Sendo assim, em última instância, as determinações para uma efetiva reforma democrática da administração estão localizadas no tipo de formação social do capitalismo brasileiro e em nossa estrutura de dominação, portanto, não serão medidas técnicas que irão transformar a ordem administrativa brasileira. Por outro lado, mesmo ocorrendo mudanças em nossa formação social e na estrutura de poder, essas mudanças se efetivarão sobre nossas particularidades, o que significa dizer que o produto dessas transformações certamente terão a marca de nossa história, não reproduzindo estruturas dos países centrais. Dessa forma, não há ccclxvii como nos tornarmos burocráticos no sentido clássico do termo e das experiências históricas dos países centrais. No entanto, reforçar, do ponto de vista administrativo, a estruturação da burocracia é uma tarefa central na luta por uma gestão social pautada na universalização e aprofundamento de direitos, apesar de tudo indicar que o horizonte não será o surgimento de uma burocracia welfareana em nosso país. Mas o reforço da lógica burocrática, principalmente o fortalecimento da dimensão formal e impessoal de sua estrutura, assim como a construção de mecanismos democratizadores (como afirmado no início do capítulo 2), no contexto em que nos encontramos, é a possibilidade administrativa de ampliarmos a capacidade de intervenção do Estado no atendimento aos interesses das classes trabalhadoras. Na atual conjuntura brasileira, hegemonizada por um projeto de transnacionalização radical da economia brasileira, conduzido por um pacto de dominação conservador, não há como operar uma proposta de reforma administrativa de cunho democrático, os limites são estreitos para mudanças nesse sentido. A alteração da ordem administrativa passa pelas mudanças de projeto e de pacto de dominação. Na medida em que consideramos que a reforma administrativa de cunho democrático deve estar vinculada à finalidade de universalização e aprofundamento de direitos, o quadro atual é extremamente adverso. Fiori (1998 e 2001a) e Soares (2001) mostram que a orientação da política econômica neoliberal inviabiliza qualquer perspectiva de políticas sociais públicas de caráter universalista125. 125 Soares (2001: 13) apresenta a conclusão de seu estudo da seguinte forma: “A tese central é a de que as possibilidades de uma mudança no perfil das Políticas Sociais, no sentido da sua maior universalização e progressividade, são incompatíveis com as atuais políticas de ajuste neoliberal. Por outro lado, caso essa mudança não se efetive, dados os próprios limites impostos pelas políticas de ajuste, pouco ou nada se pode esperar das tais soluções de tipo ‘alternativas’ propostas por tais políticas neoliberais. Seu caráter pontual e passageiro, que apela para a ‘solidariedade da comunidade’, não poderá dar conta dos problemas sociais latinoamericanos, sobretudo dos brasileiros, cuja magnitude e complexidade são enormes” (Soares, 2001: 13). Fiori (2001a: 133) analisa a situação da seguinte forma: “Orientados agora apenas pela bússola dos ‘equilíbrios macroeconômicos’, esses Estados abandonaram qualquer tipo de política social universalizante, num momento em que a estagnação ou o escasso crescimento econômico não consegue gerar a quantidade de emprego necessária para absorver a mão-de-obra-disponível”. Em artigo anterior, o autor já havia concluído: “Tenho hoje uma visão extremamente pessimista sobre o futuro da nossa política pública e, sobretudo, o futuro das nossas políticas sociais [...]. No meu entender, é que, por um longo tempo, neste nosso Brasil, as políticas públicas se transformem numa espécie vizinha de um novo tipo de pastoral social” (Fiori, 1998: 223). ccclxviii A luta, a partir do processo de redemocratização recente, foi estruturar burocraticamente o Estado e democratizá-lo, abrir espaço para a influência das classes subalternas e suas organizações (década de 1980). No entanto, a partir da reestruturação do capital e suas implicações na periferia como um todo, e particularmente no Brasil, as condições econômicas/objetivas se reduzem significativamente para avançar com um projeto democrático. Além disso, com o advento do neoliberalismo (crítica ao estado e sua forma burocrática de administração) e sua implementação no Brasil, a tarefa passou a ser, por um lado, garantir/preservar a estrutura de um Estado forte e presente (traço construído nos anos 1930 e mantido pela ditadura militar, porém criticado pela esquerda por ser autoritário, não viabilizar serviços de qualidade, não combater a desigualdade e fortemente atacado pela hegemonia neoliberal) e, por outro, continuar a luta pela estruturação de uma ordem administrativa de corte racional-legal, permeada por instrumento de democratização e transparência das ações do governo e da administração pública. Ou seja, a tarefa dos setores democráticos se complexificou. O contexto atual não apresenta uma conjuntura favorável à democratização do Estado para a intervenção voltada para o atendimento dos interesses do trabalho, pois as classes dominantes obtiveram uma hegemonia ampla em torno da concepção da centralidade do mercado e, dessa forma, não têm precisado agir explicitamente de forma coercitiva e repressiva para manter seu projeto e privilégios. Sendo assim, se antes, num contexto mais favorável à democratização (pós- Segunda Guerra), a burguesia brasileira possuía um horizonte estreito e conservador, na atual conjuntura a probabilidade de ela possuir uma perspectiva democrática é muito mais reduzida. Se aliarmos a esse quadro as dificuldades objetivas e subjetivas da classe trabalhadora, hoje, produzir uma contra-hegemonia, no contexto do capitalismo flexível e financeiro, torna a situação ainda mais desfavorável. ccclxix Assim, mesmo com todos esses fatores adversos e por causa deles, as propostas de administração democrática, no quadro atual, devem buscar fortalecer os movimentos de mudança de projeto e de pacto de dominação. Esta deve ser a direção das propostas a serem implementadas no contexto atual, uma vez que, fortalecer o Estado e a Burocracia contribui, no plano imediato, para melhorar a gestão e implementação de ações voltadas para o atendimento das necessidades das camadas populares, e, no mediato, reforça um movimento contra-hegemônico para reversão do projeto e do pacto vigentes. Conforme ressalta Fiori (1995:174-175): ...não haverá progresso enquanto o Estado não recuperar a sua capacidade política, administrativa e financeira para exercer o controle eficaz da gestão macroeconômica, prestar os seus serviços básicos de maneira eficiente e coordenar uma estratégia sistêmica de recuperação da competitividade industrial e de produção, armazenagem e transporte de alimentos de consumo maciço. Ou seja não haverá projeto progressista viável sem um Estado forte... Nesse contexto, o que estamos defendendo é uma estratégia de resgate da função “universalizadora” do Estado e da burocracia como determinação fundamental para a construção de uma administração pública democrática, tendo clareza que o Estado e a burocracia não têm condições de realizar efetivamente a universalidade, enquanto liberdade e emancipação humana. Contudo, num mundo sob a égide do capital, o Estado e a burocracia são essenciais para contrabalançar as dimensões anárquicas e desiguais produzidas pelo mercado. Em outras palavras, o Estado e a burocracia são fundamentais para viabilizar o desenvolvimento capitalista, portanto para manter a estrutura de desigualdade da sociedade baseada na produção de mercadorias. Essa é a finalidade primária do Estado e da burocracia. A universalidade, ou melhor, a ampliação das condições de vida das classes populares é uma dimensão funcional e contraditória para a realização dessa finalidade primária. ccclxx Sendo assim, para pensarmos em alternativas de gestão pública voltadas para a universalização e o aprofundamento de direitos, temos de ter clareza que o objetivo central é a construção do Estado nessa perspectiva. Portanto, é fundamental a construção de uma hegemonia na sociedade nessa mesma direção. Na medida em que não foi gestada uma saída democrática para a crise dos anos 1980, a reforma administrativa sofre os constrangimentos da opção política econômica e ideológica adotada, a partir da década de 1990. Assim, a possibilidade para atuar, com mudanças administrativas de cunho democrático, restringe-se. Portanto, o que se propõe como possibilidade de iniciativas na administração para reforçar, num quadro adverso, uma perspectiva democrática para a administração pública, não se configura num projeto radicalmente democrático, pois para esse empreendimento necessitaria, para ser viável, de uma outra conjuntura. Nesse sentido, não está presente um projeto socialista para a gestão da coisa pública. Mais modestas, as propostas aqui elencadas se enquadram, a partir da concepção de autonomia relativa do Estado e, no seu interior, a autonomia relativa da administração pública, na identificação de propostas factíveis para simultaneamente avançar de forma imediata na democratização da administração pública e contribuir, mediatamente, no fortalecimento de um projeto político orientado para a ruptura com a “dupla articulação” e com a exclusão das classes subalternas, numa perspectiva que possa avançar na busca do fortalecimento de um projeto de sociedade que supere os marcos do capitalismo. Portanto, estamos falando em propostas factíveis de serem implementadas de forma imediata, que se limitam a contribuir com o avanço democrático/acúmulo de forças para reverter a hegemonia neoliberal, apesar de possuir como finalidade ético-política a superação da ordem do capital. O gestor público que pretenda atuar nessa perspectiva pode e deve cumprir o papel de ator importante na luta pela hegemonia em torno de uma ordem democrática. Conforme observa Nogueira (2004: 243): ccclxxi O maior desafio dos dirigentes democráticos e dos recursos humanos “inteligentes”, dentro e fora das organizações – ou seja, também no Estado e na sociedade -, é dar curso a uma dinâmica de reforma intelectual e moral que tenha potência para criar novas hegemonias. A força, as razões administrativas e a exigência de produtividade não são, de modo algum, o melhor caminho para se chegar a formas solidárias e democráticas de sociabilidade ou a novos pactos de convivência. Dirigir ficou muito mais importante que dominar. Desta forma, concordamos inteiramente com Nogueira (1998) quando afirma que, no atual contexto, do ponto de vista da gestão e de seus operadores, o essencial numa proposta de construção contra-hegemônica ao neoliberalismo não está na apreensão de tecnologias gerenciais, mas sim na qualificação das pessoas para atuar na fronteira entre a técnica e a política. Nesse sentido, mais uma vez concordando com a análise de Nogueira (1998: 190191), os gestores públicos, em especial os gestores sociais, devem se converter em lideranças capazes de atuar na administração pública de forma a ampliar as adesões em torno de um projeto democrático de sociedade e de gestão. Para isso, o gestor público deve ter competência teórico-metodológica, ético-política e técnico-operacional tanto para analisar os movimentos da economia, da política, da sociedade e de seus grupos e indivíduos, quanto para “pesquisar, negociar, aproximar pessoas e interesses, planejar, executar e avaliar”. Assim, para finalizar esta tese, levantaremos sugestões que contribuam com mudanças institucionais adequadas ao perfil de um gestor identificado com a finalidade de universalização e aprofundamento de direitos, que reforcem a construção de uma administração pública orientada para o aprofundamento e ampliação de direitos, principalmente na área social. Sugestões para fortalecer as resistências ao gerencialismo na administração pública brasileira As sugestões aqui apresentadas partem da distinção entre administração empresarial e administração pública. ccclxxii A finalidade de uma perspectiva democrática de administração pública seria a de constituir uma política pública pautada na conjugação entre accountability, eqüidade e justiça (Abrúcio, 1997: 31). Nesse sentido, essa perspectiva exige uma institucionalidade pública que evite a apropriação privada do aparelho público, a atuação auto-referenciada e a falta de responsabilidade pública (Grau, 1998: 207). No entanto, cabe frisar que essa política pública, necessariamente, deve estar orientada na perspectiva da universalização e aprofundamento de direitos. Em nosso entendimento, é esse aspecto que distingue radicalmente uma proposição democrática de administração pública de uma abordagem centrada no mercado ou meramente tecnicista. A universalização e aprofundamento de direitos nos campos civil, político e social é a finalidade central de uma administração pública democrática. Sendo assim, a “utilização racional dos recursos” fica subordinada a uma orientação ético-política efetivamente democrática. Consideramos, nesse sentido, que a proposta de administração pública democrática pode ser concebida e conduzida numa orientação de superação do paradigma burocrático, ou seja, um processo de negação com conservação. Negação de seus aspectos antidemocráticos: burocratizador, reiterativo e ideológico e conservação da sua dimensão racional-legal, num movimento de superação desses aspectos para construção de uma sociedade fundada num patamar mais elevado de sociabilidade, ancorado numa perspectiva de emancipação humana. Do ponto de vista técnico-operacional, a gestão pública democrática deve comungar com a idéia de distinção entre a administração pública e a administração empresarial, superando o modelo burocrático a partir da introdução de elementos de democratização, visando alcançar maior agilidade de intervenção e otimização de recursos para melhor atingir sua finalidade. Entretanto, concordamos inteiramente com a proposição do Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo – CLAD, quando afirma que no ccclxxiii caso da América Latina o desafio para a construção de uma nova gestão pública deve contemplar a tarefa do modelo weberiano de fortalecer um núcleo estratégico ocupado por uma burocracia profissional (CLAD, 1998). Ou seja, a dimensão burocrática do Estado deve ser consolidada como pressuposto para viabilização da democratização da administração, uma vez que só dessa forma se pode almejar a combinação de inserção e autonomia (“autonomia inserida” – Evans, 1993) do Estado, elemento necessário para a garantia de uma intervenção democrática. Todavia, cabe ressaltar que a valorização da administração burocrática não significa anular a crítica à ordem administrativa burocrática (ver, principalmente Capítulo 1), mas sim tem o objetivo de destacar o esquematismo do trato da burocracia (Oliveira, 2001), as limitações da crítica neoliberal bresseriana, destacando a necessidade da dimensão burocrática para o avanço, no capitalismo, da universalização de direitos. Nesses termos, torna-se fundamental reafirmar que a organização burocrática, por sua característica processualista e reiterativa (Paro, 2000) e pela sua função ideológica, que se manifesta através de sua passagem de mediação à dominação (Tragtenberg, 1992), não pode e não deve servir de referência para uma perspectiva de gestão que se pretenda radicalmente democrática. Por fim, convém também sublinhar que a crítica à burocracia, na perspectiva deste trabalho, não se confunde, em hipótese alguma, com a crítica neoliberal à perspectiva welfareana de bem-estar e direitos universais. Esse aspecto é essencial, pois evita a armadilha de cairmos numa posição conservadora de defesa do paradigma burocrático apenas como forma de reação às proposições gerencialistas apresentadas pelos vetores políticos neoliberais e pela intelectualidade vinculada à teoria da escolha pública, os quais insistem na identificação entre administração empresarial e administração pública. Por outro lado, distingue a finalidade pautada no aprofundamento e universalização dos direitos do modelo organizacional burocrático. Portanto, elaborar uma perspectiva democrática de gestão pública requer superar, por um lado, o padrão burocrático de administração e, por outro, romper ccclxxiv radicalmente com a perspectiva da identidade entre a administração empresarial e administração pública. Como analisam alguns autores (Ferlie et al., 1996; Gaetani, 1999; Grau, 1998; Fedele, 1999; Abrúcio, 1997; Paula, 2005), no contexto da hegemonia neoliberal de propostas para a administração pública, surgiram também propostas, nem sempre homogêneas, orientadas para uma finalidade democrática, apesar de partir da crítica à administração clássica burocrática. Para esses autores, no campo das propostas de mudança da administração pública, há vertentes democráticas, portanto, propostas que não se afinam aos preceitos da teoria da escolha pública. Existe um consenso em identificar como elemento central das vertentes democráticas uma concepção claramente a favor de uma distinção entre a administração pública e a empresarial, tendo como fundamento as diferentes motivações, valores e objetivos que conformam uma e outra administração (Abrúcio, 1997; Kliksberg, 1997; Grau, 1998; CLAD, 1998; Paula, 2005). Portanto, nega-se o enfoque de mercado presente nas propostas gerencialistas e se reafirma a finalidade democrática e cidadã da administração pública. Embora as sugestões possíveis de serem implementadas na gestão pública de forma imediata sejam encontradas no campo das vertentes democráticas, o que se percebe é que as propostas tendem a enfatizar os instrumentos de democratização e de controle da administração pública que precisam ser desenvolvidos; com algumas exceções126, pouco, ou quase nunca, destacam a importância do fortalecimento da dimensão racional da estrutura burocrática. Em nossa concepção os instrumentos de democratização que precisam ser fortalecidos e ampliados devem ser pensados, no campo da administração pública brasileira, a partir da estruturação de uma espinha dorsal burocrática. 126 Como destaques dessas exceções podemos registrar os trabalhos de Evans (1993 e 2003) e Nogueira (1998). ccclxxv O caráter racional de especialização e conhecimento, além de, principalmente, o fato de o servidor ser livre, apresentam possibilidades para que a administração burocrática, na conjuntura atual, contribua para o fortalecimento de projetos de sociedade contrários à lógica da financeirização e acumulação flexível do capitalismo contemporâneo, através, por exemplo, da construção e efetivação de uma perspectiva de administração voltada para o aprofundamento e ampliação de direitos. A organização político-institucional (a esfera política, expressão institucional das lutas de classe) determina as possibilidades de uma direção social mais voltada aos interesses das classes subalternas a ser implementada pela burocracia pública. Por outro lado, a existência de uma burocracia pública com a perspectiva de racionalidade (ver capítulo 1) possibilita maior presença dos “interesses universais” na esfera do Estado. Dessa forma, como exposto no capítulo 2, a estruturação de uma burocracia com sentido “universalista”, além de depender da existência de um Estado “universalista”, precisa ser estruturada de forma a potencializar aspectos de sua racionalidade, como por exemplo: a) garantia de um certo nível de “mecanização”; b) o “direito ao cargo”; c) existência dos princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos administrativos; d) realização da administração dos funcionários de acordo com regras gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos ccclxxvi abrangentes, que podem ser aprendidas; e) existência de regras impessoais como estrutura central do poder de mando e obediência, que envolva tanto o senhor legal típico quanto o corpo burocrático. Esses elementos burocráticos constituem a base sobre a qual pode se estruturar uma ordem administrativa que possua como perspectiva a antes mencionada “autonomia inserida” e que seja permeada por elementos democratizadores de controle social e público. A ressalta “autonomia Evans (1993), inserida”, articula conforme isolamento burocrático e inserção na estrutura social circundante. O “isolamento” se viabiliza pelos elementos de racionalidade detalhados acima, que constituem os traços típicos da burocracia. A “inserção” se apresenta como complemento do isolamento e possibilita o aumento de capacidade burocrática para a intervenção na sociedade. Nas palavras do autor: A inserção é necessária porque as políticas devem responder aos problemas detectados nos atores privados e dependem no final destes atores para a sua implementação. Uma rede concreta de laços externos permite ao Estado avaliar, monitorar e modelar respostas privadas a iniciativas políticas, de modo prospectivo e após o fato. Ela amplia a inteligência do Estado e aumenta a expectativa de que as políticas serão implementadas. Admitir a importância da inserção coloca de pernas para o ar os argumentos em favor da insulação. As conexões com a sociedade civil se tornam parte da solução em vez de parte do problema (Evans, 1993: 153). ccclxxvii A questão da estruturação de elementos democratizadores para permear a ordem administrativa burocrática requer, como vimos, compreender dimensão que se propõe contraditória burocrática, visando à a um incluir própria uma lógica processo de superação de seus fundamentos. Ou seja, a proposta se organiza na tensão entre burocracia e democracia, gerando um espaço de conflitos no cerne da ordem administrativa. Nesse sentido, os conflitos administrativos devem ser vistos como essenciais para a superação da rigidez e da resistência burocrática a um modelo mais adequado de gestão pública voltada para a universalização e o aprofundamento de direitos. Para não pairar dúvidas acerca da nossa concepção, concordamos com Behring (2003: 210) sobre a necessidade de não superestimar a burocracia. Quando defendemos a importância da burocracia, não é porque ela é “universal” no sentido hegeliano, nem por ser “racional” sem referência a valores, no sentido weberiano, mas por ela apresentar determinações (conhecimento especializado, seleção pública, proteção de carreira e condições de trabalho – carreira, salário e meios de administração) que reforçam uma possível intervenção do Estado voltada ccclxxviii para os interesses das classes dominadas e exploradas, na medida em que essas determinações permitem, num quadro de uma sociedade de relativa socialização do saber, a composição de uma burocracia diversificada do ponto de vista teórico e político, portanto ideológico, tensionando, dessa forma, a formulação e execução das políticas públicas, independente da direção governamental implementada. Ou seja, a burocracia, além de não ser um mecanismo operativo perfeito, também não é neutra, ainda que esteja balizada por regras e normas e deva obediência à direção governamental. O que se deve evitar é a postura da burocracia de se considerar acima das classes ou, por ser especialista, desconsiderar a relação com a sociedade determinados (ou grupos pelo menos sociais), com criando possíveis anéis burocráticos. Por fundamental, isso, como sinalizamos, simultaneamente, aprofundamento de propor mecanismos é o de democratização da burocracia para viabilizar maior controle social e público, como forma de propiciar transparência e possibilitar maior participação das classes subalternas na definição e acompanhamento das políticas públicas. ccclxxix Dessa forma as tecnologias de gestão pública empregadas devem favorecer essas construções. Portanto, cabe ressaltar, mais uma vez, que essa abordagem não despreza as tecnologias gerenciais. Ao contrário disso, ela prima por um profundo conhecimento dessas tecnologias e de suas potencialidades e limites na operacionalização das ações sociais, desmistificando o discurso sobre o poder das técnicas como elemento estratégico de enfrentamento da “questão social”, recolocando-as em bases realistas como instrumentos potencializadores de melhor gerência dos serviços sociais. As tecnologias gerenciais aplicadas na área social devem perseguir tais objetivos, já que elas não têm poder em si mesmas para reverter a atual situação da chamada questão social. Todavia, elas podem oferecer estratégias administrativas que consolidem a relação Estado – sociedade numa perspectiva democrática e que melhorem a implementação das ações sociais em termos de eficiência, eficácia e efetividade. Nesse sentido, consideramos que as determinações da chamada “administração pública democrática” abrem caminhos para desenvolvermos, com maior precisão, uma formulação para a gestão pública, principalmente da área social, implicando uma nova organização institucional. No entanto, antes de apresentarmos alguns componentes que devem constar num processo de organização intitucional da gestão social, cabe sintetizar, brevemente, o diagnóstico que Kliksberg desenvolve da situação na América Latina. Segundo Kliksberg, o setor social na América Latina é um setor fraco, com pouca influência sobre as grandes decisões relativas à política pública, tendo que atuar sobre os dados e as decisões já tomadas em outros níveis da administração pública. Outro aspecto que o autor destaca é a estrutura organizacional atrasada da ccclxxx área social em termos de estabilidade, remunerações adequadas e utilização de tecnologias avançadas, realidade completamente diferente das estruturas modernas existentes em outros setores das políticas públicas. A terceira característica que convém destacar diz respeito ao fato de a política social ser um campo de intensa luta por poder, suscetível a pressões econômicas e ao clientelismo. O quarto ponto refere-se ao perfil centralizador, piramidal e formalista das organizações responsáveis pela área social, o que inviabiliza processos mais intensos de descentralização e participação. Por último é importante sublinhar que, em que pesem os esforços realizados, a avaliação das ações sociais ainda são pouco ou mal realizadas, o que dificulta a aferição dos acertos e desvios da política social (Kliksberg, 1997: 122 e 123). Com base nesse quadro, destacaremos quatro aspectos que consideramos centrais para orientar a organização da administração pública, no intuito de viabilizar uma gestão democrática, principalmente da área social. O primeiro refere-se à imprescindível sintonia de orientação que deve ter a política econômica e a política social de um governo. Ou seja, uma gestão social democrática necessita do suporte de uma política econômica que privilegie as demandas pela universalização e aprofundamento de direitos - só assim uma política social poderá obter êxitos nesse campo. De outra forma, a política social enfrentará entraves estruturais vinculados à política econômica, não viabilizando a expansão de direitos, restringindo-se a uma ação meramente compensatória. Um segundo componente a registrar é o binômio descentralizaçãoparticipação. A descentralização não é um valor em si; ela somente se traduz de forma democrática se expressar um processo de participação e viabilização do controle das ações públicas e se for operacionalizada pelo governo central, ccclxxxi garantindo aos níveis sub-nacionais recursos financeiros, apoio técnico e diretrizes gerais. Só dessa forma se constrói a possibilidade do desenvolvimento efetivo de políticas sociais descentralizadas e democráticas, com articulação e organicidade nacional, que venham a garantir um processo de universalização de direitos sociais. Portanto, a descentralização não se traduz diretamente em democratização, nem tampouco em liberalização. A orientação política e as condições institucionais mediarão a efetivação de um processo de descentralização, ponderando suas possibilidades para fortalecer ou não o processo democrático. O desenvolvimento de políticas sociais de forma descentralizada e participativa nos leva a apresentar o terceiro componente institucional necessário: a articulação do poder público com as organizações da sociedade civil. Essa necessidade se apresenta em dois campos. O primeiro refere-se ao processo democrático e de controle das ações públicas no nível da formulação e fiscalização da política pública, que só pode ser efetivado através da intervenção de organizações da sociedade civil nos espaços públicos formais ou informais constituídos para tal fim. Nesse caso, a autonomia das organizações da sociedade civil mostra-se essencial. O segundo diz respeito ao campo de execução de serviços sociais, ou seja, as unidades de serviços sociais devem possuir espaços para a manifestação dos usuários em relação ao serviço executado. Por outro lado, é possível também pensarmos em execução de serviços realizados em co-gestão entre estado e organizações da sociedade civil, na medida da existência na sociedade de inúmeras instituições não estatais que atuam prestando serviços sociais127. No entanto, cabe frisar que esse processo de articulação do poder público com as organizações da sociedade civil não pode retirar do Estado o papel central 127 Sobre esse tema, ver Souza Filho (2003). ccclxxxii de responsabilidade sobre o desenvolvimento das políticas sociais, pois ele é o único capaz de implementar ações que propiciem a universalização e o aprofundamento de direitos. Em síntese, as organizações da sociedade civil, por um lado, no campo da execução de serviço, atuam, no máximo, de forma a complementar a ação do Estado, integrando a rede de unidades públicas de atendimento. Por outro lado, no campo da formulação, são organismos fundamentais para o processo de democratização das políticas públicas. Por fim, a questão do poder presente nos processos de formulação e execução das políticas sociais é central para compreendermos a complexidade e a importância dessa ação. Os trabalhadores da política social tendem a não reconhecer o processo de luta por poder existente no campo das políticas sociais. O fato de a tradição histórica colocar a ação social no campo da benemerência, da caridade e da filantropia fez com que um grande número de profissionais da área social a considere como uma arena constituída de sujeitos sem divergência de projetos políticos, visto que todos estão envolvidos com a causa social a partir do seu “compromisso com o pobre”, “com a ajuda”. No máximo, criticam-se os aproveitadores, os políticos etc. Essa visão ingênua da arena política da política social dificulta a construção de projetos sólidos e consistentes para a área. Portanto, considerar a luta pelo poder no campo da política social, mostra-se como fundamental para a construção de uma projeto político pautado na universalização e aprofundamento de direitos. A partir das considerações levantadas neste trabalho, tornam-se nítidas a necessidade e a possibilidade de pensarmos e agirmos no campo da administração pública numa perspectiva articulada a movimentos de superação da ordem capitalista. Portanto, devemos disputar, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático-político, o debate e a estruturação da ordem administrativa brasileira, visando contribuir com a ccclxxxiii efetivação de perspectiva comprometida com a universalização e aprofundamento de direitos. Entretanto, a questão que se coloca é se a possibilidade teórica de articulação entre administração pública e democratização, que acredito ter sido demonstrada no presente trabalho, pode ser transmutada em efetividade histórica no caso brasileiro. Articular as categorias apresentadas neste estudo com o processo histórico de formação, desenvolvimento e configuração atual do capitalismo, das políticas sociais e da administração pública no Brasil, certamente propiciará uma análise concreta das possibilidades e dos limites da transmutação referida acima. Nesse sentido, e entendendo que o modelo social democrata de Estado de BemEstar é a referência histórica no capitalismo de um processo de expansão da universalização de direitos sociais articulada com certo nível de liberdade, parece-nos que o processo que defendemos passa pelas conquistas realizadas pelos trabalhadores através do chamado welfare state, porém superação, numa visto perspectiva que tal de processo desenvolveu nos limites do capitalismo. ccclxxxiv sua se BIBLIOGRAFIA ABENSOUR, M. (1998). A democracia contra o Estado. Belo Horizonte. Editora UFMG. ABRÚCIO, F. L. 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