CURSINHO POPULAR DA SANTA ROSA: DESAFIOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO POPULAR1 Maíra MENDES PPGEdu - UFRGS - Brasil Lisandro MOURA Colégio Aplicação -UFRGS - Brasil Vicente RIBEIRO PPGHist-UFRGS - Brasil Marcus VIANNA História-UFRGS - Brasil Resumo: Esta comunicação visa relatar a experiência do projeto de extensão Cursinho Popular Santa Rosa, curso de preparação para o acesso à universidade, construído desde a perspectiva da educação popular. Este projeto surge a partir de uma articulação entre militantes do movimento estudantil, principalmente da UFRGS, e a Associação de Moradores da Grande Santa Rosa. Tendo em vista que este é um projeto recentemente iniciado, nesta comunicação apresentaremos sobretudo os pressupostos a partir dos quais o projeto foi construído e alguns dos principais desafios encontrados. De acordo com CASTRO (2005), cursinhos populares são “ações políticas de atores engajados em projetos e ações que têm como eixo a transformação social da realidade por meio da preparação e do incentivo às classes populares a ingressarem no ensino superior gratuito” (p. 51). Além da preparação para as provas, estes cursos problematizam as desigualdades sociais e educacionais, o ensino superior, a conjuntura política, cultura, as questões étnicas, de gênero, entre outras. O desafio da entrada na universidade é compreendido como uma superação solidária e coletiva (FREIRE; NOGUEIRA, 2001) que não se limita a melhorar o desempenho de jovens dos setores populares nos vestibulares, se articulando igualmente a um conjunto mais amplo de lutas pela democratização do acesso à universidade, entre as quais as políticas de ações afirmativas e o aumento no número de vagas. Ao redor destes elementos está presente uma tensão constitutiva dos cursinhos populares identificada por SANTOS (2005) como “o confronto entre a politização pedagógica do trabalho que se efetiva nos pré-vestibulares e a necessidade de preparação para o vestibular” (p.195). Entre os principais desafios encontrados destacamos a busca pela construção de um espaço comum de atuação entre o movimento de bairro e o movimento estudantil, bem como a busca pela apropriação por parte dos educadores e educandos do cursinho enquanto um projeto de educação popular. O projeto, que iniciou esse ano, ainda não tem apoio institucional da universidade pública onde quase todos os professores estudam/estudaram, contando apenas com apoio da Associação de Moradores e o Diretório Central de Estudantes, além do espaço cedido pela Escola Ildo Meneghetti. A partir dos primeiros passos deste projeto vemos que este se encontra em uma permanente disputa. Por um lado, entre uma proposta de capacitação técnica para o ingresso na universidade, em que os professores se enxergam fazendo um trabalho voluntário numa perspectiva assistencial ou, por outro, a proposta de um movimento social, contestador das desigualdades sócio-educacionais, tendo como pilar a educação popular enquanto ferramenta de construção coletiva e crítica do conhecimento e de sujeitos políticos emancipados. Palavras-Chave: <Cursinho Popular>, <Educação Popular>, <Acesso à Universidade> Introdução Esta comunicação visa relatar a experiência desenvolvida no Cursinho Popular da Santa Rosa, conhecido por “Cursinho Che Guevara”, na cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. O cursinho se propõe, a partir de uma perspectiva da educação popular, a lutar pela democratização do acesso à universidade, especialmente a pública. Esta prática ocorre a partir da organização de um currículo voltado para a aprovação neste exame, porém sem reduzir-se ao conteúdo, buscando estimular os educadores e educandos a problematizar o contexto educacional brasileiro, a universidade e a sociedade. A partir desta experiência, discutimos a relação universidade sociedade, do ponto de vista de quem é estudante na universidade e trabalha para que jovens e adultos das classes populares também o sejam. 1. O ensino superior brasileiro O ensino superior no Brasil possui atualmente uma minoria das suas matrículas nas universidades públicas: são menos de 25% das vagas (BRASIL, 2007). Este retrato é um reflexo das políticas de ajuste fiscal aplicadas por diversos anos, restringindo o orçamento da educação e estimulando a oferta de cursos superiores pela iniciativa privada. Recentemente, a compra de vagas ociosas nas instituições privadas pelo governo federal (Programa Universidade para Todos) promoveu um impulso extra a essas empresas, ainda que, contraditoriamente, ampliasse o acesso ao ensino superior, em instituições pagas2. A universidade pública, entretanto, mantém-se como instituição de referência no ensino, pesquisa e na extensão, uma vez que as instituições privadas no contexto brasileiro geralmente têm como único fim o ensino (com caráter utilitarista para o mercado de trabalho). A qualidade reconhecida3 das universidades públicas, bem como a gratuidade, são fatores que levam a uma alta procura por estas vagas. Ocorre que num país em que a minoria das vagas é pública, pelas quais há uma alta procura, a concorrência é utilizada como maneira de “regular” o acesso a esse direito. O instrumento usado para esta barreira no acesso às vagas é o discurso sobre o mérito. Para ingressar em qualquer instituição de ensino superior é necessário realizar uma prova, chamada de exame vestibular4, a qual classifica os candidatos em ordem decrescente, os quais se tornam aptos a cursarem a vaga pretendida. Assim, os candidatos que apresentam melhor desempenho no vestibular, supostamente, têm maior mérito, e, portanto o direito adquirido de cursar o ensino superior, enquanto aos outros resta a alternativa de tentar no ano seguinte ou desistir. O conteúdo deste exame varia de instituição para instituição e, via de regra, está dissociado do conteúdo escolar da rede pública de ensino básico. A premissa de que todos os candidatos têm chances iguais desconsidera as gritantes diferenças sociais (e consequentemente educacionais) brasileiras. O resultado desta política é uma distorção na composição dos bancos universitários: estudantes oriundos da escola pública têm maior dificuldade de ingressar na universidade pública, especialmente nos cursos com alta concorrência (os quais, não por acaso, representam um posição de status na sociedade: Medicina, Direito, Engenharia, dentre outros). Enquanto isso, as escolas particulares orientam seus currículos para os conteúdos exigidos pelas provas mais concorridas, e aqueles alunos que “investiram” na educação (financeiramente falando), têm suas chances aumentadas de passar no vestibular, uma vez que passam anos treinando para um tipo particular de provas. 2. Cursinhos preparatórios O critério classificatório do vestibular foi instituído em 1968, em pleno regime militar e inspirado pelo modelo americano preconizado pela USAID5. Antes deste marco, o vestibular tinha caráter eliminatório, e aqueles candidatos aprovados que não obtinham as vagas eram denominados “excedentes”. A luta dos excedentes, encampada pelo movimento estudantil, teve amplas repercussões, articulando aqueles que estavam dentro e fora da universidade. Este movimento abrangente criou um grande impasse para o governo militar, que então instituiu o critério classificatório (GUIMARÃES, 1984). A partir desta mudança no caráter do vestibular, com o grande contingente de “excedentes”, abriu-se um enorme espaço para que empresas do ramo educacional oferecessem cursos preparatórios para a prova: os chamados cursinhos pré-vestibulares. Cobrando altas mensalidades, os cursinhos chegam a desenvolver estatísticas de quais questões tem maior probabilidade de serem abordadas, preparam os candidatos para concorrerem entre si, incutindo a lógica da competição e do mérito individual nos estudantes, além de estimularem “técnicas” de memorização e treinamento. Aparentemente esta aposta revelou-se um bom negócio: muitos cursinhos abriram inúmeras filiais em seus estados de origem, abriram colégios associados e depois faculdades privadas. É o caso da Rede Objetivo, que está entre os primeiros lugares em número de matrículas do ensino superior brasileiro. A repercussão desta estratégia foi tal que boa parte das escolas privadas passou a orientar seu currículo para o mesmo fim, sendo que as questões de vestibular aparecem como treinamento desde o começo do ensino médio, ou mesmo antes6. A proposta pedagógica e os pressupostos epistemológicos que marcam o caráter dos cursinhos pré-vestibulares privados se assemelham muito àquilo que Paulo Freire (1975) chamou de “educação bancária”, na qual os conteúdos disciplinares são “depositados” nos alunos, nos termos de uma relação social desigual, em que o professor(a) representa aquele(a) que tudo sabe, e o aluno(a), aquele(a) que nada sabe e que, por isso, nunca tem razão. Além disso, estes cursinhos substituem a formação de nível médio sem nenhuma fiscalização por parte do poder público, e vão de encontro aos pressupostos legais contidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), uma vez que se dedicam apenas à preparação para o vestibular, ao mesmo tempo em que deixam de lado o desenvolvimento da capacidade de pensar do educando, ao escolher a pedagogia da memorização. Em outras palavras, de acordo com Benevides, os vestibulares “avaliam quem sabe decorar e resolver pegadinhas e acabam descartando possíveis alunos mais interessados numa verdadeira formação, no sentido mais forte do termo” (BENEVIDES, 2004, p. 22). Dessa forma, através da tentativa de driblar o vestibular, as escolas de nível médio passam a organizar o currículo de acordo com as exigências da prova. Como conseqüência, segundo PEREIRA (2007), “a questão do conhecimento, da criatividade e da compreensão crítica do saber é deixada de lado em detrimentos da objetividade da prova, da média matemática e da competição em si” (PEREIRA, 2007, p.49). Os cursinhos privados têm um elevado custo, o qual se coloca fora dos padrões financeiros da massa trabalhadora e dos desempregados do nosso país, e também operam sob a lógica do mercado, que visa o lucro e desconsidera a trajetória de vida dos estudantes. Nessa lógica de atuação, as classes populares estão fora da disputa, pois além de não terem condições financeiras para ingressar no cursinho, elas também não “se encaixam” no modelo pedagógico adotado (memorização). 3. Cursinhos pré-vestibulares populares Numa sociedade tão desigual como a brasileira, a garantia do direito fundamental à educação é quase inexistente. O acesso ao Ensino Superior é de fato um obstáculo para a maioria da população brasileira, principalmente para os mais pobres, que se encontram em posição desfavorecida em relação às classes economicamente dominantes, produto da extrema concentração de riquezas levada a cabo por sucessivos governos ao longo da formação do Estado brasileiro. Percebe-se, atualmente, na dinâmica da vida social, que diversos movimentos sociais e associações civis vêm se mobilizando em defesa dos direitos sociais, em especial, o direito à educação. São diferentes grupos sociais e étnicos que reivindicam mecanismos capazes de garantir o acesso e a permanência no ensino superior, como o caso da defesa das cotas étnico-raciais, por exemplo. Nesse sentido, os cursinhos populares constituem-se numa forma de organização político-pedagógica que começa a ganhar visibilidade junto à sociedade brasileira. Surgem como consequência do desdobramento, no campo educacional, das lutas políticas pelo acesso universal ao ensino superior público e gratuito (NASCIMENTO, 2003). Em outras palavras, nascem com a proposta de oferecer um espaço de luta para que os jovens das classes populares entrem na universidade, através do movimento estudantil, movimento negro, movimentos populares. O período da redemocratização, na década de 1980, em que o Brasil viveu uma ampliação na participação política, com grandes greves e mobilizações nos bairros populares em torno da luta pelas eleições diretas e anistia ampla e irrestrita, foi o contexto de surgimento dos primeiros cursinhos de caráter popular. Segundo CASTRO (2005), os primeiros cursinhos populares nascem na década de 1980, na Baixada Fluminense, fruto da mobilização do movimento negro, o qual após a constatação da dificuldade dos negros encontrarem emprego, mobilizam a comunidade buscando inseri-la na universidade. RIBEIRO (1999) relata a criação do Pré-Vestibular Alternativo de Petrópolis, bairro de Manaus, no ano de 1987, a partir de uma greve das universidades federais, em que professores e estudantes sentiram a necessidade de a universidade sair de seus muros e ir ao encontro dos interesses populares. É, entretanto, nos anos 1990 que a criação de cursinhos populares protagoniza uma verdadeira proliferação, especialmente nos grandes centros urbanos. Em diversas universidades ocorreu a institucionalização de cursinhos como projetos de extensão universitária, no interior dos campi (na maioria das vezes articulada pelo movimento estudantil), ao mesmo tempo em que outros projetos se estabeleceram, como a EDUCAFRO (ação do movimento negro) e outros projetos vinculados a movimentos de bairro. Dentre estas várias experiências, há uma multiplicidade de participantes, arranjos institucionais, propostas pedagógicas e relações com a universidade. À guisa de definição, “cursinhos populares são ações políticas de atores engajados em projetos e ações que têm como eixo a transformação social da realidade por meio da preparação e do incentivo às classes populares a ingressarem no ensino superior gratuito” (CASTRO, 2005, p. 51). Esta transformação social se daria na medida em que, além da preparação para as provas, estes cursos problematizem as desigualdades sociais e educacionais, o ensino superior, a conjuntura política, cultura, as questões étnicas, de gênero, entre outras. Entretanto, estão presos a um determinado conteúdo, imposto pelo programa dos exames vestibulares. O desafio da entrada na universidade é compreendido como uma superação solidária e coletiva (FREIRE & NOGUEIRA, 2001) que não se limita a melhorar o desempenho de jovens dos setores populares nos vestibulares, articulando–se igualmente a um conjunto mais amplo de lutas pela democratização do acesso à universidade, entre as quais as políticas de ações afirmativas e o aumento no número de vagas. Tendo nascido de movimentos sociais como o movimento estudantil, o movimento negro e o movimento popular, os cursinhos articulam as bandeiras destes movimentos com o projeto político pedagógico e a prática educativa, estimulando a organização popular enquanto instrumento para conquistar seus direitos. A desconstrução da responsabilização individual pelo desempenho, bem como o entendimento de que se trata de um projeto coletivo, em que todos os participantes do cursinho se engajam com vistas à democratização da universidade ilustra a dimensão de “superação solidária”, e contrapõe-se ao estímulo da competição e da meritocracia dos cursinhos pré-vestibulares comerciais. Outra diferença significativa é o custo: os cursinhos populares são gratuitos ou cobram bem abaixo da faixa de preço dos cursinhos comerciais. A principal contradição vivida pelos cursinhos populares é a permanente disputa entre capacitação e politização, emancipação e adaptação, tensão identificada por SANTOS (2005) como “o confronto entre a politização pedagógica do trabalho que se efetiva nos pré-vestibulares e a necessidade de preparação para o vestibular”. São as opções tomadas pelo coletivo de cada projeto que acentuam a dimensão prioritária de atuação. 4. O Cursinho Popular da Santa Rosa O projeto do Cursinho Popular da Santa Rosa “Ernesto Che Guevara” iniciou no ano de 2009, a partir de uma articulação entre militantes do movimento estudantil e a Associação de Moradores da Vila Santa Rosa. A vila pertence ao bairro Rubem Berta, localizado na Zona Norte de Porto Alegre, região mais pobre da cidade. As aulas do cursinho acontecem na Escola Municipal de Ensino fundamental Ildo Meneghetti, com o apoio do Diretório Central de Estudantes da UFRGS e da Associação de Moradores. Caracteriza-se, portanto, como um espaço comum de atuação entre o movimento de bairro e o movimento estudantil. Se por um lado o movimento estudantil está preocupado com a democratização do acesso à universidade pública, por outro, o movimento popular, representado pela Associação de Moradores, tem a expectativa de que, a partir do cursinho, aumente a participação política para reivindicar as demandas do bairro. A partir da combinação dessas problemáticas, o cursinho se insere no espaço que tem a universidade como uma das interlocutoras de demandas. A falta de relação institucional com a universidade, bem como a impossibilidade de as aulas serem realizadas em uma escola de ensino médio, refletem nas dificuldades de consolidação do cursinho: há poucos estudantes envolvidos com o projeto, do qual a comunidade ainda não se apropriou. Há dificuldades de interação com os alunos da escola em que acontecem as aulas, já que estes ainda não cursam o ensino médio e a preocupação com o ingresso no ensino superior ainda lhes é distante. A escola, assim, passou a ser apenas o espaço onde ocorrem as aulas, e não centro de referência daqueles que buscam transformar a realidade educacional do bairro. Mesmo entre os alunos do bairro que cursam o ensino médio, a universidade parece ainda ser algo distante de seus planos. Nenhum dos alunos do cursinho é aluno da escola de ensino médio do bairro, e muitos são os primeiros da família a concluir o ensino médio. Durante a divulgação do projeto, estudantes do 1º ano do ensino médio demonstraram desconhecer o que seria a própria prova do vestibular. Este quadro mostra que no bairro a universidade está tão distante da realidade local que o projeto de cursar o ensino superior não faz parte das aspirações destes jovens, que priorizam a busca por trabalho ou alguma qualificação técnica. Quanto aos professores do projeto, trabalham sem remuneração, e seu compromisso com as aulas do cursinho é quinzenal; as aulas são realizadas aos sábados e a cada sábado são ministradas cinco disciplinas, correspondentes ao exigido nas provas de vestibular (Matemática, Português, Redação, Literatura, Geografia, História, Química, Física, Biologia, Língua Estrangeira). O intervalo de duas semanas entre uma aula e outra acaba distanciando os professores do projeto e alguns concebem o trabalho como assistencial e não político. A não remuneração é um fator que acaba causando uma alta rotatividade de professores, os quais, por questão de sobrevivência, muitas vezes abandonam o cursinho para trabalhar em algum emprego que garanta o seu sustento. Percebemos que há dificuldade de trabalhar uma perspectiva de horizontalidade do conhecimento, não só por parte dos professores, mas também por parte dos estudantes. A expectativa destes é de que os professores vão “dar a matéria”, a qual muitas vezes é correspondida pelos professores. Há, entretanto, uma preocupação constante em trazer à sala de aula temas da conjuntura política, problemas do bairro, os quais estimulam os alunos a tomar posição acerca destas questões. O maior problema vivido pelo projeto hoje, é, sobretudo, a evasão dos alunos. Dentre os fatores envolvidos neste fenômeno, destacamos os de ordem objetiva e subjetiva. Sendo os alunos do cursinho estudantes e/ou trabalhadores, muitos acabam não conseguindo conciliar trabalho e estudo, precisando abandonar as aulas. O fato de terem jornada de trabalho de no mínimo 40 horas semanais faz com que o sábado seja também o único período de descanso, quando não horário de trabalho destes estudantes. Quanto aos fatores subjetivos da evasão, há que se retomar a construção do projeto universitário como algo pouco difundido nesta comunidade. Há também o fenômeno da produção do fracasso escolar (PATTO, 1990), que consiste na construção, durante as trajetórias escolares do estudante, do imaginário de que ele é incapaz, baseado em preconceitos de classe, raciais, de gênero, dentre outros. Assim, o discurso da universidade como um espaço destinado aos “melhores e mais capazes”, de tanto repetido, acaba sendo incorporado pelos próprios estudantes, que passam a não acreditar na sua capacidade de entrar no ensino superior. 5. A universidade e o bairro da Santa Rosa A experiência desenvolvida até então no Cursinho Popular da Santa Rosa “Che Guevara” nos revela algo que nossa prática no movimento estudantil já apontava: o distanciamento da universidade com os bairros populares. A sistemática alienação do direito ao ensino superior às classes populares reflete-se para fora da universidade na sua ausência enquanto instituição reconhecida. Este distanciamento se manifesta desde o projeto do ensino superior universitário não estar no horizonte de boa parte dos jovens do bairro da Santa Rosa, bem como no pouco alcance das políticas de assistência estudantil, uma vez que estes estudantes não conseguem ingressar no ensino superior público. Dialeticamente, não só a instituição universitária como referência não está no cotidiano do bairro, como também a população do bairro de modo geral não freqüenta a universidade, seja nos seus cursos, seja em outras atividades de caráter aberto ao público geral. Essa dupla dimensão explicita a necessidade de articulação de interesses no sentido de tensionar a universidade para a produção democrática de saberes: por um lado, ampliando o acesso das classes populares a essa instituição e, por outro, produzindo conhecimento que seja capaz de responder às demandas desta classe. Uma mudança de orientação na universidade, entretanto, não se dá sem embates, na medida em que ameaça os privilégios da sua elite econômica (que acaba, pela universidade, firmando-se enquanto elite intelectual). Um exemplo de conflito se deu no processo de implementação das ações afirmativas na UFRGS, que em 2007 estabeleceu reserva de vagas para afrodescendentes e indígenas: houve forte reação no interior dos cursos mais elitizados da universidade, inclusive de orientação neonazista, contrária às cotas étnicoraciais. Ao estimular a organização para reivindicar o direito ao ensino superior público, através das ações afirmativas ou pela ampliação de vagas, os cursinhos populares apresentam uma outra dimensão pedagógica para além dos conteúdos: a cultura da luta como caminho de conquistas. Notas 1. Este trabalho não contou com o financiamento de nenhuma instituição ou organização, e o projeto é mantido pelos próprios participantes, através de contribuições facultativas. 2. Para uma análise mais profunda sobre o processo de compra de vagas ociosas nas universidades privadas brasileiras, consultar o trabalho de Deise Mancebo (2004), que discute a privatização da oferta do ensino superior brasileiro. 3. Compreendemos que educação de qualidade é um conceito em disputa, considerados os interesses conflitantes em jogo na universidade. A qualidade no que tange à capacidade da universidade construir um projeto de nação soberana pode não condizer com a qualidade enquanto algo objetivamente mensurável de acordo com padrões internacionais, produtivista, que não leva em conta as relações sociais desta produção acadêmica. 4. A história do vestibular no Brasil é recapitulada por Sônia Guimarães (1984), e remonta a 1911. Neste período a opção por realizar uma prova unificada ou regionalizada já oscilou diversas vezes. No ano de 2009 foi iniciada a discussão sobre a unificação da prova de ingresso das universidades públicas federais, através do Exame Nacional do Ensino Médio. Até o momento 59 universidades federais decidiram optar pelo Enem enquanto critério de seleção para suas vagas. 5. USAID é a sigla para United States Agency for International Development (Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional). Sobre a influência da USAID na universidade brasileira após o golpe militar de 1964, consultar a obra de Luiz Antônio Cunha “A universidade reformanda”. 6. “Garoto de 8 anos é aprovado em direito” é o título da reportagem publicada em 6 de março de 2008 no jornal Folha de São Paulo. A matéria narra que o garoto, que cursava a 5ª série do ensino fundamental, foi aprovado em direito na Universidade Paulista (UNIP) da cidade de Goiânia, Distrito Federal, Brasil. Referências Bibliográficas BENEVIDES, Maria Victoria. A democratização do acesso ao Ensino Superior. 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