A legalidade nos sistemas políticos exprime basicamente a observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonância estrita com o direito estabelecido.(...) Traduz a noção de que todo poder estatal deverá atuar sempre de conformidade com as regras jurídicas vigentes. Em suma, a acomodação do poder que se exerce ao direito que o regula. Cumpre pois discernir no termo legalidade aquilo que exprime inteira conformidade com a ordem jurídica vigente. Nessa acepção ampla, o funcionamento do regime e a autoridade investida nos governantes devem reger-se segundo as linhasmestras traçadas pela Constituição, cujos preceitos são a base sobre a qual assenta tanto o exercício do poder como a competência dos órgãos estatais. A legalidade supõe por conseguinte o livre e desembaraçado mecanismo das instituições e dos atos da autoridade, movendo-se em consonância com os preceitos jurídicos vigentes ou respeitando rigorosamente a hierarquia das normas, que vão dos regulamentos, decretos e leis ordinárias até a lei máxima e superior, que é a Constituição. O poder legal representa por conseqüência o poder em harmonia com os princípios jurídicos, que servem de esteio à ordem estatal. O conceito de legalidade se situa assim num domínio exclusivamente formal, técnico e jurídico. O princípio da legitimidade Já a legitimidade tem exigências mais delicadas, visto que levanta o problema de fundo, questionando acerca da justificação e dos valores do poder legal. A legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração. É o critério que se busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder às situações da vida social que ele é chamado a disciplinar. No conceito de legitimidade entram as crenças de determinada época, que presidem à manifestação do consentimento e da obediência. A legalidade de um regime democrático, por exemplo, é o seu enquadramento nos moldes de uma constituição observada e praticada; sua legitimidade será sempre o poder contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia democrática. 3. Como se formou o princípio da legalidade e a espécie de legitimidade que esse princípio procurou estabelecer O princípio de legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a dúvida, a intranqüilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem reconhecidas. A legalidade, compreendida pois como a certeza que têm os governados de que a lei os protege ou de que nenhum mal portanto lhes poderá advir do comportamento dos governantes, será então sob esse aspecto, como queria Montesquieu, sinônimo de liberdade. Autores que escreveram durante o ancien regime, em França, tiveram a intuição desse princípio. Haja vista Fenelon com respeito ao poder do rei: “Ele pode tudo sobre as pessoas, mas as leis podem tudo sobre ele” . Mas foi o século racionalista e filosófico — o século XVIII — que desenvolvendo as teses do contratualismo social aprofundou na França a justificação doutrinária do princípio da legalidade. Sua explicitação política se fez por via revolucionária, quando a legalidade se converteu em matéria constitucional. Assim no texto de 1791: “Não há em França autoridade superior à da lei; o rei não reina senão em virtude dela e é unicamente em nome da lei que poderá ele exigir obediência” (Art. 32, do Capítulo II da Constituição Francesa de 1791). Alguns anos antes, os ex-colonos de Massachussets, emancipados da dominação inglesa, gravaram em sua Constituição (Art. 30) o princípio da separação de poderes a fim de que “pudesse haver um governo de leis e não de homens”. Enfim, o princípio da legalidade atende aquele ideal jeffersoniano de estabelecer um governo da lei em substituição do governo dos homens e de certo modo reproduz também aquela máxima de Michelet sobre “o governo do homem por si mesmo”. 7. O aspecto jurídico da legitimidade Ultimando a transição do sociológico ao jurídico, Carl Schmitt, o mais conspícuo jurista da Alemanha comprometido com o nacionalsocialismo, intenta demonstrar que a posse do poder legal em termos de legitimidade requer sempre uma presunção de juridicidade, de exeqüibilidade e obediência condicional e de preenchimento de cláusulas gerais, cuja importância prática e teórica não deve ser ignorada pela teoria constitucional nem pela filosofia do direito, visto que tanto servem de critério de controle da constitucionalidade da legislação como de ponto de partida a uma doutrina do direito de resistência.9 Foi justamente a falta de tal consciência alimentada na formação do povo alemão, cultivada entre os seus magistrados, disseminada na massa de servidores públicos, implantada no espírito da direção política do país, referida também aos partidos políticos de liderança democrática e republicana, aquilo que na hora fatal da conspiração nazista entregou a ordem jurídica da Alemanha à ditadura inescrupulosa, desarmando depois o sentimento de resistência da nação às práticas criminosas e violentas do nacional-socialismo. Schmitt mesmo foi vítima dessa emboscada histórica da legalidade hitlerista, tendo razões pessoais de sobra, por experiência doutrinária, para acrescentar como corretivo democrático e constitucional a postulação de limites jurídicos eficazes à legitimidade invocada pelos titulares do poder legal. A doutrina mais recente dos autores franceses, já em parte examinada, conforme vimos, se distribui, quanto ao problema da legalidade e legitimidade dos governos, nas seguintes posições: 1) a legalidade é tão-somente questão de forma; a legitimidade, questão de fundo, substancial, relativa à consonância do poder com a opinião pública, de cujo apoio depende (Burdeau); 2) a legitimidade é noção ideológica, a legalidade, noção jurídica; do ponto de vista, porém, da ordem constitucional positiva as duas noções coincidem ou se confundem: “um governo é legal, conseqüentemente legítimo, sob o aspecto do direito, desde que se estabeleça de modo regular, conforme as regras da ordem estatutária nacional”, a saber, ao instituir-se de acordo com a Constituição em vigor;10 caso porém venha a contrariar essas regras, que deverão presidir igualmente ao seu funcionamento, semelhante governo deixará de ser legal, perdendo também sua condição de legítimo;11 3) legalidade é a conformação do governo com as disposições de um texto constitucional precedente, ao passo que a legitimidade significa a fiel observância dos princípios da nova ordem jurídica proclamada; a legalidade será assim um conceito formal, a legitimidade, um conceito material, de maneira que, segundo essa posição, um governo de fato far-se-á eventualmente legítimo se proceder segundo as regras por ele mesmo estabelecidas, fundamentando uma nova ordem política ou constitucional (Duverger). De acordo porém com a doutrina de Hauriou, mais antiga, “o princípio de legitimidade não é em si outra coisa senão o princípio da transmissão do poder conforme a lei.”12 Alude o publicista francês aos governos como meros depositários de um poder, cuja sede legítima se acha na lei, na autoridade, na competência juridicamente definida, da qual são instrumentos ou servidores obedientes, sendo a legitimidade a fiel observância dos mecanismos de transmissão do poder.13 Quanto ao poder de fato, o poder revolucionário, o poder que emerge das crises ou rupturas violentas da ordem legal vigente, a doutrina de Hauriou conserva o mesmo caráter jurídico formal, recusando a esses poderes legitimidade, que só se adquire eventualmente na medida em que os mesmos, uma vez estabelecidos, façam “a autoridade e a competência prevalecerem sobre o poder de dominação”. A observância e adoção da ordem jurídica é a via aberta para a legitimação dos governos ou poderes de fato.14 8. A legitimidade no exercício do poder A legitimidade abrange por último duas categorias de problemas distintos. O primeiro problema se relaciona com a necessidade e a finalidade mesma do poder político que se exerce na sociedade através principalmente de uma obediência consentida e espontânea, e não apenas em virtude da compulsão efetiva ou potencial de que dispõe o Estado — instrumento máximo de institucionalização de todo o poder político. Vista debaixo desse aspecto, a legitimidade do poder só aparece contestada nas doutrinas anárquicas, nomeadamente no marxismo, ao passo que as demais escolas conhecidas se empenham em dar-lhe por fundamento ora os impulsos naturais, orgânicos e biológicos do homem, ora o consentimento livremente expresso por uma associação de vontades, como nas teorias do contrato social, reconhecendo-se em qualquer das últimas posições mencionadas, por legítima, a existência na sociedade de um poder político imposto às vontades individuais. Se a existência do poder político na sociedade se acha legitimada com rara ou nenhuma discrepância (sendo a única exceção a dos anarquistas) o problema da legitimidade, ao contrário, se complica quando a questão versada entra a ser a do exercício legítimo do poder. Trata-se aqui de indicar o fundamento de legitimidade do governo ou dos governantes, manifestado como um dado histórico e relativo, consoante as doutrinas ou as crenças geralmente aceitas e que lhes servem de esteio, modificáveis conforme a época ou o país. Na Idade Média, essa crença-suporte da legitimidade foi Deus, a religião, o sobrenatural, ao passo que contemporaneamente ela vem sendo o povo, a democracia, o consentimento dos cidadãos e a adesão dos governados. Mas não se exaure nisso o problema da legitimidade governativa. Cumpre passar ao segundo problema, o de saber se todo governo é legal e legítimo ao mesmo tempo e quais as hipóteses configurativas de desencontro desses dois elementos: legalidade e legitimidade.