responsabilidade civil e
direito do consumidor
Produzido por Carlos Affonso Pereira de Souza e Rafael Viola
1ª edição
ROTEIRO De CURSO
2008.2
Sumário
Responsabilidade civil e direito do consumidor
Método de Avaliação....................................................................................................................................................................3
Programa da Disciplina..............................................................................................................................................................6
Roteiro das Aulas........................................................................................................................................................................7
Aula 1. Estrutura e Funções da Responsabilidade Civil................................................................... 7
Aula 2. Dano Material.................................................................................................................. 14
Aula 3. Dano Moral...................................................................................................................... 18
Aula 4. Culpa e Responsabilidade subjetiva................................................................................... 24
Aula 5. Risco e Responsabilidade objetiva..................................................................................... 30
Aula 6. Nexo causal....................................................................................................................... 35
Aula 7. Excludentes de responsabilidade civil I.............................................................................. 40
Aula 8. Excludentes de responsabilidade civil II............................................................................ 45
Aula 9. Responsabilidade Civil por ato de terceiro......................................................................... 49
Aula 10. Abuso do Direito............................................................................................................ 54
Aula 11. Liquidação de Danos...................................................................................................... 66
Aula 12. Responsabilidades Civil dos Provedores de serviços na Internet....................................... 74
responsabilidade civil e direito do consumidor
Método de Avaliação
O método de avaliação do desempenho dos alunos na disciplina Responsabilidade Civil e Direito do Consumidor está dividido em dois blocos temáticos, abaixo
detalhados.
Responsabilidade Civil
O bloco de responsabilidade civil ocupa a primeira metade do curso. A avaliação de desempenho desse bloco será realizada através do somatório de duas notas,
correspondentes às seguintes atividades: (i) uma prova escrita; e (ii) uma nota de
participação.
A primeira prova escrita será conferida nota de 0 (zero) a 9 (nove). O último
01 (hum) ponto que completa a nota desse primeiro bloco temático corresponde à
nota de participação.
A prova escrita de responsabilidade civil será marcada previamente pelo professor, preferencialmente no horário de aula. Ela será realizada, em princípio, no período compreendido entre as aulas nº 12 a 13 do curso, de forma a marcar a passagem
do primeiro para o segundso bloco temático.
O aluno poderá consultar a legislação pertinente para elaborar as suas respostas.
Salvo alguma necessidade especial, a Constituição Federal e o Código Civil, com
sua legislação complementar, deverão ser suficientes para que o aluno possa realizar a prova. Salvo orientação distinta por parte do professor, não será permitida a
consulta à legislação comentada durante a prova. A mesma proibição vale para os
códigos anotados cujas anotações transcendam a simples remissão a outros dispositivos legais, como ocorre na obra “Código Civil e Legislação em Vigor”, elaborado
por Theotonio Negrão.
A prova escrita de responsabilidade civil será composta de pelo menos duas questões, sendo requerido ao aluno que demonstre domínio sobre os conceitos estruturais da disciplina e facilidade para aplicá-los a situações reais ou hipotéticas, quando
confrontado com um caso concreto.
A nota de participação, por sua vez, é composta de duas avaliações. A primeira metade
da nota de participação (0,5 ponto) corresponde à efetiva participação do aluno durante
o curso. A outra metade da nota de participação (0,5 ponto) se refere à(s) resposta(s)
apresentada(s) pelo aluno à(s) pergunta(s) dirigida(s) ao mesmo em sala de aula sobre os
textos de leitura obrigatória das respectivas aulas e/ou a sua participação na WikiDireito,
seja inserindo ou alterando o conteúdo da respectiva matéria lecionada.
A “efetiva participação” aqui avaliada não corresponde à quantidade de intervenções feitas pelo aluno em sala de aula, mas sim à qualidade de eventuais intervenções, o interesse demonstrado pela matéria, o questionamento dos conhecimentos
apresentados pelo professor, e a presença constante em sala de aula. Esses são os
principais fatores que determinam essa primeira metade da nota de participação.
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O aluno que atender integralmente a esses requisitos terá 0,5 ponto na nota de
participação.
A segunda metade da nota de participação consiste na participação do aluno na
WikiDireito e/ou na(s) resposta(s) apresentada(s) pelo aluno quando indagado pelo
professor sobre o texto de leitura obrigatória para a aula. Toda aula terá pelo menos
um texto de leitura obrigatória. É certo que os sentidos são traiçoeiros, já dizia Descartes, mas o texto de leitura obrigatória é exatamente tudo isso que o nome indica:
a sua leitura é obrigatória.
Dessa forma, o professor poderá perguntar para o aluno durante a aula alguma
questão relacionada ao texto. O professor deverá considerar que o aluno leu o texto,
uma vez que a sua leitura está indicada no material didático. Essa medida visa a
solucionar o recurso por vezes utilizado de apenas ler o texto correspondente à certa
aula depois da mesma ser lecionada pelo professor. Pode parecer para o aluno que
assim procedendo ele terá uma compreensão melhor do texto. Todavia, no método
participativo, um aluno que não leu o texto pertinente à aula é um aluno que poderá ter dificuldades em participar efetivamente, seja perguntando, seja simplesmente
compreendendo o conteúdo da aula.
Adicionalmente, é importante lembrar que a aula lecionada pelo professor reflete
a leitura feita pelo mesmo do texto recomendado. Ainda que a leitura do professor
esteja apoiada em estudos mais aprofundados, nada impede que o aluno, ao tomar
contato com o texto antes da aula, perceba outros pontos, tenha outras dúvidas ou
perplexidades que o próprio professor não teve quando tomou contato com o texto.
O intercâmbio de experiências de leitura é uma das características mais importantes
dessa disciplina, pois auxilia o professor a identificar e suprimir as eventuais dificuldades de leitura encontradas pelos alunos. Sendo assim, o aluno que não lê o texto
antes da realização da aula fica – voluntariamente – alijado dessa particularidade do
estudo jurídico. E, em nota de teor mais prático, ainda corre o risco de perder meio
ponto na avaliação.
O aluno mais atento perceberá que o texto do material de Responsabilidade Civil
não possui a quantidade de páginas constante de outros materiais disponibilizados
durante o curso de Direito Civil como Direito das Pessoas e dos Bens e Teoria Geral
das Obrigações e dos Contratos. Antes de refletir uma provável escassez de tempo para
escrever páginas e mais páginas sobre o assunto, ele representa uma característica
desse bloco temático, que é a problematização da responsabilidade civil através do
estudo de casos e da leitura e crítica à diversas decisões judiciais proferidas sobre o
tema. Espera-se que mais essa característica estimule o aluno a ler os materiais selecionados para a aula, não tornando o material didático um inadequado substituto
dos textos de leitura obrigatória.
Ao desempenho do aluno na(s) resposta(s) da(s) questão(ões) formuladas e/ou
sua participação na WikiDireito, será conferido até 0,5 ponto, compondo assim até
01 (hum) ponto na nota de participação. Essa nota de participação complementa o
grau obtido na prova escrita. O somatório das notas obtidas na prova e na participação pode alcançar o total de 10 (dez) pontos para esse primeiro bloco temático.
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Direito do Consumidor
O bloco temático relativo à disciplina do Direito do Consumidor ocupa a segunda parte do curso. A avaliação desse bloco será realizada através do somatório de
quatro notas correspondentes às seguintes atividades: (I) ED - exercício em duplas
com consulta; (II) PP - prova parcial individual; (III) P - participação nas atividades; (IV) PF - prova final individual.
O exercício em dupla valerá de 0 (zero) a 2,0 (dois) pontos e será adicionado
com a prova parcial individual que valerá de 0 (zero) a 8,0 (oito). A participação
nas atividades valerá de 0 (zero) a 2 (dois) e será somada à prova final, valendo de 0
(zero) a 8,0 (oito). A média do aluno será obtida através da seguinte fórmula:
µ = [ED (2,0) + PP(8,0)] + [P (2,0) + PF (8,0)]
2
O aluno que obtiver nota inferior a 7,0 (sete) e superior ou igual a 4,0 (quatro)
pontos, deverá fazer uma prova final. O aluno que obtiver média inferior a 4,0
(quatro) pontos estará automaticamente reprovado da disciplina.
Para os alunos que fizerem a prova final a média de aprovação a ser alcançada é
de 6,0 (seis) pontos, a qual será obtida conforme a fórmula constante no Manual
do Aluno – Manual do Professor. Esta prova terá a metade das questões elaboradas
e corrigidas pelo Prof. Carlos Affonso e a outra metade elaborada e corrigida pela
profa. Daniela.
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responsabilidade civil e direito do consumidor
Programa da Disciplina
Responsabilidade Civil
Aula 1. As funções da responsabilidade civil.
Aula 2. Dano material.
Aula 3. Dano moral.
Aula 4. Culpa e responsabilidade subjetiva.
Aula 5. Risco e responsabilidade objetiva.
Aula 6. Nexo causal.
Aula 7. Excludentes da responsabilidade civil.
Aula 8. Excludentes da responsabilidade civil.
Aula 9. Responsabilidade civil por ato de terceiro.
Aula 10. Abuso do direito.
Aula 11. Liquidação de danos.
Aula 12. Responsabilidade civil dos provedores de serviços na Internet.
Prova escrita (N1)
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Roteiro das Aulas
Aula 1. Estrutura e Funções da Responsabilidade Civil
Leitura obrigatória
George Ripert. “A Responsabilidade dos Riscos”, in O Regimen Democrático e o
Direito Civil Moderno. São Paulo: Saraiva, 1937; pp. 327/368; e Maria Celina Bodin de Moraes. “A Constitucionalização do Direito Civil e seus efeitos
sobre a responsabilidade civil”, in Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel
Sarmento (orgs). A Constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 207; pp. 435/454.
Leituras complementares
Richard Posner. Economic Analysis of Law. Nova Iorque: Aspen, 1988; pp.
179/236. Hans Hattenhauer. Conceptos Fundamentales Del Derecho Civil.
Barcelona: Ariel, 1987; pp. 95/110. Carlos Alberto Bittar Filho. “A reparação
de danos como medida de maior alcance”, in Carlos Alberto Bittar e Carlos
Alberto Bittar Filho. Tutela dos Direitos da Personalidade e dos Direitos Autorais nas Atividades Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; pp.
32/39.
1. Roteiro de aula
A estrutura da responsabilidade civil
A responsabilidade civil é como a campainha de um alarme.1 Quando diversas
ações indenizatórias são propostas com a mesma finalidade, tendo por objeto o ressarcimento de danos provenientes de determinada atividade, percebe-se a necessidade de atuação do Direito para apaziguar essas relações sociais e evitar a perpetuação
de condutas ilícitas.
A atuação do homem em sociedade pressupõe a obediência a regras jurídicas, nas
quais estão dispostas as conseqüências atinentes às condutas adotadas. Na medida
em que um dano é causado a terceiro, o ordenamento jurídico disponibiliza os
meios para que a parte prejudicada busque o ressarcimento pela lesão sofrida.
Atualmente, têm-se reconhecido que a responsabilidade civil não deve permanecer atrelada apenas ao binômio dano-reparação, devendo o ordenamento jurídico
prever, além de formas de ressarcimento pelo prejuízo causado, mecanismos que
permitam à pessoa impedir que o dano venha se realizar. Nessa direção, pode-se
A metáfora é de autoria do
professor italiano Stefano Rodotà, em entrevista concedida à
Revista Trimestral de Direito Civil,
nº 11 (jul-set/2002); p. 288.
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mencionar a previsão da chamada tutela inibitória, no artigo 461 do Código de
Processo Civil.
De qualquer forma, o tema da responsabilidade civil remete aos estudos do momento patológico das relações jurídicas, ou seja, quando a conduta adotada por
uma pessoa gera um ato ilícito.
Toda vítima de um ato ilícito tem o direito de buscar a tutela jurisdicional com
vistas ao ressarcimento de seus prejuízos. Admitida essa premissa, nasce, então,
o direito de indenização pelos danos sofridos, junto ao correlato dever do agente
de reparar o prejuízo causado. Esse dever surge da necessidade de se devolver à
vítima as mesmas condições em que se encontrava antes, buscando, dessa forma,
restabelecer o status quo ante, de modo a minimizar o resultado do dano causado
sobre a vítima.
O Código Civil, em um título reservado à responsabilidade civil (Título IX),
dispõe, no seu art. 927, que “aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano
a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Conseqüentemente, para que se compreenda
o conceito de ato ilícito, faz-se necessário recorrer aos art. 186 e 187, do Código
Civil, que assim dispõem:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes.”
O ato ilícito pressupõe, portanto, uma conduta por parte de uma pessoa. Entende-se por conduta todo o comportamento humano adotado em virtude de uma
determinada situação. Dentro desse conceito estão inseridas as práticas comissivas
(realizadas através de uma ação) e omissivas (consubstanciadas pela abstenção do
agente). Portanto, a realização de um ato ilícito pode ter duas modalidades distintas:
comissiva ou omissiva.
Entende-se por ato ilícito comissivo aquele praticado através de uma ação humana pela qual direciona-se forças físicas ou intelectuais à realização de uma conduta.
Não se deve confundir prática comissiva com prática dolosa, pois a configuração do
dolo exige a caracterização da intenção do agente.
Ocorre ato ilícito omissivo quando o agente, tendo o dever legal de agir para
evitar o resultado, deixa de praticá-lo. Toda pessoa que assume a responsabilidade
de evitar um resultado, ou que tem, por lei, obrigação de cuidado ou vigilância, ou
com seu comportamento anterior criou o risco da ocorrência do resultado.
A responsabilidade civil decorrente de um ato ilícito depende, em regra, da reunião de três elementos: (i) a conduta culposa do agente; (ii) o nexo causal entre a
conduta do agente e o dano causado; e (iii) a ocorrência de dano.
O conceito de culpa aqui utilizado é bastante abrangente, alcançando, para fins
de responsabilização civil, todo comportamento contrário ao Direito, seja intencional
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(dolo), ou não (culpa). Valendo-se dos conceitos lançados pelo Código Penal, é importante observar a redação do seu art. 18, que estabelece o seguinte:
“Art. 18. Diz-se crime:
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência
ou imperícia”.
Assim, a conduta culposa do agente que contribui para o ato ilícito poderá ser
voluntária, no sentido de que o resultado ilícito de sua atuação era efetivamente
desejado (dolo), ou involuntária, considerando-se aqui que o resultado não era desejado, mas terminou por se realizar em virtude da imprudência, negligência, ou
imperícia de seu autor.
O nexo causal, por sua vez, é a relação de causa e efeito existente entre a conduta
do agente e o resultado danoso obtido. A sua importância é evidente, na medida
em que a configuração do nexo de causalidade permite identificar a relação que se
forma entre o agir do autor do ilícito e o dano decorrente. Sem a confirmação do
nexo causal não se pode falar em responsabilidade.2
A ocorrência de um dano, por fim, gera a responsabilização do agente de um ato
ilícito. Para os fins de configuração da responsabilidade civil, o dano pode ser de
natureza material, ou moral.
O dano material é aquele que causa um prejuízo passível de mensuração econômica direta ao lesado. É importante ressaltar que o dano material pode atingir não
apenas o patrimônio atual, como também o patrimônio futuro da vítima, dando
ensejo à reparação por danos emergentes e lucros cessantes, respectivamente.
Já o dano moral apresenta conceituação mais desafiadora, pois enquanto parte da
doutrina atrela o mesmo à experiências de dor, angústia e sofrimento, outros equivalem a sua ocorrência à lesão aos direitos da personalidade ou encontram o seu fundamento na violação da dignidade da pessoa humana,3 conforme inserida na cláusula
geral de tutela da personalidade, inscrita nos seguintes artigos da Constituição Federal:
(i) art. 1º, III (dignidade da pessoa humana como valor fundamental da República);
(ii) art. 3º, III (igualdade substancial); e art. 5º, §2º (possibilidade de reconhecimento
de novos direitos que não os previamente elencados na Constituição).
Por fim, cumpre observar que a responsabilidade civil é usualmente concebida
no direito brasileiro através de duas espécies: (i) a responsabilidade subjetiva; e a (ii)
responsabilidade objetiva.
A responsabilidade subjetiva está atrelada à noção de conduta culposa do agente
causador do dano, no que se aplicam todas as considerações acima sobre os elementos que devem ser reunidos para a configuração da responsabilidade. Assim, no
regime da responsabilidade subjetiva, a vítima deverá provar que o agente do dano
agiu com culpa, o nexo causal existente entre a conduta do agente e o dano causado,
e, finalmente, o dano efetivamente ocorrido.
A responsabilidade civil objetiva prescinde da prova da conduta culposa do agente. Para gerar o direito à indenização, basta à vítima provar o nexo causal e o dano
Sobre o nexo de causalidade,
vide, por todos, Gustavo Tepedino. “Notas sobre o nexo de causalidade”, in Revista Trimestral
de Direito Civil, nº 06; pp. 3/20.
2
Gustavo Tepedino. “A tutela da
personalidade no ordenamento
civil-constitucional brasileiro”,
in Temas de Direito Civil. Rio, Renovar, 2ª ed., 2001; p. 47.
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sofrido. Essa nova forma de responsabilização surgiu em decorrência dos avanços
científicos e tecnológicos, além da explosão demográfica, ocorridos no século passado. Percebeu-se que, se fosse compelida a vítima a provar a culpa do agente em numerosas situações, terminar-se-ia por gerar verdadeiras injustiças, dada a dificuldade
que a produção dessa prova poderia acarretar.
Embora possa ser afirmado que o direito brasileiro adotou a responsabilização
de natureza subjetiva como regra no Código de 1916 e, de forma mais mitigada no
Código de 2002, o número de situações em que a responsabilização será de natureza
objetiva tem crescido exponencialmente, em especial após a publicação do Código
de Defesa do Consumidor, em 1990, que estabelece a responsabilidade objetiva
como regra para todas as relações de consumo. A existência de uma cláusula geral
de responsabilidade objetiva no artigo 927, §, comprova a tese e exigirá maiores
aprofundamentos em aula dedicada ao tema.
As funções de responsabilidade civil
Mas qual seria a função ou as funções desempenhadas pela responsabilidade civil
na sociedade contemporânea? Se por um lado a maior parte dos autores está de
acordo com a função compensatória da responsabilidade civil, ou seja, na finalidade
de reparar os danos causados à vítima, fazendo com que a situação retorne, da forma
mais adequada possível, ao status quo ante, outras funções podem ser encontradas
para a disciplina da responsabilidade civil.
A função punitiva do agente do dano é uma das finalidades mais comumente
encontradas na doutrina e nas decisões judiciais e cuja própria existência tem gerado
sucessivos debates. No cerne da discussão está a compreensão de que a responsabilidade civil não serviria apenas para reparar a vítima do dano, mas também para
sancionar o agente do ilícito de forma a desestimular a prática de novas condutas
danosas ou mesmo a perpetuação de uma conduta ilícita atual.
À função punitiva geralmente se relaciona uma terceira finalidade, de caráter
sócio-educativa, apontando que a responsabilidade civil opera não apenas de forma
a educar o autor do dano através de uma punição, mas também instrui a sociedade
como todo, alertando para a não admissibilidade de um certo comportamento.
No que diz respeito ao conhecimento da responsabilidade civil para a condução
de atividades empresariais, pode-se dizer que a disciplina assume uma função de
gestão de riscos na medida em que possibilita prever o impacto jurídico derivado
das decisões administrativas sobre a condução de suas atividades, especialmente no
que diz respeito aos possíveis danos causados a funcionários, usuários e terceiros em
geral que venham a ser afetados por essas atividades.
Quando se está diante de casos em que a vítima e o ofensor possuem capacidades econômicas bastante diferenciadas, a disciplina da responsabilidade civil ganha,
não raramente, contornos bastante polêmicos no que diz respeito à quantificação
do dano sofrido. Levar-se-ia em conta para a estimativa do dano o potencial econômico da vítima ou do ofensor? Hipóteses como essa poderiam gerar verdadeiras
situações de enriquecimento sem causa, como também impor indenizações que, na
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responsabilidade civil e direito do consumidor
verdade, pouca importância respresenatriam sobre o patrimônio de uma das partes
envolvidas. Nesses casos, questiona-se sobre a utilização da responsabilidade civil
como um mecanismo de “justiça social” camuflado, função essa que, de todo inapropriada, parece ser encontrada em algumas decisões nacionais e internacionais,
sendo objeto de estudo por autores ligados à análise econômica do direito.
Polêmicas ou de maior aceitação, o debate sobre as funções da responsabilidade
civil pode ser construído a partir de decisões e dos textos doutrinários sobre o tema.
Para os fins de introdução ao debate, recomenda-se a leitura dos textos indicados no
início da presente aula e dos trechos abaixo selecionados de julgado bastante citado
do Superior Tribunal de Justiça, que servirá como caso gerador.
2. Caso gerador
Leia os trechos abaixo do acórdão do Superior Tribunal de Justiça proferido no
Recurso Especial n° 287849/SP, julgado em 17/04/2001. Trata-se de caso no qual
o autor da demanda, durante a estada em hotel-fazenda no interior de São Paulo,
utilizou o escorregador para mergulhar em piscina cujo nível de água estava baixo e
não sinalizado, sofrendo então múltiplas lesões por conta do acidente. Constaram
do pólo passivo da ação indenizatória o hotel no qual jovem hospedou e a operadora de turismo que havia vendido o pacote de viagem (no qual estava incluída a
hospedagem no referido hotel).
Após a leitura, debata os fundamentos da decisão proferida, buscando delinear (i)
qual seria o comportamento esperado de cada uma das partes envolvidas para evitar
o evento danoso, (ii) a repercussão jurídica das condutas efetivamente adotadas e
(iii) os regimes de responsabilidade atinentes ao hotel e à operadora de turismo.
Ementa
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Responsabilidade do fornecedor. Culpa concorrente da vítima. Hotel. Piscina. Agência de viagens. - Responsabilidade do hotel, que não sinaliza convenientemente a profundidade da piscina, de
acesso livre aos hóspedes. Art. 14 do CDC. - A culpa concorrente da vítima permite
a redução da condenação imposta ao fornecedor . Art. 12, § 2º, III, do CDC. - A
agência de viagens responde pelo dano pessoal que decorreu do mau serviço do
hotel contratado por ela para a hospedagem durante o pacote de turismo. Recursos
conhecidos e providos em parte.
Decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Aliás, mesmo que fosse o caso, nem de culpa concorrente poder-se-ia cogitar
diante da ausência total de comunicação sobre a profundidade da piscina, que tinha
seu acesso livre e apresentava iluminação precária. Tanto há responsabilidade do
hotel, que uma criança, brincando pelo local e não sabendo ler, podendo penetrar
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livremente nas dependências da piscina, não sabendo nadar, caindo dentro d’água,
morreria afogada e não se pode olvidar que o infausto acontecimento ocorreu às
vésperas do Natal, quando os hotéis ficam lotados.”
Voto do Min. Ruy Rosado (relator)
“Ocorre que o autor usou do escorregador e ‘deu um salto em direção à piscina’,
conforme narrou na inicial, batendo com a cabeça no piso e sofrendo as lesões descritas no laudo. Esse mau uso do equipamento – instalação que em si é perigosa, mas
com periculosidade que não excede ao que decorre da sua natureza, legitimamente
esperada pelo usuário – concorreu causalmente para o resultado danoso.
(...) Voltando ao caso dos autos, acredito que a definição da responsabilidade
jurídica da CVCTUR decorre de sua situação como agente de viagem contratante
de um pacote turístico, com terceiros prestadores de serviço, mas sendo ela a organizadora da viagem e garantidora do bom êxito da sua programação, inclusive no que
diz com a incolumidade física dos seus contratantes.
Na espécie, foi isso reconhecido no r. acórdão, daí a conseqüência da sua responsabilização. No nosso sistema, tal responsabilidade é solidária entre ela, a organizadora do pacote e o hotel na causação do resultado, em concorrência com o hóspede,
nesse mesmo limite se fixa a responsabilidade da operadora.
Haverá dificuldade em estender a responsabilidade da operadora por danos decorrentes da prestação dos serviços contratados de terceiros quando o fato acontece no âmbito do risco que razoavelmente se espera do serviço. Quando houver
falta de segurança do serviço do prestatário, fora da possibilidade de previsão
por parte da operadora de turismo, que se limita a confiar no que normalmente
acontece - nessa situação, à falta de norma expressa que lhe atribua diretamente
a responsabilidade total – esta somente poderia ser reconhecida se a operadora
colocou os seus clientes sob risco acima do normalmente esperado (art. 14, §1°,
II, do CDC). A restrição se explica não apenas em razão da necessidade de se dar
aplicação ao disposto nessa regra, mas também porque nosso sistema legal é de
reparação integral do dano, diferentemente do previsto na legislção de países da
União Européia, que permitem, nesses casos, a limitação tarifada da indenização.
O sistema que amplia a hipótese de responsabilidade da operadora está conformado com a possibilidade de limitação indenizatória; quando a reparação é integral,
razoável que se restrinja a responsabilização apenas aos casos em que ‘a operadora
coloca o cliente em risco acima do normalmente esperado’, cabendo-lhe a prova
dessa exoneração.”
Voto Min. César Asfor Rocha
“Mas igualmente, com o mesmo respeito, vou ousar discordar dos votos já manifestados quanto à responsabilidade da companhia de turismo, porque, por maior
esforço que possa fazer, não consigo enxergar, porque o só fato de ela ter dispensado
um guia para acompanhar esse ‘pacote fechado’ que foi vendido, possa importar na
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sua responsabilização por um fato que não diga respeito diretamente ao que leva, ao
que conduz uma pessoa a procurar o serviço de uma companhia de turismo.
Quem busca uma companhia de turismo vai querer desta a indicação de um hotel
nos moldes em que a pessoa paga, isto é, se é um hotel cinco estrelas, se é um hotel
que presta os serviços indicados, com as refeições oferecidas, com relação ao transporte prometido mas, evidentemente, que foge da expectativa do consumidor que a
companhia de turismo dê a ele os serviços que possam importar na sua segurança. Se
assim não fosse, por exemplo, em um pacote completo que houvesse sido vendido
para uma excursão pela Europa, estaria subsumido na responsabilidade da companhia de turismo qualquer assalto que a pessoa pudesse porventura sofrer em alguma
dessas cidades, que foram escolhidas e sugeridas pela companhia de turismo.
Não vejo como, ainda que tendo um guia, pudesse a companhia se responsabilizar pela falta que foi cometida pelo hotel, decorrente do só fato de não ter feito a
indicação da altura da linha d´água, da profundidade da piscina. Nem poderia se
exigir, se pretender, que o guia chegasse a tanto, porque ele não poderia se desdobrar,
não teria o dom da onipresença, porque senão teria que estar ao lado de todos os
viajantes, os usuários daquele pacote de viagem.
Conhecço parcialmente do recurso da empresa hoteleria e, nessa parte, dou provimento, e conheço, na sua integralidade, do recurso da companhia de turismo para
eximi-la de qualquer responsabilidade.”
Voto do Min. Sálvio de Figueiredo Texeira
“Também me ponho acorde quanto à possibilidade da atenuação da resonsabilidade em face de eventual culpa concorrente.
No mérito, todavia, peço vênia para divergir. Com efeito, sem embargo de lamentar profundamente o ocorrido, e de votar com o coração apertado, tenho que
essa circunstância não me autoriza a transferir a responsabilidade para quem não
vejo presente a culpa.
Pelos fatos expostos, não tenho por caracterizada a responsabilidade do hotel. Ia
deter-me em algumas considerações sobre a posição da agência, mas me abstenho
de fazê-lo porque, se não reconheço a responsabilidade de quem prestou o serviço
diretamente, no caso o hotel, muito menos poderia atribuir essa responsabilidade à
agência, que agiu dentro das normas legais e sequer fez má escolha, não se tratando,
na espécie, de responsabilidade objetiva.”
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Aula 2. Dano Material
Leitura obrigatória
Agostinho Alvim. Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, 4ª Ed. Atual.,
São Paulo: Saraiva, 1972, p. 169/176; Mário Julio de Almeira Costa. Direito
das Obrigações, 10ª ed. reelaborada, Coimbra: Almedina, 2006, p. 590/599.
Leituras complementares
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev., atualizada de acordo
com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 969/991.
1. Roteiro de aula
Como visto, quando causado um prejuízo em razão do descumprimento de um
dever jurídico, surge a obrigação de indenizar que tem por finalidade tornar indemne o lesado, isto é, colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do
fato danoso.
Desta feita, torna-se importante determinar o que é o prejuízo ou, em outras
palavras, o que é o dano. Este último é o primeiro pressuposto da responsabilidade
civil e, sem a sua existência, inexiste qualquer dever de reparação.
Com efeito, apenas em função do dano o instituto da responsabilidade civil
realiza a sua finalidade essencialmente reparadora ou reintegrativa. Mesmo quando
lhe caiba algum papel repressivo e preventivo, sempre se encontra submetido, como
regra, aos limites da eliminação do dano4.
Agostinho Alvim define dano como a diminuição ou subtração de um bem jurídico5. A importância deste primeiro conceito é que ele tem em vista não só a perda
total de um bem jurídico, mas, também, a sua perda parcial.
Todavia, a doutrina mais moderna, atenta às transformações sociais, especialmente à aparição de novos bens jurídicos merecedores de tutela – como por exemplo o
dano moral –, define dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se
trate de um integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é a lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial
como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral6.
Sem embargo que este conceito por englobar tanto os chamados danos patrimoniais quanto os danos morais é mais condizente com a ordem jurídica vigente. Para
encerrar a questão, parece-nos possível definir dano como toda ofensa de bens ou
interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
COSTA, Mário Julio de Almeira.
Direito das Obrigações, 10ª ed.
reelaborada, Coimbra: Almedina, 2006, p. 590.
4
ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, 4ª Ed. Atual., São
Paulo: Saraiva, 1972, p. 172.
Neste sentido, também, Carlos
Roberto Gonçalves. Responsabilidade Civil, 8ª ed. Ver. de acordo
com o novo Código Civil, São
Paulo: Saraiva, 2003.
5
CAVALIERI FILHO, Sergio.
Programa de Responsabilidade
Civil, 7ª ed São Paul: Atlas, 2007,
p.70.
6
FGV DIREITO RIO 14
responsabilidade civil e direito do consumidor
Por fim, registre-se que para um dano ser indenizável é preciso que ele seja certo
e atual. Atual é o dano que já existe ou já existiu no momento da ação de responsabilidade civil e certo é o dano fundado sobre um fato preciso e não sobre hipótese.
Não havendo nem a atualidade e nem a certeza, o dano não poderá ser indenizado.
Ressalte-se que o dano futuro é indenizável, como dispõe a parte final do próprio
art. 402 (“o que razoavelmente deixou de lucrar”). O que não se indeniza são os
danos hipotéticos, isto é, aquele que pode não vir a se realizar.
Danos Patrimoniais
O dano patrimonial é aquele suscetível de avaliação pecuniária. Em outras palavras, é aquele que incide sobre interesses de natureza material ou econômica e,
portanto, reflete-se no patrimônio do lesado. Podemos afirmar, então, que nos danos patrimoniais, também chamados de danos materiais, o fato danoso representa a
lesão de interesses de ordem material. Todavia, o dano deve ser certo, não se justificando a reparação do dano hipotético.
Os danos materiais geralmente são divididos em duas espécies: os danos emergentes e os lucros cessantes. Aliás, essa foi a posição do Código Civil de 2002 que
contou com a aprovação da doutrina.
Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente
deixou de lucrar.
O dano emergente é representado pela diminuição patrimonial, seja porque se
depreciou o ativo, seja porque aumentou o passivo7. Em outros dizeres, o dano
emergente compreende a perda ou diminuição de valores já existentes no patrimônio do lesado. Ele é de fácil constatação bastando confrontar a diferença do valor do
patrimônio da vítima não fosse a ocorrência do dano.
O lucro cessante, por sua vez, é a fustração da expectativa de ganho, ou seja,
refere-se aos benefícios que o lesado deixou de obter em conseqüência da lesão,
isto é, ao acréscimo patrimonial frustrado. Podemos dizer, portanto, que o lucro
cessante pressupõe que o lesado tinha no momento da lesão a titularidade de uma
situação jurídica que, mantendo-se, lhe daria direito a um ganho. Sérgio Cavalieri
Filho explica com clareza:
Consiste, portanto, o lucro cessante na perda do ganho esperável, na frustração
da expectativa de lucro, na diminuição potencial do patrimônio da vítima.
É preciso alertar, entretanto, o cuidado do juiz no momento de caracterizar o
citado dano. Não se pode confundir lucro cessante com lucro imaginário, simplesmente hipotético, odioso para o direito.
Com efeito, trata-se de um juízo de probabilidade objetiva e não de mera possibilidade, isto é, é necessário que do curso normal das coisas e circunstâncias do
GOMES, Orlando. Obrigações,
16ª ed. rev. atua. e aumentada
de acordo com o código civil de
2002, por Edvaldo Brito. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 183.
7
FGV DIREITO RIO 15
responsabilidade civil e direito do consumidor
caso concreto o ofendido provavelmente teria um ganho não fosse o dano causado.
Dessa forma, se vê desde logo, a necessidade de levar em conta não somente o desfalque, mas aquilo que não entrou ou não entrará para esse patrimônio, em virtude
de certo fato danoso.8
Finalmente, é importante ressaltar os danos em ricochete ou reflexos. É aceito
em doutrina e jurisprudência que na categoria do dano cabem os danos diretos,
que são os efeitos imediatos do fato ilícito, mas também os danos indiretos que
são as conseqüências mediatas ou remotas do dano direto. Esses danos, também
chamados de danos reflexos ocorrem na hipótese dos prejuízo reflexamente sofrido por terceiros, titulares de relações jurídicas que são afetadas pelo dano,
não na sua substância, mas na sua consistência prática (imagine-se a hipótese
do ex-marido que deve pensão aos filhos e sofre uma lesão na sua capacidade
laborativa. Os filhos teriam legitimidade para demandar em face do causador do
dano). O dano em ricochete é reparável desde que seja certa a repercussão do
dano principal.
Perda da Chance
Questão que suscita muitas dúvidas é a da teoria da perda de uma chance. Inicialmente, é de ressaltar que ela guarda uma certa proximidade com o lucro cessante
uma vez que ambos dizem respeito à uma situação futura.
Na perda da chance, entretanto, não existe um benefício futuro certo, ou seja,
não existe uma certeza absoluta de que o ganho ocorreria, isto é, poderia tanto ser
um resultado favorável como não. Caracterza-se, portanto, quando alguém se vê
privado da oportunidade de obter determinada vantagem ou de evitar um prejuízo
em virtude de uma conduta ofensiva. Em outras palavras, ela ocorre quando, em
virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria uma benefício futuro para a vítima.9
A teoria, que já foi muito discutida, hodiernamente encontra ampla aceitação na
doutrina e jurisprudência pátria. O entendimento atual é o de não se indenizar o
possível resultado, mas a própria perda em si. Isto é, não se indeniza o que hipoteticamente deixou de lucrar, e sim a oportunidade existente no patrimônio da vítima
no momento do ato danoso. Admite-se, assim, um valor patrimonial da chance por
si só considerada.
2. Caso Gerador
Carla, estudante de direito, estava animadíssima com a sua participação no programa de perguntas e respostas que poderiam lhe render o prêmio máximo de um
milhão de reais. Após estudar e se preparar durante um mês, a participante foi ao
show e lá logrou êxito nas respostas às questões formuladas.
Finalmente, após ter garantido quinhentos mil reais, a participante foi submetida à última pergunta que lhe premiaria com o prêmio de um milhão. Nervosa, a
ALVIM, Agostinho, Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, 4ª Ed. Atual., São
Paulo: Saraiva, 1972, p. 172.
8
CAVALIERI FILHO, Sergio.
Programa de Responsabilidade
Civil, 7ª ed São Paul: Atlas, 2007,
p.75.
9
FGV DIREITO RIO 16
responsabilidade civil e direito do consumidor
participante aguardava ansiosamente a última indagação que foi feita nos seguintes
moldes:
A Constituição reconhece direitos aos índios de quanto do território brasileiro?
Resposta: 1 - 22%
2 - 02%
3 - 04%
4 - 10% (resposta correta)
Por desconhecer a resposta, Carla preferiu salvaguardar a premiação já acumulada de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), posto que, caso apontado item diverso
daquele reputado como correto, perderia o valor em referência.
Posteriormente, ao chegar em casa e procurar em sua Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 o art. 231, verificou que o referido dispositivo não
mencionava o percentual de território reconhecido aos índios.
Revoltada com a pergunta formulada no programa, Carla ingressou com ação
judicial pleiteando indenização por danos materiais e morais ao fundamento de
inadimplemento por culpa do devedor.
Em sua defesa, o programa afirmou que a pergunta estava de acordo com a Enciclopédia Mundo Vivo e que, caso fosse o questionamento final do programa formulado dentro de parâmetros regulares, considerando o curso normal dos eventos,
não seria razoável esperar que ela lograsse responder corretamente à “pergunta do
milhão”. Como você, juiz da ação, decidiria?
FGV DIREITO RIO 17
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 3. Dano Moral
Leitura obrigatória
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civilconstitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; p. 182/192.
Leituras complementares
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev., atualizada de acordo
com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p 992/1026.
1. Roteiro de aula
O dano moral é com certeza um dos temas mais controvertidos na responsabilidade civil. Não há consenso na doutrina quanto a seu conceito, seus efeitos ou
seus critérios de fixação do quantum. Nas palavras de Paulo Schonblum não há um
único aspecto aceito de forma unânime pela doutrina em matéria de dano moral10.
Tentaremos nesse curto trabalho demonstrar um conceito em acordo com os ditames constitucionais.
No Brasil a questão foi tão controvertida quanto na Itália, França e Portugal11.
Nas primeiras leis brasileiras editadas nota-se certa inclinação para a reparação do
dano moral: o Código Criminal de 1832 dispunha que a mesma sentença condenatória do réu também disporia acerca de reparações de injúrias e prejuízos apuradas
no cível. Com efeito, reparações de injúrias tem um cunho não patrimonial. O Código Penal de 1890 determinava que nos defloramentos, bem como nos estupros, o
ofensor estaria obrigado a dotar a ofendida.
Entretanto, foi sem dúvida a Lei de Estradas de Ferro (Lei 2.681/12) que primeiro visualizou uma hipótese de ressarcimento por dano moral em seu art. 21. Este
dizia que no caso de lesão corpórea, ou deformidade, à vista da natureza da mesma
e de outras circunstâncias, além das despesas com o tratamento e lucros cessantes,
deverá pelo juiz ser arbitrada uma indenização conveniente. Assim, a reparação do
dano moral tinha previsão legal, mas de forma específica e casuística.
O Código Civil de 1916 nada mencionou acerca da reparabilidade do dano
moral. Como era de se esperar surgiram duas correntes: a primeira que tinha como
defensor Agostinho Alvim entendia que o dano moral não era indenizável diante do
nosso ordenamento pátrio, pois:
Em face do direito constituído, entendemos não haver lugar para ressarcibilidade
do dano moral, não sendo possível inferi-la de preceitos insulados, e nada explícitos
a respeito.12
SCHONBLUM, Paulo Maximilian Wilhelm. Dano moral:
questões controvertidas, Rio de
Janeiro: Forense, 2000, p.3.
10
Para um maior detalhamento
acerca da histótia do instituto,
v. SILVA, Wilson Melo da, O
dano moral e sua reparação, 3ª
ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro:
Forense, 1983.
11
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas
conseqüências, 4ª ed. atual., São
Paulo: Saraiva, 1972, p. 234.
12
FGV DIREITO RIO 18
responsabilidade civil e direito do consumidor
O autor ainda adverte para o fato de que o legislador não havia inserido no Código nenhuma regra sobre dano moral, nenhuma norma de caráter geral. Entretanto, admitia que é “o sentimento de justiça que impulsiona no sentido de admitir-se
a indenização por dano moral”13 e afirmava que “considerando-o, porém, diante do
direito a constituir-se não nos repugna, como a muitos, admitir o ressarcimento de
danos morais.”14
Na doutrina, todavia, solidificou-se o entendimento pela aceitação da reparabilidade do dano moral. O seu fundamento estava previsto no art. 76 que dispunha
que para propor ou contestar uma ação é necessário ter legítimo interesse econômico ou moral. O interesse moral justificaria a indenização pelo dano moral.
Entretanto, diversas foram as críticas à essa construção, pois interesse moral juridicamente protegido, não se confunde com ressarcimento por via econômica de
valores meramente afetivos15. Ora, outra construção doutrinária se fazia necessária e
não tardou. Passou-se a dizer que o art. 159 teria caráter genérico tratando de dano
de forma ampla o que englobaria tanto o dano patrimonial quanto o moral. E, neste
sentido, o art. 1.553 (Liquidação das Obrigações) complementaria o art. 159, pois
nos casos não previstos no capítulo, fixar-se-ia a indenização por arbitramento. Desta forma, os danos não específicos seriam liquidados por arbitramento judicial.
Certo que de forma a superar os problemas da reparação por danos morais sobrevieram diversas normas especiais das quais podemos citar duas como fundamentais.
A primeira, a Lei 4.117/62 (Código Brasileiro de Telecomunicações), que contemplou o dano moral e sua ressarcibilidade no art. 81.
Art. 81 - Independentemente da ação penal, o ofendido pela calúnia, difamação
ou injúria cometida por meio de radiodifusão, poderá demandar, no Juízo Cível, a
reparação do dano moral, respondendo por este solidariamente, o ofensor, a concessionária ou permissionária, quando culpada por ação ou omissão, e quem quer que,
favorecido pelo crime, haja de qualquer modo contribuído para ele.
A segunda, a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), que em seu art. 49 regulou de
forma expressa a reparabilidade do dano moral.
Art. 49. Aquêle que no exercício da liberdade de manifestação de pensamento e
de informação, com dolo ou culpa, viola direito, ou causa prejuízo a outrem, fica
obrigado a reparar:
I - os danos morais e materiais, nos casos previstos no art. 16, números II e IV,
no art. 18 e de calúnia, difamação ou injúrias;
II - os danos materiais, nos demais casos.
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 pôs fim à discussão assegurando
em seu art. 5º, X o direito à indenização pelo dano moral. Logo após foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor que assegurou expressamente a efetiva reparação dos dano morais nas relações de consumo em seu art. 6º, VI. E, finalmente,
diante da adoção total da reparação do dano moral, o Código Civil de 2002 adotou
13
Idem, p. 224.
14
Idem, p. 234.
15
Idem, p. 232.
FGV DIREITO RIO 19
responsabilidade civil e direito do consumidor
expressamente esta teoria ao dispor no art. 186 que aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. E a norma é complementada pelo
art. 927 que determina que aquele que por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano
a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Ainda dentro da evolução histórica, parece ser pertinente discorrermos acerca
das objeções à indenização por danos morais. Podemos resumí-las em três: i) A
impossibilidade da rigorosa avaliação dos danos morais e imoralidade da compensação da dor com o dinheiro; ii) impossibilidade e a dificuldade da reparação; e iii)
o excessivo arbítrio dos juízes nas reparações por danos morais.
Em oposição à primeira objeção Agostinho Alvim rebate:
Acham muitos que é uma grosseria querer mitigar a dor moral por meio do
dinheiro. (...) Mas, não têm razão os que assim pensam. Não é por causa desta ou
daquela hipótese, mais ou menos ridícula, que havemos de rejeitar um instituto tão
útil. Na realidade, não se pode admitir que o dinheiro faça cessar a dor, como faz
cessar o prejuízo patrimonial. Mas, em muitos casos, o conforto que possa proporcionar, mitigará, em parte, a dor moral, pela compensação que oferece.16
Nesse diapasão, Maria Celina Bodin de Moraes afirma que, nos últimos anos,
passou-se a entender que “se era imoral receber alguma remuneração pela dor sofrida, não era a dor que estava sendo paga, mas sim a vítima, lesada em sua esfera
extrapatrimonial, quem merecia ser (re)compensada pecuniariamente, para assim
desfrutar de algumas alegrias e outros estados de bem-estar pscicofísico, contrabalançando (rectius, abrandando) os efeitos que o dano causara em seu espírito”.17
Em relação à segunda objeção, ela procede. Realmente é uma tarefa árdua tentar
encontrar o equivalente ao dano, talvez até impossível alcançar um valor que repare
integralmente, mas deve-se tentar chegar ao mais próximo disso. Entretanto, a dificuldade de avaliação em qualquer situação não pode ser obstáculo à reparação.18
Sem embargo que a terceira e última objeção não poderia proceder. Ora, arbitramento não é sinônimo de arbitrariedade. Ao contrário, devem ser aferidos critérios
objetivos para que o juiz estabeleça o quantum evitando-se, assim, valores aleatórios.
Sem sombra de dúvida esta tarefa cabe em especial à doutrina e à jurisprudência.
Conceito
Após essa rápida evolução do instituto, devemos procurar um conceito para dano
moral. Este um dos seus maiores problemas. Muitas são suas definições e que talvez
não alcancem o instituto em sua totalidade. Inicialmente o dano moral fora entendido como o dano causado a outrem que não atinja ou diminua seu patrimônio19.
Trata-se de uma concepção negativista que não tem o exato alcance da amplitude
do dano moral não esclarecendo suas características.20
Superando-se essa corrente negativista, surgiram vários conceitos de dano moral.
Um primeiro posicionamento e, que encontra respaldo na jurisprudência atual,
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas
conseqüências, 4ª ed. atual., São
Paulo: Saraiva, 1972, p. 235.
16
MORAES, Maria Celina Bodin
de. Danos à pessoa humana:
uma leitura civil-constitucional
dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; p. 147.
17
VENOSA, Silvio de Salvo.
Direito civil: responsabilidade
civil, 3ª ed., São Paulo: Atlas,
2003, p. 206. Nesse sentido
também ALVIM, Agostinho. Da
inexecução das obrigações e suas
conseqüências, 4ª ed. atual., São
Paulo: Saraiva, 1972, p. 236 que
afirma: “Todavia, esta objeção,
ou dificuldade, não deve ser
considerada como obstáculo
invencível ao desenvolvimento
da teoria, que terá de triunfar
de seus contrários, pois, longe
de infringir ética, a indenização
por dano moral é da mais estrita
justiça.
18
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas
conseqüências, 4ª ed. atual., São
Paulo: Saraiva, 1972, p. 219.
19
BERNARDO, Wesley de Oliveira
Louzada. Dano moral: critérios
de fixação de valor, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 73.
20
FGV DIREITO RIO 20
responsabilidade civil e direito do consumidor
entende que os danos morais são a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que
fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do
indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar.21
Essa definição também se mostra insuficiente. Maria Celina critica tal concepção, pois através desses vocábulos apenas se descrevem sensações e emoções desagradáveis.22 Zannoni afirma que as dores e angústias são, na verdade, conseqüências do
dano que cada pessoa vivencia de forma mais ou menos intensa, mas que o direito
não indeniza o estado de espírito.23
Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves, apoiado em Zannoni afirma que o
dano moral consistiria na lesão a um interesse que visa à satisfação ou gozo de um
bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade ou nos atributos da pessoa.”24
Esse conceito, que tem sido adotado por muitos doutrinadores na atualidade e
pelo STJ, é uma grande evolução em relação aos conceitos anteriores. A sua crítica
é que as situações subjetivas não se esgotam apenas nos direitos da personalidade,
mas em diversas outras hipóteses. Ora, se admitirmos essa concepção como a ideal,
excluiríamos da reparação civil uma série de situações, o que não se compatibiliza
com nosso ordenamento que prevê no art. 1º, III da CRFB/88 o princípio da dignidade da pessoa humana.
Maria Celina Bodin de Moraes, levando em consideração a cláusula geral de
tutela da pessoa humana, afirma que:
(...) a unidade do ordenamento é dada pela tutela à pessoa humana e à sua dignidade, como já exposto; portanto, em sede de responsabilidade civil, e, mais especificamente, de dano moral, o objetivo a ser perseguido é oferecer a máxima garantia à
pessoa humana, com prioridade, em toda e qualquer situação da vida social em que
algum aspecto de sua personalidade esteja sob ameaça ou tenha sido lesado.
(...)
Nesse sentido, o dano moral não pode ser reduzido à ‘lesão a um direito da
personalidade’, nem tampouco ao ‘efeito extra-patrimonial da lesão a um direito
subjetivo, patrimonial ou extrapatrimonial’. Tratar-se-á sempre de violação da cláusula geral de tutela da pessoa humana, seja causando-lhe um prejuízo material, seja
violando direito (extrapatrimonial) seu, seja, enfim, praticando, em relação à sua
dignidade, qualquer ‘mal evidente’ ou ‘perturbação’, mesmo se ainda não reconhecido como parte de alguma categoria jurídica.”25
Diante da ordem constitucional vigente, parece que a melhor forma de se tutelar
a pessoa em sua totalidade é se entendermos o dano moral como uma violação à
dignidade da pessoa humana, valor máximo do nosso ordenamento, não restando, a reparação, limitada a certo número de situações tipo: qualquer lesão à uma
situação jurídica subjetiva existencial será suficiente para garantir a reparação. No
entanto, é preciso muita atenção por parte dos julgadores, sob pena de banalização
do instituto.
O próprio Desembargador
Sérigio Cavalieri Filho entendia
dessa forma. CAVALIERI FILHO,
Sergio, Programa de responsabilidade civil, Rio de Janeiro: Malheiros Editores, 1996, p.76.
21
MORAES, Maria Celina Bodin
de. Danos à pessoa humana:
uma leitura civil-constitucional
dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; p. 130.
22
APUD VALLER, Wladimir. A reparação do dano moral no direito
brasileiro, 2ª ed., São Paulo: E.V.
Editora Ltda., 1994, p. 37/38.
23
GONÇALVES, Carlos Roberto.
Responsabilidade Civil, 8ª ed.
rev. de acordo com o novo Código Civil, São Paulo: Saraiva,
2003, p. 549.
24
MORAES, Maria Celina Bodin
de. Danos à pessoa humana:
uma leitura civil-constitucional
dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; p. 182/184.
Nesse sentido também o Desembargador Sergio Cavalieri,
apesar de qualificar a dignidade da pessoa humana como
direito subjetivo. “Temos hoje
o que se pode ser chamado de
direito subjetivo constitucional
à dignidade. Ao assim fazer,
a Constituição deu ao dano
moral uma nova feição e maior
dimensão, porque a dignidade
humana nada mais é do que a
base de todos os valores morais,
a essência de todos os direitos
personalíssimos.
CAVALIERI
FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, São Paulo:
Atlas, 2007, p. 76.
25
FGV DIREITO RIO 21
responsabilidade civil e direito do consumidor
Natureza da indenização por dano moral
Mais uma vez é de se registrar que não existe consenso na doutrina quanto à
natureza da reparação. Uns sustentam que o dano moral possui caráter meramente
compensatório, pois o dinheiro serviria apenas como conforto, mitigando em parte
a dor e o sofrimento tendo caráter unicamente de ressarcimento do dano.
Outros, entretanto, sustentam que a natureza da reparação tem caráter eminentemente punitivo. Explica-se. Numa época em que não se admitia a reparação por
danos morais, a doutrina encontrou no caráter punitivo o fundamento de validade deste tipo de reparação. Também se entendia que se tivesse caráter meramente
compensatório, na hipótese de vítima rica, esta jamais seria indenizada. Elogiável,
portanto, a construção doutrinária à época.
No entanto, o posicionamento amplamente adotado pelos tribunais brasileiros
e pela doutrina consiste em que a indenização por dano moral possui uma dupla
natureza: compensatória e punitiva.26
Dessa forma, a jurisprudência defende um caráter pedagógico-punitivo na aplicação do dano moral de sorte que no momento de sua fixação deve ser levado
em conta critérios de proporcionalidade,e razoabilidade atendidas as condições do
ofensor, ofendido e do bem jurídico lesado.
Prova do dano moral
Outra dificuldade a respeito do dano moral consiste na verificação de sua prova.
Majoritariamente, a doutrina e a jurisprudência brasileiras já têm aceito a sua configuração independentemente de prova. O Superior Tribunal de Justiça pacificou a
matéria ao determinar que a caracterização do dano moral é in re ipsa. Ou seja, indenpende de prova. Basta a demonstração do fato que por si só será suficiente para
demonstrar o dano extrapatrimonial.
Dano moral de pessoa jurídica
Apesar da ferrenha discussão doutrinária acerca da possibilidade de reparação
por danos morais da pessoa jurídica, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula
227 estabelecendo expressamente a possibilidade.
Súmula 227, STJ - A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.
2. Caso Gerador
Dentre as hipóteses abaixo, identifique aquelas que poderiam ser enquadradas
como casos de dano moral:
a) Morte de cônjuge separada de fato há mais de dois anos;
Conforme informa Maria
Celina Bodin de Moraes, essa
posição tem encontrado inúmeros adeptos no Brasil, tanto em
doutrina como na jurisprudência. MORAES, Maria Celina, Bodin de, Danos a Pessoa Humana:
uma leitura civil-constitucional
dos danos morais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 218.
26
FGV DIREITO RIO 22
responsabilidade civil e direito do consumidor
b)
c)
d)
e)
inscrição indevida no cadastro restritivo de crédito;
extravio de bagagem em viagem ao exterior;
inscrição indevida no cadastro retritivo de crédito de devedor contumaz;
disparo de alarme em supermercado.
FGV DIREITO RIO 23
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 4. Culpa e Responsabilidade subjetiva
Leitura Obrigatória
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev., atualizada de acordo
com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 133/152.
Leitura Complementar
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão
dos filtros à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 9/17-29/48.
1. Roteiro de Aula
A Culpa tem um papel fundamental dentro da responsabilidade civil. Ela é,
ao lado do dano e do nexo causal, um dos pressupostos da responsabilidade subjetiva.
A evolução da responsabilidade civil no Direito Romano culmina justamente
na célebre Lei Aquília. Essa última operou uma transformação na responsabilidade
civil. Se não é certo que ela trouxe a culpa para dentro da responsabilidade civil, é
possível afirmar que a evolução no sentido de introduzir o elemento subjetivo para
a reparação iniciou-se nela.
Foi, então, com base na interpretação e aplicação cada vez mais extensiva da Lex
Aquilia pelos jurisconsultos que o Código Napoleônico adotou uma teoria geral de
responsabilidade civil fundada na culpa. Essa teoria foi posteriormente adotada por
quase todos os ordenamentos jurídicos. No Brasil não foi diferente.
Na vigência do Código Civil de 1916, estabeleceu-se como regra a responsabilidade civil subjetiva. Ou seja, só era possível imputar responsabilidade a alguém caso
o ato tivesse sido cometido culposamente. A responsabilidade objetiva, portanto,
era exceção só admitida quando prevista em lei.
Atualmente, verifica-se um abandono da culpa no âmbito da responsabilidade
civil que culminou, no Código Civil de 2002, com a positivação de uma cláusula
geral de responsabilidade civil objetiva no art. 927, parágrafo único. Esse “processo
de desculpabilização” está diretamente ligado com a necessidade de reparar a vítima,
permitindo a ampla reparação.
Todavia, apesar do alargamento das hipóteses de responsabilidade objetiva, é
importante frisar que a responsabilidade subjetiva ainda é necessária. E o Código
Civil de 2002 previu uma cláusula geral de responsabilidade aquiliana no art. 186
c/c art. 927, caput:
FGV DIREITO RIO 24
responsabilidade civil e direito do consumidor
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete
ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Ato ilícito
Como dito anteriormente, a responsabilidade subjetiva era a regra no Código
Civil de 1916 e, portanto, era imprescindível a prova da conduta culposa para o
surgimento do dever de indenizar oriundo do ato ilícito.
Antes de falar sobre o conceito de culpa é preciso dinstinguí-la de culpabilidade.
Este último é a qualidade ou conjunto de qualidades do ato que permitem formular,
a respeito dele, um juízo ético-jurídico de reprovação ou censura. Já a culpa exprime
a voluntariedade da conduta, envolvendo apenas um juízo de fato, que se baseia no
estado psíquico do autor. É o nexo de imputação psicológica do ato ao agente.27
Para caracterização do ato ilícito são necessários dois pressupostos: a imputabilidade do agente (elemento subjetivo) e a conduta culposa (elemento objetivo).
Imputabilidade do agente
A imputabilidade é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para poder responder pelas conseqüências de uma conduta contrária ao dever.
Dessa forma, diz-se imputável a pessoa com capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos atos que pratica e para se determinar de acordo com o juízo
que se faça deles.28
Aliás, é o próprio art. 186 do Código Civil que prevê o elemento imputabilidade
para existência do ato ilícito. Nesse sentido, pode-se afirmar que não responde pelas
conseqüências do fato danoso quem, no momento em que o fato ocorreu, estava incapacitado de entender ou querer. Em outras palavras, aquele que não pode querer
e entender não incorre em culpa.
Tem-se, dessa forma, que os incapazes são irresponsáveis. Essa assertiva, todavia,
sofre temperamentos. O Código Civil de 2002 adotou a responsabilidade mitigada
e subsidiária dos incapazes. Dessarte, pelos atos dos incapazes responde primeiramente a pessoa encarregada da guarda.
Somente responderá o incapaz quando as pessoas responsáveis por ele não tiverem a obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Contudo, o
avanço em admitir a responsabilidade do incapaz de forma subsidiária, foi informado pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e, dessa forma, nosso ordenamento prevê uma indenização eqüitativa de forma a garantir o
necessário à subsistência do incapaz e de quem dele depender. Esse é, também, o
entendimento esposado no Enunciado 39 da Jornada de Direito Civil promovida
pelo Centro de Estudos da Justiça Federal.
PESSOA JORGE, Fernando de
Sandy Lopes. Ensaio sobre os
pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina,
1995, p. 315/321.
27
VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10
ª Edição, Revista e Actualizada,
Coimbra: Almedina, 2000, p.
563.
28
FGV DIREITO RIO 25
responsabilidade civil e direito do consumidor
Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.
Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa,
não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.
Culpa
Não basta a imputabilidade do agente, é preciso que o imputável tenha agido
com culpa. O segundo elemento do ato ilícito, portanto, se expressa através da
conduta reprovável, ou seja, da culpa. Esta, no âmbito da responsabilidade civil,
possui duas concepções: lato sensu e stricto sensu. A primeira concepção se desdobra
em dolo e culpa propriamente dita. Registre-se que aqui o dolo não diz respeito ao
vício da vontade, mas ao elemento interno que reveste o ato de causar o resultado.
A segunda concepção se traduz numa determinada posição ou situação psicológica
do agente para com o fato.
Dolo
O dolo aparece como a modalidade mais grave da culpa lato sensu. Pode-se definir o dolo como a infração consciente do dever preexistente, ou o propósito de
causar dano a outrem. Existem, entretanto, outras modalidades de dolo. São elas:
a) dolo direto: quando o agente atua para atingir o fim ilícito;
b) dolo necessário: quando o agente pretende atingir o fim lícito, mas sabe que
a sua ação determinará inevitavelmente o resultado ilícito;
c) dolo eventual: quando o agente atua em vista de um fim lícito, mas com a
consciência de que pode eventualmente advir do seu ato um resultado ilícito
e quer que este se produza.
Culpa em sentido estrito
A culpa stricto sensu ou propriamente dita, por sua vez, diz respeito à vontade do
agente que é dirigida ao fato causador da lesão, mas o resultado não é querido pelo
agente. Podemos dizer, então, que é a falta de diligência na observância da norma
de conduta, isto é, o desprezo, por parte do agente, do esforço necessário para observá-la, com resultado, não objetivado, mas previsível29. É a omissão da diligência
exigível do agente.
A mera culpa (ou culpa em sentido estrito), portanto, pode ser definida como a
violação de um dever jurídico por negligência, imprudência ou imperícia. Ela pode
consistir numa ação ou numa omissão.
Negligência se relaciona com a desídia. É a falta de cuidado por conduta omissiva. Imprudência está ligada à temeridade, ou seja, é a afoiteza no agir. É a falta de
cautela por conduta comissiva. A imperícia, finalmente, é a falta de habilidade. Em
outras palavras, decorre da falta de habilidade no exercício de atividade técnica.
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev.,
atualizada de acordo com o código civil de 2002 e aumentada
por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 149.
29
FGV DIREITO RIO 26
responsabilidade civil e direito do consumidor
A culpa ainda pode ser graduada em razão da gravidade da conduta. Apesar
do Código Civil não fazer qualquer menção sobre o tema, tanto doutrina quanto
jurisprudência têm se utilizado dos graus de culpa no momento da fixação da indenização, especialmente no dano moral.
Entrementes, para analisar a conduta é preciso saber qual é o padrão por que se
afere a conduta do lesante, ou seja, será a diligência que o agente costuma aplicar
nos seus atos, ou será a diligência de um homem normal, medianamente sagaz,
prudente, avisado e cuidadoso?
A doutrina coloca que deve se aferir através da culpa em abstrato. Isto é, determina-se pelo modelo de um homem-tipo a que no direito romano se designava por
bonus pater familiar (bom pai de família), que é o homem médio.
Admite-se, então, três graus de culpa: grave, leve e levíssima. Culpa grave é aquela imprópria ao comum dos homens. É o erro grosseiro, descuido injustificável e
equiparado ao dolo.
A culpa leve, por sua vez, é a falta evitável com atenção ordinária, com o cuidado próprio do homem comum. Por fim, a culpa levíssima caracteriza-se pela falta
de atenção extraordinária, com especial habilidade ou conhecimento singular. Não
obstante os diferentes graus, aquele que age com culpa (mesmo que levíssima) está
obrigado a reparar (in lege Aquilia et levissima culpa venit).
Espécies de Culpa
Embora as espécies de culpa aqui referidas estejam praticamente extintas em
razão do Código Civil de 2002 estabelecer a responsabilidade objetiva por fato de
outrem ou na responsabilidade pelo fato do animal ou da coisa, é importante para
fins didáticos explicá-las. A doutrina geralmente coloca como espécies de culpa as
culpas in eligendo, in vigilando e in custodiando.
A primeira caracteriza-se pela má escolha do preposto. Nesse diapasão, foi elaborada a Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal que determinava presumida a
culpa do patrão pelo ato culposo do empregado ou preposto.
A culpa in vigilando decorre da falta de atenção ou cuidado com o procedimento
de outrem que estava sob a guarda ou responsabilidade do agente. Por fim, a culpa
in custodiando caracteriza-se pela falta de atenção em relação a animal ou coisa que
estavam sob os cuidados do agente.
Culpa presumida
Se por um lado foi adotado em quase todos os ordenamentos do mundo uma
teoria geral de responsabilidade civil fundada na culpa, por outro lado, essa teoria
traz um grave óbice à reparação da vítima.
Com efeito, na medida em que as atividades humanas vão se expandindo e se
tornando menos controláveis, os riscos vão se multiplicando. Diante dessa nova realidade, a responsabilidade civil vem exorbitando seus antigos domínios30 para tentar
alcançar soluções conforme os anseios sociais. O desenvolvimento das indústrias e
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2ª Ed.
São Paulo: Saraiva, 1974, p.151.
30
FGV DIREITO RIO 27
responsabilidade civil e direito do consumidor
dos meios de transporte veio denunciar-lhe a insuficiência para a solução de grande
número de casos.31
A verdade é que exigir da vítima uma prova que ela não pode produzir é o
mesmo que negar a reparação. A prova da culpa em algumas situções é uma prova
impossível de ser produzida. Nesse diapasão, em conformidade com a tendência
que tem como escopo a reparação da vítima e, de acordo com o princípio da ampla
reparação, a doutrina e jurisprudência passaram a admitir o recurso à inversão da
prova, como fórmula de assegurar ao autor as probabilidades de bom êxito que de
outra forma lhe fugiriam totalmente em muitos casos.32
Dessa forma, surgem as hipóteses de culpa presumida. Nessa seara, ainda é imprescindível a culpa para fins de reparação, contudo, existe uma presunção cabendo
ao autor do dano demonstrar que sua conduta não foi culposa. É, portanto, uma
relativização do brocardo latino actori incumbit probatio (ao autor cabe o ônus da
prova). A sua vantagem é que através da culpa presumida, permite-se que a vítima
seja reparada em inúmeras situações.
Concepção normativa da culpa
A concepção normativa, por sua vez, baseia-se na idéia de erro de conduta. Inúmeras atividades são desempenhadas diariamente que podem provocar danos. Por
essa razão, a lei estabelece uma série de deveres e cuidados que o agente deve ter
quando desempenhar essas atividades (p. ex. limite de velocidade, uso de equipamentos especiais, etc).
Não havendo normas legais ou regulamentares específicas, o conteúdo do dever
objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um princípio metodológico – comparação do fato concreto com o comportamento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum, capaz e prudente33. Isto é, entende-se
que a culpa é a quebra do dever a que o gente está adstrito por norma específica
(legal ou contratual) e na falta desta, pelo dever genérico de não causar dano a outrem (neminem laedere).
A diferença da concepção clássica para a concepção normativa é que nesta não
se exige um dever universal de cuidado, mas um padrão de conduta (standard) a ser
utilizado para cada situação específica, ou seja em cada caso concreto. A culpa aqui
passou a representar a violação de um padrão de conduta34, de onde conclui-se que
a noção de culpa é normativa, exigindo um juízo de valor em cada caso.35
ALVIM, Agostinho, Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, 4ª Ed. Atual., São Paulo: Saraiva, 1972, p. 305.
31
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev.,
atualizada de acordo com o código civil de 2002 e aumentada
por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 110.
32
CAVALIERI FILHO, Sergio.
Programa de Responsabilidade
Civil, Rio de Janeiro: Malheiros
Editores, 2003, p. 53.
33
2. Caso gerador
MORAES, Maria Celina, Bodin
de. Danos a Pessoa Humana:
uma leitura civil-constitucional
dos danos morais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 212.
34
Joana era uma senhora de 40 anos. Cansada de sua aparência, resolveu matricular-se em uma academia de ginástica para emagrecer e modelar seu corpo.
Todavia, após seis meses de academia, achava que não estava no ponto ideal. Foi
quando sua amiga, Cléia, sugeriu que fosse ao seu médico, Dr. Paulo, para uma
lipoaspiração.
CAVALIERI FILHO, Sergio.
Programa de Responsabilidade
Civil, Rio de Janeiro: Malheiros
Editores, 2003, p. 53.
35
FGV DIREITO RIO 28
responsabilidade civil e direito do consumidor
Chegando no consultório médico, o médico sugeriu que fizesse uma cirurgia
estética reformadora de mamas e abdômem. Realizada a cirurgia, Joana teve alta
dois dias depois.
Ocorre que chegando em casa, a paciente começou a sentir dores insuportáveis
nas mamas, abdômen e na cabeça. Ao ligar para o médico, este informou que ela deveria continuar com o tratamento anteriormente prescrito. Ao persistirem as dores,
Joana se dirigiu ao hospital local onde foi informada que seu estado era gravíssimo,
apresentando coloração preta nos mamilos e pontos amarelados. Foi informada,
ainda, que seus mamilos foram totalmente comprometidos. Sofreram processo de
necrose, que significa a morte dos tecidos afetados, resultando cicatrizes em seu
lugar.
Após a cirurgia, Joana sofreu de depressão e precisou fazer duas cirurgias corretivas. Inconformada com a situação, a paciente ingressou com ação de indenização
por danos materiais e morais.
Em defesa, o médico alegou tão somente que a autora não demonstrou sua culpa. Decida com base na legislação pertinente.
3. Questões de concurso:
OAB – 31° Exame de Ordem (1ª fase)
44) Quanto à responsabilidade civil aquiliana pode-se afirmar:
A. Limita-se única e exclusivamente à pessoa de agente;
B. Para sua caracterização depende sempre da comprovação da culpa;
C. Ocorrendo excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, o juiz
poderá reduzir, eqüitativamente, o valor da indenização;
D. A nossa sistemática jurídica não admite a responsabilização por omissão.
FGV DIREITO RIO 29
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 5. Risco e Responsabilidade objetiva
Leitura Obrigatória
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 18/29.
Leitura Complementar
COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, 10ª ed. reelaborada,
Coimbra: Almedina, 2006, p. 524/539. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 126/140.
Pietro Trimarchi. Istituzioni di Diritto Privato. Milão: Giuffrè, 17ª ed., 2007;
pp. 126/133.
1. Roteiro de Aula
A responsabilidade objetiva
Como vimos, a evolução da responsabilidade civil levou a criação de uma teoria
geral fundada na culpa. Isto é, dos danos que cada um sofra, só lhe será possível
ressarcir-se à custa de outrem quanto àqueles que, provindo de ato ilícito, sejam
imputáveis a conduta culposa de terceiros. Os restantes, quer provenham de caso
fortuito ou de força maior, quer sejam causados por terceiro, mas sem culpa do
autor, terá de suportá-los o titular dos bens ou direitos lesados.36
Entretanto, se a responsabilidade fundada na culpa ainda é importante, ela é
insuficiente para reparar todos os danos sofridos na sociedade dinâmica em que
vivemos. Com efeito, no mundo contemporâneo, fortemente tecnológico e industrializado, o desenvolvimento das possibilidades e dos modos de atuação humana
também multiplicou os riscos.37
Ora, em uma sociedade desenvolvida, com tantos avanços científicos e tecnológicos, os interesses das pessoas se entrecruzam e se interpenetram com muito mais
intensidade, criam-se relações sociais complexas, surgem novos vínculos de naturezas
díspares, as atividades jurídicas adentram cada vez mais na esfera jurídica dos demais38.
Todas essas novas situações, entretanto, trazem consigo um mal: o contato incessante
faz com que os interesses sofram constantes atentados Nos dizeres de Alvino Lima
vivemos mais intensamente e mais perigosamente e, assim, num aumento vertiginoso,
crescente e invencível, de momentos e de motivos para colisões de direitos39.
A vida moderna, portanto, ressaltando a categoria dos danos resultantes de fatalidades, levantou a questão relativa à sua adequada reparação, a que não satisfaziam
os moldes tradicionais.
VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10
ª Edição, Revista e Actualizada,
Coimbra: Almedina, 2000, p.
630.
36
COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações,
10ª ed. reelaborada, Coimbra:
Almedina, 2006, p. 528.
37
MAZEAUD, Henri, MAZEAUD,
Leon y TUNC, André. Tratado
teórico y práctico de la responsabilidad civil delictual y contratual. Tomo primeiro, vol I, trad.
Luis Alcalá-Zamora y Castillo.
5ª Ed. Buenos Aires: Ediciones
Jurídicas
Europa-América,
1961, p.11.
38
Lima, Alvino, Culpa e Risco, 2ª
edição revista e atualizada pelo
Prof. Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 1998, p. 16.
39
FGV DIREITO RIO 30
responsabilidade civil e direito do consumidor
É nesse contexto que surge o sistema da responsabilidade objetiva que independe
da culpa. Com efeito, assiste-se a um claro movimento que busca garantir a reparação dos chamados danos anônimos, ou seja, a reparação de todo e qualquer dano,
independentemente do caráter culposo ou ilícito do ato que o produziu.
O sistema objetivo, portanto, é uma evolução natural da teoria da responsabilidade civil que visa à reparação da vítima, pois se percebeu que se a vítima tivesse
que provar a culpa do causador do dano, em numerosíssimos casos ficaria sem
indenização.
Atento às modificações, nosso ordenamento pátrio, na vigência do Código Civil de
1916 só admitia o sistema objetivo quando previsto em lei. A primeira positivação da
teoria se deu com a Lei das Estradas de Ferro (Decreto nº. 2.681/12). Posteriormente
com o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86). A adoção completa da teoria
se deu com o advento da CRFB/88 que previu a responsabilidade objetiva do Estado
(art. 37, § 6º) e com o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).
Por fim, é preciso ressaltar que com a promulgação do Código Civil de 2002,
instituiu-se uma cláusula geral de responsabilidade objetiva no art. 927, parágrafo
único. Em inovação importantíssima, podemos dizer que o ordenamento brasileiro,
atualmente, vive um sistema dualista de responsabilidade civil em que coexistem o
sistema subjetivo e objetivo através de suas cláusulas gerais (art. 186 e 927, parágrafo único do CC).
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Teoria do Risco
Na busca por um fundamento para a responsabilidade civil objetiva, os juristas
conceberam a teoria do risco. Por essa teoria, compreende-se que se alguém exerce
uma atividade criadora de perigos especiais, deve responder pelos danos que ocasione a terceiros40. A responsabilidade, portanto, surge em virtude da potencialidade
de danos da atividade exercida.
Registre-se que várias são as modalidades da teoria do risco.
(i) Risco-proveito: responsável é aquele que tira proveito da atividade danoso,
com base no princípio de quem aufere o bônus, deve suportar o ônus.
(ii) Risco profissional: o dever de indenizar tem lugar sempre que o fato prejudicial é uma decorrência da atividade ou profissão do lesado. Foi desenvolvida
especificamente para justificar a reparação dos acidentes de trabalho.
(iii)Risco excepcional: a reparação é devida sempre que o dano é conseqüência
de um risco excepcional, que escapa à atividade comum da vítima, ainda que
estranho ao trabalho que normalmente exerça.
COSTA, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações,
10ª ed. reelaborada, Coimbra:
Almedina, 2006, p. 613.
40
FGV DIREITO RIO 31
responsabilidade civil e direito do consumidor
(iv)
Risco criado: aquele que, em razão de sua atividade ou profissão,
cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova
de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo.
Esclareça-se que o art. 927, parágrafo único do Código Civil não faz qualquer
restrição ao tipo de risco. Em outras palavras, o referido dispositivo determina apenas a reparação quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Dessa forma, importante citar a conclusão de Anderson Schreiber:
Diante do exposto, a conclusão mais razoável parece ser a de que a cláusula geral
de responsabilidade objetiva dirige-se simplesmente às atividades perigosas, ou seja,
às atividades que apresentam grau de risco elevado seja porque se centram sobre bens
intrinsecamente danosos (como material radioativo, explosivo, armas de fogo etc),
seja porque empregam métodos de alto potencial lesivo (como o controle de recursos
hídricos, manipulação de energia nuclear etc.). Irrelevante, para a incidência do dispositivo, que a atividade de risco se organize ou não sob forma empresarial ou que se
tenha revertido em proveito de qualquer espécie para o responsável.41
Risco Integral
Não obstante as teorias até aqui apontadas, é importante tratar da chamada
teoria do risco integral. Essa é uma modalidade extremada da teoria do risco em
que o agente fica obrigado a reparar o dano causado até nos casos de inexistência
do nexo de causalidade. O dever de indenizar surge tão-só em face do dano, ainda
que oriundo de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou força
maior.
A doutrina estabelece, geralmente, três hipóteses de risco integral em nosso ordenamento.
(i) Dano ambiental: o art. 225, § 3º da CRFB/88 c/c art. 14, § 1º da Lei 6.938/
81 estabelecem a obrigação de reparar o dano ambiental independentemente
de culpa. A exegese dos referidos artigos importa em uma hipótese de risco
integral, pois caso fosse possível invocar o caso fortuito e a força maior, ficaria fora da incidência da lei a maior parte dos casos de poluição (p.ex. carga
tóxica de navio avariado em razão de tempestades marítimas).
Art.225, § 3º, CRFB/88 - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio
ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Art. 14, Lei 6.938/81 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade
ambiental sujeitará os transgressores:
SCHREIBER, Anderson. Novos
paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da
reparação à diluição dos danos.
São Paulo: Atlas, 2007, p. 25.
41
FGV DIREITO RIO 32
responsabilidade civil e direito do consumidor
(...)
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar
os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O
Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de
responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
(ii) Seguro obrigatório - DPVAT: A Lei 6.194/74, alterada pela Lei 8.441/92,
estabeleceu que a indenização pelo seguro obrigatório para os proprietários
de veículos automotores é devida, mesmo que o acidente tenha sido provocado por veículo desconhecido, ou não identificado e ainda que tenha havido
culpa exclusiva da vítima.
Art. 5º, Lei 6.194/74 - O pagamento da indenização será efetuado mediante
simples prova do acidente e do dano decorrente, independentemente da existência
de culpa, haja ou não resseguro, abolida qualquer franquia de responsabilidade do
segurado.
(iii)Danos nucleares: dado a enormidade dos riscos decorrentes da exploração da
atividade nuclear, também foi adotada a teoria do risco integral. A Constituição em seu art. 21, XXIII, “d” determina que a responsabilidade civil por
danos nucleares independe da existência de culpa. Todavia, o art. 8º da Lei
6.453/77 exclui a responsabilidade do operador pelo dano resultante de acidente nuclear causado diretamente por conflito armado, hostilidades, guerra
civil, insurreição ou excepcional fato da natureza.
Art. 21, CRFB/88 - Compete à União:
(...)
XXIII - explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer
monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a
industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os
seguintes princípios e condições:
(...)
d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa;
Art. 8º, Lei 6.453/77 - O operador não responde pela reparação do dano resultante de acidente nuclear causado diretamente por conflito armado, hostilidades,
guerra civil, insurreição ou excepcional fato da natureza.
O fundamento da responsabilidade objetiva
Se, inicialmente, o sistema objetivo foi adotado com fundamento exclusivo na
teoria do risco, atualmente, existem outras fontes legitimadoras do referido sistema.
Verifica-se uma crescente conscientização de que a responsabilidade objetiva consiste em uma responsabilização não pela causa, mas pelo resultado.42
SCHREIBER, Anderson. Novos
paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da
reparação à diluição dos danos.
São Paulo: Atlas, 2007, p. 28.
42
FGV DIREITO RIO 33
responsabilidade civil e direito do consumidor
2. Caso Gerador
Carla, uma senhora de 63 anos, dirigiu-se ao supermercado local Compre Sempre S/A para realizar as compras do mês. Enquanto atravessa o corredor de grãos
para adquirir sal, escorregou em arroz espalhado no chão, sofrendo uma queda forte
que veio a lhe acarretar traumatismo no joelho esquerdo.
No mesmo dia foi encaminhada ao Hospital da Ajuda, acompanhada por um
preposto do Supermercado permanecendo lá internada para tratamento cirúrgico
do joelho fraturado, quando, então, retornou para casa, carecendo de acompanhamento domiciliar em tempo integral.
Procurada para reparar os danos sofridos, o supermercado alegou que sempre
manteve uma equipe de limpeza e, portanto, por não poderia ser imputada qualquer responsabilidade civil.
Tem razão o supermercado? Justifique com base na legislação pertinente.
3. Questões de concurso:
OAB/RJ 31° Exame de Ordem
Questão 30 – Não é hipótese de responsabilidade objetiva:
a. A responsabilidade do Estado pelos danos causados pelos seus agentes;
b. A responsabilidade civil por abuso de direito
c. A responsabilidade dos profissionais liberais
d. A responsabilidade do Empregador pelos danos causados por seus empregados, no exercício da atividade que lhe compete.
FGV DIREITO RIO 34
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 6. Nexo causal
Leitura obrigatória
TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade, in Temas de direito
civil, tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.63/82.
Leituras complementares
CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilidade civil.
Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33/154. VARELA, Antunes, Das Obrigações em geral, Volume I, 10 ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra: Almedina, 2000, p. 887/900.
1. Roteiro de aula
Inúmeros são os danos sofridos pelas pessoas no seu dia-a-dia, especialmente
no mundo moderno de massas em que vivemos atualmente. Entretanto, o dano só
pode gerar a obrigação de indenizar quando for possível estabelecer com certeza absoluta que certa ação ou omissão, cometida por alguém, provocou o referido dano.
Nas palavras de Agostinho Alvim:
“O dano só pode gerar responsabilidade quando seja possível estabelecer um
nexo causal entre ele e o seu autor, ou, como diz SAVATIER, um dano só produz
responsabilidade, quando ele tem por causa uma falta cometida ou um risco legalmente sancionado”43.
A doutrina define nexo causal como um elemento referencial entre a conduta e o
resultado44. É o liame que une a conduta do agente ao dano. Trata-se de tarefa árdua
ao aplicador do direito.
Diversas são as teorias para explicar o nexo de causalidade. No Brasil, entretanto,
são citadas apenas três correntes para identificação da causa que efetivamente gerou
o dano: i) Teoria da Equivalência das condições; ii) Teoria da Causalidade Adequada
e iii) Teoria Do Dano Direto e Imediato. Parece importante, neste momento, analisar as teorias e suas subteorias para um melhor aprofundamento do tema.
ALVIM, Agostinho, Da Inexecução das Obrigações e Suas
Conseqüências, 4ª Ed. Atual.,
São Paulo: Saraiva, 1972, p.
340.
43
Teoria da Equivalência das Condições
A primeira delas, formulada em 1860 por Von Buri, considera como causa do
dano qualquer evento que contribui para determinado dano, por si só, capaz de gerálo. Entende-se que se não fosse a presença de cada uma das condições na hipótese
CAVALIERI FILHO, Sergio,
Programa de Responsabilidade
Civil, Rio de Janeiro: Malheiros
Editores, 2003.
44
FGV DIREITO RIO 35
responsabilidade civil e direito do consumidor
concreta, o dano não ocorreria. Como o próprio nome diz, as condições são equiparadas às causas. Ela, portanto, aceita qualquer das causas como eficiente45.
É bem verdade que a experiência de vida e a simples reflexão do jurista sobre
a realidade das coisas ensinam que o processo causal conducente a qualquer
dano, como na verificação de qualquer outro fato, concorrem no geral múltiplas
circunstâncias46. Logo, a crítica a essa teoria é que poderia se imputar responsabilidade a um sem número de pessoas.47 É o exemplo clássico de se responsabilizar
o fabricante da cama pelo adultério, pois este não ocorreria se não existisse a
cama.
Teoria da Causalidade Adequada
Essa teoria, concebida pelo filósofo Von Kries, procurou identificar, na presença
de uma possível causa, aquela potencialmente apta a produzir o dano. Faz-se um
juízo de valor abstrato para verificar se a causa do dano ordinariamente é apta a
produzir aquele resultado.
Em outras palavras, não basta que o fato praticado pelo agente tenha sido, no
caso concreto, condição sine qua non do dano; é imprescindível ainda que, em abstrato, o fato seja causa adequada do dano. Deve-se escolher entre os antecedentes
históricos do dano, aquele que, segundo o curso normal das coisas, se pode considerar apto para o produzir, afastando aquela que só por virtude de circunstâncias
extraordinárias o possa ter determinado. Essa doutrina se dividiu em duas correntes:
a positiva e a negativa.
A primeira entendia que será causa adequada do dano, sempre que este constitua
uma conseqüência normal ou típica daquele, ou seja, sempre que, verificado o fato,
se possa prever o dano como uma conseqüência natural ou como efeito provável
dessa verificação.
A segunda entendia que o fato que atuou como condição do dano só deixará de
ser considerado como causa adequada se, dada a natureza geral, se mostrar de todo
em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude
das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anômalas, que intercederam no caso concreto.
Em Portugal, a doutrina adotou a teoria da causa adequada tendo como preferência a doutrina negativista com base no art. 563 do Código Civil Português que
dispõe que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o
lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
O problema desta teoria está no sentido de que se a causa só gerou o dano no
caso devido a circunstâncias especiais, então a causa não seria adequada. A crítica
reside no fato de que seria uma teoria complexa e imprecisa. Nossos tribunais têm se
manifestado expressamente pela adoção da teoria da causalidade adequada, todavia,
dão à essa teoria os contornos da teoria da necessariedade da causa como veremos
a seguir.
ALVIM, Agostinho, Da Inexecução das Obrigações e Suas
Conseqüências, 4ª Ed. Atual.,
São Paulo: Saraiva, 1972, p.
345.
45
ANTUNES VARELA, João de
Matos, Das Obrigações em Geral,
Tomo I, 10ª Ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 881.
46
TEPEDINO, Gustavo, Temas de
Direito Civil – Tomo II, Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 66.
47
FGV DIREITO RIO 36
responsabilidade civil e direito do consumidor
Teoria do Dano Direto e Imediato
Por fim, a última teoria dispõe que o dever de reparar surge quando o evento
danoso é efeito direto e imediato de certa causa. É a Teoria do Dano Direto e Imediato.
Para explicar essa teoria, surgiram algumas subteorias. A primeira, de MOSCA
procurava diferenciar a causa do mundo físico da causa jurídica, pois segundo ele,
só seriam causas jurídicas os fatos ilícitos. Para se determinar a causa direta e imediata no campo jurídico, seria necessário desconsiderar os fatos naturais, bem como
os voluntários não ilícitos.
A segunda subteoria, de autoria de COVIELLO, determinava que suposta a
mora do devedor, responde ele pelo caso fortuito, salvo se provar que o mesmo sucederia, ainda que não houvesse mora. Isto é, o dano teria sido produzido ainda que
se abstraísse o ato do devedor. A crítica aqui reside no fato de que é difícil chegar a
conclusão tão exata, pois seria necessário medir a força do evento para saber se este,
por si só, seria ou não capaz de produzir o dano.
Por fim desenvolveu-se a subteoria da necessariedade. Procura se verificar nessa teoria se aquela causa, no caso concreto, foi a causa necessária ao resultado produzido.
Quer dizer, procede-se à um juízo de valor do caso concreto, diferenciando-se da
Teoria da Causa Adequada. O devedor só responde pelos danos que são conseqüência necessária do inadimplemento, mas não pelos originados de outras conseqüências não necessárias, de mera ocasião.Nas palavras de Agostinho Alvim:
“Ela é causa necessária desse dano, porque ele a ela se filia necessariamente; é
causa única, porque opera por si, dispensadas outras causas”.48
A causa direta e imediata, portanto, nem sempre será a causa mais próxima do
dano, mas aquela que necessariamente o ensejou. Como dito anteriormente, apesar
da jurisprudência brasileira constantemente fazer alusão à Teoria da Causalidade Adequada, ela dá a seu conteúdo os contornos da Teoria do Dano Direto e Imediato.
Nosso ordenamento jurídico adotou a terceira teoria acima. Afinal, o art. 403 do
Código Civil prevê que ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas
e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e
imediato. Também esse o entendimento do STF. Alerte-se que, embora o artigo se
refira a responsabilidade contratual, o dispositivo é aplicável, também, em matéria
de responsabilidade extracontratual.
Concorrência de Causas
O problema da causalidade se torna ainda mais difícil quando várias causas concorrem
para a ocorrência de um dano. É o fenômeno denominado concorrência de causas.
Na produção de um dano podem participar várias causas. Essa participação pode
se dar de diversas formas. Elas podem ser subseqüentes, complementares, cumulativas ou alternativas.
ALVIM, Agostinho, Da Inexecução das Obrigações e Suas
Conseqüências, 4ª Ed. Atual.,
São Paulo: Saraiva, 1972, p.
356.
48
FGV DIREITO RIO 37
responsabilidade civil e direito do consumidor
Na primeira hipótese o fato praticado por uma pessoa é a causa do fato praticado
por outra: o depositário deixa, por negligência, a coisa abandonada em local que
propicia o furto cometido por outra pessoa.
A segunda ocorre quando duas ou mais causas concorrem para a produção de
um resultado que não seria alcançado de forma isolada por nenhuma delas. Ex. A
colide com um veículo pesado em certa casa deixando-a bastante abalada, logo a
seguir, B, condutor de outro veículo do mesmo tipo bate na mesma casa e deita-a
abaixo.
Nas hipóteses de causalidade cumulativa os fatos praticados pelos agentes não
necessitariam de somar-se um ao outro para a ocorrência do dano, visto que qualquer deles produziria o resultado isoladamente.
A última hipótese é a situação em que não se pode definir exatamente qual dos
vários participantes causou o dano. Isto é, o agente de um grupo causou um dano,
mas não é possível determinar qual agente.
Ressalte-se, por fim, que as causas complementares e as concorrentes podem
ocorrer de forma simultânea ou sucessiva. A regra do art. 942 estabelece que todos
os que contribuíram para o dano respondem solidariamente perante a vítima. Entretanto, na hipótese de causas suspensivas, “é possível cogitar-se de uma espécie
de ‘causalidade parcial’ em que cada uma das causas vai dar origem a uma parcela
independente do dano que, justamente por ser formado por partes autônomas, será
imputado a diferentes autores sem a regra de solidariedade”49.
Classificam-se, ainda, em: (i) preexistentes; (ii) concomitantes ou (iii) supervenientes.
Quanto às concausas preexistentes, não são hábeis a eliminar a relação causal.
Por isso é que as condições peculiares da vítima em nada reduzem a responsabilidade do agente, ainda que sirvam para agravar o resultado da conduta. No exemplo
de Sérgio Cavalieri Filho, diz o autor que “será irrelevante, [...], que de uma lesão
leve resulte a morte por ser a vítima hemofílica; que de um atropelamento resultem
complicações por ser a vítima diabética; que da agressão física ou moral resulte a
morte por ser a vítima cardíaca; que de pequeno golpe resulte fratura de crânio em
razão da fragilidade congênita do osso frontal etc. Em todos esses casos, o agente
responde pelo resultado mais grave, independentemente de ter ou não conhecimento da concausa antecedente que agravou o dano”.50
As concausas concomitantes são aquelas que se dão simultaneamente ao fato
gerador do dano e as supervenientes são aquelas que, naturalmente, ocorrem após o
evento danoso. Em ambos os casos, o tratamento a ser dado às concausas concomitante e superveniente é aquele dispensado às concausas preexistentes.
No entanto, uma observação se faz quanto às concausas supervenientes. Estas
terão relevância quando inaugurarem um novo curso de acontecimento que rompa
com o nexo causal anterior. Isso significa que se a concausa superveniente for suficiente para gerar o dano por si só, ela interromperá o nexo causal eximindo o agente
de responsabilidade.
CRUZ, Gisela Sampaio da,
O problema do nexo causal na
responsabilidade civil, Rio de
Janeiro: Renovar, 2005, p. 30.
49
Sergio Cavalieri. Programa
de Responsabilidade Civil. São
Paulo: Atlas, 2007; p. 58
50
FGV DIREITO RIO 38
responsabilidade civil e direito do consumidor
Caso
João fumou a vida toda. Passados trinta anos, após apresentar problemas pulmonares, resolve ajuizar uma ação indenizatória em face da empresa de cigarros.
Procede a indenização?
FGV DIREITO RIO 39
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 7. Excludentes de responsabilidade civil I
Leitura Obrigatória
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev., atualizada de acordo
com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 919/939 e 944/949.
Leitura Complementar
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 63/65 – 291/300.
1. Roteiro de Aula
Até o presente momento viemos tratando da imputação da responsabilidade.
Contudo, é imprescindível estudar as formas de defesa do autor do dano. Isto é, é
importante examinarmos as causas de isenção ou exoneração da responsabilidade.
As causas de exoneração, em regra, atuarão no nexo de causalidade. Em outras
palavras, as hipóteses de exclusão de responsabilidade, normalmente, interromperão o nexo causal dirigido à produção do dano.
Dessa forma, o estudo do nexo de causalidade toma grande relevância dentro da
responsabilidade civil, especialmente se considerarmos o alargamento das hipóteses
de responsabilidade sem culpa.
Geralmente são elencadas como excludentes de responsabilidade: i) estado de
necessidade e legítima defesa; ii) culpa exclusiva da vítima; iii) fato exclusivo de
terceiro; iv) caso fortuito ou força maior; e v) cláusula de não indenizar.
Estado de necessidade e legítima defesa
Nem sempre haverá coincidência entre dano e ilicitude. Existem situações que
exigem uma atuação danosa do agente, apesar de não serem considerados atos ilícito. Nos termos do art. 188 do Código Civil, quem pratica ato em estado de necessidade ou legítima defesa não pratica ato ilícito.
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de
remover perigo iminente.
FGV DIREITO RIO 40
responsabilidade civil e direito do consumidor
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as
circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do
indispensável para a remoção do perigo.
A legítima defesa ocorre quando o agente, usando moderadamente dos meios
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Trata-se de uma hipótese de autotutela. Ou seja, quando não é possível esperar a
atuação estatal na defesa de um direito, é concedido ao particular defendê-lo.
O estado de necessidade, por sua vez, ocorre quando alguém deteriora ou destrói
coisa alheia ou causa lesão em pessoa, a fim de remover perigo iminente. Registre-se
que, conforme dispõe o parágrafo único, o ato só será legítimo quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, sendo vedado o excesso ao indispensável para a remoção do perigo.
A questão que se coloca é: se a legítima defesa e o estado de necessidade são excludentes de ilicitude, fica excluída, também, o dever de indenizar? A resposta é no sentido
negativo. Embora a lei declare que o ato praticado em estado de necessidade ou legítima defesa não é ato ilícito, nem por isso libera quem o pratica de reparar o prejuízo.
No caso de estado de necessidade, o autor do dano responde perante o lesado,
se este não criou a situação de perigo. Todavia, caso a situação de perigo tenha sido
criada por um terceiro, terá ação regressiva em face do terceiro. É o que se extrai da
conjugação dos arts. 929 e 930 do Código Civil.
Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188,
não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que
sofreram.
Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que
tiver ressarcido ao lesado.
Na hipótese de legítima defesa, a solução é um pouco diferente. Se o ato foi
praticado contra o próprio agressor, e em legítima defesa, não pode o agente ser
civilmente responsabilizado pelos danos causados. Entrementes, se o dano foi causado a terceiro, então aquele que atuou em legítima defesa será obrigado ressarcir o
lesado, cabendo, é claro, ação regressiva contra o agressor. A solução está prevista no
parágrafo único do art. 930.
Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que
tiver ressarcido ao lesado.
Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se
causou o dano (art. 188, inciso I).
A idéia que está na base destas situações reguladas no direito privado aflora do
mesmo modo em outras situações compreendidas no direito público, como as
FGV DIREITO RIO 41
responsabilidade civil e direito do consumidor
desapropriações, cuja disciplina cabe ao direito administrativo. A utilidade pública
de certos fins legitima a apropriação coercitiva dos bens dos particulares por parte
do Estado; mas não justifica que a realização do fim de utilidade pública visado
pela apropriação coercitiva da coisa se obtenha à custa discriminada de um ou
alguns particulares.51
Se o ato lesivo é lícito, ao mesmo tampo não é justo (no plano da justiça comutativa ou distributiva) que ao interesse coletivo, ou ao interesse qualificado
da pessoa, se sacrifique sem nenhuma compensação os direitos de um ou mais
particulares.52
Culpa exclusiva da vítima e Culpa concorrente
Se é certo que só se responde perante o dano a que tenha dado causa, é certo,
também, que ninguém pode ser obrigado a indenizar por um resultado a que não
tenha causado.
Nesse diapasão a primeira causa de exclusão é o chamado fato exclusivo da vítima, também denominado culpa exclusiva da vítima. A conduta da vítima poderá
importar ou na exclusão da responsabilidade ou na atenuação no dever de indenizar.
Antes, porém, é preciso alertar acerca da terminologia em si.
Apesar do código e da doutrina se utilizarem da expressão culpa, em verdade, a
questão de fundo é a causa. Em outras palavras, o problema desloca-se da culpa para
o nexo causal. Com efeito, a responsabilidade será excluída em razão da conduta
danosa ser oriunda da própria vítima e não da sua culpa. Sendo assim, não é o grau
de culpa, mas a efetiva participação na produção do evento danoso que deve determinar o dever de indenizar.
Quando ocorrer fato exclusivo da vítima, portanto, fica eliminada a responsabilidade do agente em razão da interrupção do nexo de causalidade. Ou seja, nesse
caso deixa de existir a relação de causa e efeito entre o ato do agente e o prejuízo
experimentado pela vítima.
Todavia, o ato da vítima pode não ser suficiente para a produção do dano, mas
somente quando aliada à conduta do agente. Nesses casos, estaremos discorrendo
acerca da chamda culpa concorrente. Nesse peculiar, a conduta do agente e da vítima concorrem para o resultado em grau de importância e intensidade de sorte que
o agente não produziria o resultado sozinho, contando, para tanto, com o efetivo
auxílio da vítima. Isto é, autor e vítima contribuem para a produção de um mesmo
fato danoso.
Registre-se que na culpa concorrente a conseqüência jurídica será diferente, pois
não será excluída a responsabilidade, mas apenas atenuada, nos termos do art. 945
do Código Civil.
Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua
indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto
com a do autor do dano
ANTUNES VARELA, João de
Matos, Das Obrigações em Geral,
Tomo I, 10ª Ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 716.
51
52
Idem, p. 715.
FGV DIREITO RIO 42
responsabilidade civil e direito do consumidor
Não obstante o Código fale em culpa concorrente, é pertinente a crítica referente à culpa exclusiva. Em verdade a culpa concorrente também atua no plano da
causalidade, pois diz respeito à conduta da vítima.
Fato exclusivo de terceiro
Por outro lado, é possível que o dano seja produzido não em razão da conduta
do agente ou da vítima, mas da conduta de um terceiro. Nesse sentido, o fato de
terceiro também pode servir como fator de isenção de responsabilidade.
Terceiro é qualquer pessoa além da vítima e o responsável, ou seja, alguém que
não tem nenhuma ligação com o causador aparente do dano e nem com o lesado.
É preciso esclarecer que nem todo fato de terceiro é suficiente para elidir a responsabilidade do agente. Com efeito, em matéria de responsabilidade civil, predomina o princípio da obrigatoriedade do causador direto em reparar o dano. O fato
de terceiro não exonera o dever de indenizar, mas permite a ação de regresso em
face do terceiro.
Contudo, o fato de terceiro irá exonerar o dever de indenizar quando realmente
constitua causa estranha ao causador aparente do dano, isto é, quando elimine totalmente a relação de causalidade entre o dano e o desempenho do agente.53
Ressalte-se que se houver culpa concorrente do terceiro e do agente causador direto do dano, sendo solidária a responsabilidade, a vítima poderá acionar qualquer
um deles pela totalidade do prejuízo.
Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem
ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor,
todos responderão solidariamente pela reparação.
Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e
as pessoas designadas no art. 932.
É de se registrar duas questões de direito processual no que tange a fato de terceiro. A primeira diz respeito à defesa do réu. A sua alegação é matéria de mérito em
ação indenizatória e, portanto, não pode ser suscitada em preliminar de ilegitimidade passiva. É necessária a instrução probatória para se alcançar qual foi, efetivamente, a causa geradora do dano.
Outra questão processual que se coloca diz respeito à denunciação da lide. O art.
70, III do CPC determina que a denunciação da lide é obrigatória àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo
do que perder a demanda.
A questão sobre a obrigatoriedade da denunciação é controvertida. Ela pode ser
feita apenas para efeito de regresso. Mesmo assim, há os que interpretam de forma
restritiva o art. 70, III do CPC, não admitindo a denunciação em todos os casos em
que há direito de regresso, mas somente quando se trata de garantia do resultado da
demanda, ou seja, quando, resolvida a lide principal, torna-se automática a responsabilidade do denunciado, independentemente de discussão sobre sua culpa ou dolo.54
DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11ª revista
e atualizada de acordo com o
Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias, Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 926.
53
GONÇALVES, Carlos Roberto,
Responsabilidade Civil, 9ª ed.
rev. de acordo com o novo Código Civil, São Paulo: Saraiva,
2006, p. .751/752
54
FGV DIREITO RIO 43
responsabilidade civil e direito do consumidor
2. Caso gerador
Maria, moradora de Botafogo e correntista do Banco Nossa Vida S/A, ao se
dirigir a uma das agências bancária para pagar contas no caixa eletrônico, foi surpreendida com o comunicado de que não poderia utilizar o cartão eletrônico de sua
titularidade para pagamento.
Inconformada com a situação, pois sempre honrou com todas as suas dívidas,
Maria se dirigiu à sua agência e lá se surpreendeu com o saldo constante do extrato
bancário que lhe era favorável em R$ 3.000,00 (três mil reais), desconhecendo sua
origem. Ao procurar esclarecimentos junto ao gerente da agência, lhe foi informado
que aquela quantia correspondia ao saldo remanescente de um empréstimo de R$
9.000,00 (nove mil reais), contra os quais foram sacados diversos valores através do
cartão REDE SHOP em várias cidades do interior paulistano, tratando-se, assim,
de clonagem de cartão.
Tomadas as providências cabíveis em relação ao empréstimo indevido, recebeu
um novo cartão com chip, que sequer chegou a desbloquear. Novos saques, contudo, foram efetuados, tornando negativa a conta da Autora em R$ 900,00.
Cansada da situação, Maria ingressou com ação pleiteando danos materiais e
morais. Em defesa o Banco Nossa Vida alega que agiu licitamente e de forma devida, não configurando nenhum dano à Recorrida. Aduz, ainda, que o dano foi
causado por quadrilhas, que cada vez mais especializadas, conseguem criar novos
artifícios fraudulentos, visando ao favorecimento de criminosos e dando prejuízos
de toda ordem.
Como você, juiz da demanda, decidiria?
FGV DIREITO RIO 44
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 8. Excludentes de responsabilidade civil II
Leitura Obrigatória
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11ª ed. rev., atualizada de acordo
com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 935/943
Leitura Complementar
ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, 4ª Ed.
Atual., São Paulo: Saraiva, 1972, p. 325/338. FONSECA. Arnoldo Medeiros, Caso fortuito e teoria da imprevisão. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1943, p. 77/79-113/158.
1. Roteiro de Aula
Caso Fortuito e Força Maior
Continuando o tratamento das excludentes de responsabilidade, é preciso traçar
algumas linhas acerca do caso fortuito e força maior. Ambas as causas de exoneração
terão o mesmo efeito: a liberação do agente.
A doutrina tenta estabelecer distinções entre um e outro. Para Sérgio Cavalieri
Filho estaremos em face de caso fortuito quando se tratar de evento imprevisível e,
por isso, inevitável; se o evento for inevitável, ainda que previsível, como decorre
das forças da natureza, estaremos em face da força maior.
Caio Mário Pereira da Silva, por sua vez, define o caso fortuito como o acontecimento natural ou o evento derivado da força da natureza (terremotos, inundações);
enquanto a força maior seria o dano originado do fato de outrem (guerra, greves)55.
Já Carlos Roberto Gonçalves entende o caso fortuito como decorrente de fato ou
ato alheio e a força maior decorrente das forças da natureza.
Apesar do grande debate doutrinário acerca das diferenças entre as duas excludentes, em verdade, esta distinção torna-se irrelevante. José de Aguiar Dias chega a
afirmar que é inútil tentar distinguílas, pois as expressões são sinônimas. A verdade
é que a distinção não se faz necessária uma vez que o Código Civil em seu art. 393
do Código Civil, sem diferenciá-las, estabelece a mesma conseqüência para ambas
as excludentes: exoneração do dever de indenizar.
PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Instituições de direito civil, vol. II.
Rio de Janeiro: Editora Forense,
2006, p. 384.
55
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou
força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
FGV DIREITO RIO 45
responsabilidade civil e direito do consumidor
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário,
cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Dessa forma, sempre que presente um fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, estaremos diante de uma hipótese de caso fortuito ou força
maior apta a exonerar o agente. Não obstante o artigo se refira à responsabilidade
contratual, a jurisprudência já se firmou no sentido de que ele tem aplicação, também, à responsabilidade extracontratual.
A doutrina coloca, geralmente, dois requisitos para caracterizar a força maior e o
caso fortuito: i) necessariedade; e ii) a inevitabilidade. Existem alguns doutrinadores
que ainda colocam um terceiro requisito: a imprevisibilidade.
O primeiro diz respeito ao fato necessário e causador do dano, ou seja, o caso
fortuito ou força maior tem que ser suficientes para gerar o dano por si só. Em segundo lugar, é preciso que o dano seja inevitável, isto é, não existam meios hábeis
de evitar ou impedir os seus efeitos.
Caio Mário critica o requisito da imprevisibilidade, pois mesmo que previsível o
evento pode surgir com força indomável e inarredável de forma que seus efeitos são
inevitáveis. Ainda assim o agente estará isento de responsabilidade.
Outro ponto que merece destaque é a distinção entre fortuito interno e externo
para fins de liberação do agente. Essa teoria está ligada a idéia de atividade exercida.
Entende-se por fortuito interno o fato imprevisível e, por isso, inevitável que se liga
à organização da atividade. O fortuito externo, por sua vez, é o fato imprevisível e
inevitável, mas estranho à organização da empresa. Somente o fortuito externo tem
o condão de eximir o agente de responsabilidade.
Cláusula de não indenizar
Apesar de não ser uma causa legal de exclusão da responsabilidade, a cláusula de
não indenizar consiste numa estipulação prévia pela qual a parte que viria a obrigarse civilmente perante outra, afasta, de acordo com esta, a aplicação da lei comum
ao seu caso.56 Ressalte-se que a cláusula de não indenizar ou irresponsabilidade não
exclui o cumprimento da obrigação, mas apenas a sanção pelo descumprimento.
A cláusula é vista com extrema cautela no nosso direito e aplicada com bastante
restrição. Para saber da validade da cláusula de irresponsabilidade, deve-se indagar qual
a sua abrangência. Nessa seara, é interessante verificar quando ela não é admissível.
Inicialmente, a cláusula não é aceita quando o seu conteúdo é destinado a exonerar o devedor da responsabilidade em que incorreria em caso de dolo ou culpa
grave. Em segundo lugar, não é admissível quando não houver violação a interesse
de ordem pública.57
Nesse sentido, o nosso ordenamento impede a estipulação de cláusulas em diversas situações, especialmente quando se tratar de partes hipossuficientes ou vulneráveis. Nesse especial, o Código Civil estabelece em seu art. 424 que nos contratos
de adesão, são nulas as cláusulas que determinam a exclusão do dever de indenizar,
pois, neles, o aderente está impossibilitado de estipular seu conteúdo.
DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11ª revista
e atualizada de acordo com o
Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias, Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 906.
56
Idem, p. 906. V. nesse sentido,
também, PEREIRA, Caio Mário
da Silva. Instituições de direito
civil, vol. II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 391.
57
FGV DIREITO RIO 46
responsabilidade civil e direito do consumidor
Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.
No que diz respeito aos contratos de transportes, em razão da cláusula de incolumidade, o Código Civil estipula a nulidade da cláusula de não indenizar.
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula
excludente da responsabilidade.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/80), norma de ordem pública e
interesse social também condena a cláusula de irresponsabilidade em seus artigos 25
e 51, I em razão da vulnerabilidade do consumidor que se encontra numa posição
hierarquicamente inferior.
Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere
ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por
vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor
pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
O Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86) também estabelece uma limitação à cláusula de irresponsabilidade em seu art. 247.
Art. 247. É nula qualquer cláusula tendente a exonerar de responsabilidade o
transportador ou a estabelecer limite de indenização inferior ao previsto neste Capítulo, mas a nulidade da cláusula não acarreta a do contrato, que continuará regido
por este Código (artigo 10).
Por fim, a doutrina coloca alguns requisitos para a validade da cláusula de irresponsabilidade: i) bilateralidade do consentimento; ii) não-colisão com preceito de
ordem pública; iii) igualdade de posição das partes; iv) inexistência do escopo de
eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante; e v) ausência da intenção de afastar
obrigação inerente à função.
2. Caso gerador
Mariana estava animadíssima. Nunca havia viajado para fora do Brasil, mas esse
ano seu pai havia pago uma viagem para Nova York em razão de sua aprovação no
vestibular.
FGV DIREITO RIO 47
responsabilidade civil e direito do consumidor
Ao chegar ao aeroporto, fez o check in e se encaminhou para a área de embarque.
Às 13:00hs já estava dentro do avião, conforme estipulado em sua passagem. Todavia, para sua surpresa, o vôo que estava marcado para as 13:15hs somente ocorreu
às 10:00hs do dia seguinte.
A companhia aérea, então, informou que em virtude da sucção de um pássaro
pela turbina, ficou impedida de decolar por causa de risco de acidentes. Procurado
por Mariana, para ajuizar a respectiva ação de indenização, como você fundamentaria o pedido?
FGV DIREITO RIO 48
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 9. Responsabilidade Civil por ato de terceiro
Leitura obrigatória
TEPEDINO, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. II. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; p. 827/850.
Leituras complementares
DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11ª revista e atualizada de acordo
com o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias, Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 578/668-741/766.
1. Roteiro de aula
Como vimos, para se estabelecer responsabilidade civil, é preciso estabelecer que
a conduta do agente foi causa do resultado danoso. Com efeito, o dano só pode
gerar a obrigação de indenizar quando for possível estabelecer com certeza absoluta
quem foi o agente causador do dano. Nas palavras de Agostinho Alvim:
O dano só pode gerar responsabilidade quando seja possível estabelecer um nexo causal entre ele e o seu autor, ou, como diz SAVATIER, um dano só produz responsabilidade, quando ele tem por causa uma falta cometida ou um risco legalmente sancionado.58
O elemento constitutivo da responsabilidade civil, portanto, que permite alcançarmos essa certeza absoluta é o nexo causal. Ele é o elemento referencial entre a
conduta e o resultado59; o liame que une a conduta do agente ao dano. Nesse sentido, ninguém pode responder por algo que não fez.
No entanto, excepcionalmente, existem algumas situações em que o indivíduo
responde pelo fato de terceiro. Em outras palavras, é possível a imputação da responsabilidade sem que aquele que foi obrigado a indenizar tenha praticado a conduta causadora do dano.
Essas situações são: (i) responsabilidade por fato de outrem; (ii) responsabilidade
por fato dos animais; e (iii) responsabilidade por fato da coisa.
Responsabilidade por fato de outrem
A lei institui casos em que a pessoa responde sem ter causado dano. O art. 932
do Código Civil estabelece situações em que o indivíduo responde pelos atos danosos de outra pessoa.
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas
conseqüências, 4ª ed. atual. São
Paulo: Saraiva, 1972, p. 340.
58
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil.
São Paulo:Atlas, 2007, p. 46.
59
FGV DIREITO RIO 49
responsabilidade civil e direito do consumidor
Esse tipo de responsabilidade, entretanto, exige a existência de um vínculo jurídico prévio entre o responsável e o autor do ato ilícito resultando, daí, um dever de
guarda, vigilância ou custódia60. Nas palavras de José Aguiar Dias, citando Sourdat,
“a certas pessoas incumbe o dever de velar sobre o procedimento de outras, cuja
inexperiência ou malícia possa causar dano a terceiros. É lícito, pois, afirmar, sob
esse aspecto, que a responsabilidade por fato de outrem não representa derrogação
ao princípio da personalidade da culpa, porque o responsável é legalmente considerado em culpa, pelo menos em razão da imprudência ou negligência expressa na
falta de vigilância sobre o agente do dano.”61
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas
condições;
III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no
exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por
dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a
concorrente quantia.
Responsabilidade dos pais pelos filhos menores: os pais respondem pelos atos praticados por filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia. A
interpretação do dispositivo pela doutrina é no sentido dos pais responderem sempre que os filhos estiverem sob sua autoridade parental, independente da guarda.
Esclareça-se que o termo companhia não implica na presença física, mas deve ser
entendido no sentido de influência sobre a criança.
Responsabilidade dos tutores e curadores: a responsabilidade dos tutores e curadores é, em substância, equivalente à responsabilidade dos pais pelos filhos. No
entanto, em razão da tutela e curatela serem um múnus publico impostas por lei, a
jurisprudência encaminhou-se no sentido de examinar a extensão da responsabilidade com menos rigor.
Registre-se que o pródigo não está incluído no inciso II do art. 932 do CC.
Responsabilidade do empregador pelos atos do empregado: apesar da norma estabelecer a responsabilidade do empregador, a norma do art. 932, III, é subsidiária.
Com efeito, em razão da positivação de uma cláusula geral de responsabilidade
objetiva (parágrafo único do art. 927 do CC), da adoção da teoria do risco no art.
931 e, também, da adoção do sistema objetivo pelo CDC, a norma só será aplicável
em casos especiais não enquadráveis nas demais, como por exemplo, empregados
domésticos, motorista particular, etc.
Entende-se por empregado ou preposto o dependente, que receber ordens, sob o
poder de direção de outrem, que sobre ele exerce vigilância, a título mais ou menos
permanente.62
CAVALIERI FILHO, Sergio,
Programa de Responsabilidade
Civil, Rio de Janeiro: Malheiros
Editores, 2003, p. 186.
60
DIAS, José de Aguiar, Da
responsabilidade civil, Rio de
Janeiro: Forense, 2006.
61
62
DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11ª revista
e atualizada de acordo com o
Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias, Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p.759.
FGV DIREITO RIO 50
responsabilidade civil e direito do consumidor
Exige-se, ainda, que os atos culposos dos prepostos sejam praticados no exercício
do trabalho que lhes competir ou em razão dele.
Responsabilidade dos donos de hotéis e de estabelecimento de ensino: de origem romana, o dispositivo, hodiernamente, perdeu seu sentido. Silvio Rodrigues expõe
com propriedade ao afirmar que é “difícil imaginar a empresa Hilton, por exemplo,
ser responsabilizada pelo dano causado a terceiro, atropelado por seu hóspede, ou
por ele ferido em uma briga ocorrida na vizinhança”. Aliás, ressalte-se que à responsabilidade dos hotéis aplicam-se as normas do CDC.
Quanto à responsabilidade dos estabelecimentos de ensino, entretanto, a norma
ainda tem utilidade. Com efeito, tendo os pais transferido para certa instituição de
ensino a guarda transitória de seus filhos, esta passa a ser responsável pelos prejuízos
eventualmente causados pelos educandos.
Responsabilidade dos que participaram no produto de crime: o dispositivo não se
refere aos co-autores, porque estes estão incluídos no art 942 e respondem solidariamente. O artigo diz respeito as pessoas que inocentemente acabam auferindo
proveito da prática de um determinado crime.
Por fim, é importante notar a evolução do Código Civil. Se na vigência do Código de 1916 a responsabilidade por fato de outrem era baseada no sistema de culpa
presumida, o Código vigente adotou expressamente o sistema objetivo no art. 933,
determinando que as pessoas responsáveis no art. 932 respondem objetivamente,
independetemente de culpa.
Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que
não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali
referidos.
Responsabilidade pelo fato da coisa
Apesar de não prevista uma cláusula geral de responsabilidade pelo fato da coisa
em nosso Código, tanto doutrina quanto jurisprudência a admitem. Registre-se a
impropriedade da nomenclatura apontada por alguns autores. A razão de ser é que
o dano não é causado pela coisa, mas pela sua má utilzação, uma vez que aquela não
é capaz de fatos.
Em suma, a responsabilidade pelo fato da coisa, fundada na teoria da guarda,
estabelece que quem detém o comando (guarda), isto é, quem tem o poder de direção sobre a coisa, deve responsabilizar-se também pelos danos que o seu uso venha
a provocar, pois tais danos derivam, em última análise, da falta de devida vigilância
sobre a coisa.63 Para estabelecer a responsabilidade por fato da coisa, então, é imprescindível determinar quem tinha o poder de direção sobre ela no momento em
que foi causado o dano.
O Código Civil estabelece duas situações expressas de responsabilidade pelo fato
da coisa. A primeira, prevista no art. 937, determina que o dono do edifício ou
construção responde pelos danos oriundos de sua ruína.
TEPEDINO, Gustavo, BODIN DE
MORAES, Maria Celina e BARBOZA, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da
República, v. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004; p. 846.
63
FGV DIREITO RIO 51
responsabilidade civil e direito do consumidor
Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem
de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.
Alguns autores alegam que a responsabilidade do proprietário é objetiva, entretanto, o texto da lei faz alusão expressa à falta de reparos. No entanto, conforme
conclui José de Aguiar Dias, não se exige a prova da conduta culposa porque a
negligência na conservação do imóvel é constatação que deriva ipso facto de sua
própria ruína.
A segunda situação, prevista no art. 938, estabelece que aquele que habitar prédio responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem.
Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido.
A responsabilidade pelo effusum et deiectum é de caráter objetivo de acordo com
o Código Civil. Dessa forma, o habitante responde independentemente de culpa
pelo dano causado por queda ou arremesso de coisa em local indevido.
Questão complexa acerca do dispositivo legal diz respeito a objeto lançado de
condomínio edilício quando não for possível identificar o apartamento de onde a
coisa caiu. Para Caio Mário Pereira da Silva é imprescindível determinar qual a unidade autônoma. A crítica a essa posição é que em inúmeros casos (ou quase todos)
será impossível para a vítima produzir essa prova.
Por outro lado, para José de Aguiar Dias, a solução é a responsabilidade solidária
de todos os moradores. Admite, porém, a exclusão dos moradores da ala oposta
àquela em que o fato ocorreu. Essa é a posição que a jurisprudência vem adotando,
fundada na idéia de causalidade alternativa.
Responsabilidade por fato de animais
A responsabilidade por fato de animais vem regulada no art. 936 do Código
Civil, que estabelece que o dono ou detentor do animal ressarcirá o dano por este
causado.
Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se
não provar culpa da vítima ou força maior.
Com esse dispositivo, mostra-se que essa responsabilidade se filia à que é inspirada na obrigação de guarda64, ou seja, a responsabilidade surge em razão do risco assumido pela coisa que o indivíduo tem a seu serviço ou para recreação.65 Em outras
palavras, aquele que detém o poder de comando sobre certo animal tem, também,
o dever de evitar que ele cause danos a terceiros.
Interessante notar que o Código adotou a responsabilidade objetiva pelo fato de
animais. Atualmente, só é possível a exclusão da responsabilidade em razão da culpa
exclusiva da vítima ou força maior, não sendo possível alegar isenção de culpa.
DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11ª revista
e atualizada de acordo com o
Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias, Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 661.
64
65
Idem, p. 580.
FGV DIREITO RIO 52
responsabilidade civil e direito do consumidor
2. Caso Gerador
Robson, motorista particular de Marcelo, iria passar o fim de semana em Teresópolis. Marcelo, então, sabendo do fim de semana de folga de seu empregado,
permitiu que ele fosse com seu veículo. Chegando em Teresópolis, Robson abalroa,
com o automóvel de propriedade de Marcelo, o veículo de Nadja, moradora local.
Proposta ação indenizatória em face de Marcelo, este o procura para dar um
parecer sobre o tema.
3. Questão de concurso
OAB/RS – Exame de Ordem n° 02/2007
84. Assinale a assertiva correta:
a. Tendo em vista que a responsabilidade civil e a criminal são independentes,
a sentença proferida no juízo criminal não afeta o juízo civil.
b. Para fins de responsabilidade civil, há solidariedade dos pais com os filhos
menores, por atos praticados por estes.
c. Em nosso ordenamento jurídico, não há hipótese de responsabilização civil
do incapaz.
d. Em caso de dano, a demonstração do valor da indenização incumbe ao ofendido, não existindo hipótese de fixação da mesma pelo juiz.
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responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 10. Abuso do Direito
Leitura obrigatória
CASTRO NEVES, José Roberto. Uma Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2005; pp. 113/129.
Leituras complementares
TEPEDINO, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 241/266. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito
Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 553/583.
1. Roteiro de aula
O abuso do direito é uma figura moderna, construída a partir de decisões judiciais francesas proferidas a partir da metade do século XIX, mas apenas que ganharam corpo nas primeiras décadas do século passado. O abuso está inserido no
movimento de queda do voluntarismo, ou seja, do predomínio da vontade do titular de um direito como motor absoluto de seu exercício e, por isso, tem servido
para evidenciar a funcionalização de uma série de direitos, como a propriedade e os
contratos.
A disputa doutrinária sobre a conceituação do abuso do direito é vasta, mas pode-se reduzir os seus termos ao debate atual sobre o abuso como exercício do direito
fora da sua função, ou ainda como exercício do direito de forma a contradizer o
valor que o mesmo busca tutelar. Dessa forma, o abuso do direito representaria uma
infração a limites que não estão colocados na existência de direitos de terceiros, mas
sim em elementos típicos do próprio direito, como a sua função ou o seu valor.
No campo da responsabilidade civil o abuso do direito ganha destaque pois essa
figura evidenciará que, em numerosas hipóteses, seria incorreto afirmar-se estar na
existência de um ato ilícito, embora a ocorrência de dano possa ser constatada.
Origens e teorias do abuso do direito
Na coletânea de decisões proferidas pelos tribunais franceses a partir de meados
do século XIX até o início do século XX não se encontra a menção a uma “teoria do
abuso do direito”. Essa denominação foi cunhada por Laurent que, ao se debruçar
sobre as referidas decisões enfocando os limites ao exercício do direito subjetivo,
nelas identificou um padrão que poderia servir de base para a criação desse novo
instituto.
FGV DIREITO RIO 54
responsabilidade civil e direito do consumidor
Uma das decisões mais notórias nesse período histórico é aquela proferida em
1853, na qual um tribunal francês obrigava o proprietário de um terreno a destruir
uma chaminé que o mesmo havia edificado anteriormente. Segundo constou do
processo, a construção da chaminé havia sido realizada apenas para fazer sombra
sobre um terreno adjacente.
Em outra oportunidade, decidiu-se que também agia com abuso de direito o
proprietário de um terreno que bombeava água para um rio com o exclusivo intuito
de diminuir o reservatório de água de um prédio vizinho.
Vale destacar ainda a importância para a construção inicial da teoria do abuso do
direito do caso Clement Bayard, decidido pela Corte de Amiens em 1912. A referida decisão analisou a conduta do proprietário de um terreno vizinho a um campo
de pouso de dirigíveis que construiu, sem maiores justificativas, uma estrutura de
torres com pontiagudas extremidades de ferro, o que colocava em risco a circulação dos dirigíveis. A Corte de Cassação reconheceu que o titular do terreno estaria
agindo de forma abusiva ao destinar tal uso à sua propriedade e responsabilizou o
réu por sua conduta.66
Em todos os casos mencionados da jurisprudência francesa pode-se perceber a
existência de dois elementos típicos da teoria dos atos emulativos, isto é, atos que
apenas visam prejudicar terceiros sem vantagem para o titular do direito.
De toda forma, a jurisprudência francesa original deve ser louvada por ter afirmado a existência de limites no exercício do direito subjetivo e, o que talvez seja
mais sintomático, em casos envolvendo o direito de propriedade, direito subjetivo
modelo das codificações oitocentistas.
Todavia, grande parte desses casos apreciados no início do século passado tratava
de limitações ao exercício de um direito subjetivo para que ele não prejudicasse a
atuação de outro direito subjetivo. Isto é, o fator que motivava a imposição de limites não era a percepção de que aquele exercício do direito contrariava a sua função
ou o valor que o ordenamento buscava preservar através de sua concessão; muito ao
reverso, as decisões acima comentadas limitavam um direito para preservar o exercício de outro, atendendo a demandas de caráter eminentemente particulares. Não
existia qualquer referência ainda à função social de um determinado direito.
De toda forma, a jurisprudência francesa possui méritos por erigir um limite ao
direito subjetivo não expresso na lei. Contudo, a formulação de uma teoria mais
ampla somente haveria de se realizar em momento seguinte.
O Código Civil francês não dispunha sobre o abuso do direito, e nem mesmo
sobre a vedação dos atos emulativos, estando embrenhado no conceito absolutista
do direito subjetivo e do senhorio de seu titular para decidir como melhor dele se
valer. As limitações aos direitos subjetivos deveriam constar expressamente da lei.
Baseados nessa concepção restrita das limitações impostas ao exercício do direito
subjetivo, ou mesmo na inexistência da própria categoria dos direitos subjetivos,
sob os quais se abusaria, diversos autores combateram a autonomia científica da
figura do abuso do direito. Dentre as várias vertentes dessas teorias negativistas,
pode-se mencionar aqueles que negavam o abuso do direito como resultado lógico
da própria negação do conceito de direito subjetivo, como Duguit e Kelsen, ou
Conforme sintetiza Renato
Duarte Franco de Moraes: “A
base para a decisão então proferida foi a constatação da intenção maliciosa decorrente da
absoluta falta de utilidade da
construção realizada. Em outras
palavras, a corte francesa concluiu que haveria dolo por parte
do responsável pelas lanças em
razão de se constatar que o único uso que poderia advir dessas
construções seria o prejuízo ao
proprietário do hangar de dirigíveis.” (in “A Responsabilidade
pelo Abuso de Direito – O exercício abusivo de posições jurídicas, a boa-fé objetiva e o código
civil de 2002”, in Lucas Abreu
Barroso (org) Introdução Crítica
ao Código Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 206; p. 80).
66
FGV DIREITO RIO 55
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mesmo aqueles que negavam a existência do abuso por ser o instituto uma verdadeira incongruência, conforme defendeu Planiol.
Todavia, o principal expoente das teorias negativistas foi Marcel Planiol, tendose tornando notório o seu entendimento de que a expressão “abuso do direito”
seria uma logomaquia, constante na contradição existente entre os termos “abuso”
e “direito”. Para o autor, os conceitos de abuso e de direito seriam excludentes, não
podendo haver abuso de direito. Nesse sentido, na ocorrência de “abuso do direito”
estar-se-ia na caracterizando a ausência de um direito.
Josserand, ao criticar a doutrina de Planiol, atribuiu à conclusão do autor a ocorrência de um equívoco derivado da pluralidade de acepções existentes para a palavra
direito. Segundo o autor, se por um lado direito pode representar apenas um poder, um direito subjetivo, ele também pode fazer referência ao “conjunto de regras
sociais”, ou, melhor dizendo, ao direito objetivo. Sendo assim, a teoria negativista
poderia ser refutada através da percepção de que um determinado ato pode ser conforme o direito subjetivo, mas ir contrariamente ao direito objetivo.
Embora a aceitação da teoria começasse a crescer entre os autores, alguns problemas terminológicos precisavam ser superados. Nesse particular é importante perceber que a teoria se denominou abuso “do” direito e não “de” direito. Isso ocorre
porque o ato abusivo em si não está se valendo do direito objetivo, do ordenamento
com um todo, mas apenas do direito subjetivo, “do” direito em questão.
Outras designações foram propostas, como “excesso de direito”, “desvio de direito” ou “conflito de direitos”. Mais modernamente, Menezes Cordeiro sugeriu
que a teoria fosse denominada “exercício inadmissível de posições jurídicas”, o que,
inclusive, atende à necessidade de se perceber que o direito subjetivo não é o único
objeto de abuso por parte de seu titular, conforme será tratado mais à frente.
Uma vez consolidada a existência da doutrina do abuso do direito e a sua utilização gradativa pela jurisprudência, os autores buscaram uma fundamentação para
essa teoria ora em aspectos próprios do titular do direito do subjetivo. Esses aspectos
seriam encontrados em averiguações que extrapolavam os limites do Direito e iam
buscar a sua raiz em definições de natureza moral.
Essa corrente subjetivista do abuso do direito termina por se assemelhar aos trabalhos desenvolvidos pelos autores que desenvolveram a teoria dos atos emulativos,
uma vez que, se vai se buscar uma razão subjetiva para proibir o ato abusivo, essa razão terminará por ser o intuito de prejudicar terceiro, ferindo o mandamento segundo o qual a ninguém é lícito lesar direito de outrem no exercício do próprio direito.
A medição dos critérios de subjetividade terminou por demandar um avanço na
teoria que conferisse alguma forma de avaliação da conduta pretensamente abusiva
desempenhada pelo titular do direito subjetivo. A regra moral proposta por Ripert
cumpriu inicialmente esse papel de operar como um limite ao exercício do direito
subjetivo.
Ripert trabalha com a noção de ato que possui uma “aparência de direito”, mas
que seria dever de seu titular assim não proceder. O intuito de prejudicar é adicionado à a aparência de direito e esses dois elementos terminam por caracterizar a teoria
subjetivista do abuso do direito.
FGV DIREITO RIO 56
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O autor menciona que “para apreciar o abuso é preciso que o juiz possa julgar
o valor dos sentimentos que fazem agir uma pessoa.”67 Nessa direção, o enfoque
subjetivo na motivação de agir do titular do direito subjetivo, ao invés de criar um
mecanismo para avaliar o abuso, criou verdadeiros obstáculos para a afirmação da
teoria em tais bases.
A teoria que suplantou os questionamentos colocados por Ripert, chamada de
teoria finalista, possui como grande diferencial a construção do abuso do direito não
como um elemento externo ao conceito de direito subjetivo, como algo presente na
ordem moral e que somente é acionado quando o titular atua de forma reprovável,
mas sim como um limite interno ao próprio direito.
A teoria finalista encontrou o seu fundamento no embate doutrinário realizado
entre Jhering e autores da escola psicológica, dentre os quais pode-se citar Savigny.
Para Jhering, direito subjetivo seria o “interesse juridicamente protegido”, contrariando assim a vertente que sustentava ser o direito subjetivo caracterizado, fundamentalmente, pela vontade que o anima.
Essa contraposição entre o predomínio da vontade e o reconhecimento de que
o direito subjetivo apenas é uma reunião de poderes jurídicos conferidos ao seu
titular pelo ordenamento, gerou a percepção sobre a existência de uma finalidade
pertinente a cada direito. Finalidade essa que terminaria por legitimar a própria
existência do direito.
A teoria finalista traz para si ainda a percepção de que os direitos subjetivos não
devem ser tratados de forma absoluta, com o império da vontade determinando
os seus contornos, mas sim de modo relativo. A vontade cede espaço à verificação
de que o direito nasce no seio de uma dada sociedade, cujas crenças, valores e percepções estão refletidas no ordenamento jurídico, o qual, por seu turno, confere às
pessoas determinadas faculdades. Tudo de modo a tutelar certos interesses.
Segundo Josserand, um dos principais autores da teoria finalista, todo direito
possui um espírito, reconhecido em sua finalidade social. Se o exercício de um direito
não obedece ao seu espírito ou finalidade, não haverá exercício regular de um direito,
mas apenas o seu abuso. Agir em contradição com o interesse tutelado pelo ordenamento na forma de direito subjetivo seria, portanto, exercê-lo de forma abusiva.
A teoria de Josserand, contudo, ainda não havia se desprendido de todo de reflexões de natureza subjetiva, uma vez que, para averiguar se o exercício do direito
havia se desvirtuado de sua finalidade social, ou interesse, o autor lembrava da importância de procurar o espírito do direito na vontade que animou aquele ato. Diz
o autor que o afastamento da finalidade social ocorre quando as razões que levaram
o titular do direito a agir não se adequam aos seus fins. Sendo assim, o emprego
dos motivos do ato ainda representa um papel relevante na teoria finalista conforme
proposta por Josserand.
A contribuição de Saleilles ao trabalho de Josserand procurou extirpar do conceito de abuso do direito o fator subjetivo. Segundo o autor, o abuso seria o desvio
da destinação econômica e social do direito. Essa verbalização conceitual permanece
até hoje como uma das formas mais comuns de compreensão do instituto e pode ser
encontrada em textos legais de vários países.
George Ripert. A Regra Moral nas Obrigações. Campinas:
Bookseller, 2000; p. 176.
67
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Nesse particular, contribuindo para a análise axiológica do exercício do direito
subjetivo, cumpre importante papel o reconhecimento da constitucionalização do
Direito Civil e o emprego de cláusulas gerais. O texto constitucional, cuja linguagem é naturalmente mais aberta do que a maior parte dos dispositivos infra-constitucionais, e a utilização de cláusulas gerais em diplomas legais como o Código
Civil apresentam limites ao exercício dos direitos subjetivos que, por vezes, não se
percebem de imediato. Nesse sentido, o princípio da solidariedade social, presente
na Constituição, e a cláusula geral sobre boa-fé objetiva inserida no Código Civil,
atuam como limites internos ao desenvolvimento de um uso abusivo do direito.
Conforme sintetiza Vladimir Cardoso:
“Numa perspectiva civil-constitucional, limitam o exercício do direito todos os
interesses merecedores de tutela em jogo numa determinada situação jurídica, na
qual o direito se insere, conforme a estipulação valorativa do legislador, máxime do
constituinte.”68
O interesse meramente egoístico do titular do direito subjetivo, nessa compreensão, não pode ser exercido em detrimento de um interesse de natureza social. Nesse
cenário, vale dizer, ganham relevo os exercícios de direitos que busquem a afirmação
de valores extra-patrimoniais quando em colisão com o exercício de direitos que
tenham por fundamento a afirmação de valores patrimoniais.
Essa valoração não raramente é complexa e demanda do aplicador do direito
uma sensibilidade que inova na tradição dogmática de compreensão do instituto do
direito subjetivo. De qualquer forma, é importante perceber que o direito subjetivo,
no Direito Civil contemporâneo, não pode ser tomado como o mecanismo de afirmação do império da vontade individual em detrimento de interesses juridicamente
protegidos de uma coletividade, ou mesmo de outro indivíduo, quando diante de
uma eventual violação de direito extra-patrimonial.
Adicionalmente à percepção de que a adoção de cláusulas gerais e o reconhecimento do Direito Civil Constitucional criam um campo fértil para o crescimento
da teoria do abuso do direito, cumpre mencionar que a perspectiva valorativa do
exercício dos direitos encontra-se ainda alinhado com a mudança do pensamento
jurídico sobre a noção fundamental sobre a completude do ordenamento jurídico.
Ao se basear a limitação ao exercício dos direitos não apenas nos dispositivos
previstos no ordenamento, mas na análise dos valores que o informam, a teoria do
abuso do direito se conecta com a compreensão de que o dogma da completude,
símbolo do positivismo jurídico, deve ceder espaço na contemporaneidade à percepção de que o ordenamento jurídico opera través de princípios fundamentais
constantes na Constituição Federal.
A análise das relações jurídicas de direito privado à luz da Constituição leva ao
entendimento de que é o texto constitucional que harmoniza e confere juridicidade
aos direitos concedidos aos particulares. Esse fenômeno, por outro lado, não implica em completude formal do ordenamento, mas sim em coerência com respeito aos
valores trazidos pela Constituição e plasmados na legislação infra-constitucional.
Vladimir Cardoso. “O Abuso
do Direito no Ordenamento Jurídico Brasileiro”, in Maria Celina
Bodin de Moraes (org). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar,
2006; p. 87.
68
FGV DIREITO RIO 58
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Nesse cenário, o magistrado é chamado ao papel ativo de reconhecedor dos limites do direito não apenas através do conhecimento extensivo dos dispositivos legais,
mas principalmente através da compreensão valorativa das normas e de sua sempre
mutável aplicação.
È justamente nesse enquadramento que a teoria do abuso do direito se desenvolve, privilegiando a análise dos valores, a importância do texto constitucional, e o
papel destacado do juiz na análise do caso concreto.
O abuso do direito no Brasil
O instituto do abuso do direito foi inicialmente desenvolvido no Brasil a através
de estudos e aplicações práticas no campo do direito processual. Paradoxalmente,
contudo, o Código de Processo Civil não possuía dispositivo que legitimasse a aplicação da teoria para os casos de abuso do direito de ação ou abuso na defesa realizada em processo. Dessa forma, os processualistas se valeram da disposição do artigo
160, do Código Civil de 1916, para sustentar a sua aplicação.
Essa aplicação do conceito de abuso na seara processual deu-se, inicialmente, em
casos em que o autor de uma ação a promovia com o deliberado intuito de prejudicar terceiro, ou, mais comumente, nos casos em que o réu, quando da apresentação
de sua defesa, excedia os limites de argumentação plausíveis, negando evidências e
contestando situações já comprovadas cabalmente nos autos.
O Código Civil de 1916, por sua vez, também não possuía um dispositivo expresso que consagrasse a vedação ao uso abusivo do direito. A contrario sensu, interpretava-se o artigo 160 quando essa dispunha que “não constituem atos ilícitos:
I- os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.” Se não é ilícito o exercício regular, o seu exercício irregular, conseqüentemente,
ilícito seria.
Ao comentar o artigo 160 do Código Civil de 1916, Clóvis Beviláqua afirma que
o mesmo trouxe para o direito civil brasileiro a previsão de três figuras: a legítima
defesa e o direito de necessidade, “que, embora possam parecer violações de direitos,
não são atos ilícitos”, e o abuso do direito, o qual “tendo aparência legítima, importa num desvio da ordem jurídica.”69
É interessante notar que, como o Código não faz qualquer menção sobre motivações ou outros aspectos subjetivos para a qualificação do ato, a doutrina brasileira
terminou por se alinhar à concepção finalista do abuso do direito.70 Nesse particular, ganham relevo na doutrina considerações sobre a função dos direitos e o seu
desvio quando do exercício irregular ou abusivo.71
De outro lado, deve ser destacado que, se o Código Civil de 1916 não previu
expressamente o abuso do direito, a sua interpretação a contrario sensu do art. 160,
I, não escapa do fato de que, aplicando-se a regra geral de responsabilidade subjetiva
presente no art. 159 daquele Código, seria necessária a prova da culpa do ofensor
para fins de responsabilização por abuso do direito.72
Pedro Baptista Martins, ao tratar da aceitação da teoria do abuso do direito
na doutrina brasileira, ressalta que a superação da concepção absoluta dos direitos
Clóvis Beviláqua. Código Civil
dos Estados Unidos do Brasil, v.
II. Rio de Janeiro: Editora Rio, 6ª
ed., 1975; p. 426.
69
Clóvis Beviláqua menciona,
ao comentar o artigo 160, I,
do Código Civil de 1916, que o
mesmo “é a doutrina de Saleilles” (in Código Civil dos Estados
Unidos do Brasil, v. II. Rio de Janeiro: Editora Rio, 6ª ed., 1975;
p. 433).
70
Segundo Clóvis Beviláqua: “Se
a função do direito é manter em
equilíbrio os elementos sociais
colidentes,
desvirtuar-se-á,
mentirá ao seu destino, quando
se exagerar, no seu exercício, a
ponto de se tornar um princípio
de desarmonia.” (in Código Civil
dos Estados Unidos do Brasil, v.
II. Rio de Janeiro: Editora Rio, 6ª
ed., 1975; p. 432).
71
Renato Duarte Franco de Moraes. “A Responsabilidade pelo
Abuso de Direito – O exercício
abusivo de posições jurídicas,
a boa-fé objetiva e o código
civil de 2002”, in Lucas Abreu
Barroso (org) Introdução Crítica
ao Código Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 206; p. 90.
72
FGV DIREITO RIO 59
responsabilidade civil e direito do consumidor
subjetivos se corporifica na idéia de abuso, sendo a teoria, dadas a evolução dos trabalhos doutrinários, indestronável. Ao se filiar à teoria finalista do abuso do direito,
o autor afirma que a busca pela finalidade do direito e o seu exercício conforme
termina por garantir o equilíbrio das atividades desempenhadas individualmente.
O abuso é o exercício anti-social do direito. Assim definiu o abuso do direito
San Tiago Dantas ao confirmar a sua filiação à teoria de Saleilles, segunda a qual
o exercício abusivo é aquele que não observa a finalidade econômica e social do
mesmo direito.
A superação da teoria absolutista dos direitos subjetivos fica clara no dizer de San
Tiago Dantas, que ressalta a importância de se atender à finalidade da norma prevista no direito objetivo, fonte do direito subjetivo concedido ao seu titular. Segundo
o autor, no caso do abuso do direito tem-se uma atividade que “está sendo exercida
com um fim que não é aquele que a norma jurídica tinha em vista quando protegeu
aquela atividade.”73
O Código Civil de 2002 manteve em seus dispositivos uma norma sobre o exercício regular do direito para fins de exclusão da ilicitude do ato, tal qual havia no
Código Civil de 1916. O artigo 188, I, dispõe então que “não constituem atos
ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.”
Todavia, a principal inovação do Código Civil de 2002 no que diz respeito à
tutela do abuso do direito é o tratamento da matéria em dispositivo autônomo (art.
187), sobre o qual versa o tópico seguinte do presente estudo.
Adicionalmente, e mais ligada à teoria finalista do abuso do direito, o Código
Civil inovou ao dispor expressamente sobre o tema em seu artigo 187. O referido
artigo dispõe que comete também ato ilícito “o titular de um direito que, ao exercêlo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes.”74
José Carlos Moreira Alves, autor do anteprojeto do Código Civil de 2002 no que
se refere à sua Parte Geral, onde está inserido o dispositivo mencionado, comenta
que a inserção do mesmo se deu com o ânimo de realizar mudanças fundamentais,
que refletissem a concepção filosófica da nova codificação, sem que fosse preciso
acrescentar diversas normas novas. 75 Nesse sentido, o autor revela-se inspirado pela
utilização das cláusulas gerais dada a cabo pelo Código Civil português de 1966,
podendo-se notar grande semelhança na redação do atual Código Civil com aquela
apresentada pelo Código português para o tratamento do abuso do direito.76
De toda forma, o Código Civil brasileiro, ao positivar o abuso do direito no artigo 187 parece não reconhecer a autonomia do instituto, vinculando o ato abusivo
ao conceito de ato ilícito, previsto no dispositivo legal precedente. Essa opção não
apenas contraria a doutrina mais recente sobre o instituto, como ainda vincularia
a aplicação da teoria do abuso do direito à prova do elemento culpa na atuação do
agente.
A prova da culpa é uma questão praticamente inerente ao conceito de ilicitude.
Essa comprovação de culpa poderia se tornar um obstáculo para a verificação de práticas abusivas. A caracterização de um agir como abusivo deveria ser independente
San Tiago Dantas. Programa
de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2001; pp. 318-319.
73
É curioso notar que, mesmo
não dispondo de um artigo específico e expresso para o abuso
do direito, ao comentar o artigo
160, I, do Código Civil de 1916,
Clóvis Beviláqua terminou por
definir o abuso do direito de
forma bastante próxima àquela
adotada pelo Código Civil de
2002, pelo menos no que tange
à natureza dos limites impostos
ao exercício dos direitos. Segundo o autor: “O exercício anormal
do direito é abusivo. A consciência pública reprova o exercício
do direito do indivíduo, quando
contrário ao destino econômico
e social do direito, em geral.” (in
Código Civil dos Estados Unidos
do Brasil, v. II. Rio de Janeiro:
Editora Rio, 6ª ed., 1975; pp.
433/434).
74
José Carlos Moreira Alves. A
Parte Geral do Projeto de Código
Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2ª ed., 2003; pp. 28/29.
75
Assim dispõe o art. 334 do Código Civil português, de 1966:
“É ilegítimo o exercício de um
direito quando o titular exceda
manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons
costumes, ou pelo fim social ou
econômico desse direito.”
76
FGV DIREITO RIO 60
responsabilidade civil e direito do consumidor
de tergiversações sobre a culpa do agente, sendo apreciada de forma objetiva, isto é,
dependendo apenas da verificação de desconformidade entre o modo de atuação do
agente na situação jurídica e os valores perseguidos pelo ordenamento jurídico.
Soma-se a essa crítica o fato de que, ao vincular as hipóteses de abuso aos atos
ilícitos, o Código prescinde da aplicação possível da teoria à uma diversidade de
hipóteses em que se tem uma atuação lícita, mas que na valoração funcional de seu
exercício poder-se-ia perceber a abusividade.
Existe em sede doutrinária uma nítida separação entre os atos considerados
como ilícitos e aqueles que se enquadram na definição de atos abusivos. Conforme
explicita Guilherme Calmon, a diferença entre o ato ilícito e o abusivo reside na
constatação de que enquanto “no ato ilícito o agente viola frontal e diretamente o
comando legal que previa a conduta que deveria ser tomada, no ato abusivo há o
exercício de direito aparentemente pelo titular com violação dos valores que justificam o reconhecimento e proteção desse direito pelo ordenamento jurídico em
vigor.”77
Dessa forma pode-se perceber que no ato ilícito a violação do comando legal
implica na superação dos limites lógico-formais do direito, ao passo que no ato
abusivo têm-se a infração não à estrutura formal do direito, mas sim aos valores que
o ordenamento jurídico busca alcançar com aquele determinado direito, poder ou
liberdade concedida ao agente. A violação aqui atinge portanto a função destinada
àquele instituto, sendo essa a razão pela qual pode-se falar em “inobservância dos
limites axiológicos-materiais.”78
Vale ressaltar, contudo, que a doutrina brasileira não é unânime no sentido de
separar os conceitos de ilicitude e abusividade, embora os autores mais modernos
tenham enveredado por esse posicionamento, mesmo, a princípio, contrariando o
expresso dispositivo do Código.
Para Pontes de Miranda, o “abuso de direito é ato ilícito, porque exercício
irregular.”79 Essa verbalização, que liga os dois conceitos por causa do exercício,
termina por igualar ilicitude e abusividade também por conta dos efeitos derivados
desse exercício. Nesse sentido, o efeito tanto do ato ilícito como do ato abusivo é a
responsabilidade civil do agente, existindo assim uma identidade no sancionamento
previsto para o sujeito.
Contudo, importa perceber diferenças no enquadramento da responsabilidade
civil derivada de atos ilícitos e de atos abusivos. Quando se trata de atos ilícitos, o
ordenamento jurídico pode prever hipóteses expressas em que da sua ocorrência
não decorre o dever de indenizar. Existe dano sem dever de indenizar nos casos, por
exemplo, de atos praticados em legítima defesa ou através do exercício regular de
um direito. O dano somente será reparável quando decorrer de um ato ilícito ou
injusto e, nessas hipóteses, o ordenamento jurídico expressamente retira o componente de ilicitude, impedindo a reparação.
Dessa forma, a ilicitude depende de uma violação de limites formais impostos pelo ordenamento. Já no abuso do direito, não existe essa definição prévia de
limites que poderão ser rompidos, configurando assim a abusividade. Os limites
que importam na abusividade são os próprios fundamentos do direito, os quais
Guilherme Calmon Nogueira
da Gama. Direito Civil – Parte
Geral. São Paulo; Atlas, 2006;
p. 197.
77
Heloisa Carpena. “Abuso do
Direito no Código Civil de 2002”,
in Gustavo Tepedino (org) Parte
Geral do novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002; p. 371.
78
F. Pontes de Miranda. Tratado
de Direito Privado, vol. II. São
Paulo: Revista dos Tribunais,
1977; p. 311.
79
FGV DIREITO RIO 61
responsabilidade civil e direito do consumidor
serão violados apenas quando do exercício empreendido pelo agente do direito concedido. Conforme explicita Heloisa Carpena, “[p]or este mesmo motivo pode-se
afirmar que o abuso supõe um direito subjetivo lícito atribuído ao seu titular, que,
ao exercê-lo, o torna antijurídico. Já o ilícito, por ser contrário à disposição legal,
mostra-se previamente reprovado pelo ordenamento, não comportando controle de
abusividade.”80
A verificação da ilicitude decorre de uma análise formal do ordenamento jurídico em busca de limitações ao determinado exercício do direito, o que torna a sua
percepção mais direta e, de alguma medida, facilitada. No caso do abuso do direito
não existe um limite expresso, colocado previamente pelo ordenamento, o que dificulta a sua percepção e análise, tornando mais complexas as hipóteses de abuso.
Como conclusão de todo o exposto, pode-se perceber que embora constantes
do conjunto de atos que podem ser remetidos ao conceito de antijuricidade, o ato
ilícito e o ato abusivo não se confundem; muito ao contrário, eles se excluem.81
Em síntese, quando o artigo 187 define o ato abusivo como ilícito, essa redação
deve ser interpretada como “uma referência a uma ilicitude lato sensu, no sentido
de contrariedade ao direito como um todo, e não como uma identificação entre a
etiologia do ato ilícito e a do ato abusivo, que são claramente diversas.”82
Uma outra crítica que pode ser acrescentada ao dispositivo do art. 187 é a utilização do termo “manifestamente” para qualificar o excesso cometido pelo sujeito que
abusa do direito. A dificuldade colocada por essa expressão reside na dúvida sobre
a compreensão do termo como referência a exagero (quantidade) ou à notoriedade
(qualidade) do abuso.
Explica-se: caso o termo manifestante diga respeito à quantidade do abuso, a
preocupação do intérprete deverá recair sobre o grau de desproporção existente entre o uso regular e o uso abusivo. Nessa hipótese, para que a vedação do exercício do
direito seja manejado, é preciso verificar se a conduta impugnada diverge muito ou
pouco do agir esperado pelo agente que atua de forma devida. Se pouco, não haveria abuso do direito, hipótese apenas reservada para os casos em que o descompasso
entre as condutas é sensível.
Por outro lado, caso termo “manifestamente” diga respeito à qualidade do ato, as
atenções se voltam não necessariamente sobre a distância que separa o agir regular
do abusivo, mas sim à visibilidade, à evidência da abusividade do comportamento.
Nesse sentido, manifestamente significa o adjetivo daquilo que pode ser facilmente
distinguível. Essa facilidade de distinção e identificação do ato abusivo pode ocorrer
pela própria quantidade de abuso verificada no caso (exagero), mas não necessariamente. A maior visibilidade de um ato pode se dar pelo acesso mais difundido ao
seu conhecimento, como ocorre nos casos veiculados pela imprensa ou que, de tão
costumeiros, passam a ser conhecidos mais amplamente.
Vale lembrar que, independentemente da resposta, o que se deve procurar no
ato abusivo é a desconformidade com os valores que informam aquele direito. Os
indicadores sobre quantidade e qualidade do abuso poderão ser úteis para investigar a conduta pretensamente abusiva, mas não devem ser tomados como os únicos
compassos disponíveis para traçar a linha entre o exercício regular e o abusivo.
Heloisa Carpena. “Abuso do
Direito no Código Civil de 2002”,
in Gustavo Tepedino (org) Parte
Geral do novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002; p. 372.
80
Cunha de Sá ilustra esse entendimento com a hipótese de
uma pessoa que transita pelas
ruas de uma cidade. Esse ato
pode tanto ser o exercício de sua
liberdade de ação ou pode estar
diretamente contrária ao exercício regular dessa faculdade. Se o
personagem encontra-se na via
pública, passeando livremente,
mas o mesmo é foragido de uma
prisão, na qual deveria estar detido pela prática de crimes, o
seu agir é ilícito. De outro lado,
se a pessoa enfocada caminha
pelas ruas de forma a se chocar
com as pessoas que caminham
na direção oposta, com o único
propósito de incomodar, afirma
o autor que estar-se-ia perante
um caso de abuso da liberdade. Ainda que o sujeito goze
da liberdade disponibilizada
pelo ordenamento jurídico de
ir e vir, o seu comportamento,
o seu exercício, é contrário aos
valores que lhe servem como
fundamento, tornando-se, portanto, um ato abusivo (in Abuso
do Direito. Coimbra: Almedina,
1997; p. 618).
81
Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloisa
Helena Barboza (orgs). Código
Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004; p.
342.
82
FGV DIREITO RIO 62
responsabilidade civil e direito do consumidor
Outros termos inseridos pelo art. 187 podem ser criticados por conduzir a interpretações equivocadas sobre o seu espectro de aplicação. O primeiro diz respeito ao
termo “exercê-lo”, o que poderia levar o intérprete a se questionar sobre a possibilidade do ato abusivo ocorrer em condutas omissivas. Ao se referir ao exercício do
direito, deve-se compreender aplicáveis ao caso tanto a conduta comissiva como a
conduta omissiva para a identificação do abuso.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao termo “direito”, também constante
do artigo 187, que poderia levar à conclusão de que o abuso apenas se aplica ao
exercício dos direitos, não alcançando as liberdades, faculdades e demais prerrogativas. Conforme já visto, deve-se estender a aplicação da teoria para além dos limites
do direito subjetivo e, dessa forma, sugere-se que a leitura do art. 187 seja feita da
mesma forma pela qual decidiu-se redigir o presente trabalho, tomando-se o “abuso
do direito” como expressão consagrada pela prática que denota o grande número
de ocorrências de práticas abusivas quando se está diante de direitos subjetivos, mas
sem jamais excluir a sua aplicação em outras situações, principalmente quando se
tratar do exercício de liberdades, faculdades e prerrogativas.
Por outro lado, ao adicionar à finalidade econômico ou social o respeito ao princípio da boa-fé objetiva, o Código se aproveita de um arcabouço doutrinário e
jurisprudencial que se formou no direito brasileiro na última década sobre o tema.
O conceito de boa-fé objetiva, com as diversas funções desempenhadas pelo princípio no ordenamento jurídico pátrio, representa um solo ao mesmo tempo seguro e
promissor para o surgimento de novas aplicações do abuso do direito e de institutos
correlatos.
Ao vincular a disciplina do abuso do direito ao princípio da boa-fé, o ordenamento jurídico nacional legitimou um substancial alargamento nas hipóteses de
aplicação da teoria do abuso do direito. Ao se afirmar simplesmente que a boa-fé
constitui um dos principais parâmetros para medir a abusividade de um ato não se
oferece detalhamentos suficientes para que se possa concretizar uma maior, e mais
efetiva, atuação da figura do abuso.
Contudo, ao redor da noção de boa-fé, especialmente no que diz respeito ao
princípio da boa-fé objetiva, a doutrina e a jurisprudência têm feito constar uma
série de institutos periféricos que, uma vez concebidos em conjunto, propiciam
um vasto cenário para atuação do princípio. É o caso do venire contra factum proprium, das inalegabilidades formais, da supressio, do tu quoque, entre outros. Esses
institutos foram submetidos à prova do tempo e, em maior ou em menor grau, são
reconhecidos pela jurisprudência nacional e internacional. Ao se afirmar que a boafé direciona a interpretação e a aplicação do abuso do direito, conforme consta do
artigo 187 do Código Civil, a lei termina por inserir o abuso do direito nessa seara
de institutos jurídicos que operam o princípio da boa-fé.
O abuso do direito, todavia, apresenta uma característica crucial na sua relação
com os demais institutos acima referidos: por ser uma construção eminentemente
jurisprudencial, surgida dos problemas de natureza prática, o abuso do direito é
dotado de grande maleabilidade. A sua formação não se deu por raciocínios e teoremas abstratos, mas sim pela necessidade de se criar respostas que dessem conta
FGV DIREITO RIO 63
responsabilidade civil e direito do consumidor
de problemas reais. Por isso, afirmar que ele se perfila ao lado dos demais institutos
derivados da boa-fé seria uma perspectiva reducionista de seu efetivo campo de aplicação. Muito ao contrário, o atomismo dos institutos jurídicos derivados da boa-fé
aqui cede espaço para um alargamento natural das hipóteses submetidas ao crivo
do abuso do direito pela jurisprudência. Não raramente os tribunais dirão que uma
certa circunstância leva à aplicação do venire contra factum proprium justamente por
ser reputada como abusiva a conduta desempenhada pela parte.
Em outras palavras, o abuso do direito termina por se ocupar do espaço dos demais institutos derivados inicialmente do princípio da boa-fé, fazendo com que os
mesmos sejam comumente associados à análise de regularidade ou abusividade de
um certo comportamento. E não há, a princípio, nada de errado com essa sobreposição de institutos, pois, conforme afirma Menezes Cordeiro, “[o] abuso do direito,
é, por definição, um espaço aberto, apto à expansão para novas áreas.”83
Sendo assim, para que melhor possa se compreender o alcance do abuso do
direito, a seguir são comentadas as suas interfaces com institutos correlatos, todos
derivados de sua aproximação com o princípio da boa-fé, conferindo-se especial
destaque, nesse particular para o venire contra factum proprium, as inalegabilidades
formais, a supressio e o tu quoque. Todos esses institutos compõem, em conjunto,
um retrato das mais diversas facetas de aplicação da teoria do abuso do direito.
2. Caso gerador
O abuso do direito vem sendo amplamente utilizado pela jurisprudência para
impor indenizações ou a suspensão de uma determinada conduta danosa a terceiro. Dentre as hipóteses abaixo, identifique aquelas que poderiam ser enquadradas
como casos de abuso do direito:
a) Um banco que, sendo credor de seu correntista, pode obter o pagamento
da dívida através da apropriação de valores que são depositados na conta do
devedor.
b) O proprietário de um terreno no qual se encontra uma fonte de água que abastece tanto o terreno de sua propriedade como os de seus vizinhos, que desvia o
curso d´água ou a desperdiça com o único propósito de prejudicá-los.
c) Um veículo de imprensa que publica matérias de caráter ofensivo ou deturpado.
d) A instituição de ensino que retém os documentos comprobatórios de conclusão do segundo grau, em decorrência da existência de dívidas no pagamento
da mensalidade escolar.
e) A empresa que inscreve o nome do devedor em sistema de proteção ao crédito enquanto a dívida está sub judice.
Antonio Menezes Cordeiro.
Tratado de Direito Civil Português, v. I, t. IV. Coimbra: Almedina, 2005; p. 297.
83
Resposta: Todas as hipóteses acima já foram consideradas como abuso do direito
pelos tribunais brasileiros: a) STJ, Resp 250523, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar,
FGV DIREITO RIO 64
responsabilidade civil e direito do consumidor
j. em 19.10.2000; b) TJRJ, Ap. Civ. 200000117177, rel. Des. Jorge Luiz Haibib,
j. em 05.12.2000; c) TJRJ, Ap. Civ 20010012596, rel. Des. Binato de Castro, j.
em 18.12.2001; d) TJRJ, Ap. Civ. 200000108132, rel. Des. Mauricio Oliveira, j.
em 05.04.2001; e) TJRS, AP. Civ. 70002257715, rel. Des. Paulo Kretzmann, j. em
13.12.2001.
FGV DIREITO RIO 65
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 11. Liquidação de Danos
Leitura obrigatória
Maria Celina Bodin de Moraes. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; pp. 267/318.
Leituras complementares
Pietro Cogliolo. “Misura del Danno Aquiliano”, in Scritti Varii di Diritto Privato. Turim: Unione Tipográfico-Editrice Torinese, 1910; pp. 194/200. Mara
Cândida Pires do Amaral. “Considerações acerca da fixação do montante
da indenização por dano moral”, in Luis Edson Fachin (coord). Repensando
Fundamentos do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000;
pp. 151/173.
1. Roteiro de Aula
Indenização
Passado o momento da imputação da responsabilidade, surge o momento da
fixação da indenização, ou fixação do quantum debeatur. Para entender como funciona a liquidação dos danos, é preciso entender antes a função da responsabilidade
civil.
O entendimento predominante enfatiza que a responsabilidade civil tem como
função o reequilíbrio econômico-jurídico alterado pelo dano84. É tentar retornar ao
status quo ante. Com efeito, o que se pretende com a responsabilidade civil é repor a
vítima à situação em que ela se encontrava antes da lesão. Esta função pode se dar de
duas formas: reparação in natura, a chamada tutela específica em que efetivamente
é possível o retorno à situação anterior; ou a reparação pecuniária em que já não é
possível o retorno à situação anterior.
Interessante notar, então, que dentro dessa concepção, a responsabilidade civil
não possui um caráter punitivo, mas meramente restituitório85. Sem embargo, a
evolução da responsabilidade civil levou a uma rejeição das penas no âmbito civil.
Nesse sentido, José de Aguiar Dias também defende não haver espaço para a pena
privada no direito civil:
DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11ª revista
e atualizada de acordo com
o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias,
Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 55. CAVALIERI Filho, Sergio,
Programa de Responsabilidade
Civil, 7ª edição, São Paulo: Atlas,
2007, p. 13.
84
É imperioso ressaltar que a
jurisprudência vem dando um
caráter punitivo e compensatório ao dano moral “individual”.
STJ, Resp. 838.550-RS, Rel. Min.
Cesar Asfor Rocha, julgado em
13/2/2007.
85
Se, como acreditamos, a reparação do dano, qualquer que seja o seu fundamento
e salvo o caso especial da indenização tarifária, em que aquele princípio [reparação
integral] é afastado, por motivo de política econômica, consiste na restituição do
prejudicado à situação anterior, a graduação da indenização, inseparável do sistema
FGV DIREITO RIO 66
responsabilidade civil e direito do consumidor
de pena privada, resulta em negação desse princípio, o que não se justifica, porque a
desejada prevenção que ela asseguraria se encontra na própria reparação, sem sacrifício do princípio da restituição.86
Entendido que a função da responsabilidade civil é meramente restituitório é
preciso saber qual o critério para fixação da indenização.
A dupla função do nexo de causalidade
Como vimos anteriormente, o nexo de causalidade tem como função precípua
estabelecer o liame entre a conduta do ofensor e o dano causado. Não obstante, o
nexo possui uma outra função, a de estabelecer a exata extensão da indenização.
Com efeito, é através do nexo de causalidade que se verifica exatamente qual
conduta deu causa ao dano e, portanto, quem deve suportar o dano. Dessa forma,
vários indivíduos podem contribuir para a ocorrência do evento, mas cada um responderá na medida em que o tenha produzido.
Existem três sistemas para fixação da indenização: o da paridade, o da culpabilidade e o da causalidade. O primeiro determina que todos aqueles que contribuíram
para o dano respondem de forma igual, isto é, a divisão do dano em partes iguais
para todos os co-autores do dano. Esse sistema acaba por gerar inúmeros absurdos,
pois não avalia as circunstâncias concretas de como se produziu o dano.
O segundo sistema leva em conta a gravidade da culpa para distribuir os prejuízos. Isto quer dizer que quanto maior o grau de culpa do agente, maior será sua
responsabilidade. A crítica feita a esse sistema é que nem sempre o agente que atuou
com maior grau de culpa foi o que teve maior participação no evento danoso.
Por fim, o terceiro determina que cada um dos agentes deve suportar o dano
na medida em que o tenha produzido, isto é, na proporção em que sua conduta
interferiu no evento danoso. A partir desse sistema não se leva em conta se o agente
atuou com dolo ou culpa, mas verificar-se-á a extensão do dano a partir do nexo
causal, ou seja, o agente responderá pelo dano a que efetivamente deu causa.
Parece que o ordenamento jurídico brasileiro adotou, em sede de responsabilidade civil, o sistema da causalidade para a repartição do dano entre os ofensores87.
Tanto é verdade que o próprio Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/9088,
no art. 13, parágrafo único, determina que aquele que efetivar o pagamento ao
prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação no evento danoso em clara adoção desse sistema.
Art. 13. O comerciante é igualmente responsável, nos termos do artigo anterior,
quando:
(...)
Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer
o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na
causação do evento danoso
DIAS, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11ª revista
e atualizada de acordo com o
Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias, Rio de
Janeiro: Renovar, 2006, p. 1000.
86
Contudo, encontra-se consagrado na jurisprudência o
sistema da gravidade da culpa
segundo Gisela Sampaio da
Cruz. CRUZ, Gisela Sampaio da.
O problema do nexo causal na
responsabilidade civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 329.
87
Lembre-se que apesar do Código Civil ter sido promulgado
em 2002, o referido diploma
legal foi elaborado em meado
dos anos 70.
88
FGV DIREITO RIO 67
responsabilidade civil e direito do consumidor
A extensão do dano e a gravidade da culpa
O art. 944, caput do Código Civil, portanto, estabelece o primeiro e principal critério para fixação do quantum indenizatório. Dispõe o citado artigo
que a indenização mede-se pela extensão do dano. Nesse sentido, bem andou
o legislador, pois está em conformidade com os princípios norteadores da responsabilidade civil, especialmente solidariedade social e reparação integral da
vítima.
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o
dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.
Registre-se que se o critério é a extensão do dano, não sendo relevante o grau de
culpa do ofensor para fixação do quantum. Com efeito, a maior ou menor gravidade
da falta não influi sobre a indenização, a qual só se medirá pela extensão do dano
causado.
Mas, no que toca à extensão dos danos a reparar, a causa moral da imputabilidade
é indiferente; o dano que o credor sofreu não será maior, quando houver sido causado com a intenção de prejudicar, do que no caso em que seja o resultado de uma
simples culpa do devedor.89
Todavia, o parágrafo único do referido artigo determina que se houver excessiva
desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização. Vale ressaltar que o legislador permitiu a redução e não o
aumento. Isto equivale a dizer que o juiz, à luz do caso concreto, poderá reduzir a
indenização diante da gravidade da culpa, mas jamais poderá aumentá-la tendo em
vista que o seu limite é a extensão do dano.90
Importante notar que o parágrafo único do dispositivo é uma exceção ao princípio da restitutio in integrum e, portanto, deve ser aplicado com extrema cautela. É
forçoso reconhecer, portanto, o seu caráter excepcional.
Por outro lado, a culpa concorrente da vítima também implicará numa redução
da indenização, conforme preceitua o art. 945 do Código Civil.
ALVIM, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, 4ª Ed. Atual., São Paulo: Saraiva, 1972, p. 200.
89
Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua
indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto
com a do autor do dano.
Tal redução se justifica em razão de que o agente só responde pelo dano a que
deu causa. Na hipótese de culpa concorrente, verifica-se que o agente não deu causa
à extensão integral do dano, mas somente a parte dele.
Para Antunes Varela a possibilidade de graduação da
indenização reflete em termos
bastante expressivos a função
sancionatória ou punitiva, mas
esta é acessória e não intrínseca
da responsabilidade civil. VARELA, Antunes, Das Obrigações
em Geral, Volume I, 10 ª Edição,
Revista e Actualizada, Coimbra:
Almedina, 2000, p. 913.
90
FGV DIREITO RIO 68
responsabilidade civil e direito do consumidor
A fixação do dano material e moral
O quantum indenizatório não suscita grandes dúvidas no que tange aos danos
materiais. Em razão da facilidade em quantificar os valores econômicos do dano, a
doutrina e jurisprudência aplicam sem exceção o princípio da restitutio in integrum
permitindo, assim, a mais ampla reparação da vítima.
Todavia, quando se trata de danos extrapatrimoniais, a doutrina e jurisprudência
são vacilantes. Isto se deve ao fato de que não existem fórmulas seguras para auxiliar
o juiz a alcançar a exata extensão do dano. Entretanto, tal peculiaridade não pode
ser óbice à ampla reparação da vítima.
Em regra a jurisprudência estabelece alguns critérios para fixação dos danos morais: i) a extensão do dano; ii) o grau de culpa do ofensor; iii) a capacidade econômica do ofensor e iv) a capacidade econômica do ofendido.
Os dois primeiros critérios já foram discutidos anteriormente. Apesar do critério
ser a extensão do dano e a redução baseada no grau de culpa do ofensor, no que diz
respeito aos danos morais, a jurisprudência conjuga ambos os critérios.
Quanto aos demais critérios, apesar da vasta aplicação jurisprudencial, a doutrina
tem se insurgido no sentido de que ambos têm servido, na realidade, como instrumento para redução da indenização por dano moral, tendo em vista a vedação ao enriquecimento sem causa. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, entretanto,
em 19/06/2007, analisando a questão, entendeu, no trato de indenização por morte,
que seria abusivo de um lado reconhecer a incapacidade da empresa em suportar a indenização e do outro discriminar a pobreza da vítima, pois tanto pobres quanto ricos
sofrem o mesmo dano, pois o valor da vida não está na condição social.
Terceira Turma
INDENIZAÇÃO. MORTE. CONDIÇÃO ECONÔMICA. VÍTIMA. RÉU.
O Tribunal local diminuíra bastante a indenização fixada pela sentença em razão da
morte causada por preposto, ao considerar muito a condição econômica do réu (pequena sociedade dedicada ao comércio de hortaliças e frutas) e a condição social da vítima,
tida por pessoa pobre. Diante disso, a Turma entendeu, por maioria, restabelecer a sentença e o valor original da indenização fixada em R$ 45.000,00. O Min. Ari Pargendler,
que capitaneou a divergência, firmou que o Tribunal local incorreu em gravíssimo erro
ao ter preconceito contra pessoa pobre. O Min. Carlos Alberto Menezes Direito aduziu
que, no trato de indenização por morte, seria abusivo de um lado reconhecer a incapacidade da empresa em suportar a indenização e do outro discriminar a pobreza da vítima,
pois tanto pobres quanto ricos sofrem o mesmo dano, pois o valor da vida não está na
condição social. REsp 951.777-DF, Rel. originário Min. Humberto Gomes de Barros,
Rel. para acórdão Min. Ari Pargendler, julgado em 19/6/2007.
Limitação da indenização
A indenização está limitada à extensão do dano, conforme preceitua o art. 944,
caput do Código Civil. Todavia, a indenização pode encontrar outras limitações.
FGV DIREITO RIO 69
responsabilidade civil e direito do consumidor
Como dito anteriormente, o parágrafo único do art. 944 do Código Civil estabelece
a primeira limitação: a excessiva desproporção entre o grau de culpa do ofensor e o
dano.
Não obstante, a doutrina estrangeira comumente coloca como limite à indenização a situação econômica do ofensor. Essa hipótese está ligada diretamente à
dignidade da pessoa humana, pois impede que o ofensor seja privado do mínimo
existencial, ou seja, o montante da indenização não poderá privar o agente dos bens
necessários à manutenção de uma vida digna. O art. 928, parágrafo único é um
exemplo positivado dessa limitação.
Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.
Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa,
não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.
A liquidação de obrigação indeterminada
Se a obrigação for indeterminada e não houver na lei ou no contrato disposição
fixando a indenização, apurar-se-á o valor dos prejuízos na forma que a lei processual determinar.
Art. 946. Se a obrigação for indeterminada, e não houver na lei ou no contrato
disposição fixando a indenização devida pelo inadimplente, apurar-se-á o valor das
perdas e danos na forma que a lei processual determinar.
O presente artigo não se admite a não reparação do dano sob o pretexto de que
não ficou provado o seu quantum. Caso não seja possível alcançar a exata extensão
do dano, o juiz deverá liquidar a condenação.
Indenização por morte
O primeiro artigo do Código Civil a dispor sobre casos específicos de indenização estabelece a indenização por morte. O artigo alude aos danos materiais com
despesas de tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família, bem como na
prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia. Não obstante, é forçoso
lembrar a possibilidade de cumulação dos danos materiais e morais já consolidados
na súmula 37 do STJ.
Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:
I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto
da família;
II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em
conta a duração provável da vida da vítima.
FGV DIREITO RIO 70
responsabilidade civil e direito do consumidor
Indenização dos lucros cessantes
O Código Civil estabelece em seu art. 949 a maneira de calcular a indenização
por defeito físico, temporário ou permanente, que repercuta sobre a capacidade
laborativa da vítima.
Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença,
além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.
Importante ressaltar a cumulação do dano moral e estético. Não obstante parte
da doutrina defender que o próprio fundamento do dano moral é o próprio dano
estético, o STJ se pacificou no sentido de que o dano moral corresponde a uma violação aos direitos da personalidade enquanto que o dano estético é a deformidade
corporal propriamente dita. Nesse sentido foi editada a súmula 96 do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
Súmula 96 - As verbas relativas às indenizações por dano moral e dano estético
são acumuláveis.
O art. 950, por sua vez, alude à indenização pela perda da capacidade laborativa
e às despesas de tratamento. Essas compreendem, naturalmente, todas as que o
tratamento impõe: assistência médica, remédios, aparelhos ortopédicos, próteses,
órteses e tudo quanto se ligue a esses cuidados.
Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o
seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização,
além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou
da depreciação que ele sofreu.
A natureza da indenização em ambos os artigos é material, ou seja, fundamentase nos lucros cessantes que razoavelmente serão ocasionados à vítima por força da
perda total ou parcial de sua aptidão para o ofício que desempenhava.
Indenização por esbulho ou usurpação do alheio
Em caso de usurpação ou esbulho do alheio, o art. 952 do Código Civil determina a reparação natural. Todavia, caso esta não seja possível, terá lugar a reparação
pecuniária pela prestação do equivalente. Trata-se de verdadeira preocupação com a
violação da propriedade alheia.
Inovação importante no referido artigo é a menção dos lucros cessantes. Na
hipótese de esbulho, o dever do esbulhador engloba o que o legítimo possuidor
deixou de lucrar no período.
FGV DIREITO RIO 71
responsabilidade civil e direito do consumidor
O parágrafo único do art. 952, por sua vez, determina os critérios de aferição da
coisa. De acordo com a norma seriam dois os parâmetros: o preço ordinário da coisa
e o preço de afeição. O primeiro diz respeito a medida exata do seu valor patrimonial. O segundo é o valor sentimental que a coisa tem para o esbulhado. Ressalte-se
que o preço de afeição nada mais é do que uma hipótese de dano moral e, portanto,
injustificável a sua limitação, nos moldes do art. 5º, X da CRFB/88.
Art. 952. Havendo usurpação ou esbulho do alheio, além da restituição da coisa,
a indenização consistirá em pagar o valor das suas deteriorações e o devido a título
de lucros cessantes; faltando a coisa, dever-se-á reembolsar o seu equivalente ao prejudicado.
Parágrafo único. Para se restituir o equivalente, quando não exista a própria coisa,
estimar-se-á ela pelo seu preço ordinário e pelo de afeição, contanto que este não se
avantaje àquele.
Indenização por injúria, difamação ou calúnia
A indenização por injúria, difamação ou calúnia tem expressa previsão legal no
art. 953 do Código Civil. Ela permite a reparação por dano material e moral. Frisese que a responsabilidade no âmbito civil independe da responsabilidade na esfera
penal e, portanto, para reparação civil não há necessidade de condenção criminal.
Art. 953. A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação
do dano que delas resulte ao ofendido.
Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz
fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias
do caso.
Indenização por ofensa à liberdade pessoal
A liberdade protegida no art. 954 do Código Civil é a liberdade física pessoal,
também assegurada pela Constituição Federal no art. 5º, LIV, segundo o qual ninguém será privado de sua liberdade sem o devido processo legal. É preciso ressaltar
que o rol do parágrafo único do art. 954 do Código Civil é meramente enunciativo,
não exaurindo todas as hipóteses.
Art. 954. A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento
das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e se este não puder provar prejuízo,
tem aplicação o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
Parágrafo único. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal:
I - o cárcere privado;
II - a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé;
III - a prisão ilegal.
FGV DIREITO RIO 72
responsabilidade civil e direito do consumidor
2. Caso Gerador
Jair, pai de Marcos, menor de idade, e esposo de Maria adorava sua família. Pai
amoroso, está sempre presente na vida de seu filho, comparecendo aos seus eventos,
levando-o a jogos de futebol e dando conselhos.
Um dia, todavia, Jair saiu para beber com os amigos de infância e lá encontrou
seu desafeto, João. Após beber algumas cervejas, Jair resolve ir pra casa quando é
seguido por João. No meio do caminho, João saca uma arma de fogo e dispara três
tiros em Jair. Encaminhado para o Hospital local, Jair foi submetido a duas cirurgias, mas não resistiu aos ferimentos.
Passado o estado de choque pela morte do chefe da família, Marcos e Maria entram em profunda depressão. Aconselhados por amigos, eles decidem ajuizar uma
ação de indenização em face de João, que já fora condenado em ação criminal a
pena restritiva de direito pela morte de Jair.
Como você, juiz da demanda, fixaria o valor da indenização?
3. Questões de concurso
OAB/RJ 25° Exame de Ordem
44) Quanto à responsabilidade civil aquiliana pode-se afirmar:
A. Limita-se única e exclusivamente à pessoa de agente;
B. Para sua caracterização depende sempre da comprovação da culpa;
C. Ocorrendo excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, o juiz
poderá reduzir, eqüitativamente, o valor da indenização;
D. A nossa sistemática jurídica não admite a responsabilização por omissão.
OAB/RJ 23° Exame de Ordem
1) No que concerne à responsabilidade civil, assinale a alternativa INCORRETA:
a) ao juiz não é facultado, em nenhuma hipótese, o uso da equidade para fixação do quantum indenizatório;
b) tendo o dano sido causado por mais de um autor é possível exigir a reparação
integral de somente um deles;
c) a obrigação de prestar a reparação de um dano causado pelo de cujus transmite-se com a herança;
d) em um prédio todos os habitantes respondem solidariamente pelos danos
causados por coisas dele lançadas, se não se puder determinar especificamente quem foi o causador dos referidos danos.
FGV DIREITO RIO 73
responsabilidade civil e direito do consumidor
Aula 12. Responsabilidades Civil dos Provedores de serviços na
Internet
Leitura obrigatória
Souza, Carlos Affonso Pereira de. “Obrigações e Responsabilidades dos Provedores de Serviços na Internet”, in Renato Opice Blum, Marcos Gomes da
Silva Bruno e Juliana Canha Abrusio (orgs). Manual de Direito Eletrônico e
Internet. São Paulo: Lex, 2006 (uma versão reduzida e adaptada encontra-se
no item 1 abaixo).
Leituras complementares
Barbagalo, Erica Brandini. “Aspectos da Responsabilidade Civil dos Provedores
de Serviços na Internet”, in Ronaldo Lemos e Ivo Waisberg (orgs.), Conflitos
sobre Nomes de Domínio. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003; p. 341/363.
Lemos, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2005; pp. 31/64.
1. Roteiro de aula
As atividades desempenhadas pelos provedores na Internet estão sujeitas a obrigações e responsabilidades a seguir estudadas. A referida nomenclatura (“provedores”) compreende diversas atividades desenvolvidas por pessoas – físicas e jurídicas
– no âmbito da rede mundial de computadores.
Algumas atividades em muito se assemelham com aquelas já existentes previamente ao surgimento da Internet, enquanto outras, por sua vez, foram sensivelmente alteradas pela dinâmica da rede mundial de computadores, ou mesmo foram
criadas somente a partir do desenvolvimento da Internet.
Os provedores são usualmente classificados em três categorias, de acordo com o
tipo de atividade desempenhada, assim pode-se elencar os: (i) provedores de acesso;
(ii) provedores de serviços; e (iii) o provedores de informações, também conhecidos
como provedores de conteúdo.
A questão das obrigações e das responsabilidades dos provedores tem angariado a
atenção da doutrina, legislação e jurisprudência nacionais e internacionais. No Brasil,
diversas decisões judiciais já foram proferidas sobre o tema nos Tribunais de Justiça estaduais, sendo possível estabelecer uma tendência no enfrentamento de algumas questões
pontuais, ainda que de maneira bastante sutil, pois os argumentos trazidos nas decisões
são bastante diversificados, em decorrência da complexidade e atualidade da matéria.
Sendo assim, cumpre analisar os regimes de responsabilização pertinentes a cada
tipo de atividade desenvolvida pelos provedores.
FGV DIREITO RIO 74
responsabilidade civil e direito do consumidor
Obrigações e responsabilidades dos provedores de acesso
O provedor de acesso é responsável pela conexão de um usuário, que tanto poderá ser uma pessoa física ou jurídica, à rede mundial de computadores. Essa conexão
é usualmente realizada através de um fax-modem instalado no computador pessoal
do usuário, ou mediante a utilização dos cabos para a transmissão de conteúdo da
operadora de televisão por assinatura. É ainda possível se conectar à Internet através
das linhas de transmissão de energia elétrica, ou através da transmissão de ondas de
rádio ou satélite.
A Norma nº 04/95, que dispõe sobre o uso de meios da rede pública de telecomunicações para acesso à Internet, segundo aprovada pela Portaria nº 148/95,
do Ministério da Ciência e Tecnologia, refere-se à atividade de conexão à Internet
como um “nome genérico que designa Serviço de Valor Adicionado, que possibilita
o acesso à Internet a Usuários e Provedores de Serviços de Informações”.
Todavia, é importante ressaltar que o provedor de acesso pode desempenhar outras atividades que não apenas a disponibilização dos meios técnicos para o usuário
se conectar à rede mundial de computadores. Nessas circunstâncias, o provedor
de acesso poderá atuar como verdadeiro provedor de serviços ou de informações,
inserindo-se nos seus regimes específicos de responsabilidade civil, conforme comentado mais adiante.
É preciso então averiguar a responsabilidade dos provedores de acesso pela conduta de seus usuários no ambiente da Internet, buscando-se elucidar principalmente se existe um dever de monitoramento prévio, por parte do provedor de acesso,
sobre os hábitos de navegação do usuário, para que possa o provedor prevenir a
ocorrência de violação a direito de outrem.
Surge aqui um argumento de natureza técnica em favor da não responsabilização do
provedor de acesso pela conduta de seus usuários: a efetiva impossibilidade de se exercer um monitoramento preventivo sobre todas pessoas que se valem de seus serviços.
Nesse particular, reforçam a evidência da impossibilidade técnica de monitoramento os dados sobre o número de usuários conectados à Internet no Brasil.
Segundo press-release divulgado pelo Ibope E-Ratings – empresa que acompanha
a audiência dos sites nacionais – a totalidade de usuários que se conectam à rede
mundial no Brasil, através de seus computadores residenciais, já alcança o número
de 7,256 milhões, conforme os dados colhidos no mês de julho de 2003.91
Apoiados no argumento da impossibilidade técnica de monitoramento preventivo, diversos autores manifestaram-se pela não existência de responsabilidade dos
provedores de acesso pela conduta de seus usuários.
Esse é um entendimento que merece reparos, pois o argumento jurídico não
pode se escorar apenas em fundamentos de ordem técnica. Para se legitimar um
entendimento jurídico é preciso mais do que reproduzir dados, gráficos e planilhas;
é preciso que se investigue a natureza das obrigações assumidas tanto pelo provedor
de acesso, como pelo usuário, quando da contratação dos serviços de conexão à Internet. Apenas definindo-se claramente o papel de ambas as partes é que se poderá
afirmar um entendimento jurídico sobre o assunto.
Conforme dados disponíveis
em http://www.ibope.com.br/
imprensa/noticias_2003_internetjul_no.htm (acessada em
20.05.2005).
91
FGV DIREITO RIO 75
responsabilidade civil e direito do consumidor
Usualmente, para obter acesso à Internet, o usuário submete os seus dados para
cadastro em um provedor de acesso que, inserindo as informações pessoais em seu
banco de dados, disponibilizará ao usuário um login e uma senha para que possa
usufruir de seus serviços. No contrato entre as partes, o provedor de acesso apenas se
compromete a providenciar os meios técnicos para que o usuário acesse a Internet.
Dessa forma, o monitoramento sobre as páginas eletrônicas visitadas pelo usuário, as pessoas com as quais ele se relaciona, bem como sobre os arquivos que são
objeto de download ou upload, não está incluído dentre as atividades pelas quais se
obriga o provedor. Conseqüentemente, não existe ingerência do provedor de acesso
sobre a conduta de seu usuário.
Por oportuno, deve-se traçar um paralelo entre a responsabilização do provedor
de acesso pelos atos de seus usuários e a chamada teoria da equivalência das condições. A mencionada teoria, sempre referida nos estudos sobre o nexo de causalidade,
sustenta que, para a análise do nexo causal em determinado ato ilícito, devem ser
levadas em consideração todas as circunstâncias presentes no desenvolvimento lógico do evento danoso.92 Assim, poder-se-ia, por absurdo, entender que o fabricante
de uma arma de fogo é responsável por todo ato ilícito que venha a ser cometido
utilizando-se uma arma por ele produzida.
Idêntico absurdo seria criado com a responsabilidade do provedor de acesso pelos atos de seus usuários, pois, tal qual o fabricante de armas de fogo, o provedor
apenas disponibiliza um instrumento, um meio para que o seu usuário desenvolva
determinada atividade. Como esse usuário vai se portar, ou com que retidão de
caráter ele vai se utilizar do instrumento técnico que lhe foi disponibilizado, são
questões que já extravasam a esfera de responsabilidade de quem apenas forneceu os
meios para o desempenho de uma atividade lícita.
Assim, fortalecido com o argumento da impossibilidade técnica, deve-se reconhecer que juridicamente não há como responsabilizar o provedor de acesso pela
conduta de seus usuários. Nessa direção já se pronunciou o Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, em julgamento cuja ementa está assim redigida:
“apelação cível. ação cautelar. medida com objetivo de retirar do ar site na internet. ilegitimidade passiva do provedor de acesso. manutenção da sentença.
É parte ilegítima para figurar no pólo passivo da medida cautelar ajuizada o provedor de acesso da internet que apenas possibilita a seus associados o acesso à rede
mundial de computadores. Apelo desprovido.”93
Vale transcrever ainda uma passagem do voto do relator, no qual se afirma que:
Essa teoria, como se sabe, há
muito se encontra superada no
direito brasileiro. Nesse sentido,
vide, por todos, Gustavo Tepedino. “Notas sobre o nexo de causalidade”, in Revista Trimestral
de Direito Civil, nº 05; p. 06.
92
“[A] Webcom Marketing e Informática Ltda [Réu] funciona como provedora
de acesso à rede mundial. Desta forma, sua atuação limita-se a possibilitar a seus
usuários acesso à Internet. Portanto, a ré não possui nenhuma ingerência sobre o
conteúdo do site de contos eróticos e de nenhum outro site da rede mundial. Daí decorre a sua ilegitimidade passiva ad causum, bem observada na sentença de primeiro
grau. Não se pode responsabilizar o provedor pelos acessos por atos dos internautas
Ap. Civ. n° 70001582444, rel.
Antônio Correa Palmeiro da
Fontoura, j. em 29.05.2002.
93
FGV DIREITO RIO 76
responsabilidade civil e direito do consumidor
a quem ela possibilita a navegação, bem como, pelas publicações vinculadas nos sites
que os internautas visitam.”94
A não responsabilidade dos provedores de acesso pela conduta dos seus usuários
é igualmente afirmada na doutrina. Sobre o tema, ressalta o jurista argentino Waldo
Sobrino:
“Este tipo de empresa no debe asumir ningún tipo de responsabilidad, habida
cuenta que su única función es solamente brindar la estructura técnica, para que las
empresas de Internet Service Provider (ISP) o hosting service provider puedan llegar
a tener acceso, de forma tal que la información llegue al ciberespacio.”95
Todavia, se o provedor de acesso não responde pelos atos de seus usuários na
ocorrência de danos causados por esses a terceiros, é importante notar que quando
se trata de danos causados pelo provedor aos seus próprios usuários, em decorrência
de descumprimento de contrato, evidentemente será ele responsável pelos danos
advindos de sua conduta.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, condenou um
provedor de acesso a indenizar uma empresa que se valia de seus serviços de conexão
por danos materiais e morais. Entendeu o Tribunal que a má prestação dos serviços
de acesso à Internet, acrescida do descaso para com reiteradas solicitações de reparos
feitas pelo cliente, não apenas prejudicaram o desempenho econômico da empresa,
mas também contribuíram para lesão à sua honra objetiva. Confira-se a ementa da
referida decisão:
“Civil e Processual Civil. Indenização por danos morais postulada contra provedor de acesso à internet sob alegação de propaganda enganosa. Obstáculos na solução dos problemas de acesso à rede, acarretando dificuldades ao desenvolvimento das
atividades da empresa contratante, dedicada ao ramo de consultoria e informática.
Desrespeito do provedor ao usuário, provocando lesão à reputação e honra objetiva
da autora. Caracterização de dano moral a pessoa jurídica (súmula 227 do STJ).”96
Por todo o exposto, compreende-se que os provedores de acesso não são responsáveis pela conduta de seus usuários, não lhes sendo ainda possível exigir o
monitoramento preventivo dos hábitos de navegação daqueles que utilizam os seus
serviços.
Obrigações e responsabilidades dos provedores de serviços
94
Idem. Ibidem.
Waldo Augusto Roberto Sobrino. “Algunas de las nuevas responsabilidades legales derivas
de Internet”, in Revista de Direito
do Consumidor nº 38; p. 23.
95
Os provedores de serviços na Internet (Internet Service Providers) desempenham
atividades de diversas naturezas na rede mundial de computadores, podendo-se destacar o provimento de serviços de correio eletrônico, de hospedagem de páginas
eletrônicas e de chave de busca, por exemplo. Algumas dessas atividades representam evoluções de modelos já existentes anteriormente ao surgimento da Internet,
Apelação Cível nº
2002.001.16410, rel. Luiz
Fernando de Carvalho, j.
29.04.2003.
96
FGV DIREITO RIO 77
responsabilidade civil e direito do consumidor
ao passo que outras atividades foram genuinamente criadas a partir das relações
travadas no ambiente da rede mundial de computadores.
Em tese, os provedores de acesso também prestam um serviço, pelo que poderiam ser enquadrados como provedores de serviço. Todavia, como o provimento
de acesso à Internet é um pré-requisito para que o desenvolvimento das demais
atividades, e o caráter instrumental do serviço prestado faz-se mais evidente, optou
a doutrina por conferir tratamento diferenciado para essa categoria.
Cumpre, portanto, analisar a responsabilidade civil dos provedores de serviços
pela conduta dos seus usuários. A referida análise deverá levar em conta a especificidade de cada atividade desenvolvida, e para tanto, concentrar-se-á o foco de estudo
nos três serviços mencionados acima (correio eletrônico, hospedagem e chaves de
busca), não obstante os comentários aqui feitos terem aplicação sobre outras atividades.
Primeiramente, faz-se aqui uma limitação da temática a ser abordada nesse item,
uma vez que, em que pese a discussão abaixo sobre a responsabilidade dos provedores por atos de seus usuários, podem os mesmos provedores ser os responsáveis
diretos por danos a seus próprios usuários ou terceiros. Essas circunstâncias não
serão tratadas aqui, dedicando-se o presente estudo apenas à dinâmica de responsabilização dos provedores de serviços em decorrência da conduta de seus usuários.
Importa destacar, de início, as atividades desempenhadas pelos provedores de
serviços analisados para que se possa compreender as relações jurídicas que se desenvolvem por conta da utilização dos mencionados serviços.
Os provedores de serviço de correio eletrônico disponibilizam aos seus usuários
uma caixa postal para que possam enviar e receber mensagens (e-mails).
Os provedores de hospedagem, por seu turno, proporcionam ao internauta os
meios técnicos para a veiculação de página eletrônica na Internet, oferecendo espaço para armazenamento dos arquivos que a compõe. O referido provedor pode,
até mesmo, disponibilizar para o usuário os instrumentos para a produção de sua
página pessoal.
Por fim, os provedores de serviços de chave de busca (usualmente conhecidos
como sites ou motores de busca) operam um serviço de especial relevo para o desenvolvimento da Internet, uma vez que, através de suas páginas eletrônicas, oferecem ao
internauta a possibilidade de localizar a informação desejada através de pesquisa realizada quase instantaneamente no conteúdo de um número sempre crescente de sites.
Para que se analise a responsabilidade desses provedores, deve-se ressaltar que,
uma vez mais, o argumento da impossibilidade técnica de controle preventivo sobre
a conduta dos usuários faz-se pertinente. O provedor de serviços de correio eletrônico, por exemplo, não tem como checar o conteúdo de cada mensagem que é enviada por seus usuários, sem prejudicar sensivelmente a velocidade na comunicação
eletrônica. Nesse caso, inclusive, o provedor nem mesmo poderia adotar esse tipo
de atitude, pois estaria violando o direito ao sigilo de correspondência, previsto na
Constituição Federal.
Raciocínio semelhante pode ser conduzido com relação aos provedores de hospedagem e chaves de busca, na medida em que ambos não detêm a tecnologia para
FGV DIREITO RIO 78
responsabilidade civil e direito do consumidor
realizar um monitoramento preventivo e eficiente sobre as páginas eletrônicas que
são produzidas e hospedadas em seus sites, ou mesmo as informações que ingressam
em seus bancos de dados para a indexação de pesquisa, respectivamente.
Mas cabe aqui introduzir uma sofisticação relevante sobre o monitoramento preventivo da conduta dos usuários desses serviços: ainda que fosse possível proceder
a esse monitoramento sem descaracterizar a atividade desenvolvida pelo provedor,
quais seriam os critérios utilizados para descartar uma mensagem como potencialmente ofensiva a seu destinatário? Ou ainda, como saber se a fotografia exposta
em uma página eletrônica hospedada em um provedor está sendo utilizada sem
autorização do retratado? Ou mesmo se a informação resultante de pesquisa em site
de busca não viola direitos da personalidade alheios? Parece bastante controvertida
a decisão de se delegar para os provedores de serviço o juízo de discricionariedade
sobre o conteúdo das informações que circulam na Internet.
Recordando a solução apresentada no capítulo 4 para o impasse envolvendo a
privacidade do trabalhador no envio de mensagens eletrônicas, é importante esclarecer que no caso anteriormente referido, o empregador oferece para o empregado a
utilização de um recurso cuja propriedade é da empresa. Dessa forma, compreendese que possa o empregador impedir que algumas mensagens não sejam efetivamente
enviadas, caso sejam detectadas pelo filtro de conteúdo. Principalmente se for levada em consideração a circunstância de que o empregador responde pelos atos de
seus empregados, de acordo com o artigo 932, III, do Código Civil.
Diametralmente oposta é a posição dos provedores de serviços, que podem até mesmo instalar filtros, tal qual sugerido no caso do monitoramento eletrônico dos empregados, mas não são responsáveis por lei pelos atos de seus usuários. Essa questão ainda está
sendo debatida na doutrina e na jurisprudência, apenas admitindo-se que o provedor
de serviços não envie uma mensagem, retire uma página do ar ou apague referência em
mecanismo de busca em homenagem ao princípio da prevenção de danos. Pode-se até
mesmo buscar o fundamento dessa conduta na aplicação do princípio da solidariedade.97 Todavia, a questão dos parâmetros para se efetuar esse monitoramento persiste.
Sendo assim, a imposição de um dever de monitoramento preventivo sobre a
conduta dos usuários de provedores de serviços na Internet não prospera frente à
complexidade da vida real e a sua adequação à regulamentação jurídica.
A doutrina brasileira acompanhou esse entendimento, conforme se pode observar na seguinte manifestação de Marco Aurélio Greco:
“Como exposto, a meu ver, tanto o provedor de acesso como o provedor de
espaço não estão obrigados a acessar nem controlar o que está sendo trafegado pelo
sistema que disponibilizam; o primeiro tem autorização para fazê-lo por razões de
avaliação da eficiência do sistema, otimização de fluxos etc., mas não por uma razão
ligada ao controle sobre o respectivo conteúdo; o segundo pode ter pleno acesso aos
conteúdos, embora não esteja obrigado a fazê-lo.”98
Restando assentada a não obrigatoriedade de proceder a um controle editorial sobre as informações refletidas em seus sites, note-se que a legislação norte-americana
Sobre o princípio da solidariedade, vide Maria Celina Bodin
de Moraes. “O Princípio da Solidariedade”, in Manoel Messias
Peixinho, Isabel Franco Guerra
e Firly Nascimento Filho (orgs).
Os Princípios da Constituição de
1988. Rio, Lumen Júris, 2001,
pp. 167/190.
97
Marco Aurélio Greco. Internet
e Direito. São Paulo, Dialética,
1999; p. 114.
98
FGV DIREITO RIO 79
responsabilidade civil e direito do consumidor
apresenta dispositivo de grande relevo para compreender a posição dos provedores
de serviços frente aos seus usuários.
O Telecommunications Act, conforme alterado pelo chamado Communications
Decency Act, de 1994, isenta os provedores de serviços na Internet da responsabilidade que cabe ao provedor de informações em seu artigo 230 (c) (1). Nesse sentido,
assim está redigido o dispositivo:
“(1) Tratamento como Divulgador ou Autor da Expressão: Nenhum provedor ou
usuário de serviço interativo de computador deverá ser tratado como se divulgador
ou autor fosse de qualquer informação disponibilizada por provedor de informações.”
Mas o artigo 230 vai além: pois não apenas a legislação norte-americana dispõe
sobre a não responsabilidade dos provedores de serviço, como ainda estabelece que,
caso o provedor de serviço venha a obstruir a transmissão ou divulgação de conteúdo que lhe pareça ilícito – espontaneamente, ou por solicitação de terceiros – ele
também não será responsável por tais atos. Trata-se de medida tomada em boa-fé,
e a denominação que a lei confere a tal conduta não deixa dúvidas sobre a licitude
dessa postura: “Bloqueio do Bom Samaritano” (“Good Samaritan Blocking”). Assim
dispõe o artigo 230 (c) (2):
“(c) Proteção do Bloqueio do Bom Samaritano e Remoção de Material Ofensivo
(...) (2) Responsabilidade Civil - Nenhum provedor ou usuário de serviço interativo de computador será responsabilizado por:
(A) qualquer ação voluntária, tomada em boa-fé para restringir acesso ou disponibilidade de material que o provedor ou o usuário considere obsceno, indecente,
lascivo, sórdido, excessivamente violento, ameaçador, ou de qualquer forma questionável, independentemente da proteção constitucional desse material; ou
(B) qualquer ação tomada criar ou disponibilizar para provedores de informação
ou outros os meios técnicos para restringir acesso ao material descrito no item (1).”
De fato, na maior parte das vezes, os atos ilícitos praticados na Internet são ocasionadas pelos usuários de provedores de serviços, que se utilizam das facilidades tecnológicas que lhes são oferecidas para praticar atividades ilícitas. Assim, percebe-se de imediato que não são os provedores, na verdade, os responsáveis diretos pela divulgação do
conteúdo lesivo na rede mundial de computadores, na medida em que não assumem
a qualidade de autores desse conteúdo ilícito. O provedor de correio eletrônico não
é o autor da mensagem ofensiva à privacidade de seu destinatário, assim como não é
o provedor de hospedagem quem divulga a fotografia sem autorização do retratado,
quando a mesma figura em uma das milhares de páginas eletrônicas que hospeda. Da
mesma forma, não é o provedor de chave de busca que insere em sua base de dados
referência para a indexação de pesquisa que ofende direitos de terceiros.
Como conclusão, percebe-se que a pessoa lesionada deve buscar indenização em
face de quem efetivamente criou e divulgou o material ofensivo. Os provedores de
FGV DIREITO RIO 80
responsabilidade civil e direito do consumidor
serviço geralmente surgem em demandas dessa natureza como simples intermediários entre a pessoa ofendida e o usuário do serviço, que se valeu do mesmo para
causar o dano.
Sobre o tema, o Tribunal de Justiça do Paraná quando instado a se pronunciar sobre
a responsabilidade do provedor de hospedagem pelo conteúdo das páginas de seus usuários, prontamente excluiu do feito o provedor, responsabilizando por ofensa à honra de
terceiro apenas o titular da página através da qual as ofensas foram irrogadas:
“civil - dano moral - internet - matéria ofensiva à honra inserida em página virtual - ação movida pelo ofendido em face do titular desta e do provedor hospedeiro co-responsabilidade - não caracterização - contrato de hospedagem - extensão - pertinência subjetiva quanto ao provedor - ausência - sentença que impõe condenação
solidária - reforma.
Em contrato de hospedagem de página na Internet, ao provedor incumbe abrir
ao assinante o espaço virtual de inserção na rede, não lhe competindo interferir na
composição da página e seu conteúdo, ressalvada a hipótese de flagrante ilegalidade.
O sistema jurídico brasileiro atual não preconiza a responsabilidade civil do provedor hospedeiro, solidária ou objetiva, por danos morais decorrentes da inserção pelo
assinante, em sua página virtual, de matéria ofensiva à honra de terceiro.”99
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu a
ilegitimidade passiva da empresa Terra Networks Brasil S/A, em ação movida pelo
ex-jogador de futebol Paulo Roberto Falcão, por conta de ofensas que teriam sido
causadas a sua imagem em entrevista com a modelo Rosane Damázio, publicada
pela revista eletrônica “Isto É Gente”. Alegou o autor que a referida empresa seria
responsável pelos supostos danos na medida em que a página eletrônica da revista
era hospedada pelo portal Terra:
Processual civil. Legitimidade passiva. Provedor de acesso e de conteúdo. Internet. Dano moral. Responsabilidade civil. Denunciação da lide.
1 - É responsável o provedor de conteúdo da INTERNET (PSI) pela divulgação
de matéria que viole direito e cause dano a outrem, seja por calúnia, difamação ou
injúria, cabendo ao mesmo residir no pólo passivo da demanda onde a parte que se
diz ofendida postula indenização por danos morais. Tal responsabilidade, contudo,
não se reconhece ao provedor de conteúdo na hipótese em que este serve unicamente
de meio de divulgação de revista, sendo esta perfeitamente identificável e responsável
na forma da lei, por quaisquer manifestações de pensamento, ou mesmo de informação, que venham a causar violação de direito.
2 – Denunciação da lide. Cabível é a denunciação do autor de entrevista que,
através de chat na Internet, manifesta pensamento sobre a honra de terceiro. Agravo
parcialmente provido.”100
Apelação Cível nº 130075-8, j.
19.11.2002.
99
Agravo de instrumento
n. 70003035078, rel. Paulo
Antonio Kretzmann, j. em
22.11.2001.
100
Todavia, esse entendimento não foi aplicado pelo relator do mesmo julgado no
que concerne às alegações do autor no sentido de que a empresa seria responsável
FGV DIREITO RIO 81
responsabilidade civil e direito do consumidor
também por ter promovido uma sessão em uma de suas salas de discussão (chat)
com a modelo Rosane Damázio, onde novamente conteúdo ofensivo à imagem do
ex-jogador de futebol teria sido divulgado. Nesse particular, entendeu a decisão que
o portal Terra, agora na figura de provedor de informações, seria parte legítima para
figurar na ação indenizatória. Essa circunstância será discutida mais à frente, quando se abordar a responsabilidade dos provedores de informações pelo conteúdo de
terceiro veiculados em seus sites.
Vale ainda tecer um comentário sobre os provedores de chave de busca, pois
ao desempenhar as suas atividades, a caracterização desses sites como verdadeiros
intermediários fica ainda mais nítida, pois esse provedor opera justamente como
um veículo que conduz o usuário da Internet à informação desejada, constante, essa
sim, em um provedor de informações.
Isto é, a matéria-prima dos sites de busca não é a informação em si, mas a sofisticação do mecanismo de pesquisa que possibilita o acesso à informação.
Que o provedor de conteúdo seja responsável pelas informações disponibilizadas
em seu site, isso não há dúvida, conforme se verificará adiante, na medida em que as palavras, imagens e sons constantes de sua página eletrônica lá estão por exclusiva opção
do provedor. Situação completamente distinta é aquela reservada ao site de busca.
O entendimento contrário levaria à responsabilização das bibliotecas pelo conteúdo dos livros que constam do seu acervo, e novamente volta-se para a evidência
técnica de impossibilidade de monitoramento dos provedores de serviço das condutas de seus usuários.
As bibliotecas não têm como empregar um verdadeiro exército de funcionários
para ler todos os livros que chegam ao seu acervo, antes de catalogá-los, para verificar se alguém, em alguma parte do mundo, não se sentiria ofendido por alguma
passagem de algum livro específico.
Da mesma forma, é impossível para os provedores de chave de busca procederem
a uma revisão editorial de toda e qualquer informação que ingressa em seu banco de
dados. Isso simplesmente não é factível tendo em vista a quantidade monumental de
páginas eletrônicas que são indexadas por esses sites. Diferentemente dos provedores
de conteúdo, os sites de busca não optaram por exibir essa ou aquela informação.
A jurisprudência sobre a responsabilidade de provedores de chave de busca pelas
informações inseridas por terceiros em seus bancos de dados para a indexação de
pesquisa é ainda incipiente. Há, todavia, um caso apreciado pelo Tribunal de Grande Instance de Paris, em decisão datada de 31.07.2000.
O autor requereu indenização contra a empresa que explorava um site de conteúdo adulto por ter utilizado o seu nome para indexar a mencionada página eletrônica. Adicionalmente, o autor fez constar do pólo passivo da demanda o provedor de
chave de busca AltaVista, sob o fundamento de que ao pesquisar pelo seu nome na
página eletrônica daquele provedor, o site de conteúdo adulto do outro réu era indicado, o que agravava o dano que lhe era causado pelo provedor de informações.
Segundo a decisão do Tribunal, a responsabilidade do AltaVista haveria de ser
descartada, uma vez que o site de busca reagiu ao pleito do autor e retirou de sua
indexação a página contestada.101
A íntegra da decisão pode
ser obtida no site http://www.
ifrance.com/achp/juris/fichDelanoe.html (acessado em
21.05.2005).
101
FGV DIREITO RIO 82
responsabilidade civil e direito do consumidor
Por oportuno, cumpre aqui ressaltar que existe uma parcela significativa da doutrina nacional que considera os provedores de serviço não responsáveis pela conduta
de seus usuários apenas a priori, pois uma vez notificados de que um ato ilícito
está sendo realizado – ou irá se realizar – por intermédio de seus serviços, devem
os mesmos tomar as providências para que cesse a lesão, ou seja evitado o dano,
com a urgência necessária. Caso o provedor assim não atue, depois de devidamente
notificado, ele seria, conjuntamente com o autor do ilícito, responsável pelo dano
causado.
Para os que assim entendem, a responsabilidade do provedor de serviço é de
natureza ostensivamente subjetiva, na medida em que faz-se necessário (i) alertar o
provedor sobre a existência do conteúdo ilícito, uma vez que ele não está obrigado a
conhecê-lo de antemão; e (ii) quedar o provedor inerte quanto à solicitação que lhe
foi encaminhada, para que surja a sua responsabilidade.
Note-se que a ausência de dever de controle e monitoramento de conteúdo permanece mesmo para os que compartilham do entendimento de que os provedores
de serviços respondem com culpa, nessas circunstâncias, pelo conteúdo das informações que transmitem ou armazenam.
Nesse sentido, sobre a prestação de serviços de acesso e hospedagem de páginas
eletrônicas na Internet, Carlos Roberto Gonçalves, apoiado em lição de Antonio
Jeová Santos, é explícito ao afirmar que:
“a responsabilidade de quem explora esses tipos de serviços será sempre subjetiva.
No primeiro, há apenas a entrega de serviço para possibilitar a conexão à Internet,
ao passo que o hosting service provider tem como função abrigar (hospedar) sites
e páginas, atuando como hospedeiro tecnológico virtual. Não há interferência no
conteúdo que o usuário coloca na página ou site.”102
Abordando especificamente a responsabilidade dos provedores de hospedagem,
Erica B Barbagalo ressalta que:
“O provedor de serviços de hospedagem não é responsável pelo conteúdo dos
sites que hospeda, uma vez que não tem ingerência sobre o conteúdo destes, não lhe
cabendo o controle editorial das páginas eletrônicas. Também não se pode esperar
do provedor de hospedagem atividades de fiscalização: na maioria das vezes o armazenador não tem acesso ao conteúdo do site, apenas autorizado ao seu proprietário,
que pode alterar o conteúdo de suas páginas com a freqüência que lhe aprouver. Ademais, várias são as páginas e sites hospedados em cada servidor, restando impossível
para o provedor de hospedagem a fiscalização de conteúdo.”103
Inobstante, complementa a autora que “não cabe ao provedor de hospedagem
julgar a ilegalidade de conteúdo postado por terceiro, mas pode responder se permanecer inerte em face de potencial conteúdo danoso.”104
Veja-se ainda o entendimento Liliana Paesani, ao afirmar que
Carlos Roberto Gonçalves.
Responsabilidade Civil. São Paulo, Saraiva, 2002; p. 120.
102
Erica B. Barbagalo. “Aspectos
da Responsabilidade Civil dos
Provedores de Serviços na Internet”, in Ronaldo Lemos e Ivo
Waisberg, Conflitos sobre Nomes
de Domínio. São Paulo, Revista
dos Tribunais, 2003; p. 358.
103
Erica B. Barbagalo. “Aspectos
da Responsabilidade Civil”, cit.;
p. 359.
104
FGV DIREITO RIO 83
responsabilidade civil e direito do consumidor
“[n]esse campo, sente-se a necessidade de estabelecer as hipóteses de limitação
ou isenção de responsabilidade quanto ao conteúdo da informação que o fornecedor
não consegue controlar no momento da divulgação, salvo quando existe a faculdade
e a possibilidade de interceptar a informação com base em fundamentadas suspeitas
de utilização de material publicitário ilícito a pedido da pessoa ofendida ou por indicação de terceiros.”105
A legislação norte-americana referente à proteção dos direitos autorais na Internet partilha de igual posição. O denominado Digital Millenium Copyright Act
estabelece no artigo 512 (d) que os provedores de serviço não serão responsáveis
pelo conteúdo das páginas a que eles se refiram através de indexação ou links, por
exemplo, contanto que: (i) não tenham ciência do material ilícito; (ii) não recebam
qualquer benefício econômico advindo da atividade infracional; e (iii) em obtendo
ciência do material, atuem no sentido de bloquear o acesso a tal conteúdo.
Ainda que acatando a responsabilidade subjetiva do provedor de serviços, é importante ressaltar que permanece a responsabilidade do provedor de informação,
ou seja, de quem efetivamente criou e divulgou o material ofensivo. O provedor de
serviço apenas poderá ser responsabilizado caso tenha se quedado inerte após tomar
ciência fidedigna da existência da ilicitude.
Por fim, um último comentário deve ser feito sobre a responsabilidade dos provedores de serviços, enfocando-se a pretensa aplicação da teoria do risco às atividades aqui mencionadas.
Tendo em vista o modo de funcionamento dos provedores de serviços descrito
acima, juntamente com as suas finalidades e relevância para o desenvolvimento
da Internet, torna-se evidente que a imputação de responsabilidade lastreada pelo
simples risco da atividade terminaria por aniquilar de todo a prestação desse serviço
na rede mundial de computadores, causando prejuízo sensível para a ampla distribuição de conteúdo, que caracteriza a Sociedade da Informação.
Tome-se o exemplo dos sites de busca: na impossibilidade de se promover uma
revisão de todas as páginas que ingressam nos seus bancos de dados, restará aos
mesmos: (i) reduzir drasticamente o número de páginas constantes em seus arquivos e apenas disponibilizá-las após passar por uma revisão do seu conteúdo, o que
fatalmente implicará em quase absoluta ineficiência dos mecanismos de busca na
Internet; ou (ii) continuar a prestar os serviços da forma como hoje os realiza, ficando sujeitos a colecionar ações de indenização pelo mundo afora, o que os levaria à
falência iminente em poucos meses.
Sobre a total improcedência e os conseqüentes efeitos devastadores da aplicação
da teoria do risco aos provedores de serviço na Internet, assim manifesta-se Erica
B. Barbagalo:
“Entendemos que as atividades desenvolvidas pelos provedores de serviços na
Internet não são atividades de risco por sua própria natureza, não implicam em
riscos para direitos de terceiros maior que os riscos de qualquer atividade comercial.
E interpretar a norma no sentido de que qualquer dano deve ser indenizado, inde-
Liliana Minardi Paesani. Direito e Internet. São Paulo, Atlas,
2000; p. 89.
105
FGV DIREITO RIO 84
responsabilidade civil e direito do consumidor
pendente do elemento culpa, pelo simples fato de ser desenvolvida um atividade,
seria, definitivamente onerar os que praticam atividades produtivas regularmente, e
conseqüentemente atravancar o desenvolvimento.”106
Comentando a imputação dessa responsabilidade aos provedores de serviços
que atuam com comércio eletrônico e anúncio de produtos, comenta Rita Ferreira
Blum:
“Em termos comerciais, atribuir-lhe tal responsabilidade inviabilizaria o seu próprio negócio. Ele, como veículo, não tem estrutura para checar a veracidade e correção de todos os múltiplos anúncios cuja veiculação ele possibilita.”107
A discussão está longe de ser apenas teórica, uma vez que, com a entrada em
vigor do novo Código Civil, inicia-se a discussão sobre o alcance e o sentido do art.
927, parágrafo único, do referido diploma legal, que prevê a responsabilidade sem
culpa em decorrência de atividades que representem risco. O artigo está redigido da
seguinte forma:
“Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Em comentário ao referido artigo, Rui Berford Dias aborda especificamente o
alcance do parágrafo único do art. 927, in verbis:
“Eu leio esse parágrafo único do artigo 927 de uma forma diferente da que vem
sendo lida: vejo aqui uma hipótese em que o risco de dano é inerente à natureza
da atividade, ou seja, é intrínseco a essa atividade, como, por exemplo, no caso das
atividades industriais mediante o emprego de amianto ou qualquer outro produto,
substância ou equipamento que, por si só, acarrete dano.
Não me parece, pois, que se possa falar com tanta tranqüilidade que basta apontar uma atividade econômica qualquer, ainda que potencialmente danosa, e extrair
daí a responsabilidade objetiva de seus exploradores.
Penso que é necessário algo mais: um elemento diferenciador, sob pena de criarmos situações bizarras, como a de considerar que a nossa própria atividade, de advogados e doutrinadores (potencialmente danosa), possa ser equiparada à atividade do
sujeito que passa anos a fio manejando um martelo pneumático e acaba ensurdecendo em razão da natural atividade que desempenha.”108
Sendo assim, deve-se evitar que a figura do risco, prevista no mencionado
artigo, seja banalizada, a ponto de ser aplicável a toda e qualquer atividade econômica. No que diz respeito aos provedores de serviços na Internet, agentes típicos
Erica B. Barbagalo. “Aspectos
da Responsabilidade Civil”, cit.;
p. 361.
106
Rita Ferreira Blum. Direito
do Consumidor na Internet. São
Paulo, Quartier Latin, 2002;
p. 85.
107
Rui Berford Dias, “A responsabilidade dos administradores
e as alterações promovidas no
âmbito da responsabilidade
civil no novo Código Civil, de
forma geral”, in Revista de
Direito Mercantil nº 128 (out/
dez/2002), p. 159.
108
FGV DIREITO RIO 85
responsabilidade civil e direito do consumidor
e imprescindíveis para o desenvolvimento da Sociedade da Informação, cumpre
ressaltar que parcela significativa das empresas que atuam na Internet é composta
por sociedades de pequeno e médio porte. E sendo assim, responsabilizá-las pelo
risco da atividade que desempenham seria certamente um desfavor para o crescimento econômico da Internet brasileira.
Obrigações e responsabilidades dos provedores de informações
Provedores de informações, ou conteúdo, são todas as pessoas – físicas ou jurídicas – que disponibilizam informações na Internet através de uma página eletrônica.
A já mencionada Norma nº 04/95, aprovada pela Portaria nº 148/95, do Ministério
da Ciência e Tecnologia, refere-se a essa categoria de provedores como “Provedores
de Serviços de Informação”. Segundo a definição apresentada pela Norma nº 04/95,
é um provedor de serviço de informação “a entidade que possui informações de interesse e as dispõe na Internet, por intermédio do Serviço de Conexão à Internet”.
A referida definição legal é genérica – o que é positivo por permitir que a divulgação de qualquer espécie de informação torne possível o enquadramento como
provedor de conteúdo – mas apresenta alguns inconvenientes como a conceituação
de “informações de interesse”.
Pode-se considerar como provedor de informações toda pessoa que disponibiliza
conteúdo informativo na rede mundial de computadores, incluindo-se, portanto,
nessa categoria, não apenas os sites de notícias, mas também os weblogs.109
A principal característica dos provedores de informações é a inserção voluntária de um determinado conteúdo para divulgação na Internet. Existe efetivamente
uma maior responsabilidade pelo conteúdo exibido pelo site, na medida em que as
informações ali constantes presumem-se que foram analisadas e que se optou por
sua divulgação.
A doutrina divide o conteúdo disponibilizado pelos provedores de informações como
“próprios” (diretos) ou “de terceiros” (indiretos).110 O conteúdo próprio consiste na informação gerada pelo próprio provedor, como ocorre, por exemplo, com as colunas de
articulistas de um site de notícias. Os conteúdos de terceiros são informações que, apesar de constarem do provedor, não são de sua autoria. A existência dessas informações
demanda uma análise sobre a sua inclusão pelo provedor, pois ainda que a criação do
conteúdo não provenha dele, o mesmo não se pode dizer da opção por sua divulgação.
Nesse particular, ao se referir ao tema da responsabilidade dos provedores de
informações pela inclusão do conteúdo de terceiro, a figura do hyperlink (ou simplesmente link) ganha relevo, uma vez que através de sua utilização o provedor
direciona o usuário da Internet para as informações constantes na página eletrônica
destinatária do link.
Assim, o link opera como uma verdadeira recomendação, devendo o provedor
de informações ser cauteloso ao optar por direcionar o seu usuário para conteúdo
de autoria de terceiros.
Ao se pronunciar sobre a questão, alguns autores têm atribuído aos provedores
de informações uma responsabilidade direta e objetiva pela colocação de links para
O weblog, ou simplesmente blog, “é uma página web
atualizada freqüentemente,
composta por pequenos parágrafos apresentados de forma
cronológica. É como uma página de notícias ou um jornal que
segue uma linha de tempo com
um fato após o outro. O conteúdo e tema dos blogs abrange
uma infinidade de assuntos
que vão desde diários, piadas,
links, notícias, poesia, idéias,
fotografias, enfim, tudo que a
imaginação do autor permitir.”
(in http://blogger.globo.com/
br/about.jsp, consultada em
30.05.2005).
109
Waldo Sobrino. “Algunas de
las nuevas responsabilidades”,
cit.; p. 15.
110
FGV DIREITO RIO 86
responsabilidade civil e direito do consumidor
conteúdos que se mostrem ofensivos a direitos de terceiros. Dentre outros, pode-se
destacar o entendimento de Antonio Jeová Santos, segundo o qual:
“A respeito dos conteúdos de terceiros ou indiretos, também são responsáveis
[os provedores de informações] em forma objetiva, já que antes de realizar o link à
outra página ou site, necessariamente teve que ser analisada e estudada. De maneira
tal que, ao eleger livremente a incorporação do link, necessariamente tem que ser
responsável por isso.”111
Todavia, o mencionado autor, apoiado no estudo de Waldo Sobrino, restringe
a responsabilidade objetiva do provedor de informações apenas ao conteúdo da
página para a qual o link está diretamente endereçado (“link de primeiro nível”),
não alcançando, evidentemente, prováveis links que a página endereçada fizer para
outros sites (“links de segundo nível ou posterior”).112 Nesse caso, afirma o autor
que a responsabilidade será subjetiva.113
O entendimento acima reproduzido, caso seja encampado pelos tribunais nacionais, poderá trazer prejuízos sensíveis para o desenvolvimento de qualquer atividade
na Internet, uma vez que estabelece um grau de responsabilidade severo para a
prática corriqueira de se inserir links em páginas eletrônicas. O link é um dos instrumentos tecnológicos da rede mundial de computadores que melhor representa a
Sociedade da Informação, como desenvolvido no capítulo primeiro desse trabalho.
Isso porque é através do link que as informações constantes da Internet são interligadas, formando a rede de conhecimentos que a caracteriza. Portanto, deve-se
colocar algumas ponderações sobre a responsabilidade dos provedores pela inserção
de links em suas páginas eletrônicas.
O brocardo em inglês “think before you link” (“reflita antes de fazer o link”) expressa com precisão a idéia que deve permear a colocação de um link. Todavia, com
a dinâmica célere do fluxo de informações na Internet, é importante notar que a
responsabilização dos provedores de informações, tal qual acima exposto, torna-se
bastante problemática, pois o conteúdo de uma página eletrônica pode facilmente
ser alterado, e assim a página que anteriormente foi “analisada e estudada” poderá
expor – sem a ciência do provedor que efetuou o link – um conteúdo ilícito.
Por esse motivo, responsabilizar-se o provedor de informações de forma objetiva
pelo link de primeiro nível já se mostra temerário. É necessário que se faça prova da
ciência do provedor sobre o conteúdo ilícito de terceiro para o qual ele direciona o
internauta.
A questão se torna mais evidente quando se trata dos links de segundo nível.
Nesse particular, responsabilizar-se o provedor de informações pelo conteúdo de
páginas que apenas foram referidas através de link por uma outra página – essa
sim – indicada em seu site, constitui sensível obstáculo jurídico para o intercâmbio
de idéias na rede mundial de computadores. O risco de ser responsabilizado nessa
hipótese, caso se adote o entendimento ora debatido, praticamente fará com que os
provedores de informações não mais adotem o expediente de inserir links em suas
páginas eletrônicas.
Antonio Jeová Santos. Dano
Moral na Internet, cit.;p. 119.
No mesmo sentido, vide Waldo
Sobrino. “Algunas de las nuevas
responsabilidades”, cit.; p. 16.
111
Trata-se dos chamados “links
de links”.
112
Antonio Jeová Santos. Dano
Moral na Internet, cit.; p. 119.
113
FGV DIREITO RIO 87
responsabilidade civil e direito do consumidor
Superada essa discussão, cumpre comentar a responsabilidade dos provedores
de informações pelo conteúdo disponibilizado em seu próprio site. Aqui surge a
necessidade de se abordar separadamente a responsabilidade pelo conteúdo próprio
daquela proveniente de conteúdo de terceiro, lembrando-se que, distintamente do
questionamento envolvendo os links, as informações ofensivas encontram-se divulgadas diretamente no site do provedor.
Com efeito, a responsabilidade dos provedores de informações por conteúdo
próprio disponibilizado em seu site, em nada difere daquela aplicável aos editores de
publicações imprensas, como jornais e revistas em geral. Conforme visto anteriormente, a Internet propicia que cada pessoa divulgue amplamente as suas idéias e se
expresse da forma mais abrangente possível. Cada pessoa, na locação já corrente na
rede mundial de computadores, é o seu próprio editor.
Sendo assim, é pertinente que a responsabilização característica da atividade de
imprensa seja expandida para alcançar as formas de expressão intelectual na Internet. Waldo Sobrino, citando passagem do constitucionalista Joaquín V. González,
afirma que o conceito de imprensa abrange todas as formas de se exteriorizar e relatar em público idéias, opiniões, conselhos e fatos, seja através de livros, periódicos,
folhas soltas, ou – acrescenta o primeiro autor – através de websites.114
Conseqüentemente, aplica-se à responsabilização dos provedores de informações
o disposto na súmula nº 221 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “[s]ão
civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela
imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”.
Dessa forma, os provedores de informações respondem solidariamente pelo conteúdo ofensivo divulgado em seu site, conjuntamente com o seu autor.
Diverso entendimento deverá ser aplicado para o conteúdo de terceiro exposto
no site do provedor de informações. Deve-se nesse particular observar, especificamente, a dinâmica das salas de bate-papo (chats) e dos fóruns de discussão (message
boards). É usual que provedores de informações disponibilizem para os seus usuários
uma seção para que eles possam trocar mensagens entre si, de forma síncrona ou
assíncrona, respectivamente. Caso o conteúdo de uma mensagem seja ofensivo a
terceiro, será o seu autor diretamente responsável.
O provedor de conteúdo, nessas circunstâncias, não deverá ser responsabilizado
pelo conteúdo da mensagem, uma vez que nem sempre lhe será possível impedir
a sua divulgação. Todavia, em observância ao imperativo da prevenção de danos,
deve o provedor tomar as medidas necessárias para prevenir possíveis danos. Nesse
sentido, é comum os sites utilizarem pessoas que atuam como mediadoras nos chats
e fóruns de discussão para evitar que danos sejam causados na troca de mensagens
entre seus usuários.
Sobre o tema, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul pronunciou-se em duas ocasiões, envolvendo a entrevista concedida pela modelo Rosane
Damázio em sala de bate-papo (chat), disponibilizada pelo portal da empresa Terra
Networks Brasil S/A. O entendimento adotado pelo Tribunal foi no sentido de que
o provedor de informações é parte legítima para figurar em ações indenizatórias
decorrentes da veiculação de conteúdo de terceiro.
Waldo Sobrino. “Algunas
de las responsabilidades”, cit.;
p. 16.
114
FGV DIREITO RIO 88
responsabilidade civil e direito do consumidor
Na primeira ação judicial, já comentada acima, o ex-jogador de futebol Paulo
Roberto Falcão ingressou com pedido indenizatório em face da empresa que explora o portal por: (i) hospedar o site da Revista É Gente, no qual havia sido divulgado
uma entrevista anterior da modelo, reputadamente ofensiva à imagem do autor; e
(ii) por ter realizado uma outra entrevista, em sala de bate-papo própria do site, com
a mencionada modelo, na qual foram repetidas ofensas à imagem do autor.
A ilegitimidade passiva da Ré foi reconhecida com relação ao serviço de hospedagem, mas o mesmo não ocorreu com a divulgação de conteúdo de terceiro, através
de chat disponibilizado em seu site (atuando aqui como provedor de informações).
Conforme passagem que se extrai do voto do relator:
“[N]o caso em estudo, na esteira do entendimento supra esposado, a veiculação
eletrônica da revista, a meu julgamento, não legitima a agravante a ocupar o pólo
passivo na demanda em relação a tais fatos; porém, a entrevista iterativa, o chat,
traduz outra relação, fazendo com que o provedor de conteúdo passe a ser a empresa
que diretamente “explora o meio de informação e de divulgação.”115
A segunda oportunidade na qual o mencionado Tribunal pronunciou-se sobre
a questão decorreu de ação indenizatória movida por Cristina Borges Ranzolin em
face da empresa Terra Networks do Brasil. A Autora sentiu-se igualmente lesionada
em sua imagem pela entrevista concedida pela modelo Rosane Damázio em sala de
chat do provedor de informações.
O Tribunal igualmente reconheceu a legitimidade passiva do provedor de informações para figurar no pleito indenizatório. Segundo consta do voto proferido pelo
relator da decisão:
“[Q]uem põe o serviço de portal na Internet à disposição de qualquer pessoa
que pretenda ou queira dele fazer uso, corre o risco de que o serviço venha a ser mal
utilizado, inclusive para atingir a privacidade, a intimidade, a honra, o bom nome,
a fama, a imagem de terceiros, valores que se impõe sejam preservados. E cuja violação, até por norma constitucional, deverá ser indenizada, quer pelos danos materiais,
quer pelos danos morais, venha a sofrer o ofendido - art. 5º, inc. X, da Constituição
Federal. Responsabilidade que, ao menos em princípio, pode ser, sim, atribuída a
quem põe esse mecanismo de informação ao público indiscriminado. Mecanismo
esse, o do portal da Internet, que não pode ser equiparado, como o pretende a agravante, a uma simples banca de revistas, ou a um supermercado, ou a uma livraria
onde sejam vendidas revistas. O portal, por certo, por seu alcance ao público em
geral, não tem, decididamente, a mesma função desse comércio.”116
Como se pode notar, a questão das obrigações e responsabilidades dos provedores de informações na Internet possui diversas peculiaridades que deverão ser exploradas pela doutrina e pela jurisprudência para que se alcance um entendimento
consolidado sobre o tema. Ainda se está distante desse objetivo, mas as contribuições doutrinárias e jurisprudenciais acima referidas demonstram que a relevância da
Agravo de instrumento
nº 70003035078, rel. Paulo
Antonio Kretzmann, j. em
22.11.2001.
115
Agravo de Instrumento nº
70002884203, rel. Osvaldo Stefanello, j. em 26.09.2001.
116
FGV DIREITO RIO 89
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matéria já se fez percebida, ocupando posição de destaque na compreensão do papel
desses agentes imprescindíveis para o desenvolvimento da Internet e do comércio
eletrônico em geral.
2. Caso Gerador
No ano de 2003, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária divulgou em seu
website uma lista contendo os principais riscos e medidas preventivas que podem ser
adotados pelos consumidores na aquisição de medicamentos através da Internet.117
Além das sanções administrativas aplicáveis por conta da venda de medicamentos irregulares, os danos causados à saúde dos consumidores desses medicamentos
podem originar ações indenizatórias movidas contra as empresas que exploram os
respectivos websites.
O caso narrado abaixo, valendo-se da hipótese em que uma empresa promove
a venda de medicamentos irregulares através de um website, aborda a questão da
responsabilidade civil dos provedores de serviços na Internet.
A empresa HerbaNature Produtos Naturais Ltda. vende medicamentos e produtos revolucionários para emagrecimento através do seu website www.herbanature.
hospedare. com.br. Em fiscalização recente, descobriu-se que os produtos comercializados pela empresa encontravam-se em situação irregular, contendo substâncias de
uso proscrito no Brasil, conforme estabelecido pela Portaria nº 344/1998, da então
Secretaria de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde.
Posteriormente, diversos consumidores que haviam adquirido os supostos medicamentos começaram a apresentar problemas de saúde, em decorrência do uso dos
referidos produtos, tendo ingressado com ações indenizatórias contra a empresa.
Maria da Graça, que também havia adquirido os medicamentos comercializados
pela HerbaNature, no mencionado website, foi aconselhada por seu advogado a buscar reparação pelos danos causados também contra a empresa Hospedare Serviços
de Informática Ltda. Trata-se da empresa especializada em prover hospedagem para
websites (web-hosting), de cujos serviços se valia a HerbaNature para manter o seu
site no ar.
A empresa Hospedare é também responsável pelos danos causados pela HerbaNature? Tem o provedor de serviço de hospedagem o dever de monitorar as atividades desenvolvidas pelos websites que hospeda?
http://www.anvisa.gov.br/divulga/
noticias/2003/240403_1.htm
117
FGV DIREITO RIO 90
responsabilidade civil e direito do consumidor
CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA
Doutorando e Mestre em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ. Coordenador Adjunto do Centro de Tecnologia e Sociedade
(CTS), da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas-RJ (DIREITO RIO). Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu da DIREITO RIO.
Professor dos cursos de graduação e da pós-graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica – PUC-Rio. Professor dos cursos de pós-graduação lato
sensu em Direito do CEPED/UERJ. Membro da Comissão de Direito do Autor e
do Entretenimento, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ). Membro da
Comissão de Proteção ao Consumidor no Comércio Eletrônico, do Ministério
da Justiça. Co-autor, entre outros, dos livros Comentários à Lei de Imprensa
(Editora Forense/2004) e Código Civil Interpretado Conforme a Constituição
da República (Renovar/2004).
Rafael Viola
Mestrando em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
UERJ. Pós-graduado em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ. Pesquisador da Fundação Getúlio Vargas-RJ (DIREITO RIO).
Professor do curso de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do curso de graduação da Universidade Cândido Mendes – UCAM(Campus Tijuca). Professor do curso FOCO – Treinamento Jurídico.
Professor do curso Alcance. Advogado.
FGV DIREITO RIO 91
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FICHA TÉCNICA
Fundação Getulio Vargas
Carlos Ivan Simonsen Leal
PRESIDENTE
FGV DIREITO RIO
Joaquim Falcão
DIRETOR
Fernando Penteado
VICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO
Luís Fernando Schuartz
VICE-DIRETOR ACADÊMICO
Sérgio Guerra
VICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
Luiz Roberto Ayoub
PROFESSOR COORDENADOR DO PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO EM PODER JUDICIÁRIO
Ronaldo Lemos
COORDENADOR DO CENTRO DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE
Evandro Menezes de Carvalho
COORDENADOR ACADÊMICO DA GRADUAÇÃO
Rogério Barcelos
COORDENADOR DE ENSINO DA GRADUAÇÃO
Tânia Rangel
COORDENADORA DE MATERIAL DIDÁTICO
Ana Maria Barros
COORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES
Vivian Barros Martins
COORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Lígia Fabris e Thiago Bottino do Amaral
COORDENADORES DO NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS
Wania Torres
COORDENADORA DE SECRETARIA DE GRADUAÇÃO
Diogo Pinheiro
COORDENADOR DE FINANÇAS
Milena Brant
COORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO
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