Transtornos específicos da aprendizagem Monica Andrade Weinstein (∗) ∗ Fonoaudióloga, Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana (UNIFESP), coordenadora do projeto Individualmente no Núcleo Especializado em Aprendizagem da Faculdade de Medicina do ABC (NEA-FMABC) e no Instituto Cefac, Centros de Referência do Instituto ABCD. De acordo com o código internacional de doenças (CID 10), os transtornos de aprendizagem “(...) são transtornos nos quais os padrões normais de aquisição de habilidades são perturbados desde os estágios iniciais do desenvolvimento. Eles não são simplesmente uma consequência de uma falta de oportunidade de aprender nem são decorrentes de qualquer forma de traumatismo ou de doença cerebral adquirida. Ao contrário, pensa-se que os transtornos originam-se de anormalidades no processo cognitivo, que derivam em grande parte de algum tipo de disfunção biológica” (CID – 10,1992: 236). Para algumas pessoas, os anos escolares estão naturalmente encadeados em um desenvolvimento contínuo e crescente de suas habilidades acadêmicas e seu desempenho reflete esse percurso. Para esses alunos, aprender da maneira como as escolas ensinam, é natural. Mas não é assim para todos. A educação de alunos com transtornos específicos de aprendizagem (TEA), em especial a dislexia e a discalculia, tem trazido desafios aos métodos pedagógicos e propostas curriculares vigentes em nosso país. A situação ainda é muito adversa, expondo alunos e familiares a níveis críticos de risco emocional e financeiro. Em decorrência da natureza neurobiológica de suas dificuldades, as crianças e jovens com TEA têm que trabalhar com fragmentos de informação, na difícil tarefa de tentar atribuir um padrão à informação que recebem. Esse universo “fragmentado” contribui para reforçar o senso de frustração construído ao longo de uma vida escolar sofrida, marcada pelo fracasso. Com os recursos cognitivos ocupados em lidar com sua dor psíquica, o jovem não pode avançar em seu processo de aprendizagem e, então, se vê aprisionado no sistema escolar: como não tem as ferramentas, não consegue aprender pela metodologia convencional e, como não aprende, não pode ser legitimado como sujeito que tem interesse em aprender. No projeto Individualmente (www.individualmente.com.br) acreditamos que o dilema atual da diversidade de alunos versus a eficiência do ensino pode ser abordado pelo ângulo da customização da aprendizagem. À medida em que o aluno com TEA puder individualizar seu percurso de aprendizagem e desenvolver habilidades metacognitivas para adquirir autonomia na gestão de sua aprendizagem, ele terá condições de construir uma autoimagem de aprendiz produtivo e minimizar o sentimento de não pertencimento ao ambiente escolar. Em outras palavras, poderá ser mais atuante no planejamento de suas futuras ações na vida adulta, sem sentir-se vencido pelos seus “limites”. Estima-se que 6 % da população mundial possua algum tipo de transtorno específico de aprendizagem (TEA). Esses transtornos persistentes manifestam-se muito cedo na vida e não decorrem da falta de oportunidade de aprender, de deficiência intelectual ou sensorial ou de doenças adquiridas. Quase sempre, resultam em muito sofrimento para o indivíduo e sua família. Se não houver uma intervenção personalizada e de longo prazo, a defasagem de desempenho na escola aumenta com o passar dos anos, resultando em prejuízos pessoais irreparáveis tais como: abandono escolar, transtornos psico-afetivos, inadaptação social e subemprego, para citar alguns. Estatísticas americanas indicam que 40% dos jovens com TEA não concluem o ensino médio naquele país. Os TEA são classificados em subtipos, dependendo da área da aprendizagem mais afetada: transtorno de leitura, transtorno de expressão escrita, transtorno de habilidades matemáticas, transtorno não verbal e transtorno de linguagem, entre outros. É mais fácil estudá-los e explicá-los dessa forma, mas, na realidade, um indivíduo com transtorno específico de aprendizagem nunca será igual a outro, haverá sempre uma interação entre suas parcelas de “dificuldades” e de “aptidões” inatas e do meio familiar, educacional e sócio-cultural em que ele está inserido, resultando numa trama única. Apesar de únicos na manifestação de suas dificuldades, crianças e jovens com TEA compartilham o fardo do mau desempenho na escola e com frequência são rotulados por colegas, pais e professores como preguiçosos, pouco empenhados e incompetentes. Indivíduos com TEA precisam ser ajudados e, felizmente, existem meios para que isso aconteça. Não há atalhos, o caminho é longo e árduo, mas essas crianças e jovens e suas famílias não precisam empreender a jornada sozinhos. O primeiro passo é identificar as dificuldades e providenciar uma avaliação interdisciplinar da aprendizagem. A partir dos achados da avaliação e do diagnósitco, delineia-se um percurso de intervenções e orientações para aquela determinada criança e ou jovem. Algumas características comumente observadas em indivíduos com transtornos específicos de aprendizagem (adaptado de Davis, 2010) É inteligente mas não Tem dificuldade para manter apresenta bom desempenho a atenção, parece sempre acadêmico. desconcentrado, fora do ar. Frequentemente é rotulado Perde-se com frequência e de preguiçoso, burro, não tem noção da passagem imaturo ou problemático. do tempo. Tem melhor desempenho em Aprende melhor pela testes orais do que escritos. experiência prática, pela demonstração, observação e com apoio visual. Pensa mais com imagens e emoções do que com sons e palavras. Quadr o 1: Caract erístic as associ adas aos transt ornos específ icos de apren dizage m. Sente-se inferiorizado, burro, Confunde letras, palavras, sem auto-estima, tenta números, sequências e esconder suas dificuldades explicações verbais. com subterfúgios, frustra-se com facilidade. Frequentemente tem talento Pode contar em voz alta, mas para a arte, teatro, música e tem dificuldade para contar esporte e é bastante criativo. objetos, para estimar medidas, para resolver problemas matemáticos, para lidar com dinheiro e para ver horas no relógio. Tem excelente memória para eventos biográficos de longo prazo, mas memória muito ruim para sequências ou informações que não foram experimentadas. Seus erros e sintomas pioram dramaticamente na presença de confusão no ambiente e se apressado ou submetido a stress emocional. Tipos mais comun s D entro da diversi dade da classifi cação dos transtornos específicos de aprendizagem, existem alguns mais bem estudados e compreendidos e outras menos. Independentemente do nome e do grau de severidade, todos afetam negativamente a vida dos indivíduos que os possuem. O transtorno específico da habilidade de leitura, também conhecido como dislexia tem sido o mais estudado. Seguido dele, mas bem menos explorado, vem o transtorno específico das habilidades matemáticas, também denominado discalculia. Dislexia A dislexia é um transtorno de aprendizagem e, como tal, tem origem neurobiológica e caráter permanente. Caracteriza-se pela dificuldade com a fluência correta na leitura e pela dificuldade na habilidade de decodificação e ortografia. Alunos com dislexia podem apresentar: • leitura lenta e hesitante, trocas, acréscimos, inversões e omissões de letras, • falha na compreensão e interpretação do material lido, • fuga de situações que envolvam leitura, • escrita espelhada e ou lenta com repetição de letras, sílabas ou palavras, • escrita rasurada, com trocas visuais, auditivas espaciais, além de omissões, inversões e acréscimos. e Discalculia A discalculia é um transtorno de aprendizagem e, como tal, tem origem neurobiológica e caráter permanente. Caracteriza-se pela dificuldade para o entendimento e acesso rápido a conceitos e fatos numéricos básicos. Alunos com discalculia podem apresentar: • dificuldade para entender conceitos numéricos simples (tais como o local/valor e o uso das quatro operações); • falta de conhecimento intuitivo sobre números (valor e relação entre os números); • problemas para aprender, evocar e ou usar fatos e procedimentos numéricos ( ex.: tabuada, divisões longas); • mesmo que estes alunos produzam uma resposta correta ou usem um método correto, eles geralmente o fazem de maneira mecânica e sem confiança. Como lidar com a situação Os transtornos de aprendizagem (TEA) têm impacto negativo global na vida das crianças e jovens que os possuem e de suas famílias. Quanto mais precoce, intensiva, especializada e interdisciplinar for a intervenção que receberem, melhores serão os resultados. Não existe receita de bolo para tratamento dos TEA. Sabemos, comprovadamente, que alguns fatores contribuem positivamente para um bom prognóstico: • apoio incondicional da família e da escola; • avaliação, diagnóstico e acompanhamento de longo prazo por equipe interdisciplinar especializada (fonoaudiólogos, psicólogos, psicopedagogos, educadores, médicos) , com revisão da prioridade de abordagem de cada especialidade, sempre que necessário. É muito importante que a equipe interdisciplinar se reúna e discuta o caso em conjunto. Não é suficiente, passar em consultas isoladas com diversos especialistas e ouvir diagnósticos e previsões diferentes. É necessário haver integração da equipe que avalia e que trata a criança ou jovem com TEA e a definição conjunta de algumas metas mensuráveis para o acompanhamento da intervenção. Em alguns casos, quando há presença de outras condições associadas ao TEA, como o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ou um transtorno de ansiedade, por exemplo, pode haver necessidade de medicação. Por isso, o acompanhamento com médico neuropediatra ou psiquiatra é importante; • escola que esteja disposta a realizar as adaptações acadêmicas de acordo com o grau da dificuldade da criança ou jovem e a trabalhar em parceria com a equipe interdisciplinar e com a família; • frequentar ambientes promotores de psicológica e de senso de pertencimento. resiliência Pesquisas indicam que alunos com transtornos de aprendizagem têm mais sucesso no ensino superior quando desenvolveram sólidas habilidades de expressar suas vontades e ideias. Dentre as habilidades de auto-conhecimento importantes de serem estimuladas nos alunos com TEA, poderíamos citar: • conhecimento da sua forma de aprendizagem, • habilidade aprendizagem, • de articular suas necessidades de habilidade para comunicar essas necessidades aos outros. O papel dos pais Para poder ajudar um filho(a) com TEA, os pais precisam procurar entender a natureza das dificuldades da criança ou jovem, providenciar uma avaliação e diagnóstico interdisciplinar e realizar uma parceria de longo prazo com a escola e com profissionais especialistas na área da aprendizagem para, juntos, discutirem e planejarem a melhor abordagem para o desenvolvimento acadêmico, emocional e social de seu filho. O TEA é uma condição perseverante e manifesta-se cedo na vida escolar. A busca de ajuda para a superação dessas dificuldades tem que vir inicialmente dos pais e, quanto mais precoce, melhor. O papel da escola Quando houver suspeita de que um aluno possui algum tipo de TEA, a escola deve providenciar junto às famílias o encaminhamento para um diagnóstico interdisciplinar e incentivar a identificação e o tratamento desse aluno. Deve promover acompanhamento consistente e afirmativo para essas crianças e jovens e incentivar os professores a desenvolver programas que favoreçam a integração social e o uso de estratégias pedagógicas diferenciadas de abordagem para cada caso particular. Um plano individualizado para cada ano letivo deve ser discutido entre direção, coordenação, professores, pais e, se possível, o aluno, para garantir que ele tenha acesso às adaptações logo no início do ano. No ano seguinte, a coordenação e os professores precisam ter acesso ao plano que está sendo seguido e a seus resultados. Os tópicos a seguir são algumas sugestões de estratégias e adaptações para alunos com TEA; naturalmente, cada caso deve ser analisado em sua individualidade e a abordagem vai variar em função do tipo do transtorno e de sua severidade. A existência de um TEA, seu tipo e sua severidade precisam ser definidos no relatório da avaliação interdisciplinar da aprendizagem e serão monitorados no acompanhamento interdisciplinar de cada caso. Podemos afirmar, sem exagero, que todos os alunos com dislexia ou discalculia necessitarão de adaptações pedagógicas e ou curriculares em algum momento de suas vidas acadêmicas. Alguns deles precisarão desse apoio apenas por um período de tempo, outros até a conclusão do ensino médio ou superior e alguns durante toda a sua vida profissional. Lembrem-se de que não podemos penalizar um indivíduo por possuir uma forma de aprender que não corresponde às expectativas da escola e ou da sociedade. Em geral, a abordagem escolar do TEA deve ser: preventiva, individualizada, multissensorial e sequencial. Seguem algumas sugestões: • A coordenação deve informar aos professores de todas as disciplinas sobre o fato do TEA e discutir com cada um deles quais estratégias serão empregadas. • Permitir gravação da aula, ou participação de um tutor para ajudar a tomar notas. • Oferecer para o aluno com TEA tempo extra para completar as tarefas e avaliações. Os TEA roubam tempo das pessoas e as acomodações lhes devolvem esse tempo. • Evitar sobrecarga da memória de trabalho, designando tarefas que estejam dentro das habilidades dominadas. • Ter um “tutor” ou “tradutor” para acompanhar o aluno individualmente na escola e fora dela. • Certificar-se de que o aluno entendeu a matéria ensinada, solicitando-lhe que explique o assunto oralmente para o professor ou tutor, em situação individual. • Permitir que o aluno acompanhe seu progresso, que fatos ele domina e quais conteúdos ainda precisam ser aprendidos. • Dar tempo extra para o aluno processar a informação. • A família deve ser mantida informada sobre a evolução da criança e sobre as adaptações aplicadas e seus resultados. Políticas públicas Embora exista amparo legal constitucional para as necessidades educacionais específicas dos alunos portadores de transtornos de aprendizagem, entre eles a dislexia e a discalculia, na prática, ainda há muitas dúvidas relacionadas a como ajudá-los dentro e fora da escola. O debate envolvendo os indivíduos com TEA não pode ficar circunscrito à academia, é necessária a participação das famílias, professores e gestores públicos para que se implementem ações que permitam que essas crianças possam ir às escolas para, de fato, aprender. Referências American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4th ed., text revised. Washington DC: American Psychiatric Association, 2000. Butterworth, B & Yeo, D. (2004). Dyscalculia Guidance. London : Nelson. Butterworth, B. (2005). The development of arithmetical abilities. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 46(1), 3-18. 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