ABANDONO AFETIVO NAS NOVAS ORDENS CONSTITUCIONAL E CIVIL: AS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS NO CAMPO DA RESPONSABILIZAÇÃO Bianca Gabriela Cardoso Dias∗ Maria da Fé Bezerra da Costa∗ RESUMO Com o advento de uma nova ordem constitucional e civil no ordenamento jurídico brasileiro, surgem questões antes não vislumbradas e questionamentos que padecem de resoluções. A família, tão atingida pelas mudanças que essa nova ordem impôs, é alvo permanente dessas questões. Uma das mais relevantes celeumas nesse sentido é a responsabilização dos pais para com os seus filhos quando da configuração do abandono afetivo, isto é, as possíveis conseqüências jurídicas geradas a partir da omissão dos genitores no desenvolvimento mental e moral da criança enquanto sujeito de direitos e deveres na sociedade. Este trabalho possui essa proposta, qual seja, a de demonstrar a plausibilidade da existência de um efetivo dano moral e psíquico sobre os infantes que sofrem do abandono afetivo por parte de seus genitores, bem como o fundamento jurídico da responsabilidade civil imposta a estes por esses atos, ensejando indenização por dano moral àqueles. PALAVRAS-CHAVE: ABANDONO–AFETIVO, RESPONSABILIDADE – CIVIL, INDENIZAÇÃO. ABSTRACT With the advent of a new constitutional and civil order in the Brazilian legal system, questions before not glimpsed and questionings appear that need resolutions. The family, so reached for the changes that this new order imposed, is target permanent of these questions. One of most important problems in this direction is the responsabilization of the parents with its children when of the configuration of the affective abandonment, that is, the possible legal consequences generated from the omission of the genitors in the mental and moral development of the child while subject of rights and duties in the society. This work possess this proposal, which is, to demonstrate the possibility of the existence of an effective pain and suffering and psychic on the infants who suffer of affective abandonment on the part of its genitors, as well as the legal bedding of the civil ∗ ∗ autora: Acadêmica do 8º Período do Curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas. co-autora: Acadêmica do 8º Período do Curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas. responsability imposed to these for such acts, trying indemnity for pain and suffering to those. KEYWORDS: ABANDONMENT–AFFECTIVE, RESPONSIBILITY–CIVIL, INDEMNITY. INTRODUÇÃO A família contemporânea, constituída e reconhecida como núcleo da sociedade no art. 226 da Carta Magna Brasileira, perpassou por uma série de modificações até que se alcançasse a situação jurídica atual. A ordem constitucional de 1988 foi a que primeiro nos trouxe inovações, tratando a existência da entidade familiar ainda que sem a celebração civil do casamento (instituindo a união estável), bem como do princípio da igualdade jurídica entre os cônjuges e o reconhecimento civil do casamento religioso, além de um rol extenso de direitos à criança e ao adolescente, componentes em formação da família. O Código Civil de 2002, como não poderia deixar de ser, aderiu a essa nova forma de tutelar a entidade familiar, reconhecendo e regulando os dispositivos acima expostos, dentre outros. Sua entrada em vigor proporcionou ao mundo jurídico uma verdadeira transformação de idéias, pensamentos e doutrinas que até então eram consideradas inválidas. Dentro dessa nova concepção de família, novos questionamentos foram surgindo, trazendo ao jurista o desafio de adequar-se e posicionar-se a essas novas situações decorrentes de tantas mutações. Dentre esses novos desafios, faz-se presente a questão do abandono afetivo, ou seja, a não-prestação por parte dos pais ou de um deles da afetividade ao seu descendente, sendo esta concebida em todos os efeitos advindos do laço sentimental que une pais e filhos. Questiona-se: seria esse abandono afetivo apto a gerar responsabilização civil dos pais perante os filhos? Qualquer que seja a resposta a essa pergunta, conseqüências jurídicas relevantes estariam sendo trazidas à baila, sendo estas mesmas de indispensável análise pelo jurista moderno, sob pena de haver todo um retrocesso jurídico diante da evolução trazida nos últimos anos. Nesse diapasão, este artigo busca fundamentar juridicamente uma resposta para a pergunta supramencionada, abordando, sem a intenção de oferecer uma análise taxativa, a existência de obrigatoriedade ou não dos pais dessa assistência afetiva e as conseqüências legais do reconhecimento da possibilidade de responsabilização dos pais omissos. 1. A família e o “princípio da afetividade” Conforme já foi citado anteriormente, a família sofreu uma forte transformação desde os primórdios de sua constituição. Os doutrinadores, ao tratar dessa evolução histórica, costumam citar a família patriarcal como um dos primeiros modelos de núcleo familiar, sendo que o chamado pater familiae era o chefe de todos os aspectos da mesma, tanto na ordem política como econômica, financeira e até política. Sua autoridade era tamanha que o mesmo poderia decidir inclusive sobre a vida e a morte de seus filhos, caso estes o desobedecessem. Todavia, com o desenvolvimento da sociedade e a vinda dos períodos Renascentista e, principalmente da Revolução Industrial, período este em que a mulher adentrou o mercado de trabalho, observou-se que a família perdeu o status que anteriormente tinha. A mulher também passou a contribuir para a vida doméstica e, recentemente, ganhou igualdade jurídica com o seu cônjuge ou companheiro. Os filhos havidos fora do casamento, antes tidos como ilegítimos, agora são iguais aos tidos dentro do matrimônio, tendo igual direito à filiação no registro civil. Estes últimos, com a nova ordem constitucional, conquistaram diversos direitos que podem ser observados no art. 227, caput, da Constituição Federal, que dispõe: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (grifo nosso). Esse artigo, que é a coluna cervical de toda a tutela jurídica brasileira da criança e do adolescente, trouxe para o jurista o vislumbramento de um novo aspecto componente da família: o direito à convivência familiar. No que se refere à tutela infralegal, ademais, temos o art. 1.634 do Código Civil, que regula: “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda...” O legislador, ao incluir tal circunstância no referido rol, foi bastante feliz, uma vez que resta comprovada a necessidade que sofre a criança de conviver no seio de uma família estruturada, que lhe dê condições aptas a permitir o desenvolvimento sadio de seu caráter, que está em formação constante. A criança precisa de uma referência a quem recorrer, a quem ter como exemplo, e a quem lhe preste a atenção que será fundamental na sua constituição. Isto posto, já temos a raiz do que alguns doutrinadores denominaram de princípio da afetividade. Por esse princípio, decorrente inclusive do princípio da dignidade humana, tão perseguido pelo Estado Democrático de Direito, os pais ou responsáveis têm de fornecer aos seus filhos o afeto, isto é, a presença amorosa, o cuidado, ainda que o responsável não seja aquele que está com a guarda, de procurar estar presente nas oportunidades que lhe são oferecidas, etc. Dessa forma, os pais não devem prestar apenas a assistência material (de alimentar, de vestir, etc.) ou jurídica (representação ou assistência em caso de litigância judicial), mas também psicológica e moral, compreendendo o desenvolvimento psíquico do infante, que também deve estar amparado pelos responsáveis. Analisada a forma com a qual se apresenta atualmente a afetuosidade dos pais para com os filhos, passemos agora à apreciação de sua obrigatoriedade. 2. A afetividade enquanto dever dos pais O mundo jurídico tem se deparado nos últimos tempos com uma questão concernente à afetividade que, por ser nova, muito tem intrigado julgadores, advogados e doutrinadores. Nos casos de separação judicial ou outros de mesma natureza, o responsável adimplente com pensões alimentícias e demais obrigações materiais adversas está obrigado a prestar afetividade ao seu filho? Seriam as visitas, presença e demais efeitos desse afeto obrigações do ascendente para com o seu descendente? Nesse ponto, encontra-se uma divisão doutrinária relevante. Uma parte dos juristas acredita que não, não há no ordenamento jurídico previsão de obrigatoriedade nesse sentido; uma vez que a prestação alimentícia é adimplida, o pai (ou mãe) encontra-se livre de quaisquer outras obrigações. Acreditam estes que não pode a Lei obrigar o responsável a sentir afeto pelo filho, sendo impossível impor a manutenção de um laço sentimental já rompido. Tal laço é elemento que advém do espírito, do psíquico humano, não podendo a Lei determinar a sua criação ou extinção. O legislador não poderia, segundo essa corrente, invadir tal campo humano, qual seja, o da sentimentalidade. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já se manifestou nesse sentido. RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO.DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido1. Por outro lado, há aqueles que acreditam ser a afetividade dever dos pais efetivamente. Tendo em vista a formação do infante que é influenciada diretamente pela presença de seus genitores na formação de sua opinião, caráter e relações pessoais, fica patente a extrema relevância do relacionamento entre pais e filhos. Tal relacionamento, pautado no amor, carinho, afeto e outros é fundamental para o crescimento emocional da criança. O afeto representa: ...dividir conversas, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações; mostrar caminhos, aprender, receber e fornecer informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos sócioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração. (MADALENO, 2004, p. 08)2. A própria comunidade científica reconhece isso, quando em seus artigos científicos especializados no assunto, recomendam que, nas hipóteses de separação, a guarda seja o mais compartilhada possível, a fim de que o infante possa ser suprido na prestação dessa necessidade que a todos nós é natural. Para tanto, essa vertente prega a convivência harmônica entre a prestação econômico-patrimonial e a prestação emotivopsíquica ao infante. Somente as duas conjugadas estariam aptas a fornecer à criança condições de desenvolvimento sadio. Nesse sentido, estariam ambas incluídas no dever de assistência, constituindo obrigatoriedade. 1 Resp Nº 757.411 – MG (2005/0085464-3). Superior Tribunal de Justiça. Ministro Relator: Fernando Gonçalves. 2 In Angeluci. Abandono afetivo: considerações para a constituição da dignidade da pessoa humana. 2006. Ademais, é do maior interesse da sociedade em geral que o afeto, bem como a prestação econômica, seja efetivamente oferecido, pois resta comprovado por meio de estatísticas que, quando a entidade familiar falha ao proporcionar esses elementos, há grande risco de o infante enveredar pelo caminho da ilegalidade, criminalidade, vícios e outros destinos não mais desejáveis. Como nos afirma VELASQUEZ3: O abandono e a negligência familiares e a falta de afeto e diálogo também são problemas comuns que afligem os jovens, não sendo de espantar que mais de 90% dos adolescentes infratores internados provenham de famílias bastante desestruturadas, marcadas por agressões físicas e emocionais, problemas psiquiátricos e pela ausência das figuras paterna e materna, seja pela rejeição pura e simples, seja pela morte ou doença, muitas vezes causados também pela violência urbana. (grifo nosso). Sopesados os dois lados, podemos determinar posicionamento a respeito. Muito embora não haja expressa referência à afetividade no ordenamento jurídico, ao efetuarmos interpretação sistemática e teleológica da Constituição e Código Civil, sem nos esquecermos do Estatuto da Criança e do Adolescente, sempre tendo em mente seus princípios informadores, percebemos que o legislador concebeu uma legislação voltada ao bem-estar da criança e do adolescente. É indubitável, conforme já foi exposto supra, que esse bem-estar é composto das facetas econômica e emocional, não podendo haver configuração de fato desse bem jurídico tutelado sem que ambos os elementos estejam presentes na formação da criança. Portanto, o afeto é sim dever dos pais, uma vez que cabe a estes a responsabilidade pela formação saudável do infante, a fim de que este seja inserido na sociedade de modo a contribuir e acrescentar positivamente na evolução da comunidade e de seus pares. De fato, a lei não pode obrigar alguém a amar a outrem, mas no caso dos ascendentes, o mínimo que se espera é a dedicação ao infante, fornecendo a base moral que para este é imprescindível. Ainda que não haja o amor propriamente dito, deve haver a presença, o comparecimento. 3. Responsabilidade Civil X Afetividade Tendo por base o que foi acima esclarecido, passemos agora a outro ponto deveras importante no estudo do abandono moral: gera indenização a sua configuração? 3 VELASQUEZ. Hecatombe X ECA. 2006. O pai que, ao fornecer todo o aparato material ao infante, arcando com pensões e demais obrigações afins, está sujeito ao pagamento de indenização a título de dano moral à criança que por ele sofreu abandono moral, ou seria tal idéia cercada de tentativa de enriquecimento ilícito? Antes de tratarmos do mérito da questão, é válido um rápido exame do que enseja a responsabilidade civil no ordenamento jurídico pátrio. Segundo VENOSA4: O termo responsabilidade civil é utilizado em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deve arcar com as conseqüências de um ato, fato, ou negócio jurídico danoso. Sob essa noção, toda atividade humana, portanto, pode acarretar o dever de indenizar. Sob essa ótica, verifica-se que o cometimento de ato ilícito gera o dever de indenizar. O Direito não permite que um indivíduo cause dano a outrem e saia ileso, sofrendo a vítima sozinha os efeitos desse dano. Se assim fosse, como considerar o conceito de Justiça dado pelo jurista romano Ulpiano, que define: justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi5? Daí o nosso novel Codex dispor em seu art. 186 que: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Neste ponto, vale ressaltar a sapiência do legislador, que incluiu no rol exposto a possibilidade de reparação de dano exclusivamente moral, seguindo a linha do legislador constituinte. Estabelecidos esses lineamentos iniciais, cabe a nós agora analisarmos os elementos que, quando presentes, ensejam a responsabilidade civil. A culpa, concebida como a inobservância de um dever que o agente devia conhecer e observar6. Existem casos contemplados pelo sistema jurídico em que esta é dispensada; são as hipóteses de responsabilidade objetiva, respaldadas na teoria do risco, em que é relevada a potencialidade de gerar danos em detrimento da culpa. Todavia, vamos analisar a responsabilidade civil sob o seu aspecto subjetivo (da culpa), pois, como se explanará adiante, é nele que se baseia a imputabilidade do abandono afetivo. 4 VENOSA. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 2005. “Justiça consiste em dar a cada um o que é seu”. 6 VENOSA, Idem. 5 Dessa forma, a culpa se configura não só com o dolo (intenção deliberada de agir de forma ilícita, prejudicando a outrem por meio da má-fé – culpa em sentido amplo), mas também com a negligência, imprudência e imperícia (culpa em sentido estrito). Na primeira destas, o agente comete uma conduta danosa por desatenção, ou seja, incorre em descuido no seu comportamento, ou ainda, não age como o dever de cuidado imposto pela lei determina. Na segunda, por sua vez, o indivíduo atua com afobação, afoiteza, pressa e precipitação, criando um perigo que resulta em dano posteriormente. Na última, configura-se inabilidade, inexperiência, inaptidão no ofício que o agente se propõe a exercer. Qualquer que seja o instituto vislumbrado na situação in concreto, estar-se-á diante da culpa civil. O dano, de outro modo, é o efetivo prejuízo sofrido pelo agente sobre um bem que está sob a tutela jurídica de proteção. É infração do dever jurídico de neminem laedere7, causando perda injusta de cunho patrimonial ou moral. Para que o mesmo se mostre incontestavelmente presente no caso, deve ser atual, não hipotético. A indenização deferida pelo juiz deverá ser apta a repor esse prejuízo. Aqui cabe um parêntesis: além da finalidade reparadora da indenização imposta, tem a mesma, também, natureza preventiva, isto é, de alerta aos demais membros da sociedade que não incorram naquele dano, ou sofrerão as conseqüências judiciais cabíveis no caso. Por fim, como elemento último da responsabilidade civil, temos o nexo causal. Este pode ser configurado como o vínculo, a conexão entre a conduta culposa ou dolosa do agente e o prejuízo experimentado pela vítima. Em outras palavras, deve o comportamento do indivíduo estar diretamente ligado ao dano cometido; se não foi ele o causador do prejuízo, ou se este foi conhecido por incidência de caso fortuito ou força maior, ou ainda se a própria vítima foi a única responsável pelo prejuízo que sobre ela recaiu, esse liame se quebra e, conseqüentemente, não se verifica a responsabilidade civil. Vistos os elementos compositivos da responsabilidade civil, resta agora saber se o abandono afetivo é conduta cuja existência traz à baila a culpa, o dano e o nexo causal. De início, deve-se afirmar que a responsabilidade civil no caso em tela é subjetiva. Isto porque não se pode imputar aos pais o dever de afetividade sem se 7 “Não lesar a ninguém” aplicar o princípio da razoabilidade. A professora Lúcia Valle Figueiredo8 nos ensina que: A razoabilidade vai se atrelar à congruência lógica entre as situações postas e as decisões administrativas. Vai se atrelar às necessidades da coletividade, à legitimidade, à economicidade. Dessa forma, não pode o legislador ou o julgador obrigarem o genitor sem a guarda a prestar o mesmo afeto, em intensidade e freqüência, que aquele que possui a guarda; ou impor ao ascendente que mora em outro estado ou país que este ignore e seja omisso suas obrigações profissionais (ou mesmo familiares, no caso de constituição de nova família) adquiridas neste lugar para prestar o afeto, deve sim demonstrá-lo, mas não deve ser imposto a ele o mesmo rigor que se concederia em situação adversa. Por tudo isso, concluímos que é imprescindível a presença do elemento culpa na responsabilização civil dos pais, sendo esta aferida pela análise do julgador em cima das circunstâncias que cercam o comportamento efetuado por estes. A fim de exemplificar, trazemos Acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais (AC nº 408.550-5, de 01.04.2004), por sua Sétima Câmara Cível, que dispôs: INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. No caso em tela, após separação do casal, a guarda do filho de seis anos ficou incumbida à mãe. O pai, a despeito de estar sempre atendendo à obrigação de prestar alimentos, ficou completamente ausente da vida do infante, apesar dos clamores efetuados por este último. Não importava o quanto este clamasse pela presença do pai, este, confundindo a relação conjugal (rompida) com a relação parental (jamais rompida, a não ser com a perda do poder familiar), julgando estar cumprindo com todos os seus deveres ao prestar a assistência material, apenas ignorava. Todavia, o comportamento do genitor trouxe ao filho conseqüências danosas consideráveis, especialmente no sentido moral e psíquico. Vale dizer que esse dano, muito embora tenha natureza moral, 8 In SILVA, Alan. Princípio da Razoabilidade. 2006. teve de ser provado nos autos, através de depoimentos de pessoas que com a criança conviviam e demais provas idôneas admitidas em Direito. Por outro lado, não se pode admitir culpa dos pais em situações tais que esta deve ser afastada de pronto. O caso deve ser analisado em sua particularidade, sob pena de se estar ignorando o princípio constitucional da razoabilidade, já citado neste estudo. Por exemplo, não pode o julgador considerar presente a culpa quando o genitor é militar e está submetido a mudanças constantes de endereço (ressalte-se: o dever de afeto não é extinto, mas apenas relativizado); ou quando a própria criança tem resistência à presença paterna, devendo o pai utilizar todos os meios disponíveis para vencer a barreira que o separa daquela; ou ainda quando o ascendente estiver em estado de dependência de entorpecentes, recuperando-se em Centro que exija o afastamento de crianças. Posto isso, passemos ao elemento dano. De fato, como em qualquer outra hipótese de reparação civil, o dano deve estar comprovado no pedido formulado pela vítima. No caso, o representante ou assistente deve instruir o processo com provas aptas a formar o convencimento do juiz no sentido de demonstrar o acometimento de dano ao infante. Nesse diapasão, o dano moral sofrido não estará presente apenas se estiver conjugado com a dor física ou psíquica; Será moral o dano que ocasiona um distúrbio anormal na vida do indivíduo; uma inconveniência de comportamento ou, como definimos, um desconforto emocional a ser examinado em cada caso 9. Demonstrado esse aspecto no processo, o julgador deve decidir pela presença deste requisito da responsabilização civil. Assim também entende SANTOS10, quando leciona que: ...no entender deste operador uma ação deste porte tem o ônus probandi do inciso I do art. 333 do CPC, ou seja, a peça tem que ser instruída com as provas do abandono moral que estão revestidas nos registros fotográficos, de filmagens, e testemunhas sobre aqueles momentos presenciais de fundamental assistência moral à criança com especificação de 9 VENOSA. Ibidem. SANTOS. Daniel Cuba dos. Abandono familiar e o dano Moral. 2005. 10 alguns destes momentos, para que a presunção seja deduzida não só dos fatos, mas de atos que não foram praticados pela omissão e que estabelece como verdadeiros os fatos argüidos no abandono moral.. Por fim, entendemos necessária também a demonstração do nexo causal entre o comportamento culposo do genitor e o dano apresentado pela vítima. Não estaria o Judiciário fazendo verdadeira justiça se porventura instituísse indenização por dano moral a uma criança, sendo a origem deste dano causa externa à relação jurídica parental. Seria criada, isto sim, uma insegurança jurídica nos relacionamentos familiares, com os pais arcando por prejuízos que não são de fato responsáveis. Finalmente, reconhecida a existência de todos esses elementos citados na lide, o julgador deve conceder a indenização a título de dano moral. Esta, como apontado pela doutrina, deve buscar a recomposição do que foi perdido; ainda que não alcance esse fim facilmente, este deve estar no entendimento do julgador que irá aferir o quantum indenizatório. No caso específico do dano moral, não é só a dor sofrida pelo indivíduo que deve ser reparada, mas o dano efetivo em sua dignidade, incomodada na sua essência por atos que ultrapassam o normalmente suportável. Nesse sentido, o Projeto de Lei 6.960/02 pretende acrescentar ao art. 944 do Diploma Civil o seguinte parágrafo: “A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”11. Na hipótese de abandono afetivo, o julgador deve fixar indenização ainda que esta seja uma tarefa de difícil execução, tendo em vista a ausência de orientação legislativa concernente ao assunto. Todavia, isso não escusa o juiz de levar a cabo essa fixação, que pode ser orientada por alguns critérios doutrinários, como o cuidado em não permitir que a reparação seja meramente simbólica; evitar o enriquecimento ilícito; observar casos semelhantes na jurisprudência para não promover decisões díspares; atender ao “prazer compensatório” dado à vítima; analisar a gravidade do caso em tela, buscando sempre a efetivação da justiça, etc. A par disso, interessante a observação de MELO: Não se pode rejeitar a possibilidade de pagamento de indenização do dano decorrente da falta de afeto simplesmente pela consideração de que o verdadeiro afeto não tem preço, porque também não 11 VENOSA, Ibidem. Pg. 282 tem sentido sustentar que a vida de um ente querido, a honra e a imagem e a dignidade de um ser humano tenham preço, e nem por isso se nega o direito à obtenção de um benefício econômico em contraposição à ofensa praticada contra esses bens.12 Portanto, o magistrado deve determinar a indenização com fulcro na consecução do espírito da lei e do sistema jurídico como um todo, qual seja, a reperação justa de um dano sofrido injustamente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de tudo o que foi tratado e discutido no decorrer deste trabalho, não foge à razoabilidade concluir que o abandono afetivo, quando devidamente configurado, é situação que enseja a tutela do Judiciário. O infante realmente abandonado e com danos em sua esfera moral e psíquica encontra-se prejudicado em aspectos de sua vida que dificilmente serão apagados. A sociedade como um todo se ergue diante dessa conjuntura, tendo em vista a iminência desse dano sofrido refletir-se nesta, já que essa criança será parte ativa desta comunidade, e a sua bagagem moral será determinante para o seu comportamento nesta. Entendemos não residir razão na tese daqueles que não vislumbram no abandono moral uma hipótese de responsabilização e, conseqüentemente, de indenização. Como já foi apontado, o fato de não haver amor do pai pelo seu filho não retira daquele o dever de prestar convivência familiar e de respeito. Não é preciso que se ame filialmente uma pessoa para que se preocupe com ela, basta o sentimento de solidariedade que une todos os sujeitos dentro de uma sociedade, a fim de que esta se desenvolva. Este sentimento independe de parentesco; deve ser inerente ao homem enquanto animal social. Na hipótese, essa sensibilidade soma-se ao clamor do sangue, que também não pode ser ignorado. Por tudo isso reafirmamos: o abandono familiar é apto a gerar conseqüências jurídicas no âmbito da responsabilidade civil, devendo o julgador, por óbvio, observar atentamente a presença ou não dos elementos daquela, a fim de provocar justa reparação, e não injusto enriquecimento. O magistrado, enquanto representante do 12 MELO. Abandono Moral – Fundamentos de Responsabilidade Civil. 2005. Estado, é hábil para determinar se a situação enseja ou não reparação e, caso enseje, também o é para fixar a justa indenização. A jurisprudência já se tem manifestado a favor dessa tese, e espera-se que o tema seja mais debatido nos Tribunais brasileiros. REFERÊNCIAS ANGELUCI, Cleber Affonso. Abandono Afetivo: considerações para a constituição da dignidade da pessoa humana. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 165. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1066> Acesso em: 22 mai. 2007. GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Compacto Jurídico. 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