TEMA: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA SEGURIDADE SOCIAL AUTORIA: CLARA ANGÉLICA GONÇALVES DIAS ÁREA: DIREITO CONSTITUCIONAL 1 DADOS INTRODUTÓRIOS Antes mesmo de adentrar especificamente na análise dos princípios elencados na Constituição, no título da Ordem Social, considerados por Canotilho como princípios-garantia, que têm o poder de irradiar a sua força por toda a ordem jurídica, vamos fazer um breve apanhado da proteção social nas Constituições brasileiras vigentes antes dessa nossa atual Carta Magna. Mas, é claro que não podemos esquecer que foi a nossa Carta de 1988 que demonstrou, de maneira mais clara possível, a verdadeira preocupação do constituinte com a promoção do bem-estar e justiça social, resguardando de maneira sólida o primado do trabalho. 2 OS PRINCÍPIOS SOCIAIS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS A Constituição de 1988 é alimentada em seus anseios, pelos magnos princípios que visam, de maneira indubitável, garantir a plena dignidade do homem, como meio para o alcance do bem-estar e da justiça social. Como se sabe, os princípios sociais, elencados na Nossa Carta Constitucional, de outra coisa não cuidam, que não seja das garantias de uma existência saudável e digna, tanto do trabalhador, como daqueles que dele dependem, direta e indiretamente, elevando-os assim, ao pedestal de direito. Contudo, esse não foi um favor que a Constituição lhes prestou. Foi uma mera aplicação da justiça, uma execução concreta e efetiva da força inspirada nos princípios. A tradição constitucional brasileira incluía os direitos dos trabalhadores no capítulo da “Ordem Econômica e Social”, procurando, sempre, vincular o social ao econômico. Porém, na verdade, o homem, como ser humano, constitui uma unidade incindível, em que o individual é completado pelo social. A orientação do texto de 1988 merece, portanto, júbilos, em face do relevo que ele atribui aos direitos sociais, como fonte de atingimento da dignidade humana, na sua mais ampla expressão. Podemos afirmar, portanto, que o nosso texto constitucional encerra, definitivamente, a fase transitória do imperialismo, e estampa a ampla democracia, onde todos podem e devem ser tratados, de maneira igualitária, pela lei. Contudo, o nosso papel, neste momento, não é propriamente, traçar os detalhes na Constituição Histórica, mas sim, mostrar a evolução das garantias sociais, de uma maneira bastante breve, nas nossas Constituições, que se elevaram ao longo dos tempos. 3 RUMOS CONSTITUCIONAIS INSPIRADOS NOS PRINCÍPIOS Autônomo e independente, o Direito Previdenciário, por força dos princípios que dão coesão ao sistema jurídico, tem íntima e cerrada relação com as mais variadas disciplinas jurídicas, e, principalmente com a Constituição. Houve, é bem verdade, de acordo com as exigências dos tempos, maiores empenhos constitucionais em prol dos indivíduos e do trabalhador. Isso foi visto, em largas passadas, seguindo os rumos constitucionais do nosso país. O início de tudo se deu com a Constituição de 1824, onde a monarquia constitucional, na pessoa de D. Pedro II, já perseguia a idéia de bondade e solidariedade como hábeis ao alcance do bem-estar e da justiça social. Foi exatamente nesse período, também, que o homem passou a fugir do campo, pois eram lá, muitas vezes, tratados pelos nobres como escravos, e se agrupar nas cidades. Começaram, então, a se agrupar em grupos, que mais tarde passaram a ser chamados de corporações de ofício. Contudo, essa ainda não foi uma boa solução, já que a opressão aqui ainda continuava. Mesmo assim, a Constituição de 1824 reservou-se como o primeiro passo social crivado nas letras constitucionais do país. Mas, foi em 1889 que tivemos o rompimento do monarquismo vigente, com o advento da revolução republicana. Foi aí que surgiu a primeira constituição da República, datada de 1891. Nessa época, a economia nacional era comandada pelo cultivo do café. A classe social em apogeu passou a ser, então, a aristocracia rural. A produção industrial era ainda insipiente e voltada, apenas, para um consumo interno diminuto, inexistia uma massa suficiente de trabalhadores urbanos que pudesse exercer pressão no sentido de provocar o surgimento de uma legislação protetiva. Foi por isso que nessa Carta, ainda não havia uma preocupação em disciplinar a ordem econômica e social. Aliás, na concepção doutrinária e ideológica que vicejava na época, tais matérias deveriam ser tratadas pelo legislador ordinário. As grandes revoluções em prol do social, como, aliás, mais se acentuavam em vários e diversos cantos da terra, fizeram-se notórias com a voz forte do papa dos operários, Leão XIII, pela encíclica Rerum Novarum (maio de 1891). Clamando pela união entre capital e trabalho, à vista de se fazerem um para o outro, ou um não existir sem o outro: “imperiosa necessidade um do outro; não pode haver capital sem trabalho nem trabalho sem capital. (...) A relação entre o capital e o trabalho que, pela sua própria natureza, são chamadas a colaborar e a usufruir, segundo as normas da justiça, das riquezas por ambos criada” 1. Aqui no Brasil, os primeiros embates sociais surgiram a partir de 1930, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Esses, por sua vez, trouxeram uma contribuição decisiva para os rumos a serem seguidos de então para cá. Foi promovida, no campo econômico, uma mudança substancial na estrutura do país. Passou-se a dar mais espaço às grandes potências industriais da época, mudando um pouco o perfil daquele Brasil semi-feudal de até então. Mas, a questão social foi deixada de lado, afligindo o país. Houve, aqui, a verdadeira expansão da indústria, provocada pelo acúmulo de capitais gerados com o setor exportador. A classe operária se mostrava cada vez mais crescente, e que, de certa forma exercia pressão, fazendo transformar a questão social em uma verdadeira questão de preocupação estatal. Não podemos esquecer da grande influência que o Brasil sofreu, em face dos grandes acontecimentos políticos ocorridos na Europa após a Primeira Guerra Mundial, onde passou a se pregar uma verdadeira difusão dos direitos sociais, os quais passaram a ser constitucionalizados. Assim, a revolução de 1930, então, passou a atender os anseios sociais que até então eram ignorados. Havia, nessa época, uma notória semelhança entre a Alemanha do século XIX e o Brasil da década de 30: desenvolvimento tardio do capitalismo, projeto de modernização da 1 GESTEL, Van. A Igreja e a Questão Social, p. 114. sociedade, a busca de legitimação populista pela via de uma legislação social e ainda, a tentativa de construção de um Estado burocrático-social 2. Foi criado o Plano da Caixa Geral do Estado com o intuito de proteger os riscos de enfermidade, falta de trabalho, invalidez e morte. Para Celso Barroso Leite 3, esse documento não foi apenas o primeiro documento, mas, o mais específico que tratou de cuidar do que hoje se conhece por seguridade social, elaborado onze anos antes do Relatório de Beveridge. Foi daí que, em 1934, foi dado ao povo brasileiro, um novo modelo constitucional, renegando o antigo regime imperialista, e sob a influência e impulso de Vargas, como vimos, voltaram-se as leis para o social. Inclusive, nessa carta constitucional, um de seus capítulos trazia exatamente, o nome de: Ordem Econômica e Social, de clara inspiração na Constituição de Weimar. Essa idéia se faz mais clara quando analisamos o conteúdo do preâmbulo dessa Constituição, que declara a intenção dos constituintes de organizarem um regime democrático para assegurar à nação, a unidade, liberdade, justiça e o bem-estar social e econômico. Assim, passa o Estado a assumir determinados compromissos no que tange à organização da sociedade, dispondose a amparar os cidadãos que não conseguem, apenas pelo seu próprio esforço, obter uma colocação no mercado que seja apta a lhes assegurar uma situação compatível com a dignidade humana. A preocupação social, inicialmente expressa com a adoção dos princípios sociais, começou, realmente, a ganhar fôlego, como se vê nitidamente. O artigo da Magna Carta de 34, o de nº. 115, está assim redigido, com relevo para o social: “A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos a existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica”. Incluem-se, aqui, de forma expressa, os princípios da vida e da existência digna, lembrando o EstadoProvidência 4. Evidente que esses princípios são o primeiro calço de cunho constitucional onde, a partir de então, se estribam os trabalhadores. Outro ponto que é importante ressaltar é que, foi a partir daqui que começaram a se tornar evidentes os inconvenientes do regime de filiação por empresa, já que estavam a se proliferar as pequenas Caixas. Por isso, tornou-se necessária a criação entre 1933 e 1938 dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, que eram responsáveis por conceder, a partir de então, proteção social a toda uma categoria profissional. Em 1937, é outorgada uma nova Constituição. Essa Carta, pela sua própria natureza, era concisa no tocante aos direitos individuais. Era inspirada, segundo alguns historiadores, pela Constituição da Polônia e do Rio Grande do Sul, sem esquecer dos movimentos nazista e fascista, fato que impulsionavam os trabalhadores na busca dos direitos econômicos, sociais e culturais. Aqui ainda não havia a previsão dos direitos sociais dentro do capítulo que cuidava dos Direitos e Garantias Individuais. Foram eles inseridos, de forma bastante tímida, no Título da Ordem Econômica. Já eram aqui concedidos alguns benéficos, como o repouso antes e depois do parto para a gestante, seguros de invalidez, velhice, dentre outros. Com crise do Estado Novo, o empresariado passou também a defender a proteção 2 WOLKMER, A. C. Constitucionalismo e Direitos Sociais no Brasil, p. 23-26. LEITE, Celso Barroso e VELLOSO, Luis Paranhos. Previdência Social, p. 188/189. 4 “Os princípios norteadores do Estado-Providência são os seguintes: 1) não há bem-estar sem renda satisfatória oriunda do trabalho; 2) incumbe ao Estado assegurar, por via de política fiscal, redistribuição de renda; 3) o Estado deve ser o principal responsável por riscos sociais como doenças, invalidez, desemprego; 4) as aplicações de numerários em favor de grupos sociais mais vulneráveis podem ser feitas de vários modos: prestações diretas do Estado; subvenções que visem a diminuição de preços de bens e produtos essenciais, como transporte, saúde, educação”. 3 social, por temer represálias dos obreiros, que passaram a se organizar em sindicatos, que eram cada vez mais fortes. Contudo, com essa crescente crise que culminou na queda do Estado Novo, concebido por Vargas, e também por força da inércia política e intelectual, as questões sociais não ganharam ainda, a atenção que merecia lhes ser dispensada, nesse período da nossa história. Assim sendo, tanto a Constituição de 1934 quanto a de 1937, indicavam um rol de direitos já previstos anteriormente, tais como: a assistência médica e higiênica ao trabalhador e à gestante, assegurada a esta, sem prejuízos dos salários, repouso antes e depois do parto, a instituição de seguros-velhice, de invalidez, de vida, para os casos de acidente de trabalho, dentre outros. Tudo isso diz respeito e constitui a legislação social, empalmada na Carta Política de 1937 (art. 127), na esteira da de 1934. “Tudo o que nela se contém é legislação social. Ou o texto constitucional será vazio de sentido” 5. A Constituição de 1946 procurou restaurar o quadro traçado na Constituição de 1934. A preocupação com a questão social era intensificada em escala mundial nas democracias liberais, pois era parte de um plano ideológico destinado a contrapor-se aos projetos fascistas e socialistas de planificação social, demonstrando que a democracia liberal também tinha alternativas para o enfrentamento dos problemas sociais 6. Através desse prisma, ficou assentado que a Ordem Econômica passaria a ser organizada conforme os ditames da justiça social. Essa carta, além de trazer alguns benefícios previdenciários em espécie, como por exemplo, os seguros contra a doença, invalidez, morte, a proteção à gestante, ainda inovou quando manifestou uma preocupação com os desempregados. Por isso, fica latente a paulatina ampliação do contingente de pessoas protegidas pelo seguro social. A proteção do rurícola aparece com a instituição do FUNRURAL em 1963, pela Lei nº. 4.214. Entretanto, essa constituição permaneceu vigente até o “golpe de 1964”, assumido o militarismo o governo, até a volta da democracia plena, com a instalação da Nova República. Mesmo durante esses mais de vinte anos de governo militar, as mudanças sofridas em relação à legislação social não tiveram um caráter significativo. A Constituição de 1967, por seu turno, passou a resumir as alterações institucionais operadas na Constituição de 1946 7. Formalmente, essa Carta previa os mesmos direitos e garantias individuais da anterior, mas permitia a suspensão dos mesmos. Foram utilizados nesse período, instrumentos discricionários e foram praticados atos pelo Poder Revolucionário, os chamados Atos Institucionais, o que explica, de maneira clara, o porquê da suspensão dos direitos. Consoante o magistério de José Afonso da Silva, essa Constituição, a rigor, teria durado muito pouco, pois e Emenda Constitucional nº. 01/69 que, na verdade, não se tratou de uma emenda, mas de uma nova constituição, reformulou integralmente as suas disposições. Essa Carta, contudo, manteve os direitos sociais até então vigentes, repetiu o princípio da precedência do custeio para a criação, majoração ou extensão de benefício previdenciário, surgido em 1965, conhecida por Balera 8 como “Regra da Contrapartida”. Trouxe, a título de inovação, a criação do salário-família, a proteção aos desempregados mediante a concessão do seguro-desemprego. Entretanto, um retrocesso foi evidente aqui em 1967. Foi retirada do rol constitucional a proteção acidentária concedida ao trabalhador desde a Carta de 1934. Mas, em 1969 (já com a Emenda Constitucional nº. 01/69) esse direito passou a fazer parte, novamente, da seara constitucional. 5 Princípios de Legislação Social e Direito Judiciário do Trabalho, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1939, Vol. II, p. 384/385. 6 OLIVEIRA, Jaime A. de Araújo e TEIXEIRA, Sonia M. Fleury. (IM) Previdência Social: 60 anos de História da Previdência no Brasil, p.117. 7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 88. 8 BALERA, Wagner. A Seguridade Social na Constituição de 1988, p. 27. O FUNRURAL foi aperfeiçoado e implementado efetivamente em 1973. Tratava-se de um regime de caráter nitidamente assistencial e não-contributivo, na medida em que os segurados não recolhiam as contribuições. Em 1985 abrem-se novos caminhos democráticos que se consagram na nova Carta dada à sociedade brasileira em 04 de outubro de 1988. Essa nova Carta, chamada por Ulysses Guimarães como a “Constituição Cidadã” representou o ponto culminante do processo de restauração do Estado Democrático de Direito. Nela, a proteção social galgou excepcional relevância em nosso ordenamento jurídico: além de contemplar dentro do título concernente aos Direitos e Garantias Fundamentais um capitulo próprio para os Direitos Sociais, a ordem social foi emancipada da ordem econômica, como até então não havia acontecido. Para o professor Wagner Balera 9, essa nova Carta republicana instituiu um autêntico Sistema Nacional de Seguridade Social, qual configura um conjunto normativo integrado por um sem-número de preceitos de diferente hierarquia e configuração. Dentro de um contexto no qual o trabalho é a pedra angular da ordem social 10, exsurge a seguridade social como elemento de relevância nuclear para o desenvolvimento e manutenção da dignidade da pessoa humana, sendolhe atribuída a tarefa de garantir a todos um mínimo de bem-estar nas situações geradoras de necessidades. Romita ainda afirma em sua obra que a tradição constitucional brasileira incluía os direitos do homem trabalhador no capítulo da “Ordem Econômica e Social”, tentando demonstrar uma subserviência do social ao econômico. Na verdade, o ser humano, para ele, era fruto de uma unidade incindível, em que o individual é completado pelo social. A orientação do texto de 1988 merece, portanto, aplausos, porque o relevo por ele atribuído aos direitos sociais confere eminente dignidade ao ser humano e constitui inegável fonte de inspiração para o legislador infraconstitucional 11. Nessa esteira, iremos ver que algumas normas constitucionais são plenamente eficazes e de aplicação imediata; outras, contudo, são de eficácia mais reduzida, pois que dependem de legislação posterior que lhes habilite o alcance e o sentido de sua incidência. Por isso, se presume que muitas de suas normas precisam ser regulamentadas, complementadas, por uma legislação complementar que lhe venha deferir o alcance desejado pela constituinte. E é essa a função do Direito Previdenciário; tornar ainda mais viva a idéia de justiça social em prol da dignidade do homem. A eficácia jurídica de todas as normas constitucionais, mesmo as programáticas, tem que ser observada. O que ocorre, na verdade, é uma maior ou menor eficácia de umas normas constitucionais em relação a outras (as programáticas, por exemplo). Porém, não podemos deixar de lado, o importante papel que as normas programáticas exercem na ordem jurídica e no regime político do país. Por isso, continuamos afirmando aqui, o que dissemos lá atrás: Os princípios são a força motriz de todas as ciências. Quando se identificam com determinado instituto, passam por assumir a forma desse mesmo instituto. A Constituição traz inovações de nota, ficando em realce três de ordem prática e uma de ordem teórica, di-lo Romita, no seu excelente “os direitos sociais na constituição e outros estudos”, donde colhemos o seguinte: “A novidade teórica introduzida pela Constituição consiste na inserção dos Direitos Sociais no título dedicado aos “Direitos e Garantias Fundamentais”, ao lado dos “Direitos Individuais e Coletivos”. 9 BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social, p. 11. BALERA, Wagner. A Seguridade na Constituição de 1988, p. 32. 11 Romita, Arion Sayão. Os Direitos Sociais na Constituição e outros Estudos, p. 12. 10 4 PRINCÍPIOS GERAIS DA SEGURIDADE SOCIAL Antes de adentrar, especificamente na seara dos Princípios Constitucionais da Seguridade Social, iremos fazer uma breve exposição sobre os princípios que a doutrina chama de gerais e que também integram o nosso sistema de seguridade. Esses princípios constituem as proposições e idéias básicas que servem de fundamento, de alicerce da seguridade social, compondo-lhe o sentido e lhe dando identidade, condicionando e orientando a sua compreensão, seja para a sua aplicação e integração, assim como para a elaboração de novas normas 12. 4.1 Princípio da Solidariedade Como já foi dito alhures, a seguridade social constitui um “instrumento protetor, preventivo e assistencial, cujo objetivo é amparar os membros da sociedade de qualquer contingência social”. Por isso, a característica da seguridade reside no fato de ela ser um verdadeiro direito subjetivo do necessitado em face do Estado. Esse, por sua vez, tem o dever de prestar proteção social àquelas pessoas necessitadas. Daí vê-se que a seguridade constitui um verdadeiro ato de solidariedade, é o verdadeiro reconhecimento de que a ação individual não é suficiente para debelar as necessidades decorrentes das contingências sociais. É por isso que todos os membros da sociedade devem trabalhar no sentido de efetivar a proteção social em face dessas necessidades. Aqui, a solidariedade é que vai permear toda a seguridade social, seja no momento da sua instituição, seja no modo de contribuir, seja no amparo, seja na participação da maioria da população em prol de uma minoria necessitada 13. É esse princípio considerado como o vetor de todo o arcabouço da seguridade social, aplicável tanto na interpretação quanto na aplicação de suas normas, servindo, pois, de inspiração para o legislador e de diretriz para o administrador. Entendimento outro não é o de Pedro Vidal Neto 14 quando afirma que: [...] o princípio da solidariedade é o princípio fundamental, pois a solidariedade social está nas raízes da Seguridade Social, impelindo todas as pessoas a conjugarem esforços para fazer face às contingências sociais, por motivos altruístas ou não, desde que os males que afligem cada indivíduo podem vir a ser sofridos pelos demais e, de qualquer modo, atingem toda a comunidade. O início mais remoto da solidariedade social é natural. Quando o homem primitivo deixou a horda como aglomeramento humano e organizou-se no grupo preparatório da sociedade, teve de observar a mútua ajuda, ser solidário. A solidariedade social é projeção do amor individual exercitado entre parentes e estendido ao grupo social. Mas a origem foi mesmo na assistência, onde era latente o mutualismo. Ele aparece, de maneira expressa na Constituição, no artigo 3°, I, que reza 12 MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Breves considerações sobre os princípios da seguridade social. In Revista de Previdência Social, LTR, v. 25, n. 251, p. 710, out/ 2001. 13 MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Breves considerações sobre os princípios da seguridade social. In Revista de Previdência Social, LTR, v. 25, n. 251, p. 710, out/ 2001. 14 VIDAL NETO, Pedro. Natureza Jurídica da Seguridade Social, p. 85. que a nossa Carta Magna estabelece que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Segundo lições de Miguel Horvath Junior 15, “a solidariedade social significa a contribuição do universo dos protegidos em benefício da minoria”. E, continua: “Precisamos eliminar a idéia de que os benefícios previdenciários só são concebidos a quem esteja em situação de impossibilidade de obtenção de recursos para o sustento pessoal e de sua família, pois, isto não corresponde à totalidade de situações. O sistema protetivo visa amparar necessidades sociais que acarretem a perda ou a diminuição dos recursos, bem como situações que provoquem o aumento de gastos. No momento da contribuição é a sociedade quem contribui, no momento da percepção da prestação é o indivíduo que usufrui. Daí vem o pacto de gerações ou princípio da solidariedade entre gerações. Os não necessitados de hoje, contribuintes, serão os necessitados de amanhã, custeados por novos não necessitados que surjam” 16. O mesmo autor citando Severino Aznar 17, diz que a solidariedade humana é uma lei fatal, natural, é um fato indiscutível. Quando há solidariedade há vida em nossos membros; quando essa solidariedade se rompe, com ela se rompe a vida e vem a morte. Almansa Pastor reza que um sistema de seguridade social não lastreado na solidariedade nacional não passa de um artifício técnico sem verdadeira raiz comunitária 18. Para ele, a solidariedade social pode ser classificada da seguinte maneira: direta e indireta, levando-se em consideração o vínculo entre as partes; interpessoal, intergrupal, segundo os sujeitos envolvidos; ética ou jurídica, em razão das suas fontes ou, finalmente, total ou parcial, quando se considera a sua extensão de acordo com os valores das partes vinculadas. Portanto, partindo dessa classificação, chega-se à conclusão que é com base na solidariedade coletiva que o sistema nacional confere a saúde e a assistência social a todos e, ao contrário dessas, garante a previdência baseado na solidariedade interpessoal, a qual exige o pagamento de contribuições. Não podemos esquecer de analisar a solidariedade com base no custeio do sistema. Isso posto, veremos que a aplicação subsidiária do princípio da capacidade contributiva aqui se faz necessária, pois, é exigido pelo sistema daqueles que ganham mais, um pagamento de contribuição maior em relação àqueles que ganham menos ou mesmo em relação aos que não têm, sequer, a mínima condição de verter contribuições. Isso é vislumbrado quando, por exemplo, as empresas urbanas vertem contribuição para o sistema de previdência rural. Para Patrício Novoa Fuenzalida citado por Wladimir Novaes Martinez 19, a solidariedade social é matizada pelos seguintes aspectos: 1) antes de tudo, o seguro social é um empenho de toda a comunidade, realizado em seu próprio benefício; 2) para esse empenho de todos, e cada qual, segundo sua capacidade e possibilidade, devem contribuir; 3) o de cada pessoa deve ser 15 HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 60. HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 60/61. 17 HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 61. 18 PASTOR, José Manuel de Almansa. Derecho de la Seguridad Social, p. 121. 19 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Princípios de Direito Previdenciário, p. 66. 16 considerado como uma exigência do bem comum e não como uma prestação prévia para desde logo o órgão gestor outorgar a correspondente contraprestação. 4.2 Princípio da obrigatoriedade da filiação Por esse princípio, a participação dos membros da coletividade nas ações de seguridade social, para que esta efetivamente atinja os seus objetivos deve ser obrigatória. Por isso se diz que a seguridade social adquire o seu grande desenvolvimento quando imposta por via legal, de maneira obrigatória. É no reconhecimento da necessidade de participação de toda a coletividade na empreitada da proteção social e da imprescindível subordinação do interesse individual ao interesse coletivo, que se institui a participação compulsória dos membros da comunidade como mecanismo de obtenção das metas da solidariedade social instituída pela técnica da seguridade social. Para Horvath Junior 20, esse princípio é fundamentado na necessidade do cálculo atuarial e do caráter cogente da relação jurídica previdenciária em relação aos segurados que desenvolvem relação de trabalho. Essa obrigatoriedade é, pois, essencial para a caracterização do seguro social que é custeado pelas contribuições dos trabalhadores, empregadores e o Estado. É, para o autor, “necessária a formação de um lastro contributivo que garanta segurança ao sistema”. 4.3 Princípio da Unidade Por esse, entende-se que para que seja efetiva a proteção social almejada pela seguridade, é necessária uma unidade de esforços de toda a coletividade. Além disso, o Estado deve estar respaldado ainda numa unidade legislativa, administrativa e financeira. Essas também visam eliminar qualquer forma de discriminação entre os integrantes da comunidade, dando apoio para a verdadeira concretização do princípio da igualdade. Em suma, diz Alfredo Lopes Ruprecht 21: [...] considera-se que, havendo unidade de diversos aspectos ou elementos que constituem a seguridade social, consiga-se uma melhor, mais rápida, menos custosa, e um resultado menos conflitante, poupando gastos trâmites e suprimindo privilégios, pois as separações em diversos organismos, com princípios normas e benefícios diferentes estabelecem uma verdadeira discriminação. 4.4 Princípio da Subsidiariedade 20 21 HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 60. RUPRECHT, Alfredo Lopes. Direito da Seguridade Social, p. 40. Reza esse princípio que a participação do Estado, substituindo o particular em suas atividades é subsidiária. Por isso, a proteção social oferecida pelo Estado somente deve ser deflagrada de maneira supletiva em relação à atividade individual. Assim sendo, é dever e obrigação do indivíduo cuidar tanto da sua subsistência como também da sua família e tomar todas as medidas para atender todas as necessidades que, por ventura, vierem a aparecer, face à efetivação de um risco social. Somente quando ele mesmo não pode minimizar os efeitos dessa contingência, imprimindo esforços próprios é que, então, deve a seguridade intervir. Importante frisar que, aqui, não deve a “seguridade social cobrir totalmente as carências do indivíduo em face de uma contingência, mas apenas parte dela, devendo o resto correr por conta do interessado” 22. Por isso é que existe no direito brasileiro o teto do salário de benefício. 4.5 Princípio da compreensibilidade O princípio de compreensibilidade visa proteger, nos dizeres de Horvath Júnior 23 todas as eventualidades e não só as determinadas como riscos na forma da lei, desde que respeitada a capacidade econômica do Estado. 4.6 Princípio da imprescritibilidade do direito ao benefício Aqui, desde que o indivíduo cumpra todas as exigências legais para o acesso ao benefício previdenciário, o não exercício a esse direito não afasta o direito à prestação previdenciária. 4.7 Princípio da Unicidade Aqui o que se proíbe é a concessão de mais de um benefício previdenciário a uma mesma pessoa que exerce, ao mesmo tempo, duas ou mais atividades que são sujeitas a um mesmo regime previdenciário. Isso ocorre em face da relação jurídica previdenciária ser considerada intuito personae. 4.8 Principio da automaticidade das prestações 22 23 RUPRECHT, Alfredo Lopes. Direito da Seguridade Social, p. 40. HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 64. Segundo sua determinação, o segurado empregado, o trabalhador avulso e os seus dependentes têm direito ao recebimento das prestações previdenciárias, independentemente do recolhimento ou não das contribuições pelo empregador. Isso quer dizer que, na verdade, desde que cumpridos os requisitos formais básicos para a concessão de benefícios aos empregados, domésticos e avulsos, os benefícios a que eles terão direito deverão ser concedidos, independentemente da contribuição do empregador voltada ao custeio do sistema. Em não havendo comprovação do recolhimento, o salário de benefício será de um salário mínimo, sendo o trabalhador ressarcido se for constatada a contribuição vertida pelo empregador. 5 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA SEGURIDADE SOCIAL EM ESPÉCIE 5.1 Universalidade da cobertura e do atendimento O Princípio da universalidade é a base da Seguridade Social e está relacionado diretamente com o Princípio Fundamental da Isonomia, previsto no artigo 5º caput da Constituição Federal e também com o Princípio da solidariedade. O Princípio ora em estudo, reflete os valores fundamentais da Seguridade Social, da dignidade da pessoa humana, do bem-estar e justiça sociais. Antes, o campo de aplicação desse princípio era exclusivamente subjetivo, abarcando apenas a clientela protegida. Tratava-se, portanto, de um princípio movido pela idéia de inclusão, tendo por finalidade, tornar o sistema de seguridade acessível a todos os que, inicialmente, exercessem atividade remunerada ou que, ao menos, recolhessem contribuições na forma da lei. Almansa Pastor 24 já oferece uma outra interpretação para o supramencionado princípio. Define a universalidade subjetiva como extensível obrigatoriamente a toda a população, enquanto que a generalidade objetiva tenderia a reparar todas as conseqüências que produzissem necessidades sociais, ainda que não previstas, abrangendo ainda necessidades morais e espirituais. E é assim que esse princípio é interpretado nos dias de hoje, ou seja, levando-se em consideração tanto o critério objetivo como o subjetivo, que são aqui indissociáveis. Marly A. Cardone 25 assim como a maior parte da doutrina pátria analisa o princípio da universalidade, dividindo-o em duas dimensões: (1) a universalidade da cobertura, que focaliza o critério objetivo próprio desse princípio, e (2) a universalidade do atendimento, que expressa a dimensão subjetiva. Nesse aspecto, se diz que devem sofrer a proteção do sistema todos aqueles que forem atingidos por uma contingência social que lhes retire a capacidade de trabalhar ou acarrete um aumento das despesas, o que pode trazer um verdadeiro desequilíbrio no orçamento familiar. No 24 PASTOR, José Manuel de Almansa. Derecho de la Seguridad Social, p. 105. CARDONE. Marly A. Previdência, assistência, saúde: O não trabalho na Constituição de 1988, p. 28. 25 segundo enfoque, - o subjetivo -, estariam protegidas todas as pessoas integrantes da sociedade, desde que observados os requisitos legais, filiarem-se ao sistema protetivo. Assim, podemos constatar que, ao determinar a universalidade de atendimento, o princípio em análise determina de maneira obrigatória que a proteção social se volte a todos os cidadãos, indistintamente, ou melhor, a todo e qualquer ser humano que esteja em território nacional. E, em face do ideário do sistema, essa determinação não poderia, de maneira alguma, ser diferente, tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um valor fundamental e universal. Se o Estado Brasileiro assume como fundamento de sua Constituição a dignidade da pessoa humana, deve então, atender a todo e qualquer ser humano que esteja no território nacional. No mesmo sentido, não haverá bem-estar social, nem justiça social se a proteção da Seguridade Social deixar à margem um ser humano. Não há, pois, que se falar em justiça, sem que haja a superação da miséria e das desigualdades sociais. Enquanto houver um ser humano passando necessidades em território nacional, o princípio da universalidade não terá sido efetivamente aplicado. A Seguridade Social supera a concepção de seguro, que somente beneficia quem contribui. Está claro que para ser beneficiário da Seguridade Social basta, unicamente, possuir a condição de ser humano independente da raça, origem, credo, etc. Contudo, não podemos esquecer que as prestações previdenciárias devem abranger um maior número de situações geradoras de necessidade possível, dentro da realidade econômico-financeira do Estado 26. Vimos também que esse princípio se concretiza de duas formas: através da universalidade de cobertura e através da universalidade de atendimento. Por universalidade da cobertura entende-se “que a proteção social deve alcançar todos os eventos, cuja reparação seja premente, a fim de manter a subsistência de quem dele necessite” 27. Assim sendo, podemos dizer que a universalidade de cobertura refere-se às situações da vida que serão protegidas – todas e quaisquer contingências que possam gerar necessidades. A universalidade de atendimento, por seu turno, significa a entrega de ações, prestações e serviços de seguridade social a todos que deles necessitem tanto em termos de previdência social – obedecido o princípio contributivo – como no caso de saúde e assistência social 28. Especifica, pois, os titulares do direito à proteção social como sendo todas as pessoas que possuem tal direito; ou seja, todo ser humano. Sérgio Pinto Martins 29, em sua obra, ainda vai mais longe, dizendo que não só os residentes no país farão jus aos benefícios previdenciários. Diz que, também, os estrangeiros aqui residentes deverão ser contemplados com as disposições de Seguridade Social, além de não se exigir, para tanto, uma contribuição específica. Mas, sabemos que a estrutura de seguridade não funciona exatamente assim. Só a saúde, como é um direito de todos, é que deverá ser prestada independentemente de qualquer espécie de contribuição. 26 HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 68. CATRO, Carlos Alberto Pereira e LAZZARI, João Batista. Princípios do Direito Previdenciário, p. 80. 28 CATRO, Carlos Alberto Pereira e LAZZARI, João Batista. Princípios do Direito Previdenciário, p. 81. 29 MARTINS, Sergio Pinto. Direito da Seguridade Social, 16ª ed., São Paulo, Atlas, 2001. 27 Marcelo Leonardo Tavares 30 fazendo uma digressão histórica até alcançar a nossa Constituição, que consagra expressamente esse princípio, diz: A previdência dos trabalhadores brasileiros, criada na década de 20 do século passado, sob inspiração do modelo elaborado na Alemanha por Otto Von Bismarck, em seu primeiro momento, protegia os empregados por categoria profissional, sob o argumento de que estando as instituições securitárias mais próximas dos empregadores, haveria uma relação mais direta entre eles e os segurados. Além disso, as regras de custeio eram variáveis de acordo com a capacidade de pagamento do trabalhador. A partir da década de 60, há uma virada na estrutura do sistema, que passa a seguir uma concepção de previdência idealizada pelo economista William Beveridge. Este novo modelo fica então fundado no princípio da universalidade, com o atendimento de toda a população, na uniformidade de tratamento, mediante a padronização do plano para todos os trabalhadores, com limites mínimo e máximo de proteção, na administração unificada do seguro. É o regime estabelecido até hoje. Para Ilídio das Neves 31: O princípio da universalidade, na sua concepção rigorosa, é apenas aplicável nos sistemas de raiz beveridgiana, como os de expansão anglosaxônica ou nórdica, em que a proteção social se dirige basicamente a todos os cidadãos ou mesmo a todos os residentes [...]. De fato, no subsistema previdencial a proteção obrigatória abrange apenas as pessoas com estatuto profissional e, mesmo assim, a lei admite em certos casos o enquadramento facultativo dos trabalhadores independentes. No regime de seguro social voluntário o enquadramento é por natureza sempre facultativa. Por isso, pareceria mais adequado falar em princípio da generalização, que exprime uma universalização meramente tendencial. Esse princípio revela, portanto, que em se tratando de saúde e assistência social, os recursos a ela destinados devem possibilitar atendimento da generalidade de pessoas; no que se refere, porém, à previdência social, nem todas as pessoas são beneficiárias, mas somente os segurados e dependentes, dado o caráter contributivo do regime previdenciário. 5.2 Uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais Em relação a esse, neste momento, vamos apenas tecer breves comentários, pois, como é tema central deste trabalho, irá ser tratado de maneira pormenorizada nos capítulos que se seguem. O referido princípio também possui relação direta com o Princípio da Isonomia e com 30 ROCHA, Daniel Machado da e SAVARIS, José Antonio. Curso de especialização em Direito Previdenciário, p. 208. 31 NEVES. Ilídio das. Direito da Segurança Social, p. 36. o princípio da universalidade de cobertura e atendimento, reforçando ainda mais sua importância na Seguridade Social. Como o seguro social nasceu na época da Revolução Industrial para acalmar anseios operários, sempre teve como foco principal o trabalhador urbano. No Brasil não foi diferente, a proteção social desde o seu início privilegiou os trabalhadores urbanos. Todavia a migração em massa dos trabalhadores rurais chamou a atenção para necessidade de protegê-los. A primeira iniciativa oficial nesse sentido ocorreu em 1971, com a Lei Complementar 11 de 25/05/71 (Pró-Rural), mas mesmo assim impunha um tratamento desigual ao trabalhador rural. Desse modo, o ideário da Universalidade, não estava, de plano, afirmado. Marco André Ramos Vieira 32 assim se expressa em relação a este princípio: “[...] procura-se, com isso, a não variação dos benefícios, pela não distinção de valores entre os benefícios conferidos às populações urbanas e rurais”. Sérgio Pinto Martins, afirma que deveria ainda haver a uniformidade e a equivalência dos benefícios e serviços em todo o sistema, inclusive para os servidores civis, militares e congressistas 33. É importante analisarmos, que também, há, aqui, em relação a este princípio, dois enfoques que precisam ser muito bem esclarecidos: o da uniformidade e o da equivalência. Segundo Nair Lemos Gonçalves 34, a uniformidade é denominada igualdade, na qual os benefícios são concedidos segundo uma taxa uniforme e que corresponda ao “mínimo nacional que as exigências da vida interponham e as condições da economia permitam”. A uniformidade aqui vislumbrada significa identidade, ou seja, existirão benefícios idênticos para toda população, seja ela urbana ou rural. Segundo Mirian Vasconcelos Fiaux Horvath 35, a uniformidade diz respeito aos riscos e contingências sociais que serão cobertas. Vale lembrar que o valor da dignidade humana, previsto no artigo 1º da CF e representado diretamente no Sistema de Seguridade Social pelo princípio da universalidade de atendimento, tem como único requisito para proteção social a condição de ser humano, não havendo qualquer relevância se este é trabalhador urbano ou rural. Há de se ressaltar ainda, que como vivemos num Estado Democrático, onde se garante Seguridade Social, a legislação preferiu utilizar a expressão “populações urbanas e rurais” e não mais “trabalhadores urbanos e rurais”. Equivalência, por seu turno, significa ‘de igual valor’, ou seja, os benefícios não serão distintos entre as populações protegidas, em se tratando do seu aspecto pecuniário ou com relação ao atendimento dos serviços (não rigorosamente iguais, porém, equivalentes, se considerados o tempo de contribuição e elementos de cálculo). O Princípio em análise, também determina a equivalência entre benefícios e serviços. No entanto, mesmo assim, a legislação infraconstitucional diferenciava o grau de eficácia dos benefícios e dos serviços prestados a estas populações. Enquanto os benefícios, uma vez 32 VIEIRA, Marco André Ramos. Manual de Direito Previdenciário, Rio de Janeiro, Impetus, 2003. MARTINS, Sergio Pinto. Direito da Seguridade Social, p.75. 34 GONÇALVES, Nair Lemos. Novo Benefício da Previdência Social, p. 49. 35 HORVATH, Mirian Vasconcelos Fiaux. Auxílio Reclusão, p. 38. 33 preenchidos os requisitos legais, são exigíveis compulsoriamente pelo interessado, os serviços somente não poderiam ser reclamados se o órgão previdenciário não possuísse recursos suficientes para a respectiva cobertura. A lei nº 6.439/77 (Art. 6º, § 1º) que fundamentava essa distinção foi revogada. 5.3 Seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e dos serviços. O Princípio da seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços, como todos os outros princípios até agora analisados, tem a finalidade de concretizar a aplicação do Princípio Fundamental da Isonomia, previsto no artigo 5º caput da Constituição Federal, adaptando “o plano de proteção a variáveis situações de fato” 36. Como já demonstrado, um dos valores informadores dos Princípios da Seguridade Social é a justiça social. Desse modo, deve-se garantir, com efetividade, que os benefícios sejam concedidos primeiro aos mais carentes e que estes benefícios sejam adequados para suprir certas situações em que se encontram os necessitados, de modo a poder afastar, toda e qualquer situação que, porventura, venha gerar necessidade. Através da aplicação do Princípio da Seletividade e Distributividade na prestação dos benefícios e dos serviços, é possível ao Estado prestar a proteção social com eficiência, assegurando um equilíbrio social, diminuindo as desigualdades, cumprindo, enfim, os objetivos fundamentais a que se propôs e que estão previstos no artigo 3º, I, II e III da Constituição Federal 37. Martins 38afirma que a seleção, deve ainda ser feita, levando-se em consideração as possibilidades econômico-financeiras do sistema de Seguridade Social. Mirian Horvath 39 afirma que a diretriz da seletividade permite a realização, de legítima estimativa acerca do tipo de prestações que, em conjunto, concretizem as finalidades da ordem social. Aqui, o que se não se pode pensar é que há incompatibilidade com o princípio da universalidade da cobertura, pois, deve-se entender que, na verdade, a seletividade deve ser entendida como adaptação à busca da universalidade, na medida em que deve ser observada na montagem e evolução do sistema de seguridade social a capacidade econômica do Estado. Portanto, conclui a autora supracitada que a seletividade consiste na eleição dos riscos e contingências sociais a serem objeto de proteção pela seguridade social. Para Balera 40, a seletividade consiste em estimar “aqueles tipos de prestações que, em conjunto, concretizem as finalidades da Ordem Social, a fim de fixar-lhes o rol na norma jurídica”. 36 Wagner Balera. O Sistema de Seguridade Social, p.23. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; 38 MARTINS, Sergio Pinto. Direito da Seguridade Social, p. 76. 39 HORVATH, Mirian V. F. Auxílio Reclusão, p.38. 40 BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social, p. 19. 37 A distributividade, por sua vez, determina que uma vez realizada a estimativa, “faculta a escolha, pelo legislador, de prestações que - sendo direito comum a todas as pessoas – contemplam de modo mais abrangente os que se encontrem em maior estado de necessidade” 41. Assim, consiste num verdadeiro estabelecimento de critérios para o acesso ao sistema, visando alcançar um maior número de pessoas possível, em nome da ampla cobertura. Esse princípio é dirigido especificamente ao legislador ordinário que deve, por sua vez, eleger critérios que abarquem um maior número de beneficiários do sistema e ainda mais, que alcance, verdadeiramente, aqueles que se encontrem em situação de necessidade, necessitando, pois, de ampla proteção social. Aqui, é dever do legislador analisar o fato de que nem todos as pessoas se encontram envolvidas em uma mesma situação e possuem as mesmas necessidades. E, por isso mesmo é que deve ele atender aqueles que precisem, com mais urgência, do amparo social. Dessa maneira, cada indivíduo será atendido na proporção de sua necessidade. Mirian Horvath encerra sua exposição sobre este princípio escrevendo: “[...] podemos resumir dizendo que este princípio propicia ao legislador a possibilidade de verificar onde estão as maiores deficiências sociais em relação à seguridade social, priorizando as que considera de maior relevância dentro do contexto social”. 42 No tocante a distributividade, o professor Wagner Balera 43 faz uma distinção entre benefícios e serviços. Enquanto os benefícios são fruíveis individualmente pelos respectivos titulares, impedindo que sejam prestados de forma genérica para toda coletividade, os serviços além do aspecto individual possui também o coletivo, atendendo as necessidades coletivas, sendo muitas vezes decorrentes de políticas sociais e campanhas coletivas. 5.4 Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios O Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios tem relação direta com a garantia individual e fundamental do direito adquirido, expresso no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, podendo ser considerada mais uma garantia do que, na verdade, um objetivo. Além do direito adquirido previsto no artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal, a norma constitucional expressa no artigo 7º caput, impede que ocorra qualquer retrocesso nas conquistas sociais, ou seja, toda e qualquer alteração social somente será válida se for para beneficiar o ser humano. Daí, alguns autores afirmam que ele trata da aplicação do princípio da suficiência ou efetividade, na medida em que prega que o valor dos benefícios não deve ser reduzido, sob pena de a proteção social deixar de ser eficaz e do beneficiário voltar a cair em estado de necessidade. Diante disso, o que vemos aqui é a preocupação do legislador com a prestação pecuniária previdenciária, tendo em vista o atendimento às suas necessidades básicas. Ora, outrora, 41 HORVATH, Mirian V. F. Auxílio Reclusão, p. 19. HORVATH, M. V. F. Auxílio Reclusão, p. 39/40. 43 BALERA, Wagner. A Seguridade Social na Constituição de 1988, p. 39. 42 os benefícios previdenciários eram vitimados por dois grandes problemas: o primeiro era a inexistência de correção monetária em relação aos salários de contribuição, fato que comprometia sobremaneira a concessão dos benefícios e ainda, a grande sistemática de reajustes que assolava a nossa realidade econômica, o que fazia reduzir, de maneira sensível, o poder de compra do trabalhador. Assim sendo, a Carta Magna resolveu consagrar a irredutibilidade, elevando-a ao grau de princípio de ordem constitucional consagrado no art. 194, §Único, IV. Desse modo, todas as vezes que a subsistência dos beneficiários, quando acometidos por um risco social passar a depender de uma prestação previdenciária substitutiva, torna-se imperioso que a mudança do cenário econômico nacional, sobretudo os efeitos corrosivos da inflação, não acabe comprometendo irremediavelmente a subsistência dos beneficiários. Daí constata-se que esse princípio, é, na verdade, um mecanismo imprescindível para assegurar o efetivo funcionamento de um sistema previdenciário. Isso porque ele impõe a revisão periódica das prestações pela aplicação de reajustes, para que assim seja mantido o poder aquisitivo da prestação pecuniária, promovendo a efetividade do seu caráter substitutivo, de forma a permitir a continuidade dos meios de sobrevivência do beneficiário. Caso contrário, como menciona Venturi 44, os benefícios que o sistema acreditava ter concedido, para fazer frente a conseqüências duradouras, mostrar-se-iam ilusórios perante o aumento do custo de vida. É, por isso considerado por alguns autores, como um princípio que visa garantir a segurança jurídica dos beneficiários, em virtude das perdas monetárias. Se não fosse essa garantia, em um curto espaço de tempo, dependendo das taxas inflacionárias, o poder aquisitivo dos beneficiários seria comprometido drasticamente. O artigo 201, § 4º da Constituição Federal, por sua vez, impõe o caráter normativo ao Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios, ao estabelecer expressamente que “é assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei”. A justiça social perseguida pela Seguridade Social é a justiça social substancial, ou seja, todas as normas de Seguridade Social devem garantir alterações fáticas que efetivem os valores que pretendem preservar. Sendo assim, o presente princípio impõe ao legislador que “estabeleça o adequado critério de aferição do poder aquisitivo do beneficio 45”, isto é, o legislador deve garantir não só a irredutibilidade em sua expressão quantitativa (valor monetário) como também em sua expressão qualitativa (valor real), em outras palavras, a irredutibilidade deve ser substancial e não formal. Essa preocupação se tornou latente quando da edição do artigo 58 do ADCT, que prescreve: [...] os benefícios de prestação continuada, mantidos pela previdência social na data da promulgação da Constituição, terão seus valores revistos, a fim de que seja restabelecido o poder aquisitivo, expresso em número de salários-mínimos, que tinham na data da sua concessão, obedecendo-se a 44 45 VENTURI, Augusto. Los Fundamentos Científicos de la Seguridad Social, p. 212. BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social, p.19. esse critério de atualização até a implementação do plano de custeio e benefícios referidos no artigo seguinte. Vale ressaltar que os tribunais não vêm enfrentando a questão dessa forma, admitindo apenas a irredutibilidade do valor nominal e não real o que demonstra patente contrariedade à norma constitucional. Sérgio Pinto Martins 46 coaduna com o posicionamento dos tribunais quando afirma: Nota-se que a irredutibilidade do valor dos benefícios é a nominal e não a real, dependendo de lei ordinária. Caso a lei ordinária não adote métodos ou índices para se verificar a variação real da inflação, haverá perdas ao segurado, mas esse critério não poderá ser acoimado de inconstitucional. Odonel U. Gonçalves 47 dispõe que: [...] a irredutibilidade dos benefícios é produto do público aviltamento dos valores das aposentadorias e pensões pagas pelo órgão previdenciário. A renda inicial dos benefícios pagos era reduzida no momento de seu recebimento visto que calculada com base numa média dos salários-decontribuição. Por outro lado, os valores encontrados não eram atualizados, tendo em vista a inflação reinante. Conseqüência: com o passar dos tempos, valores pagos pelo órgão previdenciário tornaram-se ínfimos. Daí o porquê da irredutibilidade. Os benefícios previdenciários, conforme lição de Miguel Horvath Júnior 48, são dívida de valor, ou seja, são dívida em dinheiro, mas não de dinheiro, o qual apenas tem o sentido de medir o valor objeto da prestação. Citando Cândido Rangel Dinamarco, Horvath 49 continua: [...] quando se trata de compor ou recompor uma situação patrimonial com algum bem que não é dinheiro, apenas empregando-se este como instrumento para a composição ou recomposição, diz-se que a dívida é de valor. O quid devido é outro, não a pecúnia. Hoje em dia, é bom lembrar, não é mais possível se atrelar o valor dos benefícios previdenciários ao salário mínimo, já que a sistemática adotada pelo legislador constitucional abomina esse tipo de entrelaçamento através da disposição do artigo 7º, IV, CF/88. 46 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social, p. 79. GONÇALVES, Odonel U. Direito Previdenciário para concursos, p. 22. 48 HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p.72. 49 HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p.72. 47 Por isso mesmo, hoje é delegada ao legislador ordinário a árdua tarefa da escolha de um índice inflacionário para ser utilizado na atualização dos benefícios de forma a garantir, de maneira irremediável, o seu real poder de compra. Esses índices de reajuste periódicos, garantidos pela Constituição, são determinados por decreto. Também é importante frisarmos aqui, que a irredutibilidade não impede que sejam tomadas medidas para se incrementar os benefícios, nas hipóteses em que haja também crescimento econômico. Isso ocorre, senão, em nome dos valores da justiça e bem-estar sociais. Com efeito, se há crescimento econômico, com o desenvolvimento da economia, os benefícios também devem acompanhar o referido desenvolvimento, sob pena de estar-se violando tanto o Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios em sua expressão qualitativa, como adiante se verá, a regra da contrapartida. 5.5 Princípio da Equidade na Forma de Participação no Custeio Este princípio também está relacionado com o Princípio da Isonomia previsto constitucionalmente, uma vez que pretende igualar pessoas de idênticas condições econômicas no momento em que são chamadas para custear a Seguridade Social. Para Sérgio Pinto Martins, este princípio não passa de um desdobramento do princípio da igualdade 50. Como se sabe, eqüidade é um critério de justiça e pode ser resumido na seguinte idéia: eqüidade é a aplicação da justiça ao caso concreto. A junção do Princípio da Isonomia e do conceito jurídico de eqüidade, nas palavras do professor Wagner Balera, constitui o “ponto de equilíbrio entre a capacidade econômica do contribuinte e o esforço financeiro que dele será cobrado para a constituição do fundo comum de proteção social”. Desse modo, o legislador ordinário, destinatário do princípio, ao criar normas que imponham contribuições, deve levar em consideração a capacidade econômica do contribuinte 51 ou seja, maior capacidade econômica, maior contribuição, havendo dessa forma, uma concreta distribuição de renda. Seria, na verdade, a determinação de que apenas aqueles que se encontram em iguais condições contributivas é que terão de contribuir da mesma forma. O objetivo final do Princípio da Equidade na forma de participação no custeio é “reduzir as desigualdades, mediante a prudente e adequada repartição dos encargos sociais 52”. Por isso mesmo, ele suporta uma progressividade no tocante as alíquotas de contribuição, ou seja, essas variam entre 7 a 11% sobre a remuneração do trabalhador. É como ressalta Machado 53: “Na verdade a lei sempre discrimina. Seu papel fundamental consiste precisamente na disciplina das desigualdades naturais existentes entre as pessoas. A lei, assim, forçosamente discrimina”. 50 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social, p.77. Este princípio guarda identidade com o princípio da capacidade contributiva de que trata o artigo 145, § 1º da Constituição Federal. 52 BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social, p. 20. 53 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, p. 44. 51 Segundo Sette 54, o que não se pode admitir são discriminações infundadas, sem pertinência. A atribuição de critérios desiguais para pessoas que se encontram em situações jurídicas diferentes, consiste em um dos mais importantes papéis a serem realizados no Estado de Direito Democrático, com vistas à diminuição das desigualdades sociais e à garantia e implementação do princípio da vida com dignidade. Desse modo, assevera Martins 55, que o trabalhador não pode contribuir da mesma maneira que a empresa, pois não têm as mesmas condições financeiras. Na medida, porém, que a Constituição exige que no custeio haja participação eqüitativa, isto é, como expressão da justiça distributiva, obviamente que os beneficiários da Assistência Social devem ficar afastados do custeio, justamente porque é a sua condição de necessidade que os habilita à condição de beneficiários. Por isso, esse princípio é visto como o princípio norteador do Sistema de Seguridade Social e como um agente operante redistribuidor de renda. Uendel Domingues Ugatti 56 esclarece: 26. O princípio da equidade no custeio da seguridade social não se limita tão somente à observância do princípio tributário da capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária, visto que a equidade corresponde à busca de justiça no custeio da seguridade social, privilegiando o primado do trabalho, o bem-estar e justiça social. 27. O princípio da equidade na forma de participação do custeio possui um plus especializante em face do princípio da capacidade contributiva, obrigando o legislador ordinário, no exercício do seu mister, a considerar outros fatores da atividade econômica da empresa – como condições de trabalho, número de trabalhadores, benefícios sociais concedidos pelo tomador aos trabalhadores etc. – quando da instituição das contribuições para o custeio da seguridade social, verbi gratia, com a instituição de alíquotas diferenciadas, nos termos do art. 195, § 9º da Constituição. Assim, podemos concluir que, agindo por meio de tratamento desigual, procura-se alcançar a justiça. 5.6 Princípio da Diversidade da Base de Financiamento Funda-se o presente Princípio na idéia de solidariedade, elemento fundamental de qualquer proposta de proteção social. Ou se conta com a ajuda de toda sociedade para preservar a dignidade de todos os seres humanos, ou voltamos para lei da selva. É, então, por meio desse princípio que se busca garantir que a Seguridade Social não seja financiada, apenas, por um grupo de contribuintes, mas que possua uma base ampla. Implica, pois, na segurança do próprio sistema, pois, quanto mais ampla a base, menor a possibilidade de o sistema ficar vulnerável a situações que possam prejudicar a uma categoria econômica. 54 SETTE, André Luis Menezes Azevedo. Direito Previdenciário Avançado, p. 127. MARTINS, Sergio Pinto. Direito da Seguridade Social, p. 20. 56 UGATTI, Uendel Domingues. O princípio Constitucional da Contrapartida na Seguridade Social, p. 107/108. 55 Desse modo, chamando toda sociedade para contribuir com a Seguridade Social este princípio impõe, desde a Constituição de 1934, a contribuição tríplice, ou seja, do empregado, empregador e do Estado. Consiste, pois, segundo lições de Balera 57, numa redistribuição interna de recursos que, como vasos comunicantes, partem de um dos setores da sociedade (o menos carente) para o outro (o mais carente). Nesse sentido o artigo 195 e incisos da Constituição Federal concretiza o Princípio da diversidade da base de financiamento, ora em estudo. Todavia, o professor Balera 58 ressalta ainda, um aspecto muito importante da previsão constitucional de hipóteses de incidência das contribuições, lecionando que a expressa previsão contida nos incisos do artigo 195 pode impedir a necessária expansão do Sistema de Seguridade Social. Contudo, o próprio indica a solução, ao informar que os artigos 195, § 4º c/c 154, I, da CF/88 permitem a criação de novas contribuições sociais, utilizando como hipóteses “outros sinais de riqueza que poderão ensejar a cobrança de novas contribuições sociais, a fim de que fique garantida a manutenção ou expansão da seguridade social”. Isso posto, vislumbra a existência e a possibilidade de utilização de um mecanismo de emergência que reza que a lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou a expansão da Seguridade Social. O legislador, porém, ao criar essa possibilidade, atrelou a uma exigência: vinculação dessa criação de novas contribuições previdenciárias à instituição das mesmas através de lei complementar, sem, todavia, contar com a mesma base de cálculo ou fato gerador de tributos já existentes. A diversidade da base de financiamento possui dois elementos constitutivos que impõe a diversificação das contribuições em duas esferas. O elemento objetivo impõe a diversificação dos fatos que gerarão contribuições sociais e o elemento subjetivo exige consideração das pessoas naturais e jurídicas que verterão contribuições. 5.7 Princípio do Caráter Democrático e Descentralizado da Administração, Mediante Gestão Quadripartite, com Participação dos Trabalhadores, Empregadores, Aposentados e do Governo nos Órgãos Colegiados Além do Preâmbulo, o próprio artigo 1º da Constituição Federal consagra a posição do Estado Brasileiro em Estado Democrático de Direito, disseminando por todo ordenamento jurídico a democracia. Sendo Princípio Fundamental, como já visto, irradia-se por todo ordenamento jurídico, inclusive na esfera da Seguridade Social, impondo constitucionalmente o caráter democrático na Seguridade Social. A solidariedade é o valor fundamental da Seguridade Social e inclusive está expresso no artigo 195 da Constituição Federal e a democratização da administração aparece justamente como forma de garantir que a solidariedade venha a concretizar-se e gerar alterações no mundo fático. O professor Wagner Balera, em sua obra “A Seguridade Social na Constituição de 1988” muito bem demonstra a relação entre o valor da solidariedade e a democracia: 57 BALERA, Wagner. Noções Preliminares de Direito Previdenciário, p. 120. BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social, p. 20. 58 [...] é curial que sejam mais solidários os que enfrentam os mesmos problemas e dificuldades porque mais perto sentem os seus efeitos. Por isso, são os próprios interessados chamados a participar da discussão de seus problemas e a propor soluções adequadas. Para Mirian Horvath 59, a participação de toda a sociedade leva a uma aproximação maior entre o governo e a comunidade. Assim, a discussão das necessidades sociais sai do campo abstrato. Ninguém melhor que o representante da comunidade, que vive na comunidade, para dizer quais são as necessidades concretas, quais são os reais anseios que devem ser atendidos pelo Poder Público. Para efetivo cumprimento do Princípio do caráter democrático, o constituinte determina que a administração seja feita de maneira descentralizada, com a gestão quadripartite, com a participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. Por isso, diz-se que a composição dos órgãos deve ser de forma igual para todos os membros, ou seja, devem participar da gestão do sistema tanto os representantes dos trabalhadores, quanto dos empregadores, mas também, dos aposentados e do Estado, de maneira igualitária. Falando em descentralização administrativa, esta consiste na transferência de competência de uma pessoa jurídica de direito público interno para outra pessoa jurídica. Em se tratando da Seguridade Social, sabe-se que a sua gestão também deve ser descentralizada, e conta com a efetiva a participação democrática, “transferindo para periferia do sistema o poder de decisão”. Transferir o poder de decisão, nas palavras do mestre Wagner Balera 60 significa adjudicar “a execução do plano de proteção, que consiste na prestação dos benefícios e dos serviços, na implementação do programas de saúde e de assistência social e dos projetos de enfrentamento da pobreza, aos órgãos locais”. Assim, o caráter democrático previsto no Princípio em estudo, estará garantido com a integração da descentralização administrativa e da participação da comunidade, ressaltando, que a participação da comunidade somente poderá ser efetiva, justamente com a descentralização 61. Em tempo: A descentralização administrativa, combinada com a participação da comunidade, são instrumentos que se integram. A primeira situa a estrutura burocrática no seu verdadeiro papel de agente da proteção, enquanto que a segunda permite a elaboração de esquemas próprios de 59 HORVATH, Mirian V. F. Auxílio Reclusão, p. 45. Sistema de Seguridade Social. 61 “Anexo ao objetivo da democratização encontra-se outro que lhe é complementar: o da descentralização. Enquanto existir uma estrutura centralizada e burocrática, na qual os indivíduos não consigam compreender os caminhos a serem percorridos para a tomada das decisões, a participação estará, ipso facto, tolhida.” Wagner Balera in A Seguridade Social na Constituição de 1988, p. 46. 60 avaliação do desempenho dessa estrutura, no cumprimento dos objetivos maiores que o sistema abraça 62. 5.8 A “Regra da Contrapartida” A “regra da contrapartida”, denominação fornecida pelo Professor Wagner Balera, está prevista no artigo 195, § 5º da Constituição Federal, nos seguintes termos: “§ 5º Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”. Esse princípio foi criado em razão de, no passado, ter havido inúmeros benefícios concedidos sem a indicação das suas fontes de custeio, comprometendo o orçamento público para os exercícios seguintes. No âmbito dos regimes públicos de previdência, por exemplo, as distorções foram enormes, gerando déficits elevados, eis que eram garantidas aposentadorias e pensões sem custeio ou com custeio insuficiente, comprometendo o orçamento da União e, principalmente, dos Estados e Municípios. Sérgio Pinto Martins 63 e outros doutrinadores denominam esse instituto (princípio) de “preexistência do custeio em relação aos benefícios e serviços”. Controvérsias há, em torno do momento no qual se deu a origem desse princípio. Para Miguel H. Júnior 64, ele surgiu pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico quando da edição da Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3.860/1960), que previa em seu artigo 158: “Art. 158 – Nenhum outro benefício de caráter assistencial ou previdenciário, se não previsto nesta lei, poderá ser criado pelos poderes competentes sem que, em contrapartida, seja estabelecida a respectiva receita de cobertura”. Para Sérgio Pinto Martins, este princípio surge desde o advento da Emenda Constitucional nº 11 de 1965, e foi responsável por acrescentar o § 2º ao artigo 157 da Constituição de 1946, com a seguinte redação: “nenhuma prestação de serviço de caráter assistencial ou de benefício compreendido na Previdência Social, poderá ser criada, majorada ou estendida, sem a correspondente fonte de custeio total”. É importante frisar aqui, que o supra mencionado dispositivo não só dispunha a respeito do benefício da previdência social, mas também, do serviço de caráter assistencial. Esse princípio, como é possível notar, ficou sendo repetido nas constituições que vieram surgindo no tempo, chegando até a aparecer expressamente na atual Carta Constitucional. O constituinte não indicou a “regra da contrapartida” 65 como Princípio da Seguridade Social, havendo certa hesitação se a referida determinação poderia ser considerada Princípio. 62 BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social, p. 47. MARTINS, Sergio Pinto. Direito da Seguridade Social, p. 80. 64 HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 81. 65 O professor Eros Piceli defende a idéia de que existe um princípio constitucional específico da preexistência de custeio, cujo núcleo é evidenciar que em matéria de seguridade deve ser aplicada a lei da época do fato e não a benéfica, sob pena de determinar-se pagamento sem a correspondente fonte de custeio. Ob. cit. p. 18 63 Horvath Júnior 66 explicando esse aspecto escreve: Os princípios constitucionais que regem a Seguridade Social estão previstos no parágrafo único do artigo 194 da Constituição Federal. Neste rol não se encontra a previsão da contrapartida, razão pela qual não é qualificada como princípio, mas sim, como regra, embora tenha importância capital para a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário. O Professor Wagner Balera 67 explica a “regra da contrapartida” afirmando que se refere à intelecção da relação entre contribuição e prestação, funcionando como “limitação constitucional específica ao poder de criar contribuições para a seguridade social”, tornando compulsório o equilíbrio entre contribuições e prestações. Aqui, é importante salientar que essa exigência do apontamento das fontes e custeio, como pressuposto para a criação ou majoração de benefícios não implica que necessariamente dependam da instituição de novas contribuições. Na hipótese de as fontes de custeio já existentes apresentarem superávit que suportem a ampliação das coberturas e serviços, bastará que se aponte concretamente tal crescimento da arrecadação como fonte de custeio. Devemos ter cuidado, por isso, com a leitura a contrario sensu que se tem feito do artigo 195, § 5º, da CF/88. Isso porque, como demonstrado anteriormente, não se pode ter a criação, a majoração ou a extensão de benefício ou serviço da seguridade social sem a correspondente fonte de custeio total, como também não se pode majorar as fontes de custeio sem que se tenha correspondência na criação, majoração ou extensão de benefícios e serviços. O que não se admite, pois, é o aumento do custeio sem que se guarde necessariamente, a finalidade justificadora do exercício da competência tributária, qual seja, a aplicação dos recursos na Seguridade Social. Portanto, a instituição de nova fonte de custeio não pode ser dissociada do custeio de benefícios já existentes ou a serem, de pronto, implantados, pois, do contrário, a finalidade que dá suporte constitucional estaria ausente. Nesse sentido, assevera Marco Aurélio Greco 68: “[...] assim como não cabe a criação de um benefício sem a respectiva fonte de custeio, também não tem sentido existirem fontes que não sejam para atender a benefícios existentes”. Como demonstrado no início do presente trabalho, os Princípios nascem de valores que decorrem de situações da vida (fatos subjacentes), ou seja, para se identificar um Princípio deve identificar um fato concreto e apurar se a esse fato é conferido valor. Infelizmente, tem sido comum na história do Brasil o surgimento de políticos e governantes que se utilizam da miséria alheia como meio de promoção política e pessoal, criando políticas sociais mirabolantes, prometendo acabar com a pobreza, necessidades sociais, etc. No entanto, quando são implementadas, tais medidas, elas não “duram”, e tão logo alcançados os reais objetivos que as fizeram surgir, desaparecem e podem gerar além do comprometimento real das contas públicas, a desconfiança social dos cidadãos, o que é muito mais grave. 66 HORVATH JUNIOR, Miguel. Direito Previdenciário, p. 82. BALERA, Wagner. Curso de Direito Previdenciário, p. 43. 68 GRECO, Marco Aurélio. Contribuições (uma figura sui generis), p. 143. 67 O seguro privado e também o social somente serão capazes de funcionar se passarem para toda sociedade uma imagem de confiança, veja, por exemplo, o descrédito da Previdência Social no Brasil, que é, sem dúvida, um dos fatores agravantes da sua precariedade. Sendo assim, a finalidade precípua da “regra da contrapartida” é evitar a criação de prestações que o Estado efetivamente não consiga cumprir, evitar a institucionalização do “calote governamental”. Os valores decorrentes desse fato subjacente seriam preservar o poder do Estado (pois o não cumprimento institucionalizado das obrigações sociais seria um fato de desestabilização) e, obviamente, honrando o Estado com as prestações sociais, garantir a dignidade da pessoa humana, o bem-estar e justiças sociais. Aliás, a palavra justiça no âmbito da Seguridade Social, como já falado, deve ser interpretada na sua concepção distributiva e substancial. Somente haverá justiça social se efetivamente houver a devida prestação, a simples previsão legal, sem efetivo pagamento “não é justiça, senão injustiça manifesta 69”. Portanto, pelas razões demonstradas, defendemos que apesar de não estar indicada como Princípio, a “regra da contrapartida” deve ser vista e utilizada como tal, ou seja, existe um Princípio da contrapartida. 69 Rui Barbosa, Oração aos moços.