PRIMEIRAS OBSERVAÇÕES SOBRE O PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Humberto Theodoro Júnior 1 INTRODUÇÃO Já se encontra tramitando no Senado Federal o Projeto de Reforma do Código de Processo Civil, sob o nº PLS 166 de 2010, apresentado pelo Senador José Sarney. Torna-se possível, doravante, a participação de todos, por meio da intervenção dos representantes parlamentares, no aprimoramento da obra normativa, cuja repercussão social é despiciendo proclamar. Tive a honra de figurar entre os elaboradores do anteprojeto e sinto-me no dever de continuar cooperando, na medida do possível, para que no debate a ser travado no Parlamento se possa eliminar e superar deficiências e imperfeições que, eventualmente, não se tenha conseguido evitar nos trabalhos preparatórios. 2 A VERIFICAÇÃO DAS PRIMEIRAS IMPERFEIÇÕES O Projeto, nascido de anteprojeto elaborado por uma Comissão de Juristas nomeada pela Presidência do Senado, é algo concreto que, no momento, veicula a proposta de um novo Código de Processo Civil para o país. Como membro da Comissão, pude advertir, desde o princípio, para a impossibilidade material de planejar, redigir e debater, a contento, o 1 anteprojeto, no exíguo espaço de tempo, de apenas uns poucos meses, prefixado para a conclusão da complexa tarefa. Agora que o trabalho já se acha concluído e divulgado, posso constatar que, de fato, medidas modernas e louváveis foram idealizadas e transformadas em procedimentos concretos, dentro da perspectiva de dotar o país de um Código capaz de simplificar e agilizar o trâmite das causas em juízo, de modo a reduzir a intolerável lentidão com que hoje se ultimam os processos cíveis entre nós. Redução de procedimentos e recursos, julgamentos coletivos para causas repetitivas, reforço dos poderes do juiz para a repressão à litigância de má-fé e ao abuso de expedientes procrastinatórios, regulamentação da desconsideração da personalidade jurídica, aprimoramento da penhora on-line e dos atos de expropriação na execução forçada, entre muitas outras inovações, correspondem, sem dúvida, a algo compatível com as garantias constitucionais do acesso efetivo à justiça por meio do devido e justo processo legal, em dimensões formais e substanciais. A pressa, entretanto, com que a obra se concluiu deixa expostas deficiências evidentes de redação e sistematização que não aconselham a pronta transformação do projeto em lei. Aquilo que não se teve tempo e oportunidade de fazer durante a curtíssima atividade da Comissão terá de ser cumprido durante a tramitação parlamentar. Eis alguns aleatoriamente poucos colhidos exemplos mediante ligeira de deficiências leitura da "Parte redacionais, Geral" do anteprojeto: - O art. 73 fala dos honorários advocatícios no caso de sentença que reconheça a perda de objeto e atribui a responsabilidade pela verba "à parte que lhe tiver dado causa". Não se sabe, pelo texto, o que perdeu objeto, nem 2 a que se deu causa. É claro que se pretendeu cuidar de processo extinto por ter ele perdido o seu objeto; e que quem deve responder pelos honorários é a parte que deu causa ao processo. Mas o texto nem sequer fala em extinção do processo, para que daí se pudesse certificar que a perda de objeto foi do processo e que os encargos sucumbenciais devem ser suportados por quem deu motivo para que o processo fosse instaurado. Isso tudo tem de ser adivinhado ou presumido, diante da pobreza do texto. - O art. 115 declara suspeito o juiz "que receber presentes antes ou depois de iniciado o processo" (inciso II). Não esclarece, porém, de quem teria recebido os presentes. A redação é flagrantemente incompleta. - O Projeto abandonou a figura das exceções de impedimento e suspeição, mas determina a autuação do requerimento que provoca o incidente em apartado para remessa e julgamento pelo Tribunal (art. 116, § 2º). Que rótulo se dará a esse procedimento, que admite até instrução probatória? Por que fugir de sua tradicional classificação de exceção processual? - O art. 126 prevê o dever do perito de cumprir seu ofício "no prazo que lhe assina a lei". No procedimento de produção da prova pericial, no entanto, o art. 445 atribui ao juiz (e não à lei) a fixação do "prazo para entrega do laudo". - O art. 283 arrola para a tutela cautelar (conservativa) e a tutela antecipatória (satisfativa) os mesmos requisitos, sem atentar para a diversidade de consequências práticas e jurídicas que advêm de uma medida neutra, como é a conservativa, e de uma medida de mérito, como é a de antecipação de tutela substancial. Questões como a da inequivocidade da prova e da reversibilidade da medida, data venia, não deveriam ser desprezadas quando se trata de antecipação de efeitos da futura sentença de mérito. A experiência do atual Código, em seu art. 273, não deveria ter sido 3 desprezada. As duas situações são substancialmente heterogêneas, de modo a não permitir tratamento processual homogêneo. - Também o art. 284 prevê a possibilidade de concessão de medidas de urgência de ofício pelo juiz. Se isto se justifica excepcionalmente no campo das tutelas cautelares, não se pode admitir que ocorra em relação à tutela antecipatória, cujo regime é sempre comandado pelo princípio ne procedat iudex ex officio. 3 DEFICIÊNCIAS NA CLASSIFICAÇÃO E NOMENCLATURA DE ALGUNS CAPÍTULOS E SEÇÕES No Livro II (Processo de Conhecimento), Título II, o "Cumprimento de obrigação de fazer e de não fazer" foi colocado, inadequadamente, na Seção IV do Capítulo II, relativo à "Obrigação de pagar quantia certa", quando, obviamente, deveria constituir Capítulo distinto. Não há como considerar obrigação de fazer como subdivisão de obrigação de quantia certa. Por sua vez, o Capítulo II apresenta o título "Da obrigação de pagar quantia certa", como se fosse um Capítulo do Direito Civil. Na verdade, e a exemplo do que se fez com as demais obrigações, o correto seria "Do cumprimento da obrigação de pagar quantia certa". Ainda no Livro II, se constata a utilização da mesma nomenclatura para seções diferentes e relativas a Títulos diversos: a) No Título I, a Seção IV do Capítulo XIII ("Da sentença e da coisa julgada") se apresenta como "Do cumprimento das obrigações de fazer, de não fazer e de entregar coisa", quando, na verdade, o assunto ali tratado não diz respeito ao "Cumprimento de sentença", mas à forma de julgar, quando se trata de 4 obrigações da aludida categoria. O correto, portanto, seria "Do julgamento das ações relativas às obrigações de fazer, de não fazer e de entregar coisa". b) No Título II do mesmo Livro, onde, aí sim, o assunto é o cumprimento de sentença, volta-se a utilizar na Seção IV (que deveria ser um Capítulo) a mesma denominação de "Do cumprimento de obrigação de fazer e de não fazer". No primeiro caso, há uma evidente impropriedade terminológica, o mesmo não ocorrendo com o segundo caso. 4 Defeito Gravíssimo Ocorrido na Disciplina do Processo de Execução Por fim, para não aumentar exageradamente, por ora, a exposição das imperfeições do Projeto, há uma que merece ser destacada pela gravidade que encerra. Trata-se do art. 839, § 2º, onde se acha, data venia, uma verdadeira barbaridade, que atinge as raias da inconstitucionalidade. Ali simplesmente se cassa o direito de ação (direito de acesso à justiça) àquele que não embargar a execução nos quinze dias da lei. Afirma-se textualmente: "A ausência de embargos obsta à propositura de ação autônoma do devedor contra o credor para discutir o crédito." Fui o encarregado de rever a linguagem final do livro relativo ao Processo de Execução; e para o § 2º do art. 839 sugeri o seguinte texto: "§ 2º A intempestividade dos embargos não obsta o prosseguimento da ação do devedor contra o credor através de procedimento autônomo, observandose o disposto no art. 738, § 1º." 5 No entanto, por razões não explicitadas, a conclusão do anteprojeto inseriu, no referido parágrafo, texto de sentido justamente contrário à minha sugestão, que era, aliás, de mero aprimoramento redacional, de um dispositivo que já se achava tranquilamente assentado, quanto ao seu conteúdo, tanto na doutrina como na jurisprudência. Como ficou, o dispositivo atenta, de forma sumária e radical, contra o direito da parte de ver apreciado seu direito em juízo, sem nunca tê-lo submetido ao julgamento do Poder Judiciário. É importante lembrar que os embargos não são simples resistência do réu a pedido do autor. São uma ação de conhecimento que o devedor pode ou não manejar, segundo suas conveniências pessoais. Além do mais, são os embargos apenas uma das ações de que o devedor pode lançar mão, e nunca uma única via de que se possa valer o litigante para obter o acertamento de sua eventual controvérsia com o credor. Enquanto não prescrita a pretensão do devedor, não pode a lei processual privá-lo do direito fundamental de postular a tutela jurisdicional de cognição. Daí porque, à luz da garantia constitucional, não pode a ausência da ação de embargos representar a perda de um direito fundamental, como é o direito de ação que nunca chegou a ser exercitado, e que sequer foi transformado em objeto de solução dentro do processo de execução. É por demais sabido que o processo de execução não é palco de acertamento de controvérsia alguma quanto à existência ou inexistência do direito do credor ou da obrigação do devedor. Ele se sustenta apenas na existência de um documento que - mesmo sem o prévio acertamento judicial a lei considera suficiente para a prática de atos forçados de pagamento. 6 Como, então, perder o direito de discutir uma questão não trazida a juízo em momento algum? O próprio Projeto reconhece a autonomia da execução perante as ações de impugnação ao crédito constante do título executivo, segundo o disposto no § 1º de seu art. 710, in verbis: "A propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução." É ainda de ressaltar que a incongruência do anteprojeto não é apenas com a garantia constitucional do acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV) 1. Há contradição interna com a Parte Geral do próprio anteprojeto, onde se acha solenemente proclamado que o processo civil "será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição" (art. 1º). E não foi por outra razão que, repetindo o disposto no art. 5º, XXXV, da CF, o Projeto proclama que "não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito". Está, portanto, em contradição com esse enunciado fundamental, que o anteprojeto incorporou de maneira expressa, o estranho e injustificável preceito do § 2º de seu art. 839. 5 ANTECEDENTES HISTÓRICOS Foi pela inconteste autonomia, tanto da execução como da ação de impugnação ao negócio causal subjacente ao título executivo - autonomia que o CPC de 1973 reconhece em seu art. 585, § 1º, em termos idênticos ao 1 CF, art. 5º, XXXV: " A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 7 do art. 711, § 1º, do Projeto -, que a jurisprudência mansa e pacífica do STJ fixou, de longa data, o entendimento de que: "Se é certo que a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título não inibe o direito do credor de promover-lhe a execução (CPC, art. 585, § 1º), o inverso também é verdadeiro: o ajuizamento da ação executiva não impede que o devedor exerça o direito constitucional de ação para ver declarada a nulidade do título ou a inexistência da obrigação, seja por meio de embargos (CPC, art. 736), seja por outra ação declaratória ou desconstitutiva 2." (grifamos) Em outras palavras: "Em curso processo de execução, não há impedimento a que seja ajuizada ação, tendente a desconstituir o título em que aquele se fundamenta. Inexistência de preclusão, que essa opera dentro do processo, não atingindo outros que possam ser instaurados, o que é próprio da coisa julgada material 3 (grifamos), fenômeno que - acrescentamos - inocorre no seio da execução não embargada 4." Para a jurisprudência do STJ, nem mesmo o encerramento por sentença da execução não embargada é empecilho a que o devedor demande a declaração judicial, em ação posterior, da nulidade ou inexistência da obrigação executada: 2 STJ, 1ª T., REsp 741.507/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, ac. 02.10.08, DJe 17.12.08 - Fonte: DVD Magister, versão 31, ementa 11514478, Editora Magister, Porto Alegre, RS. No mesmo sentido: STJ, 3ª T., REsp 817.829/MT, Relª Minª Nancy Andrighi, ac. 25.11.08, DJe 16.12.08 - Fonte: DVD Magister, versão 31, ementa 11514132, Editora Magister, Porto Alegre, RS. 3 STJ, 3ª T., REsp 135.355/SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, ac. 04.04.00, DJU 19.06.00, p. 140. 4 Cf. Processo de execução. 25. ed. São Paulo: LEUD, 2008. ns. 437-443. p. 509-522; e Curso de Direito Processo Civil. 45. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. II. ns. 963 e 964. p. 482-484. 8 "A execução não embargada, e assim também aquela em que os embargos não foram recebidos ou apreciados pelo mérito, é simples sucedâneo do adimplemento, de molde a resguardar ao executado o direito de acionar o exequente sob alegação de enriquecimento sem causa e repetição do indébito 5." O que merece destaque no posicionamento do STJ em torno da matéria em foco é a circunstância de que suas raízes não estavam plantadas sobre normas meramente processuais, mas em fundamentos constitucionais. Por isso, não se pode introduzir na reforma do Código regra que o contradiga, sob pena de incorrer em grave inconstitucionalidade. 6 CONCLUSÕES Por estas e muitas outras razões é que o Projeto do Novo Código de Processo Civil está ainda a merecer análise e meditação mais detidas, antes de se converter em lei. De forma alguma, entretanto, se deve entrever na constatação ora feita uma moção de desapreço ao Projeto, cujos bons propósitos e virtudes são substancialmente inegáveis. A observação do momento tem apenas o objetivo de zelar por seu aprimoramento, na oportunidade que se abre com o debate parlamentar. Os doutos e especialistas são convocados não para rejeitar, e sim para aperfeiçoar o Projeto em curso no Senado Federal. 5 STJ, 4ª T., AgRg no Ag 8.089/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, ac. 23.04.91, DJU 20.05.91, p. 6.537. 9