Considerações sobre a Carga Tributária Brasileira
Por Marcus Yassuyuki Del Mastro
Tenho um certo incômodo de ver na TV e nos jornais diariamente alguma
"notícia" que "demonstre" que a carga tributária brasileira é elevadíssima,
reforçando um ambiente de hostilidade contra a tributação existente e até, de
forma indireta, incentivando a sonegação.
Para minha surpresa, no dia 12 de março deste ano, a BBC Brasil publicou uma
matéria com título favorável a atual carga tributária brasileira: “Para Hillary
Clinton, carga tributária contribui para progresso do Brasil” 1. A matéria
informa que a Secretária de Estado americana, Hillary Clinton, durante 40ª
Conferência das Américas, defendeu:
-
que a carga tributária brasileira é um dos fatores importantes que
contribuiu para os recentes progressos do país;
-
que em muitos outros países da região a relação entre a arrecadação de
impostos e o PIB está entre as mais baixas do mundo, o que é
"insustentável";
-
aumento da carga tributária dos países americanos.
Mas, também não foi surpresa ver a segunda parte da matéria com o subtítulo
“Críticas”, em que a repórter inicia com o seguinte parágrafo: “As declarações
da secretária de Estado contrastam com as críticas comumente feitas à carga
tributária no Brasil, que ficou acima de 35% do PIB em 2009 - a maior na
América Latina e uma das mais altas do mundo”.
Há muitos anos a nossa grande mídia propala, diariamente, que nossa “Carga
Tributária é elevadíssima”, que o “Mercado se autorregula”, que o “Estado deve
ser mínimo” até porque o “Estado é ineficiente”. É uma espécie de pacotão de
rótulos de distribuição gratuita.
A crença sobre a Autorregulação do Mercado caiu por terra com a grande crise
financeira deflagrada em setembro de 2008, quando Alan Greenspan, que
esteve 18 anos ao comando do FED (Banco Central Norte-Americano),
reconheceu: "Cometi um erro ao confiar que o livre mercado pode regular-se a si
próprio sem a supervisão da administração" 2.
O programa humorístico britânico “The Last Laugh”3 fez um esquete pedagógico
imperdível sobre o que foi a crise de 2008 e como esse livre mercado age com
muita “responsabilidade”.
Voltando ao assunto Carga Tributária (CT), existe um trabalho feito pela RFB
que compara nossa Carga Tributária com os países da OCDE – Organização para
a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico.
Carga Tributária no Brasil e em Países da OCDE – 2007 4
fonte: Carga Tributária no Brasil – 2008 – RFB
Dentre os 30 países da OCDE, o Brasil encontraria-se apenas na 19ª colocação e
abaixo da média geral, caso fizesse parte de tal organização. Com o CT de
34,7%, o Brasil está muito abaixo da Dinamarca (49%), Suécia (48,2%), Bélgica
(44,4%), França (43,6%), Noruega (43,4%), Itália (43,3%) e Finlândia (43,0%).
Mas a maneira como é divulgada essa informação em nossos jornais pode ser
sintetizada no título de matéria que saiu no G1 (Globo.com) no mesmo dia em
que foi publicado o estudo da RFB:
“Carga tributária brasileira supera dos EUA, Japão, México e Suíça” 5
A impressão que se tem ao ver o gráfico do estudo da RFB é uma e ao ler o título
da matéria do G1 é outra completamente distinta.
O que se depreende do gráfico é que a CT brasileira não é a maior do mundo e
está longe disso. Dificilmente divulgam os países que detêm cargas tributárias
mais altas que o Brasil e quando é divulgado fazem uma comparação imediata
com os serviços públicos desses países e os do Brasil.
Dentro da mesma matéria do G1, são citados alguns países que possuem carga
tributária maior que a nossa e de imediato aparece o seguinte parágrafo:
...”é importante comparar, quando se fala em carga tributária, os
serviços públicos ofertados pelos países em análise. "Há uma percepção
que, no Brasil, a carga é alta para os serviços prestados. Na Inglaterra e
França, por exemplo, a carga é maior, mas o serviço de saúde é
razoável, o que não acontece no Brasil. Aqui se paga mais por um
serviço que deveria ser ofertado pelo Estado, como Educação, Saúde e
segurança pública"...
Paga-se mais? Como se conclui isso? Comparando-se Cargas Tributárias? Como
comparar custos por meio de porcentagens?
Para comparar a eficiência de serviços públicos não basta comparar cargas
tributárias. Suponha que dois países possuam a mesma carga tributária (CT),
poderão encontrar-se em situações muito distintas quanto aos recursos
disponíveis caso:
-
um dos países tiver um PIB muito superior ao outro, terá também tem
muito mais recursos para aplicar nos serviços públicos; ou
-
se um dos países tiver uma população muito menor que o outro, terá uma
pressão por serviços públicos muito inferior.
A Alemanha, por exemplo, possui uma CT de 36,2%, um pouco maior que o do
Brasil. Ao mesmo tempo ela tem um PIB que é mais do que o dobro do brasileiro
e uma população que é menos que a metade. Resultado: seus governantes têm em
caixa 5 vezes mais recursos para aplicar em cada cidadão, o que possibilita um
serviço público de qualidade muito superior. Essa diferença ocorre ano a ano,
durante décadas, agravando cada vez mais as diferenças.
Na tabela a seguir, faço uma comparação entre os países desenvolvidos e o
Brasil, demonstrando o quanto cada governo (em todas as esferas) têm para
investir em cada cidadão anualmente.
Recursos Arrecadados/Disponíveis por Habitante em US$
PIB
Rank
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
29
País
Luxemburgo
Noruega
Dinamarca
Suécia
Bélgica
Áustria
Finlândia
Suíça
Holanda
França
Irlanda
Islândia
Itália
Alemanha
Austrália
EUA
Canadá
Reino Unido
Espanha
Japão
Brasil
(em milhões
6
de US$)
população
(hab)
7
Carga
Tributária
(%)
8
(A)
(B)
(C)
51.736
382.983
309.252
405.440
470.400
381.880
238.128
494.622
794.777
2.675.915
227.781
12.133
2.118.264
3.352.742
997.201
14.256.275
1.336.427
2.183.607
1.464.040
5.068.059
1.574.039
502.207
4.892.900
5.540.241
9.366.092
10.827.519
8.372.930
5.364.600
7.782.900
16.604.568
65.447.374
4.459.300
317.900
60.340.328
81.757.600
22.395.379
309.794.000
34.182.000
62.041.708
46.951.532
127.380.000
193.257.000
36,9
43,4
48,9
48,2
44,4
41,9
43,0
29,7
38,0
43,6
32,2
41,4
43,3
36,2
30,6
28,3
33,3
36,6
37,2
27,9
34,7
Recursos Gov
Disponíveis p/ hab
(US$)
(D) = (A) x (C) / (B)
38.013,38
33.970,57
27.295,60
20.864,85
19.289,52
19.110,12
19.087,17
18.875,06
18.188,69
17.826,52
16.447,76
15.800,76
15.200,59
14.845,01
13.625,29
13.023,25
13.019,43
12.881,66
11.599,68
11.100,55
2.826,24
Fontes: FMI, OCDE, RFB e Wikipedia
A partir desta comparação* observa-se em que erro poderíamos estar cometendo
ao comparar serviços públicos utilizando o conceito de carga tributária.
Os EUA apesar ter uma carga tributária 19% menor que a do Brasil, os
governantes têm 4,5 vezes mais recursos para investir em cada cidadão
(educação, saúde, segurança...), todo ano.
Enquanto o governo brasileiro (União+E+DF+M) tem quase de US$ 3 mil para
gastar com cada cidadão, Luxemburgo tem a disposição US$ 38 mil, Noruega
US$ 34 mil, Dinamarca U$ 27 mil, Suécia US$ 20 mil, Bélgica e Áustria US$ 19
mil, França US$ 18 mil, Itália US$ 15 mil, ... as diferenças são chegam a ser
maiores que 1200%.
Os países que aparecem no título da matéria que utilizamos como exemplo, todos
têm uma arrecadação per capita (ou recursos disponíveis para investir por
habitante) muito maior que a nossa (Suíça US$ 19 mil, EUA US$ 13 mil, Japão
US$ 11 mil), exceto o México (US$ 1,6 mil). Ou seja, apesar de deterem CT
menores que a brasileira, arrecadam muito mais recursos para garantir bons
serviços públicos.
Na comparação com os 30 países do OCDE, o Brasil ficaria em antepenúltimo
lugar, só a frente de Turquia e México. Ou seja, o Brasil tem menos recursos
disponíveis que Polônia, Coréia, Eslováquia, Hungria, República Tcheca,
Grécia... isso mesmo, Grécia aquela que acabou de quebrar! Ela tinha 3,5 vezes
mais recursos para investir em cada cidadão que o Brasil.
Além disso, devemos lembrar que os países desenvolvidos têm toda a infraestrutura já construída (ferrovias, rodovias, portos, aeroportos, hospitais, escolas,
telefonia, saneamento básico, etc) e se dedicam prioritariamente a manutenção
do sistema. Enquanto no Brasil muito do dinheiro tem que ser utilizado na
construção da infra-estrutura básica (casas, escolas, hospitais, saneamento
básico, estradas, portos,...), além de boa parte dos recursos devem ser utilizados
para honrar os juros de dívidas.
Esses dados não são conclusivos, mas deixa claro que não dá para aceitar o ponto
de vista simplista da mídia em geral: “Carga Tributária Brasileira é elevada e
insuportável”. O primeiro indício que a CT é suportável é que o país vive nos
últimos anos um bom ritmo de crescimento.
Nossa mídia não apresenta dados minimamente suficientes e certamente não
apresentam o problema de forma isenta. Muitas vezes esquecemos que as
empresas de jornalismo são... empresas! E, sendo parte da iniciativa privada é
normal que prevaleça o interesse privado sobre o interesse público.
Precisamos de uma reforma tributária? Claro, que torne a tributação mais justa
(progressiva), mais simples e mais eficiente. A CPMF que tinha duas dessas
qualidades caiu por terra. Foi uma perda lastimável, provavelmente era o tributo
com o menor custo arrecadatório – um jeito simples de visualizar isso é observar
que a Derat/Defis, para cuidar da cidade de São Paulo, têm cerca de 10x mais
servidores que a Deinf que cuida de quase todas as entidades financeiras do
Brasil, ambas arrecadavam praticamente os mesmos valores de tributos em 2007.
Porém, houve um batalha diária para que se derrubasse a CPMF, diziam que com
ela, os preços cairiam. A CPMF caiu, o tempo passou e os preços nunca caíram.
Não vejo com bons olhos essa pressão diária de se reduzir a carga tributária, pois
vemos que os países onde encontramos maior igualdade social são os que
possuem maior carga tributária.
Devemos observar que atualmente os investimentos do governo na economia tem
tido grande relevância para o crescimento econômico. Sobre isso há dois
aspectos que devemos grifar:
1. O Estado investe mesmo que não haja retorno financeiro, mesmo que não
haja lucro. O investimento do Estado está ligado em geral a uma
necessidade social, econômica e não ao lucro. Ex: educação pública,
saúde pública; investimento em infraestrutura em locais pouco habitados
etc;
2. O Estado consegue se programar para grandes investimentos que, em
geral, é tipo como grande risco para as empresas. Ex: construção de
grandes hidrelétricas, siderúrgicas, ferrovias etc.
Provavelmente uma montadora de veículos ache mais importante investir
milhares de reais para mudar o formato de um pára-choque que investir em
saneamento básico para milhares de pessoas de baixa renda.
Fico triste em ver que há colegas, apesar de trabalharem na RFB, parecem que
foram seduzidos por essa visão de mundo que a grande mídia nos "vende"
diariamente como a melhor saída possível. Que seria importante reduzir a
tributação numa TV de 60 polegadas, num Home Theather, num automóvel e em
muitas outras coisas por um raciocínio primário: “nossa como seriam mais
baratas as coisas”, como se o tributo fosse uma imposição inútil para a vida em
sociedade e que pudesse ser descartado. Esquecem que é a tributação, de forma
geral, que nos permite viver em sociedade, pois ela que mantém as instituições
de Estado, que custeia toda a infra-estrutura que utilizamos (ruas, avenidas,
estradas, portos, aeroportos, hospitais, água encanada, esgoto, escolas, justiça,
serviços públicos, etc.), sem ela estaríamos muito próximos da barbárie.
* A comparação apresentada apresenta um problema de metodologia que porém não afeta as proporções dos
valores que os países arrecadam por habitante. Os dados do PIB são de 2008, as cargas tributárias são de
2007 e a população dos países são de 2010.
1
“Para Hillary Clinton, carga tributária contribui para progresso do Brasil”, Alessandra Corrêa BBC Brasil - 12 de maio de 2010 http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/05/100512_hillarybrasil_ac.shtml
2
“Greenspan: livre mercado é incapaz de se auto-regular”, José Manuel Rocha - Jornal Português P20 –
20 de outubro de 2008 - http://economia.publico.pt/Noticia/greenspan-livre-mercado-e-incapaz-de-seautoregular_1347333
3
“Subprime” – The Last Laugh (John Bird, Jonh Fortune) –
http://www.youtube.com/v/CmGTnveyG7E&#038
4
“Carga Tributária no Brasil – 2008” – RFB – junho de 2009 http://www.receita.fazenda.gov.br/Publico/estudotributarios/estatisticas/CTB2008.pdf
5
“Carga tributária brasileira supera dos EUA, Japão, México e Suíça”, Alexandre Martello – G1
Globo.com – 07 de julho de 2009 – http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL12212659356,00CARGA+TRIBUTARIA+BRASILEIRA+SUPERA+DOS+EUA+JAPAO+MEXICO+E+SUICA.html
6
“World Economic Outlook Database” – FMI – abril 2010 –
http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2010/01/weodata/weorept.aspx?sy=2009&ey=2009&scsm=1&ssd
=1&sort=country&ds=.&br=1&c=512%2C941%2C914%2C446%2C612%2C666%2C614%2C668%2C311
%2C672%2C213%2C946%2C911%2C137%2C193%2C962%2C122%2C674%2C912%2C676%2C313%2
C548%2C419%2C556%2C513%2C678%2C316%2C181%2C913%2C682%2C124%2C684%2C339%2C2
73%2C638%2C921%2C514%2C948%2C218%2C943%2C963%2C686%2C616%2C688%2C223%2C518
%2C516%2C728%2C918%2C558%2C748%2C138%2C618%2C196%2C522%2C278%2C622%2C692%2
C156%2C694%2C624%2C142%2C626%2C449%2C628%2C564%2C228%2C283%2C924%2C853%2C2
33%2C288%2C632%2C293%2C636%2C566%2C634%2C964%2C238%2C182%2C662%2C453%2C960
%2C968%2C423%2C922%2C935%2C714%2C128%2C862%2C611%2C716%2C321%2C456%2C243%2
C722%2C248%2C942%2C469%2C718%2C253%2C724%2C642%2C576%2C643%2C936%2C939%2C9
61%2C644%2C813%2C819%2C199%2C172%2C184%2C132%2C524%2C646%2C361%2C648%2C362
%2C915%2C364%2C134%2C732%2C652%2C366%2C174%2C734%2C328%2C144%2C258%2C146%2
C656%2C463%2C654%2C528%2C336%2C923%2C263%2C738%2C268%2C578%2C532%2C537%2C9
44%2C742%2C176%2C866%2C534%2C369%2C536%2C744%2C429%2C186%2C433%2C925%2C178
%2C746%2C436%2C926%2C136%2C466%2C343%2C112%2C158%2C111%2C439%2C298%2C916%2
C927%2C664%2C846%2C826%2C299%2C542%2C582%2C967%2C474%2C443%2C754%2C917%2C6
98%2C544&s=NGDPD&grp=0&a=&pr.x=15&pr.y=10 (para acessar, copiar o endereço e colar no
navegador).
7
“List of countries by population” – Wikipedia –
http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_population
8
“Revenue Statistics 1965-2007” – OCDE – 2008 - http://www.oecd.org/dataoecd/48/27/41498733.pdf
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Considerações sobre a Carga Tributária Brasileira