Compreendendo a satisfação no ambiente corporativo Helena Colodetti1 Desde a idéia rebuscada de engrandecimento da humanidade pela transformação do mundo até o pragmatismo dos meios para prover a subsistência, as concepções acerca do trabalho têm em comum o reconhecimento de que o labor, ao mesmo tempo em que oferta a possibilidade da existência material do homem, igualmente é responsável pela construção do caráter de seu agente2. Se o trabalho nos acena com as condições para uma existência digna através da aquisição de benesses, por outro lado ele contribui com parcela importante para uma auto-avaliação positiva dos nossos projetos de vida. O sentimento de realização profissional tem correlação direta com a satisfação geral do indivíduo, e esta, por sua vez, não pode ser aferida sem levar em conta a auto-percepção que o sujeito tem do seu desempenho laborativo. Não é à toa que estar empregado é um dos principais fatores que afetam a auto-estima3. É possível perceber, portanto, que as questões envoltas ao trabalho não se exaurem na simples troca do ofício por salário, segundo uma relação estritamente monetária entre esforço e remuneração. Ao contrário, o labor invoca sentimentos de pertencimento ou exclusão, e contribui para a formação de identidades que ocorrem também no interior do ambiente corporativo. Assim, entender os fatores que concorrem para a aquisição de padrões saudáveis de socialização no trabalho implica em explorar as matizes do binômio empregado-empregador para além do seu aspecto econômico. Apontar quais os anseios simbólicos que permeiam as relações de trabalho, seus desdobramentos 1 Professora e doutoranda em Direito pela PUC-Rio. Bolsista do ERA – Ética e Realidade Atual. 2 Sobre os padrões do significado do trabalho, cf. BORGES, Livia de Oliveira; TAMAYO, Álvaro. A estrutura cognitiva do significado do trabalho. Rev. Psicol., Organ. Trab., Florianópolis, v. 1, n. 2, dez. 2001 . Disponível em <http://pepsic.homolog.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S198466572001000200002&lng=pt& nrm=iso>. Acesso em 02 dez. 2010. 3 “O bem-estar no trabalho pode ser conceituado, portanto, como a prevalência de emoções positivas no trabalho e a percepção do indivíduo de que, no seu trabalho, expressa e desenvolve seus potenciais/habilidades e avança no alcance de suas metas de vida. Definido deste modo, o bem-estar no trabalho inclui tanto aspectos afetivos (emoções e humores) quanto cognitivos (percepção de expressividade e realização)”. In PASCHOAL, Tatiane; TAMAYO, Alvaro. Construção e validação da Escala de bem-estar no trabalho. Aval. psicol., Porto Alegre, v. 7, n. 1, abr. 2008. p. 12. Disponível em <http://pepsic.homolog.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S167704712008000100004 &lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 02 dez. 2010. 1 www.era.org.br éticos, e como os desenhos institucionais podem se aproveitar do in put motivacional dos empregados em prol de uma maior eficiência nos resultados é o objetivo desse artigo. Como foi dito, o trabalho ocupa lugar central na arquitetura da nossa felicidade. Todavia, estar satisfeito profissionalmente não depende apenas da atuação isolada do agente. Ao revés, o agir profissional é sempre relacional, ou seja, evoca a figura de um interlocutor, com o qual aquele que trabalha obtém da alteridade a aprovação ou reprovação de seu desempenho, e, via de conseqüência, o reconhecimento do seu papel produtivo. Nesse sentido, as corporações possuem uma ambivalência funcional: por um lado, constituem o ambiente para os dramas das relações interpessoais entre as figuras clássicas do empregado e do patrão, fornecedor e do cliente, por exemplo; por outro, assumem a pró-atividade do papel de ator social. Implica dizer que as empresas, para além de serem cenário dos conflitos laborativos entre pessoas ditas naturais4, por vezes são elas igualmente parte desta mesma relação conflituosa. Essa subjetivação jurídica das corporações tem como conseqüência sua correlata subjetivação ética. Ora, gozando de amplas faculdades de ação concedida pelo ordenamento jurídico, podendo comprar, alienar e contratar, também as corporações possuem responsabilidade ética: seu agir é dotado de repercussão moral, e como tal merece ser avaliado. É justamente porque as empresas são sujeitos morais é que a ética corporativa entrou na agenda de discussão dos fóruns de responsabilidade social. Segundo essa visão, as corporações se constituem como cenário vivo – ambiente e ator da dramaturgia social. Sendo assim, devem demonstrar zelo pela ética das relações sociais que cria através do trabalho. Embebida na experiência comunitária, as virtudes ou vícios corporativos são percebidos na imanência da ciranda da vida. As empresas no trato com seus interlocutores (empregados, clientes e concorrentes) igualmente têm seu proceder avaliado segundo os diversos bens morais: suas atitudes promovem a justiça, maximizam o bem-estar, trazem felicidade para ambas as partes da relação laborativa? Ou ainda de forma mais sintética: o que torna bom o local de trabalho? 4 Diz o Código Civil brasileiro, em seu artigo 6º: “A existência da pessoa natural termina com a morte”. 2 www.era.org.br Essa é a pergunta fundamental que norteia o ranking anual das melhores empresas para se trabalhar nos Estados Unidos, cuja pesquisa possui ramificação no Brasil. Divulgado pela revista Fortune5, aplicado e concebido pelo Great Place to Work Institute6, o estudo procura expandir a idéia de sucesso corporativo, fortemente arraigada nos pilares da matemática contábil, para incluir nos seus parâmetros também atitudes eticamente orientadas. Chegou-se a conclusão que somente a assepsia dos números não era suficiente para avaliar o novo papel social que desempenham as corporações. O foco, portanto, deveria se concentrar mais nas pessoas (naturais ou jurídicas) e menos nos algoritmos, mesmo porque o investimento nas relações sociais acaba em médio prazo se revertendo em ganhos também financeiros. A pesquisa parte do pressuposto de que o fundamento para se ter um bom local de trabalho é a relação de confiança (trust) desenvolvida entre empregados e empregadores. Seu objetivo é identificar, através de questionários e uma espécie de auditoria cultural, práticas e narrativas que apontem a existência de cooperação. Para as empresas que criam um ambiente sadio, o trabalho vem acompanhado de sentimentos de credibilidade, equidade (fairness) nas oportunidades, orgulho e camaradagem. A empresa se torna também comunidade, como aponta o próprio Instituto7. Outras necessidades, que não aquelas exclusivamente monetárias, devem ser satisfeitas. Os simbolismos que marcam as relações sociais entram pela porta da frente num ambiente eticamente engajado: respeito, diversidade de gênero, cor, etnia, opção sexual, etc. A moralidade corporativa, no contexto da sua subjetivação, não deve admitir escambo pelo dinheiro. Por isso é possível compreender o motivo pelo qual as empresa mais bem colocadas no ranking não são aquelas que apenas pagam bons salários. Tornando o quid da satisfação muito mais complexo, elas oferecem justamente as benesses que passam ao largo da monetarização, mas que são fundadoras daquele sentimento comunitário: mais tempo para a vida pessoal (work5 Cf. http://money.cnn.com/magazines/fortune/bestcompanies/2010/faq/index.html. Acessado em 29∕10∕2010. 6 Sobre o instituto: http://www.greatplacetowork.com. Acessado em 29∕10∕2010. 7 “As companies become great, the division between management and labour fades. The workplace becomes a community. Employees take pride in their job, their team, and their company. They feel that they can be themselves at work. They celebrate the successes of their peers and cooperate with others throughout the organization. People take pleasure in their work - and in the people they work with - in a deep and lasting way. They want to stay around for their careers”. Disponível em http://www.greatplacetowork.com/what_we_do/dimensions.php. Acessado em 29/10/2010. 3 www.era.org.br life balance); oportunidade para trabalhar em casa (telecommunting); licenças (sabbaticals); equiparação para casais do mesmo sexo dos benefícios recebidos pelos casais heterossexuais, mesmos nos estados nos quais o casamento gay não é reconhecido; creche para os filhos dos funcionários; são apenas alguns exemplos americanos. Para aqueles que estão abatidos pela realpolitik corporativa, o tema da responsabilidade ética e comprometimento da empresa com a satisfação pessoal dos seus empregados pode parecer uma idéia lúdica, pouco sintonizada com a acirrada disputa pelo lucro em tempos de crise capitalista. Todavia, factível ou não, a reconstrução das relações de trabalho também pela via dos afetos possui apelo justamente porque evoca uma satisfação que remonta justamente à perda nunca superada do pertencimento comunitário8. Alçado à condição de sujeito racional, liberado das amarras da tradição ou da autoridade transcendente, o sujeito moderno sofre com sua abstração e desgarramento contextual. Criador de suas próprias leis morais, empreendedor da liberdade, engenheiro do cálculo da maior utilidade, o indivíduo liberal se torna perplexo com o sentimento de alienação causado justamente pela hipérbole de suas potencialidades. Traduzido como perda de sentido da vida, desolação, narcisismo possessivo9, sua solidão racional é reforçada por um ambiente corporativo que faz da competição, e não a cooperação, seu maior valor. A chance de retorno ao amparo comunitário ironicamente nos é agora apresentada por um dos principais agentes da abstração modernizante. Antes de configurar como contradição, a abertura para o engajamento ético-comunitário só vem a confirmar a intrínseca resiliência da empresa capitalista: o lucro exige criatividade nas estratégias. Talvez uma nova postura ética das corporações não seja suficiente para a correção das patologias modernas, fenômeno muito maior na qual se insere. Entretanto, seu eventual êxito depende de um ato de humildade: seja na construção do seu caráter, seja nas grandes aventuras empresariais, o homem moderno não faz sucesso sozinho. Porque então não proporcionar à alteridade, na figura da comunidade, seu lugar numa práxis empresarial? A busca pelo sucesso dos números não precisa fechar as portas para o reconhecimento das necessidades simbólicas de 8 Cf. HAIDT, Jonathan. Morality. Association for Psychological Science. Vol. 3, Number 1, pp. 65-72. 9 Cf. HABERMAS, Jürgen. The theory of communicative action: reason and the racionalization of society. Boston: Beacon Press, 1984. Tradução de Thomas McCarthy. Vol. 2. 4 www.era.org.br quem trabalha e retira do ofício grande parcela de satisfação com seus projetos de vida. Como se vê pelos atuais desenhos institucionais, lucro e valorização pessoal andam de mãos dadas. 5 www.era.org.br