STF, GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO Weliton Sousa Carvalho Juiz de Direito, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Professor da Escola da Magistratura do Maranhão Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e Professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade de Brasília Há uma falta de entendimento dentro do Estado brasileiro provocado pelos limites da lei. Não é novidade dizer que toda comunidade humana, dentro do binômio espaço-tempo, reclama normas jurídicas para sobreviver. Muito a propósito do tema, o professor Franco Montoro, em livro clássico, escreveu: ‘‘(...) não se pode conceber uma sociedade humana em que não haja ordem jurídica, mesmo em se tratando de um estado rudimentar. Isto se exprime em latim pelo adágio conhecido Ubi societates, ibi jus (Onde há sociedade, há direito)’’! (1) O Estado é uma organização juspolítica que se estabelece a partir da promulgação ou outorga do documento solene denominado Constituição. O vocábulo denuncia, de logo, seu alcance, exatamente por declinar a idéia de organização, origem, formação. A Constituição, pois, é ‘‘o fundamento de validade de toda ordem jurídica’’. (2) Observando o ângulo político do Estado, o mesmo Georges Burdeau assentou: ‘‘A Constituição é fundamental de legitimidade dos governos’’ (3) No século XVII, Locke vislumbrou a necessidade de separação de funções dentro do governo e legou a Montesquieu a arquitetura do clássico ‘‘De L’esprit de lois’’, onde o autor francês, analisando a Constituição inglesa, escreve o célebre capítulo VI do livro XI de sua obra definitiva (4). A técnica de separação das funções do Estado tinha por fundamento a limitação do ente juspolítico. Neste aspecto, cabia à expressão jurisdicional do poder declinar o direito, mesmo quando o Estado-administração fosse parte na relação processual. Coube ao Poder Judiciário a predominância da jurisdição, vale ratificar dizer o direito (ius dicere). Não resta, pois, dúvida: o exercício da jurisdição plasma a soberania do Estado. Em passagem clássica, Moacyr Amaral Santos esclarece o alcance da jurisdição: ‘‘Consiste no poder de atuar o direito objetivo, que o próprio Estado elaborou (...). A função jurisdicional é, assim, como que um prolongamento da função legislativa, e a pressupõe’’ (5). Observa-se, portanto, que a função jurisdicional decorre do Poder Constituinte. Este, como lembra Ivo Dantas, tem natureza fática e, portanto, configura-se ilimitado, desvinculado de qualquer princípio jurídico-positivo (6). O Poder Constituinte, expressão maior da soberania popular, entendeu, por decisão política fundante, que o Estado brasileiro, erigido a partir de 5 de outubro de 1988, deveria ter no Supremo Tribunal Federal o guardião da Constituição. Perceba-se: não foi o STF que usurpou tal função, mas a recebeu da Assembléia Nacional Constituinte por delegação da soberania popular. E para se chegar a tão simplória conclusão não precisa ser jurista, pois de modo cristalino está redigido o art. 102, caput, da Constituição Federal em vigor. Este é um daqueles dispositivos sobre aos quais os romanos poderiam dizer ‘‘diante da clareza cessa a interpretação’’. Não fazemos coro aos romanos, porque toda norma exige, pelo menos, a interpretação literal e este é o caso. Cabe ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição. Significa isto dizer que a mais alta Corte jurisdicional do país não suportará nenhum comportamento contrário ao conteúdo agasalhado na Carta Magna. O limite de atuação do STF, como de resto de qualquer instituição nacional, é a própria Constituição. Assim as chamadas comissões parlamentares de inquérito não têm poder absoluto, mas igualmente limitado pela Lei Fundamental do Estado brasileiro. Não é oportuna a crítica, segundo a qual o STF estaria atrapalhando a CPI. Em primeiro é preciso saber quais os limites das comissões parlamentares de inquérito. O art. 58, § 3º da Constituição traça suas atribuições. Ali está dito que a CPI terá poder de investigação próprio das autoridades judiciais. Reside, aí, a pedra de toque de toda a discussão. Há parlamentares interpretando mal tal comando normativo. Evidente que a Comissão Parlamentar de Inquérito não tem poder de julgar. E tal é facilmente demonstrável. Lembre-se: a função de dizer o direito é privativa do Poder Judiciário, exatamente quando a Constituição declina que não haverá juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII). E as comissões parlamentares de inquérito não se encontram elencadas na dicção do art. 92 do texto jurídico ápice. A natureza inquisitorial da Comissão Parlamentar de Inquérito é tão evidente que suas conclusões, quando evidenciadoras de indícios, serão remetidas ao Ministério Público. Ora, as conclusões são remetidas ao Ministério Público para se iniciar um processo judicial com todas as garantias que lhe são pertinentes, mormente resguardando-se os direitos individuais, dogmas constitucionais protegidos pelo núcleo imodificável da Constituição (art. 60, § 4º, IV). Evidente que a CPI trabalha no âmbito da formação de indícios. Tanto isso é verdade que se o Ministério Público não vislumbrar a materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria não poderá promover a ação penal, sob pena de ser esta julgada inepta. Conclui-se, pois, que as ilações da CPI não vinculam a postura do Ministério Público, muito menos a do Poder Judiciário. Note-se claramente que a Comissão Parlamentar de Inquérito tem poder de investigação próprio da autoridade judicial. Significa isto dizer que para investigar, e somente para tal, tem a CPI os mesmos poderes de um magistrado. José Cretelha Júnior, após declinar que a CPI não tem poder jurisdicional, esclarece a expressão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, nos seguintes termos: ‘‘Assim, pode a Comissão Parlamentar de Inquérito, no exercício de suas funções, determinar o comparecimento de testemunhas, tomar-lhes depoimentos, promover diligências, requisitar documentos, pedir informações a qualquer repartição pública (...) expedir notificações’’ (7). Evidente que a CPI obedecerá aos direitos e garantias individuais e coletivos no exercício de seu poder investigatório, pois estes somente serão quebrados por ordem judicial. E há uma razão bem simples para tal constatação. O Estado Democrático é uma conquista do cidadão contra o arbítrio. Exatamente cabe ao Poder Judiciário zelar por esse equilíbrio. Excepcionalmente e nos estritos ditames legais poderá o magistrado invadir o âmbito dos direitos fundamentais do jurisdicionado. E, mesmo quando o faz, comporta-se em consonância com o princípio da segurança jurídica, fundamentando, obrigatoriamente, sua decisão (art. 93, IX da Constituição). Ademais, note-se que tal decisão do magistrado monocrático (ou mesmo de tribunal) está subordinada a reexame em função do princípio processual do duplo grau da jurisdição, constitucionalmente consagrado no Estado brasileiro, dependendo apenas da manifestação do sujeito processual que teve seu interesse contrariado. Como se pode notar, até a decisão de membros do Poder Judiciário está exposta a modificação, quando reexaminada por órgãos jurisdicionais que lhe forem hierarquicamente superiores. Vai longe o século XVI, onde o absolutismo utilizava-se dos magistrados para que estes chancelassem decisões arbitrárias. (8) Não existe, em tese, nada de anormal no comportamento do Supremo Tribunal Federal. Ao contrário, o órgão máximo da jurisdição nacional está simplesmente cumprindo com as determinações estabelecidas pelo Poder Constituinte, mormente guardando a Constituição. Logo o Supremo Tribunal Federal não está atrapalhando a CPI. Parece mais próprio dizer que a CPI está se atrapalhando com a hermenêutica constitucional e com o alcance de suas atribuições. NOTAS: (1) ‘‘Introdução à Ciência do Direito’’. 20ªedição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 1991. p. 54. (2) Georges Burdeau, Francis Hamon e Michel Troper (‘‘Droit Constitutionnel.’’ 25ªédition. Paris. Librairie Général de Droit et de Jurisprudence, 1997. p.54). (3) Ob. cit. p. 55. (4) O ‘‘Espírito das Leis. ‘‘Brasília. Editora Universidade de Brasília. 1982, p. 187195. (5) ‘‘Primeiras Linhas de Direito Processual Civil’’. 1º Volume. 14ªedição. São Paulo. Saraiva, 1990. p.67. (6) ‘‘Instituições de Direito Constitucional Brasileiro’’. Volume I. Curitiba. Juruá, 1999. p. 222. (7) ‘‘Comentários à Constituição 1988.’’ Volume V (arts. 38-91). Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1992. p. 2701. (8) Veja-se Dalmo de Abreu Dallari (‘‘O Poder dos Juízes’’. São Paulo. Saraiva, 1996. p.11). (Extraído do site do jornal Correio Brasiliense e transcrito no site "O Neófito – Informativo Jurídico")