116 Artigo Científico CRITÉRIOS DE DECISÃO NA ACADEMIA DA FORÇA AÉREA: CONJUGAÇÃO DE ABORDAGENS EM FUNÇÃO DA TEORIA PROSPECTIVA Luiz Maurício de Andrade da Silva1 Artigo submetido em 11/09/2012 Aceito para publicação em 13/08/2013 RESUMO: O artigo discute a questão do uso de procedimentos padronizados como critérios básicos de decisão, tendo como fatores motivacionais dois acidentes aeronáuticos: um ocorrido na Academia da Força Aérea e outro envolvendo um avião de grande porte da Air France. O objetivo deste artigo é propor o aperfeiçoamento da segurança de voo em situações de risco que exijam decisões rápidas, a partir da conjugação de diferentes abordagens teóricas sobre o processo de tomada decisão. A hipótese é que tal contribuição pode advir da conjugação de diferentes correntes teóricas já sedimentadas na literatura especializada, colocadas em função dos principais achados da teoria prospectiva. PALAVRAS-CHAVE: Segurança de Voo. Análise de Risco. Teoria Prospectiva. 1. INTRODUÇÃO Em 2012 ocorreu na Academia da Força Aérea (AFA) um acidente fatal, e sem precedentes, em que um cadete foi ejetado do assento posterior da nacele de um avião T-27, na cabeceira da pista, durante os procedimentos de cheque pré-decolagem. Daniel Kahneman (2011, p. 227) cita as experiências pioneiras realizadas pela anestesiologista Virginia Apgar em 1953, como responsáveis por, até hoje, salvar as vidas de centenas de milhares de crianças. Como se sabe, o teste de Apgar é uma maneira rápida e simples de se verificar as condições gerais da saúde de uma criança recém-nascida, seguindo padrões consensuais da classe médica, a respeito das variáveis intervenientes no estado geral de saúde dos recém-nascidos. Já o médico da Universidade de Harvard Atul Gawande (2010, p. 32) cita outro exemplo de pioneirismo, desta vez se referindo não a êxitos, mas a efeitos adversos, como no caso do bombardeiro Boeing 299 que caiu e explodiu em Ohio, no ano de 1935, matando dois de seus cinco tripulantes. Segundo Gawande (2010) – profissional da classe médica que buscou inspiração, entre outros setores, na aviação, para defender a ideia de disseminação do uso de cheklists na área médica – o acidente não teria ocorrido caso o piloto dispusesse de um simples checklist. 1 Graduado, Mestre e Doutor em Administração. É professor de Planejamento Estratégico e Teoria da Decisão e pesquisador na Academia da Força Aérea (AFA). ISSN 2176-7777 R. Conex. SIPAER, v. 4, n. 2, dez 2013. 117 Gerd Gigerenzer (2009), seguindo a mesma linha de investigações de Kahneman (2011) e Gawande (2010), se refere a outro exemplo da classe médica, em que a implantação de árvores de decisão rápidas e simples, em um hospital norte-americano, reduziu substancialmente o número de internações na unidade coronariana de tratamento intensivo daquele hospital. Em 2009, outro acidente chocou a comunidade aeronáutica, quando o voo AF447 caiu no oceano Atlântico matando todos os seus ocupantes, 12 membros da tripulação e 216 passageiros. Neste acidente, ainda que os pilotos tenham seguido rigorosamente aquilo que era preconizado nos checklists do fabricante do avião e da companhia aérea, não se conseguiu obter êxito em evitar a catástrofe (BEA, 2012). Klein (2009), em uma linha de investigações sobre decisões consideradas naturalistas – uma vez que não recorre aos eventos controlados em laboratórios – reafirma sua confiança no julgamento intuitivo. Julgamento intuitivo oriundo daqueles que têm notável experiência em seus campos de atividade, situando os checklists em um nível secundário, apenas auxiliar ao julgamento humano. Nunca o sobrepujando. Ainda que a aviação, e em particular e mais expressivamente a aviação militar, seja sempre tomada como um dos melhores exemplos de eficiência e padronização desejável para a segurança das operações aéreas – e não discordando deste fato – o objetivo principal do presente estudo é contribuir com uma nova abordagem do problema da segurança na aviação militar. Esta nova abordagem seria um critério híbrido, que, conjugando as teorias preconizadas pelos autores citados, coloca-as em função da teoria prospectiva de decisões sob risco. Espera-se ainda, com isso, sensibilizar os dirigentes militares da AFA sobre as limitações dos checklists e as possibilidades de aplicação de árvores de decisão simples e rápidas nas operações aéreas da escola. Ou, de forma ainda mais auspiciosa, sensibilizá-los sobre a contínua necessidade de adequação de alguns dos principais conteúdos curriculares hoje ministrados na AFA. O trabalho se inicia com a enunciação do problema de pesquisa, seus objetivos, hipótese básica e fundamentação teórica. A estratégia de desenvolvimento do estudo é identificar pontos de convergência entre as correntes teóricas já citadas (KAHNAMAN, 2011 GAWANDE, 2010; KLEIN, 2009; GIGERENZER, 2009) conjugando-as (to blend) sob o foco da teoria prospectiva. ISSN 2176-7777 118 Artigo Científico Ao final do artigo apresentam-se a discussão dos resultados, algumas proposições para a AFA, sensivelmente inevitáveis em uma abordagem de tal envergadura, e as conclusões. 2. PROBLEMA, OBJETIVOS E HIPÓTESES O problema sob investigação neste artigo é o das decisões tomadas em condições de risco, nas situações em que tais decisões devem ser rápidas – tomadas em curto espaço de tempo e com a maior acuidade possível – e estão envoltas em ambientes high stake (KLEIN, 2004). Situações em que as árvores de decisão clássicas – e talvez até mesmo o uso intensivo dos manuais e dos checklists – pouco oferecem como garantia de acerto das escolhas e decisões. O objetivo é apresentar uma abordagem teórica que, ao mesmo tempo em que conjugue as três principais correntes teóricas nesse campo de investigações, as coloque em função de uma delas: a teoria prospectiva de decisões sob risco. Como objetivo secundário pretende-se sensibilizar os dirigentes da AFA acerca das possibilidades de uso das árvores de decisão simples e rápidas (KAHNEMAN, 2011; GIGERENZER, 2009; KLEIN, 2004), verificando seus limites e restrições, quando se tratar de operações aéreas de formação de jovens aviadores militares, assim como a eventual necessidade de se proceder a uma revisão dos checklists em uso na AFA. Como segundo objetivo secundário, vislumbra-se a possibilidade de colaborar com o aperfeiçoamento da segurança nas operações aéreas da aviação civil. E mais, pretende-se ainda, entre seus objetivos secundários, colocar em discussão uma possível adequação da grade curricular dos cursos hoje oferecidos na AFA, que contemple as questões aqui analisadas. A hipótese norteadora do trabalho é que tais ferramentas – as árvores de decisão simples e rápidas e os checklists revisados – se aplicadas coerentemente, isto é, a partir da verificação de seus limites e restrições nas operações aéreas da AFA, e mais ainda, se utilizadas como ferramentas em função da teoria prospectiva, podem ajudar a mitigar os riscos envolvidos na atividade de formação dos cadetes para a pilotagem militar. Outra hipótese, que seria decorrente da hipótese norteadora, é que a primeira, sendo confirmada, ou mesmo que parcialmente aceita neste estudo, poderia talvez vir a representar o início de uma nova visão dos procedimentos de segurança aérea na aviação civil. ISSN 2176-7777 R. Conex. SIPAER, v. 4, n. 2, dez 2013. 119 Ambas as hipóteses não poderão ser confirmadas ou rejeitadas segundo critérios convencionais da metodologia científica, poderão apenas ser ou não aceitas pela comunidade científica e aeronáutica. 3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA O quadro teórico a ser discutido neste trabalho se inicia com um brevíssimo relato dos acidentes citados, passando em seguida para (i) o uso de checklists e árvores de decisão simples e rápidas (GIGERENZER 2009, KAHNEMAN, 2011; GAWANDE, 2010); (ii) decisões em ambientes não-controlados, que passaremos a denominar decisões naturalistas (KLEIN, 2004, KLEIN, 2009), e; (iii) teoria prospectiva (KAHNEMAN & TVERSKY, 1992, KAHNEMAN, 2011). 3.1. Os Acidentes Academia da Força Aérea No dia 4 de junho de 2012, um cadete faleceu na Academia da Força Aérea (AFA) ao ser ejetado acidentalmente da nacele de um avião T-27, que se encontrava parado, preparando-se para decolar, na cabeceira da pista. A maior parte dos acidentes aéreos acontece em fases de pousos ou decolagens (TAVEIRA, 2011). Raramente antes das decolagens, mais raramente ainda quando o avião se encontra parado, realizando o cheque pré-decolagem. Outro fato que tornaria este acidente menos provável em uma consideração exante, é o mesmo ter ocorrido em uma Academia Militar da Força Aérea Brasileira, onde os procedimentos, assim como a manutenção das aeronaves, são tratados de forma rigorosa. Nesta instituição não se transige com a doutrina de segurança e manutenção (SILVA & SILVA, 2009). Adiante, ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, procuraremos apontar evidências acerca de possíveis razões (não exatamente causas) para este acidente ter ocorrido, ainda que tenha ocorrido em ambiente pouco propenso a acidentes. O objetivo, ao apontar evidências é, exclusivamente, o de oferecer mais elementos para a busca do aperfeiçoamento das operações na AFA. Evidentemente, qualquer agente envolvido positivamente com o funcionamento e o futuro de uma instituição, se preocuparia com algumas de suas disfunções. E este acidente, certamente, pode e deve ser visto sob o prisma de uma séria disfunção. No ISSN 2176-7777 120 Artigo Científico entanto, o que se pretende, destacando este acidente, é o fato de o mesmo ocorrer em situações de baixa probabilidade e alto controle operacional. Air France O acidente com o Airbus A330 da Air France, ocorrido em 01 de junho de 2009 matou todos os seus 228 ocupantes, entre passageiros e tripulantes. O relatório do acidente, apresentado no dia 29 de julho de 2011 pelo órgão francês de investigação de acidentes aeronáuticos (BEA, 2011), aponta as falhas humanas cometidas pelos pilotos como a maior das causas a explicar o acidente. Ocorre que – pelo que se lê do relatório – os pilotos seguiram à risca os procedimentos preconizados tanto pelo fabricante do avião, quanto pela companhia aérea que operava a aeronave. O que se pretende, destacando este acidente, é colocar em evidência uma situação real em que, mesmo seguindo rigorosamente os procedimentos preconizados, não se logrou êxito final. Ou, o que seria ainda menos alvissareiro em se tratando de assuntos de segurança das operações aéreas, talvez tenha havido um excesso de confiança nos procedimentos da interface homem-máquina (fly by wire2), diminuindo-se a importância do julgamento humano. 4. ÁRVORES DE DECISÃO SIMPLES E RÁPIDAS E CHECKLISTS A partir dos estudos pioneiros citados na introdução deste trabalho, hoje tanto as árvores de decisão rápidas quanto os checklists têm auxiliado bastante bem o trabalho de médicos, engenheiros da construção civil e pilotos de aviões (GAWANDE, 2010; GIGERENZER, 2009; KAHNEMAN, 2011). A questão que se coloca em uma instituição de ensino como a AFA é acerca do necessário trade-off entre a formação orientada para uma visão de mundo do tipo “following-the-steps” ou aquela orientada para uma filosofia “recovery-oriented” (GAWANDE, 2010). Na visão de mundo tipo “following-the-steps” predominariam os check-lists, os manuais e os procedimentos preconizados para todas as situações, inclusive as de risco em ambientes high-stake. 2 O conceito fly by wire significa uma concepção de pilotagem em que os sistemas computadorizados quase que se sobrepõem à ação humana no comando dos modernos aviões (NEWHOUSE, 2008). Sendo intenso o debate sobre a configuração ideal dos sistemas aviônicos para os modernos aviões, de tal maneira que o embate chega a colocar em lados aparentemente opostos duas das principais indústrias aeronáuticas mundiais. ISSN 2176-7777 R. Conex. SIPAER, v. 4, n. 2, dez 2013. 121 Já na visão de mundo tipo “recovery-oriented” predominaria a formação mais voltada para a criatividade, inovação e capacidade de resiliência. Em uma palavra, seriam priorizados conteúdos de formação que habilitasse os futuros oficiais a realizarem julgamento acurado, envoltos em altos padrões de consciência situacional. Parece-nos que na aviação, especificamente a militar, o tipo de formação ideal reside em algum ponto localizado na conjugação de dois tipos de visões de mundo, a que prioriza o uso intensivo dos manuais e da automação, por um lado, e a que priorizaria a capacidade humana de realizar julgamento acurado, de outro. E para isso, se discute, em seguida, as possibilidades de fazê-lo considerando também a abordagem naturalista das decisões. Para em seguida focar os pressupostos conceituais da teoria que seria o esteio dos argumentos deste artigo. 5. DECISÕES NATURALISTAS As decisões naturalistas (KLEIN, 2009) são assim consideradas por buscarem fora do âmbito fechado e restrito dos laboratórios suas principais investigações. Nesta linha de investigações os pesquisadores acompanham o trabalho dos profissionais mais experientes, para argumentar a favor do uso embasado da intuição (KLEIN, 2004; SILVA, 2007). Parte-se do pressuposto de que nas decisões naturalistas a lógica científica da dedução, como decomposição, descontextualização e cálculos, não se aplica. Não se aplica seja pela premência do tempo de decisão, seja pelo risco envolvido com a demora em se adotar logo um curso de ação. Sobretudo quando se trata de problemas mal estruturados em ambientes incertos, dinâmicos e de rápidas mudanças, como aquele que facilmente poderíamos vislumbrar quando imaginamos uma emergência ocorrendo na cabine de um avião lotado de passageiros. Ademais, nestas situações não se pode desconsiderar o stress e os loopings de ação e reação. Situações estas em que dificilmente alguém decidiria recorrer aos cálculos ou à lógica dedutiva para embasar as rápidas decisões a serem tomadas. Klein (2009, p. 60) cita como exemplo a conhecida heurística do olhar fixo, em que jogadores de futebol e de basquete, embora não tendo talvez nem a mínima noção dos cálculos de trajetória necessários para se prever onde uma bola arremessada iria cair, são capazes de chegar sempre, exatamente, no local onde a bola “aterrissa”. Embora não criticando os checklists e os procedimentos definidos em manuais, os defensores das decisões naturalistas afirmam que ISSN 2176-7777 122 Artigo Científico (...) mesmo em situações amplamente previstas em manuais, sempre poderemos nos deparar com o imprevisto, sendo necessário o uso do julgamento. (KLEIN, 2009, p. 19) Algo que talvez os postulantes desta linha de investigações ainda não consideraram suficientemente é a diferença que cada um de nós, humanos, apresentamos em situações de risco. A teoria mais bem sedimentada a respeito do comportamento e julgamentos humanos em condições de risco é a de Kahneman & Tversky (1992), segundo a qual somos propensos a arriscar mais quando nos vemos em situações de perda, e avessos a correr riscos quando nos vemos em uma situação de ganho. Ocorre que esta teoria foi testada em situações controladas. Daí a razão para a conjugação (to blend) pretendido no presente trabalho. De maneira que, ao passarmos aos elementos centrais da teoria prospectiva, daremos inicio a conjugação a que este trabalho se propôs no início. Colocação das teorias já abordadas como dependentes da teoria prospectiva. Ao apresentarmos esta propositura, pretende-se dar continuidade aos estudos dos chamados métodos híbridos de decisão (Silva, 2000). Ou, novamente citando Klein (2009, p. 80): “precisamos conjugar, misturar análise e intuição.” 6. TEORIA PROSPECTIVA A teoria prospectiva engloba séculos de estudos e aprendizados acerca da maneira como realizamos julgamentos e decidimos em situações de risco (HASTIE & DAWES, 2001). Apresenta uma notação matemática para nossa aversão a risco em situações de ganhos, vis a vis nossa propensão a risco em situações de perdas: V(x) = xα if x>0 V(x) = –λ(–xα) if x<0 Onde: α = 0,88; λ = 2,25 Mas o que pretendemos resgatar no presente trabalho, tendo em vista a conjugação proposta anteriormente, são os critérios propostos por Kahneman (2011, p. 314) para a definição dos pesos nas decisões. De acordo com Gawande (2010), mesmo as organizações que adotam regras rigorosas de procedimentos, podem incorrer em falhas de comunicação, em que os agentes – mesmo dispondo de checklists e manuais de procedimentos – poderiam falhar ISSN 2176-7777 R. Conex. SIPAER, v. 4, n. 2, dez 2013. 123 por ausência de um cronograma coordenado de ações e comunicação que explicite claramente as ações de maior peso no processo. Esta questão de atribuição de pesos (weights) para as variáveis de maior importância em uma decisão está envolta em controvérsias que parecem jamais serão solucionadas. A controvérsia se dando entre (i) os que acreditam que a identificação das variáveis mais importantes deve ser feita pelos próprios especialistas, mas que os pesos de cada variável seriam melhor evidenciados por critérios matemáticos e estatísticos, e; (ii) os que também acreditam que a identificação das variáveis mais importantes deve ser feita pelos próprios especialistas, mas que os pesos de cada variável também seriam melhor evidenciados por critérios subjetivos, ligados às preferências dos decisores. Ademais, mesmo que consideremos uma fina comunicação entre todos os agentes envolvidos, ainda assim é forçoso admitirmos a diferença de percepção de risco que os agentes apresentam quando diante de situações assimétricas que decorrem da diferença entre o “efeito possibilidade” e o “efeito certeza” (KAHNEMAN, 2011, p. 315). Para evidenciar tal assimetria, deixando mais bem definidos os efeitos “possibilidade” e “certeza”, Kahneman (2011) sugere que imaginemos as diferenças de intensidade com que nos agarraríamos a uma – mesmo que – fugidia esperança, caso fôssemos submetidos a uma cirurgia em que é praticamente certo que a mesma será malsucedida, em comparação com o (forte) medo e ansiedade que adviria se houvesse apenas 1% de chances de a cirurgia fracassar. Ou, em outra linha de imaginação, pensássemos numa situação em que tivéssemos apenas 1% de chance de ganhar $1 milhão, só sabendo o resultado amanhã. E depois imaginássemos ser praticamente certo o ganho de $1 milhão, também só sabendo o resultado amanhã. A ansiedade na segunda situação aparece com maior saliência do que a esperança na primeira (KAHNEMAN, 2011 p. 315). Essa assimetria ocorre uma vez que nossa percepção do risco no “efeito possibilidade” é mais fraca do que nossa percepção do risco no “efeito certeza”. 7. DISCUSSÃO Kahneman (2011, p. 315) apresenta um quadro – que é resultado de pesquisas realizadas por ele e Amos Tversy – referencial dos pesos que são atribuídos pelas ISSN 2176-7777 124 Artigo Científico pessoas, em preferências manifestadas em jogos envolvendo pequenas apostas monetárias. TABELA 1. Pesos de decisões. Probabilidade 0 1 2 5 10 20 50 80 90 95 98 99 100 (%) Peso da 0 5,5 8,1 13,2 18,6 26,1 42,1 60,1 71,2 79,3 87,1 91,2 100 decisão Fonte: Extraído de Kahneman (2011, p. 315). Traduzido pelo autor. Observe que à extrema esquerda da tabela (no intervalo de probabilidades entre 0 e 2%) se verifica o “efeito possibilidade”, em que percebemos uma sensação mais “fraca” das chances de algo ocorrer, e à extrema direita (no intervalo de probabilidades entre 98 e 100%) se verifica o “efeito certeza”, em que percebemos uma sensação mais “forte” das chances de algo ocorrer. Tudo isto se devendo à assimetria entre os valores, uma vez que no intervalo à esquerda há uma variação de “pesos” (para as probabilidades entre 0 e 2%) de 8,1 pontos, enquanto no extremo oposto a variação é de 12,9 pontos (para as probabilidades entre 98 e 100%), para as mesmas oscilações relativas de probabilidades. A pergunta que se colocaria então, no âmbito do acidente ocorrido na AFA, envolvendo o cadete é: poderiam as operações aéreas da AFA estar ocorrendo sob algum tipo de halo3 institucional, em que o ”efeito certeza” acerca da doutrina de segurança e rigor nos procedimentos estaria levando-nos ao excesso de confiança? Seria plausível insistirmos numa linha de investigações que tomasse, por hipótese, o argumento de que talvez não estejamos sendo, em função do efeito certeza, suficientemente claros na comunicação e coordenação acerca dos pontos em que a operação absolutamente não pode falhar? Ademais, as operações na AFA envolvem jovens em formação que, por mais que introjetem a doutrina esperada, ainda não possuem experiência para serem tratados como especialistas. Poderiam estes jovens, ao serem formados na AFA, estar sendo submetidos a uma forte – e que embora aparentemente necessária – doutrina, que talvez esteja cobrando um tributo excessivamente arriscado de colocá-los em situação conflituosa quando eventualmente eles tivessem que questionar a doutrina? E assim levando aos desvios de coordenação e comunicação como evidenciado por Gawande (2010)? 3 O efeito halo ocorre quando razões indiretamente relacionadas ao fenômeno em questão podem influenciar os julgamentos que realizamos. Kahneman (2011, p. 82) afirma que o efeito halo é a tendência de gostar (ou desgostar) de tudo em uma pessoa, incluindo aspectos não observados, e cita exemplos como a voz e a aparência de um presidente como critérios indiretos (efeito halo) sobre as preferências de seus eleitores. ISSN 2176-7777 R. Conex. SIPAER, v. 4, n. 2, dez 2013. 125 E a comunicação, que envolve militares subalternos, poderia também estar sofrendo algum tipo de “efeito certeza”? Ou, mesmo que não na comunicação, o que dizer da coordenação? Pode-se assegurar que a coordenação dos trabalhos é adequada, de tal forma que todos façam seus julgamentos pessoais envoltos em um clima de equipe, que leva em consideração os julgamentos dos demais? Mesmo em se tratando de uma instituição que, além de militar, apresenta ainda muitas das nuances de uma instituição pública? Não obstante estejamos direcionando nossos questionamentos para os efeitos “halo” e “certeza”, em que, no primeiro, o sentimento geral seria de muita segurança por sermos uma instituição “de ponta”4; e, no segundo, nos ancoraríamos na forte certeza de que acidentes na AFA seriam muito improváveis, nos parece forçoso admitir que o extremo oposto da tabela 1, ou seja, o “efeito possibilidade” também pode estar ocorrendo em operações aéreas da AFA. Uma expectativa “fraca” a respeito da possibilidade de algo não sair bem. Em situações complexas não se assume que tudo deverá funcionar de maneira perfeita. Pelo contrário, assume-se que tudo aquilo que poderia dar errado precisa ser conhecido por todos, existindo, para quase tudo, um plano de recuperação. Gawande (2010, p. 73) chega a afirmar que a filosofia correta para isto efetivamente ocorrer seria deslocar o poder de decisões do centro para a periferia dos processos. E o que dizer – em termos de “efeito certeza” – no caso do segundo acidente, em que os dois copilotos franceses, voando uma das mais recentes versões de um avião Airbus (fly by wire) da indústria franco-européia, num voo que, a cerca de 37.000 pés, talvez tenham se ancorado na certeza de que poucos problemas poderiam ameaçar aquela operação? Ou o excesso de confiança teria começado com o comandante que, mesmo sabendo que o avião iria atravessar uma zona de turbulência, decidira se recolher à pequena cabine de descanso? Outro fenômeno que, ainda seguindo a linha de investigações dos autores citados podem estar levando ao “efeito certeza” é o fenômeno da rejeição da taxa básica (KAHNEMAN & TVERSKY, 1992). Na rejeição da taxa básica, os agentes poderiam estar desconsiderando as chances de ocorrência de um evento, em função da maneira como o problema é formatado. 4 Convém lembrar que as operações do Esquadrão de Demonstrações Aéreas (EDA), uma referência mundial na excelência da pilotagem militar, ocorrem nos mesmos espaços em que a instrução aérea aos jovens cadetes da AFA é ministrada. ISSN 2176-7777 126 Artigo Científico No acidente ocorrido na AFA, que envolveu questões associadas ao pino de travamento do assento ejetor, e que já haviam ocorrido anteriormente, alguém que, por descuido, rejeitasse a taxa básica, incorreria em problema de formatação5 (framing) dizendo: “cinco ocorrências anteriores, em mil decolagens, não tem muita significância”. Ocorre que a mesma taxa básica, se miramos no fato de ter ocorrido em junho, levaria a uma média aproximada de uma ocorrência por mês! 8. PROPOSIÇÕES PARA A ACADEMIA DA FORÇA AÉREA Em virtude da complexidade do problema aqui abordado, da variedade de deficiências de julgamento que podem ocorrer em situações dinâmicas como a aviação, e da premente necessidade de que se aprofundem tais discussões, permitimo-nos formular as seguintes proposições para consideração da comunidade científica e dos líderes militares da AFA. Proposição 1: Revisar todos os checklists em uso nas operações aéreas de instrução de voo, (re)identificando as etapas críticas, que deveriam – além da revisão de seus checklists – passar a ser alvo de elaboração de árvores de decisão simples e rápidas, seguindo a linha de investigação de Gigerenzer (2009) e Gawande (2010). Proposição 2: Para que a proposição 1 fosse realizada, grande esforço de análise de dados deveria ser empreendida no âmbito da AFA, no sentido de que se estabelecessem parâmetros médios de aceitação de incidentes e acidentes, que serviriam depois como “batente” mínimo aceitável para início das revisões. O mesmo podendo ser feito em todas as operações da AFA, inclusive as de infantaria e intendência. Proposição 3: Nas necessárias e contínuas adaptações que sempre se faz nas grades curriculares, que se priorize disciplinas que aperfeiçoem a capacidade de julgamento, a consciência situacional e a capacidade de resiliência (recovery-oriented) dos cadetes em formação. 5 O exemplo mais recorrente na literatura, para ilustrar o “efeito formatação” ou framing, é o das pesquisas com médicos que evidenciaram que, se os médicos apresentarem aos pacientes suas chances de sobrevivência, ao invés de suas chances de morte, as decisões dos pacientes sobre a aceitação das cirurgias são maiores (Bazerman, 2006). ISSN 2176-7777 R. Conex. SIPAER, v. 4, n. 2, dez 2013. 9. 127 CONCLUSÕES Este artigo procurou apresentar contribuições à doutrina de segurança nas operações aéreas da Academia da Força Aérea, tomando como ponto de partida das análises e corpo referencial de evidências dois trágicos acidentes ocorridos na aviação. Seu escopo de contribuição se desenvolveu através de uma proposta de conjugação (to blend) de abordagens teóricas que, se aceitas, poderiam passar a ser apresentadas simbolicamente pela seguinte expressão matemática: Segurança = ƒ (checklists; árvores de decisão rápidas; teoria prospectiva) Aeronáutica FIGURA 1 - Expressão matemática sugerida. A aviação mundial evoluiu sobremaneira, trazendo muitos benefícios, como agilidade e flexibilidade aos transportes. Comparativamente, Gawande (2010) afirma, citando a complexidade de um simples diagnóstico médico de traumas, em que se pode relacionar 1.224 diferentes tipos de ferimentos e 32.261 combinações de situações, que o volume e a complexidade daquilo que conhecemos excederam nossa capacidade individual de entregar os benefícios de forma correta, segura ou confiável: “(...) knowledge has both saved us and burred us” (GAWANDE 2010, p. 13). Nossa memória e nossa capacidade de concentração são ainda bastante falíveis, sobretudo em situações de stress, sendo necessário que se propicie muito treinamento, sobretudo aos mais jovens, até que se possa considerá-los especialistas em suas áreas de atuação. Mesmo admitindo ser o erro inevitável – e estando muitas vezes fora de nosso controle qualquer possibilidade de evitá-lo – em qualquer empreitada humana, Gawande (2010, p. 8) discrimina-os em dois tipos básicos: a ignorância e a inaptidão. Na ignorância podemos errar porque a ciência nos deu uma compreensão apenas parcial do mundo e como ele funciona. Na inaptidão podemos errar porque temos o conhecimento necessário, mas falhamos aplicando-o incorretamente. Nos dois tipos básicos de erro discriminados acima, entendo ser eu um agente participativo e corresponsável com os possíveis desvios que estejam ocorrendo ou que venham a ocorrer na AFA. Seja pela posição de professor, seja pela condição de pesquisador. Ao afirmá-lo, pretendo finalizar este estudo enfatizando a real motivação que me impulsionou a escrevê-lo. ISSN 2176-7777 128 Artigo Científico Sabe-se muito bem que, em algumas situações, envoltas em alto grau de complexidade e risco de que existam falhas, fica extremamente difícil seguir os passos previstos, ainda que estes passos estejam muito bem definidos. Ao afirmá-lo pretendo concluir este trabalho isentando, em meu julgamento, de qualquer culpa os corajosos pilotos do voo AF447, que, mesmo nas adversidades souberam seguir exatamente os passos previstos. AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer à Academia da Força Aérea, pelo apoio que me foi dado na realização desta pesquisa. Dedico este trabalho à memória do Cadete Aviador Rodrigues, da turma Asgard de 2012. REFERÊNCIAS BAZERMAN, M.H. Judgment in managerial decision making. 6. ed.. Hoboken: John Wiley & Sons, 2006. BUREAU D’EQUÊTES ET D’ANALYSES (BEA). Final Report AF447, 29 de julho de 2011. NEWHOUSE, J. Boeing versus Airbus. São Paulo: Novo Século, 2008. GAWANDE, A. The checklist manifesto: how to get things right. New York: Picador, 2010. GIGERENZER, G. O poder da intuição: o inconsciente dita as melhores decisões. Rio de Janeiro: Best Seller, 2009. HASTIE, R.; DAWES, R.M. Rational choice in an uncertain world: the psychology of judgment and decision making. Thousand Oaks, CA: Sage, 2001. KAHNEMAN, D.; TVERSKY, A. Choices, values, and frames. American Psychologist Journal, v.34, 1992. KAHNEMAN, D. Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 2011. KLEIN, G. Streetlights and shadows: searching for the keys to adptive decision making. Cambridge, MA: MIT Press, 2009. ______. The power of intuition. Doubleday, 2004. TAVEIRA, N. S. Além dos manuais: uma conversa sobre segurança de voo. São Paulo: Somos, 2011. SILVA, L.M.A. Equipes de alta performance. Air & Space Power Journal em Português, v. XIX, n.3, p. 24-31, 3º. Trimestre, 2007. ISSN 2176-7777 R. Conex. SIPAER, v. 4, n. 2, dez 2013. 129 ______. Instrumentalização do planejamento estratégico: aplicação no setor aeroviário comercial brasileiro. 2000. 182 p. Tese (doutorado). Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. ______. ; SILVA, P. C. Estudo de otimização da frota de aviões T-27 na Academia da Força Aérea Brasileira. In: SIMPÓSIO DE APLICAÇÕES OPERACIONAIS EM ÁREAS DE DEFESA – SIGE. 1.1, 2009, São José dos Campos. Anais... São José dos Campos, 2009. DECISION CRITERIA IN THE AIR FORCE ACADEMY: CONJUGATION OF APPROACHES AS A FUNCTION OF PROSPECT THEORY ABSTRACT: The article discusses the issue of using standardized procedures as basic criteria for decision making, taking two aircraft accidents as motivational factors for the research, one involving a military aircraft in the Air Force Academy and the other one a large Air France airliner. The audacious objective is to propose, from the combination of different theoretical approaches to human judgment in decision making, the improvement of safety in air operations. Specifically, it aims at contributing to the enhancement of safety in the decisions made by the crews in air operations, when this kind of judgment requires accurate and quick decisions in risky environments. The hypothesis is that such contribution may result from the conjugation of different theoretical currents already settled in the pertinent literature, here suggested on account of the main findings of prospect theory. KEY WORDS: Aviation Safety. Risk analysis. Prospect Theory. ISSN 2176-7777