A NOÇÃO DE CONTRATO NA CONVENÇÃO DE VIENA DE 1980 SOBRE VENDA
INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
Véra Maria Jacob de Fradera1
Doutora em Direito pela Universidade de Paris II
Mestre em Direito Comunitário pela Universidade de Paris II
Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Especialista em
Direito Comparado pela Universidade de Paris II
INTRODUÇÃO
A importância e o lugar de destaque ocupado pelo contrato de compra e venda
internacional, em meio a tantos outros contratos, é tão relevante, que uma autora, a
professora Alina Kaczorowska, considerou-o como o «life blood of international
commerce»2.
Os primeiros esforços no sentido de uniformizar-se o contrato de compra e
venda internacional já são muito antigos, e não foram concretizados antes devido a
obstáculos da mais variada espécie, dentre os quais
a
existência de fronteiras
nacionais, mormente em relação às empresas, cuja atuação é hoje ampliada em direção
ao mercado internacional.
O período atravessado atualmente pela economia é caracterizado pela
globalização,
provocando
um
extraordinário
desenvolvimento
do
comércio
internacional, exigindo a criação de instrumentos mais aptos e eficazes de regulação das
trocas e dos conflitos que delas possam surgir. Dentre o que se objetiva,
merecem
especial destaque a celeridade e a universalização das regras, sobretudo em se tratando
de contratos muito praticados, como o da compra e venda internacional de mercadorias.
A universalização da utilização do contrato, determinou na Doutrina uma vocação para
criar soluções de adaptação a um meio ambiente onde a diversidade de sistemas
1
-A autora agradece, sumamente honrada, o convite a participar desta obra coletiva, organizada pelos
Professores Cláudio Finkelstein, Jonathan Barros Vita e Napoleão Casado Filho, iniciativa a merecer
nosso aplauso em razão de atualidade do tema proposto e de sua importância prática.
2
- In International Trade Conventions and their Effectiveness. Present and Future, The Hague, Kluwer
International, 1995 , p. 14.
jurídicos esteve e ainda está sempre presente, e a instabilidade econômica e política é,
o mais das vezes, a regra. Outrossim, as dificuldades para a regulação jurídica desses
contratos são inúmeras, pois, cada um deles pode vir regulado por uma norma de supra
direito, ou seja Direito Internacional privado nacional, donde resultam formas distintas
de eleição da ordem jurídica competente para regê-los.
A partir destas constatações, surgiu um movimento doutrinário e político, no
sentido de promover a uniformização da lei sobre compra e venda internacional de
mercadorias, culminando na redação da Convenção de Viena de 19803 elaborada sob os
auspícios da UNCITRAL4. A trajetória percorrida até a efetiva redação da Convenção
de Viena de 19805 passou por várias etapas e sua redação foi inspirada a partir de
certos modelos já existentes, há
tempo em circulação nas sociedades, merecendo
destaque dentre eles a lex mercatoria6 , cujo modelo, em sua feição atual, sem dúvida,
está presente na formulação da CISG, uma lei uniforme para as trocas internacionais7 .
Contudo, a lex mercatoria não foi o único influxo a determinar a elaboração de
uma lei uniforme para o comércio internacional, porquanto o legislador da Convenção,
ao traçar os contornos do contrato de venda internacional de mercadorias, buscou
modelos, já positivados, um estímulo à criatividade legislativa. Neste aspecto, podemos
referir os modelos de contrato alemão, inscrito no BGB, e o do Uniform Commercial
Code americano, devido a longa tradição de atuação prática no comércio internacional
desses dois povos.
É preciso mencionar ainda que os legisladores da CISG não imitaram
servilmente esses modelos, eles
podem ter-se inspirado em alguns deles, mas o
contrato de venda internacional de mercadorias, presente na CISG, é absolutamente
original, constituindo aspectos daqueles modelos, mas sob nova roupagem, mais
3
-A sigla, em inglês, correspondente à Convenção é CISG ( Convention of International Sale of Goods).
- United Nations commission of international trade law.
5
-A partir de agora, CISG
6Já em 1622, Gerard MALYNES formulava uma definição de lex mercatoria : lei costumeira dos
comerciantes....mais antiga do que qualquer lei escrita...e cujo fundamento é a Razão e a Justiça., no seu
tratado intitulado Consuetudo Vel Lex Mercatoria,, cit. por Klaus Peter BERGER, The Creeping
Codification of the lex mercatoria, Kluwer Law International, 1999, págs. 01.
7
- De acordo com Ph. KHAN, o comércio internacional cria suas próprias regras, as quais, pouco a
pouco, são integradas ao direito comercial internacional positivo. As regras de comportamento dos
contratantes no comércio internacional são na maioria das vezes baseadas nos usos comerciais,
invocados também pelos árbitros em suas decisões, « Les principes généraux du droit devant les arbitres
du commerce international», JDI, 1989, págs. 305.
4
adequada ao objetivo de criação de uma lei uniforme para o contrato mais utilizado, em
todos os tempos, pelos comerciantes internacionais.
Houve até mesmo uma grande preocupação dos legisladores da CISG de evitar a
adoção deste ou daquele modelo, justamente para evitar escolhas, tomadas de posições
que poderiam vir a ferir susceptibilidades.
Tanto isso é verdadeiro que, temas a cujo respeito grassa a diversidade e a
discussão, tais como a questão da transmissão da propriedade, se solo consensu ou
exigindo a tradição, no caso dos móveis, a transmissão dos riscos8 e outros mais, não
foram mencionados, a propósito, em razão da diversidade de soluções apresentadas nos
diferentes ordenamentos.
Em razão dessa constatação, podemos afirmar, sem medo, que a CISG “
construiu “ um novo modelo de contrato de venda internacional de mercadorias, um
modelo voltado
para o mundo do comércio internacional, muito técnico, muito
pragmático e visando a eficiência nessas relações, afastando elementos que comumente
estão presentes nas regras jurídicas, tais a tradição, a história, as peculiaridades de
certas famílias de direito, etc. A CISG logrou criar algo novo a partir de tudo isso,
inovou na matéria, tornando-se um exemplo perfeito de aplicação bem sucedida do
direito comparado. Até mesmo nesse âmbito ela representa um ineditismo, pois durante
longos anos foi afirmado que o Direito comparado não cria nada novo, apenas descreve
o que já existe, reconhecendo semelhanças ou diferenças.
No caso da CISG, ele foi fator preponderante de criação de algo novo, uma nova
disciplina para o contrato internacional de mercadorias, sem igual até então.
Neste estudo, trataremos, em primeiro lugar, dos modelos legislativos
inspiradores do legislador da CISG no referente à noção de contrato, em segundo lugar,
da concepção de contrato na CISG, acreditando que o vocábulo concepção seja mais
adequado à espécie, pois não há definição de contrato no seu texto., ainda que uma
descrição dele possa ser inferida dos artigos 30 9 e 5310.
8
- Até a tradição, responde o vendedor ou se a transmissão se dá solo consensu, desde logo os riscos se
transferem ao comprador ).
9
-O vendedor se obriga, nas condições previstas no contrato e pela presente Convenção, a entregar as
mercadorias, a transferir a propriedade e, se for o caso, a enviar os documentos concernentes.
10
-O comprador se obriga, nas condições previstas no contrato e pela presente Convenção, a pagar o
preço e a providenciar a entrega das mercadorias.
Já a doutrina11 elaborou uma definição de contrato de venda internacional de
mercadorias, nos seguintes termos: contrato cujo escopo consiste em que uma parte (o
vendedor) se obrigue a entregar os bens e a transferir a propriedade dos bens vendidos e
a outra parte (o comprador) se obrigue a pagar o preço e aceitar os bens.
A pesquisa da origem e características
dos modelos inspiradores da noção de
contrato constante da CISG, levada a efeito neste estudo, visa uma compreensão mais
aprofundada do contrato de venda internacional de mercadorias, pois acreditamos que,
dar a conhecer as suas origens e o caráter peculiar a ele imprimido pelos redatores da
CISG, contribuirá para uma melhor avaliação do comportamento das partes, uma maior
eficiência no comércio e ainda,
mais clareza em relação ao sentido desse contrato,
frente a um litígio, tornando menos árdua a tarefa dos árbitros.
Ia. Parte: Os modelos contratuais inspiradores do legislador da CISG
A Convenção de Viena de 1980 sobre a venda internacional de mercadorias
constitui um dos mais belos exemplos de lei uniforme ( unus forma ) ela desempenha
um papel
extremamente relevante no desenvolvimento das trocas entre os países
exportadores e importadores, tendo sido criada para sobrepujar os até então inevitáveis
obstáculos ao comércio no espaço internacional, porquanto leva em consideração as
diversidades jurídicas e econômicas existentes entre os distintos países, afastando-as, ao
criar um modelo original de contrato de venda internacional.
Deve ser destacado ainda o fato de a Convenção ser o produto da
colaboração de juristas provenientes de sistemas jurídicos distintos, e, de vez que a
noção de contrato varia
segundo a família de direito onde se insere,
legisladores concentraram-se no objetivo de
os seus
conceber essa noção de maneira igual,
uniforme (unus forma ) em toda a parte.
Para evitar um choque entre culturas jurídicas distintas, a CISG não definiu, de
forma expressa, a noção de contrato de venda internacional. Contudo, a doutrina é
unânime em nela identificar uma concepção de contrato calcada em uma antiga noção,
a de que a venda consiste na entrega de alguma coisa pelo pagamento de um preço 12.
11
-=Vide UNCITRAL, Digest of Case Law on the United Nations Convention on the International Sale
of Goods , United Nations Publications, 2008, p. 04.
12
- - A própria Chambre Internationale de Commerce, a ICC, de Paris, vem utilizando esta mesma noção,
desde os primórdios da edição dos Incoterms, até os nossos dias.
Tendo em vista a relevância da noção de contrato internacional, decorrente dos
termos da Convenção de Viena sobre a venda internacional de mercadorias, teceremos
nossos comentários em torno do modelo de contrato por ela adotado, dada a sua
interessante configuração, obtida através da inspiração de duas importantes concepções
dessa relação contratual, originárias de famílias jurídicas distintas, porém, com um
aspecto comum, qual seja, o de terem sida ambas desenvolvidas em
sociedades
voltadas, desde os seus primórdios, para o comércio.
Ademais, o estudo da noção de contrato estampada na CISG, ainda que de forma
indireta, pois não houve a conceituação de contrato em seu texto, conforme supra
referido,
revela
a sagacidade de seus legisladores,
criando
algo novo, e
trabalhando com o objetivo de interpretar a sua criação (ou construção) de forma
desvinculada de suas origens nacionais. Aliás, já com idêntica perspectiva, a Corte de
Cassação italiana afirmara: não é possível, com fundamento em uma norma interna,
com distinta área de aplicação, dar a uma norma de caráter internacional, destinada a
regular o tráfico internacional, um significado distinto daquele resultante da
formulação nela adotada e da intenção conjunta dos Estados contratantes. A norma
produzida na esfera internacional forma parte do ordenamento jurídico italiano, porém
não pode ser interpretada por meio de uma norma interna (grifos nossos)13.
Examinaremos a seguir os dois modelos jurídicos subjacentes à noção de
contrato adotada pela CISG, a do Código Alemão e a do Uniform Commerce Code
americano.
A)A noção de contrato adotada pelo BGB
em razão da vocação dos
alemães para o comércio
O § 433 do BGB, sob o título geral de “Compra”, disposições gerais, dispõe:
mediante o contrato de compra (Kaufvertrag) o vendedor de uma coisa está obrigado a
entregar a coisa ao comprador e a transmitir-lhe a propriedade da coisa.
Ora, a aparente simplicidade desta norma oculta toda uma série de peculiaridades do
direito alemão da venda, que aqui, por certo, não vem ao caso. Apenas a título de
informação, o direito alemão da compra e venda está embasado no valor segurança,
13
-Corte di Cassazione, 24 junio, 1968, n.2106, in Riv. Dir. Internz.priv. e proc., 1969, págs. 914. Para
aprofundamento do tema, consultar M.BONELL, «L’interpretazione del diritto uniforme alla luce
dell’art.7 della Convenzione di Vienna sulla vendita internazionale», in Riv.dir. civ., 1986, II, págs. 225 e
segs.
tendo aperfeiçoado o sistema romano de transmissão da propriedade, mediante a
separação de dois momentos no contrato de compra e venda, ou seja, o momento
obrigacional, onde se promete a transferência do bem e o momento em que ocorre a
efetiva translação da propriedade do vendedor para a do comprador. É o denominado
Trennungs Prinzip, adotado em parte pelo Brasil. Qual a origem desse direito dos
contratos adotado pelo legislador alemão?
Como notório, os alemães adotaram o direito romano como base para seu
Código Civil, e essa opção derivou do fato de, ainda tendo sido este direito criado e
desenvolvido por um povo desaparecido há muito tempo, era inegável o seu grande
renome, ter sido conhecido no mundo inteiro, além de seu espírito pragmático ter
facilitado as trocas comerciais, constituindo uma espécie de moeda comum, podendo ser
utilizado em toda a parte.
Por outro lado, o direito romano, direito do cidadão, modelo recepcionado pelo
BGB, admite a vontade como principal mola propulsora do relacionamento social, de
sorte que as pretensões de um mundo consagrado ao comércio nele encontram um
excelente respaldo. Pode-se mesmo afirmar terem sido os romanos os precursores do
liberalismo14
Tendo em vista tal perspectiva, a doutrina alemã construiu uma teoria da
obrigação contratual, onde se estabelece uma correspondência entre um direito e um
dever contrapostos. O seu âmago é constituído pela conduta a ser desenvolvida pelo
devedor, a favor do credor, por exemplo, a obrigação daquele de entregar a este a coisa
vendida.
Dentro dessa obrigação, aparentemente unitária, o vínculo jurídico15, porque
dotado de natureza dinâmica, desdobra-se em vários tipos de deveres, tais os de entregar
a mercadoria bem embalada e bem protegida, deveres esses externos às partes,
decorrentes da aplicação do princípio diretor da relação contratual, o princípio da boa fé
objetiva. Desta sorte, ainda sem terem sido tais deveres pactuados pelas partes, elas
estariam sujeitas a sua observância. Todas estas prestações estão vinculadas entre si,
tendo em vista a consecução de um fim comum, o adimplemento, que não pode ser
14
- Cf. François Xavier TESTU, in « Les glossateurs, regards d’un civiliste », R.T.D.Civ. (2), avr.-juin
1993, p. 279 et s.
15
- Para uma visão francesa da natureza do vínculo jurídico obrigacional, v. Emmanuel JEULAND,
«L’énigme du lien de droit», in RTDrciv., Juillet/ Septembre, 2003, págs. 455 e segs., esp. págs. 470.
desvinculado da consideração do inteiro desenvolvimento da relação, da medida dos
esforços e dos meios empregados pelas partes, visando a consecução do objetivo
comum, por elas colimado, ou seja, o adimplemento do contrato, tal como pactuado.
Até ser alcançado o seu fim, a obrigação sofre um processo, isto é, ultrapassa
várias fases, todas elas conducentes ao adimplemento16.
De acordo com essa concepção, a obrigação contratual é estruturada a partir de
dois princípios fundamentais: o da autonomia da vontade e o da confiança sendo a
relação entre as partes pautada ainda por outro princípio, a elas externo, criado pelos
usos de tráfico, e adotado pelo legislador alemão, de maneira muito peculiar, pois
embasa todo o direito, não só o contratual, o da boa fé em sentido objetivo.
Outra importante característica dessa noção alemã de contrato é o lugar de
destaque ocupado pelo valor segurança17 na hierarquia de valores prestes em seu
Código e no conceito de contrato, tendo em vista a necessidade de tornar atrativa a
atividade contratual entre alemães e estrangeiros.
Além de segura, a relação contratual alemã tem como alicerces a lealdade e a
confiança, dois valores típicos do comércio.
Com efeito, a doutrina alemã, desde os primórdios da elaboração do BGB,
colocou em destaque o princípio da confiança, o Vertrauensgrund, reputando-o como o
segundo pilar (ou alicerce) do direito privado18, após a autonomia privada
(Privatautonomie) o primeiro deles. A Boa Fé seria um terceiro princípio, ao qual
determinadas
funções são atribuídas, tais interpretação, controle do exercício dos
direitos subjetivos e a concretização, atividade pretoriana. De acordo com a lição de
16
- A visualização da obrigação como um processo não é a única forma de concebê-la. Autores como
LARENZ nela percebem uma estrutura (Gefüge) no sentido hegeliano, outros nela veem uma forma
(Gestalt), isto é, a obrigação não seria formada por uma soma de elementos isolados, mas sim por
conjuntos. Para Clóvis do Couto e Silva a obrigação contratual é uma totalidade. Consultar a respeito,
Clóvis do COUTO e SILVA, A obrigaçao como processo. Vide ainda Francisco C. PONTES de
MIRANDA, Tratado de Direito Privado, e ESSER J. / SCHMIDT E. , Schuldrecht Band I , Ed.
C.F.Mueller Juristischer Verlag, 1992, sobretudo p. 83 a 99.
17
- O exemplo mais emblemático desta vocação para a elaboração de um direito dotado de mecanismos
de segurança é o da forma de transmissão da propriedade imobiliária, o Abstraktions Prinzip, onde ocorre
uma distinção entre o ato criador da obrigação, o contrato visando a transmissão do imóvel, e o ato de
disposição, criando, desta sorte, uma separação de planos. Os dois contratos são independentes um do
outro, cada um existe, abstratamente do outro. A Convenção de Viena não alude a este princípio, porque
seu objeto são apenas as mercadorias (bens móveis).
18
Este princípio não consta de forma expressa no BGB .
Karl Larenz, a confiança é o reflexo da moral social 19, uma vida em comum, pacífica
ou próspera, não é possível sem um mínimo de confiança; uma sociedade na qual cada
um desconfiasse do outro, conduziria a um estado de guerra latente.
A noção alemã de contrato é dominada pelo princípio da boa fé objetiva,
entendido como uma norma superior, alcançando todo o sistema20, prevista no § 242
do BGB21.
Com relação ao direito dos contratos, a Boa Fé Objetiva, em sua acepção como
princípio, exerce três funções, a interpretativa, a concretizadora e a limitativa de
exercício de direitos.
A função interpretativa da Boa Fé decorre do § 157 do BGB, os contratos devem
ser interpretados conforme exige a boa fé levando-se em conta os usos.
Já mediante a função concretizadora ( konkretisierung ) é feita a determinação
mais concreta do conteúdo da Boa Fé, mediante o recurso aos usos, usos locais e a
certos valores 22.
É sobretudo na esfera das decisões arbitrais, que esta função concretizadora é
percebida com maior clareza, de vez que os árbitros são pessoas experimentadas na área
do comércio internacional, geralmente advogados ou comerciantes, aptos a examinar em
profundidade se o comportamento contratual foi conforme os preceitos da Boa fé
19
Karl LARENZ, Allgemeiner Teil des deutschen bürgerlichen Rechts § 2º IV, p. 43. Ein Lehrbuch,
4.ed. München, C.H.Beck,1977.
20
- É importante aqui referir a concepção sobre a Boa Fé como standard, isto é, modelo de
comportamento, distinto da Boa Fé como princípio, uma idéia geral, extraída de um conjunto de
regras ligadas entre si por uma certa relação lógica, e é a idéia comum, situada na base de todas essas
regras, que é formulada sob a forma de «princípio» O traço mais característico do princípio é a
abstração.Um princípio é extraído das regras. Mediante um trabalho de pura indução lógica,
eliminando-se as particularidades de cada regra, para manter apenas uma concepção ideal e puramente
subjetiva, e dela fazer uma realidade permanente e objetiva, cf. AL-SANHOURY, Le standard
juridique, ref. por B. JALUZOT, op.cit. p. 71. No Brasil, a Boa Fé é referida ora como standard, ora
como princípio, no Code Napoléon e no Uniform Commercial Code Americano, como standard. Para
maior aprofundamento sobre essa distinção, consultar nosso “A Boa Fé Objetiva, uma noção presente no
conceito alemão, brasileiro e japonês de contrato“, in Fundamentos do Estado de Direito, Estudos
em Homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva, Organizador: Humberto ÁVILA, Editora
Malheiros, 2005, p. 357 e seqs.
21
- O devedor tem a obrigação de executar a prestação, tal como o exigem a confiança e a lealdade,
llevando em consideração os usos de tráfico.
22
- A forma como o legislador do Código Civil japonês, o Minpô, em seu artigo 92, expressou o que
significa a concretização da Boa Fé, pode ser um bom guia para os nossos árbitros e juízes: Existindo um
costume diverso da lei ou do regulamento, mas não relacionado à Ordem Pública, é preciso levar em
conta se os participantes de um ato jurídico tinham a intenção de observar este costume, de modo que o
costume deve prevalecer.
Objetiva, proferindo decisões realmente justas e conformes a esta atividade específica,
o comércio transnacional e o internacional.
De vez que o sistema alemão concebe
a
Boa Fé Objetiva como uma espécie
de diretiva do comportamento das partes, quando da execução contratual,
concepção
autoriza
essa
um efetivo controle do comportamento dessas partes, pelo
magistrado.
A Convenção de Viena de 1980 sobre venda internacional de mercadorias,
como não poderia deixar de ser, recepcionou este princípio, sob a forma de uma
cláusula geral, inserida no seu artigo 7º 23.
A seguir, passaremos à análise de outra importante influência legislativa
presente na CISG, no referente à noção de contrato, deduzida do conjunto de suas
disposições. Estamos nos referindo ao Uniform Commecial Code norte-americano,
Este modelo, igualmente de raiz alemã, teve marcante influência na elaboração
da noção de contrato adotada na Convenção de Viena de 1980 sobre venda de
mercadorias.
B – A concepção de contrato do Uniform Commercial Code: um modelo
aberto de norma comercial
A Convenção de Viena foi elaborada por um grande número de juristas, de
várias nacionalidades e provenientes de distintas famílias de direito.
Tendo em vista seu caráter internacional e seu objetivo de facilitar a venda de
mercadorias entre comerciantes de qualquer latitude, a noção de contrato por ela
adotada deveria revestir-se de certas peculiaridades, de modo a ser aceita e
compreendida, tanto por juristas da Civil law, como por aqueles da Common law. Desta
sorte, a opção, pelo menos parcial, de um modelo da Common Law, tornou possível
esse objetivo, desta sorte, a busca do modelo contratual eleito pelo UCC americano
teve por finalidade abranger aqueles comerciantes, cuja vivência comercial deu-se e
vem se dando, de acordo com os sistemas abertos, o norte-americano e o inglês.
23
- 1) Para a interpretação da presente Convenção, deverá ser levado em conta o seu caráter internacional
e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação assim como assegurar o respeito da boa fé
no comércio internacional.
2)As questões concernentes às matérias regidas pela presente Convenção e que não são expressamente
decididas por ela, serão reguladas de acordo com os princípios gerais dos quais ela se inspira ou, na sua
falta, conforme a lei aplicável em razão das regras de direito internacional privado.
Contudo, os autores da CISG não contavam com um aspecto interessante desta
escolha, qual seja, o de as suas origens situarem-se, igualmente, na Alemanha, como a
seguir explicitado.
Com efeito, o legislador do UCC foi Karl Llewellyn, jurista de personalidade
extravagante e cujo comportamento era tão insólito, que, por si só, bastaria para tornar
polêmica a sua obra mais importante, o UCC., cuja primeira versão foi publicada em
195224. Nele foi utilizada uma linguagem vaga e imprecisa, diversamente do ocorrente
nas demais leis americanas, cujo detalhamento pode atingir o grau máximo. Exemplos
significativos da maneira original de redigir normas, adotada por Karl Llewellyn são
algumas das expressões constantes do UCC, como
customs, usages of trade ,
reasonably , etc. Dentro desta forma de visualizar as relações comerciais, o legislador
do UCC, em seu § 1- 203, determinou : Todo contrato ou dever no âmbito deste
Código, impõe uma obrigação de boa fé, em seu cumprimento ou em sua aplicação25,
ou seja, conceitos indeterminados, permitindo ampla interpretação.
Com relação à definição de contrato de venda de bens, o UCC dispõe: uma
venda consiste na transmissão da propriedade do vendedor para o comprador por um
preço26
A maioria dos comentaristas do UCC justificava a feição vaga do Código pela
personalidade excêntrica de seu legislador,
um jurista americano,
cujos estudos
universitários foram realizados na Alemanha. Profundamente influenciado por uma
corrente de pensamento jurídico, então quase esquecida na Alemanha, a corrente dita
germanista, oposta àquela que havia preconizado a adoção do direito romano como
modelo para o BGB, Llewellyn deixou-se impressionar por essa escola, muito voltada
para o cultivo das tradições locais, extremamente nacionalista e árdua defensora da
criação de uma jurisdição especial para decidir os casos relacionados ao comércio,
independente do poder judiciário do Estado.
24
-.Para aprofundar o conhecimento a respeito deste notável jurista, v. WISEMAN, « The Limits of
Vision : Karl Llewllyn and the Merchant Rules», 100, Harv.L.Rev.,465, 1987. A doutrina americana há
tempos identificou forte influência de Rudolf von IHERING, na concepção jurídica de Llewllyn. A
respeito, v. S. HERMAN, « Llewllyn the Civilian : Speculations on the Contribution of Continental
Experience to the Uniform Commercial Code », 56, Tulane L.Rev., 1125/1135, 1982.
25
- No original : Every contract or duty within this Act imposes an obligation of good faith in its
performance or enforcement.
26
- No original: A sale consists in the passing of title from the seller to the buyer for a price.
Foi aventada também a hipótese de o UCC representar uma campanha em favor
da liberalização da lei comercial. Outros viam ainda, neste código, um retorno à law
merchant, a lei comercial da Idade Média.
Verdadeira ou falsa, esta última assertiva vem sendo seguidamente relacionada
a
outra das características germanistas, presente no UCC, a noção de immanent law.
É esse o ponto que interessa mais de perto as nossas reflexões, pois a verdadeira
origem do pensamento original de Llewellyn está nas idéias dos juristas da Alemanha
romântica, sobretudo nas de Levin Goldschmidt, advogado de renome, hoje esquecido,
que divulgou esse conceito, adotado pelo legislador do UCC, o de immanent law27,
expressão da
concepção jurisprudencial de direito comercial, adotada pelo jurista
norte americano, e deveras importante para embasar os argumentos que defendem, com
razão a nosso ver, a existência de uma instância própria, para decidir sobre conflitos
entre comerciantes, acerca de seus contratos internacionais.
A idéia de immanent law tem estreita ligação os costumes comerciais
da
Alemanha, bem como uma associação com as idéias romântico-nacionalistas do papel
popular no desenvolvimento das relações sociais. Na Alemanha romântica, pensava-se
terem os casos comerciais uma especial Natur28, considerando-se, por isso, os Tribunais
de comércio indispensáveis, porquanto os juízes comuns, segundo os germanistas,
ficariam confusos com as leis comerciais. De acordo com essa ótica, a comunidade dos
comerciantes formava um corpo independente, dotado de uma consciência própria e de
uma lei costumeira, fundada na boa fé e no pacto honesto. Segundo este pensamento,
os juízes não estatais, isto é, leigos, deveriam distanciar-se das noções jurídicas e usar
simplesmente o seu bom senso, de modo a dominar a especial natureza da transação.
Talvez seja essa visão germanista de Karl Llewellyn, adotada no UCC, e
inspiradora dos legisladores da CISG, uma das razões explicativas de seu (dela)
27
-Immanent law : medida para aferir o comportamento das partes, se razoável e conforme à law
merchant.
28
- - A origem desta idéia situa-se na concepção germanista, segundo a qual a decisão, em qualquer caso,
não deveria ser deduzida formalmente de princípios. Ao contrário, cada caso deveria ser decidido
conforme a Natur der Sache ( a natureza das coisas ). Foi a partir desta concepção a respeito do critério
para formular a lei no caso concreto, a Natur der Sache, que Levin GOLDSCHMIDT deduziu a noção
de immanent law .
O aspecto insólito dito tudo é o fato de a fonte primeira das duas idéias está em MONTESQUIEU,
L’esprit des lois, de 1748. Na versão em inglês, The Spirit of the laws, de que dispomos, está nas págs.
1-7. Na Alemanha, o Iluminismo tardio adotou esta idéia, sendo posteriormente seguidos pelos
germanistas. Consultar, para este período, « Que signifie éclairer ? », texto escrito em dezembro de 1784,
em um momento considerado como o apogeu da Aufklärung, in Aufklärung, les Lumières allemandes,
textes et commentaires par Gérard RAULET, GF-Flammarion, 1997.
sucesso, como lei uniforme dos contratos comerciais internacionais, pois os
comerciantes internacionais possuem determinadas características, distintas daquelas
dos contratantes nacionais, pois fogem, em regra, da justiça estatal, devido ao fato de
esta não estar familiarizada com a sua forma de ser e atuar, preferindo ainda os
tribunais arbitrais para resolverem os seus conflitos, preconizando soluções fundadas
exatamente na tão especial Natur de suas relações, as comerciais.
Estas reflexões, expostas de maneira sucinta, dada a necessária brevidade deste
estudo,
tiveram por objetivo aproximar dois importantes aspectos do comércio
internacional: a importância de uma lei uniforme sobre a venda de mercadorias e a
solução dos litígios entre comerciantes internacionais, ser levada a cabo por juízes
especializados, os árbitros, únicos capazes de decidirem questões tão especializadas,
que fogem da alçada dos tribunais estatais.
No próximo segmento, nos deteremos na noção de contrato presente na CISG.
IIa
Parte:
A
noção
de
contrato
na
CISG
Num contexto como o exposto supra, a forma capaz de oferecer uma maior
segurança ao comércio internacional é a
da
uniformização das regras da venda
internacional de mercadorias, tal como realizado pela CISG.
O exame do texto da CISG conduz à visualização do contrato de venda
internacional de mercadorias, como sendo uma relação de cooperação, a exemplo do
contrato recepcionado pelo BGB, como decorre do dever de mitigar o próprio prejuízo,
previsto no artigo 77, bem como a obrigação de informar 29, cujo cumprimento torna
possível um melhor adimplemento. Contudo, a CISG adotou uma versão, digamos,
simplificada, do contrato de venda alemão, em razão de seu objetivo de fugir às
concepções nacionais e elaborar algo independente, distinto do modelo de inspiração.
Ademais, a partir da noção de contrato que deflui da CISG, erigida sobre o
alicerce dessas importantes influências legislativas, é possível deduzir outro dever ao
qual ambas as partes estão sujeitas, ou seja, o dever de cooperação, jamais mencionado
no texto da CISG, mas cuja exigência decorre da noção mesma de contrato, tal como
29
-CLOUT Case nº 445, Bundesgerichthof, Alemanha, 31 de outubro de 2001.
consta no BGB e no UCC, constituindo uma diligência reforçada pelo dever de
solidariedade30.
Um outro aspecto que chama nossa atenção, e diz respeito à nomenclatura
utilizada pelo legislador da CISG, quando ele se refere às obrigações do vendedor, do
comprador e as de ambos . Em nosso ponto de vista, talvez fosse mais perfeito, desde
um ponto de vista técnico, usar a palavra dever, pois esses são inafastáveis pelas
partes, ao passo que as obrigações são sempre criadas por elas, decorrem de seu
consenso.
A questão relativa à feição de contrato de venda internacional de mercadorias,
dada pelo legislador da CISG, no tocante à incidência, nele, da Boa Fé será objeto de
nossa atenção a seguir.
A)A função do artigo 7º da CISG na construção da sua concepção de
contrato
É de ser destacado o papel da cláusula geral31 , inserta no artigo 7º da CISG,
entendida a cláusula geral como definida por Judith Martins-Costa, uma disposição
normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente
aberta, fluida ou vaga32
Com efeito, da mesma forma como ocorre no BGB, tal como apontado por
John Dawson33, essa cláusula, além de ser disposição legislativa aberta,
serve para
aproximar o sistema da Civil law e o da Common law, pois nelas se conjugam dois
30
-V. François DIESSE, « La bonne foi, la coopération et le raisonnable dans la Convention des Nations
Unies relative à la vente internationale de marchandises» , JDI, 1, 2002, págs. 59 e segs.
31
- Sobre as cláusulas gerais, existe extensa e variada bibliografia, merecendo destaque, no plano europeu
: J HEDEMAN, Die Flucht in die Generalklauseln, Eine Gefahr fűr Recht und Staat, Tűbingen, 1933, J.
ESSER , Princípio y Norma em la elaboración jurisprudencial del derecho privado , Bosch, 1961,
Generalklausen als Gegenstand der Sozialwissenschaften , mit Beitträgen von K. LUEDERSSEN, E.
Noelle NEUMANN, T. RAISER, G. TEUBNER und A. ZIELCKE , Baden-Baden, Nomos Verlag,
1978, Stefano RODOTÀ, « Il tempo delle clausole generale ». in Riv. Crit del Diritto Privato, vol. 05,
1986, p. 709 e segs. Luciana Cabella PISU e Luca NANNI ( a cura di ) Clausole e principi generali
nell’argomentazione giurisprudenziale degli anni novanta , Cedam, 1998. NO Brasil, Judith MARTINSCOSTA, As cláusulas gerais como fatores de flexibilização do sistema » Rev. de Informação
Legislativa do Senado Federal, v. 112, 1992. Mais recentemente, Fabiano MENKE, « A interpretação
das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos », Revista do Direito do Consumidor, nº 50,
Abril-Junho 2004, nº 50, p. 09 e s.
32
33
- A Boa Fé no Direito Privado, Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 303.
In « The general clauses viewed from a distance », RabelsZ Jg. 41, H.3. 1977, págs. 441 e segs.
modos distintos do verbo “ decidir “: o modo dedutivo da Civil law e o indutivo da
Common law .
Ora, esta co-existência ou harmonização de duas famílias de direito, na cláusula
geral do artigo 7º da CISG, tem por origem um mesmo fenômeno, o de, tanto os
alemães, como os
americanos e ingleses, professarem
idêntica vocação para o
comércio.
Nessa cláusula também está muito presente o sentido de uma desejada eficiência
da norma, para regular esta peculiar relação.
Por outro lado, como já foi aqui referido, a CISG tem vários pontos em comum
com a lex mercatoria, tanto é que essa proximidade já foi reconhecida em várias
decisões, sendo a decisão arbitral Norsolor, por nós considerada como paradigmática,
no referente a essa estreita relação.
Essa aproximação entre a boa fé objetiva adotada na CISG e a lex mercatoria,
foi realizada, magistralmente, nessa decisão arbitral, onde o professor emérito da
Universidade de Paris I, J. GHESTIN, atuando como árbitro, afirmou:,,, ..diante da
dificuldade de escolher a lei nacional, cuja aplicação forçosamente se imporia, o
Tribunal considerou que seria conveniente, levando em consideração o caráter
internacional do contrato, afastar qualquer referência obrigatória a uma legislação
específica, seja ela turca ou francesa, e aplicar a lex mercatoria internacional. Um de
seus princípios inspiradores é o da boa fé, que deve presidir a formação e a execução
dos contratos. A ênfase posta sobre a boa fé contratual é, aliás, uma das tendências
dominantes, que revela a convergência das legislações nacionais nesta matéria. Ora,
a boa fé expressa não apenas um estado psicológico, o conhecimento ou a ignorância
de um fato, mas também uma referência aos usos, a uma regra moral de
comportamento... Ela traduz, pois, uma exigência de comportamento que pode ser
aproximado do princípio geral da responsabilidade. De acordo com o princípio da boa
fé, que inspira a lex mercatoria internacional, o Tribunal apurou se, no caso concreto,
a ruptura do mandato era imputável ao comportamento de uma das partes e se ela
havia causado a outra um prejuízo, que seria injustificado, impondo desta sorte a
eqüidade, seja ele reparado34 ( grifos nossos).
34
- Loc. e op.cit. Tradução nossa.
No próximo segmento, nossa tarefa será a de estabelecer qual o papel da Boa
Fé no contrato, no âmbito da CISG, uma função interpretativa ou um standard de
comportamento.
B) O papel da Boa Fé Objetiva na noção de contrato da CISG: função
interpretativa ou standard de comportamento das partes?
Dentre as soluções inovadoras aportadas pela CISG no tocante ao contrato de
venda internacional de mercadorias, nenhuma delas, e isso que são abundantes, se
iguala em originalidade e complexidade ao texto do artigo 7º , reputado, pela Doutrina,
como a disposição da qual mais depende o sucesso e o futuro da Convenção tanto no
referente às dificuldades de ser efetiva a sua interpretação uniforme sem a influência
dos direitos internos, tanto quanto no tocante ao papel desempenhado pela Boa Fé, no
contrato internacional.
Um dos aspectos que não restou
suficientemente claro foi
o do
papel
desempenhado pela Boa Fé Objetiva no contexto desse artigo 7º, o que foi constatado,
dentre outros, por Phanesh Koneru35, ...beyond concerns about what "good faith" is, the
exact role of good faith in the Convention is unclear36. O mesmo autor, no mesmo local,
continua: A plain reading of Article 7 (1) suggests that in interpreting the Convention,
"regard is to be had to . . . the observance of good faith in international trade. This
reading requires the judge to look for good faith behavior and interpret the Convention
so that the party who has deviated from good faith behavior should not be looked upon
favorably.
Não poucas vezes, a Boa Fé tem sido entendida como sendo “um princípio geral
na Convenção”, o que foi reconhecido por alguns Tribunais, por exemplo, na decisão
em que a Corte impôs a uma das partes o pagamento de indenização, porque sua
conduta havia contrariado o princípio da Boa Fé no comércio internacional, tal como
exposto no artigo 7º da CISG37.
35
Phanesh KONERU, “ The international interpretation of the UN Convention on Contracts for the
international Sales of Goods: an approach based on general principles”, Pace University School of Law,
http//www.cisg.law.pace.edu/cisg/biblio/koneru.html, último acesso, 1º fevereiro 2010, 15,50.
36
-Art. Cit., III parte, letra A.
37
- CLOUT Case, nº 154, Cour d’Appel de Grenoble, France, 22 de fevereiro (1995).
A discussão em torno do tema não se esgota aqui, é preciso ainda referir a boa fé
como standard, uma feição adotada por alguns Códigos, como o Napoléon38 e, em
alguns aspectos, pelo brasileiro de 2002. Como standard, a boa fé objetiva pode
receber acepções muito variadas, distintas segundo a matéria onde é aplicada, pois o
standard dá uma medida média de conduta social, suscetível de se adaptar às
particularidades de cada hipótese determinada. Desta sorte, a Boa Fé Objetiva, nessa
acepção,
é um conceito de geometria variável39, cuja constância é duvidosa, mas cuja
vantagem é a sua flexibilidade. Outro exemplo dessa acepção, é a forma adotada no
Uniform Commercial Code americano 40.
No âmbito da CISG, é possível vislumbrar, em algumas de suas normas, essa
acepção da Boa Fé como medida média de conduta social, no caso, a conduta média
esperada de um comerciante internacional.
Para reforçar nosso posicionamento de que a função da Boa Fé no contrato de
venda internacional de mercadorias é a interpretativa, e não o de uma norma geral de
comportamento das partes, um princípio, invocamos neste momento, o sempre lúcido e
extremamente claro magistério do professor Claude Witz, expresso em uma suas mais
recentes obras, Convention de Vienne sur les Contrats de Vente Internationale de
Marchandises 41, onde o mestre de Strasbourg e Saarbrücken, funda a consideração da
função da Boa Fé como interpretativa, no artigo 7º, em que a sua consideração como
um princípio, amplamente concebido
fosse interpretado e aplicado de maneira
divergente, sobretudo em razão das diferentes concepções nacionais em relação ao seu
conteúdo.
Este mesmo professor reconhece a existência da controvérsia em relação ao
artigo 7º, 1, aqui já apontada, no sentido de que possa ele servir de fundamento para a
aplicação do princípio da
Boa Fé, no âmbito do contrato de
venda e de sua
interpretação. Seu entendimento é o de que essa questão não é tão relevante assim, mas
38
- Artigo 1134 do CN: as convenções legalmente formadas têm valor de lei em relação aqueles que as
constituíram. Elas somente podem ser revogadas por seu consentimento mútuo, ou por causas
autorizadas pela lei. Elas devem ser executadas de boa fé.
39
-A expressão é da autoria de Béatrice JALUZOT, La bonne foi dans les contrats, Dalloz, 2001, p. 51,
nota 1.
40
- O UCC americano, em seus §§ 1-201 E 1-103, define a Boa Fé em sentido subjetivo e depois como
standard : Good Faith means honesty in fact in the conduct or transaction concerned. In the case of a
merchant good faith means honesty in fact and the observance of reasonable commercial standards of
fair dealing in the trade. ( grifos nossos).
41
- Dalloz, Paris, Avril 2008, p. 60. Esta obra foi elaborada em conjunto com o recentemente falecido
professor .Schlechtriem,
chama a atenção para a necessidade de evitar a transposição pura e simples das
soluções nacionais, as quais têm sido desenvolvidas para remediar as insuficiências do
sistema nacional concernente42.
Nosso entendimento é o de que não haverá lugar para a dúvida, nesse aspecto
particular, desde que seja a CISG considerada uma nova lex mercatoria, de modo que
a acepção da Boa Fé, no polêmico artigo 7º da CISG, como regra de interpretação do
contrato, restará
deveras reforçada 43.
Conclusão
Chegando ao término de nossas reflexões, podemos afirmar que a uniformização
do contrato de venda internacional de mercadorias pela CISG contribuiu de forma
extraordinária ao progresso do comércio, em todas as latitudes.
Contudo, não obstante o volume e a qualidade da literatura, de todas as origens,
produzida
em torno dessa Convenção,
muitos de seus aspectos ainda ensejam
discussões e geram incertezas, como foi aqui demonstrado, em relação à noção de
contrato, a ser deduzida dos seus termos.
Vimos, igualmente, que o texto de
seu artigo 7º conduz à interpretações
divergentes, no referente à compreensão da Boa Fé, no contrato.
Expusemos nosso entendimento, no sentido de que a função da Boa Fé no
contrato de venda é interpretativa, pois visualizamos a CISG como uma nova lex
mercatoria.
Acreditamos que o fato de termos chamado a atenção para a eleição de dois
modelos, oriúndos de duas famílias distintas de direito, e a opção por uma cláusula geral
do porte da inscrita no artigo 7º 1, poderá representar uma forma de esclarecimento aos
intérpretes e aplicadores da Convenção, que, desta sorte, terão maior facilidade na
compreensão do sentido das normas originais da CISG.
42
-O .cit., p. 61.
Contudo, essa interpretação ou “leitura” do assunto não reflete a unanimidade da doutrina
internacionalista, existindo outros pontos e vista, por exemplo o do professor Phanesh Koneru, para
quem a Boa Fé desempenha dois papéis na CISG, um deles endereçado às partes, outro, ao juiz ou
árbitro. Ainda segundo esse professor, a existência do primeiro papel é extraída do texto da Convenção e
de seus princípios gerais, o segundo, emerge de sua história legislativa. Vide -Phanesh KONERU, “ art.
Cit. , parte III, letra A.
43
Por fim, quisemos chamar a atenção para o tema da natureza da Boa Fé referida
no artigo 7º, aspecto que, pensamos nós, voltará a ser objeto de discussão, quando da
adesão do Brasil à CISG, o que se dará em futuro bem próximo, pelo que se depreende
dos termos da recomendação da CAMEX, emitida em 15 de dezembro de 200944.
De nossa parte, almejamos que a adesão à CISG pelo Brasil se dê o mais breve
possível,
pois esse é um anseio de todos os nossos
operadores do comércio
internacional e do direito no país.
44
O Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) autorizou o Ministério das
Relações Exteriores (MRE) a encaminhar ao Congresso Nacional proposta de adesão do Brasil à
Convenção de Viena, que trata de contratos de compra e venda internacional de mercadorias. O assunto
foi debatido na reunião da Camex realizada dia 15 de dezembro, no Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior (MDIC).
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