EM DESTAQUE: A VALORIZAÇÃO DA HETEROGENEIDADE* Lauriana Gonçalves de Paiva Graduanda do 5ª período do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora Bolsista de Coordenação Pedagógica do Cursinho Popular ... não tínhamos nenhuma liberdade na sala de aula com os professores. O distanciamento entre alunos e professor era muito grande, talvez por isso, não sei - não vou me colocar como vítima - tenha encontrado dificuldades e sido reprovado várias vezes no primário ...” (Chico Bento, um dos entrevistados) I) Resgate dos valores sociais e democráticos que jovens e adultos adquirem no meio social. Este trabalho de pesquisa e reflexão pretende investigar como jovens e adultos reiniciaram seus estudos, depois de um longo período fora do ambiente escolar. Como utilizam suas experiências de vida na construção de novos conhecimentos. O que se quer especialmente discutir é a posição da escola no resgate dos valores sociais e morais que os alunos trazem consigo, as experiências extra classe não podem ser negligenciadas no processo educacional. Dá-se ênfase também a associação das histórias de vida dos adultos, a prática educacional democrática, que reconhece as diferenças entre os sujeitos, ao mesmo tempo em que reconhece seus direitos. Muito se fala em valores democráticos na esfera educacional, principalmente na Educação popular mas pouco se avançou efetivamente neste sentido. Após os Governos Militares houve uma reforma educacional que visava o desenvolvimento econômico, a restruturação e democratização do ensino, o discurso democrático sempre teve seus excluídos. A democracia nos educa a construção da humanidade, ensinando-nos o respeito para com o próximo na luta por um bem comum. Segundo Cançado1: ... a democracia renasce das lutas populares e, em especial, do movimento dos educadores de todo país. Alimento fértil de um individualismo presente no homem, a ditadura sai de cena, deixando à nação o desafio de retomar todo um processo de construção de uma cultura coletiva e de participação. (p.8) Tem-se como estudo de caso a experiência do Cursinho Popular que possui como objeto de reflexão a educação de Jovens e Adultos fundamentada numa ética que prioriza a formação de cidadãos históricos de forma holística, em detrimento de uma prática educativa que desconsidera o meio sócio cultural de jovens com padrão sócio econômico menos favorecido. II) O ensino superior, sonho de muitos jovens Considera-se quanto é importante a valorização e o aproveitamento do conhecimento de mundo, fruto de experiências e vivências extra classe, que os alunos trazem consigo ao reingressar na escola. O discurso educacional, em geral ressalta somente os aspectos negativos dos educandos com este perfil ao invés de valorizá-lo para reacender sua auto estima. Surge a preocupação de respeitar os saberes dos educandos. Já se sabe, por conta de todos os estudos e pesquisas feitos nessa área específica, que é muito mais proveitoso trabalhar a questão de valores (democráticos) e levar em conta as experiências de * Trabalho orientado pela Professora Sonia Regina Miranda do Departamento de Métodos e técnicas da Educação da Faculdade de Educação da Universidade federal de Juiz de Fora 1 CALÇADO vida dos alunos, sem menosprezar obviamente a análise conteúdista, mas, ao mesmo tempo, desprezando somente o uso desta, ou seja, como afirma Paulo Freire2 , uma “educação bancária” que considera os alunos como uma “gaveta vazia” onde o conhecimento deve ser depositado. Pensar a escola e a ação do professor dentro dela, nos remete a questionar quais tipos de conhecimento são necessários para atender de forma eficaz a clientela, considera-se princípios teóricos e filosóficos que orientam a ação do professor, parafraseando FREIRE: é possível dizer que se queremos uma educação que construa um cidadão crítico e democrático, ciente de seus direitos e deveres, não devemos exercitar a memorização mecânica dos educandos, desestimulando os mesmos a pensar. Não se pode “depositar’ conteúdos nos alunos como se estes possuíssem uma mente vazia, ou seja, a educação deve ser ministrada de forma completa considerando conhecimentos mais amplos da vida em geral”. A educação deve oferecer meios para que o indivíduo se realize pessoalmente e prepara-lo profissionalmente. De acordo com CARVALHO: Ora, se o indivíduo vive inserido em um contexto, concluímos que este, como um todo, deve ser objeto da ação educativa. Agir de outra maneira seria desconhecer a realidade sobre o comportamento humano e agir somente em um segmento da realidade. O educador, através do processo de grupo, pode ampliar os canais de contato do indivíduo com o meio aumentando suas possibilidades de inter-relações pessoais.(p.59). A concepção educacional que deve nortear a educação de jovens e adultos não pode ser a objetivista, que concebe o aluno como uma tabula rasa, nem a perspectiva subjetivista, que compreende a educação como produto das predisposições do indivíduo. A tendência que melhor justifica as posições com relação a este trabalho se baseia no enfoque da psicologia socio-histórica, que salienta a construção do conhecimento a partir de uma prática dialética entre o sujeito e o mundo que o cerca. Conforme FRETAS (1998): Alunos e professores participam de uma construção partilha do saber. Daí que o conhecimento não se restringe a uma construção individual mas, se realizada no coletivo, é uma construção social. Na sala de aula não há lugar para o ensinar e o aprender de forma isolada. Compreende-se, portanto, que o papel da escola é o de discutir com os alunos a construção democrática do seu saber, pondo-os a par dos conteúdos curriculares, mostrando a inserção destes conteúdos na sociedade vigente que reflete os interesses da classes dominante. Além disso, os alunos devem compreender criticamente, pois assim tem-se condição para se questionar o discurso democrático frente o real descaso por parte dos que sancionam as leis em nosso país e sempre desfavorecem os menos favorecidos economicamente. Um dos grandes desafios pedagógicos que se encontra ao trabalhar com este tipo de clientela é a baixo estima que eles possuem.No caso do Cursinho popular da Universidade Federal de Juiz de Fora, é um dos agravantes para o elevado índice de EVASÃO por parte dos alunos. A fala de Magda ilustra bem está realidade, lembro como se fosse hoje, quando se reportou a mim dizendo: “_ Não tem jeito, eu sou burra mesmo, não aprendo, dá minha vaga para minha irmã, ela é inteligente, vai passar no vestibular, eu sei.” ( Magda, aluna da 1ª turma do Cursinho em 1999 ). Diante desta realidade, salienta-se como problemas que se enfrenta para educar alunos com esse perfil. Primeiramente o como se trabalhar com a construção dos saberes cobrados no enorme programa do vestibular pois é muito difícil distanciar a educação dos sonhos dos educandos, que embora lutem por sua realização, esbarram nas barreiras já criadas por uma má formação educacional. A chance de pleitear uma vaga no ensino superior sempre esteve muito distante da realidade desses alunos que possuem uma história enraizada na discriminação social. 2 FREIRE, Paulo. Desafios da educação de Adultos frente à Nova Reestruturação Tecnológica. In: Educação e escolarização de jovens e adultos. Brasília, 1997. P.273 Estudos de(LAURENS, 1992) aponta como “grupo de sortudos “ aqueles no qual a chance de uma escolaridade superior não esteve presente no grupo familiar, mas contradizem as estatísticas dilatando a trajetória escolar e atingem as instituições de ensino superior. Outro aspecto que deve ser sublinhado é o docente saber lidar com os distintos universos culturais nos quais estão inseridos os discentes. É necessário ter conhecimento sobre o universo que é construído no convívio diário, no trabalho, daí a importância de se resgatar as histórias de vidas dos alunos antes de se iniciar a prática na sala de aula. Não é prudente trabalhar com uma lógica dicotômica que divorcia os conhecimentos escolares dos conhecimentos de mundo. Com essa visão, a ética democrática que serve de apoio ao trabalho realizado no Cursinho Popular da Universidade Federal de Juiz de Fora, possui uma dimensão social bastante distinta, pois tem professores que trabalham de uma forma quase voluntária, movidos por um sentimento de solidariedade desprovido de qualquer peso material maior. Nessa linha, as reflexões e os valores éticos encontram-se fora dos parâmetros do mercado. III) ESTUDO DE CASO: CURSINHO POPULAR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA O objeto de análise do presente trabalho é o Cursinho Popular da UFJF. Este Projeto nasceu da iniciativa do Diretório Central dos Estudantes em 1999. Tem com objetivo o estudo continuado, de pessoas que por problemas sócio econômicos não puderam dar continuidade aos estudos. Esse curso ofereceu no ano de 2000, 150 vagas para pessoas com padrão econômico baixo e funcionários da Universidade que não possuem curso superior. Ao planejar a operacionalização das atividades, o MTE (Departamento de Técnicas da Educação) voltou-se para uma identidade pedagógica ligada à educação continuada de qualidade, que também possibilitasse o acesso aos exames seletivos da Universidade Federal de Juiz de Fora, notadamente o vestibular. Foram tomados todos os cuidados éticos para que não houvesse qualquer envolvimento entre as equipes que não se houve qualquer envolvimento entre as equipes que formulam os exames e os professores do Cursinho. Esses professores são prioritariamente, alunos dos cursos de licenciaturas que estão matriculados nas disciplinas do MTE (didática e prática de ensino). Sempre houve uma preocupação com a articulação de um espaço de formação permanente de futuros professores, em que o ensino e a extensão formam um conjunto único de reflexão pedagógica. O Cursinho portanto possui um caráter de ensino pesquisa e extensão. IV) PROCEDIMENTOS METODOLOGICOS DE ANÁLISE Como procedimento metodológico de investigação qualitativa a respeito da educação de Jovens e Adultos utilizou-se um recurso contemporâneo para elaboração de trabalhos: a história oral, que pode ser explicada como a percepção, o entendimento do passado, do presente cujo processo histórico, não se perdeu. Diz MEIRY (1996) que: Além de mexer no conceito de “personagem histórico” a história oral também trabalha com a questão do cotidiano, evidenciando que a história dos “cidadãos comuns” é trilhada em uma rotina explicada na lógica da vida coletiva de gerações que vivem no presente. O trabalho com histórias orais - uma alternativa da história oficial - visa produzir a inclusão da história das classes antes silenciadas, e que a partir desta passam a encontrar sentido social para usas experiências como indivíduos sociais. Resgata-se a memória perdida pelo tempo. A coleta de dados se deu através de entrevistas semi-estruturadas e sua posterior sistematização. V) PERFIL DOS ALUNOS INGRESSOS EM 2000 Antes de apresentar o produto desse trabalho, faz-se necessário apresentar o perfil dos alunos do Cursinho, a fim de que o leitor tenha uma referencia a respeito da realidade dos mesmos: 87% possuem renda familiar de até R300,00/mês, 100% trabalham com uma carga horária de cerca de oito horas/dia. Um dos empecilhos , e talvez o maior deles que fez com que estes alunos não voltassem antes para a escola, foi a luta pela sobrevivência, são trabalhadores estudantes, categoria utilizada por estudiosos da área, pois precisam trabalhar para arcar com seus estudos e ainda contribuir financeiramente com o sustento do grupo familiar. Ao contrario dos alunos da classe médios, os alunos do Cursinho Popular não possuem uma prática de investimento escolar, pois o tempo que permanecem fora da escola não podem dedicar integralmente com atividades acadêmicas. Segundo ZAGO (2000) A realidade escolar nos meios populares ... deve levar em consideração outras dimensões da vida do aluno além da estritamente escolar, entre elas a participação deste no trabalho e a rede de relações sociais da qual faz parte. (p.20). Faixas de renda- em R$ 100 87 80 60 Percent 40 20 9 0 até R$ 300 de R$ 601 a 900 de R$ 301 a 600 acima de R$ 900 faixas de renda Todos são provenientes de escolas públicas, analisando as trajetórias escolares dos alunos, notase que o tempo de permanência na escola é incompatível com o nível de escolarização dos alunos. É marcada por constantes interrupções, a vida escolar dos aluno não segue uma linha reta. E 75,9% residem em domicílios menor que 60m2 , são alunos que apesar das inúmeras dificuldades financeiras e que apesar de estarem muito tempo fora da escola conseguiram a taxa de isenção do Vestibular 2000 da UFJF. Faixas de tamanhos de domicílios- em m2 mais de 101 3,2% 81 a 100 4,4% 61 a 80 16,5% até 40 34,2% 41 a 60 41,8% VI) ANÁLISE DAS ENTREVISTAS O trabalho de resgate das histórias de vidas, por meio da oralidade comprova que os valores éticos e saberes adquiridos na prática comunitária, portanto na educação informal por estes estudantes, não são esquecidos após o contato com os conhecimentos metodológicos e científicos o que se pode observar com o relato da aluna Mônica ,19 anos: " ... sou católica, apostólica, romana (frisou), as pessoas até me confundem com crente, pois estou sempre lendo a Bíblia, não concordo com algumas teorias científicas, como a tal de Big Bang, que fala da criação do mundo. Não é o que está escrito na Bíblia..." Ouve-se muitos relatos responsabilizando a pratica tradicional de ensino pelo fracasso escolar, os estudantes não poupam críticas a Educação Formal: " ... quando fiz o primário o valor maior era a disciplina, o professor era o maior, o centro da sala, todas as atenções dos alunos voltavam-se para ele..." ( Magali, 44 anos ) Entretanto, reconhecem a importância da escolarização para ascensão social , pois sem qualificação ficam sem opção e se submetem a baixos salários e ocupações menos qualificadas. Há uma grande preocupação dom o diploma, até mais do que com a sistematização do conhecimento. A fala de cebolinha é bastante sugestiva, pois revela a contraditória relação que estes alunos travam com a escola negando-a valorizando-a: " ... acho que hoje o segundo grau é um atraso muito grande, não dá pra arrumar emprego nenhum ..." Para Magali o reencontro com o universo escolar representa reconhecimento e integração social: " ... se eu formei meus filhos, até para participar da vida deles tenho que Ter um pouco de cultura... " Neste fragmento é possível perceber nitidamente o conceito de cultura associado à sabedoria aprendida na escola, desconsiderando de forma discriminatória as manifestações culturais populares e portanto sua origem. As entrevistas elucidaram uma importante característica entre os alunos: sua baixa auto estima e uma história de vida marcada por grandes lutas e decepções. VII) CONSIDERAÇÕES FINAIS O grande desafio do docente que se dedica à educação de Jovens e Adultos - com este perfil - é condensar de forma produtiva os aspectos necessários à sua educação como indivíduo ativo dentro da sociedade, de modo que estes aspectos não estejam tão distanciados, da realidade dos problemas e dos alunos. Certamente este é um dos grandes desafios para aqueles que desejam melhorar a educação do terceiro milênio. Referências Bibliográfica FREIRE, Paulo. Desafios da Educação de Adultos frente a Nova Reestruturação Tecnológica. In: Educação e Escolarização de Jovens e adultos. Brasília 1997. ________. Pedagogia da Autonomia : saberes necessários à Prática Educativa. São Paulo, Paz e Tina S/ª1997 FREITAS, Maria Tereza de assunção. Et al. O Ensinar e o aprender na sala de aula. In: Cadernos para o professor. 6ª edição, Juiz de Fora. 1998. MEIRHY, José Carlos Sebe. Manual de História Oral. São Paulo. Edições Loyola.1996. ZAGO, N. Processos de escolarização nos meios populares – As contradições da obrigatoriedade escolar. In. NOGUEIRA, M. A . et al. (orgs.) Família & escola – Trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis, Editora Vozes, 2000, p. 17-44.