O Supremo e os embargos infringentes
Por Lucas Rosa: Advogado. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da
OAB/MS. Membro Consultor da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do
Conselho Federal da OAB.
Vivemos numa democracia. Diante disso, em qualquer tipo de acusação, não pode ser
imposto ao réu o dever de provar a própria inocência. Quem acusa tem a obrigação de
demonstrar a culpa, e não o contrário. Esse modelo de processo é próprio da
democracia constitucional e não podemos abrir mão dele, sob pena de admitirmos a
ditadura ou até mesmo o totalitarismo. Outra premissa advinda da democracia é que
todos têm o direito de ver seus processos judiciais serem julgados ao menos duas
vezes (como autor ou réu), para que a primeira decisão possa ser confirmada ou
revista pelo próprio Poder Judiciário. A ideia aqui é a de que o julgador é pessoa falível
e pode errar. Assim, normalmente, as ações iniciam-se nos juízos de primeiro grau, nas
conhecidas Varas Criminais (primeira instância). Depois disso, condenados ou
absolvidos os réus, cabe recurso ao Tribunal (segunda instância). Decidindo o Tribunal,
caberá novo recurso, do réu ou da acusação, a dois Tribunais Superiores, o Superior
Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Somente depois de ultrapassadas
todas essas etapas é que uma pessoa poderá ser considerada culpada, se mantida a
condenação pelos últimos órgãos jurisdicionais.
Ninguém pode ter mais ou menos direitos que os outros. Para garantir a igualdade, é
obrigatória a possibilidade de saber antecipadamente tudo o que poderá ocorrer no
processo. Ou seja, é garantido o direito de conhecer previamente os atos que serão
praticados no procedimento mediante o qual seremos acusados, isto é, ter a
segurança e a certeza de quais são os recursos dos quais poderemos dispor para a
defesa, quais os recursos poderemos utilizar para impugnar eventual decisão que
imponha uma condenação. A palavra aqui é previsibilidade: isso garante que o Estado
tratará a todos com igualdade, quando acusados.
No caso julgado pelo STF, discutiu-se a possibilidade de os acusados da Ação Penal 470
(Mensalão) utilizarem o recurso denominado embargos infringentes. Este recurso
possibilita que aquelas questões sobre as quais os Ministros do Tribunal divergiram
sejam analisadas novamente, isto é, faz-se um novo julgamento, mas apenas quanto às
condenações das quais ao menos quatro Ministros discordaram. Significa que a
matéria será totalmente reanalisada, todavia, apenas nas questões sobre a quais os
Ministros tiveram conclusões diferentes e, mesmo assim, em número mínimo de
quatro Ministros.
Aqui a premissa é de que no Brasil (e no resto do mundo) a regra é que a todos é
garantido, no mínimo, aquilo que o mundo jurídico chama de “duplo grau de
jurisdição”, ou seja, o direito de ver seu processo judicial ser julgado ao menos duas
vezes. Ocorre que para algumas situações a nossa legislação determina que o processo
seja iniciado já nos Tribunais. No STF, considerando que não há nenhum outro órgão
superior a ele, haverá apenas um julgamento, o acusado não terá o direito a dois,
como normalmente todos têm. Em razão disso, a legislação previu e determinou para
esses casos – já que o processo será julgado apenas uma vez, e tendo em vista que as
condenações criminais causam graves consequências – que, se houver divergência de
quatro Ministros quanto à condenação ou a qualquer outro aspecto do processo, o
acusado terá o direito de ser julgado novamente.
A questão debatida no julgamento e que causou grande discussão na sociedade
brasileira era a seguinte: esse recurso pode ser utilizado pelos réus que são
processados nas ações penais originárias do Supremo? Prevaleceu a tese que
entendeu cabíveis os embargos infringentes. Apesar de a votação ter sido apertada –
seis contra cinco – a admissão do recurso levou em consideração inúmeras razões e
motivos jurídicos, sobretudo o fato de que já estava estabelecido previamente na lei
brasileira e que todas as pessoas podem utilizá-lo, desde que sejam acusadas em ação
penal originária perante o STF. O mais importante de tudo: o Supremo apenas admitiu
a utilização do recurso de embargos infringentes, pois ainda não analisou o mérito das
razões, isto é, ainda não fez o novo julgamento. Uma coisa é aceitar o uso de um
recurso, outra coisa é acolher os argumentos que foram levantados nele. O STF,
naquele julgamento, apenas considerou ser possível aos réus apresentarem os
embargos infringentes.
Objetivamente, até agora, apenas um réu apresentou. Os outros farão isso na próxima
oportunidade, isto é, depois que a decisão (acórdão) do último julgamento, que
envolveu também outras questões, for publicada. Isso deverá acontecer no final deste
ano, início do próximo. Aí então, quando os outros réus recorrerem (e poucos
poderão), o Supremo irá acolher ou não seus argumentos.
Em outras palavras, o STF disse que poderá julgar novamente (se os réus recorrerem),
mas isso não significa que concordará com os argumentos apresentados. Assim, as
condenações e as questões a respeito das quais houve divergência entre os Ministros
poderão ser mantidas, como poderão também ser modificadas. De toda sorte, o que
decidiu o Supremo aplica-se a todos nós, cidadãos brasileiros, não apenas aos réus do
Mensalão. Não é privilégio deles ou de alguns, mas sim direito de todos. No mais, se
eles recorrerem, toda a nação poderá acompanhar novamente a atuação do STF.
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