Doutrina Resolução do Contrato por Onerosidade Excessiva ÊNIO SANTARELLI ZULIANI Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Professor de Direito Civil das Faculdades COC/Ribeirão Preto, do Curso de Especialização GV/Law e dos Cursos Jurídicos Marcato. SUMÁRIO: 1 A intervenção nos contratos: passado e presente; 2 Onerosidade excessiva; 3 O acontecimento perturbador das relações; 4 Momento da transformação da anormalidade em antijuridicidade; 5 Atuação do juiz; Referências. 1 A INTERVENÇÃO NOS CONTRATOS: PASSADO E PRESENTE Contrato é a operação jurídica que dois ou mais sujeitos realizam para intercâmbio de seus interesses e metas, criando vínculos de deveres e direitos que os empenham ao cumprimento, desde que, durante a sua execução, não sobrevenham profundas alterações das condições estabelecidas e mentalizadas como ponderáveis pela lógica da probabilidade. Quando circunstâncias inesperadas interferem no ciclo das projeções estimadas pelo risco e pela consciência razoável do esperado, poderá suceder o fim precoce do contrato, pela asfixia da sua chance de sobrevida. As partes são livres para renegociar os efeitos das cláusulas alteradas e, caso isso não ocorra, estão legitimadas a recorrer ao Judiciário 1 em busca de solução para o conflito contratual, na forma do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. Suprindo uma lacuna do CC de 1916, o art. 478 do novo Código Civil diz que, nos contratos de execução prolongada, poderá advir resolução quando a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. O art. 479 do CC ressalva a oportunidade de a parte favorecida evitar a resolução, ofertando meios que libertem as prestações dos desajustes supervenientes, sendo que o art. 480 do CC autoriza o juiz a excluir o excesso que fez claudicar a balança da justiça contratual, ainda que nos contratos unilaterais. 86 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Já se fazia tardar, porque esses dispositivos eram esperados e cumpre louvar os esforços dos juristas que, com antecedência meritória, alertavam para a incidência da imprevisão. Arnoldo Medeiros da Fonseca 2 advogou a tese de que caberia ao juiz intervir para "resolver o vínculo contratual" [e não rever o contrato para estabelecer novas condições] quando houvesse "acontecimentos imprevistos e imprevisíveis, alterando radicalmente o ambiente objetivo existente ao tempo da formação do contrato e acarretando para um dos contratantes uma onerosidade excessiva e não compensada por outras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda esperáveis". Paulo Carneiro Maia 3 foi mais abrangente: Tenhamos presente que, diante de acontecimentos imprevisíveis e excessivamente onerosos, motivando alterações graves, o contrato perdeu seu equilíbrio. Esse contrato, então, não se torna inútil, mas apenas desequilibrado. A proteção ao devedor, frente a essa agravação ou maior onerosidade a seu cargo, consistirá, por lógico, no restabelecimento do equilíbrio perdido, nunca à rescisão, como escopo. Se defrontarmos um desequilíbrio que desejamos corrigir, a solução para isto consiste no concurso a fim de se restaurar o equilíbrio primitivo. Clóvis Beviláqua afirmava 4 que a regra rebus sic standibus é de justiça contra a rigidez do princípio garantidor e conservador pacta sunt servanda. A doutrina distinguia o efeito da circunstância que interferia no rumo do contrato; se gerasse uma impossibilidade, incidiriam a força maior e o caso fortuito do art. 1.058 do CC de 1916 e, se as circunstâncias apenas modificassem as condições de exigibilidade, seria oportuno modificar as formas de se exercitar o ajuste, que Jorge Americano 5 chamou de "cláusula rebus sic standibus propriamente dita". A cláusula rebus sic standibus responde, agora, pelo nome de teoria da imprevisão, cuja função é bem franca: atuar criteriosamente para impedir que os objetivos econômicos do contrato se frustrem pelas surpreendentes adversidades que radicalizam a incoerência da vantagem excessiva para um e o sacrifício cruel para outro. A perplexidade do resultado que não se explica diante da desproporção ao objeto projetado no momento da celebração do contrato impulsiona a atividade intervencionista do juiz. RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 87 O contrato não perdeu a segurança que dele se espera como instrumento legal de que os compromissos serão cumpridos, tal como assumidos (pacta sunt servanda), apenas porque se institucionalizou a previsão. O contrato, afirmou Enzo Roppo 6, "não está morto, mas está simplesmente diferente de como era no passado". O CC, no art. 427, estabelece que a proposta do contrato obriga o proponente, de maneira que nesse instante já nasce uma vinculação, cujo desrespeito ensejará perdas e danos; concluído o negócio e formalizado o contrato (art. 428, I), os contratantes são obrigados a guardar, também na execução, os princípios da probidade e boa-fé (art. 422). Darcy Bessone 7 enfatiza que, quando se diz que o contrato faz lei entre as partes, está se pretendendo apenas reforçar o sentido da coercibilidade e da inderrogabilidade "para significar que o contrato é coercitivo, não o podendo modificar ou extinguir a vontade de uma só das partes". O art. 1.134 do Código Civil francês é sempre citado como referência do princípio pacta sunt servanda, o que é verdadeiro, embora os doutrinadores se apressem em ressalvar a possibilidade de modificação nos contratos de trato sucessivo em virtude de variações graves das circunstâncias 8. O Código Civil italiano prevê igualmente la rizoluzione per eccessiva onerosità (art. 1.467) e não dispensa a intercorrência de um acontecimento extraordinário e imprevisível, o que encaminhou Pachioni 9 a situar, como exemplos, a guerra e a consequente desvalorização da moeda. Vale anotar que não se requer a vantagem extrema para um dos contratantes para o fim de que o juiz possa remediar o desajuste, como disposto no art. 478 do CC. O Código Civil espanhol não especifica a matéria, embora admita a rescisão pela lesão (art. 1.291, § 1º), sendo que os princípios gerais do contrato animam doutrinadores a conclamar postura edificante dos tribunais para alteração dos contratos desvirtuados por onerosidade excessiva 10. O Código Civil português admite a resolução ou modificação do contrato em virtude de "alteração anormal" (art. 437), expressão que diferencia o texto dos demais que exigem a imprevisibilidade, o que proporcionaria a inserção, como evento anormal, "a desvalorização abrupta e excessiva da moeda, falta ou encarecimento inesperado de certas matérias-primas utilizadas no fabrico de determinados artigos, o descrédito ou a desconfiança lançada sobre certo produto, que provoca o súbito abaixamento da sua venda, o aparecimento de um substituto, muito mais econômico desse produto, a valorização anormal de certa obra ou tipo de obras, a desvalorização de um prédio a mercê de corte inesperado de uma via de comunicação" 11. 88 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA A nossa ordem jurídica se arrependeu tanto pela ausência de regras sobre a justiça comutativa dos contratos que, para expiar possíveis culpas, construiu regulamentos para bem servir a essa causa. Assim, pelo art. 6º, V, da Lei nº 8.078/1990, está licenciada a "modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas", texto que se completa com o que consta do art. 52, § 1º, III. O art. 478 do CC dispõe: "Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato". A possibilidade de modificação das condições se encontra nos arts. 479 e 480, cumprindo, ainda, observar o que dispõe o art. 317 do CC: "Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor da prestação". O eminente Renan Lotufo 12, que considera ter o dispositivo (art. 317) o histórico da teoria da imprevisão, anotou que ele "não se restringe às questões contratuais, em que, pelo princípio da justiça contratual, o equilíbrio das prestações deve ser mantido, como decorrência da equitatividade, da igualdade. Por outro lado, por ter aplicação mais ampla (a toda e qualquer obrigação), não colide nem invalida as disposições expressas relativas à onerosidade excessiva, estipuladas para serem de aplicação estrita ao campo contratual". O regime adotado é abrangente e começa pelas relações de consumo. Nessas, que não serão analisadas aqui, basta a desproporcionalidade imposta por acontecimentos supervenientes para que o juiz modifique a cláusula que onere de forma excessiva o consumidor (art. 6º, V, da Lei nº 8.078/1990). Para os particulares, o sistema permite que se invoque o art. 317 do CC, que é bem específico como remédio adequado para que o contratante possa pleitear a modificação das prestações excessivamente onerosas, sem necessidade de provar o enriquecimento da contraparte (dado objetivo da equivalência das prestações, como anota Ruy Rosado de Aguiar Júnior 13). Para a resolução, indica-se o art. 478 do CC, cuja interpretação deve considerar a base do negócio. A base objetiva do negócio é uma teoria que permite que o juiz complemente o contrato de execução continuada, analisando, pelo sentido e finalidade dos acertos, a vontade hipotética para regulamentar uma situação futura não regulamentada, tendo Karl Larenz 14 como precursor e que nos explica o seguinte: Esto es exacto si por voluntad hipotética de las partes, no se entiendi lo que cada una de ellas hubiese supuestamente querido en tal caso considerando sólo su propio interés, sino lo que ambas partes hubiesen querido o aceptado honestamente como justo equilíbrio de intereses [...] Por tanto, la voluntad hipotética de las partes es un criterio normativo que pressupone la honestidad de los contratatantes y a esse respecto se halla orientado por el concepto de justicia contractual compensatoria. RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 89 O juiz examina a vontade declarada e os propósitos para, com esses dados objetivos, definir o sentido contemporâneo da cláusula que saiu do eixo funcional. Não é uma intervenção leviana ou imprudente, mas, sim, direcionada aos primados da boa-fé objetiva (art. 422 do CC) e da função social do contrato (art. 421 do CC). A intervenção judicial é uma evolução do direito contratual e a alteração das prestações desproporcionais soa como a própria essência da modernização dos conceitos jurídicos que se adaptam aos novos tempos e às novas realidades sociais, providência obrigatória no sentido "de tornar o direito mais eficiente, de podar-lhe as injuridicidades relativas, de adequá-lo com maior intensidade à realização de suas finalidades de justiça" 15. 2 ONEROSIDADE EXCESSIVA Os contratos são retratos fiéis de condutas assumidas. Eles espelham muito mais do que a simples vontade de contratar, porque expressam resultados concretos que repercutem na sociedade e, por isso, são observados pela organização jurídica como instrumentos de uma função distributiva da riqueza, cuja circulação constitui o combustível da roda da vida. O contrato modifica o patrimônio dos envolvidos e repercute nas expectativas de terceiros anônimos, exatamente porque a movimentação econômica que ele produz agita o mercado como um todo, como se fosse fermento para que o quadro favorável do crescimento e do consumo evolua. Todo esse círculo dinâmico funciona com o princípio de que somente os negócios autorizados pela lei e pelas regras de justiça contratual são aceitos como peças dessa engrenagem. O sentido do art. 170 da CF agradece. Os contratos lícitos são oferecidos para que os sujeitos manejem, com liberdade, seus interesses e projetem, nas suas regras, as aspirações desejadas, sejam elas acanhadas ou literalmente ambiciosas. Não há limite que cerceie a autonomia de vontade e qualquer óbice que a ela se antepuser. Delimitando a iniciativa, exercerá um excessivo controle da capacidade de autodeterminação, com nítida ofensa aos valores do livre arbítrio (art. 5º, II, da CF). Contudo, no instante em que o contrato se formaliza, o Estado assume o seu papel intervencionista e pode se intrometer para, de maneira abstrata, administrar uma tendência com potencialidade predatória ou, por meio dos juízes (in concreto), controlar os efeitos adversos que ultrapassam os riscos que são peculiares ao tipo contratual escolhido. 90 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Seria ingenuidade aguardar absoluta integridade dos contratantes, porque não se domina a genialidade do homem, marco divisório do bem e do mal no campo dos contratos, de modo que devemos, resignadamente, gerir os colapsos do erro, do abuso do direito, do dolus malus e da insensibilidade dos que se aproveitam de circunstâncias supervenientes que alteram a base do negócio para, como se fosse correto pelos primados da boa-fé, auferirem vantagens inesperadas em detrimento do outro que carrega o ônus multiplicado. A onerosidade excessiva é um fato que prova, com objetividade ímpar, uma antijuridicidade do contrato em curso. É antijurídico porque o seu poder desagregador gera um desequilíbrio incomum que exige uma renegociação moderadora que, se não acontece voluntariamente para adequar a prestação em aberto, caracteriza abuso da parte que dele se beneficiará e dano para aquele que suportará os seus efeitos maléficos. A onerosidade excessiva altera a base do negócio, transformando o sentido da vontade manifestada. Onerosidade é a metamorfose surpreendente da prestação a cumprir, sinônimo de excesso de peso da carga econômica do contrato de execução continuada ou diferida, constituindo um desafio a ser superado para salvaguarda dos interesses legítimos. A onerosidade excessiva dificulta ou impede o cumprimento se continuar irradiando os seus efeitos. A onerosidade que interfere com o cumprimento do contrato é aquela relacionada, de alguma forma, com o negócio e ou sua causa e que, embora surja do nada, depende, para sua mutação, da vontade alheia. O contratante, em caso de total inviabilidade de executar o contrato nas condições contemporâneas, poderá requerer a resolução por inutilidade da prestação, quando o juiz, atento ao sentido do art. 393 do CC, poderá exonerá-lo das consequências do forçado retorno ao status quo ante, sendo que são coadjuvantes, para bem julgar, os arts. 402 e 395, parágrafo único, do CC. Suponhamos a hipótese de encarecimento excessivo do custo de um apartamento em construção, o que provoca aumento dos valores das prestações a partir da metade do prazo, sem o que não se acompanha o aumento do preço da matéria-prima e o da mão de obra, totalmente escassas, impossibilitando o comprador de honrar o combinado (prestações reajustadas pelo índice da construção civil). O contrato se frustra sem culpa dos contratantes e a resolução passa a ser solução, com restituição do que foi pago pelo comprador, nos termos do art. 53 da Lei nº 8.078/1990, descontada a multa legal. RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 91 O que prepondera na abordagem é a técnica de preservação da funcionalidade do contrato diante desse mal que desafia a perfeita execução, o que recomenda certeza do diagnóstico e precisão da medida indicada para expungir a onerosidade excessiva, sem resíduos aos predicamentos elementares da vontade. As partes estão ansiosas para que se reequilibrem as prestações e urge que se promova essa adaptação sem traumas para os contratantes, que já estão saturados por um acontecimento anormal. Se não for aberta uma instância revisora, diante da desproporcionalidade, é permitido supor, diante da manutenção dos resultados adversos e imprevistos, que uma segunda e diferente espécie de contrato surgiu. E para abrandar o discurso aterrorizante fundado na insegurança provocada pela possível ingerência do juiz, lembrem-se da velha, sábia, e ainda atual ponderação de Arthur Rocha 16 no sentido de que "o Estado tem necessidade de autorizar a intervenção, porque o sistema estimula a confiança nos casos de expectativas longas e problemáticas, afastando os receios de desequilíbrios maiores e, assim, encoraja os empreendimentos, vencendo as incertezas dos períodos agitados como os presentes dias". 3 O ACONTECIMENTO PERTURBADOR DAS RELAÇÕES João Baptista Villela 17 lembrou que a evolução do Direito Civil conduz, necessariamente, ao enfraquecimento do direito individual imposto no contrato, para fortalecimento do interesse bilateral negociado, tal como ocorreu no "direito comercial, que passou de uma fase subjetivista para uma fase objetivista, isto é, deixou de ser o direito do comerciante para se tornar o direito dos atos do comércio, aspirando hoje a se constituir no direito da empresa", enaltecendo a ideia da cooperação social dos contratos porque "contrato cujas partes não estejam satisfeitas é fonte de atritos, discórdias e baixo rendimento". O final do opúsculo é digno de transcrição: Claro que tudo isso deve ser atendido com adequada prudência, de modo a não favorecer o abuso e a fraude, e, especialmente, de modo a assegurar os interesses do economicamente mais fraco. A hora é, pois, aqui, de intenso esforço e empenho criador. Aos juristas cabe assumir com realismo e coragem a tarefa de revisão do contrato, por modo a fazer dele não apenas uma expressão de liberdade, mas também um instrumento de libertação: dos homens e dos povos. Existem eventos que produzem resultados catastróficos para a humanidade e nem sempre eles atingem as execuções dos contratos. O fato que produz modificação nas condições de um negócio está, de alguma forma, ligado ao seu objeto ou à sua funcionalidade e por isso seus efeitos se associam. Uma greve dos aeroportuários, a qual inviabiliza pouso e decolagens, é um evento extraordinário e imprevisível e pode alterar determinadas relações contratuais dependentes do transporte aéreo, o que elimina a probabilidade de contratos independentes sofrerem alterações. Messineo 18 afirma que a excessiva onerosidade que permite a intervenção no contrato "debe ser su causa única o prevalente. Porque si no fuese su causa o fuese la causa secundaria, no legitima la resolución del contrato". 92 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Porém, haverá interferência em contrato de aluguel de prédio construído na região de um movimentado aeroporto, como hotel, especialmente se o preço da renda mensal tiver como base de cálculo um número definido de hóspedes. O locatário, diante da diminuição das reservas, será sacrificado caso se preserve o valor estabelecido sem cogitação desse imprevisto, o que torna justa a adequação permitida pelos arts. 478 e 479 do CC. Embora a prestação continue com seu valor pecuniário hígido, as demais condições se alteraram e agravaram a posição da parte, o que recomenda modificação para salvar o contrato, preparando-o para sua continuidade quando a normalidade for restaurada. Esse exemplo é bem ilustrativo de um equívoco do art. 478 do CC, qual seja, o de condicionar a incidência da teoria da imprevisão à da "extrema vantagem". Não há, na situação descrita, vantagem para o locador e, ainda assim, é necessário modificar o contrato para que tenha ele equilíbrio nas prestações equivalentes. Ademais, nem sempre se exige sacrifício econômico para que se reconheça o benefício da onerosidade superveniente, até porque o cumprimento forçado poderá atingir valores físicos e morais do devedor, como o agravamento de uma doença ou o não acompanhar o cotejo fúnebre de ente querido, exemplos fornecidos por Inocêncio Galvão Telles 19. O evento que rompe as expectativas das partes e que causa onerosidade excessiva é sempre algo impensado. Essa imprevisibilidade deve ser entendida como fenômeno que, embora capaz de se suceder - como quase tudo é possível acontecer, inclusive as piores fatalidades -, não foi ponderado pelos contratantes como sendo possível de interferir na conclusão do contrato. É mister cautela na valoração do fato propulsor de um efeito devastador ao contrato, porque o excesso de rigor na classificação de imprevisibilidade poderá restringir o campo de atuação do instituto, aproximando-o de situações que são típicas do caso fortuito e de força maior, e isso não é correto para o espírito do Código Civil. Estão fora da lista dos episódios que criam a onerosidade excessiva os comuns ou ordinários do cotidiano da política, do sistema econômico e do meio social, porque, sobre esses, o contratante, com discernimento do homem médio, deveria prever a inclemência deles, acautelando-se mediante adoção de regulamentos precisos e específicos que contornem seus impactos. O Código Civil não exclui, como fez o art. 1.467, segunda parte, do Código italiano 20, o acontecimento que se enquadra no risco normal da contratação, o que é dispensável, até porque se a onerosidade faz parte do objeto negociado, é claro que sua chegada dispensa anúncios prévios 21. RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 93 O acontecimento, para ser admitido como gerador de uma onerosidade excessiva, deve ser extraordinário, até porque os eventos triviais não são impactantes. A banalidade não se compatibiliza com a imprevisão. Porém, não cabe esperar que os acontecimentos sejam espetaculares, porque, se não for minimizado o conceito de magnitude, poder-se-á estagnar o instituto no reino da fantasia. A teoria da imprevisão é produto da humanidade e essa sua precedência descortina sua real probabilidade, competindo ao juiz admitir a sua ocorrência quando os efeitos clamam pelo reconhecimento de anormalidade. Nem sempre a mais cautelosa ponderação permite intuir o efeito imprevisível de um acontecimento previsível, e não será por isso que a parte sacrificada deixará de ser tutelada pelo Direito. Portanto, mesmo que exista um determinado risco (álea) no negócio (art. 458 do CC), o intérprete haverá de sentir, quando se demonstrar, que uma espécie de episódio, embora passível de acontecer, terminou eclodindo de forma extraordinária para a sequência do contrato, terminando por produzir um resultado inesperado e jamais cogitado pelo mais pessimista ou otimista dos contratantes. Nesse sentido, a posição de Silvio de Salvo Venosa 22: O mesmo podemos dizer no tocante à excessiva onerosidade, que será estudada a seguir, cujos princípios fundamentais dirigem-se aos contratos comutativos de duração, mas não impedem que, de acordo com as circunstâncias, essa teoria seja aplicada, também aos contratos aleatórios: basta que ocorram circunstâncias que refujam ao risco próprio do contrato, isto é, fora daquele programado e imaginado pelas partes ou da própria natureza do contrato. O contrato de renda permite a resolução (art. 810 do CC), o que encaminhou Ruy Rosado de Aguiar Júnior 23 a defender que, em princípio, não seria de excluir a onerosidade excessiva nos contratos aleatórios. A reflexão permite expor que o acontecimento, para ser criteriosamente definido como extraordinário e imprevisível, como deseja o art. 478 do CC, deverá ser modestamente avaliado no requisito ponderação e majestosamente analisado quanto aos seus efeitos, evitando-se, com a interpretação etimológica das expressões referidas, exclusão do rol de eventos da onerosidade excessiva, aqueles que, embora previsíveis, acarretaram imprevisíveis e impiedosas consequências. 94 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA O acontecimento, para ser classificado como anormal, deverá ser imponderável segundo as condições usuais e as peculiaridades dos sujeitos. O desemprego, para se dar um exemplo, não poderá ser aceito como produtor de onerosidade excessiva para um executivo com formação superior, embora possa ser admitido como atenuante na composição dos efeitos da resolução, por inadimplemento, de um financiamento habitacional de baixa renda. A desvalorização da moeda, em regime econômico instável, é presumida e não favorece a arguição de onerosidade excessiva, embora em data recente se tenha aplicado o instituto para evitar o sacrifício daqueles que, em contrato de leasing, apostaram na paridade cambial do real com o dólar 24. Para ser caracterizado como acontecimento extraordinário e imprevisível, o evento deve estar fora do círculo di fenomeni economici normali 25. Não custa recordar a advertência de Karl Larenz sobre a especialidade da revisão dos contratos por mutações do sistema monetário e que será reservada como solução extrema en épocas de las más difíciles conmociones econômicas 26. 4 MOMENTO DA TRANSFORMAÇÃO DA ANORMALIDADE EM ANTIJURIDICIDADE A onerosidade excessiva advém de uma anormalidade subsequente à da celebração do negócio e atinge a fase executória contra a vontade do devedor. No caso de o contrato ter sido cumprido, apesar do extraordinário peso suportado pela parte que não denunciou as condições adversas antes do final, não há o que remediar. Contrato cumprido induz satisfação e extinção do vínculo e sequer se poderá cogitar de repetição de indébito (art. 882 do CC). Portanto, existe um tempo certo para que o contratante reclame a intervenção do juiz para eliminar o foco de desequilíbrio das prestações, sendo que, em determinadas situações especiais, como a que será transcrita e que foi fornecida pela prática de Inocêncio Galvão Telles 27, a onerosidade poderá ser reconhecida e aplicada apesar de o contrato já se mostrar cumprido, total ou parcialmente: RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 95 Tratava-se de uma hipótese em que um empreiteiro civil pretendia a majoração do preço convencionado. A obra achava-se já um pouco adiantada, mas não muito, quando se desenhou um forte movimento de inflação, que se antevia verdadeiramente explosivo, como veio a acontecer. O empreiteiro apressou-se a prosseguir e concluir os trabalhos, a fim de apanhar a onda inflacionista ainda antes de ela atingir os pontos mais altos. Terminada a obra, intentou ação judicial a pedir a elevação do preço em conformidade com a inflação média em vigor durante o período dos trabalhos. A alteração das circunstâncias invocada foi atendida unanimemente pelo Tribunal, que considerou correto o procedimento do empreiteiro, do qual resultou inclusive proveito para o seu cliente. Compete analisar se o sacrifício do cumprimento se deu com a intenção (boa-fé) de não frustrar o escopo do contrato, o que permite, em sendo reconhecido o nexo de causalidade e a lealdade da parte, a ressalva ao exercício do instituto que promete reparar o dano da onerosidade que foi concretamente suportada. Os contratos de execução instantânea e que operam a imediata tradição não estão sujeitos à revisão de suas cláusulas, porque não há intervalo temporal suficiente para que sobrevenha uma anormalidade derivada de fato superveniente. Somente os contratos de duração, tanto os de execução prolongada ou diferida (prazos para pagamento e de entrega de bem para o futuro) quanto os de prestação de serviços sem termo são, evidentemente, suscetíveis às influências de acontecimentos externos. Assim, se foi concedido prazo de 30 ou 90 dias para pagamento, é perfeitamente admissível que, nesse interregno, ocorra o acontecimento anormal que cause a onerosidade excessiva, agravando a situação do contratante. Messineo 28 admite isso expressamente, enquanto que Renato Scognamiglio admite até em caso de retardamento da execução de um contrato que se devia cumprir imediatamente, salvo se aquele que devesse cumprir tivesse sido constituído em mora 29. A questão da mora comporta um esclarecimento. De acordo com o art. 394, o inadimplemento de obrigação a termo constitui o contratante em mora. No caso de obrigações pecuniárias com vencimento certo, não há necessidade de interpelação. Haverá, sim, no caso de prestações de contrato de venda e compra de imóveis, por exigência legal (Decreto-Lei nº 58/1937, art. 14; art. 1º do Decreto-Lei nº 745/1969 e Lei nº 6.766/1979, art. 32, § 1º) e em todas as demais situações de mora ex persona. Os direitos do devedor sofrem limitações quando constituídos em mora (art. 399 do CC), o mesmo se sucedendo na mora creditoris (art. 400). 96 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA A constituição do devedor em mora não é completamente restritiva do direito de pedir a resolução ou adequação do contrato diante da onerosidade excessiva, desde que o não cumprimento da obrigação tenha ressonância com o acontecimento que causou o desequilíbrio das prestações. Anote-se que, embora o Código Civil argentino abordasse de maneira específica esse tema, estabelecendo em um dos itens do art. 1.198, "no procederá la resolución, si el perjudicado hubiese obrado con culpa p estuviese en mora", não inibiu Spota 30 de afirmar: "La mora que es consecuencia de la imprevisión contractual no impide que la causal resolutória se la invoque. En esse caso, tampoco de culpa del damnificado procede hablar". Essa conclusão foi seguida por Jorge Mosset Iturraspe 31: "Si el retardo en el cumplimiento se hubierse originado en la excesiva onerosidad ua sobrevenida, no puede afirmarse que sea imputable ni que, por ende, exista mora". O art. 399 do CC tem a seguinte redação: "O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de um caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada". O texto serviu para que o Professor José de Oliveira Ascensão 32, da Faculdade de Lisboa, afirmasse que somente a mora que deu causa ao desequilíbrio é impeditiva do benefício das alterações, porque quando a onerosidade excessiva adviria independente da mora, pode o devedor, mesmo em mora, invocar o art. 478 do CC, com o seguinte exemplo esclarecedor: Imaginemos que uma empresa se obriga à reparação dum navio. Atrasa-se seis meses em relação ao prazo a que se comprometera. Já no período de mora, desencadeia-se uma guerra que atinge o país de origem das matérias-primas necessárias, o que leva estas à cotação exorbitante. É nestes casos que a parte em falta não poderá prevalecer-se da alteração das circunstâncias. Não, porém, no caso de, numa dívida a ser paga em prestações, se atrasar numa delas, quando ainda faltam outras, pelo que de toda a maneira, o contrato seria atingido por aquela alteração das circunstâncias. O direito de resolução do contrato ou de modificação das condições por onerosidade excessiva representa uma vitória do que se poderá chamar de humanização do contrato, exatamente por ser oportunidade imperdível de recolocar as prestações pendentes na perspectiva da proporcionalidade desejada, evitando que a perturbação anômala subsequente constitua fonte de enriquecimento sem causa ou de locupletamento pelo abuso de direito. O juiz atua para restabelecer a normalidade das projeções contratadas, julgando com equidade e em benefício da boa-fé objetiva, tudo para que o contrato cumpra sua função social (arts. 421 e 422 do CC). Portanto, se as circunstâncias alteradoras do equilíbrio precedem o retardamento no cumprimento, não cabe sancionar o devedor, excluindo dele esse tipo de tutela 33. A mora que eclode antes do fato produtor da onerosidade é, sim, proibitiva; a concomitante e ou superveniente derivada da própria anormalidade autoriza invocar o benefício 34. RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 97 Não existe impedimento algum para arguir a onerosidade excessiva como defesa e até como pedido reconvencional (art. 315 do CPC) em ação de cobrança ou de exigência de cumprimento de obrigação, embora caiba registrar a oportunidade do comentário de Carlos Roberto Gonçalves 35, no sentido de a alegação em contestação [ser], em regra, considerada mal soante, vista como desculpa de mau pagador, entendendo-se que deveria a parte lesada tomar a iniciativa e antecipar-se à cobrança judicial, invocando a impossibilidade de cumprimento da dívida antes de seu vencimento, em decorrência de fato superveniente extraordinário e imprevisível, e requerendo a revisão do avençado ou a sua resolução. 5 ATUAÇÃO DO JUIZ A perspectiva é de crescimento de demandas sobre a resolução por onerosidade excessiva, afirmou de forma textual o eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior 36. Confia-se em que os juízes saberão atuar para que a figura da onerosidade excessiva não se afaste da sua missão de transformar a liberdade de celebrar contrato em exercício negocial justo, evitando-se que desequilíbrios supervenientes decorrentes de um fato extraordinário se mantenham contra os desígnios que inspiraram a declaração originária. Ao estudar o caso concreto e avaliar que a cega obediência da regra da intangibilidade do contrato representaria um sacrifício inaceitável para um dos contratantes, o juiz deverá intervir para manter a equação da proporcionalidade dos direitos e obrigações assumidos, eliminando o excesso que caracteriza pesado ônus. A sentença é, portanto, o modo escolhido pela legislação (arts. 478, 479 e 480) para recolocar as condições contratuais nos patamares estabelecidos pela boa-fé contratual. 98 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA Um grande desafio para os Magistrados, sendo recomendável refletir acerca de posições rígidas, embora criteriosas, como a de Arnoldo Wald, no sentido de se aplicar a teoria da imprevisão apenas quando a exigibilidade das prestações futuras possam ensejar o "enriquecimento indevido de uma das partes em detrimento de outra, cujo empobrecimento pode levá-la à ruína" 37 e outra, francamente favorável da intervenção judicial diante de acontecimentos imprevisíveis, por ser "própria da contingência da natureza humana, falível e que, por isto mesmo, não pode responsabilizar-se por fato inteiramente imprevisível" 38. Não existe motivo para decepções, bastando conferir os termos do julgado do STJ, da lavra do Ministro João Otávio de Noronha, recusando a incidência da onerosidade excessiva invocada pela parte que rompeu as expectativas positivas do contrato de fornecimento de blocos de granito (REsp 1.034.702/ES, DJ de 28.04.2008). A parte poderá pedir a resolução do contrato por onerosidade excessiva, diz textualmente o art. 478 do Código Civil. Não custa indagar: é lícito pleitear-se a revisão, alegando-se onerosidade superveniente? Evidente que sim. Não obstante o texto tenha se referido à resolução, para, em seguida, cogitar da oferta revisional do réu (art. 479), está implícito, pelo sistema, ter a parte direito fundamental de exigir a adequação contratual, inclusive porque o próprio art. 317 do CC licencia o juiz a redimensionar o quantum das prestações abusivas. É fundamental que o juiz conheça a natureza jurídica do instituto, sendo indiferente que opte pela corrente doutrinária que considera ser a onerosidade excessiva uma versão atualizada da cláusula rebus sic standibus ou a de que ela, em verdade, inspirou-se na teoria da destruição da base do negócio, porque, no fundo, essa divergência não muda o enfoque prático, desde que não se apegue, demasiadamente, ao conceito que caracteriza o acontecimento desorganizador da proporcionalidade. A verdade é que o juiz tem o poder de intervir na economia do contrato, com larga margem de competência para reajustar, com decência, as prestações que se alteraram, favorecendo, com isso, não propriamente um dos contratantes, mas, sim, o próprio contrato. No entanto, e diante da grandeza judiciária, aos juízes será correto defender ter o sistema jurídico brasileiro adotado uma das funções da base objetiva do negócio para, com o reforço da boa-fé como estrutura da confiança tutelável, manter o contrato alinhado com os efeitos dos comportamentos assumidos, admitindo que a transgressão dos limites da razoabilidade seja considerada como deficiência do processo volitivo. Esse poder se encerra com a licença para que as alterações desastrosas da justiça comutativa sejam canceladas ou redimensionadas, ainda que advindas de circunstâncias previsíveis. Há, contudo, solto um perigo espreitando os contornos da movimentação jurídica do tema onerosidade excessiva. Ruggiero 39 afirmou sobre a dificuldade de aplicar a onerosidade prevista no art. 1.467 do Código Civil italiano: Está, principalmente, em fixar os limites dentro dos quais se possa dizer que haja desequilíbrio ou oneração desproporcionada de um dos contraentes e que este derive de circunstâncias supervenientes e de alterações não previsíveis, pelo que se deve evitar que o exercício do direito de rescisão do vínculo descambe em abuso fácil e torne vã a confiança que os contraentes devem poder depositar na obrigatoriedade do contrato. E isso só pode deixar-se ao trabalho iluminado do juiz. RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 99 De acordo com o art. 478 do CC, a parte poderá pleitear a resolução do contrato diante da onerosidade excessiva. Certamente, a causa petendi está centrada na impossibilidade de cumprir o pactuado, em virtude das alterações excessivamente gravosas. O réu, segundo o art. 479 do CC, poderá se opor ao pedido de resolução, oferecendo condições mais equitativas. Aqui, cabe a primeira e decisiva observação: não há necessidade de reconvenção (art. 315 do CPC) ou pedido contraposto (art. 278, § 1º, do CPC), porque, na própria contestação, permite-se a materialização da proposta revisional. Porém, se a parte deseja reconvir ou manejar pedido contraposto, nada impede que o juiz admita tais expedientes e os julgue, por inexistir prejuízo para o processo nas situações especificadas. O que importa é que a parte expresse sua concordância com a alteração das condições do contrato. Quando o autor pede a resolução do contrato e o réu não oferece condições de mudança, o juiz não pode alterar as prestações. Poderá, no entanto, surgir uma dúvida sobre a seguinte situação: o autor da ação pede a resolução por onerosidade excessiva, e o réu apresenta uma proposta modificadora. O juiz verifica que a solução mais pertinente é a da alteração equitativa, mas não nos termos da oferta do réu. Pergunta-se: o juiz poderá emitir sentença estabelecendo condições diferentes da moção do réu? Flávio Yarshell responde que não: É ônus do réu a alegação de quais são as novas condições que pretende imprimir ao contrato, para que este não seja resolvido. Seu pedido deve ser certo e determinado, aplicando-se a ele a regra do art. 286 do CPC, quando menos por analogia. Isso é importante porque se o juiz entender que as condições constantes do pedido contraposto feito pelo réu não conduzem à situação equitativa de que fala o art. 479 do Código Civil, cumpre, então, rejeitar o pedido. Não lhe cabe, sob pena de ofensa aos arts. 2º, 128 e 460 do Código de Processo Civil, julgar em bases diversas porque, nesse caso, estaria, a um só tempo, desbordando dos termos do pedido do autor e do réu. 40 100 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA O Professor Yarshell deu, com sua inteligência, efetiva contribuição sobre a procedibilidade desburocratizada da oferta prevista no art. 479 do Código Civil. Contudo, e ao priorizar as regras do processo sobre os limites objetivos da lide, emitiu pronunciamento restritivo e que, se for adotado, impedirá a perfeita aplicação do instituto da onerosidade excessiva. O sentido jurídico da modificação judicial se relaciona com a vontade declarada pelas partes, quando da celebração do negócio, e, nesse ponto, compete ao juiz investigar exatamente os efeitos naturais e ponderáveis da execução. Assim, se o juiz considerar que as condições equitativas são outras que não aquela da oferta do réu, deve rejeitar essa proposta, por ser ela incompatível com a vontade projetada (base jurídica do negócio), cumprindo fixar aquela que atenderia aos comandos cognitivos da razoabilidade e da proporcionalidade. A oferta justa não será sempre a preferida pelo réu, mas, sim, a idealizada pelo juiz, que, no sistema, atua para corrigir as distorções posteriores e reajustar as prestações como se nada de anormal tivesse ocorrido. Importante lembrar, como Iturraspe 41 o fez, que o único obstáculo que se impõe ao juiz, nesse quadro, é o de que sua sentença deve "limitarse a restabelecer el equilibrio inicial; ello no significa buscar el equilibrio ideal o perfecto, ni tampoco repartir los riesgos sobrevenidos". Na verdade, a possibilidade de oferta do art. 479 do CC é meramente uma expressão que afasta o sentido da impossibilidade do cumprimento da obrigação alterada e que está carregada de um pesado ônus para o autor. Quando o réu sinaliza que há chance de sobrevida do contrato, cabe ao juiz aplicar o remédio adequado e que nem sempre coincidirá com a indicação da parte interessada. Portanto, na esteira do pronunciamento do jurista português Mário Júlio de Almeida Costa 42, de Jorge Mosset Iturraspe 43 e de Lúcia Ancona Lopez de Magalhães Dias 44, autoriza-se sentença dispondo de maneira alternativa e que cumpra a função integrativa por equidade. Não fosse assim, estaria negando incidência ao disposto no art. 422 (boa-fé objetiva) e ao art. 421 (função social), sabido que são regras de ordem pública, como consta do art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil. Aliás, até mesmo no caso de o réu não concordar em modificar com equidade as condições do contrato, sustentou-se, com criteriosa razão, ser permitido ao juiz ex officio (sendo do interesse do autor a modificação da cláusula contratual) fazer a revisão judicial do contrato 45. Obrigatório analisar os efeitos da sentença que reconhece a onerosidade excessiva. De acordo com o art. 478 do CC, os efeitos retroativos estacam na data da citação. A pergunta que se formula é a seguinte: as prestações alteradas antes da citação são atingidas pela sentença? Deve ser compreendido que o termo a quo (citação, art. 219 do CPC) define o momento em que os efeitos da mora são interrompidos, servindo, inclusive, para que o vencedor, caso tenha satisfeito as prestações que vencerão no curso da lide, obtenha a restituição do que pagou em excesso e até em dobro, se for aplicado o parágrafo único do art. 1º da Medida Provisória nº 2.172/2001, editado para casos em que o consumidor sofre abusos pela cobrança de prestações excessivas e desequilibradas. RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA 101 Deve-se dar começo, recordando da lição de Luigi Mosco 46, no sentido de ser juridicamente correto distinguir o contrato das prestações sucessivas para conceder a essas uma certa autonomia, notadamente, para a regulamentação dos efeitos da sentença de resolução: La autonomia se entiende en cambio, en el sentido de que de tales contratos nacen cantidades de prestación y atribución que en sí estan en relación económica y juridicamente separarse de las prestaciones precedentes y sucesivas, sin perjuicio de la finalidad del contrato. Esto se expresa también afirmando que están en relación de causalidad recíproca, esto es, constituyen cada una la equivalente de la otra. A sentença deve compor, com justiça, os interesses das partes e, por isso, as prestações inadimplidas por conta da onerosidade excessiva serão igualmente atingidas pelo efeito da sentença, porque o cumprimento delas é que interessa para fins de resolução ou adimplemento. Restringir o campo de incidência da sentença para excluir as prestações vencidas antes da citação seria o mesmo que negar efeito prático ao instituto, quando se sabe que as partes somente tomam consciência concreta do sacrifício que suportarão quando tentam cumprir. Logicamente que a sentença a ser emitida no futuro terá um enorme contexto contratual a cobrir, inclusive as prestações que venceram antes da data da citação e sobre as quais existia a mesma difficultas praestandi. Não haveria interesse ou utilidade para a parte solicitar a revisão ou a resolução do contrato com base na onerosidade excessiva se imaginasse que as prestações não cumpridas pelo advento da anormalidade, embora vencidas, estivessem fora do âmbito da resposta a ser dada pelo Judiciário (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal). As sentenças que solucionam a crise contratual são consideradas como de natureza determinativa, "isto é, integrativa do negócio jurídico, tarefa que é dada pelo sistema ao juiz, porquanto não há outro modo de ele concretizar as cláusulas gerais senão redigindo a cláusula contratual. A função jurisdicional aqui é assemelhada à da jurisdição voluntária, só que litigiosa, vale dizer, o juiz integra, participa do negócio jurídico privado, mas não age em substituição da vontade das partes como na jurisdição tradicional" 47. Adota-se esse conceito para compreender que a sentença remodeladora emitida pelo juiz nada mais representa do que uma etapa subsequente do contrato que necessitou de ajustes para manter a base objetiva do negócio em padrões de razoabilidade e proporcionalidade das prestações futuras. 102 RDC Nº 70 - Mar-Abr/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA As prestações com cumprimento retardado possuem uma característica própria imposta pela inexigibilidade. O não cumprimento é plenamente aceitável como reação normal ao comportamento da parte que está exigindo satisfação, competindo enumerar, como justificativa da posição do devedor diante de seu credor, a arguição de exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC), a de ausência de boa-fé objetiva (art. 422 do CC) e o abuso do direito (art. 187 do CC), exatamente porque não se é obrigado a cumprir, com sacrifício, prestação que se alterou por conta de acontecimentos extraordinários. O devedor, no caso, exerce um direito contratual (não cumprir a prestação desproporcional) em virtude de posição antijurídica do credor (que a exige contra os primados da boa-fé e da base objetiva do contrato), o que permite que a sentença complete e equilibre todas as prestações pendentes, inclusive as que vencerão antes da citação e que foram atingidas pela excessiva onerosidade. Ou se raciocina para decidir dessa forma ou se nega a possibilidade de se realizar justiça efetiva diante da onerosidade excessiva e se mantém a paralisia pragmática que estagnou o direito contratual por décadas. REFERÊNCIAS AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. São Paulo: Aide, 2003. ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960. AMERICANO, Jorge. Cláusula rebus sic standibus. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, RT, n. 29, p. 345-351, 1934. ASCENSÃO, José de Oliveira. Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo código civil. Disponível em: <www.fd.ul.pt/ICJ/luscommunedocs/ascensaojoseoliveiras.pdf.>. BEVILÁQUA, Clóvis. Evolução da teoria dos contratos em nossos dias. Revista de Crítica Judiciária, Rio de Janeiro, n. 28, p. 137-143, set. 1938. BRUTAU, José Puig. Compendio de derecho civil. Barcelona: Bosch, 1987. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 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Mas isso não significa, em absoluto, a inexistência de resistência a essa técnica de julgamento. Reconhecidos, embora, os valiosos resultados dos movimentos reformistas direcionados ao acesso efetivo à justiça, mais o ganho social que se obteve com a democratização dos meios para tanto disponíveis, a verdade é que faltou planejamento estatal para atender à crescente demanda pelo "produto justiça", com as graves consequências daí advindas - inclusive a criação de mecanismos de restrição justamente ao prometido acesso. Sopesados os prós e contras ao dispositivo sob exame, talvez seja possível identificar, na péssima técnica legisl