Atitudes facilitadoras do professor: utopia ou possibilidade?
Vera Cabrera Duarte
Maria Rejane Araujo Tito
Resumo
O artigo Atitudes facilitadoras do professor: utopia ou possibilidade? é resultado do
projeto de pesquisa Atitudes facilitadoras do professor de inglês da rede pública de
ensino: da teoria à prática. Nele, o objetivo central é observar se as atitudes facilitadoras
do professor foram implementadas pelos docentes que cursaram o módulo Resgatando o
Aprender e Compartilhando o Ensinar no cotidiano de suas salas de aula. O módulo foi
ministrado pela Profa. Dra. Vera Cabrera Duarte e integra o curso de formação contínua
de docentes de inglês da rede pública, intitulado Reflexão sobre a ação: o professor de
inglês aprendendo e ensinando, idealizado e coordenado pela Profa. Dra. Maria
Antonieta Celani. À luz da teoria de abordagem centrada na pessoa (ACP), postulada
por Carl Rogers (1977, 1985), analisamos o material colhido em 13 reuniões realizadas
com participantes da pesquisa, todos professores de inglês da rede pública do município
de São Paulo. Além de Rogers, retomamos outros autores que tratam do contexto da
escola na atualidade e de situações de vulnerabilidade de crianças e adolescentes, tais
como Volnovich (1993), Branco (2008) e Duarte (2004, 2003), entre outros. As
reuniões foram relevantes, uma vez que, de algum modo, os professores vislumbraram
possibilidades diferentes de ser autêntico em sala de aula, de enfrentar problemas tão
urgentes de relacionamento com alunos, de praticar outras formas de ensino e
aprendizagem. Nos encontros, observamos que a compreensão intelectual e técnica da
proposta de Rogers não garante necessariamente mudanças significativas no cotidiano
das relações entre professor e aluno e que há ainda muito a ser feito e refletido pelos
próprios educadores, para a implementação satisfatória de atitudes facilitadoras. Além
disso, há, atualmente, elementos concretos do cotidiano da escola, da sociedade e da
família que, muitas vezes, escapam do âmbito de ação do professor e das relações
interpessoais em sala de aula.
Este artigo é resultado do projeto de pesquisa Atitudes facilitadoras do professor
de inglês da rede pública de ensino: da teoria à prática. Nele, procuramos observar se
as atitudes facilitadoras do professor mencionadas por Rogers (1977) – autenticidade,
consideração positiva e empatia – foram implementadas pelos docentes que
1
participaram do módulo Resgatando o aprender e compartilhando o ensinar1 no
cotidiano de suas salas de aula.
O módulo faz parte do curso de formação contínua de docentes de inglês da rede
pública intitulado Reflexão sobre a ação: o professor de inglês aprendendo e
ensinando, cuja proposta é formar professores reflexivos e críticos sobre o próprio fazer
e sobre o significado pessoal e socioeducacional de sua atividade. Seu objetivo é
“promover o repensar, o refazer, o reconstruir do próprio processo de aprendizagem e
apontar para uma nova atitude em relação ao ensino” (DUARTE, 2003, p. 39),
abrangendo os aspectos afetivos desse processo. Trata-se, então, de uma oportunidade
de aprimoramento para o professor, que lhe possibilita uma reflexão sobre sua prática
pedagógica, levando-o a compartilhar sua experiência docente e apontando para
diferentes formas de ensinar e aprender.
Contexto
Em nossa pesquisa, consideramos a edição do módulo Resgatando o aprender e
compartilhando o ensinar oferecida no primeiro semestre de 2007, da qual participaram
seis professores de inglês atuantes no ensino fundamental e médio de escolas públicas
do município de São Paulo que se voluntariaram participar de nossos encontros.
Apresentamos-lhes um questionário, no intuito de retomar discussões e reflexões
realizadas no módulo, sobretudo a descrição que haviam feito das ações de seus alunos
Tom-tons2. No período de agosto a dezembro de 2007, realizamos 13 reuniões semanais,
de aproximadamente duas horas, com os professores colaboradores participantes da
pesquisa e com eventuais visitantes e ex-colaboradores.
Nos encontros, que foram gravados em áudio, os professores relatavam suas
experiências em sala de aula e refletiam sobre a implementação de atitudes facilitadoras
1
O módulo é oferecido pelo Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem (LAEL-PUC/SP) e pela Associação Brasileira Cultura Inglesa desde 1997. Idealizado e
coordenado pela Profa. Dra. Maria Antonieta Alba Celani e ministrado pela Profa. Dra. Vera Cabrera
Duarte, é amplamente discutido nos artigos Relações interpessoais: professor e aluno em cena
(DUARTE, 2004) e Transformando Doras em Carmosinas: uma tentativa bem sucedida (DUARTE,
2003).
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O aluno Tom-tom é aquele que apresenta atitude negativa diante das atividades escolares em geral e que
age de maneira não-colaborativa nos relacionamentos interpessoais. O texto A história de Tom-tom, de
Madalena Freire, no qual ela descreve um momento especial em que se relaciona com um de seus alunos
“difíceis” encontra-se em Duarte(2004).
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(ROGERS, 1977) nas interações com seus alunos, especialmente os Tom-tons, em uma
relação de pessoa para pessoa. Desse modo, as reuniões constituíam-se em um ambiente
de fala, exposição de si mesmo, muitas vezes com dificuldades e resistências. A cada
encontro, construía-se gradativamente um espaço de acolhimento, de escuta e de
reflexão, em que o foco dos participantes se afinava cada vez mais, exatamente como
sugeria a teoria das atitudes facilitadoras da aprendizagem significativa de Rogers, que
buscávamos compreender e que incentivávamos os professores-alunos a implementar.
Defendíamos que muitas das ações dos docentes em sala de aula refletiam a ação
de seus ex-professores (DUARTE, 2003), de algum modo reiterando a ideia de que a
aprendizagem não se restringia aos conteúdos e conceitos a serem aprendidos, mas ao
modo interpessoal como essa troca ocorria e, portanto, aos afetos e sentimentos
vivenciados no processo. Ao serem levados a questionar suas experiências atuais e
passadas em sala de aula, como alunos e como professores, os educadores
demonstravam o quanto as emoções influenciavam diretamente o aprender. O pensar no
fazer pedagógico como facilitador de aprendizagem revelou-se, então, uma experiência
que visava à totalidade do processo em que aluno e professor, no seu aprender e no seu
ensinar, transformavam-se mútua e inevitavelmente.
A promoção de um ambiente propício à aprendizagem significativa em nossas
reuniões tinha como foco não somente a reflexão sobre o fazer do professor em sala de
aula, mas também o desenvolvimento intelectual e existencial do aluno. Assim, as
atitudes facilitadoras empreendidas pelo educador remetiam à revisão do componente
afetivo das relações interpessoais; o professor buscava um maior grau de
autoconhecimento e o aluno parecia ser mais ouvido, deixando de ser um outro
ameaçador ou até mesmo inexistente.
O grupo compreendeu que se aceitar como pessoa, com limitações e potenciais
singulares, era condição para perceber e aceitar o outro na sua diferença. Mas parecia
haver nos relatos uma dificuldade, e até uma indisponibilidade, para ouvir sem que
parecesse ameaçador. Havia depoimentos bastante emocionados, que denunciavam que
esse outro (o aluno) afetava o professor, desestabilizava-o emocionalmente. Então,
foram trabalhadas a percepção e a comunicação dessa experiência humana: o ato de
ignorar o aluno como pessoa parecia dizer do próprio professor que ele se ignorava, que
ele se desconhecia.
Nos encontros, mantinha-se um ambiente de estudo em que havia pessoas e não
apenas professores preocupados em ensinar e aprender. E como pessoas, à luz dos
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pressupostos teóricos, os participantes paulatinamente se transformavam, expressavam
seus medos, suas inseguranças, suas angústias, suas conquistas, suas alegrias e histórias
de vida, quase sempre abafadas em nome de uma prática em sala de aula denominada
“cerebral” e “pouco humana” (ROGERS, 1977). Professores e alunos pareciam não ter
lugar para atuar como pessoas, como potencialidades humanas em busca de ser. Essa
crise na educação dizia respeito não apenas aos exíguos recursos didático-pedagógicos
(dificuldade constante dos professores da rede), mas também à qualidade das relações
interpessoais na sala de aula e na escola como um todo.
Revelava-se, dessa forma, a falta de um ambiente facilitador para o professor
florescer em toda sua potencialidade. Nas palavras de uma das educadoras,
o professor se aproxima do aluno como profissional apenas. A pessoa não está
presente; daí a dificuldade de lidar com suas emoções e com as do aluno. Não
consigo ser a professora que eu gostaria. Não consigo ser eu. Não consigo
desempenhar o meu papel e não há retorno afetivo do aluno (professora F.).
Ao nos reunirmos, tentávamos sempre recuperar a teoria que embasava a nossa
prática, evitando o senso comum e o simples relato de casos. Retomávamos
constantemente os princípios norteadores da facilitação da aprendizagem significativa,
no intuito de identificar possibilidades de relações interpessoais mais produtivas em sala
de aula, em que os sujeitos atuantes no processo de ensino e aprendizagem pudessem
estar implicados com suas ações e escolhas de modo consciente e responsável.
Percebíamos que implementar um novo jeito de trabalhar em sala de aula e de ser
professor gerava reações e resistências por parte dos próprios professores e do meio em
que atuavam. Não parecia fácil – e de fato não era – produzir mudanças quando as
ameaças e resistências externas eram fortemente vivenciadas. Além disso, havia
também as resistências internas, na medida em que o próprio lugar de professor
intelectual e emocionalmente estável estava sendo desestabilizado.
Os relatos gravados nas reuniões constituem o objeto de nossa investigação.
Trata-se de um material bastante rico que nos permite refletir sobre as condições e o
ambiente das relações interpessoais entre professor e aluno no processo educacional.
Optamos por uma análise qualitativa dos dados, que permite sua problematização,
interpretação e compreensão com base na teoria da aprendizagem significativa de
Rogers.
4
Num rico universo de dados, o recorte foi feito privilegiando as falas de quatro
dos professores envolvidos na pesquisa, as quais evidenciaram situações em que a
implementação das atitudes facilitadoras do professor merecia maior atenção. Nessas
situações, as dificuldades da aplicação da teoria estudada revelaram-se mais claramente.
Referencial teórico
As reuniões foram gradativamente se transformando em supervisões de uma
prática pedagógica à luz da Psicologia Humanista, especialmente com base na teoria de
abordagem centrada na pessoa (ACP), postulada por Carl Rogers (1977). Para o autor,
o alicerce básico da ACP constitui-se em uma tendência formativa direcional do
universo, que pode ser seguida e observada no espaço estelar, nos cristais, nos microorganismos, na vida orgânica. Ele explica que essa tendência é evolucionária, no sentido
de maior ordem, maior complexidade, maior inter-relação e, quando aplicada ao
desenvolvimento dos seres humanos, é denominada tendência atualizante.
Branco (2008) enfatiza que a tendência atualizante, para Rogers, é o pilar da
ACP, e as atitudes terapêuticas são capazes de promover o acesso do cliente a seus
próprios recursos, rumo à modificação de seu autoconceito e ao desenvolvimento de
suas potencialidades em toda a plenitude. Nessa ótica, a função do terapeuta é criar um
clima interpessoal que promova a liberação dessa tendência inerente ao indivíduo.
Souza (2008, p. 109), por sua vez, explica que a tendência atualizante
é a chama da vida: ela aquece e ressoa com tudo o que é vida...
o
tempo
inteiro ela se inflama com tudo o que da vida também faz parte e integra as relações.
Por isso ela é alquimia ou abertura; é a porta de entrada para as percepções
de tudo o mais que nos rodeia.
Assim, na ACP, o homem é capaz de autodirigir-se, autoajustar-se,
autodesenvolver-se, e a base da emersão da capacidade humana de criar e aprender é
tendência atualizante.
Como psicoterapeuta, Carl Rogers voltou-se para as relações interpessoais, eixo
de todas as questões humanas, desde as de orientações pessoais às educacionais. No que
se refere a esse último campo, destacamos o livro Liberdade para aprender (ROGERS,
5
1977), que trata inteiramente de educação. Nele, o autor remete à visualização do aluno
pela perspectiva dos sentimentos e não apenas pelo viés da cognição, discutindo a
educação centrada no estudante, que tem como objetivo criar condições favoráveis que
facilitem a aprendizagem e liberem capacidades de autoaprendizagem, com vistas ao
desenvolvimento intelectual e emocional do aprendiz. Para Rogers (1977, p. 10),
A educação enfrenta, hoje, inacreditáveis desafios, diferentes e muito mais
sérios do que quantos já se lhe apresentaram durante a sua longa história. A
meu ver, o problema de saber se ela está em condições de responder a esses
desafios é um dos principais fatores capazes de determinar se a humanidade
caminha para frente ou se o homem deverá destruir-se a si mesmo neste planeta,
só deixando sobre a terra aquelas poucas coisas vivas que resistirem à
destruição atômica e à radioatividade.
Apesar de escritas na década de 1970, tais reflexões são de uma atualidade
impressionante: o problema mais preocupante enfrentado pela educação hoje parece ser
o de destituir o homem de sua humanidade e ter como referência para seu desempenho a
sofisticação e eficiência de máquinas cada vez mais potentes e inteligentes. Quase
sempre sutil e revestida de uma ideologia de progresso científico-tecnológicoeconômico, a ameaça de destruição parece não ser mais tão evidente e extravagante
como a ameaça atômica, e a atualidade parece ter se esquecido da potencialidade do
homem. Assim, o sistema formulado pelo teórico parece atender às exigências do nosso
tempo de aceleradas mudanças.
Ao indagar: Aprendizagem: que espécie?, Rogers (1977) apresenta uma
concepção de aprendizagem que muito se diferencia da vivenciada atualmente por
diversos educadores: a aprendizagem “cerebral”, destituída de significado para a pessoa
que se põe a aprender. Com tal indagação, ele chama a atenção para uma aprendizagem
significativa, plena de sentido experiencial, em que pensar e sentir não se separam nem
se hierarquizam, mas fazem parte do mesmo processo de crescimento e libertação da
pessoa. Segundo o autor, trata-se de uma aprendizagem com a qualidade de um
envolvimento pessoal – a pessoa como um todo, nos aspectos afetivo e cognitivo.
Em outras palavras, a aprendizagem significativa é pervagante e, portanto,
transformadora: não se trata apenas de uma experiência cognitiva ou “cerebral”, mas de
algo que envolve a pessoa como um todo, porque a transforma. De acordo com Andrade
e Cavalcante Junior (2008, p. 183), “é um tipo de processo que compreende muito mais
6
que um acúmulo de conhecimentos, pois acessa os recursos e potencialidades da pessoa
para liberar a tendência natural do organismo de crescer, descobrir e criar”.
Rogers considera a aprendizagem significativa uma rua de mão dupla, em que
tanto o aluno quanto o professor sofrem transformações e, assim, as relações
interpessoais envolvidas no processo de ensino e aprendizagem ganham destaque. Ele
reforça que um tipo de relacionamento interpessoal propício ao desenvolvimento do ser
humano é capaz de promover mudanças construtivas em sua personalidade,
conduzindo-o ao autoconhecimento e à autonomia. Em sua concepção,
o único homem que se educa é aquele que aprendeu a aprender; que aprendeu
como se adaptar e mudar; que se capacitou de que nenhum conhecimento é
seguro, que somente o processo de buscar conhecimento oferece uma base de
segurança (ROGERS, 1977, p. 110).
Mas como levar para a sala de aula um tipo de relacionamento interpessoal
propício à efetivação da tendência atualizante ou o clima essencial para que a
aprendizagem significativa ocorra? Como criar um ambiente favorável, capaz de
provocar mudanças construtivas na forma de aprender de nossos alunos e, por que não,
na forma de ensinar dos professores? De acordo com Rogers (1977), tais procedimentos
podem ser instaurados por meio de três atitudes facilitadoras: autenticidade ou
congruência, consideração positiva ou aceitação e empatia.
A autenticidade ou congruência é a condição básica em situação de
aprendizagem: um professor real, sem máscaras, desperta a autenticidade do aluno, uma
vez que se trata de um processo recíproco. Ela implica a concordância entre a percepção
que o indivíduo tem de si e da sua própria experiência. Assim, a autenticidade é capaz
de promover um encontro pessoal direto com o aprendiz, na base do pessoa-a-pessoa. O
indivíduo aceita-se como pessoal e real abertamente.
A consideração positiva, por sua vez, “é a aceitação de um outro indivíduo
como pessoa separada, cujo valor próprio é um direito seu. É uma confiança básica – a
convicção de que essa outra pessoa é fundamentalmente merecedora de crédito”
(ROGERS, 1977, p. 115). Significa, portanto, a aceitação do outro como ser imperfeito,
dotado de sentimentos e potencialidades. Ao experienciar consideração positiva, o aluno
sente-se valorizado como pessoa, com seus sentimentos, suas potencialidades, e
percebe-se como um ser em processo de desenvolvimento.
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Por fim, a empatia consiste na compreensão das reações do outro. É a percepção
sensível do modo como o aluno vê o mundo e seu próprio processo de aprendizagem.
Ser empático é ser de uma “certa forma” em relação a outra pessoa. Nesse processo, o
professor ouve o aluno como se estivesse vivenciando a situação dele, vê pelos olhos do
aluno o contexto escolar, o familiar e as possíveis implicações de suas várias vivências
em sala de aula. Essas atitudes podem propiciar a emergência de forças internas ao
homem na tentativa de desenvolvimento e crescimento. Elas se inter-relacionam e a
conjugação delas é indispensável para a compreensão do sistema teórico rogeriano.
As atitudes facilitadoras do professor e sua implementação em vários contextos
educacionais têm sido objeto de reflexão. Nos últimos anos, esforços têm se
concentrado em estimular os docentes da rede pública (alunos do curso Reflexão sobre
a Ação) a transporem, para a sala de aula, a expressão das referidas atitudes em
relacionamentos com seus alunos. Um breve exemplo sobre a apropriação dessas
atitudes é apresentado em Duarte (2003, 2004).
Destacamos que as referidas atitudes são um “jeito de ser" e constituem-se em
uma forma de propiciar a emergência das forças internas; elas se inter-relacionam,
sendo difícil estabelecer os limites da atuação e da influência de cada uma
separadamente.
Relato de experiências – o dizer do professor
No relato dos professores sobre seus Tom-tons, inevitavelmente percebemos o
lugar subjetivo de que falavam, um lugar talvez socialmente desvalorizado e, ao mesmo
tempo, de intensas demandas. Os docentes traziam inquietações como que papel
desempenhavam, o que caracterizava seu trabalho, o que escapava à sua alçada, além de
inquietações relativas a problemas de ordem social, econômica e psíquica dos alunos e
dos que integravam o contexto da escola. Parecia haver na fala deles certa angústia por
também não encontrarem um lugar, uma identidade em sala de aula. Eles não eram mais
os detentores de um saber e de uma técnica que pudesse efetivar esse saber, e também
não pertenciam a um lugar em que se reconhecessem nas relações interpessoais com
seus alunos. Em seu depoimento, o professor A. foi bastante enfático nessa questão:
O aluno hoje em dia não reconhece mais aquela pessoa que está ali na frente
como uma pessoa que está ali para ajudar. Ele não reconhece mais, não vê
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ajuda, não reconhece o nosso valor, por isso não respeita. Eles querem, vez por
outra, uma intimidade de vizinho, de amiguinho. Os outros professores saem da
sala de aula e vão para a sala dos professores e ficam lá. Eu me misturo com
eles (os alunos). Então, quando estou tomando lanche, eles vêm dar palpites.
Então, eles perguntam: tá comendo lanche, né, professor? Professor vai comer
só 1 ou vai comer 2? Tá gordo. Devia comer isso aí não; vai engordar mais.
Essas coisas eles fazem porque acham que podem. E, de certa forma, podem,
porque não me incomoda. Eles me veem mais como um amigo do que como um
professor.
A dificuldade do aluno de reconhecer a figura do professor e definir seu papel
foi vivenciada angustiadamente nas reuniões. Em um contexto em que o olhar do
aprendiz também atuava como elemento responsável pela construção da identidade
docente, colocando à prova o tempo todo a subjetividade que sustentava o saber e as
técnicas que se apresentavam em sala, o professor sentia-se abalado não apenas em sua
função ou saber –o que ele sabe é útil, é suficiente, é atual? –, mas também em seu lugar
como pessoa – não reconhece o nosso valor, por isso não respeita.
Com base no relato acima, percebemos que o respeito esperado não se define
como uma expectativa moral ou de poder do tipo: você sabe com quem está falando?,
mas como uma necessidade de reconhecimento e valorização do lugar do educador
como um facilitador da aprendizagem. Esse professor, que toma lanche com seus alunos
e se mistura com eles, ao mesmo tempo em que se permite vivenciar o cotidiano da
escola com os alunos como pessoa com suas potencialidades e limites, mostra-se
confuso com a dificuldade de diferenciação entre eu-outro/professor-aluno, que se
instala. Os palpites dos estudantes parecem-lhe comentários de amigos e não de alunos.
Mas o que diferencia essas relações? Parece que o papel do professor se mescla
com demandas de outra ordem. O professor é autoridade em sala de aula. Seu papel é
legítimo e dele é cobrado um resultado do seu “fazer” como educador. Em que medida
o professor pode ser amigo sem deixar de ser professor? Por meio da indiferenciação, o
que o aluno traz de suas relações interpessoais para além da escola, a que o professor é
inadvertidamente lançado? E será que esse professor está sendo genuíno em relação a si
mesmo e em relação a seu aluno, conforme propõe Rogers (1977), ao tratar de
autenticidade? Será que ele realmente aceita os comentários do aprendiz/amigo? A
professora K. aponta para alguns elementos que ajudam a pensar essas questões:
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Eu sinto dó de vocês, porque essa prática de que vocês ‘podem tudo’ e aí
vocês chegam no mundo lá fora, numa empresa, e vocês vão ser cobrados. A
escola não cobra nada, a família não cobra nada, ninguém cobra nada, não
tem limites. E aí quando chega numa firma não consegue porque tem horário e
aí vai ser um fracassado a vida inteira; aí começa a baixa autoestima. Daí
você tenta por limites e você é que está errado e o papel do professor, do
educador é isso, é por limites.
Na verdade, o esgarçamento de uma relação professor-aluno pautada pelo
respeito e pelos limites que a situação deveria impor estende-se para além dos muros da
escola. No relato acima, questões importantes são apresentadas, embora muito
confusamente. De fato, parece ser um dado de nossa realidade a ausência de limites, e
tal dado pode revelar uma sociedade de mercado em que o excesso de informação
desinforma os sujeitos de suas próprias histórias, que certamente têm marcas de limites
e de proibições. No universo de uniformização pela informação, os limites e referências
familiares e sociais enfraquecem-se em nome de uma demanda autoritária de ser tudo e
ter tudo – “uma prática pedagógica informativa, mas com um sentido eminentemente
repressivo” (VOLNOVICH, 1993, p. 33). Ao apontar para essa falta de limites, a
professora parece revelar uma necessidade por parte dos alunos de ter alguém que
exerça essa função.
Mas impor limites é uma função do professor? Caso positivo, como exercê-la na
escola, se a família e outras instituições sociais também reclamam da mesma
dificuldade? Ou como estabelecer regras e leis em sala de aula, se o professor não é
reconhecido em sua liderança, em sua função de representante de um grupo? Como
pensar as relações interpessoais em sala de aula, se na família e na sociedade os
vínculos são fragmentados e marcadamente subordinados aos valores ditados pelo
mercado?
A reflexão da professora K. remete a uma atitude de autenticidade ou
congruência, em que a fala na primeira pessoa seria o indício de uma real expressão dos
sentimentos de uma educadora que acredita na importância de estabelecer limites em
sala de aula. Além disso, o sentimento de dó, expresso por ela, parece também ser um
lamento em relação a si própria, ao perceber que a função de estabelecer limites,
atribuída ao professor, não se realizou. A ausência de proibição, de leis, parece, segundo
a professora, atuar no futuro desempenho da criança ou do adolescente, no âmbito
psíquico ou profissional.
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O fato de se atribuir à escola a função de estabelecer limites converge para o
reconhecimento de que os pais parecem não saber como contornar situações conflitantes
no convívio com seus filhos? (ROSA, 2001). Há limites pelos quais a escola não pode
responder, e distinguir quais são da alçada do professor parece ser tarefa difícil. A quem
se evita o sofrimento, a frustração de não poder tudo? Ao aluno, aos seus pais ou aos
professores?
É ao professor autêntico, congruente, que não mais tolera o desrespeito e as
ofensas vindas dos alunos, que cabe impor os limites em sala de aula. Nos casos
analisados, a dificuldade está na “solidão” do professor, que luta para levar à classe seus
valores de respeito e a possibilidade de construção de uma realidade mais humanizada.
Entretanto, na maioria das vezes, ele não encontra respaldo na direção e na coordenação
da escola.
Os depoimentos dos professores, ao longo de nossas reuniões, muitas vezes
apontaram para uma preocupação com conteúdos programáticos, atividades, técnicas,
em detrimento das subjetividades envolvidas no processo de aprendizagem. Dominar
um conteúdo e uma técnica eficaz, preparar um bom material, uma atividade adequada
pareciam ser preocupações mais urgentes de muitos docentes. Paralelamente a isso,
como vimos, eles deparavam-se com outras demandas para sua prática em sala de aula –
para que, por que, o que, a quem interessava o que faziam em seu cotidiano escolar. As
reflexões nas reuniões traziam a angústia vivenciada pelos professores de qual o lugar e
a função deles na escola e no contexto social mais amplo. Ficou claro que o conteúdo de
uma disciplina escolar não vem dissociado das relações interpessoais. Afinal, de que
vale propor um conteúdo, mesmo que faça sentido para o aluno, se não se garante certo
conforto, certa ‘acolhida’ emocional em sala de aula?
Os relatos demonstraram que as relações interpessoais em sala de aula
costumavam ser tensas e demandavam tomadas de posição rápidas, o que muitas vezes
não se efetivava. Novamente, os docentes pareciam confusos quanto aos papéis e
lugares atribuídos a eles pelos estudantes, conforme demonstrado a seguir no relato do
professor A.:
Ele me chama de pai. Não me chama de professor. Ele diz que gosta de mim.
Ele
me abraça e já chega grudando. Ou, ainda, o professor dizia ao aluno:
você não vai descer para o intervalo, nem eu. Nós dois vamos ficar o intervalo
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inteirinho
para você copiar. Eu ameaço. E aí ele copia alguma coisa, mas
nunca se envolve.
Notamos que esse educador expressa a confusão de papéis professor versus pai
trazida pelo aluno. Ambos, professor e pai parecem ocupar o lugar de estabelecer as
regras e interdições necessárias à vida social e individual dos sujeitos, porém a diferença
entre esses papéis é enorme. Algumas vezes o educando traz de seu histórico familiar e
social um lugar vazio, não ocupado por um pai (ou por alguém que exerça essa função)
– ou pelo menos isso não está claramente definido para ele – e assim a figura do
professor é confundida com a figura do pai.
Considerando as atitudes facilitadoras de Rogers (1977), acreditamos que a
legítima possibilidade de exercer autoridade e liderança sobre o grupo não está clara
para o professor. Ao definir que o aluno não vai descer para o intervalo, ele procura
exercer sua autoridade, mas esgarça-se ao se incluir na punição sem explicitar o motivo
de sua atitude. Para quem era a extinção do intervalo naquele dia, para o aluno ou para
o professor? Podemos considerar essa cena como uma atitude autêntica do professor,
que se colocou para o aluno como alguém comprometido com sua aprendizagem e seu
crescimento, que acredita no potencial que pode estar se perdendo quando o aprendiz
deixa de se envolver com a aula. No entanto, a congruência, segundo Rogers, implica,
conforme mencionamos, a concordância entre a percepção que o indivíduo tem de si e
da sua própria experiência. Assim, a reflexão a ser feita é: será que o professor foi
autêntico ao se furtar do intervalo? Isso não foi explicitado pelo professor, nem para seu
aluno nem para seus colegas nas nossas reuniões.
Contradições e riscos
Os relatos dos docentes evidenciam a não-linearidade e as contradições que
marcam o processo de transformação subjetiva e das relações interpessoais, como pode
ser observado no depoimento abaixo, também do professor A.:
Eles sabem que eu fico bravo. Eu fico bravo mesmo. Esbravejo, falo alto, bato
na mesa. É o professor bravo. Faço isso para que eles saibam. Eu acho que eles
sabem. Quando eles se aproximam eu falo assim: ‘eu sou o mais votado como o
mais chato?’ Eles falam que não. ‘Como não? Eu só dou bronca, grito’. ‘Ah,
mas o senhor só faz isso quando a gente merece’. Não adianta aquela patada
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que pega de surpresa. Tem professor que faz isso. E eles percebem que eu dou
bronca, não ofendo. Não xingo pai e mãe, não chamo de débil mental, não
chamo de burro. Eu faço assim para botar um limite. E não fico remoendo.
A autenticidade do professor para com seus alunos parece gerar um ambiente de
confiança e segurança, em que as “broncas” são aceitas como parte do processo de
ensinar e aprender, colocar limites e cuidar. O professor ainda explica a diferença entre
o que faz e a ofensa ou “bronca” gratuita: a ofensa está no âmbito de uma atitude
autoritária, enquanto a “bronca” é a possibilidade de estabelecer limite. Assim, ele
sinaliza o respeito e a aceitação do outro em sua singularidade, bem como a confiança
na potencialidade de seus alunos.
O educador, em seu relato, demonstra estar consciente da ineficiência de tentar
diálogo com os pais, em uma conversa na primeira pessoa, conforme se espera de uma
atitude autêntica. Segundo ele, quando os pais são chamados pela escola, normalmente
o aluno é excluído da conversa sobre ele mesmo e, quando incluído, é levado a ouvir o
que ele já sabe em relação ao que faz, ou seja, não se busca, nessas oportunidades, ouvir
o estudante, saber de suas razões e verdades, seus medos e desejos, conforme sugerido
pela empatia e pela escuta ativa – atitude que se expressa no ouvir e na possibilidade de
conhecimento do “mundo do outro”. Ele apenas parece ser tratado como uma peça
necessária para a composição de um quadro escolar e não como uma pessoa que tem
interesses próprios. Em situação específica da sala de aula, parece que, quando um
professor se mostra desinteressado por seus alunos, isso pode influenciar na
produtividade, criatividade e até mesmo na saúde emocional dos aprendizes. Em
contrapartida, parece existir uma melhora na comunicação entre professor e aluno
quando a maneira de o aluno enxergar o mundo está clara para o professor.
Outro elemento que emergiu de nossos encontros, revestido de uma ameaça por
parte dos docentes, foi a vivência do risco e da incerteza a partir do momento em que
novos caminhos precisavam ser descobertos e vivenciados, pois o sabido e conhecido já
não favoreciam a aprendizagem nem as relações interpessoais saudáveis em sala de
aula. O relato da professora K. aponta para essa reflexão:
A menina faz uma escola de língua e fica me corrigindo e eu digo: ‘querida,
quando você fizer sua faculdade você pode vir discutir os PCNs’. Ela é a única
da sala que está namorando. Ela é uma líder e quer distorcer as coisas como se
soubesse mais que eu.
13
A educadora expõe sua angústia ao ser desafiada por essa aluna no que se refere
ao seu conhecimento e à sua posição de autoridade no grupo. Em nossa reunião, a
dificuldade de nomear o sentimento desencadeado por essa situação foi trabalhada, bem
como a dificuldade de se estabelecerem relações interpessoais em que se pudesse agir
com autenticidade diante das próprias verdades. Nesse sentido, Rogers (1977, p. 178)
chama a atenção para o problema vivido por alguns professores:
‘Mas se não me sinto empático, se, em dado momento, não tenho apreço, nem
receptividade ou estima pelos meus alunos! Que ocorrerá?’ Respondo que a
autenticidade é a mais importante das atitudes que mencionei e não foi por
acaso que comecei a minha exposição por esta atitude. Assim, se alguém tem
escassa compreensão do mundo interior do aluno, não gosta dele ou de seu
comportamento, é quase certamente mais construtivo ser real do que pseudoempático ou do que exibir a máscara de quem se interessa por ele. Mas isso não
é tão simples quanto parece. Ser autêntico, ou honesto, ou congruente, ou real,
significa ser dessa maneira em relação a si próprio (grifo nosso).
Durante a reunião, chamamos a atenção para essa honestidade, ao perguntarmos
para a professora se ela realmente gostaria de esclarecer aquele conflito. Perguntamos se
ela se dava conta do que estava sentindo, e revelou-se a necessidade de ela voltar aos
seus próprios sentimentos, por meio de uma conversa em primeira pessoa, em que
pudesse expor sua mágoa e seus próprios limites, explicitar a sua verdade: você está
incomodada com isso, sentiu-se ofendida. Ao conversarem, ambas, professora e aluna,
poderiam conhecer-se mais.
Destacamos que, com autenticidade e aceitação, o professor se aproxima do
aluno como pessoa com limites e potencialidades, que se reconhece em si e no outro
também.
Ele
permite
a instauração
de
relações
interpessoais
em
que o
comprometimento com o crescimento do outro é o eixo que move as interações, que não
são pautadas por uma impositiva necessidade de provar para alguém (alunos,
professores, pais) a competência e o valor de seu trabalho. No relato, percebemos que a
professora K. tinha dificuldades de ouvir a verdade da aluna, por isso não se estabeleceu
empatia – não houve preocupação da educadora em compreender as reações da
aprendiz. Para resolver o problema com sua aluna Tom-tom, a professora cogitou a ideia
de chamar os pais da estudante, o que logo foi considerado pelo grupo como uma
solução ineficiente e de pouca contribuição para o crescimento pessoal dos sujeitos
envolvidos.
14
O grupo chamou a atenção para a importância da conscientização de que as
mudanças não são garantidas e muito menos imediatas, mas a reflexão, por si mesma,
pode promover o desencadear de um longo e contínuo processo de transformação e
apontar para a necessidade de um interlocutor sempre presente, um outro que reflita
sobre as questões de sala de aula. Além disso, o grupo procurou averiguar o que era,
para cada professor, vivenciar uma situação de conversa em primeira pessoa, perguntar
e ouvir por que o aluno agia de determinada forma. Reforçamos que, em situação de
sala de aula, o aluno Tom-tom traz um conflito, um problema para o professor e este
precisa compreender claramente a situação, o que pode gerar, segundo Rogers (1977),
uma fala em primeira pessoa, marcada pela autenticidade, pela exposição do que está
sendo mobilizado pelo outro. É a apropriação dos próprios sentimentos que pode deferir
a decisão do que fazer. Segundo Rogers (1985, p. 128),
quando o facilitador é uma pessoa real, sendo o que é, ingressando num
relacionamento com o estudante sem apresentar-lhe uma máscara ou fachada,
ele tem muito mais probabilidades de ser eficiente. Isto significa que os
sentimentos que está experimentando estão disponíveis para ele (...) e
comunica-os, se for apropriado. Significa que ele se encontra direta e
pessoalmente como estudante numa base de pessoa para pessoa. Significa que
está sendo ele próprio, não negando a si.
O relato da professora S., a seguir, evidencia outro risco também assumido nas
relações interpessoais. A situação relatada não se passa em sala de aula com os alunos,
mas em uma reunião de pais e professores:
Então, cada professor colocou sua dificuldade com relação à sala. E eu fui além
disso... Eu coloquei os nomes dos alunos que me davam problema. Eu fiz a
minha fala e acrescentei... Destes alunos tá, tá, tá, tá... (...) Aí, ao final da
reunião, os pais vieram com os alunos. (...) O pai chegava com o aluno e eu me
colocava. (...) Depois eu me colocava também perante o aluno. Então conversei
com todos. Teve um aluno dessa série, um rapaz de 16 anos, um porte já de
homem, aquele corpo, né? Bem formado e tudo. Mas um pai já bastante
consciente teve muita atitude de pai. E o pai ainda me disse assim: ‘ele é um
excelente filho, uma pessoa maravilhosa’. E a minha resposta foi: ‘eu também
sou consciente de que ele é um filho maravilhoso, por isso que eu o coloquei na
reunião’. Uma coisa que eu aprendi alguns anos atrás, com um colega
professor. A nossa reclamação aqui não é o quão caprichoso é o seu filho. Eu
não conheço seu filho fora da sala de aula. Eu não posso criticar o seu filho
fora da sala de aula porque eu não o conheço. A nossa crítica aqui é a postura
deste aluno em sala de aula. Eu não estou criticando o seu filho, eu não estou
criticando você, eu não te conheço lá fora, eu te conheço aqui. A nossa
15
recomendação é quanto à sua postura em sala de aula. Parece que chegamos a
um ‘encontro’. (...)
(...) Ontem, entrei nessa sala, ele tava do lado de fora. Chamei todos para
entrar. Ele ficou ali, ele não olhou para mim, enquanto eu não disse ‘boa noite’,
ele não entrou.
A professora, em seu depoimento, tenta explicitar uma diferença fundamental e
necessária para as relações interpessoais em sala: amizade com o aluno versus
compromisso com seu crescimento, sua aprendizagem. Tal procedimento está de acordo
com o que postulam as atitudes facilitadoras propostas por Rogers (1977): a
autenticidade, a confiança e a empatia em si mesmo e no outro são fundamentais para a
instauração de um processo de aprendizagem significativa. Trata-se de um compromisso
ético com o outro, que não se embasa em procedimentos como, por exemplo, lanchar
com o aluno, sentar com ele para tomar cafezinho ou assistir a uma partida do
campeonato da escola. Tais atitudes não necessariamente contribuem para o
crescimento pessoal do estudante. O que parece contar, para essa professora, é seu
compromisso com o discente, com os pais, com a instituição, com sua profissão, com
seu ser.
A fala autêntica da professora expõe sua verdade e o limite de sua alçada, de sua
responsabilidade – as relações interpessoais na sala de aula. Mas a aprendizagem
significativa é, como dissemos, pervagante, ou seja, transformadora. Ela não envolve
apenas atividades cerebrais, cognitivas, técnicas, pois considera a pessoa em sua
integridade. Por meio dela é que ocorrem as transformações de outras pessoas com as
quais convivemos.
De uma autoridade desautorizada
Conforme mencionado, os professores trouxeram para as reuniões queixas
angustiadas a respeito do exercício de sua autoridade, derivada de uma formação e de
uma experiência subjetiva de liderar um grupo. E o relato da professora K., apresentado
na seção anterior, ilustra essa angústia. A família, a sociedade, a própria escola, muitas
vezes, não legitimam essa autoridade, o que culmina em uma insegurança vivenciada
pelo educador. Assim, ele fica inibido para explicitar suas regras, suas condições de
trabalho, talvez para não ser estigmatizado de mau ou rígido. É possível que esse
aspecto faça parte do lugar das referências, da lei, das regras em nossa sociedade e,
consequentemente, da escola. Para que se desenvolvam a independência, a
16
responsabilidade, a criatividade e o crescimento pessoal, parece ser fundamental haver
limites e regras que funcionem como referências para ações.
Na escola, o cotidiano da sala de aula tem regras próprias que devem ser
cumpridas e, nesse universo, o professor, ao se colocar em primeira pessoa com suas
verdades e sentimentos, propõe um modo mais humanizado de ensinar e aprender e
apresenta-se como pessoa coerente com seus valores, aberta a riscos e a descobertas.
Dessa forma, atitudes como chamar pais ou diretoria para resolver questões da relação
professor-aluno em sala parecem isentar tanto o educador quanto o aprendiz de suas
responsabilidades como pessoas no processo de aprendizagem, de transformação
pessoal. O relato do professor A. esclarece melhor essa ideia:
Resolvi levar livros de inglês para sala de aula. Peguei esses livrinhos na
biblioteca da escola. Um era de basquete, outro de resgate de rio, mais um que
falava da Índia. Pedi que os alunos sentassem em pares e lessem juntos. E foi o
que não aconteceu com o Gabriel. Ele é terrível, não fica quieto. Gabriel fez
assim: ‘posso devolver o livro, teacher?’ ‘Não. Você não vai fazer a
atividade?’. ‘Eu quero ir ao banheiro. Não sei ler em inglês’. E eu estava
fazendo a chamada. ‘Espera aí, Gabriel, que eu vou ler com você’. Ele não quis
sentar com ninguém. ‘Eu vou fazer com você’. Peguei a cadeira. Sentei do lado.
‘Então, você não sabe ler em inglês?’ ‘Eu não, professor’. ‘Abre o livro. Olha
para as figuras. Como é o nome dele?’ ‘É Scott’. ‘Onde ele está?.’ ‘No bar’.
‘Então, você sabe ler em inglês! Só vai ao banheiro quando acabar de ler’. Ele
leu as três historinhas. Quietinho, bonitinho. Contou mais ou menos. Não sei se
ele entendeu todas as histórias, mas leu tudo.
Nesse depoimento, o educador agiu movido por suas convicções: o decidir fazer
junto, o investimento afetivo-emocional na relação com o aluno e a confiança no fato de
que ele conseguiria ler a história, mesmo porque havia no texto escrito um importante
suporte não-verbal que auxiliaria na leitura. Em outros termos, o professor agiu com
coerência, autenticidade e confiança. Nas palavras de Rogers (1977, p. 127):
Eis professores que se arriscam, que procuram ser eles próprios, confiam nos
seus alunos, aventuram-se pelo desconhecido existencial, enfrentam uma
transição subjetiva. E o que acontece? Fatos humanos, excitantes,
inacreditáveis. Sentimos que pessoas estão sendo criadas, aprendizes estão
sendo iniciados, futuros cidadãos emergem para enfrentar o desafio de mundos
desconhecidos.
Ainda em busca
17
Na sequência, o relato do professor L. revela seu empenho em criar um clima de
confiança, de apreço, de autenticidade, de compreensão:
Então é assim. É a respeito de uma de minhas Tom-tons, que é a A. E eu sempre
tive conflitos com ela ao longo do primeiro semestre. E chegou um dia em que
eu fiquei assim tão bravo com ela. Porque ela era a típica Tom-tom mesmo, do
fato de “encangar” na cintura. Porque plantava bananeira, falava, mexia
assim... Tirava o chinelo, batia na mesa do outro, e eu antes de ter aula com
você, toda essa questão da teoria. Sabe? Eu agia no senso comum. Bom. Aí,
certo dia, eu peguei e falei assim. ‘A., eu não aguento mais! Eu não tenho mais
condição de falar com você. Já tentei. Você não permitiu. Vai embora! Sai! Aí
abri, ela foi embora. De repente, a coordenadora aparece e fala assim:
‘professor, você não tem uma atividade para ela fazer, para ela não ficar lá fora
sem fazer nada? Aí eu fui até a sala dos professores, peguei um livro que nem
era de minha matéria! Era de português. Eu tava tão enraivecido. E falei assim:
‘você vai copiar esse texto’. Ela sentou e começou a copiar. Passou aquele dia,
a inspetora de período que começou a conversar comigo a respeito do histórico
dela e aí eu comecei a entendê-la melhor. Aí a questão da aceitação, da
autenticidade. Eu fui autêntico, mas eu não aceitava como ela era. (...) Olha o
problema... Aí ela, quando ela foi começar a copiar o texto no caderno de
inglês. Olha que interessante! Ela fez assim: ‘professor, me empresta o seu
apontador’. Tava assim nessa posição. Por isso que eu deixei meu estojo aqui,
para contar. Ela fez assim: ‘porque o seu apontador é da Faber Castel e é bom!
Ele aponta o lápis direitinho para eu copiar’. (...) Eu disse assim: ‘olha, vai à
sala da coordenadora, e pega apontador. Porque eu estava muito bravo com
ela. Aí ela sentou, copiou todo o texto e me mostrou. E depois eu tive uma
conversa com a inspetora de período, e aí me bateu algo no coração, assim,
nossa! Eu vou me aproximar dessa menina. E já sei como. Comprei um
apontador igual. (...) Aí falei assim: ‘A., na outra aula preciso falar com você.
Mas não pode ser aqui’. Fui para uma sala separada, comecei a conversar e
expliquei assim: ‘olha, na verdade, eu quero propor um pacto de paz. Porque
estou brigando muito com você’. (...) Aí eu lembrei de algumas coisas e falei
assim: ‘a partir de hoje o nosso relacionamento vai mudar. Eu quero mudar.
Nós vamos ser da base do amor. E eu tenho uma surpresa para você’. E fiz
assim: ‘pra você. Por favor, A., abre. E quando ela abriu. ‘Ah, um apontador’.
Eu falei: ‘você não tinha falado que o meu era bom e que você gostou? Então.
Comprei’.
O professor L. relata sua história marcada pela autenticidade, pelo
reconhecimento dos próprios limites e de sua autoridade que o levou a tirar A. da sala
de aula. Mas ele o fez não por desinteresse pela aluna, mas por não encontrar meios de
trabalhar com ela. Seu interesse é ostensivo, por exemplo, quando busca informações
sobre a história daquela pessoa que lhe dava muito trabalho. Ou seja, há um interesse
em saber das verdades de A., do motivo de suas atitudes. Além disso, ele parece
conseguir estabelecer um trânsito com a aluna na medida em que ele aceitou sua própria
18
verdade de não suportar a situação, na medida em que reconheceu seus limites diante do
que o estava incomodando muito. O apontador foi apenas um elo entre eles, foi a
concretude de sua aceitação. Se não fosse isso, certamente o professor encontraria outro
pretexto para expressar sua consideração positiva.
Nas reuniões, discutimos muito sobre a importância da consciência de si próprio
como base para aceitação do outro e, ainda, sobre a importância do suporte teórico de
Rogers, não como engessamento de ideias, mas como referencial para reflexão
constante no processo de ensino e aprendizagem. Na fala do professor L., o agir de
acordo com o senso comum ou a intuição mais assistemática difere muito da ação
derivada de reflexões e da tomada de consciência do processo como um todo, tanto para
o aluno quanto para o professor. Ao afirmar que já foi autêntico, mas não aceitava a
aluna como era, professor L. evidencia essa diferenciação e também a apropriação da
teoria em sua prática pedagógica e humana.
A aluna sentiu-se ouvida em sua demanda – ganhou um apontador igual ao do
professor. Podemos, nesse caso, questionar sobre o limite da alçada do professor em
relação às questões sociais, econômicas, psíquicas de seus alunos. De fato, são
discussões difíceis, mas necessárias de serem feitas. A propósito, Joel Birman3 comenta
que a escola teria de se transformar em outra coisa para se tornar um parâmetro de
autoridade; teria de se preocupar com a constituição simbólica, afetiva da criança, e não
meramente com sua formação conteudista. Essa também é a proposta de Carl Rogers, ao
postular uma aprendizagem que venha a ter um significado pessoal, de crescimento e de
prática da liberdade.
Como podemos notar, os professores sinalizaram tentativas importantes de
adotar posturas diferentes em sala de aula, fundamentadas nas atitudes facilitadoras de
aprendizagem significativa, trabalhadas no módulo Resgatando o aprender e
compartilhando o ensinar. A continuação do relato do professor L., abaixo, ratifica essa
observação:
Eu sempre com o filtro alto, alto. Aí quando resolvi baixar o filtro, aceitar como
ela era e olhar para ela... Porque a menina mora na favela, a menina não tem o
que comer, a menina vem para escola com fome. Atualmente, ela está vindo com
chinelinhos, pés sujos. Já tô pensando em comprar, levar para ela uns
sapatinhos. Hoje quando tenho problema de disciplina com a sala, ela é a
primeira a falar: ‘cala a boca, fica quieto. O professor quer dar aula’. Eu dei
3
Considerações extraídas da fala de do psicanalista Joel Birman, no programa Café filosófico, exibido
pela TV Cultura em 15/03/09.
19
uma atividade num dia em que eu li uma entrevista que é com CQH que passa
no jornal da manhã da Cultura e ela não queria sair: ‘professor, como eu vou
escrever os números? Eu não sei como escreve trinta’. Ela faz assim:
‘professor, professor, me ajuda, olha, não sei’. E tinha dado o horário do
intervalo e eu querendo tomar um cafezinho. Aí eu te vi na minha mente
falando: ‘olha... Quer saber de uma coisa! Esquece o caderno, A. Vamos’. Aí
chegaram duas ex-alunas:’oi, Cíntia, não sei o quê...’ Aí ela parou e ficou me
olhando. (...) Aí eu falei: ‘vamos sair só um pouquinho, né?’. O Carl Rogers tem
toda razão na teoria dele. A gente vê e sente isso. (..) Eu falei: ‘A., vai, amanhã
você me entrega, vai comer. Você deve... ‘não tô com fome, professor! Eu quero
te entregar. Mas eu não tô conseguindo’. Aí eu sentei com ela. É muito
engraçado. Eu vejo a luz da teoria na prática.
O depoimento do professor L. aponta para os efeitos subjetivos decorrentes de
uma escuta de si mesmo e da aluna. Há aqui sinais de relações interpessoais – para além
do apontador, dos chinelinhos etc., que são apenas um fio, uma ferramenta
circunstancial – mais autênticas e de maior liberdade do professor e da aluna.
A professora S. também se dispôs a ouvir os alunos, ao propor a eles uma
avaliação-reflexão sobre as aulas de língua inglesa. Ela levou a tarefa que eles
realizaram e, na reunião, foram discutidos alguns depoimentos dos aprendizes. Para ela,
refletir com nossos alunos, sobretudo depois do contato com a teoria do Rogers
sobre as atitudes facilitadoras e sobre as relações interpessoais em sala de
aula, faz sentido, na medida em que o compromisso é com a aprendizagem
deles, o crescimento do aluno na disciplina ministrada pelo professor.
A professora K., por outro lado, trouxe suas tentativas frustradas de mudança: eu
já fui para o Construtivismo, o Carl Rogers, tentei ser amiga deles, e eles (os alunos)
só vêm com quatro pedradas em cima da gente.... A professora Vera, idealizadora do
projeto e uma das autoras deste artigo, então, esclarece:
Você leu Carl Rogers, você leu Vigotsky, você fez uma série de tentativas
intelectuais, emocionais, você pôs tua cabeça para funcionar, você quis
contribuir e a classe continuou a mesma. Você acha que você mudou lá? Não é
apenas na cabeça, não é aqui conosco! Na hora em que você está diante dela,
daquela menina, você mudou ou você gostaria de mudar? Ou você acha que
não é você quem tem que mudar? Porque pode ser uma verdade para você, viu
K.? Você achar que não é você que tem que mudar e sim ela (a aluna Tom-tom)
20
tem que mudar porque ela é sem educação e tem que mudar. Se você entende
que você, no seu papel de professora, autoridade na área que leciona, necessita
de respeito, de cooperação, e que não é você que deve chegar lá, é sim o aluno
que deve olhar a estrutura, perceber sua inadequação e estar disposto a se
modificar. Essa é uma pergunta para você refletir à luz da teoria.Voltamos ao
ponto onde começamos...Como alterar essa realidade? Talvez começar
deixando claro para a própria aluna, e para você mesma, os seus limites e o seu
papel no contexto escolar.
Conclusão
Neste trabalho, procuramos verificar se as atitudes facilitadoras do professor
propostas por Rogers (1977) foram implementadas pelos docentes que participaram do
módulo Resgatando o aprender e compartilhando o ensinar, ministrado no primeiro
semestre de 2007. Com base nos relatos apresentados, observamos que os professores se
mostraram conscientes da importância dessas atitudes para o aprimoramento das
relações interpessoais com seus alunos, especialmente os Tom-tons. Os encontros, como
dissemos, representaram um momento de reflexão, carregado de questões pessoais,
dificuldades e limites.
Acreditamos não ser possível falar em qualidade das relações interpessoais sem
pensar em subjetividades envolvidas. Cada um dos protagonistas em sala de aula leva
suas histórias, vivências, experiências. A finalidade das reuniões foi sempre respeitada:
o desafio da implementação das atitudes facilitadoras do professor, conforme discutidas
por Rogers. Tratamos, então, de buscar uma apropriação da teoria, da proposta
psicopedagógica do autor.
No entanto, muito ainda precisa ser feito pelos próprios professores para que as
atitudes facilitadoras sejam implementadas satisfatoriamente. É preciso, por exemplo,
criar espaço e tempo para constantes discussões sobre conflitos e relações interpessoais
em sala de aula. Ficou claro que a compreensão intelectual e técnica da proposta de
Rogers não garante necessariamente mudanças significativas no cotidiano das relações
entre professor e aluno e, além disso, há elementos concretos do cotidiano da escola, da
sociedade e da família que muitas vezes escapam do âmbito de ação do professor e das
relações interpessoais em sala de aula.
21
As reuniões ofereceram um material extremamente rico para prosseguirmos com
nossas pesquisas, revelando-nos fenômenos e problemas que caracterizam o cotidiano
da escola atualmente. Os encontros evidenciaram que a construção de uma cultura que
priorize a qualidade das relações interpessoais no contexto escolar necessita de um
trabalho conjunto das várias instâncias da escola, como direção, coordenação e
comunidade, uma vez que o professor sozinho não dá conta de transformar as relações
interpessoais em sala de aula.
Ao nos voltarmos para esse material, foi difícil decidir o recorte de análise em
função de tantas e complexas questões vivenciadas nas reuniões pelo grupo.
Priorizamos verificar se houve a implementação das atitudes facilitadoras da
aprendizagem significativa em sala de aula, e várias questões nos ocorrem em função
dos resultados obtidos. Podemos pensar que, de fato, transformações demandam tempo,
reflexão e acolhimento dos sofrimentos que delas resultam. Além disso, transformar
relações interpessoais revela-se uma empreitada a ser realizada por toda a vida, e a cada
novo encontro – e desencontro – ela se refaz, atualizando-se e exigindo dos sujeitos
envolvidos posturas de reflexão, acolhimento e desprendimento de comportamentos e
atitudes.
Em outros termos, transformações são lentas, deparam-se com resistências,
exigem reflexão, troca e elaboração dos eventos ocorridos. Trata-se, no nosso caso, da
construção de uma prática à luz de uma teoria e da expansão de uma teoria à luz de uma
prática. A professora M. confirma esse sentimento, ao afirmar:
o fato de saber que posso ser eu mesma, ou seja, me mostrando como sou, com
meus rompantes e frustrações, sem julgar os outros (alunos) ou a mim mesma,
parece que me tirou um peso das costas. Concordo com a teoria de Carl Rogers
quando ele diz da natureza do ser humano que sempre busca autonomia e o
desenvolvimento de suas habilidades (...) e sendo eu mesma, as aulas rendem mais.
Acreditamos que as reuniões foram relevantes, uma vez que, de algum modo,
apresentaram-se para os professores possibilidades diferentes para que cada um, ao seu
modo, compreendesse a importância de ser autêntico em sala de aula, de enfrentar
problemas tão urgentes de relacionamento com alunos, de praticar outras formas de
ensino e aprendizagem.
22
Anexo 1
Tom-Tom tem 5 anos e chega desesperado todos os dias. Bate num, chuta outro,
empurra a mesa, chora desamparado quando por fim recebe um soco – de algum maior
– de volta. Nas primeiras semanas de trabalho, para poder controlá-lo, tive que andar
de mãos dadas com o Tom-Tom e, na maioria das vezes, com ele nos braços:
encangado na cintura.
 Tom-Tom, vem cá. Você agora é meu boneco Fom-Fom. Toda vez que você vier
para o meu colo você vai virar meu boneco. E o meu boneco vai me ajudar! Logo você,
que eu sei que sabe fazer tantas coisas! Vamos, vem logo!
E, veloz como um macaco, subia, encangava na cintura. No meu colo, ele dava papel
para as outras crianças, dava lápis, agradava meu cabelo... E às vezes brigava mesmo lá
de cima!
 Tom-Tom, você esqueceu que você aqui (no colo) é o meu boneco Fom-Fom?!
No ato parava. E continuava me ajudando. Só no colo, junto do afeto, Tom-Tom
acalmava. Foi vivendo este outro lado bom, do boneco que era querido, que ajudava a
mim e aos outros, que Tom-Tom foi descobrindo um outro jeito de ser. Ao mesmo
tempo, explorei de tudo que fazia para mostrar-lhe que podia virar outra coisa.
Enquanto amassava todas as folhas de papel que encontrava, propus-lhe que
fizéssemos bolas de vários tamanhos para seriarmos depois.
De tudo que destruía eu transformava numa atividade construtiva. Com o grupo
procurei atiçar a descoberta do Tom-Tom trabalhador, cooperativo, chamando atenção
para a sua força enquanto carregava uma das nossas pilhas de tijolos da casinha.
Também trabalhei com os pais no sentido de verem o outro Tom-Tom (o pai foi um dia
conversar comigo para dizer-me que, se precisasse, podia dar uns tapas no Tom), e em
todas ocasiões que Tom-Tom conseguia produzir, trabalhar, mandei bilhetes
salientando o que havia conquistado.
Certo dia, na hora do pneu, gritos chamando por mim, corro. Chego e deparo com
Tom-Tom com um caco de vidro na mão pronto para atirá-lo numa das crianças. Perco
a cabeça e grito!
 Tom-Tom!! Jogue já esse vidro no chão ou senão pode ir embora e não volta
mais nessa escola!
Parado com o braço levantado, o vidro na mão, pensando, parecia que via um vídeotape de sua vida conosco. Momento de dúvida, de avaliação. E, de repente, num gesto
brusco, rápido, jogou o vidro no chão.
Abracei-o, carreguei-o no colo, gritei para todo o mundo:
 Tom-Tom vai ficar nessa escola! Trabalhar nessa escola, ficar com a gente!
Ele, rindo, abraçado, encangado na cintura, brilhando pelo salão...
Tom-Tom optou por nós.
Madalena Freire
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