XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
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O “POVO CRIANÇA” NO UNIVERSO ESTRANHO DA ESCOLA
Sandra Maria Machado – Professora da Rede Municipal de Aracruz, ES
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RESUMO
Não é muito difícil encontrar referências sobre a concepção de crianças/infâncias nos currículos, no
entanto, raramente encontramos referências em que o olhar das crianças/infâncias acerca do
currículo esteja evidenciado. Parece que isso se dá em função da falta de autonomia atribuída a elas.
Tal procedimento pode ser comparado a um diretor que escreve uma peça teatral e cria um
personagem, pensando num ator para protagonizá-lo. Ao receber o roteiro da peça, não esquecer,
improvisar ou modificar o que está escrito, não pode interferir na escrita do autor. Trazendo tal
exemplo para o mundo escolar, parece que as fases evolutivas das crianças/infâncias, fazem com
que seus desejos não sejam considerados pelos currículos. A relação de poder que se estabelece
entre a escola e a criança nos leva a levantar a seguinte pergunta: qual o sentido do currículo para as
criança/infâncias? Quais relações que se estabelecem entre currículos e crianças/infâncias para além
das regras de comportamentos e listagem de conteúdos a serem “aprendidas” por elas durante sua
permanência na escola? O currículo prescrito parece desagregar-se da multiplicidade presente nos
ambientes onde a educação formal acontece. As crianças/infâncias são diversas, fazem parte da
variedade natural integrante da formação humana, dos processos de humanização, desta forma, não
são/estão alheios aos conflitos que acontecem entre as culturas, uma vez que afetam e são afetadas
por elas. A diferença ou a concepção de diferença trabalhada nos currículos tem gerado uma
hierarquização de valores e rejeições em relação aos considerados diferentes, ao desigual entre os
desiguais. Esta discussão não pode permanecer separada dos currículos para que a
crianças/infâncias não se tornem estrangeiras dentro do universo estranho, a escola e suas tensões
causadas pela não permissão dos agrupamentos do “povo criança”.
PALAVRAS-CHAVE: Criança/infância. Currículo. Diferença. Poder
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Introdução
Não é muito difícil encontrar referências sobre a concepção de crianças/infâncias nos
currículos, no entanto, raramente encontramos referências em que o olhar das crianças acerca do
currículo esteja evidenciado. Parece que isso se dá em função da falta de autonomia atribuída a elas.
Tal procedimento pode ser comparado a um diretor que escreve uma peça teatral e cria um
personagem, pensando num ator para protagonizá-lo. O ator ao receber o roteiro da peça, escrita
para ele, com a condição de não esquecer, improvisar ou modificar o que está escrito, não pode
interferir na escrita do autor.
Ao trazer tal exemplo para o mundo escolar, parece que as fases evolutivas das crianças
fazem com que seus desejos não sejam considerados pelos currículos. A relação de poder que se
estabelece entre a escola e a criança nos leva à seguinte pergunta: qual o sentido do currículo para a
criança? Quais relações são estabelecidas entre currículos e crianças para além das regras de
comportamentos e listagem de conteúdos a serem “aprendidas” por elas durante sua permanência na
escola?
O currículo prescrito até então parece desagregar-se da multiplicidade presente nos
ambientes onde a educação formal acontece. As crianças são diversas, fazem parte da variedade
natural integrante da formação humana, dos processos de humanização, dessa forma, não são/estão
alheias aos conflitos que acontecem entre as culturas, afetam e são afetadas por elas, pelos
acontecimentos culturais nos quais estão inseridos. Elas se constituem nas/pelas diferenças. Qual a
concepção de diferença trabalhada nos currículos? Como anular os efeitos gerados pela
hierarquização de valores e rejeições em relação aos considerados diferentes, ao “desigual” entre
desiguais? Essa discussão não pode permanecer separada dos currículos para que as crianças não se
tornem ou continuem “estrangeiras” dentro do universo estranho que a escola tem sido.
Primeira cena– “Crianças olhadas”
“Meúdos”, “ingênuos”, “infantes”, são expressões com as quais
nos deparamos nos documentos referentes à vida social na
América portuguesa [...]. Na mentalidade coletiva, a infância era,
então, um tempo sem maior personalidade, um momento de
transição e por que não dizer, um tempo de esperança.
(DEL PRIORI 2007, p. 85).
Com os “meúdos”, “ingênuos” e “infantes”, como crianças eram vistas no século XIX,
partiremos para um ensaio sobre a criança, o que elas dizem na e sobre a escola do nosso tempo. A
criança ganha seu lugar na história, em termos conceituais, principalmente a partir de estudos mais
gerais na Europa, a partir de estudos feitos pelo historiador francês Philippe Ariès, que começa a
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publicar suas pesquisas a partir de 1948 e, mais localizadamente no Brasil, com Mary Del 24
Priori, a partir de 1999. Ao longo dos séculos, diferentes discursos têm sido produzidos pelos
adultos acerca da criança. Os autores tentam mostrar a evolução da construção e o papel social que
elas desempenham em diferentes épocas. Com base em obras de tais autores entre outros,
percebemos que a sociedade fala da criança de acordo com o que ela representa para os adultos em
diferentes tempos históricos. O modo como a escola, o povo adulto, entende o ser criança interfere
de forma direta no modo de elaboração e condução das práticas pedagógicas.
Ironicamente, nossa geração presenciou tanto o aparecimento da infância em termos
conceituais, quanto o seu apagamento. No nosso tempo fomos capazes de presenciar a discussão
sobre o conceito de infância, e ao mesmo tempo vivemos a intempestiva destruição deste ser que,
sobrecarregado de tarefas e obrigações que lhes são impostas, os torna povo adulto em miniaturas.
Se no século XVII as crianças eram miniaturizadas nos modos de vestir, no século XXI são levadas
a imitar os modos de fazer do adulto, como sugere Souza, (1998):
[...] Criança pequena com agenda lotada. A televisão que se transforma em babá. Os pais
ausentes. Carinho transformado em objeto. O tamagoshi e a afetividade objetificada.
Erotização da infância. Sexualidade. Publicidade, cultura do consumo. [...]. Individualismo
desencadeado pela ausência do outro. Apagamento da relação de alteridade. Criança sozinha.
Criança que manda nos pais. Estes são apenas alguns dos fragmentos que compõem o contexto
da infância contemporânea [...]. (p. 11).
Dentro desse universo de objetificação da criança, percebe-se que a inexpressividade e a
despersonalização, com que os adultos as viam no passado, são “corrigidas” por um lado e
acentuadas por outro. Na atualidade algumas crianças são ocupadas por tarefas nem sempre
compatíveis com suas idades e capacidades em termo de responsabilidade e ou fisicamente falando.
Outras são deixadas em caixas de lixo “esquecidas” nas ruas, em sinais de trânsito, expostas a todas
as formas de exploração, muitas das vezes por aqueles que deveriam protegê-las.
A ausência de cuidados advinda do passado confunde-se com os excessos do presente e
forçam-na a uma projeção para o futuro, acentuando-se as ausências em vez de bani-las. Como lidar
com isso? O que fazer? Como ouvir, ou interpretar o que a criança que Nietzsche (2000, p. 37),
chama de “inocência, esquecimento, novo começar, brinquedo, [...] e santa afirmação” 2 diz? Como
fugir da simplificação/redução da criança a círculos, semicírculos, pontos e retas, não tão retas, que
mais tarde transformam-se em “auto-retrato”? Elas “exigem” ações não apenas no sentido de
assistência e cuidado, mas também, um espaço de aprendizagem e socialização para além do
universo adulto, onde a brincadeira, embora necessária, não tem lugar”.
Segunda cena: Crianças que falam – “inocência”?
Nas falas das crianças elas agem, praticam o desejo-força
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estabelecem suas intensidades, sem regulações que venham 25
de fora. Elas se impõem ao mundo à linguagem dos adultos.
[...] Diz-se a criança de inúmeras maneiras, afirmativamente. E
uma criança diz, expressivamente, o que pensa e mostra o que faz.
(KATZ 1996, p. 90-96).
A inocência atribuída à criança pelos currículos prescritos, durante muito tempo é
confrontada pelo que se tem como respostas das crianças nos currículos praticados. A criança
“retorna ao teatro”3. Nele, uma história contada com a ajuda da boa “montagem de palco”, com o
“efeito de iluminação” e com alguém que está acostumado à arte de representar, torna o ilusório, o
fictício, próximo do mundo real, podendo confundir-se com o que é apresentado.
No grande “palco” da sociedade chamado escola, as crianças que antes eram representadas,
se misturam numa espécie de agora representam de forma majestosa, comandam o “drama” 4 (peça
teatral), regem o espetáculo, transformam cenários em atos, têm sensibilidade quando
“representam” os mais variados dramas, a “tragédia”, a “comédia”, a “farsa”, a “pantomima”. A
criança, mesmo de modo não intencional, consegue, em alguns momentos, se transformar no centro
das atenções, “a criança que se isola do grupo passa a ser um aluno preocupante: há de fazê-lo
brincar com os outros! Há que brincar, pois é uma estratégia para a construção da criança coletiva
que fará parte do [...] e do povo em construção. (ABRAMOWICZ, 2007, p. 9).
Quando o canto da sala torna-se o centro do palco, nele é possível “gritar”. Seus gritos
podem ser ouvidos até mesmo por quem não se faz presente. O “ator”, quase sempre anônimo,
experimenta o que representa, por isso o faz com tanta perfeição, exercita a percepção mesmo
ignorando os sentidos. E ao que faz sentido? Os gritos que ultrapassam as paredes, grades e cercas
das escolas confundem-se com indisciplina. Seria uma interrogação à prática educativa? E de onde
virão as respostas...?
Terceira cena: Crianças – movimento não uniforme – “diferença”?
Se se quer produzir diferença é porque ela está ali e precisa fazer
valer sua potência política, precisa ser tirada do lugar do
estranho, do horrível, da aberração. [...] a diferença precisa ser
retirada de cena onde foi satanizada, para ser recolocada na
multidão, onde a paisagem é indefinida, onde não se sabe
exatamente quem é quem e que é o quê – mesmo porque ela é
nômade: quem estava ali não está mais; quem chegou já saiu.
(ABRAMOWICZ, 2005, p. 84).
O movimento representa o entra e sai, as relações que se estabelecem entre/para/com os atores
que formam a comunidade escolar, não apenas as crianças que adentram aos portões escolares onde
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a uniformidade não se faz presente, apesar do “todos são iguais” apregoado com tanta 26
veemência pelas políticas universalistas. O movimento está para além dos binarismos que instauram
a diferença que torna a escola um espaço onde a sociedade está representada, como afirma Arroyo
(2008, p. 23), na escola chegam “crianças, adolescentes, jovens e adultos com identidade de classes,
raça, etnia, gênero, território, campo, cidade, periferia”. A imagem da escola é a que chega de fora,
“dada pela cultura social, pela divisão de classes, pela hierarquia sócio-ético-racial, de gênero e de
território...”
A diferença por si só não se faz perversa ou satanizada. O que precisa ser questionada é a
diferença enquanto produtora de ausências que hierarquiza os “diferentes”, produz minorias e
estereótipos, definido por Carvalho (2009, p. 111), como modo de representação que reúne medo e
desejo do outro, ataque e defesa que cala o direito da expressão de poder. Ainda para a autora, a
relação com o estereótipo colabora com criação do discurso cultural, produtor da autoridade
cultural que Carvalho (2009) define como:
[...] um aparato (de poder) poder que se apóia no reconhecimento e na recusa das
diferenças. Sua função estratégica é a criação de um espaço para os “povos sujeitos” pela
produção de conhecimentos em termos dos quais se exerce a vigilância e se estimula uma
forma complexa de prazer e desprazer. Trata-se de uma forma de governabilidade que, ao
delimitar a “nação sujeita”, apropria, vigia, dirige e domina as várias esferas de sua
atividade [...] Assim, no jogo da autoridade cultural, para o exercício de seu poder, é preciso
produzir o “sujeito subalterno” como realidade social que é ao mesmo, tempo um outro,
mas ainda inteiramente visível e inteiramente apreensível. (p.110).
Nesse contexto, os “diferentes” entre os “não iguais” necessitam se “camuflar”, exercitam a
tentativa de descaracterizarem-se para não se sentirem tão “diferentes”. A diferença, que no
contexto da escola pública de bairros periféricos de determinadas regiões do Brasil, poderia não ser
considerada tão diferente, salta aos olhos, incomoda, desconserta, grita. O tratamento para com a
diferença gera desconforto. Esse desconforto é sentido quando olhamos mais atentamente para o
que as crianças nos falam.
Durante a pesquisa, uma criança de oito anos, ao ser solicitada a responder a uma questão,
aparentemente simples dos questionários, dá uma resposta que pode ser interpretada como uma
questão altamente complexa. A questão solicitava que os estudantes marcassem com x um dos
parênteses relacionados à cor de sua pele. Foi possível observar vários alunos com dúvidas, mesmo
assim, à sua maneira, cada uma das crianças ia preenchendo os parênteses, uns de forma coerente,
outros não. Entre todos eles, uma aluna negra não conseguiu tirar a dúvida por si mesma e nem
consultando aos colegas, prefere recorrer à pesquisadora:
− Professora, qual a minha cor?
− Como você se vê? De que cor você se vê?
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− Eu... Sou assim... Sei não, professora! Moreninha! Preto é meu cunhado, professora! 27
Mas ele é preto, mas ele é preto, mas ele é preto... Preto mesmo, professora! Assim
oh! Que nem a sua bolsa (bolsa de couro preta que esta sobre a mesa), da cor sua bolsa
mesmo, chega brilhar! Mas agora já separou da minha irmã! Eu sou moreninha! Eu não
sou tão preta como ele, então professora, que cor que eu sou? O que é esse parda aqui,
professora?
− Parda é quando a pessoas não é preta e nem branca.
− Então eu sou isso, professora! Nem preta nem branca. Sou parda!
A estudante, depois desse curto diálogo, caminha pela sala para por várias carteiras e diz aos
colegas que não é preta nem branca e sim, parda. Tenta amenizar o “tom” de sua cor ao se intitular
moreninha e, em seguida parda, e faz uma comparação entre o seu ex-cunhado e a cor da bolsa. A
nação mestiça, que supostamente vive numa democracia racial, não é capaz de suprimir o racismo
que, veladamente persiste e fomenta os discursos e teorias raciológicas. As questões relacionadas à
cor da pele estão tão inseridas do contexto social quanto a melanina que a faz escurecer.
As teorias raciológicas contribuem para a hierarquização das culturas, inferiorizando,
sobretudo, negros e indígenas, entre outros, que, num contexto de relações de poder, em que os
currículos estão mergulhados, são consideradas inferiores e, portanto, devem ser reprimidos,
extintos, atados ou necessitam adequar-se para continuarem existindo.
Quarta cena: Crianças que narram o conto – “esquecimento”?
As crianças querem escutar sempre o mesmo conto e elas mesmas
se tornam contos. Não para aprendê-lo de memória, mas para
fazer memória do narrar. Para colher a ritma do seu passar.
Escutam. Aprendem a lembrar da voz de quem lhes narra uma
história, de quem, ensinando, educa sua voz interior para escutar.
(FERRARO, 2010, p. 218).
Como imaginar o que pensa uma criança enquanto ouve uma história? Para onde viaja seu
pensamento? Quais aparatos mentais são utilizados nesse momento, quais personagens são
acrescidos às histórias narradas? Quais histórias e memórias são revisitadas nos arquivos mentais?
E se forem apenas as histórias que constam no currículo oficial elaborado sob égide eurocêntrica?
− Como a imaginação e utilizada ao aprender?
– Às vezes, na aula a tia fala uma coisa e eu fico viajando (...) parece que tô em outro mundo
(...) é muito legal.
− E você imagina qualquer coisa?
− Não! Sobre o assunto!5
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Quando ouvem as mesmas histórias, reinventam; e ao reinventar, aumentam, relacionam, 28
viajam, ora para dentro de si, ora para o mundo desconhecido, mas seguro o bastante para que
possam voltar. Nessas idas e vindas afetam e são afetadas pelo que falam, ouvem, vêem imaginam.
O esquecimento, pouco provável, depende do grau de emoção que as histórias provocam naqueles
que são contados. Que histórias são contadas sobre as minorias. E que fazer com as histórias que
são esquecidas, escondidas e invisibilizadas pelos contextos curriculares.
Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e
tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar.
Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar
essa dignidade perdida. (ADICHIE, 2009, p. 4).
Quem conta um conto, uma história, tem responsabilidade naquilo que provoca,
principalmente naqueles cujos processos de identificação ainda se encontram em fase inicial. É
preciso ter o cuidado da verdade uma vez que a “verdade é dual, nunca única [...]. Nunca se pode
estar sozinho na verdade ou ter somente uma verdade, porque a verdade é relação” (FERRARO,
2010, p. 221).
Quinta cena: As crianças – “brinquedo”?
Os brinquedos e as brincadeiras como elementos constitutivos de
um repertório cultural produzido na infância instigam inúmeras
interpretações e contribuem na construção de uma olhar sensível
às crianças e suas especificidades.
(CARVALHO, 2008, p. 17).
Ao serem perguntadas acerca dos produtos culturais, (revistas, jornais, filmes, livros de
literatura, teatro, etc.) mais utilizados pela escola, como e porque utilizam, como usam, as crianças
respondem com a maestria de quem domina o “palco”. Nesse momento representam papéis de
grande destaque, falam de onde estão com a eloquência de grandes atores, preenchem os “espaços
ocos”, como se o “revestimento acústico” do “teatro escola” tivesse sido elaborado por um “PhD”
em propagação de ondas sonoras. Suas vozes, embora eloquentes, ainda não são o bastante para
ultrapassarem as paredes pálidas da escola.
Crianças: A tia usa dever de folhinha, que ela usa mais / Até hoje nós não fizemos
atividade com jornal, não! / Tinham que fazer o abecedário todo no livro / Usamos os
livros de matemática / Resolvemos uns negócios lá tipo umas continhas / De ciência
fizemos aquele negócio do Rio de Janeiro, da “pedra de açúcar”, nós vimos só no livro,
fizemos tipo um texto, a tia copiou um negócio no quadro do livro, a gente copiou e
respondeu, tudo sobre o Rio Janeiro6.
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Com essas colocações acerca do que é utilizado, as crianças respondem, avaliam o 29
currículo praticado no cotidiano escolar, classificam que tipo de atividades são realizadas em sala de
aula, “é a voz da criança a dizer que não quer aprender aquilo que não lhe interessa, que lhe é
imposto por um sistema educativo alheio ao seu mundo e a sua vida” (GALLO, 2010, p.115), dizem
estudar algo que não faz parte de sua realidade. Qual o significado da “pedra de açúcar” para estas?
Quantas “viagens de ida e volta” imaginárias foram necessárias para que elas entendessem sobre o
que estavam copiando? O que seria o tudo sobre o Rio de Janeiro?
Sexta cena: Crianças/sonhos – “santa afirmação”?
[...] cuidado com a imagem da criança: sonho e imaginação de
um cuidado de afirmação da vida. Educação do cuidado: rejeitar
as Rodas de enjeitar alteridade e reivindicar as Rodas de
criatividade; rejeitar as rodas desprovidas de autonomia e
reivindicar as rodas de alegria.
(CECCIM e PALOMBINI, 2009, p. 11).
A peça continua. Para entender o enredo é necessário entender a história que o inspira. Para
entender a história é necessária a curiosidade, o desejo de busca, que se faça parte dela, que ela seja
pesquisada. É preciso entender seus contextos, seus tempos, quem são e de onde vem seus
personagens. As manifestações culturais (festas, comemorações, etc.) que a escola promove dizem o
que esta escola considera importante, digno de ser narrado. É currículo explicitado em tais
manifestações:
Crianças: Tem a festa do dia da matemática. / Eles colocam tabuada, faz aquele negócio
de números, sorteio, dá brinde, joga o dado, quem chegar primeiro leva um pirulito, dois
sacos de pipoca e três chips. / Dia das mães, eles fazem uma reunião só para as mães, eles
fazem tipo um café, tem uma apresentação dos alunos. / Tem a festa da Penha. / Eles
convidam o circo pra ficar com a gente. / Tem a semana santa, o pão representa o corpo
de Cristo e o vinho representa o sangue de Cristo. / Eu acho que poderia ter a festa das
crianças. / Eles poderiam dar presentes pra gente, podiam colocar música na hora do
recreio7.
Aqui, indiretamente a criança/sonhos interroga o currículo. − Narra – torna explícito, dá
detalhes do que acontece na escola. – Denuncia − afirma que a escola hierarquiza as disciplinas;
que se contradiz ao estimular o consumo de alimentos não saudáveis; que estimula a competição;
que o estado laico não conhece o endereço da escola e nem ultrapassa seus portões de entrada. –
Elogia – diz que a escola tem um movimento de alegria e esse movimento de alegria se dá em
função da existência da própria criança. – Deseja − aqui a criança/infância diz quer o que algo não
tão distante, porém difícil o bastante para que a escola entenda e atenda.
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Diante do que agora se instaura na fala das crianças, somos levados a concordar com 30
Gallo (2010) quando diz que “o povo criança seria a afirmação do litígio político na escola, a
imposição de um outro mundo sobre o mundo administrado” (p. 120). A escola ainda vai entender
que de algum modo as crianças/sonho, mesmo em silêncio, falam, gritam, são “a prova cabal da
impossibilidade de conciliação, a manifestação absoluta do dissenso” (p. 120) e que não é
necessário “dar-lhes voz”, elas já têm, se faz necessário dar-lhes ouvidos.
Sétima cena – Crianças/presente/futuro – “novo começar”!
As crianças não têm futuro. São o futuro. As crianças não têm
nada para dar ou doar, são o dom que elas dão. As crianças vêm
ao presente. Fazem-se nascentes. São nascentes. Educam. Deixam
emergir, manifestam, se expressam. Estão na infância, ao
manifestar-se, ainda antes da palavra, quando manifestar-se não
a representação de nada, mas um entregar-se abertamente.
(FERRARO, 2010, p. 218).
A escola, o currículo e a família estão sempre “preocupados” em preparar as crianças para o
futuro, como se o presente fosse apenas uma preparação para um tempo a ser vivido e não para um
tempo “sendo vivido”. As crianças quase que mecanicamente são condicionadas a repetir aquilo que
as três instâncias citadas esperam dela.
Nesse “ato”, nessa parte da “peça”, não cabem modificações e/ou improvisos. O ensaio é
exaustivo, é a parte da peça onde se cobra maior dedicação, é a prova mais técnica! É ponto
máximo! É o objetivo maior! É a negação ou o não aproveitamento do tempo presente em função
do tempo futuro.
Nas respostas à pergunta: Você sabe por que a escola está te ensinando os conteúdos que
você está estudando? Suas respostas estão para além do agora, elas anseiam o futuro, ainda incerto.
Crianças: “Porque a escola quer que nós sejamos alguém na vida/ para eu ser alguém na vida,
eu queria aprender natação. / Inteligente, ser educado. / Porque a gente vai poder saber fazer
no mundo. / Eu gostaria que a escola me ensinasse outras línguas. / Para aprender a ler a
escrever, não pegar coisas do meu colega / Acho que a escola está ensinando para gente ir para
um curso melhor. / Gostaria de saber biologia. / É para sermos inteligente, educado se ser
alguém na vida. / Eu gostaria de aprender a ler mais rápido. / Pra gente arrumar um bom
emprego no futuro. / Mas o que eu queria era jogar futebol, mas o que eu queria entender de
artesanato. / Eu queria jogar futsal, teatro e produzir vídeo/”
Crianças/presente/futuro, crianças que, quando “em cena”, subvertem a intenção de futuro
que da escola adulta, que quando criança/passado experimentava apenas o futuro, sem a sensação de
presente. Ainda em concordância com Ferraro (2010), “o futuro que representam não é aquilo que já
ocorreu, aconteceu, mas é o passado ainda não narrado”. (p. 218).
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A escola adulta não narra, é narrada no passado, mesmo vivendo em função do futuro, a 31
“estranha escola”, vive um tempo que não lhe pertence. As crianças/presente/futuro conservam o
lado peculiar da infância, a verdade, explicitam as diferenças, desafiam e o tempo e os limites dos
currículos, dizem no presente que não querem viver apenas em função do futuro, mesmo estando
para além do futuro que o presente currículo lhes apresentam.
A “seção” que agora chega aos momentos finais, o “grande palco” toma a forma de
“universo”, um universo estranho que produz movimentos em direção a um tempo que não é o
agora. Os “atores” voltam à cena e, respeitavelmente, reverenciam o público atônito no
palco/escola. Seus personagens são crianças, “diferentes” e em suas diferenças e a seu tempo
contam, convidam-nos a elaborar currículos que contem contos diferentes, como diria o autor
acima, “aquilo que terá sido agora”.
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2
Utilizo os termos de Nietzsche apenas como ilustração e não como elemento de teorização da discussão em
questão.
3
Sentido figurado.
Nesse texto usarei termos utilizados por Rubem Cobra em Noções de Teoria do Teatro, não no sentido real de
explicá-las, mas na tentativa de dar “leveza” ao texto. A partir desta página, trarei as definições usadas no teatro do
texto do autor, disponível no canal eletrônico www.cobrapages.com.br, que dão sentidos às palavras tomadas por
“empréstimo” por mim.
5
Diálogo extraído do Relatório da Pesquisa.
6
Extraído do Relatório da Pesquisa (fala de várias crianças).
7
Extraído do Relatório da Pesquisa (fala de várias crianças).
4
Desenhos dos alunos da terceira série
Junqueira&Marin Editores
Livro 1 - p.000590
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O “POVO CRIANÇA” NO UNIVERSO ESTRANHO DA