ROGÉRIO SOARES DE SOUZA O Prequestionamento como condição de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial Trabalho apresentado à Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios como pré-requisito para a obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de Pós-graduação Lato Sensu, no Curso Ordem Jurídica e Ministério Público sob orientação do Professor Júlio Roberto dos Reis. Brasília-DF 2008 ROGÉRIO SOARES DE SOUZA 2 O PREQUESTIONAMENTO COMO CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIO E ESPECIAL Trabalho apresentado à Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios como pré-requisito para a obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de Pós-graduação Lato Sensu, no Curso Ordem Jurídica e Ministério Público sob orientação do Professor Júlio Roberto dos Reis Aprovado pelos membros da banca examinadora em ____/____/____, com menção_____ (__________________________________________). Banca Examinadora: ______________________________ Prof. Dr. ______________________________ Prof. Dr. 3 Agradeço a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste trabalho. 4 Ninguém, senhores meus, que empreenda uma jornada extraordinária, primeiro que meta o pé na estrada, se esquecerá de entrar em conta com suas forças, por saber se o levarão ao cabo... Pe. Vieira 5 RESUMO SOARES DE SOUZA, Rogério. O prequestionamento como condição de admissibilidade nos recursos extraordinário e especial. 79 folhas. 2008. Trabalho de conclusão do curso para obtenção do grau de pós graduação – Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília-DF, 2008. Inicia com o conceito, fundamentos e natureza jurídica dos recursos, examinando a origem e inserção do recurso extraordinário no sistema recursal brasileiro, seu posterior desmembramento e divisão das hipóteses de cabimento com o recurso especial. Examina os pressupostos de admissibilidade dos recursos, o procedimento relacionado ao exame da admissibilidade e do mérito dos recursos nos Tribunais Superiores, os mecanismos adotados ao longo do tempo objetivando diminuir a quantidade de recursos extraordinários. Em virtude de estar o prequestionamento diretamente relacionado com as hipóteses de cabimento constitucionais para os recursos extraordinário e especial, cada uma delas é examinada individualmente para, ao final do trabalho, ser feita a análise do prequestionamento e sua delimitação. Para a coleta de dados utiliza-se doutrina especializada, artigos publicados em revistas científicas, acórdão e súmulas oriundos do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Verifica e compara o requisito de admissibilidade do prequestionamento no decorrer das Constituições Federais brasileiras, sua evolução e formas de tratamento pela doutrina e jurisprudência. Conclui que o prequestionamento, embora não literalmente expresso na Constituição Federal de 1988 é condição de admissibilidade inerente aos recursos extraordinário e especial e que decorre da manifestação do órgão jurisdicional. Palavras-chave: recursos, recurso extraordinário, recurso especial, pressupostos de admissibilidade, prequestionamento. 6 ABSTRACT SOARES DE SOUZA, Rogério. The previous questioning as a condition of admissibility in extra and special resources. 79 pages. 2008. Work course completion in order to obtain the post graduate degree – Superior School of Public Prosecutor from the Federal District and Territories, Brasília-DF, 2008. It starts with the concept, rational and legal resources, examining the origin and insertion of special appeal in the Brazilian system, its further disintegration and division of chances to belong to the special feature. It examines the conditions of resources admissibility, the procedure related to the examination of admissibility and merits of resources in the higher courts, the mechanisms adopted over time aiming to reduce the amount of extra resources. Due to the fact of previous questioning being directly related to the chances of constitutional place for the extraordinary and special features, each one is examined individually for, in the end of the work, being analyzed the previous questioning and its demarcation. For data collection, it is used specialized doctrine, articles published in scientific journals, and overviews ruling from the Supreme Court and Superior Court of Justice. It notes and compares the requirement admissibility of previous questioning during Brazilian Federal Constitutions, its evolution and forms of treatment by the doctrine and jurisprudence. It concludes that the previous questioning, though not literally expressed in the Federal Constitution of 1988, is a condition of admissibility inherent to the special and extraordinary features which runs from the event of court. Keywords: features, extraordinary admissibility, previous questioning. appeal, special feature, assumptions of SUMÁRIO 7 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 8 Capítulo 1 - Dos Recursos – Conceito, Fundamentos e Natureza Jurídica .............. 11 1.1. Conceito ........................................................................................................................11 1.2. Fundamentos ................................................................................................................11 1.3. Natureza Jurídica.........................................................................................................15 Capítulo 2 - Dos Pressupostos de Admissibilidade dos Recursos .............................. 19 2.1. Classificação dos requisitos ou pressupostos de admissibilidade dos recursos ......19 2.1.1. Cabimento ............................................................................................................................ 21 Capítulo 3 - Recurso Extraordinário e Recurso Especial .......................................... 27 3.1. Recurso Extraordinário – Incorporação e sua evolução no Direito Brasileiro ......27 3.2. A “Crise do Supremo” – Origens e tentativas de solução ........................................31 3.2.1. Argüição de relevância ............................................................................................32 3.2.2. Demonstração da repercussão geral ..................................................................................... 34 3.3 Criação do Superior Tribunal de Justiça e do Recurso Especial .............................40 Capítulo 4 - Dos Pressupostos de admissibilidade específicos do Recurso Extraordinário e do Recurso Especial ........................................................................ 42 Capítulo 5 - Do Prequestionamento como condição de admissibilidade dos Recursos Extraordinário e Especial............................................................................................ 56 5.1 Do Prequestionamento considerado como manifestação do órgão jurisdicional recorrido acerca da questão constitucional ou federal ....................................................58 5.2 Do Prequestionamento considerado como manifestação das partes perante o órgão jurisdicional recorrido........................................................................................................62 5.3 Natureza jurídica ..........................................................................................................66 5.4 Prequestionamento implícito e explícito .....................................................................69 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 76 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 79 8 INTRODUÇÃO Derivado do “writ of error” norte americano, o recurso extraordinário foi introduzido no direito brasileiro em 1890, pelo Decreto 848. Originalmente, acumulava as funções da guarda da Constituição Federal, atribuição com a qual permanece até os presentes dias, bem como a de garantia da inteireza do direito ordinário federal positivo, competência esta transferida ao recurso especial, criado pela Carta Magna de 1988. Inerente ao recurso extraordinário, desde o início, sempre esteve presente a figura do prequestionamento, consistente no “questionamento”, ou seja, no exame, no pronunciamento acerca da questão jurídica pelo órgão jurisdicional, conforme previsão expressa nas Constituições Federais de 1891 a 1937. Contudo, posteriormente à Constituição de 1946, deixou o constituinte de fazer referência ao vocábulo “questionar”, o que, num primeiro momento, gerou polêmica na doutrina, que entendia dispensado o prequestionamento, por inconstitucional, em face da ausência de previsão. Alçado por vários doutrinadores como pressuposto ou condição de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial, o prequestionamento ainda gera controvérsia, seja no tocante à sua natureza, caracterização e momento e forma de sua ocorrência. O presente trabalho busca, inicialmente, estudar a origem e a introdução do recurso extraordinário no direito brasileiro, seu tratamento pelas Constituições 9 Federais desde a de 1890 até a presente, para, a partir dos dispositivos a ele referentes, traçar também um histórico da evolução do “questionamento”, ou prequestionamento. Objetiva-se, também, o exame da sistemática referente à admissibilidade dos ditos apelos extremos, com o estudo de seus pressupostos, sejam aqueles tidos por genéricos, presentes em todos os recursos, sejam os específicos ou constitucionais, presentes apenas nos recursos extraordinário e especial. Com base em doutrina e jurisprudência pertinentes ao tema, proceder-se-á ao exame do instituto do prequestionamento, as correntes doutrinárias que estudam sua natureza (prequestionamento como manifestação do órgão jurisdicional recorrido acerca da questão constitucional ou federal e prequestionamento como manifestação das partes, perante o órgão jurisdicional recorrido), os entendimentos sobre em que consiste o prequestionamento implícito e explícito, e os diversos enquadramentos do assunto, inclusive se trata ou não de pressuposto ou condição para a admissibilidade dos recursos extraordinário e especial. Justifica-se o presente trabalho pelo fato de que, não obstante tratar-se de tema já bastante discutido, não há consenso sobre a natureza do prequestionamento e sua configuração, havendo, inclusive, divergência entre o STF e STJ sobre determinados aspectos. Em decorrência dessa divergência e do desconhecimento sobre o assunto, estritamente técnico, diversos recursos extraordinários e especiais deixam de ser conhecidos pelas Cortes Superiores em razão da deficiência no tocante à 10 demonstração do prequestionamento da questão jurídica, constitucional ou federal, respectivamente, que se encontra sub judice. Resultado disso é o prejuízo ao jurisdicionado, que deixa de ver seu direito examinado por questões técnicas, o que, aos olhos do leigo, pode parecer decorrência de uma injustiça praticada pelo Judiciário. Compreender o recurso extraordinário, sua natureza e seus pressupostos de admissibilidade, é tarefa imprescindível àquele que busca entender o prequestionamento. Busca-se com o presente trabalho, sem nenhuma pretensão de esgotar o tema, mesmo porque extremamente rico e vasto, traçar considerações que possam auxiliar na definição quanto à natureza do prequestionamento. O trabalho apresenta estrutura linear, ou seja, parte do exame do conceito de recurso e sua classificação, passando ao exame dos pressupostos de admissibilidade comuns a todos os recursos, inclusive os ditos extraordinários (especial e extraordinário). Após, passará ao exame do recurso extraordinário, sua origem e introdução no direito brasileiro, sua evolução ao longo das Constituições até a Carta de 1988, com a criação do recurso especial e divisão de competência entre o Supremo Tribunal Federal e o recém-criado Superior Tribunal de Justiça. Em seguida, proceder-se-á ao exame dos pressupostos de admissibilidade vinculados e específicos, previstos na Constituição Federal, e por fim ao prequestionamento, que será estudado em capítulo apartado, com o exame das diversas concepções e correntes doutrinárias sobre o tema, e suas implicações sobre a admissibilidade dos recursos extraordinário e especial. 11 Capítulo 1 DOS RECURSOS – CONCEITO, FUNDAMENTOS E NATUREZA JURÍDICA 1.1. Conceito Etimologicamente, várias são as acepções utilizadas pela doutrina para definir recurso. Alguns estudiosos partem da análise gramatical do vocábulo “recorrer”, para, a partir dele, examinar as origens do termo recurso, ao passo que outros preferem examinar a natureza jurídica do instituto para, então, estabelecer o conceito. MANCUSO (2003, p.17), ao examinar a origem do vocábulo recorrer, esclarece que a matriz latina recurrere significa “tornar a correr, a percorrer”, e que o prefixo re evoca o ato de voltar, repetir o ato, fazer novamente, concluindo que esse significado de retorno, quando aplicado à prática jurídica, revela a essência que o termo contém, já que quem recorre pretende o restabelecimento de uma situação anterior que lhe era totalmente, ou ao menos parcialmente desfavorável. No mesmo sentido é o magistério de NELSON NERY (2004, p.198), no sentido de que a palavra recurso é proveniente do latim (recursos, us), e nos dá a idéia de repetição de um caminho já utilizado. 1.2. Fundamentos Sob outro prisma, fundamenta-se a origem e existência dos recursos em critérios antropológicos, quais sejam: a falibilidade humana e o inconformismo com situações adversas ou desfavoráveis, pois é próprio do ser humano o sentimento de não aceitação de um limite posto como insuperável. Nesses casos, busca o 12 indivíduo encontrar justificativas ou apontar falhas na decisão que contraria seus interesses. Segundo MEDINA (2002, p.28), a idéia de recurso deve ter nascido com o próprio Homem, quando se sentiu vítima da injustiça decorrente de decisão de alguma autoridade. Para MANCUSO (2003, p.19-35), o recurso fundamenta-se em três componentes diversos: a pressão psicológica, o anseio de preservação do justo e o temor da irreparabilidade do dano jurídico. Para o referido autor, o componente pressão psicológica justifica-se no fato de que o ser humano não quer e não gosta de perder, que é próprio do homem o apego às suas convicções e teses, para vê-las vencedoras, e que esse impulso parece ser uma constante necessidade de auto-afirmação e de subjugação do próximo aos interesses do dominador. Assim, diante de um conflito de interesses em que haja resistência por alguma ou ambas as partes, a lide é posta a exame do judiciário, através de uma ação. E nos parece que, sendo o recurso um desdobramento do direito de ação, é ele o meio de defesa do indivíduo que se sentiu subjugado pela prestação jurisdicional. Essa é, inclusive, a conclusão de MANCUSO (2003): “Aliás, há uma importante correlação entre “ação” e “recurso”, sob o núcleo comum do “temor do prejuízo”, como já reconhecia Emilio Betti, e o admite, dentre nós, Alcides de Mendonça Lima: “Se o Estado permite que os indivíduos se utilizem do direito de ação para a defesa de seus interesses, em nome da própria harmonia social, é natural que o próprio Estado permita, igualmente, os recursos, em suas várias modalidades, para que os indivíduos pugnem também pela defesa de seus direitos, desde que se sintam lesados pela manifestação do Estado, ao ser proferida uma decisão por um de seus legítimos representantes. A reação é inata. Faz parte da própria personalidade humana.” (MANCUSO, 2003, p.20). Some-se a esse componente o fato de que nosso sistema processual adota a teoria da ação como direito abstrato, na acepção “eclética”, criada por Liebman, para quem a ação existe ainda que o demandante não seja titular do direito material que afirma existir. 13 A diferença entre a teoria abstrata e a abstrata eclética é que a última considera a existência de uma categoria estranha ao mérito da causa, denominada condições da ação. Para a teoria eclética, o direito de ação só existe se o autor preencher tais condições. Está prevista no artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil. Assim sendo, a decisão jurisdicional é sempre pautada na verdade formal. Para MANCUSO (2003, p.24), “uma decisão injusta pode ser tornar definitiva, operando seus efeitos práticos tanto quanto a mais justa e sábia das sentenças”. E arremata, esclarecendo que, “como no Direito prevalece o aspecto da forma, isto é, de sua exteriorização através de normas, ocorre muitas vezes que a norma vige e é obrigatória, mas fica distanciada de sua verdadeira fonte substancial: o justo, o eqüitativo”. Por outro lado, visando minimizar a possibilidade de erro judiciário, encontrase o “duplo grau de jurisdição”, como contrapeso destinado a garantir o anseio de preservação do “justo”, apontado por MANCUSO como um dos componentes do animus que conduz a parte vencida à revisão da decisão desfavorável. Por fim, para o citado autor, o terceiro e último componente do recurso residiria no temor da irreparabilidade do dano jurídico, que consistiria no interesse que o jurisdicionado teria, diante de uma decisão que lhe fosse desfavorável - ou seja, que lhe atribuísse a sucumbência ou o dano jurídico - em interpor o recurso. CHIOVENDA apud MANCUSO (2003, p.30) assevera que há um entrelaçamento entre prejuízo, sucumbência e interesse em recorrer: “Sobre a interação prejuízo, - sucumbência – interesse em recorrer avulta a conhecida lição de Chiovenda, ainda ao nosso ver insuperada em sua clareza e precisão: “o fundamento dessa condenação é o fato objetivo da derrota e a justificação desse instituto está em que a atuação da lei não deve representar uma diminuição patrimonial para a parte a cujo favor se efetiva; por ser interesse do Estado que o processo não se resolva em prejuízo de que tem razão, e por ser, de outro turno, interesse do comércio jurídico que os direitos tenham um valor tanto quanto possível nítido e constante”. 14 Temos, assim, uma seqüência de acontecimentos concatenados que levam à necessidade da utilização do recurso: a parte recorre porque ficou sucumbente, total ou parcialmente; pode ser sucumbente porque se envolveu em uma lide, situação em que, naturalmente, uma das partes fica em situação de desvantagem; o substrato fático da sucumbência, por sua vez, repousa no prejuízo, isto é: o réu da ação não viu reconhecida sua pretensão, permanecendo a situação jurídica lamentada na inicial; e é o prejuízo e a necessidade de reversão da situação desfavorável que justificam o recurso (MANCUSO, 2003, p.31). Há, portanto, uma correlação entre o interesse na lide, no processo, e o interesse em recorrer: inicialmente, a parte tem interesse processual porque sofreria um dano se não exercesse seu direito de ação; posteriormente, diante da sucumbência ou prejuízo, necessita prolongar a existência do processo para que a instância não se extinga, com a preclusão formal ou material do julgado, deixando-a numa situação de desvantagem. Assim, como a ação é o direito autônomo e abstrato ao exercício da atividade jurisdicional, mostra-se o recurso como um desdobramento do direito de ação, colocado à disposição do jurisdicionado para, caso queira – trata-se de faculdade e não obrigação -, impugnar, dentro do processo, um pronunciamento jurisdicional que lhe tenha causado gravame. NELSON NERY JUNIOR (2004, p.204-205), por sua vez, define recurso como sendo “o remédio processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Público ou de um terceiro, a fim de que a decisão judicial possa ser submetida a novo julgamento, por órgão de jurisdição hierarquicamente superior, em regra, àquele que a proferiu.” Entretanto, faz-se necessária a diferenciação de recurso como remédio processual dos demais remédios destinados à revisão ou reexame das decisões judiciais (ação rescisória, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data). Enquanto os recursos são exercitados dentro da mesma relação processual em que foi proferida a decisão recorrida, sem necessidade da instauração de um novo processo, os demais remédios dão origem a uma ação independente daquela que lhe deu causa, com a instauração de novo processo. 15 Com vistas a essa distinção, MEDINA (2002, p.43) conceitua recurso como sendo “o meio processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Público e de um terceiro, a viabilizar, dentro da mesma relação jurídica processual, a anulação, a reforma, a integração ou o aclaramento da decisão judicial impugnada.” No mesmo sentido NELSON LUIZ PINTO (2004, p.27-30), que define recurso como “uma espécie de remédio processual que a lei coloca à disposição das partes para impugnação de decisões judiciais, dentro do mesmo processo, com vistas à sua reforma, invalidação, esclarecimento ou integração, bem como para impedir que a decisão impugnada se torne preclusa ou transite em julgado.”. É "a extensão do direito de ação ou de defesa, e, portanto, apenas prolonga a vida do processo e a litispendência existente, dentro da mesma relação processual.” Outro traço distintivo entre os dois institutos, apontado por NELSON NERY JÚNIOR, é que os recursos são exercitáveis dentro da mesma relação processual contra decisões ainda não transitadas em julgado, ao passo que as ações autônomas de impugnação são destinadas principalmente contra as decisões já acobertadas pela autoridade da coisa julgada. (2004, p. 207) 1.3. Natureza Jurídica Quanto à natureza jurídica do recurso, duas são as correntes que se formaram acerca do tema: a primeira, no sentido de que o recurso é uma ação autônoma, de natureza constitutiva, e a segunda, que vê no instituto uma continuação, um desdobramento do direito de ação, em fase posterior do procedimento. Para a primeira corrente, o direito de recorrer seria o próprio direito de ação, após a decisão judicial, e exigiria, para ser exercido, a existência das condições da ação recursal bem como dos pressupostos processuais. Tratar-se-ia de ação autônoma de impugnação, com conteúdo constitutivo negativo, visando à desconstituição da decisão judicial. 16 A segunda corrente, por sua vez, defende a idéia de que o recurso é a continuação do procedimento, funcionando como uma modalidade do direito de ação exercido em segundo grau de jurisdição. Para essa orientação doutrinária, o direito de recorrer não é autônomo, eis que pressupõe sempre o exercício de outras faculdades processuais precedentes ao recurso, entendendo este como uma renovação do procedimento. NELSON NERY JÚNIOR (2004, p.219) trata o recurso como sendo “uma faculdade e não um ônus ou obrigação voltada à impugnação da decisão judicial quanto ao se aspecto formal e material”. Vemos na primeira corrente a definição para as ações autônomas de impugnação: necessitam da existência das condições da ação e dos pressupostos processuais; seu manejo é posterior ao trânsito em julgado da decisão judicial; apresentam conteúdo constitutivo negativo. Por estas razões, temos que a segunda corrente, que entende o direito de recorrer como desdobramento do direito de ação, espelha a melhor doutrina. Do exame dos conceitos acima apontados, extrai-se que os recursos podem ter três objetivos distintos: a reforma da decisão recorrida, consistente em sua substituição por outra decisão; a invalidação da decisão, objetivando a prolação de nova decisão pelo mesmo juízo que a proferiu, indene dos vícios que geraram sua anulação; o esclarecimento ou a integração da decisão impugnada, para sanar-lhe omissão, contradição ou obscuridade. Distinguem-se, também, quanto ao órgão prolator da decisão objeto do recurso, monocrático ou colegiado, sendo a lei instrumental (Código de Processo Civil) taxativa quanto ao cabimento dos recursos em face de cada espécie de decisão judicial. Classificam-se, ainda, em totais ou parciais, dependendo do conteúdo impugnável da decisão, ou seja, da extensão da matéria impugnada. Para NELSON LUIZ PINTO (2004, p.34-35), quem define o âmbito do recurso, se total ou parcial, é o recorrente, de acordo com o princípio dispositivo. 17 Quanto ao momento de interposição do recurso, pode ser ele independente (ou principal) e adesivo. Contudo, para que haja recurso adesivo, necessária a existência de sucumbência recíproca (art. 500 do CPC). No tocante à fundamentação, podem ser os recursos de fundamentação livre ou vinculada. Nos primeiros, a lei não define limitação às críticas endereçadas à decisão impugnada, o que não influencia na admissibilidade do apelo. São exemplos de recursos de fundamentação livre a apelação, o agravo de instrumento, o recurso ordinário e os embargos infringentes. Nos recursos de fundamentação vinculada, há limitação legal quanto ao âmbito de impugnação do recurso, ficando seu conhecimento condicionado ao tipo de crítica dirigida à decisão recorrida, como ocorre nos recursos extraordinário e especial, nos embargos declaratórios e nos embargos de divergência. Quanto ao objeto tutelado, subdividem-se os recursos em ordinários ou extraordinários. Os recursos ordinários objetivam proteger o direito subjetivo das partes litigantes contra eventuais vícios ou injustiça da decisão judicial, ou seja, buscam a adequada aplicação do Direito aos fatos retratados no processo. São os recursos previstos no artigo 496, incisos I a V, do Código de Processo Civil. Os recursos extraordinários, por sua vez, têm como objeto imediato a tutela do direito objetivo, seja das leis e tratados federais, no caso do recurso especial, seja da Constituição Federal, no caso do recurso extraordinário stricto sensu, e, em uma e outra hipótese, no caso de embargos de divergência. Para NELSON LUIS PINTO (2004, p.36-37), os recursos extraordinários só por via reflexa tutelam o direito subjetivo do recorrente, não obstante tenham um efeito psicológico direto que impulsiona a parte a recorrer. Isso porque, para os referidos recursos, o importante é a garantia da integridade do sistema jurídico federal e o respeito à disposições constitucionais, e não a correção de eventual injustiça da decisão no caso concreto. Esta também é a orientação de VICENTE GRECO FILHO (1996, p.291), que adota a classificação dos recursos em ordinários e extraordinários, sendo os primeiros aqueles previstos no processo comum, para corrigir determinado prejuízo, 18 ou seja, rediscutir matérias de direito e de fato, ao passo que os últimos estão previstos na Constituição Federal e têm como objetivo não apenas a correção do caso concreto, mas a uniformização da interpretação e eficácia das normas constitucionais, admitindo única e exclusivamente impugnação referente à matéria de direito. Por fim, quanto aos efeitos, classificam-se os recursos em suspensivos e nãosuspensivos. Esta classificação leva em consideração a existência, ou não, de efeito suspensivo ao apelo, já que o efeito devolutivo é comum a todos os recursos, não servindo, portanto, de critério diferenciador. Para NELSON LUIS PINTO (2004, p.37), são suspensivos “aqueles recursos que impedem a imediata produção de efeitos da decisão recorrida, ficando o comando nela contido suspenso até seu julgamento”, e não suspensivos “aqueles desprovidos, como regra geral, deste efeito, e que, por isto, não obstam a que haja execução provisória da decisão impugnada.” Para o citado autor, é a lei que determina se o recurso terá ou não efeito suspensivo. Assim sendo, podemos concluir que os recursos extraordinário e especial são necessariamente dirigidos contra decisões colegiadas, de fundamentação vinculada, não suspensivos e extraordinários quanto ao objeto. Podem ser, ainda, totais ou parciais, quanto ao âmbito de extensão da matéria impugnada e principais ou adesivos, quanto ao momento de interposição. E sendo o recurso, como dito acima, um prolongamento ou desdobramento do direito de ação, já que pressupõe a existência de uma lide ainda dependente de coisa julgada, necessário que preencha preliminarmente determinados requisitos, para, então, ter seu mérito examinado. E, assim como na ação é necessário o preenchimento de certos requisitos denominados “condições da ação”, que são a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse processual, e dos “pressupostos processuais”, que dizem respeito à constituição e desenvolvimento regular do processo, ficam os recursos também sujeitos ao preenchimento de determinados requisitos, que são os pressupostos recursais ou pressupostos de admissibilidade dos recursos, objeto de exame em capítulo específico. 19 Capítulo 2 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS Para que o jurisdicionado possa exercer seu direito de ação deve antes preencher determinados requisitos de admissibilidade, denominados condições da ação e pressupostos processuais, ou seja, condições que o legitimam a manejar a ação e exigir do Poder Judiciário um provimento jurisdicional. Tal qual ocorre com as condições da ação, para que a parte veja o mérito de seu recurso examinado deve antes atender a determinados requisitos de admissibilidade. Referidos pressupostos ou requisitos recebem tratamento e classificação pela doutrina tendo em vista a própria existência do poder de recorrer ou o modo de exercício do poder de recorrer. Os primeiros são classificados como requisitos de admissibilidade intrínsecos e os últimos recebem a denominação de extrínsecos. Referida classificação, atribuída a Barbosa Moreira, ainda que criticada por alguns processualistas, dentre eles Ada Pellegrini Grinover, é adotada e utilizada pela maioria dos doutrinadores. 2.1. Classificação dos requisitos admissibilidade dos recursos ou pressupostos de Como dito, os requisitos intrínsecos são aqueles concernentes à própria existência do poder de recorrer. Relacionam-se nesse grupo o cabimento, a legitimação para recorrer, o interesse recursal e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer. A existência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer, por se tratar de categoria inerente ao interesse em recorrer, será tratada quando do exame deste pressuposto. 20 Quanto aos extrínsecos, temos a tempestividade, a regularidade formal e o preparo recursal, relativos ao modo de exercício do recurso. Todos esses requisitos, entretanto, compõem o grupo denominado de requisitos genéricos de admissibilidade, pois são aplicáveis a toda e qualquer espécie de recurso, como ensina NELSON LUIZ PINTO: “qualquer que seja a modalidade de recurso interposto, devem esses requisitos ser preenchidos pelo recorrente e observados, conferidos pela autoridade competente para o juízo de admissibilidade, devendo sua nãoobservância acarretar o não recebimento ou não conhecimento do recurso interposto, conforme o caso”. (2004, p.63) Cabe ressaltar, contudo, que cada um desses requisitos, ainda que enquadrados dentro do mesmo gênero, varia dependendo da espécie de recurso. Assim, dentro do pressuposto tempestividade a lei prevê prazos diferentes entre os recursos, como é o caso dos embargos declaratórios, com prazo para interposição de cinco dias, de dez para o agravo de instrumento, ou de quinze para o recurso de apelação. E, como assevera NELSON LUIZ PINTO (2004, p.63), os chamados requisitos genéricos de admissibilidade somente são concretamente aferidos quando delineados pelas regras do recurso em espécie, quando então, especificados, podem ser chamados de requisitos específicos de admissibilidade para esse determinado recurso. Procederemos, pois, ao exame dos pressupostos de admissibilidade genéricos dos recursos, sempre observando os recursos extraordinário e especial, foco do presente trabalho. 21 2.1.1. Cabimento Sinônimo de possibilidade jurídica recursal, o cabimento pauta-se sempre pela previsão legal do meio recursal a ser utilizado e pela sua adequação à decisão judicial que se quer impugnar, já que não se admite recurso não previsto em lei. No direito pátrio, o Código de Processo Civil, em seu artigo 596, elenca os seguintes recursos: apelação, agravo, embargos infringentes, embargos de declaração, recurso ordinário, recurso especial, recurso extraordinário e embargos divergência. Ademais, não basta que haja previsão legal para o recurso a ser utilizado; necessita-se, também, que haja adequação entre o recurso escolhido e a natureza da decisão que se pretender impugnar, e, ainda em alguns casos, quando se tratar de recurso de fundamentação vinculada, também com o conteúdo da decisão (NELSON NERY JUNIOR, 2004, p.66). Assim, para cada espécie de decisão judicial a lei processual prevê um ou mais recursos, sendo que, em regra, apenas um poderá ser exercido no mesmo momento processual, decorrência do princípio da unirrecorribilidade. Dependerá o recurso a ser interposto, ainda, das peculiaridades do caso concreto e da ocorrência da hipótese de cabimento. Contudo, eventualmente, contra uma decisão judicial poderá ser interposto mais de um recurso, como é o caso do acórdão que desafia a interposição, ao mesmo tempo, de recurso especial e recurso extraordinário, por haver infringido a Constituição Federal e a lei federal, simultaneamente. Todavia, como ressalva NELSON LUIZ PINTO (2004, p.67), cada recurso será interposto contra uma determinada decisão strictu sensu, ou, rigorosamente, contra um thema decidendum. “Normalmente não poderá haver dois recursos contra um mesmo acórdão, a não ser que cada um deles se dirija àquilo que seria uma decisão, no caso de haver mais de uma decisão, formalmente, num mesmo acórdão.” 22 Assim, em regra, a lei prevê um recurso diferente para cada hipótese de cabimento. A interposição de mais de um recurso, simultaneamente, contra a mesma decisão, fica vinculada ao seu conteúdo, e é excepcional. 2.1.2. Legitimidade para recorrer Ainda que equivalente à legitimidade ad causam, uma das condições da ação, a legitimidade para recorrer, consubstanciada em uma condição a ser preenchida pelo recorrente para ver seu recurso admitido e conhecido, com ela não se confunde. É que o artigo 499 do Código de Processo Civil dispõe que: “o recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público”. Referido dispositivo trata tanto da legitimidade quando do interesse em recorrer. Assim, quando a lei faz referência à parte vencida, sugere que, aquele que é parte na ação, tem legitimidade recursal. Contudo, não basta ter legitimidade; é também necessária a existência do interesse em recorrer, que somente poderá ser aferido em função da forma como a parte foi atingida pela decisão judicial, já que só tem interesse em recorrer aquele que foi vencido na ação, ou seja, aquele que não teve seu interesse total ou parcialmente atendido pela decisão judicial. Assim, aqueles que foram parte no processo têm legitimidade recursal, sendo essa noção, entretanto, divorciada da do interesse em recorrer, que pressupõe a sucumbência, pressuposto de recorribilidade que será examinado no tópico abaixo. 2.1.3. Interesse em Recorrer Como dito acima, o requisito de admissibilidade dos recursos, consistente no interesse em recorrer, está intimamente ligado à idéia de sucumbência. Assim, ainda que tenha legitimidade para recorrer, a parte recorrente somente preencherá o 23 requisito de admissibilidade, consistente no interesse recursal, se houver sofrido um gravame, total ou parcial, com a decisão que pretende impugnar, gravame este, como ressalva NELSON LUIZ PINTO (2004, p.69), que pode estar relacionado com o direito material deduzido na ação ou ser meramente processual. E é essa condição desfavorável que conduz o recorrente a buscar, pelo recurso, uma situação, seja no plano do direito material ou apenas do processo, melhor do que aquela em que se encontra diante da decisão impugnada. Assim, assenta-se o interesse em recorrer no binômio necessidade/utilidade, visto que é útil o recurso capaz de proporcionar ao recorrente situação mais favorável do que a que vem experimentando, e necessário, ao passo que, caso não exercite sua faculdade de recorrer, fica sujeito aos efeitos da decisão desfavorável. 2.1.4. Tempestividade Etimologicamente, o vocábulo processo significa “marcha adiante”, razão pela qual, durante muito tempo, ele foi confundido com a sucessão dos atos processuais (procedimento). Desenvolve-se o processo através do procedimento, que é a prática seqüencial e ordenada de atos processuais das partes, do juiz e de seus auxiliares na direção da solução final e definitiva do litígio. (NELSON LUIZ PINTO, 2004, p.71). Assim, para que esses atos processuais desenvolvam-se no tempo, sem que o processo perdure indeterminadamente, é que a lei processual estabelece prazos para o exercício dos atos processuais, transcorridos os quais, na maioria das vezes, ocorre preclusão, que é a perda da faculdade de praticar um ato por não tê-lo feito no prazo devido (preclusão temporal). Os recursos, atos processuais que são, também se sujeitam a prazos previstos no Código de Processo Civil. Dessa forma, para que um recurso possa ser conhecido deverá ter sido interposto dentro do respectivo prazo. A tempestividade recursal, consiste no exercício da interposição de um determinado recurso dentro 24 do prazo que a lei assinala é, portanto, um dos pressupostos de admissibilidade dos recursos, sem o qual o apelo nem sequer supera a fase de conhecimento. Sendo intempestivo o recurso, cabe à autoridade a quem competiria recebê-lo negar-lhe seguimento, impedindo que seja processado e remetido ao órgão ad quem. 2.1.5. Preparo No momento da interposição do recurso, deverá a parte comprovar o pagamento das custas recursais processuais respectivas, salvo naqueles casos em que houver dispensa de recolhimento do preparo recursal (§ 1º do artigo 511 do Código de Processo Civil). A ausência ou irregularidade no recolhimento do preparo acarreta o fenômeno da deserção, que importa o não conhecimento do recurso. O preparo recursal é fixado no âmbito da Justiça Federal por lei federal e no âmbito das Justiças Estaduais por leis dos respectivos Estados. (NELSON LUIZ PINTO, 2004, p.73) Anteriormente a esse regime, trazido pela Lei 8.950/94, o pagamento do preparo somente era exigido quando o recurso fosse admitido pelo órgão a quo, como condição de processamento do recurso. Neste caso, a parte seria intimada para, em dez dias, efetuar e comprovar o recolhimento do preparo. Já no sistema vigente, é condição de admissibilidade já ter sido efetuado o preparo do recurso no momento de sua interposição, devendo a guia comprobatória do recolhimento seguir anexada à petição de interposição do recurso. Assim, conclui-se que o momento para a prática do ato, consistente no recolhimento do preparo, é anterior ao da interposição do recurso, já que o artigo 511 do Código de Processo Civil exige que, quando da interposição, seja o preparo comprovado. 25 Prevê, ainda, o artigo 511 do Código de Processo Civil, em seu § 2º, que, caso a parte tenha recolhido o preparo do recurso em valor insuficiente, somente será decretada a deserção caso, intimada a complementar o valor, não o fizer no prazo de cinco dias. Referido dispositivo processual restringe, ainda, a exigência da comprovação do preparo às hipóteses previstas em lei. Dessa forma, pode a lei dispensar o preparo em alguns recursos, como ocorre com os embargos de declaração ou com o agravo retido, ou se nela não contiver previsão expressa acerca do requisito. Exceção à regra da comprovação do recolhimento do preparo por ocasião da interposição do recurso ocorre na Lei 9.099/95, que, em seu artigo 42, § 1º, prevê que o preparo dos recursos dirigidos às Turmas Recursais dos Juizados Especiais será feito, independentemente de intimação, nas quarenta e oito horas seguintes à interposição do recurso, sob pena de deserção. Assim sendo, resta demonstrado que é a lei, federal ou estadual, quem define a forma e o momento da comprovação do preparo recursal. 2.1.6. Regularidade formal O sexto e último requisito de admissibilidade recursal consiste na necessidade de o recurso obedecer às regras formais de interposição exigidas pela lei para aquele tipo específico. NELSON LUIZ PINTO (2004, p.75), ao classificar os pressupostos de admissibilidade recursal, define a regularidade formal no seguinte sentido: “Deve, ainda, todo e qualquer recurso, obedecendo à mesma ordem lógica de uma petição inicial, ser dirigida à autoridade competente para recebê-lo e processá-lo – que, normalmente (salvo no recurso de agravo de instrumento contra decisão de primeiro grau), é o próprio órgão que proferiu a decisão impugnada -, através de petição escrita, contendo as razões de fato e de direito (motivação ou fundamentação do recurso) e o pedido de nova 26 decisão – que, como já vimos, poderá ser de reforma, invalidação, esclarecimento ou integração da decisão recorrida.” Assim, para cada espécie de recurso estabelecerá a lei quais os requisitos específicos de regularidade formal, tais como juntada de peças essenciais (art. 544, § 1º, do CPC - agravo de instrumento) e indicação e comprovação do acórdão paradigma (artigo 541, § único, do CPC – recurso especial interposto com fundamento na alínea “c” do artigo 105, III, da Constituição Federal). O não atendimento aos requisitos da regularidade formal acarreta a não-admissão do recurso, ante o juízo negativo de sua admissibilidade. Entendemos que os pressupostos de admissibilidade específicos dos recursos extraordinário e especial, consistentes no enquadramento da violação naquelas hipóteses de cabimento previstas na Constituição Federal e no atendimento do pressuposto de admissibilidade consubstanciado no prequestionamento, configuram um desdobramento do requisito da regularidade formal, razão pela qual serão abordados em capítulo separado. 27 Capítulo 3 RECURSO EXTRAORDINÁRIO E RECURSO ESPECIAL 3.1. Recurso Extraordinário – Incorporação e sua evolução no Direito Brasileiro Quase um século! Esse foi o tempo necessário desde a incorporação do recurso extraordinário ao Direito brasileiro, sua maturação e desenvolvimento, até a fórmula inserta na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 102, inciso III e respectivas alíneas. Inspirado no direito norte-americano, o recurso extraordinário foi introduzido no Direito pátrio pelo Decreto 848, de 24.10.1890, tendo por base o writ of error, sendo que, atualmente, ainda guardam entre si certas particularidades. Segundo MEDINA (2002), o writ of error norte-americano foi instituído pelo Judiciary Act de 1789, que previa, em sua seção 25, as hipóteses de cabimento daquele recurso: a) quando se tenha levantado a questão da validade de um tratado ou de uma lei da União ou da legitimidade de sua autoridade, e a decisão é contra a sua validade; b) quando se levanta a questão da validade de uma lei do Estado ou da legitimidade de uma autoridade por ele exercida, em face da Constituição, tratados ou leis dos Estados Unidos, e a decisão é a favor da validade; c) quando se questiona sobre título, direito, privilégio ou isenção reclamada com fundamento na Constituição, tratado, lei, ou concessão, e a decisão for contra o título, direito, privilégio ou isenção. (MEDINA, 2002, p.114). Inicialmente, não havia então denominação para o apelo que posteriormente viria a ser chamado de recurso extraordinário, conceito este, entretanto, que na época já era utilizado na Argentina. 28 Para MEDINA (2002), o termo “recurso extraordinário”, empregado na época do Brasil-Império para designar o recurso de revista, que posteriormente foi substituído pelo termo recurso “extraordinário”, baseado no writ of error, foi a ele atribuído pelo primeiro regimento do Supremo Tribunal Federal, de 08.02.1891 (art. 33, § 4, e art. 99), e, posteriormente, pela lei 221 em 1894 (art. 24), tendo o termo então se consolidado. A Constituição Brasileira de 1891, recepcionando o Decreto 848, criador do recurso extraordinário, e modificando-lhe a redação, em seu artigo 59, § 1º, previa as hipóteses de incidência do apelo extremo: Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis e atos dos governos dos Estados em face da Constituição Federal e a decisão considerar válidos esses atos e essas leis impugnadas. Até então, não havia previsão para interposição de recurso extraordinário fundamentado em divergência jurisprudencial, modificação esta que somente se daria com a Emenda de 1926, que, ampliando de duas para quatro suas hipóteses de incidência, alterou a Constituição de 1891, passando então a sua redação para a seguinte forma: Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a vigência ou validade das leis federais em face da Constituição e a decisão do Tribunal dos Estados lhe negar aplicação; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas; c) quando dois ou mais tribunais interpretarem de modo diferente a mesma lei federal, podendo o recurso ser também interposto por qualquer dos tribunais referidos ou pelo ProcuradorGeral da República; d) quando se tratar de questões de direito criminal ou civil internacional. Indubitavelmente, a maior contribuição trazida pela Emenda de 1926 foi a incorporação da hipótese do recurso por divergência, visando a pronunciamento 29 pelo Supremo, a quem caberia, então, diante do dissídio interpretativo entre tribunais, apontar a interpretação correta da lei federal. Note-se que até então o termo “recurso extraordinário” ainda não era utilizado, o que somente veio a ocorrer com a Constituição de 1934, que, além de incorporar o conceito, incluiu entre as hipóteses de cabimento do recurso a de sua interposição quando a decisão fosse contrária à literal disposição de tratado ou lei federal. O artigo 76 da Carta Magna de 1934 tinha a seguinte redação: Art. 76. À Corte Suprema compete: (...) julgar: (...) – em recurso extraordinário, as causas decididas pelas justiças locais, em única ou última instâncias: a) quando a decisão for contra literal disposição de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicação se haja questionado; b) quando se questionar sobre a vigência ou a validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do Tribunal local negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato dos governos locais em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do Tribunal local julgar válido o ato ou lei impugnado; d) quando ocorrer diversidade de interpretação definitiva de lei federal entre Cortes de Apelação de Estados diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou entre um destes tribunais e a Corte Suprema, ou outro Tribunal federal. O acréscimo trazido pela Constituição Federal de 1934 passou a constar da alínea “a”, enquanto as demais hipóteses de cabimento do recurso, já previstas pela Emenda de 1926, passaram a ocupar as alíneas seguintes (b, c e d), com pequenas alterações. A Carta Política de 1937, por sua vez, não acrescentou nada de essencial ao recurso extraordinário, tendo apenas substituído a expressão “literal disposição de tratado ou lei federal”, constante na alínea “a”, por “letra de tratado ou lei federal”. A previsão legal, quanto ao conteúdo, permaneceu inalterada. Dentre as alterações trazidas pela Constituição Federal de 1946, a mais substancial se referiu à possibilidade de interposição do apelo quando a decisão recorrida fosse contrária a dispositivo constitucional, expressão até então não utilizada, o que, para MEDINA (2002, p.122), restou por consolidar o entendimento doutrinário na Constituição Federal, que até então acreditava-se estar implicitamente presente. O artigo 101, inciso III, da Carta de 1946 tinha o seguinte teor: 30 Art. 101 Ao Supremo Tribunal Federal compete (...) julgar (...) III – em recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais ou juízes: a) quando a decisão for contrária a disposição desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal e a decisão recorrida julgar válida a lei ou ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal. Conforme observa MEDINA (2002, p. 122), a Constituição Federal de 1946, ao contrário das Cartas de 1934 e 1937, não se utilizou do termo “questionamento”, o que gerou, de início, dissenso por parte da doutrina, que acreditava ter sido dispensado o requisito do prequestionamento. Todavia, referido argumento não prevaleceu, tendo a jurisprudência, ainda que conflitante no início, concluído que o fato de a norma não trazer expressamente a exigência do prévio debate acerca da violação à norma não afastava a figura do prequestionamento, já que se trata de requisito implícito e inerente à natureza do recurso extraordinário. E a supressão do termo “questionamento” persistiu na Constituição de 1967, apesar do que continuou prevalecendo o entendimento jurisprudencial no sentido da necessidade do prequestionamento. Além disso, foi restringida a hipótese de cabimento do recurso extraordinário no tocante à lei federal, que antes se admitia nos casos em que houvesse contrariedade à lei federal, passando a ser cabível apenas nos casos em que a decisão recorrida houvesse negado vigência à lei federal. Para MEDINA (2002, p. 123), “pretendia-se, assim, de acordo com a doutrina da época, restringir as possibilidades de cabimento do recurso extraordinário, em virtude do acúmulo de processos no Supremo Tribunal Federal”. E esse aumento desenfreado no número de recursos e seus desdobramentos, tais como os agravos de instrumento, gerou um contingente de recursos incompatível com o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, o que gerou acúmulo de processos, inviabilizando o trabalho da Excelsa Corte. Para MANCUSO (2004, p. 60), o crescimento desordenado no número de recursos que adentravam ao Supremo era fruto de uma opção equivocada. Salienta 31 que, à época da incorporação ao direito pátrio do recurso extraordinário, copiado quase à literalidade do writ of error americano, abriu-se um leque muito maior de abrangência do recurso do que se houvesse sido acolhido o modelo proveniente das fontes portuguesas, mais restrito, o que, na ótica do autor, redundaria em um número menor de recursos. O autor critica a opção pelo modelo americano e os efeitos que dela advieram: Verdade que já anteriormente à Constituição Imperial houvera um recurso proveniente das fontes portuguesas – um recurso de revista destinado ao Supremo Tribunal de Justiça (arts. 163 e 164, I) – vocacionado, segundo anota José Afonso da Silva, “à defesa da lei em tese e ao respeito do seu império, de seu preceito abstrato, indefinido, sem se envolver diretamente na questão privada ou no interesse das partes litigantes”. Mas, na seqüência, a República preferiu “importar” o modelo norte-americano; e, ainda segundo aquele autor, “como sempre acontece, quando se adota técnica existente em sistema cultural diferente, o recurso sofreu, aqui, os azares da incompreensão, o que certamente não ocorreria se proviesse de uma evolução da revista. (MANCUSO, 2004, p.60). E esse crescimento desordenado no número de recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, inviabilizando suas funções, foi classificado como “a crise do Supremo”. 3.2. A “Crise do Supremo” – Origens e tentativas de solução Como já foi colocado, o modelo norte americano, adotado como fonte inspiradora do recurso extraordinário, previa sua interposição em qualquer dos ramos do Direito, desde que houvesse discussão acerca de “questão federal” ou “questão constitucional”. Assim, em razão da amplitude das hipóteses de cabimento, seguiu-se à sua adoção pela Constituição pátria um acentuado acúmulo de recursos dirigidos ao Supremo. 32 Para ROBICHEZ PENNA (1985/86), “a crise do Supremo Tribunal Federal é, portanto, uma crise de quantidade, que deve ser refreada sob pena de inviabilizar a entidade em mais alguns anos”. Diversos foram os expedientes utilizados na tentativa de superar a “crise do Supremo”, tais como a criação da argüição de relevância na admissão dos recursos extraordinários, a implementação de óbices regimentais e o aumento do número de ministros ao longo das constituições. Na atual Carta Magna podem ainda ser apontadas a necessidade de demonstração da repercussão geral no recurso extraordinário – muito semelhante à extinta argüição de relevância -, a súmula vinculante em matéria constitucional e o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos. MANCUSO (2004, p.63) destaca o comentário do Ministro Carlos Velloso, no sentido de que “não faltaram engenho e arte na criação de figuras e expedientes tendentes a filtrar o excesso de recursos extraordinários”. E conclui: “Tais tentativas não foram em vão, mas sempre estiveram longe de seu desiderato fundamental, que era o de resolver a “crise do Supremo”. Nesse sentido, o depoimento do Ministro Carlos Velloso, dando conta de que o “volume de ações protocoladas no Supremo Tribunal Federal no decorrer do ano [de 2000] cresceu 49,43% em relação a 1999 – no total foram 101.996 processos contra 68.255”. Esclareceu ainda S.Exa. “que cada ministro relatou e julgou cerca de oito mil processos e, do total de recursos, mais de 80% são repetidos”. (MANCUSO, 2004, p.63).” 3.2.1. Argüição de relevância Dentre os mecanismos criados para limitar os recursos extraordinários, e, por conseqüência, limitar sua incidência, adotou-se o requisito da “argüição de relevância”, aplaudida por muitos estudiosos como sendo a melhor forma de aliviar a sobrecarga de trabalho do STF. 33 Criada pela Emenda Regimental 3, de 12.6.75, era definida como aquela questão que, “pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigiria a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal”. Ou seja, delimitava a atuação do Supremo somente para aqueles casos cujo direito invocado como violado fosse considerado de relevância. MANCUSO, comentando diversos estudiosos, expõe o assunto de forma extremamente pertinente: “Daí dizer o Min. Xavier de Albuquerque que a citada argüição “não constitui meio de impugnação da decisão judicial, não podendo fazer as vezes do recurso extraordinário que se deixou de interpor” (RE 90.155, ag. Reg., DJ 11.12.78). E Sérgio Bermudes, anotando que a argüição “não visa, ela mesma a modificar a decisão recorrida, mas, apenas, a remover o obstáculo à prolação de juízo positivo de admissibilidade do recurso extraordinário”. Posteriormente, como se sabe, a mesma argüição de relevância veio alocada em um dos incisos do art. 325 do RISTF (o de n. XI), mercê da Emenda 2/85, convertendo-se, como diz Edson Rocha Bonfim, num caso de “cabimento especial do Recurso Extraordinário”. E as decisões do Conselho (art. 327, RISTF) acerca da configuração ou não dessa relevância, adianta esse autor, “representavam o primeiro juízo de admissibilidade, quando o recurso estava fundamentado no inc. XI do art. 325 do Regimento Interno. (MANCUSO, 2004, p.66).” Várias foram as críticas lançadas ao instituto: de que seu procedimento era complexo e oneroso; que a aferição do que fosse “relevante” ficava ao absoluto critério subjetivo do STF; que a “relevância” de uma questão é um dado axiológico a ser levado em conta pelo legislador, quando faz a norma, e não pelo julgador que a aplica; que não se justifica a aferição da “relevância” em julgamento secreto e não expressamente motivado. Dentre todas essas críticas, a de maior amplitude se direcionava ao fato de que o julgamento da argüição de relevância era feito em sessão secreta do Conselho do Supremo Tribunal Federal, sendo que a decisão então prolatada não era motivada, não sendo possível a aferição de qual era a orientação dominante sobre determinado assunto. 34 Como destaca MANCUSO (2004, p.67), de outro lado, vozes respeitáveis como as dos Ministros Djaci Falcão e Moreira Alves, defendiam o requisito, por considerá-lo “instrumento de viabilização dos Estados federativos com a preservação do direito nacional contra atentados graves por sua repercussão jurídica, moral, social, política e econômica, não tendo por finalidade a correção de erros de direito”. Por fim, com o advento da Constituição Federal de 1988, que não manteve o instituto, o requisito caiu em desuso. Contudo, a PEC 29/2000 (Projeto de Reforma do Judiciário), convertida posteriormente em lei – Lei nº 11.418, de 19 de dezembro de 2006 - trouxe novamente a lume esse mecanismo de controle, restabelecendo-o sob a denominação de “repercussão geral”, mas que, na essência, muito se assemelha à argüição de relevância. 3.2.2. Demonstração da repercussão geral Como dito, trata-se de procedimento de filtro dos recursos extraordinários que adentram no Supremo Tribunal Federal que muito se assemelha à argüição de relevância, embora revestido de maior publicidade, o que lhe confere maior transparência, além de afastar a crítica no sentido de que a “relevância” – ou repercussão – dizia respeito muitas vezes à parte que a argüia, e não à matéria argüida em si. Introduzida no ordenamento jurídico por meio da Lei nº 11.418, de 19 de dezembro de 2006, acrescentou ao Código de Processo Civil o artigo 543-A que prescreve que: o supremo tribunal federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. Seus sete parágrafos traçam o procedimento a ser seguido por ocasião da demonstração e julgamento da repercussão geral perante o Supremo Tribunal Federal. 35 A repercussão geral é aferida sob a ótica da relevância que a questão jurídica debatida no recurso extraordinário tem, observando-se seus aspectos econômicos, políticos, sociais ou jurídicos, que devem ultrapassar os interesses subjetivos da causa, ou seja, que projetem reflexos para fora do processo, para o contexto social. A demonstração da existência de repercussão geral deverá ser feita pelo recorrente como preliminar de recurso extraordinário, e estará presente sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal. Uma vez negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão de tese, na forma do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Na análise da repercussão geral será admitida a intervenção de amicus curiae. Como se verifica, referido expediente tem por objetivo filtrar o excessivo número de recursos extraordinários que chegam e abarrotam o Supremo, especialmente naqueles casos em que as alegações são as mesmas e desprovidas de qualquer interesse geral do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, transformando o Excelso Pretório em corte de reexame de descontentamentos de caráter constitucional, sem qualquer relevância, fugindo, portanto, da missão do Supremo Tribunal Federal. Entendemos que se trata de um incidente preliminar ao juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, que busca o exame da existência ou não da relevância da questão jurídica suscitada. Uma vez ultrapassado esse juízo de pré-admissibilidade, isto é, verificada a presença da relevância, da repercussão geral da questão federal, passa-se ao exame da admissibilidade do recurso extraordinário – momento no qual também será verificado o atendimento requisito do prequestionamento – antes, portanto, do julgamento do mérito do recurso. 3.2.3. Óbices regimentais 36 Outro mecanismo utilizado com a finalidade de frear o crescimento desordenado dos recursos encaminhados ao Supremo foi a criação de obstáculos regimentais. Aproveitando-se da autorização contida no artigo 119, § 1º, da Constituição de 1967 (com redação da EC 7/77), passou o Supremo a indicar as causas que conheceria em recurso extraordinário: “no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário, ou de relevância da questão federal”. Segundo MANCUSO (2004, p. 71), “o RISTF, aprovado em sessão em 15.10.80, previu em seu art. 325 as hipóteses em que não caberia o RE”. Para aqueles casos que não se enquadrassem nas hipóteses admitidas pelo Regimento Interno do Supremo, caberia então a via da argüição de relevância, acima tratada, para abrir a via excepcional do recurso extraordinário. Vista por muitos com uma tentativa desesperada do Supremo de conter o grande número de recursos que batiam às suas portas, não faltaram críticas aos óbices, que, para muitos, diante de tantas limitações e restrições, transformavam a via extraordinária, como destaca MANCUSO (2004, p.74), “em um campo minado entre a Nação e o Supremo, que alguém dificilmente pode percorrer incólume”. Isto porque, muitas vezes, o apelo esbarrava em mais de um óbice, transformando a via recursal em uma “corrida de obstáculos”. Apesar de ter sido posteriormente suprimida a função legiferante subsidiária do Supremo pelo constituinte, as Leis 8.038, de 28.05.1990 (Lei dos Recursos) e 9.756, de 17.12.1998, novamente conferiram poderes ampliados ao relator, no julgamento do recurso extraordinário, ao autorizá-lo a, monocraticamente, negar provimento a recurso considerado manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. De outro lado, a referida Lei 9.756/98 acrescentou ao artigo 557 do Código de Processo Civil o § 1º, que prevê a hipótese da interposição de agravo, no prazo de cinco dias, em face da decisão monocrática do relator que negar seguimento ao recurso. Percebe-se, portanto, que, se de um lado o legislador ampliou a gama de poderes do relator, de outro lado criou mecanismo para o jurisdicionado corrigir 37 eventuais desacertos de juiz singular, o que conferiu razoabilidade e equilíbrio ao sistema. 3.2.4. Aumento do número de ministros Destacamos ainda outro mecanismo buscado pelo Supremo na tentativa de dar vazão à crescente entrada de recursos naquela Corte, consistente no aumento do número de ministros. No decorrer dos séculos XIX e XX, por diversas vezes alterou-se a constituição da Corte Excelsa, que foi de quinze ministros, instituída pela Constituição republicana de 1891, reduzida posteriormente para onze, pela Carta de 1934, o que foi mantido pelas Constituições posteriores, de 1937 e 1946, elevado a dezesseis pela Carta de 1967 e reduzido novamente a onze pelo AI-6, de 1969, número que permaneceu na vigente Constituição Federal. Ao discorrer sobre o assunto, MANCUSO (2004, p.79) sustenta que a “crise do Supremo” não é decorrente do número de ministros componentes da Corte: “Sem embargo, se levarmos em conta que a chamada “crise do Supremo” remonta ao início do século, quando, naturalmente, era escasso o número de recursos extraordinários, se comparado com o que ocorre hoje, não é difícil concluir que a causa verdadeira dessa crise deve ser outra que não o número – efetivamente reduzido – de Ministros. Não cremos que o represamento de processos no STF se resolveria se o número de Ministros voltasse a ser de dezessete, como no Império: seis Ministros a mais, por certo, não resolveriam a sobrecarga.” E destaca o referido autor que também não se pode atribuir a crise às causas de competência originária do Supremo, tais como naquelas envolvendo crimes políticos, ou os habeas corpus, habeas data, mandados de segurança ou ações visando ao controle de constitucionalidade dos atos ou leis do Poder Público, já que estes instrumentos não representam volume capaz de justificar o acúmulo de processos no STF. (2004, p.79). 38 A adoção de um modelo alienígena, sem a adequação da estrutura judiciária, no mesmo formato do modelo adotado, foi certamente o que conferiu ao recurso extraordinário a amplitude posteriormente alcançada, e, decorrente dela, a avalanche de processos que deram entrada no Supremo Tribunal ao longo da história, sobrecarregando-o e inviabilizando a solução dos conflitos de forma rápida. Isto porque a competência legislativa federal, no Brasil, é ampla, ao contrário do que ocorre no direito norte-americano, onde tal competência é bem mais restrita. A criação de mecanismos que possibilitem barrar parte dos recursos, seja por confronto a súmulas, jurisprudência e até mesmo a ampliação dos poderes do relator, decidindo em várias hipóteses de forma monocrática, é, na verdade, medida paliativa que contribui para filtrar apenas parte do volume distribuído, mas que não é capaz de conter a massa recursal que cada vez mais sobrecarrega os onze componentes da Suprema Corte. MANCUSO aponta ainda outras medidas adotadas ao longo do tempo na tentativa de solucionar a crise, apontadas pelo Ministro Moreira Alves: “Vale, ao interesse histórico, relembrar outras medidas, que ao cabo se revelaram um tanto paliativas, como as lembradas por José Carlos Moreira Alves: “a Lei 3.396/58 exigiu que o despacho de admissão do recurso extraordinário fosse motivado, à semelhança do que já ocorria com o que não o admitia; a Emenda Regimental, de 28 de agosto de 1963, criou a súmula como instrumento de trabalho para facilitar a fundamentação dos julgados; a Emenda Constitucional 16/65 outorgou ao Supremo Tribunal Federal competência para julgar representações de inconstitucionalidade de leis e atos normativos estaduais e federais, com a finalidade – que vem expressa na exposição de motivos do projeto dessa Emenda – de lhe permitir num único julgamento, solver a questão da constitucionalidade, ou não, dessas normas, o que estancaria, no nascedouro, a fonte de recursos extraordinários que seriam interpostos se a declaração de inconstitucionalidade se tivesse de fazer em cada caso concreto; a Emenda Constitucional 1/69 admitiu restrições ao cabimento do recurso extraordinário quando interposto com fundamento nas letras ‘a’ e ‘d’ do inc. III de seu art. 119 (...) (2004, p.81).” E conclui o citado autor, apontando alguns institutos que, reflexamente, podem contribuir para aliviar o volume de recursos que adentram no STF e STJ. Destaca a jurisprudência vinculante, ou seja, as decisões emanadas da Excelsa Corte nas ações declaratórias de constitucionalidade com efeito vinculante aos 39 demais órgãos dos Poderes Judiciário e Executivo, na medida em que conferem eficácia erga omnes, solvendo todas as questões semelhantes ou idênticas; elenca também a criação de Juizados Especiais, por meio da Lei 9.099/95, encarregados do julgamento de causas de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, implementando a justiça de forma célere, informal, com a absorção de uma boa parte dos litígios, prestigiando a conciliação. (2004, p. 82 e 83). Por fim, aponta o disposto no artigo 4º da Lei 9.469/97, pelo qual fica autorizado o Advogado-Geral da União, em havendo súmula dessa instituição, a “dispensar a propositura de ações ou de interposição de recursos judiciais, quando a controvérsia jurídica estiver sendo iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores”. (MANCUSO, 2004, p. 83 e 84). Filiamo-nos a essa orientação, uma vez que, como é sabido, grande parte das causas que posteriormente se convertem em recursos extraordinários, desemboca e atravanca as funções do Supremo Tribunal Federal, envolve a União e suas autarquias como partes, muitas vezes insistindo procrastinatoriamente na defesa de teses repelidas pela Excelsa Corte. 3.2.5. Súmula vinculante Outro acréscimo de grande importância ao ordenamento jurídico foi feito por meio da Lei nº 11.417, também de 19 de dezembro de 2006, que regulamentou a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, acrescentando o artigo 103-A ao texto constitucional. Referido dispositivo prevê que o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, 40 estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. A súmula terá por desiderato a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Será tomada por decisão que conte com o voto de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária. É inegável o caráter de mecanismo de controle da multiplicação de recursos extraordinários por meio da súmula vinculante, já que servirá de parâmetro de julgamento em questões idênticas, bem como óbice a recursos em cujo objeto se discutir questão jurídica idêntica àquela já sumulada. 3.3 Criação do Superior Tribunal de Justiça e do Recurso Especial Do exame dos expedientes criados para conter a chamada “crise do Supremo”, outra conclusão não se adota senão a de que a criação do Superior Tribunal de Justiça, pela Constituição Federal de 1988, e o deslocamento da competência para dirimir as questões federais para este tribunal, não passou de mais uma providência buscando um melhor gerenciamento do acúmulo de processos nos Tribunais Superiores. Com a Carta Política de 1988, então, passou-se a prescrever as atribuições distintas a ambas as Cortes, definidas em seus artigos 102, inciso III e alíneas, e 105, inciso III e alíneas, pertinentes aos julgamentos dos recursos extraordinário e especial. “Art. 102 Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a 41 decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. Art. 105 Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhe vigência; b) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.” Com a criação do Superior Tribunal de Justiça, o conteúdo do recurso extraordinário anterior à atual Carta Política foi distribuído entre o recurso extraordinário e o novel recurso especial; aquele passou a ser instrumento cabível para velar pelo cumprimento da Constituição Federal, enquanto este visa assegurar a inteireza positiva, a validade, a autoridade e a uniformidade da interpretação das leis federais. Curiosamente, as características extraídas do modelo norte americano, o writ of error que deu origem ao recurso extraordinário, estão encampadas no recurso especial. E esses recursos, apelos excepcionais, para serem conhecidos e terem seu mérito submetido a exame pelos Tribunais Superiores, precisam preencher, além dos pressupostos de recorribilidade comuns a todos os recursos, já anteriormente examinados, pressupostos ou condições de admissibilidade específicos, dentre os quais apontamos o prequestionamento. 42 Capítulo 4 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE ESPECÍFICOS DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO E DO RECURSO ESPECIAL Como dissemos acima, entendemos que o enquadramento da violação legal ou constitucional nas hipóteses de cabimento previstas na Constituição Federal, além do prequestionamento, que será objeto de exame no próximo capítulo, são espécies de pressuposto de admissibilidade cujo gênero é a regularidade formal. Assim, além do atendimento dos pressupostos genéricos (cabimento, legitimidade para recorrer, interesse em recorrer, tempestividade e preparo), o recorrente nos recursos extraordinário e especial deverá também demonstrar o enquadramento de seu recurso em uma – ou mais de uma – daquelas hipóteses previstas nas alíneas dos artigos 102 e 105 da Carta Magna – também denominado permissivo constitucional, sob pena do não conhecimento do recurso. Isso porque ditos apelos são de fundamentação vinculada, pois, como afirma NELSON LUIZ PINTO (2004, p.194) encontram-se expressamente previstas em lei, ou mais precisamente na Constituição Federal, em numerus clausus, as espécies de fundamentação ou crítica que podem ser dirigidas à decisão impugnada através desses recursos. “Assim, as hipóteses de cabimento desses recursos correspondem exatamente ao tipo de vício que pode ser apontado na decisão contra a qual se pretende recorrer, de forma que sua admissibilidade fica condicionada não à demonstração, que corresponde ao próprio mérito do recurso, mas à alegação, ao apontamento, dessas espécies de vício.” Em razão da importância dessas hipóteses de cabimento para a sistemática da admissibilidade dos recursos extraordinário e especial é que passaremos ao exame de cada uma delas, com base em abalizada doutrina processual civil. Necessário registrar que com a recente emenda constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 houve alteração nas hipóteses de cabimento constitucionais, tendo sido inserida mais uma alínea ao permissivo do artigo 102, inciso III – alínea “d” – que anteriormente era da alçada do Superior Tribunal de Justiça, com a 43 conseqüente reforma redacional da alínea “b” do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal. Referidos registros serão feitos nos momentos oportunos. Passemos então ao exame de cada uma delas, iniciando pelas hipóteses de cabimento previstas nas alíneas “a” a “d” do inciso III do artigo 102 da Carta Magna. Conforme previsão constitucional compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe – caput – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida – inciso III: - Alínea “a”: contrariar dispositivo desta Constituição Com base nessa alínea, toda vez que a decisão recorrida contrariar dispositivo constitucional será cabível, em tese, recurso extraordinário. O recorrente, por sua vez, deverá demonstrar em que ponto da decisão houve a contrariedade à Constituição Federal, bem como qual dispositivo constitucional restou contrariado Para NELSON NERY JUNIOR (2004, p.257) a efetiva violação da Constituição Federal, prevista na alínea “a” do inciso III, do artigo 102 da Carta Magna é o próprio mérito do recurso. Para ele, o que cabe ao tribunal nesses casos é examinar a admissibilidade do recurso. A simples alegação da inconstitucionalidade já preenche o requisito de admissibilidade do recurso extraordinário. “Basta, portanto, haver mera alegação de ofensa à Constituição para que seja vedado ao tribunal federal ou estadual proferir juízo de admissibilidade negativo ao apelo extremo.” A doutrina, confrontando a hipótese de cabimento do recurso extraordinário prevista na alínea “a” do inciso III do artigo 102 da Carta Magna com a hipótese inserta no artigo 105, inciso III, alínea “a”, de cabimento de recurso especial, faz importante análise. É que a alínea “a” do artigo 105 fala, além de contrariar, que também é cabível recurso especial quando a decisão recorrida negar vigência a 44 tratado ou lei federal, redação que não consta da previsão para o recurso extraordinário. Para MANCUSO (2004, p.173) “contrariar” é mais do que “negar vigência”. Entende que a extensão daquele termo é maior, chegando mesmo a abarcar último, e que contrariar tem uma conotação mais difusa, enquanto negar vigência sugere mais estrito. “Contrariamos a lei quando nos distanciamos da mens legislatoris, ou da finalidade que lhe inspirou o advento; e bem assim quando a interpretamos mal e lhe desvirtuamos o conteúdo. Negamos-lhe vigência, porém, quando declinamos de aplicá-la, ou aplicamos outra, aberrante da fattispecie; quando a exegese implica em admitir, em suma... que é branco onde está escrito preto; ou quando finalmente, o aplicador da norma atua em modo delirante, ignorando a real existência do texto de regência. É claro que, na prática, nem sempre é fácil distinguir as duas hipóteses, mas agora, com o advento do recurso especial, a distinção redobra em importância.” Examinando o mesmo ponto, afirma MEDINA (2002, p.131) que a “negativa de vigência” é, em princípio, violação mais grave do que “contrariedade” à norma jurídica. Para ele, mesmo que não houvesse previsão expressa na atual Constituição Federal sobre esse aspecto, cabíveis seriam os recursos extraordinário e especial na hipótese de negativa de vigência de norma constitucional ou de lei federal, conforme o caso, orientação que nos parece a mais acertada. - Alínea “b”: declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal Nessa hipótese o recurso extraordinário tem por objetivo garantir a validade do direito objetivo federal, servindo de mecanismo para o controle da constitucionalidade incidental das leis federais por meio do Supremo Tribunal Federal. Assim, sempre que a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de determinado tratado ou lei federal será cabível recurso extraordinário com fulcro nesse dispositivo constitucional. Entendemos, assim como MEDINA (2002, p. 142) que o controle de constitucionalidade por meio do recurso extraordinário, tal como previsto na alínea 45 “b” acima transcrita, somente se constitui de instrumento para o controle incidental, haja vista que não se pode aventar tal hipótese na via principal – através de ação direta de inconstitucionalidade, cuja competência originária é do Supremo Tribunal Federal. - Alínea “c”: julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição Para que o recurso extraordinário seja interposto com fulcro nessa alínea do permissivo constitucional é necessário que a decisão recorrida tenha afastado a aplicação da Constituição Federal, por entender válida lei ou ato de governo local contrapostos à norma constitucional. Após a reforma trazida pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, as hipóteses do recurso extraordinário no caso de lei ou ato de governo local que afronte a Constituição, ou quando lei local afrontar lei federal, e a do recurso especial contra ato de governo local que afronte a legislação federal infraconstitucional, podem ser examinadas conjuntamente, por conterem um substrato comum: o fato de o acórdão recorrido ter-se fundado em lei ou atos locais, em detrimento à questão federal ou constitucional. A diferença que especifica as três hipóteses reside na norma que restou afrontada pela lei ou ato local: quando houver sido confrontado o texto constitucional por lei ou ato de governo local, ou a legislação federal, por lei local, cabível será o recurso extraordinário; se, entretanto, a afronta for à lei federal infraconstitucional, por ato de governo local, será cabível o recurso especial. Importante ressaltar que, a princípio, essa distinção ocorreu com a Carta Magna de 1988, que procedeu ao desmembramento do conteúdo do recurso extraordinário original, dividindo-o com o recém-criado recurso especial. Assim, toda a matéria relativa às questões federais infraconstitucionais foram transferidas para este novo recurso, inclusive a situação em que a lei local contesta o quanto disposto em lei federal. 46 Assim, com a alteração trazida pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, a apreciação desta última hipótese mencionada passou a ser do Supremo Tribunal Federal, e o recurso cabível, por conseguinte, o extraordinário. - Alínea “d”: julgar válida lei local contestada em face de lei federal Esta alínea foi acrescida ao inciso III do artigo 102 da Carta Magna por meio da emenda constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004. Entendemos salutar a alteração trazida pela referida emenda, posto que restou por resolver o discrímen a ser utilizado na repartição vertical de competências entre União e Estados, modificando as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário e especial, criando, assim, a referida alínea “c” do inciso III do artigo 102 e alterando a alínea “b” do inciso III do artigo 105, ambos da Constituição Federal. Referidos dispositivos passaram, após a emenda 45/2004, a constar da seguinte forma: “Art. 102 (...) “(...) “III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas, em única ou última instância, quando a decisão recorrida: “d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. “(...)” “Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: “III – julgar, em recurso especial, as causas decididas em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: “(...) “b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; “(...).” 47 Com a nova redação, eliminou-se a dúvida anteriormente existente sobre o recurso correto a ser interposto. Havendo questão relativa à validade de lei local contestada em face de lei federal a hipótese será de recurso extraordinário. Caso contrário, quando a decisão recorrida tiver julgado válido ato de governo local contestado em face de lei federal, o recurso manejável é o especial. Para DIDIER JR. (2006, p.118) a mudança operada é correta, por entender que não há hierarquia entre lei local e lei estadual e que o conflito que porventura houver entre elas dirá respeito tão-somente à competência legislativa, que é determinada por normas constitucionais (arts. 22 e 24). “No bojo da discussão sobre a aplicação de lei local em detrimento de lei federal, há, sempre, a questão constitucional da competência legislativa. Quando isso acontecia, sob a vigência do texto constitucional anterior a essa emenda, o recorrente valia-se, quase sempre, de dois recursos, um para o STJ, com base na letra b do inc. III do art. 105, e outro para o STF, com base no art. 102, III, a. A alteração da regra constitucional deu racionalidade ao sistema: se houver discussão sobre a aplicação de lei local ou lei federal, o caso é de interposição de recurso extraordinário para o STF, que resolverá a dúvida em torno das regras constitucionais de competência legislativa.” Sobre o conceito de ato de governo local MANCUSO (2003, p.223/224): “O que se deve entender por “lei ou ato de governo local”? Visto que os recursos extraordinário e especial são instrumentos válidos para a preservação, respectivamente, da Constituição Federal e do direito federal infraconstitucional, pode-se dizer, que na equação que está à base da admissibilidade desses recursos, o outro termo só pode provir dos Estados ou dos Municípios, seja em forma de normas legais lato sensu (leis, decretos, portarias, regulamentos, ordens jurídicas menores), seja em forma de atos: do governador, prefeito, secretários, diretores de órgãos públicos, reitores etc., enfim, dos agentes públicos dotados de certa parcela de poder. E essas normas e esses atos bem podem ser emanados do Executivo, como do Legislativo ou até do Judiciário, ressalvados, nesse último caso, os atos puramente jurisdicionais, ou seja, os atos do juiz passíveis de recurso por error in procedendo ou in judicando (sentenças, despachos interlocutórios – CPC, art. 162 e §§), já que tais provimentos jurisdicionais, por óbvio, não cabem na rubrica de “lei ou ato de governo local”. 48 Nesse mesmo sentido é a orientação de NELSON RODRIGUES NETTO (2006, p.336): “Com efeito, ato de governo local é aquele praticado por qualquer agente público que represente ou aja na qualidade de representante de Estados ou Municípios, no exercício de qualquer de suas funções: executiva, legislativa e judiciária, sendo certo que, nas duas últimas funções, mediante atividades que não propriamente legiferante ou judicante. A atividade típica do legislador municipal ou estadual – a “lei local” – quando muito poderá ser atacada pelo recurso extraordinário, art. 102, III, d, da CF, enquanto que o pronunciamento judicial com conteúdo decisório comporta ser revisado por meio de recurso.” Para MANCUSO (2003, p.224) a legitimação para o recurso extraordinário ou o recurso especial resultará do prejuízo que o recorrente experimentou pelo fato de uma lei ou ato local ter sido considerado válido, em detrimento do direito federal comum ou constitucional. “É dizer, a situação legitimante provém de fora do processo, residindo naquela lei ou naquele ato. Até que se esgotem as instâncias ordinárias, o recorrente se insurgirá contra o aspecto da injustiça da decisão (como acontece nos recursos do tipo comum); depois, no plano dos recursos excepcionais, haverá um plus: a aferição da questão constitucional ou federal, conforme o caso, instaurando-se um vero contencioso objetivo de legalidade, em sentido largo, sempre ao pressuposto do devido prequestionamento.” Como dissemos, a alteração trazida pela emenda constitucional 45/2004 objetivou resolver essa divergência, dividindo a competência que somente era do recurso especial, e que agora persiste com relação a este somente no caso de a decisão recorrida julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal, bem como atribui ao recurso extraordinário parcela daquela competência, criando a hipótese de cabimento do apelo extremo no caso de a decisão recorrida julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Feitas essas considerações acerca das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, passemos à análise individualizada dos permissivos relacionados recurso especial, previstos nas alíneas do inciso III do artigo 105 da Constituição 49 Federal. Compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar em recurso especial as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios. Verifica-se, portanto, que o inciso III do artigo 105 apresenta maior delimitação se comparado ao artigo 102 da Carta Magna, acima examinado. A previsão constitucional é no sentido de que somente é cabível recurso especial em face de decisão recorrida proferida por Tribunais Regionais Federais e tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, razão pela qual não cabe recurso especial contra decisão proferida por Turma Recursal dos Juizados Especiais, o que inclusive consta do enunciado nº 203 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça. - Alínea “a”: contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência Conforme já afirmamos, o recurso especial objetiva permitir ao STJ o exercício da função de velar pela adequada e uniforme aplicação da lei federal. Assim, sempre que a decisão de única ou última instância prolatada por um daqueles órgãos elencados no inciso III do art.105 disser respeito à aplicação de uma lei federal ou de um tratado e for questionada sua aplicação sob a assertiva de contrariedade ou negativa de vigência, será hipótese de interposição de recurso especial para o STJ. A alínea em comento tem espectro de aplicação genérico, no qual estão, em última análise, abarcadas as demais alíneas do permissivo constitucional. Para NELSON LUIZ PINTO (2004, p.197) é manifesta a diferença existente entre o cabimento do recurso especial pela alínea “a” e as demais hipóteses de cabimento do apelo. Para ele, enquanto nas alíneas “b” e “c” se estabelecem hipóteses de cabimento que não significam, necessariamente, que a decisão recorrida esteja errada, a hipótese da alínea “a” refere-se a situações onde para a admissibilidade do recurso seria preciso, à primeira vista, que se constatasse estar efetivamente diante de uma decisão errada, ilegal (2004, p.197). 50 É pelo mesmo motivo que NELSON NERY JR. (2004, p.257) assevera, ao comentar a alínea “a” do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal, que a contrariedade ou negativa de vigência é o próprio mérito do recurso. Nesse caso, o que cabe ao tribunal examinar é a admissibilidade do recurso. A tão somente alegação de ilegalidade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal já preenche o requisito de admissibilidade do recurso especial, pois, nesse caso, admissibilidade e mérito se confundem. Decorrência disso é que o tribunal a quo não poderá negar seguimento ao recurso especial interposto com fulcro na alínea “a” do permissivo constitucional sob o fundamento de que não teria efetivamente ocorrido a alegada contrariedade ou negativa de vigência à lei, posto que, assim agindo, estaria a adiantar um juízo de mérito do recurso que cabe ao STJ, com evidente invasão na competência desta Corte Superior. NELSON LUIZ PINTO (2004, p.198) defende, contudo, que a alegação de violação ou contrariedade à lei deve revestir-se de razoabilidade e relevância, opinião com a qual concordamos, para evitar que o tribunal de origem se veja impedido de negar seguimento a recursos especiais manifestamente infundados, sob o temor de estar invadindo a competência do STJ. ““ Alegação razoável” significa a probabilidade de ter havido a alegada contrariedade ou negativa de vigência do dispositivo legal invocado. Será razoável a alegação se o tribunal a quo, ao julgar, por exemplo, o recurso de apelação, tiver enfrentado a questão para cuja solução demandaria efetivamente a interpretação e aplicação do dispositivo legal invocado. Se, por exemplo, o dispositivo legal dito violado regula matéria que nada tem a ver com o que foi decidido, ou é absolutamente irrelevante para o deslinde das questões de direito enfrentadas no acórdão recorrido, deve ter-se como não-razoável a alegação e, assim, negar seguimento ao recurso.” O presidente do tribunal a quo deverá então, ao verificar a admissibilidade do recurso especial, examinar a plausibilidade da alegação do recorrente, à semelhança do que o juiz realiza para a constatação da existência do fumus boni iuris do processo cautelar, sem adentrar no mérito do recurso. 51 Importante registrar que com relação à espécie lei federal a que se refere a norma constitucional, o termo recebe interpretação ampla, devendo abranger todas as espécies de lei federal, assim como o decreto, o regulamento federal e a lei estrangeira quando aplicável por força da norma de direito internacional, ou seja, o “direito federal” (2004, p.195). Não se incluem, entretanto, as portarias ministeriais, os regimentos internos dos tribunais federais, as resoluções e provimentos de autarquias, a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil e nem a matéria relativa à questão federal sumulada, eis que não se admite recurso especial por alegação de ofensa à súmula. Os tratados, por sua vez, seguem o mesmo tratamento, já que sua incorporação ao sistema jurídico nacional, do ponto de vista interno, implica conferirlhe força e regime jurídico de lei em sentido amplo. Entretanto, assim como DIDIER JR. (2006, p.119), entendemos que, quanto aos tratados internacionais sobre direitos humanos que poderão ser incorporados ao direito interno com estatura constitucional – na forma do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, introduzido pela EC 45/2004 – o recurso cabível é o extraordinário, e não o especial. - Alínea “b”: julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal Sobre esse ponto remetemos o leitor às considerações feitas quando da análise da alínea “d” do inciso III do artigo 102 da Constituição Federal, pertinente ao recurso extraordinário. Isto porque, como dito, a EC 45/2004 restou por resolver a dúvida que existia quanto ao recurso cabível quando se discutia sobre a aplicação de lei local em detrimento de lei federal. Como já afirmamos, para DIDIER JR. (2006, p.118) a mudança operada é correta, por entender que não há hierarquia entre lei local e lei estadual e que o conflito que porventura houver entre elas dirá respeito tão-somente à competência legislativa, que é determinada por normas constitucionais (arts. 22 e 24). 52 “Quando isso acontecia, sob a vigência do texto constitucional anterior a essa emenda, o recorrente valia-se, quase sempre, de dois recursos, um para o STJ, com base na letra b do inc. III do art. 105, e outro para o STF, com base no art. 102, III, a. A alteração da regra constitucional deu racionalidade ao sistema: se houver discussão sobre a aplicação de lei local ou lei federal, o caso é de interposição de recurso extraordinário para o STF, que resolverá a dúvida em torno das regras constitucionais de competência legislativa.” Referida emenda constitucional pôs fim à discussão, ao desmembrar e realocar as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário e do recurso especial, fazendo a necessária distinção entre “lei local” e “ato de governo local”, tornando precisa a interposição do recurso cabível e evitando a duplicidade de recursos sob o mesmo fundamento, o que decorria da imprecisão terminológica até então existente no permissivo constitucional. - Alínea “c”: der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal É também por meio do recurso especial interposto com sustentáculo na alínea “c” do permissivo constitucional que o Superior Tribunal de Justiça exerce sua competência uniformizadora da interpretação do direito federal dada pelos diferentes tribunais do país. NELSON LUIZ PINTO (2004, p.201) chama a atenção para a sobreposição existente entre essa hipótese de cabimento é aquela prevista na alínea “a” do mesmo permissivo constitucional. Para ele, quando se ingressa com recurso especial com base na alínea “c” do artigo 105, III, da CF não basta afirmar que a decisão recorrida diverge de outra, proferida por outro tribunal. Isto porque, além de apresentar a divergência existente entre a decisão recorrida e a proferida por outro tribunal é também necessário que a parte demonstre que a interpretação acertada da lei federal é a constante da decisão apresentada como paradigma, cuja prevalência requer, e não a recorrida, que se espera ver reformada (2004, p.202). “Ora, quando se alega que a interpretação dada na decisão recorrida a respeito de determinada lei federal não é correta, está-se afirmando, 53 conseqüentemente, que essa lei federal foi contrariada pelo acórdão, o que, por si só, possibilitaria o cabimento do recurso especial pela alínea “a” do art.105, III, da CF, sendo até mesmo desnecessário que exista divergência com relação à interpretação dada por outro tribunal.” Para ele, seria até mesmo desnecessária a previsão dessa outra hipótese de cabimento do recurso especial – a alínea “c” do artigo 105, inciso III, da Carta Magna – que serviria como um reforço da hipótese prevista na alínea “a”, na medida em que se estará diante de probabilidade muito maior de que tenha efetivamente havido ofensa a lei federal quando existirem decisões de outros tribunais a respeito da mesma questão federal em sentido diverso da decisão recorrida (2004, p.203). Não concordamos inteiramente com essa opinião, por entendermos que, embora o substrato jurídico seja o mesmo em ambos os casos – contrariedade ou negativa de vigência a tratado ou lei federal e interpretação da lei federal divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal –, ou seja, a correta aplicação do direito pátrio, a forma, o procedimento e a admissibilidade do recurso especial serão tratados de formas diversas. E não raro que sejam interpostos recursos especiais ora pela alínea “a”, ora pela “c” e ora com fulcro em ambas as alíneas. O juízo de admissibilidade pelo tribunal a quo é diferente a depender do permissivo constitucional em que se funda o apelo especial. Como dissemos, no recurso fundado na alínea “a” o tribunal de origem não pode se voltar muito diretamente ao juízo de mérito, sob pena de estar usurpando competência do STJ; já no recurso lastreado na alínea “c”, a presença de aspectos de ordem técnica na interposição do recurso (comprovação do dissídio jurisprudencial, confronto analítico) dá margem a uma maior análise da admissibilidade. E quanto à divergência pretoriana, é preciso que diga respeito à interpretação de determinada norma de direito federal, já que a divergência sobre matéria constitucional não dá azo ao recurso especial. Por se tratar de recurso de fundamentação vinculada, voltado ao exame do direito infraconstitucional pátrio, não admite exame ou reexame do substrato fático da causa, sendo por isso vedada sua utilização para a interpretação de cláusulas contratuais ou reexame de provas, como se extrai dos enunciados de nº 5 e 7 da súmula do STJ. 54 No tocante à admissibilidade do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional, algumas considerações devem ser feitas. Inicialmente, deve-se observar que a referida alínea informa que a interpretação deve ser divergente da que lhe haja atribuído “outro tribunal”. Assim sendo, a divergência deve se dar entre diferentes tribunais da Federação, não servindo de paradigma julgado do mesmo tribunal de onde emanou a decisão recorrida, sendo o enunciado de número 13 da súmula do STJ expresso nesse ponto: a divergência de julgados do mesmo tribunal não enseja recurso especial. Outro aspecto diz respeito à demonstração da divergência, que é disciplinada pelo parágrafo único do artigo 541do Código de Processo Civil, que dispõe: “Quando o recurso fundar-se em dissídio jurisprudencial, o recorrente fará a prova da divergência mediante certidão, cópia autenticada ou pela citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que tiver sido publicada a decisão divergente, ou ainda pela reprodução de julgado disponível na Internet, com indicação da respectiva fonte, mencionando, em qualquer caso, as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados”. Além do CPC, o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, em seu artigo 255 e parágrafos, também traça parâmetros acerca da comprovação do dissídio jurisprudencial e da demonstração do confronto analítico, isto é, da confrontação entre trechos da decisão recorrida e do acórdão paradigma que comprovem a divergência de interpretação. “Art. 255. O recurso especial será interposto na forma e no prazo estabelecido na legislação processual vigente, e recebido no efeito devolutivo. § 1º. A comprovação de divergência, nos casos de recursos fundados na alínea c do inciso III do art. 105 da Constituição, será feita: a) por certidões ou cópias autenticadas dos acórdãos apontados divergentes, permitida a declaração de autenticidade do próprio advogado, sob sua responsabilidade pessoal; b) pela citação de repositório oficial, autorizado ou credenciado, em que os mesmos se achem publicados. 55 § 2º. Em qualquer caso, o recorrente deverá transcrever os trechos dos acórdãos que configurem o dissídio, mencionando as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. § 3º. São repositórios de jurisprudência, para o fim do § 1º, b, deste artigo, a Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a Revista do Tribunal Federal de Recursos, e, autorizados ou credenciados, os habilitados na forma do art. 134 e seu parágrafo único deste Regimento. A inobservância de alguma dessas diretrizes resulta no não conhecimento do recurso, por falta de regularidade formal. O STJ tem decidido que não basta para a demonstração do dissídio jurisprudencial a simples transcrição de ementas, sendo imperiosa a demonstração analítica, pontual, do dissenso pretoriano. Por fim, problema já relacionado com o mérito do recurso, e apontado por NELSON LUIZ PINTO (2004, p.205) diz respeito a saber se a interpretação correta é a contida na decisão recorrida ou àquela constante do acórdão paradigma. “Assim, ainda que a decisão recorrida esteja de acordo com súmula do STJ – e, portanto, a tese sustentada no recurso especial e, conseqüentemente, na decisão paradigma seja contrária a essa súmula -, deve o recurso ser conhecido e julgado no mérito, por força da referida norma constitucional. Qualquer outra restrição infraconstitucional que se faça ao conhecimento do recurso será absolutamente inconstitucional.” Feitas essas breves considerações sobre as hipóteses de cabimento constitucionais dos recursos extraordinário e especial, passaremos ao foco do presente trabalho, que é a análise do prequestionamento como pressuposto de admissibilidade nessas espécies de recurso. 56 Capítulo 5 DO PREQUESTIONAMENTO COMO CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIO E ESPECIAL Embora muito já se tenha escrito e debatido acerca do instituto do prequestionamento, tormentosa ainda se mostra a análise de sua natureza jurídica, definição e aspectos correlatos, tal como no que se constitui o prequestionamento explícito e implícito. Debate ainda há sobre as diversas concepções doutrinárias e jurisprudenciais do prequestionamento: se seria considerado como manifestação do órgão jurisdicional recorrido acerca da questão constitucional ou federal debatida, ou se seria considerado como manifestação das partes perante o órgão jurisdicional recorrido. Todas essas particularidades devem ser examinadas e debatidas à luz da doutrina e jurisprudência pátrias, para que se possa tornar possível um enquadramento do prequestionamento dentro do sistema de admissibilidade dos recursos tidos por excepcionais. Conforme aduz MEDINA (2002, p.200-210), tarefa das mais complexas é a relativa à definição de prequestionamento. Isto porque sua exigência é antiga, estando prevista nas Constituições anteriores à Carta de 1946 a necessidade de prévio questionamento da lei federal na instância local. Assim, o conhecimento do recurso extraordinário ficaria vinculado à ocorrência do prequestionamento, consistente no questionamento realizado pelas partes. Dessa maneira, surgiu na jurisprudência pátria a utilização do termo prequestionamento para enfatizar que a parte deveria provocar o surgimento da questão federal ou constitucional no acórdão proferido na instância inferior. Posteriormente, esse entendimento evoluiu, passando a jurisprudência a se pronunciar no sentido de que existiria prequestionamento quando houvesse a decisão recorrida adotado entendimento explícito sobre o tema de direito. Sob esse aspecto, o prequestionamento estaria na decisão recorrida, não sendo decorrência da anterior postulação das partes perante o grau inferior. 57 Dessas inferências, podemos extrair que passaram a se delinear as primeiras hipóteses sobre o prequestionamento: para parte da doutrina e jurisprudência, tratava-se de decorrência da atividade postulatória das partes; para outros, justificava-se como sendo a manifestação do órgão jurisdicional recorrido acerca da questão constitucional ou federal debatida. Houve ainda, mais à frente, conjugação dessas hipóteses por outros estudiosos, que consideram o prequestionamento como sendo a manifestação da parte na instância inferior, somada à decisão da referida instância, ou seja, um híbrido, um misto. E do exame dessas hipóteses depende a conclusão no sentido de ser o prequestionamento condição de admissibilidade, ou não, dos recursos extraordinário e especial. Outro ponto que merece cuidado é o exame do que seriam prequestionamento implícito e o explícito. Para uma corrente, o prequestionamento implícito ocorre quando a decisão recorrida, embora não mencione o dispositivo legal violado, menciona a tese jurídica, e prequestionamento explícito ocorre quando o dispositivo legal violado tiver sido mencionada pela decisão recorrida. Para outra corrente de pensamento, há prequestionamento implícito quando a questão foi posta à discussão no primeiro grau de jurisdição mas não foi mencionada no acórdão, que, apesar disso, a recusa, implicitamente. Explícito então seria o prequestionamento quando houvesse decisão expressa sobre a matéria no acórdão. Assim, inicialmente, examinaremos cada uma das concepções doutrinárias e jurisprudenciais sobre o prequestionamento, para, ao final, posicionar-mo-nos acerca da natureza do instituto. Após, passaremos ao exame das concepções sobre o prequestionamento implícito e explícito, sua recepção pela doutrina, jurisprudência e sob a ótica das Súmulas de nº 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal e nº 211 do Superior Tribunal de Justiça. 58 5.1 Do Prequestionamento considerado como manifestação do órgão jurisdicional recorrido acerca da questão constitucional ou federal Como exposto em item anterior, os recursos extraordinário e especial são classificados como recursos extraordinários, por apresentarem características diversas das apresentadas por outros recursos. Para MEDINA (2002, p.211), a existência de diversos equívocos de interpretação, pela doutrina e jurisprudência, decorre do fato de que as características dos referidos recursos são muitas vezes esquecidas ou mesmo omitidas, gerando entendimentos equivocados. E exemplifica: “Exemplo disso é o que ocorreu com o prequestionamento, objeto principal do presente trabalho, que desde o início de sua aplicação era entendido como mera criação da jurisprudência dos Tribunais Superiores, chegando, até mesmo, a ser tachado de inconstitucional por esmerada doutrina.” A princípio, o estudioso dos referidos recursos deve se ater ao fato de que eles não cabem de qualquer decisão, e contra a decisão cabível não podem impugnar qualquer matéria. Isto porque têm a finalidade de possibilitar aos Tribunais Superiores o controle da constitucionalidade e inteireza positiva do direito federal, apresentando, por isso, hipóteses de cabimento e requisitos delimitados. São cabíveis contra decisão judicial de única ou última instância, conforme preceituam os artigos 102, inciso III, e 105, inciso III, da Constituição Federal. Isto é, somente podem ser exercitados quando esgotados todos os recursos cabíveis perante a instância ordinária, ou seja, são manejáveis contra decisões definitivas. E para MEDINA (2002, p.222), decisão definitiva é aquela considerada como a última decisão “possível de ser proferida na instância local, o que leva ao necessário esgotamento dos recursos ordinários, compreendidos aqui quaisquer recursos. E prossegue: “Justifica-se a imposição constitucional, segundo a doutrina, pelo fato de tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal não 59 serem órgãos destinados a mera revisão de fatos, ou da justiça da decisão. Tais questões deverão ser totalmente resolvidas nas instâncias inferiores, esgotando-se todos os recursos cabíveis.” Há que se atentar, contudo, que, enquanto o artigo 102, inciso III, da Constituição não faz nenhuma ressalva quanto ao órgão prolator da decisão de única ou última instância, contra a qual será interposto o recurso extraordinário, o artigo 105, inciso III, elenca que o recurso especial somente é cabível contra causas decididas em única ou última instância julgadas pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios. Por essa razão é que não é cabível recurso especial de decisão de única ou última instância proferida pelas Turmas Recursais dos Juizados Especiais, já que não há previsão constitucional nesse sentido. Por outro lado, perfeitamente exercitável o recurso extraordinário, já que o artigo 102, inciso III, da Constituição Federal é mais amplo. Há que se ressalvar, ainda, que, para o cabimento dos referidos recursos, é necessária a existência, na decisão recorrida, de uma questão constitucional e/ou questão federal. Isto porque, para se proceder ao estudo do prequestionamento, necessário se torna dar à questão constitucional ou à questão federal seu correto alcance, de modo a facilitar a compreensão do objeto do recurso. (MEDINA, 2002, p.225). Anteriormente à Constituição Federal de 1988 havia certa controvérsia sobre o que se consubstanciaria em uma questão federal, já que o recurso extraordinário era meio recursal utilizável tanto para os casos de violação à Constituição Federal quanto à legislação infraconstitucional. Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1988 e a bipartição do antigo recurso extraordinário em recurso especial e extraordinário, a denominação foi mantida por alguns doutrinadores, que apenas acresceram à mesma os termos constitucional e infraconstitucional. Nesse sentido, HUMBERTO THEODORO (1995, p.183-184) afirma que dentro da sistemática da nova Carta o recurso extraordinário fica restrito às questões constitucionais e o recurso especial compreende as questões infraconstitucionais, orientação com a qual se perfila SYDNEY SANCHES (1988, p.257-263). 60 E sobre a questão referente à utilização da terminologia constitucional e infraconstitucional, acompanhando o termo questão federal, acrescenta MEDINA (2002, p.236): “Apesar de o texto constitucional poder ser considerado “lei federal”, o qualificativo “federal”, em nosso sentir, não pode ser entendido como inerente à questão a que se volta o recurso extraordinário, porquanto pode haver recurso voltado à manutenção da integridade da Constituição tanto num estado federado quanto num estado unitário, seja a Justiça unitária, seja múltipla. Voltando-se o atual recurso extraordinário, precipuamente, à guarda da Constituição (CF, art. 102, caput), parece mais apropriado falar que ele é cabível quando houver questão constitucional, e não questão federal. Destarte, atualmente, em se tratando de recurso extraordinário, não há que se falar em questão federal, mas sim em questão constitucional, o qual, em nosso entender, é o termo próprio para designar as questões relativas ao recurso extraordinário. Conseqüentemente, o termo questão federal, a partir da Constituição Federal de 1988, deve ser aplicado, tãosomente, ao recurso especial, este sim voltado às necessidades da federação.” Assim, vedados ao exame de questões de fato, orientam-se os recursos extraordinário e especial à análise da violação das questões de direito, constitucional ou federal, respectivamente. Expostas essas questões, necessário se torna situar o prequestionamento sob o enfoque da manifestação do órgão jurisdicional recorrido acerca da matéria constitucional ou federal. Para essa corrente doutrinária e jurisprudencial, o prequestionamento consubstancia-se na apreciação de uma questão (constitucional ou federal) pelo órgão julgador. Dessa forma, se o acórdão proferido na instância regional examinou uma determinada questão de direito, estaria ela prequestionada. Assim, o prequestionamento decorreria de um ato do órgão julgador e não da parte, ainda que a atuação do julgador, como lembra MATTOS E SILVA (2005, p.4) decorra de um pedido da parte. Assunto que ainda gera controvérsia na doutrina e na jurisprudência reside em se saber se o dispositivo constitucional ou de lei federal deve ser expressamente mencionado no acórdão recorrido ou se basta que a matéria ou tese jurídica relativas a ele tenham sido objeto de discussão e pronunciamento. 61 Segundo MEDINA (2002, p.250), na vigência da Constituição Federal anterior a doutrina manifestava-se no sentido de que a decisão recorrida deveria examinar a questão jurídica à luz dos dispositivos legais pertinentes e, expressamente, contrariá-los. Esse entendimento, contudo, não encontrava eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Com o advento da Carta Magna de 1988, passou o Superior Tribunal de Justiça a deixar de exigir a menção ao dispositivo tido por violado no recurso especial, entendimento esse que depois passou a ser adotado também pelo Supremo Tribunal Federal. Para MEDINA (2002, p.251), referido entendimento se mostra correto, já que a finalidade dos recursos extraordinário e especial é assegurar a inteireza do direito constitucional e federal, bem como sua aplicação uniforme, função da qual não poderiam se esquivar com base em tal exigência, posicionamento com o qual concordamos, já que o mais importante é que o tema relativo à Constituição ou à lei federal tenha sido analisado na decisão recorrida, mesmo sem a indicação do dispositivo violado. Essa questão, inclusive, se constituirá em objeto de exame mais adiante, quando tratarmos do prequestionamento implícito e explícito. Indiscutível, contudo, é que a decisão recorrida examine e emita pronunciamento sobre tema relativo à Constituição Federal ou à legislação infraconstitucional, ainda que não indique os preceitos violados. Nesse mesmo sentido é a opinião de MEDINA (2002, p.252), fazendo referência a esclarecedor precedente do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema: “Não há, no entanto, na jurisprudência, constância absoluta quanto a esta orientação. Manifesta-se, em sentido inverso, corrente minoritária, a qual exige que o dispositivo legal ou constitucional que se julgue violado deva ser expressamente indicado na decisão recorrida. Nesse sentido, em decisão recente, pronunciou-se o Superior Tribunal de Justiça no seguinte sentido, em julgado relatado pelo e. Min. José Delgado: “Apesar de existir corrente jurisprudencial, no âmbito desta Egrégia Corte e do Colendo STF, que admite estar configurado o prequestionamento, independentemente de menção expressa aos dispositivos legais invocados, desde que a matéria trazida pelo especial tenha sido enfrentada no pronunciamento do Tribunal a quo, outra corrente no seio deste Tribunal só admite o recurso especial quando houver menção expressa dos dispositivos legais apontados como violados, caracterizando, assim, o necessário prequestionamento. E a essa corrente, com as mais nobres escusas aos entendimentos divergentes, filiome.” 62 Acreditamos que o entendimento acima espelha a melhor conclusão acerca do que vem a ser o objeto do prequestionamento, já que o que se espera é que a questão jurídica tenha sido examinada pelo acórdão recorrido, o que não depende necessariamente da menção a um determinado dispositivo, legal ou constitucional. Ainda que a corrente que considera o prequestionamento como manifestação das partes perante o órgão jurisdicional recorrido pareça, em um primeiro momento, sob o aspecto morfológico, a mais adequada, entendemos que a corrente que o tem como manifestação do órgão jurisdicional recorrido mostra-se mais sustentável sob alguns aspectos, sobre os quais emitiremos análise comparativa após examinarmos a segunda corrente. 5.2 Do Prequestionamento considerado como manifestação das partes perante o órgão jurisdicional recorrido Outra corrente doutrinária que estuda o instituto do prequestionamento é aquela que o considera como manifestação das partes perante o órgão jurisdicional recorrido, sobre a qual procederemos ao exame, tanto sob o enfoque doutrinário como jurisprudencial. Conforme foi explicitado no item acima, os recursos extraordinário e especial têm a finalidade de possibilitar aos Tribunais Superiores o controle da constitucionalidade e inteireza positiva do direito federal. Sendo vedados ao exame de questões de fato, têm por escopo o exame de questões de direito, constitucional ou federal, respectivamente. Assim, para que os Tribunais Superiores possam examinar alegada violação a tema inserto na Constituição Federal ou presente em legislação infraconstitucional, é necessário que o Tribunal regional tenha sobre ele emitido pronunciamento, ou seja, examinado a questão jurídica e adotado conclusão em descompasso com os referidos diplomas legais. 63 Para a primeira corrente, que considera o prequestionamento como manifestação do órgão jurisdicional recorrido, satisfeito esse requisito, ou seja, examinada a questão jurídica constitucional ou infraconstitucional pelo Tribunal de origem, estará configurado o requisito do prequestionamento. Para a segunda corrente, o prequestionamento é tratado como manifestação do órgão jurisdicional recorrido sobre a questão constitucional ou federal, em decorrência da provocação das partes. Ainda que concordemos, sob o aspecto morfológico, que a segunda corrente apresenta a melhor conclusão, por tratar o instituto como o debate prévio pela parte, ou seja, o prévio questionamento da questão jurídica pela parte, concluímos que a primeira corrente é a que apresenta base mais sólida. Contudo, passaremos ao exame e confronto das teses defendidas por ambas ao final do exame de cada corrente. Como salientado, é imprescindível a existência da questão constitucional ou federal para que o recurso extraordinário ou especial seja cabível. Ainda que a atual Constituição não mencione expressamente o termo “questionar”, como faziam algumas das precedentes, não se pode concluir pela desnecessidade da presença da questão jurídica no acórdão recorrido, o que, inclusive, durante muito tempo, suscitou controvérsia sobre a constitucionalidade do prequestionamento. Nesse sentido, PEDRO BATISTA MARTINS (1957, p.389), ao comentar a Constituição de 1946, concluiu que, a partir de então, omitido o termo “questionar”, tornou-se desnecessário o questionamento prévio, o qual, segundo o autor, “fundava-se na interpretação literal dos textos constitucionais anteriores e cuja necessidade de sua prova era pacífica em doutrina e jurisprudência”. MEDINA (2002, p.286-287), discorrendo sobre a celeuma criada após a omissão do termo “questionar” das Constituições Federais posteriores à de 1967, destaca a posição da doutrina: “A exigência de realização de prequestionamento pelas partes, perante a instância local, contudo, não se encontra expressa na Constituição Federal. Diante disso, há na doutrina, fortes vozes que questionam a 64 constitucionalidade do requisito. Alcides de Mendonça Lima, um dos expoentes desta tendência, leciona que “em nenhum dispositivo de Código ou lei esparsa aparece o pressuposto do prequestionamento, para justificar a admissibilidade ou o conhecimento do recurso especial ou do recurso extraordinário, ainda que ambos sejam fundados. (...) Tal orientação é tanto mais grave, porque afasta o julgamento final até de matéria constitucional, prevalecendo, assim, o vício grave”. Guilherme Caldas da Cunha vai mais além, defendendo explicitamente a inconstitucionalidade do prequestionamento: “A exigência do pré-questionamento da questão federal, para ensejar o cabimento do recurso especial, imprimida pela jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e recepcionada pelo Superior Tribunal de Justiça, é, hoje, inconstitucional. Concordamos com os doutrinadores citados, quanto à afirmação de que o prequestionamento não se encontra previsto na Constituição Federal atual. A concepção de prequestionamento traçada no item precedente revela que, para nós, o que exige a Constituição Federal é que a decisão federal ou constitucional esteja presente na decisão recorrida, o que não equivale ao prequestionamento realizado pelas partes, o qual deve ocorrer necessariamente antes da decisão recorrida. Não se pode afirmar, contudo, sem maiores ponderações, que a exigência do prequestionamento é inconstitucional. Apesar de não previsto na Carta Magna, a exigência do prequestionamento encontra-se em consonância com os preceitos constitucionais que erigem o recurso extraordinário e o recurso especial.” Ou seja, o prequestionamento é inerente e intrínseco à natureza dos recursos extraordinário e especial, já que não existe viabilidade na interposição dos referidos recursos quando a decisão recorrida houver deixado de abordar questão jurídica. Somente com a existência da questão constitucional ou federal no acórdão objeto de recurso é que se dá por satisfeita a exigência do prequestionamento. Para a corrente ora em exame, o prequestionamento decorre da provocação das partes perante o órgão jurisdicional, ou seja, precede a decisão recorrida. Defensor da corrente que considera o prequestionamento como manifestação das partes perante o órgão jurisdicional recorrido, MEDINA assevera que a questão jurídica examinada no acórdão pode surgir em duas situações distintas: numa, a questão jurídica, federal ou constitucional, surge em razão da provocação das partes, que sobre ela controvertem e postulam manifestação do Tribunal recorrido a respeito; noutra, a questão é erigida e resolvida pelo próprio Tribunal recorrido, com surpresa para as partes. (2002, p.290) 65 Para o referido autor, em ambos os casos estar-se-ia diante da questão federal ou constitucional controvertida, apta a embasar a interposição do recurso especial ou extraordinário. Entretanto, somente no primeiro caso é que a questão federal ou constitucional teria surgido por meio do prequestionamento. E prossegue afirmando que o “questionamento da matéria” pelas partes se revela não apenas útil, senão imprescindível em determinados casos, em que dificilmente o Tribunal se manifestaria sem provocação. “Consoante se verificou retro, é regra que o órgão julgador ad quem somente poderá julgar dentro daquilo que tiver sido postulado nas razões de recurso. Daí decorre a necessidade da prévia postulação das partes, pelo menos em relação às matérias que não podem ser conhecidas ex officio pelo órgão do qual emana a decisão suscetível de ser alvo dos recursos extraordinário e especial.” (2002, p.292) Isto porque, a partir da Constituição Federal de 1946, o “questionamento” deixou de constar do texto constitucional, tendo a jurisprudência, durante algum tempo, redirecionado no sentido da exigência do prequestionamento pelas partes, sob o fundamento de que se trataria de exigência implícita. Para MEDINA (2002, p.294), referidos precedentes, exarados na vigência da Carta Magna de 1946, contribuíram para o surgimento do entendimento de que o prequestionamento seria “requisito jurisprudencial”, não decorrendo mais da Constituição, o que, segundo ele, foi o início dos equivocados entendimentos relativos ao tema, que então passaram a se suceder. Reflexo dessa orientação jurisprudencial, no sentido de que o prequestionamento é decorrente da manifestação das partes, encontra-se no texto das Súmulas 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal, ambas editadas em 16.12.1963. A Súmula 356, inclusive, prescreve que “o ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”. Referida orientação, entretanto, vem sendo mitigada, pelo menos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que tem entendido não bastar que as partes tenham tornado determinado ponto controverso, transformando-o em questão jurídica. 66 Assim, imprescindível que o Tribunal se manifeste sobre a questão discutida. Como assevera MEDINA (2002, p.297) sob o prisma em análise, mais importante que a realização do prequestionamento pelas partes é a presença da questão federal ou constitucional no acórdão recorrido. Para a corrente ora em exame, que considera o prequestionamento como manifestação das partes perante o órgão jurisdicional recorrido, haverá questão federal ou constitucional no acórdão sempre que o juiz aplicar a lei federal ou a Constituição à hipótese, seja em decorrência de as partes terem controvertido acerca de determinado ponto, seja quando o próprio órgão julgador identificar o ponto, colocá-lo em dúvida e sobre ele resolver. Todavia, para a referida corrente somente terá havido prequestionamento na primeira hipótese, em que o pronunciamento do Tribunal se der em decorrência da provocação das partes. Assim, para essa orientação doutrinária, não se pode dizer que o prequestionamento ocorra na decisão recorrida, mas sim, necessariamente, antes dela. (MEDINA, 2002, p.304) 5.3 Natureza jurídica Examinadas as correntes doutrinárias acerca do prequestionamento, e com base nas informações trazidas por ambas, passaremos à análise da natureza jurídica do instituto, de modo a concluirmos se se trata ou não de requisito ou condição de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial. Impera na doutrina o entendimento de que prequestionamento é um dos requisitos necessários para o cabimento do recurso extraordinário e do recurso especial. Alfredo prequestionamento Buzaid, apud MEDINA é das condições uma (2002, de p.305), afirma admissibilidade do que o recurso extraordinário, e chega a afirmar que, não havendo, na letra da Constituição, determinação no sentido da necessidade do prequestionamento, este estaria por ela implicitamente previsto. 67 Para MEDINA (2002, p.306), esta é a razão pela qual tratam o prequestionamento como “requisito jurisprudencial” para a admissibilidade dos recursos extraordinário e especial. Referido autor não concorda com a referida concepção. Para ele, se nem sequer a norma infraconstitucional pode criar óbices à admissibilidade do recurso extraordinário ou do especial, nem se cogitaria que a jurisprudência o pudesse, ainda que solidificada em súmulas. Acrescenta o fato de que não há, na Constituição Federal, expressa ou implicitamente, referência ao questionamento prévio, pelas partes, perante a instância inferior. Por essas razões, conclui que o prequestionamento não é uma das condições de admissibilidade do recurso extraordinário ou de recurso especial. Entretanto, discordamos da opinião de MEDINA, por entendermos, assim como parte da doutrina, que, apesar de a Constituição não prever o prequestionamento, este decorre da natureza extraordinária dos recursos extraordinário e especial. Nesse sentido é o entendimento do Ministro COSTA LEITE, apud MEDINA (2002, p.307), no seguinte sentido: “Forçoso reconhecer que a exigência de prequestionamento não é pacífica na doutrina. Há respeitáveis opiniões num e noutro sentido. Não me parece correto, entretanto, negar-lhe legitimidade apenas porque o texto constitucional, a partir de 1946, deixou de contemplá-la expressamente. O equívoco fundamental está em que a exigência de prequestionamento decorre da própria natureza extraordinária do recurso, pouco importando o silêncio da Constituição” (Recurso especial: admissibilidade e procedimento, in Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord), Recursos no Superior Tribunal de Justiça, p.192).” Para DALL´AGNOL JUNIOR (1994, p.118), mais adequado parece o entendimento dos que vêem no prequestionamento exigência natural dessa espécie de impugnação, opinião que partilhamos. Em se tratando os recursos extraordinário e especial de modalidades destinadas ao exame de questões de direito, não comportando análise fática, é imprescindível que tais matérias jurídicas tenham sido objeto de pronunciamento pela decisão recorrida, sob pena de os Tribunais Superiores não ter sobre o que se debruçar no tocante ao mérito dos recursos. 68 Isso porque, embora não previsto expressamente na Carta Magna, o prequestionamento se afigura íntima e indissoluvelmente inserido no sistema de admissibilidade dos apelos extremos, pois, como dissemos, sem o debate prévio sobre a questão federal ou constitucional não haverá o necessário substrato jurídico a embasar o recurso cabível – recurso especial ou extraordinário, ambos de fundamentação vinculada – bem como a contrariedade, a negativa de vigência, o desacerto ou a interpretação equivocada, alvos de exame pelo Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça, conforme o caso. E isto porque, segundo RODRIGO KLIPPEL (2008, p.387), a finalidade dos apelos extremos não é criar “um segundo ou terceiro” tempo de análise do direito subjetivo, mas sim, manter a coesão do ordenamento jurídico, para que se garanta isonomia aos jurisdicionados. Assim, não há como se negar que o prequestionamento componha a sistemática necessária à admissibilidade dos recursos extraordinário e especial, ainda que não expresso no texto constitucional. Poderíamos até entender que o prequestionamento estaria inserido na expressão “causas decididas”, constante do inciso III dos artigos 102 e 105 da Constituição Federal. Nesse sentido é a manifestação de RODRIGO KLIPPEL (2008, p.388), para quem restabeleceu-se o entendimento de que o prequestionamento encontra assento constitucional, insculpido na cláusula “causa decidida”. No entanto, entende que a forma como foi previsto é deveras insegura, posto que a locução em comento dá ensejo a inúmeras interpretações, entre as quais aponta as mais recorrentes na prática: prequestionamento implícito e explícito. Ainda que não haja previsão constitucional ou legal no sentido da exigência do prequestionamento, temos que a necessidade do preenchimento do requisito se deve à própria natureza dos recursos extraordinário e especial, já que somente se alcança o objetivo inserto nos artigos 102, III, e 105, III, da Constituição Federal, quando houver na decisão recorrida exame e pronunciamento do Tribunal sobre a questão jurídica, constitucional ou legal. Assim, ainda que concordemos com o fato de que não haja qualquer tipo de previsão quanto ao prequestionamento, seja constitucional ou legal, ainda assim, 69 entendemos ser ele, pelas razões acima, um requisito ou condição de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial. Trata-se de condição exclusiva, própria, inerente à natureza dos referidos recursos, razão pela qual, acreditamos, exista tanta controvérsia a respeito do assunto. 5.4 Prequestionamento implícito e explícito Não há consenso, também, no que concerne à configuração do prequestionamento, em particular no que se entende por prequestionamento implícito, e qual a diferença deste como o denominado explícito. Segundo MEDINA (2002, p.318), há na doutrina e jurisprudência pelo menos duas concepções acerca do que se deva considerar prequestionamento implícito e explícito: “Para uma concepção, prequestionamento implícito ocorre quando, apesar de mencionar a tese jurídica, a decisão recorrida não menciona a norma jurídica violada, e prequestionamento explícito quando a norma jurídica violada tiver sido mencionada pela decisão recorrida. Para outro entendimento, há prequestionamento implícito quando a questão foi posta à discussão no primeiro grau mas não foi mencionada no acórdão, que, apesar disso, a recusa, implicitamente. Explícito, assim, seria o prequestionamento quando houvesse decisão expressa acerca da matéria no acórdão.” MATOS E SILVA (2002, p.10-11) define prequestionamento implícito o que configura uma questão apreciada, em razão de expressa apreciação de questão outra, que daquela é decorrente, e expõe como exemplo a questão da competência do juiz: se ele julga a questão de mérito, implicitamente reconheceu sua competência. Para NELSON prequestionamento LUIZ PINTO implícito pelo (1996, Superior p.191), Tribunal a de admissibilidade Justiça do reduziu 70 significativamente a importância do enunciado da Súmula 356, uma vez que, como se observou, não se faz necessário que seja mencionado no acórdão recorrido o dispositivo legal que se alega ter sido violado, bastando que a questão federal tenha sido enfrentada e decidida nas instâncias inferiores. Nessa mesma linha de entendimento manifesta-se MANCUSO (2003, p.232), nos seguintes termos: “Atualmente, o prequestionamento da matéria devolvida ao STF e ao STJ por força dos recursos extraordinário e especial há que ser entendido com temperamento, não mais se justificando o rigor que inspirou as Súmulas 282, 317 e 356. Desde que se possa, sem esforço, aferir no caso concreto que o objeto do recurso está razoavelmente demarcado nas instâncias precedentes, cremos que é o bastante para satisfazer essa exigência que, de resto, não é excrescente, mas própria dos recursos de tipo extraordinário, malgrado não conste, às expressas, nos permissivos constitucionais que o regem. É que os Tribunais Superiores, não se constituindo em 3ª ou 4ª instâncias, apenas conhecem da matéria jurídica bem delineada na extensão e compreensão do que lhes foi devolvido pelo recurso de tipo excepcional. Por outras palavras, a eles não se aplicam os brocardos iura novit curia e o da mihi factum, dabo tibi jus, próprios dos juízes singulares e dos Tribunais de Apelação (Justiça, Alçadas), que conhecem da matéria jurídica e da de fato. Daí por que, tanto que o tema federal ou constitucional tenha sido agitado, discutido, tornando-se res dubia ou res controversa (RTJ 109/371), cremos que ele estará prequestionado.” E prossegue, traçando um paralelo entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça acerca do que se entende por prequestionamento implícito e prequestionamento explícito: “Acórdãos do STF e do STJ chegaram a trilhar esse caminho, como dá notícia Elísio de Assis Costa: o STF decidiu que a Súmula 282 (que reclama o prequestionamento) “só exige haja sido ventilado na decisão recorrida o tema de direito federal, não mencionando ser indispensável a precisa indicação dos dispositivos questionados” (DJU, 9.6.89). E no STJ, o Min. Luís Vicente Cernicchiaro deu por dispensável a “indicação explícita da norma contrariada”, não se mostrando necessário “mencioná-la formalmente” (DJU, 8.8.89, p.12.813). Roberto Carvalho de Souza dá notícia de que no âmbito do STJ prossegue essa tendência a se admitir o prequestionamento sem os rigores de um formalismo excessivo, como neste acórdão relatado pelo Min. Antônio de Pádua Ribeiro: “Orienta-se a jurisprudência no sentido da indispensabilidade do prequestionamento da questão federal suscitada no recurso especial. A regra adotada é a do 71 prequestionamento explícito, admitindo-se, em casos excepcionais, o denominado prequestionamento implícito” (DJU 9.3.92, p.2.527).” Para PERCEU GENTIL NEGRÃO, apud MEDINA (2002, p.319), pode-se dizer que prequestionamento explícito é aquele onde houve expressa menção a determinado dispositivo legal. Já o prequestionamento implícito é aquele onde determinado texto de lei foi examinado, mas não referido expressamente ou de modo claro”. Nesse mesmo sentido, RODRIGO KLIPPEL (2008, p.388): “Prequestionamento implícito corresponde à idéia de que tal requisito de admissibilidade se concretiza por meio do julgamento de uma determinada tese jurídica pelo acórdão proferido no tribunal de origem, do qual se recorre. Julgar a tese jurídica significa apreciar uma questão (ponto controvertido) à luz do ordenamento jurídico, sem que haja a necessidade de que se faça menção expressa ao artigo de lei que embasou a decisão. O adjetivo “implícito” significa justamente que, embora tenha se discutido o ponto controvertido em confronto com as prescrições genéricas do ordenamento, o acórdão guerreado não fez menção expressa ao artigo de lei que contém a informação com base na qual se decidiu. Tal idéia baseia-se no conceito de que as normas jurídicas são proposições que emanam de enunciados prescritivos (os artigos de lei), não havendo necessidade de transcrever ou enunciar os tais artigos, já que a Lei de Introdução do Código Civil prescreve que a ninguém é lícito alegar o desconhecimento da lei, muito mais o órgão jurisdicional incumbido de sua homogeneização. Contrária a essa idéia é a de “prequestionamento explícito”, em que se exige que o artigo de lei tenha sido citado pelo acórdão objeto de recurso.” E acrescenta DINAMARCO, apud MEDINA (2002, p.319), que o chamado prequestionamento implícito há de ser suficiente, desde que esteja fora de dúvida a intenção das partes em discutir a causa sobre fundamentos ligados à ordem jurídica federal. Calcada a discussão sobre determinada categoria jurídica (v.g., vícios de consentimento, responsabilidade civil extracontratual, a regra pacta sunt servanda etc), consideram-se prequestionados os pontos referentes à disciplina dessa categoria na lei, ainda que a parte ou o acórdão não haja feito expressa alusão a artigos. 72 Para JURANDIR FERNANDES DE SOUZA (RT, v.693, p.93-99), no prequestionamento explícito, exige-se que a decisão recorrida haja feito expressa menção ao dispositivo legal tido por infringido. E essa é, inclusive, a orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai dos precedentes abaixo colacionados: “Conquanto se dispense o prequestionamento explícito dos dispositivos apontados no recurso como violados, é indispensável, para que o recurso especial possa ser conhecido, que a matéria nele ventilada tenha sido objeto de apreciação no acórdão recorrido” (STJ, REsp 49.148-SP, 4ª T. rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 30.05.1995, DJU 19.06.1995, p.18.709).” “Agravo regimental no recurso especial. Prequestionamento implícito. Auxílio suplementar. Auxílio-acidente. Transformação. Lei mais benéfica. Incidência. 1. Na linha do entendimento desta Corte, para preenchimento do requisito do prequestionamento é necessário que as matérias trazidas ao exame do Superior Tribunal de Justiça tenham sido efetivamente apreciadas pelo acórdão recorrido, não havendo falar na necessidade de expressa menção aos dispositivos legais tidos por violados. (AgRg no REsp 365.079/SP – Rel. Min. Paulo Gallotti – 6ª T. j. em 18.11.2004 – DJ 02.10.2006 – p.317).” “Processual civil. Locação. Recurso especial. Prequestionamento implícito. Ocorrência. Penhora. Embargos de terceiro. Posse oriunda de contrato particular de permuta e cessão de direitos. Legitimidade ativa. Existência. Registro imobiliário. Desnecessidade. Súmula 84/STJ. Violação ao art. 1.046, § 1º, do CPC e dissídio jurisprudencial configurados. Recurso especial conhecido e provido. 1. A teor da pacífica e numerosa jurisprudência, para a abertura da via especial, requer-se o prequestionamento, ainda que implícito, da matéria infraconstitucional. A exigência tem como desiderato principal impedir a condução a esta Corte de questões federais não debatidas no Tribunal de origem. Hipótese em que, malgrado o acórdão recorrido não tenha feito expressa indicação ao art. 1.046, § 1º, do CPC, a tese jurídica defendida pelos recorrentes – possibilidade de oposição de embargos de terceiro possuidor de imóvel constrito com base em “contrato particular de permuta e cessão de direitos” foi abordada no acórdão recorrido (REsp 551.076/RS – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – 5ª T. – j. em 22.08.2006 – DJ 18.09.2006 – p. 351).” MANCUSO (2002, p.234), inclusive, comenta essa orientação mais branda do STJ, indicando precedentes daquela Corte: “Nessa linha moderada que, como dissemos, nos parece o melhor caminho a seguir, há diversas decisões do STJ, conforme dá notícia o Min. Athos Gusmão Carneiro: “A orientação firmada no Superior Tribunal de Justiça, 73 em Sessão Plenária, foi no sentido de que o prequestionamento implícito ‘consiste na apreciação, pelo tribunal de origem, das questões jurídicas que envolvam a lei tida por vulnerada, sem mencioná-la expressamente. Nestes termos, tem o Superior Tribunal de Justiça admitido o prequestionamento implícito. São numerosos os precedentes nesta Corte que têm por ocorrente o prequestionamento mesmo não constando do corpo do acórdão impugnado a referência ao número e à letra da norma legal, desde que a tese jurídica tenha sido debatida e apreciada’ (Corte Especial, REsp 155.621, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, v.u., DJU 02.06.1999)”. Prossegue o Min. Gusmão Carneiro: “Dos EREsp. 166.147, de que foi relator o Min. Eduardo Ribeiro, j. 15.12.1999, constou haver a Corte decidido, à unanimidade, que não há necessidade de menção explícita, no acórdão recorrido, do dispositivo legal dito contrariado, sendo suficiente haja sido debatida a questão jurídica para que se considere atendido o requisito do prequestionamento.” Já no Supremo Tribunal Federal, a orientação, mais rígida, é no sentido da exigência do prequestionamento explícito da matéria constitucional, tendo o Min. Sepúlveda Pertence salientado, conforme expõe MANCUSO (p.235), que sendo o recurso extraordinário um instrumento de revisão in jure, “não investe o Supremo de competência para vasculhar o acórdão recorrido, à procura de uma norma que poderia ser pertinente ao caso, mas da qual não se cogitou. Daí a necessidade de pronunciamento explícito do Tribunal a quo sobre a questão suscitada no recurso extraordinário. Sendo o prequestionamento, por definição, necessariamente explícito, o chamado ‘prequestionamento implícito’ não é mais do que uma simples e inconcebível contradição em termos” (AgRg 253.566-6, DJU 03.03.2000). Esse rigor por parte do Excelso Pretório, contudo, vem sendo objeto de mitigação, conforme aponta RODRIGO KLIPPEL (2008, p.389), para quem a assertiva genérica que atribui ao STF o prequestionamento explícito e ao STJ o implícito não mais corresponde à realidade das duas cortes, que hoje estão uniformizando seu entendimento, e adotando o chamado “prequestionamento implícito”. E comprova sua assertiva com base em dois precedentes da Excelsa Corte, ambos da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, distantes entre si pelo lapso de um ano, os quais, pela importância dentro do presente trabalho, abaixo transcrevemos: “Recurso extraordinário: descabimento: alegada violação dos arts. 5º, LV; 37, caput, XIII; 39; 61, § 1º, II, “a” e “b”; da Constituição – fundamento do RE – não discutida pelo acórdão recorrido, nem objeto de embargos de 74 declaração, não admitido pela jurisprudência do Tribunal o chamado “prequestionamento implícito” (Súmulas 282 e 356) (AI-AgRg 508418/BA – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – 1ª T. – j. em 27.09.2005 – DJ 14.10.2005)” “1. Recurso extraordinário: descabimento: ausência de prequestionamento do dispositivo constitucional tido por violado (CF, art. 5º, XXXVI), não admitido pela jurisprudência do Tribunal o chamado “prequestionamento implícito” (Súmula 282). 2. Recurso extraordinário e prequestionamento. O prequestionamento para o RE não reclama que o preceito constitucional invocado pelo recorrente tenha sido explicitamente referido pelo acórdão, mas é necessário que este tenha versado inequivocamente a matéria objeto da norma que nele se contenha. (AI-AgRg 585604 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – j. em 05.09.2006 – 1ª T. – DJ 29.09.2006)” Referidos precedentes apontam um alinhamento entre as jurisprudências do STJ e STF no tocante à exigência do prequestionamento implícito da questão federal ou constitucional pelo acórdão regional, tornando, cada vez mais, rarefeita de conteúdo e meramente acadêmica a discussão acerca da divergência de entendimento sobre o prequestionamento entre essas cortes. Cite-se, ainda, precedente da lavra da Ministra Ellen Gracie que dispensou o preenchimento do requisito do prequestionamento de um recurso extraordinário sob o fundamento de dar efetividade a posicionamento do STF sobre questão constitucional, adotado em julgamento de outro recurso extraordinário (AI 375.011), referido por DIDIER JR. (2006. p.110), em que a Ministra manifestou-se expressamente sobre a transformação do recurso extraordinário em remédio de controle abstrato de constitucionalidade: “AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDORES DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. REAJUSTE DE VENCIMENTO CONCEDIDO PELA LEI MUNICIPAL 7.428/94, ART. 7º, CUJA INCONSTITUCIONALIDADE FOI DECLARADA PELO PLENO DO STF NO RE 251.238. APLICAÇÃO DESTE PRECEDENTE AOS CASOS ANÁLOGOS SUBMETIDOS À TURMA OU AO PLENÁRIO (ART.101 DO RISTF). Decisão agravada que apontou a ausência de prequestionamento da matéria constitucional suscitada no recurso extraordinário, porquanto a Corte a quo tão-somente aplicou a orientação firmada pelo seu Órgão Especial na ação direta de inconstitucionalidade em que se impugnava o art. 7º da Lei 7.428/94 do Município de Porto Alegre – cujo acórdão não consta do traslado do presente agravo de instrumento -, sem fazer referência aos fundamentos utilizados para chegar à declaração de constitucionalidade da referida norma municipal. 75 Tal circunstância não constitui óbice ao conhecimento e provimento do recurso extraordinário, pois, para tanto, basta a simples declaração de constitucionalidade pelo Tribunal a quo da norma municipal em discussão, mesmo que desacompanhada do aresto que julgou o leading case. O RE 251.238 foi provido para se julgar procedente ação direta de inconstitucionalidade da competência originária do Tribunal de Justiça estadual, processo que, por força do art. 101 do RISTF, deve ser imediatamente aplicada aos casos análogos submetidos à Turma ou ao Plenário. Nesse sentido, o RE 323.526, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence. (AI-AgRg 375.011 – Rel. Min. Ellen Gracie – j. em 05.10.2004 – 2ª T. – DJ 28.10.2004)” Referidos precedentes apontam, portanto, um abrandamento no rigor no entendimento do STF a respeito da exigência do prequestionamento, elogiável a nosso sentir, pois reflete maior preocupação com o que realmente tem importância no tocante ao prequestionamento: o debate acerca da questão jurídica posta, e não menção a tal ou qual artigo de lei ou da constituição. 76 CONCLUSÃO Postas essas considerações, e examinadas as principais e mais relevantes questões que interessam ao presente trabalho, chegamos às seguintes conclusões a respeito do prequestionamento: 1. Desde a inserção do recurso extraordinário no direito pátrio, o requisito do prequestionamento sempre esteve presente na sistemática referente à admissibilidade de tal recurso, sendo inicialmente previsto de forma expressa no texto constitucional, e posteriormente tendo seu vocábulo suprimido, o que ocasionou, ao nosso ver, toda a controvérsia e discussão sobre sua existência e exigibilidade, embora nunca tivesse sido dispensado; 2. Com relação ao sistema de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial pelos Tribunais Superiores, entendemos que o prequestionamento é condição ou pressuposto nele inserido de forma intrínseca e indissolúvel, por ser inerente à finalidade desses recursos, que é a tutela da higidez do ordenamento jurídico; 3. Embora a corrente que sustenta estar o prequestionamento atualmente inserido no texto constitucional sob a cláusula “causas decididas” nos pareça razoável, dela não partilhamos, por entender que a referida locução não apresenta precisão capaz de infirmar tal conclusão, bem como que o atual sistema de admissibilidade dos apelos extremos não prescindiria do prequestionamento, esteja ele inserto ou não no texto constitucional, por se tratar de aspecto inseparável da finalidade a que se propõem tais recursos; 4. O prequestionamento é de fundamental importância para a atuação dos Tribunais Superiores, pois consiste em um dos mais seguros freios à interposição de recursos a eles dirigidos, sendo essencial ao seu processamento e julgamento, além de viabilizar a regular atividade dessas cortes, eis que, sem uma medida como essa, que sem dúvida corresponde a uma das mais corretas políticas processuais coligadas ao STJ e ao STF, tais instâncias seriam, na prática, inviáveis; 77 5. Entre as correntes que estudam a natureza do prequestionamento (como manifestação do órgão jurisdicional recorrido acerca da questão constitucional ou federal ou como manifestação das partes, perante o órgão jurisdicional recorrido) posicionamo-nos de acordo com a primeira, por entender que o requisito do prequestionamento somente é atendido quando há o necessário pronunciamento do tribunal de origem sobre a questão jurídica, não obstante tenha havido provocação da parte para tal fim. Isto porque, embora concordemos que na maioria dos casos o tribunal de manifesta em decorrência de terem as partes levado a controvérsia a exame, é somente com o pronunciamento da corte regional que se terá por prequestionado o tema que eventualmente será examinado pelo STF ou STJ. Entendimento em sentido contrário – de que o prequestionamento decorre da manifestação das partes – nos levaria à conclusão que consideramos absurda, no sentido de que, havendo provocação das partes sem manifestação do tribunal regional, atendido estaria o pressuposto do prequestionamento, o que inclusive é rechaçado pela jurisprudência dos referidos sodalícios; 6. Quanto aos entendimentos sobre em que consiste o prequestionamento implícito e explícito, e os diversos enquadramentos do assunto, filiamo-nos àquela orientação que tem no prequestionamento implícito a idéia de que tal pressuposto de admissibilidade se concretiza por meio do julgamento de uma determinada tese jurídica pelo acórdão proferido pelo tribunal de origem. Isto porque, embora tenha discutido o ponto controvertido em confronto com as prescrições genéricas do ordenamento, a decisão recorrida não faz menção expressa ao artigo de lei que contém a informação com base na qual se decidiu, o que decorre do fato de que as normas jurídicas são proposições que emanam de enunciados prescritivos – artigos de lei – não havendo necessidade de transcrever tais artigos, já que a ninguém é lícito alegar o desconhecimento da lei, muito menos ao órgão jurisdicional incumbido de sua uniformização. 78 No que diz respeito ao prequestionamento explícito, entendemos presente quando exigido que a decisão recorrida haja feito expressa menção ao dispositivo legal tido por infringido; 7. Assim como a maioria da doutrina, bem como o STJ, entendemos que o prequestionamento implícito é suficiente para a demonstração do exame da questão jurídica federal ou constitucional pelo tribunal de origem, e, como demonstramos, o próprio STF, a princípio mais rígido, ao eximir que o prequestionamento das matérias jurídicas seja feito de forma explícita, isto é, com expressa menção ao dispositivo legal tido por infringido, vem abrandando seu rigorismo, ao aceitar o exame implícito das questões jurídicas como suficiente à demonstração do prequestionamento. 79 REFERÊNCIAS CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, trad. Bras., 1. ed., São Paulo, 1942. DALL´AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. O prequestionamento da questão federal nos recursos extraordinários. Revista de Processo, São Paulo, v.74, p.118, abril-junho de 1994. DIDIER JR., Fredie. Transformações do recurso extraordinário. Série Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos, São Paulo: RT, 2006. v.10, p.104-121. 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