Exclusão Social: Conceito Polissêmico
Fernando Antonio Feitoza dos Santos
A noção de exclusão social, tratada a partir de diversas perspectivas, vem sendo utilizada em diferentes
áreas de conhecimento, a ponto de ter se tornado banalizada e pouco precisa. Trata-se de um conceito
polissêmico, e que por isso mesmo compreende os mais variados fenômenos, sem que muitas vezes se saiba,
ao certo, o que está em jogo quando está sendo utilizada (Jodelet, 1996 ).
Neste capítulo será discutida a contribuição de alguns autores acerca da teoria sobre exclusão social.
Além disso, a concepção que dela têm os pesquisadores do NEXIN também será aqui abordada. Junto a esses
últimos foi sendo forjada, gradativamente, uma determinada idéia de exclusão - adotada nesta pesquisa - que
pareceu ser bastante oportuna e interessante, visto que é capaz de abarcar aspectos que ampliam e enriquecem
o referido conceito.
Em função exatamente do caráter ambíguo da noção de exclusão é que alguns pesquisadores
propuseram a sua substituição por outros conceitos. É este o caso, por exemplo, de Castel, que prefere falar
em desfiliação social. Para ele, desempregados de longa duração são excluídos, tanto quanto jovens à procura
de um emprego, ou mesmo jovens da periferia. Entretanto, o que o autor faz questão de enfatizar é que, com
certeza, essas pessoas não têm as mesmas trajetórias, destinos e vivências. É precisamente pelo fato do termo
exclusão ser utilizado de uma maneira muito inflacionada que Castel o vê como um conceito-mala, o qual
cobre realidades completamente heterogêneas ( Castel, 1995 b ).
Além disso, Castel pensa que a noção de exclusão é perigosa, visto que ela acaba fazendo com que se
focalize nas margens, um problema que se origina em outros espaços. Aliás, diz ele, a atenção dada às
margens tem freqüentemente permitido economizar reflexão sobre o que se passa no centro. O que realmente
se configura como a verdadeira questão é a trajetória desses indivíduos.Por isso mesmo, para o autor, a noção
de desfiliação revela melhor o percurso empreendido por cada um, o que é visto como a unidade de análise
por excelência do problema atual. Seu efeito maior consiste em colocar à margem parcelas crescentes da
população ( Castel, 1995 b ).
Em suas reflexões, Castel sustenta que , se por um lado, a existência do homem ocidental tem sido, sem
dúvida, sempre ligada às provações da incerteza e da precariedade, por outro, tinha-se conseguido contê-las
pela instituição do regime salarial. Ora, isto equivale a dizer que em sua contribuição teórica, o trabalho ganha
o estatuto de suporte privilegiado de inscrição na estrutura social. Ou seja, a experiência contemporânea da
exclusão não pode ser pensada a não ser em relação a esta forma de organização do trabalho. Assim, para
Castel, a questão da exclusão remeteria muito mais a uma reflexão sobre o futuro da sociedade salarial e
organização do trabalho, como já foi mencionado anteriormente, do que a um problema de inserção social
(Castel, 1995 a).
Em resumo, o que Castel afirma como determinante do processo de desfiliação moderna é o fato do
trabalho deixar de ser o “grande integrador”. A desfiliação, para ele, é o efeito de um desequilíbrio geral cujas
causas se encontram no trabalho e em seu modo de organização atual. A forma como desempregados reagem
à expulsão do trabalho, mostra que eles o consideram como o principal espaço da dignidade e da cidadania
(Castel, 1995 b).
Entretanto, mesmo situando a exclusão em relação ao trabalho, a nível mais geral, Castel sustenta que
existe uma correlação entre o que se passa na ordem do trabalho, do trabalho desintegrado, do trabalho
vulnerável, do trabalho precário ou da ausência de trabalho, e o que se passa na ordem das relações de
proximidade, da família, da vizinhança. O desemprego ou a precariedade do trabalho, por exemplo, podem
levar a uma certa dissociação familiar ou mesmo a divórcios. Mas a correlação não parece ser mecânica,
havendo também fenômenos que caminham no sentido contrário: jovens desempregados podem estreitar os
laços familiares, permanecendo mais tempo junto à família. Esta última aparece também como um suporte
que contrabalança o que se passa de negativo na ordem do trabalho. Porém, continua exato, para Castel, que a
desestabilização do trabalho repercute intensamente nos outros setores da vida social ( Castel, 1995 a ).
Uma questão que merece aqui ser destacada, é que, a princípio, parece que Castel está descrevendo a
exclusão como resultado de biografias individuais, como se estivesse privilegiando uma certa psicologização
do social. Todavia, não é esse o caso. Para ele, quando as pessoas se desligam da proteção geral ou da
participação nos grandes coletivos, elas se tornam cada vez mais indivíduos, mas indivíduos sem suporte, e
portanto, desprovidos, que carregam sua individualidade como um fardo. Trata-se, nesse caso, do que ele
chama de individualismo negativo, o qual é inteiramente diferente do individualismo que se encontra na
cultura de atenção e complacência de si. Corresponde, antes, ao fato de que os sujeitos são produzidos como
indivíduos serializados porque são excluídos dos coletivos protetores. Ainda que as pessoas vivam tais
situações psicologicamente, na dificuldade e na infelicidade, para Castel, “isto não depende da psicologia”
(1995b:20). O processo que leva a isto é um processo sociológico: o da degradação da sociedade salarial.
Uma outra perspectiva sobre a exclusão social é a de Paugam. Como poderá ser visto a seguir, seu
enfoque possui diferenças em relação à posição sustentada por Castel. Seus estudos têm como ponto de
partida a pobreza, ou antes, como ele mesmo diz, a “nova pobreza”, conceito que serve para designar os
desempregados de longa duração que vão sendo expulsos do mercado de trabalho, e os jovens em busca de
um primeiro emprego que não conseguem nele entrar ( Paugam, 1997 ).
Em resumo, para Paugam, o fenômeno da nova pobreza é decorrente de um conjunto de evoluções
simultâneas, especialmente da degradação do mercado de trabalho, o qual provoca a multiplicação de
empregos instáveis e o crescimento do desemprego de longa duração, paralelamente ao enfraquecimento dos
laços sociais, cujos principais sintomas são o aumento das rupturas conjugais e o declínio das solidariedades
de classe e de proximidade, estabelecendo-se, dessa forma, uma crise de identidade ou uma identidade
negativa. Tudo isso, para este autor, tem se passado com pessoas que jamais viveram em condições de
existência consideradas insatisfatórias anteriormente, de modo que a precariedade das suas condições atuais
de vida acaba por levá-las a freqüentar os serviços de ação social visando a obter algum tipo de ajuda
financeira. A ausência de perspectivas de trabalho, associada ao sentimento de ser inútil, pode levar algumas
dessas pessoas a uma ruptura total com a sociedade ( Paugam, 1997 ).
Foi a pesquisa realizada na França, em Saint-Brieuc, em 1987, com sujeitos que mantinham algum tipo
de relação com os serviços de ação social, que serviu de base a Paugam para o desenvolvimento de sua
perspectiva sobre a exclusão. Para ele, a população que naquela ocasião recorria à assistência não era
uniforme, e demandava, portanto, tratamento diferenciado. Na realidade, os três tipos de população estudada população frágil, população assistida e população marginal - correspondem a três fases distintas no processo
de desqualificação social, processo este relacionado a fracassos e sucessos no que diz respeito à integração, e
que ocupa um lugar central na teorização do referido autor. Trata-se de um conceito dinâmico e que implica
em uma mobilidade, já que as situações evoluem ao longo do tempo, como será visto mais adiante ( Paugam,
1997 ).
Posteriormente, para enfatizar a idéia de processo e também para dissipar o malentendido a propósito
das tipologias, Paugam irá falar de fragilidade, dependência e ruptura, respectivamente no lugar de população
frágil, população assistida e população marginal (Paugam, 1997 ).
O desemprego, as dificuldades de inserção profissional e a perda do domicílio ou o fato de ter que
habitar em um local socialmente desqualificado são circunstâncias socialmente muito dolorosas. As pessoas
que passam por tais situações, segundo Paugam, consideram-sedesclassificadas. Ou seja, o sentimento
dominante é o de encontrar-se em uma situação socialmente inferior àquela que conheciam anteriormente, e
de viver uma experiência humilhante. Para este autor, a fragilidade corresponde à aprendizagem da
desqualificação social. Quando os desempregados são obrigados a demandar algum tipo de ajuda aos serviços
de ação social, a inferioridade decorrente dessa situação parece-lhes insuportável. A entrada nas redes de
assistência social é percebida por eles como uma renúncia a um “verdadeiro” status social e como uma perda
progressiva da dignidade. Freqüentemente isso se conjuga com uma desintegração familiar que faz aumentar
o sentimento de culpa, acarretando uma crise profunda de identidade ( Paugam, 1997 ).
Entretanto, se por um lado na condição de fragilidade o desempregado mantém a esperança de
encontrar um emprego, por outro, aí permanecendo por um período maior, parece não haver outra saída a não
ser recorrer aos serviços de ação social. Aceitar a dependência significa manter relações regulares com estes
últimos. Paugam observou que várias pessoas em situação de fragilidade e em busca de um emprego no início
de sua pesquisa, declararam, um ano mais tarde, que apresentavam problemas de saúde que as impediam de
trabalhar. Na realidade, diz ele, a degradação da saúde traduz a entrada na fase de dependência e o começo de
uma outra carreira, onde a personalidade se transforma rapidamente. Iniciam-se, neste momento, a
aprendizagem de papéis sociais que correspondem às expectativas dos trabalhadores sociais, bem como a
utilização da racionalização em relação à assistência recebida. Surge, dessa forma, uma certa integração que
permite a conservação dos laços sociais. Todavia, o status de assistido faz aparecer, freqüentemente, uma
série de insatisfações, já que a renda decorrente da assistência é insuficiente para cobrir todas as despesas
cotidianas. Isso equivale a dizer que a dependência é socialmente desvalorizada, permitindo somente evitar a
miséria extrema ( Paugam, 1997).
Quanto à ruptura, Paugam afirma que aqueles que a vivem colecionam um acúmulo de desvantagens,
tais como expulsão do mercado de trabalho, problemas de saúde, perda do domicílio, perda de contatos com a
família e etc. Trata-se, para este autor, da última fase do processo de desqualificação social, constituindo-se
no produto de uma série acumulada de fracassos que conduz a uma forte marginalização. O sentimento
predominante entre as pessoas que passam por esta experiência é o de ser inúteis à coletividade. É como se
elas tivessem perdido o sentido de suas vidas. Para os trabalhadores sociais que buscam reinserí-las, o
problema maior, com o qual se deparam, é o alcoolismo e a droga. O fato de, na grande maioria das vezes,
não poder contar com a ajuda dos membros de suas famílias priva-lhes de uma das formas mais elementares
de solidariedade ( Paugam, 1997 ).
Dessa forma, para Paugam, as fases do processo de desqualificação social estão encadeadas. As
políticas sociais são capazes de atenuar, graças à mobilização de numerosos atores e da sociedade em seu
conjunto, os efeitos da degradação do mercado de trabalho e do enfraquecimento dos laços sociais.
Entretanto, essas experiências não são suficientes para sustar o referido processo, particularmente no tipo de
conjuntura econômica que prevaleceu durante a realização desta pesquisa na França ( Paugam, 1997 ).
Todavia, para que se configure verdadeiramente uma situação de desqualificação social,Paugam
considera três condições fundamentais: um alto nível de desenvolvimento econômico associado a uma forte
degradação do mercado de trabalho; uma forte degradação dos vínculos sociais, onde a solidariedade cede e
dá lugar ao individualismo; e uma inadaptação aos modos de intervenção social. O que está aqui em jogo,
diferentemente do que acontece na contribuição teórica que Castel nos apresenta ( onde a degradação da
condição salarial é responsável pela desfiliação social ), é que a inserção social é o instrumento através do
qual busca-se recuperar uma certa dignidade para aqueles que são vítimas de tais processos. Neste sentido, a
dependência decorrente da assistência oferecida a esses indivíduos tem uma função de regulação social,
procurando atuar sobre as sucessivas rupturas através do restabelecimento, ao menos em parte, dos laços
sociais. Por conseguinte Paugam sugere o estudo das trajetórias realizadas por esses indivíduos, bem como
suas transformações sociais. Os novos pobres, para ele, não estão à parte da sociedade. Embora tenham um
status degradado, não são pessoas passivas, pois direcionam toda a sua energia para recuperar um status
valorizado que conheciam anteriormente ( Paugam, 1997 ).
Não é, pois, difícil perceber que, se Castel privilegia a dimensão econômica para dar conta da exclusão
social, Paugam procura enfatizar a dimensão relacional, mais do que qualquer outra, a qual ganha um lugar de
destaque na sua pesquisa.
Já disse antes que a ida ao campo de investigação foi da maior importância para a focalização de novas
questões. Se a teoria de Castel não concebe como um dado importante da exclusão o psiquismo marcado pela
degradação e pelo sentido da desfiliação ( ou seja, o mecanismo psicológico da desfiliação ) , as visitas ao
HETM levaram-me à constatação de que é impossível não atentar para os fatos da desfiliação ser um processo
intersubjetivo e , ao mesmo tempo, um processo contínuo de desfiliação/afiliações, o que vai ao encontro da
perspectiva sustentada por Sawaia.
Tendo emergido pouco a pouco, quer no NEXIN, quer em disciplinas por ela ministradas, como já
disse antes, a posição de Sawaia é de não rechaçar o conceito de exclusão devido suas ambigüidades . Para
esta autora é necessário explicitar essas últimas, as quais não revelam erro ou imprecisão conceitual, e sim a
complexidade e contraditoriedade que fazem parte do próprio processo de exclusão social, inclusive a sua
transmutação em inclusão social. Na verdade, no lugar de exclusão, o que ela propõe é que se fale em
dialética exclusão/inclusão social. De acordo com esta concepção, a desfiliação é sempre acompanhada de
afiliação integrativa na desigualdade. Sua intensidade em relação à zona de integração central do sistema
capitalista de emprego parece indicar uma transformação nesta zona. Assim sendo, exclusão e inclusão não
constituem categorias em si cujo significado é dado por qualidades específicas invariantes. Ambas são da
mesma substância e formam um par indissociável que se constitui na própria relação ( Sawaia, 1999 ).
Em resumo, falar em dialética exclusão/inclusão social enquanto processo significa priorizar não a
essencialidade, mas o movimento inerente aos diferentes contextos sócio-históricos. Para Sawaia, todos estão
sempre inseridos de algum modo, visto que a sociedade exclui para incluir. Ou seja, a exclusão remeteria a
um modo específico de inclusão. Muitas vezes os indivíduos são incluídos de forma a levar uma vida de
menor valor, de desvalorização e inferiorização sociais, de privação e degradação moral. Em última instância,
a inclusão ocorre sob a égide da exclusão dos direitos humanos básicos. Não tendo uma única forma e não
sendo uma falha do sistema capitalista, mas sua condição de reprodução, não deve ser combatida como algo
que perturba a ordem social. Portanto, a exclusão é o produto de funcionamento do referido sistema. O que a
autora prioriza é a análise das contradições da exclusão como meio de entender a sua lógica perversa (
Sawaia, 1999 ).
Explicitando a perspectiva de Sawaia sobre a exclusão, vê-se que a autora também se apoia nas idéias
de Santos. Este último afirma que as ciências sociais devem utilizar categorias desestabilizadoras para a
análise das questões sociais. Ou seja, imagens que têm de irromper pela intensidade e pela concentração da
energia anterior que transportam, e que devem ser amplamente compartilhadas. Ele propõe quatro imagens
desestabilizadoras. A primeira delas é o “sofrimento humano”, que teve e continua a ter destinatários
específicos, tais como trabalhadores, minorias étnicas e sexuais, doentes e etc. A segunda vem a ser o
“epistemicídio”, isto é, o assassinato do conhecimento. As trocas desiguais entre culturas têm sempre
acarretado a morte do conhecimento próprio da cultura subordinada. A terceira é o “apartheid global”, um
mundo de guetos sem entrada nem saída, errando num mar de correntes colonialistas e fascistas. A quarta e
última imagem desestabilizadora é a “ tragédia dos comuns ”. Os recursos comuns, esgotáveis, estão
inevitavelmente à beira de uma tragédia. Esta imagem será tanto mais desestabilizadora quanto maior for a
consciência ecológica global ( Santos, 1997 ).
Em resumo, essas imagens são novas constelações onde se combinam idéias, emoções, sentimentos de
espanto e de indignação, e paixões de sentidos inesgotáveis ( Santos, 1997 ).
Dessa forma, partindo da recomendação feita por Santos, citada acima, Sawaia, em sua contribuição
teórica, lança mão da afetividade, e em especial do sofrimento como imagem desestabilizadora, para estudar a
exclusão. É desnecessário precisar que a afetividade sempre foi vista de forma negativa e considerada um
obstáculo ao desenvolvimento da ciência, o oposto da razão. Portanto, o conceito de sofrimento é considerado
como desestabilizador na análise psicossocial da exclusão ( Sawaia, 1999 ). Isto provoca em relação à
perspectiva de Castel uma mudança bastante interessante, já que, passando a ser vista como sofrimento de
diferentes qualidades,que faz aparecer subjetividades específicas ( o que também foi constatado nas visitas
que fiz ao HETM ), a exclusão recupera, por assim dizer, o indivíduo perdido nas análises econômicas e
políticas, sem deixar de lado, entretanto, o coletivo. Portanto,
“Dá força ao sujeito, sem tirar a responsabilidade do Estado. É no
sujeito que se objetivam as várias formas de exclusão, a qual é
vivida como motivação, carência , emoção e necessidade do eu ...
É o indivíduo que sofre, porém esse sofrimento não tem a gênese
nele, e sim em intersubjetividades delineadas socialmente”(
Sawaia, 1999: 98, 99).
Indo mais além, Sawaia qualifica esse sofrimento de ético-político. Mas o que quer, efetivamente, isto
dizer?
Sofrimento ético-político
O conceito de sofrimento ético-político proposto por Sawaia emergiu a partir das contribuições teóricas
de Heller ( Teoria dos Sentimentos ), Espinosa ( Ética ) e Vygotsky ( Pensamento e Linguagem ), autores que
consideram a emoção positivamente, como constitutiva do pensamento e da ação, coletivos ou individuais,
bons ou ruins, e como processo imanente que se constitui e se atualiza nas diferentes manifestações históricas.
Ou seja, como um fenômeno objetivo e subjetivo que constitui a matéria-prima básica à condição humana (
Sawaia, 1999 ).
Assim sendo, o sofrimento ético-político abrangeria “as múltiplas afecções do corpo e da alma que
mutilam a vida de diferentes formas.” ( Sawaia, 1999: 104 ). O que está em jogo é como o indivíduo é tratado
e como trata o outro na intersubjetividade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade
social, bem como da negação imposta aos indivíduos de se apropriarem da produção material, cultural e social
de sua época, de se movimentar no espaço público, e de expressar desejo e afeto ( Sawaia, 1995 ).
Portanto, ao se abordar a exclusão através da afetividade, como propõe Sawaia, o que se faz, além de
revelar as formas sutis de espoliação humana, desigualdade social, injustiça e exploração que se escondem por
trás da aparência de integração social, é abrir a possibilidade de analisá-las da forma como são vividas
cotidianamente ( Sawaia, 1999 ).
Cabe ainda aqui mencionar que, nas visitas que fiz ao HETM, também constatei que o enfrentamento
dessas questões dramáticas pode levar alguns à desistência de viver, e outros à cristalização e à resistência,
como será visto no quinto capítulo.
A contribuição teórica de Carreteiro merece também ser destacada, por ter se revelado de fundamental
importância para a realização desta pesquisa. Ao estudar os processos de desfiliações e afiliações sociais, esta
autora sustenta que a noção de projeto de vida oferece perspectivas interessantes para o entendimento das
formas de participação social que os indivíduos pertencentes a horizontes ditos desfavorecidos desenvolvem.
Para ela, o ser humano é essencialmente social, e está sempre participando de grupos, coletivos, associações
ou instituições. Estes últimos produzem desejos e sistemas de valores e de normas que travessam o sujeito e
se transformam, muitas vezes, em projetos a serem alcançados. Os projetos são sempre atuantes, tanto nos
grupos, quanto nos indivíduos ( Carreteiro, 1993, 1999).
Assim sendo, para Carreteiro, o sujeito é criador de projetos. Participar de projetos, imaginá-los, sonhálos, elaborá-los, abandoná-los etc., representa laborar na construção da civilização. Entretanto, esta
participação é experimentada de modo diferente pelos sujeitos, visto que inclui elementos do lugar social
ocupado por estes últimos. Ou seja, toda participação evoca um sujeito em situação, de modo que sua conduta
e escolhas são reveladoras da sua maneira de estar sendo. Isto equivale a dizer que nenhuma escolha escapa à
evidência de ser “escolha em situação”, incluindo dimensões sócio-psico-históricas ( Carreteiro, 1999 ).
O Estado, nas sociedades modernas, diz Carreteiro, é o principal organismo de criação e de regulação
de mecanismos que visam à integração social, fazendo com que a participação concreta dos indivíduos na
vida coletiva se realize e seja reconhecida através de dois eixos: o do trabalho e o da proteção social. No
Brasil eles estão estreitamente articulados, de modo que a maioria dos direitos sociais adquiridos vincula-se à
condição de ser trabalhador. Por isso, para Carreteiro, quanto mais os indivíduos se distanciam desses eixos,
mais podem viver formas de desfiliações sociais. Assim, as pessoas de meios sociais desfavorecidos
permanecem à margem das grandes dimensões sociais, tais como educação, saúde e trabalho, ou se
beneficiam minimamente das mesmas. Ao tentar inserí-las a sociedade contribui para a criação de um lugar
social desvalorizado, portador de sofrimento, e que faz com que a esfera da subjetividade fique marcada pela
inutilidade. Esta sensação de inutilidade pode se apresentar de modo difuso, como um mal-estar, ou ainda de
modo claro, tornando-se objeto de representações explícitas ( Carreteiro, 1999 ).
Em última instância, a sensação de inutilidade é geradora de sofrimento psíquico. Segundo Carreteiro,
este último deve ser considerado como sofrimento social, já que tem uma raíz social. Todavia, o sofrimento
não encontra um lugar institucional, a não ser quando a esfera de proteção social confere um lugar à
subjetividade através das perspectivas de corpo sadio/corpo doente. Portanto, para obter reconhecimento
institucional, o sofrimento social se utiliza da doença, produzindo-se, neste caso, um certo deslizamento do
sofrimento social para sofrimento individual e biológico ( Carreteiro, 1993, 1999 ).
Desse modo, para Carreteiro as instituições podem oferecer aos indivíduos “projetos-doenças”, e estes
podem aceitá-los para ter legitimada a sua cidadania e certas condições de sobrevida. Obviamente que isso
também é gerador de sofrimento. Se por um lado consolida a participação institucional do sujeito, por outro o
faz a partir de sua doença e de seu desfuncionamento ( Carreteiro, 1993, 1999 ).
Ficar atento aos projetos de vida dos pacientes que residem no HETM, bem como aos projetos que a
eles a instituição oferece, talvez seja fundamental para compreender a dialética exclusão/inclusão social, isto
é, a vivência da desigualdade, a exploração, a injustiça e a desqualificação que muitas vezes acabam sendo
escamoteadas pelos discursos que enfatizam a integração e proteção sociais.
Prosseguindo na explicitação do referencial teórico aqui levado em conta, um outro autor que merece
ser destacado é Giddens, pela importância que atribui à esfera da intimidade como elemento fundamental da
ordem social. Para ele a sociedade é um sistema que está em processo, ou seja, está sempre buscando manterse viva. Para tal, são necessárias a confiança ativa e a reflexividade social. Por isso, alguns espaços estão,
hoje, se tornando mais importantes do que antigamente. A esfera da intimidade, por exemplo, é um deles.
Ao questionar muitas das interpretações correntes a respeito do papel da sexualidade na cultura
moderna, Giddens se pergunta como vem se manifestando a sexualidade, e que relações guarda com as
mudanças gerais que têm afetado a vida pessoal dos indivíduos. Para a realização desta empreitada ele inicia
sua análise partindo do que chama de “sexualidade plástica”, isto é, a sexualidade liberada de sua relação
intrínseca com a reprodução ( Giddens, 1992 ).
Em linhas gerais, o que pensa Giddens é que o sexo, hoje em dia, aparece continuamente no domínio
público e, além disso, fala a linguagem da revolução. Recentemente, pela primeira vez na história, as
mulheres reivindicam igualdade com os homens. Entretanto, a tarefa deste autor não é a de tentar analisar até
que ponto persistem as desigualdades entre os sexos nos domínios econômico e político. No lugar disso, ele se
concentra numa ordem emocional onde, pode-se dizer, as mulheres foram pioneiras em mudanças de grande
importância que se relacionam com a exploração das potencialidades do que foi chamado de “relacionamento
puro”. Trata-se de um relacionamento de igualdade sexual e emocional, explosivo em suas conotações em
relação às formas preexistentes de poder do sexo ( Giddens, 1992 ).
Segundo Giddens, a sexualidade plástica é crucial para a emancipação que está implícita no
relacionamento puro, assim como para a reivindicação da mulher ao prazer sexual. Pode ser considerada
como um traço da personalidade, estando, então, intrínsicamente vinculada ao eu. Ao mesmo tempo também
liberta a sexualidade, em princípio, da regra do falo, da experiência sexual masculina. O controle sexual dos
homens sobre as mulheres é muito mais que uma característica incidental da vida social moderna. À medida
que ele começa a falhar observa-se, mais claramente, o caráter compulsivo da sexualidade masculina, o que
também gera um fluxo crescente da violência masculina sobre as mulheres ( Giddens, 1992 ).
É a partir da conjunção do que foi exposto acima que Giddens afirma que as possibilidades
radicalizadoras de transformação da intimidade são bastante reais e provocam uma transição básica na ética
da vida pessoal como um todo. Se por um lado alguns autores, como Sennet, declaram que a intimidade pode
ser opressiva e negadora da esfera pública, o que pode ocorrer se ela for encarada como uma exigência de
relação emocional constante, por outro, ao ser considerada como uma negociação transacional de vínculos
pessoais , estabelecida por iguais, ela surge sob uma luz completamente diferente. Assim sendo, a intimidade
implicaria na possibilidade de uma total democratização da esfera interpessoal. Para tal, há que se reconhecer
que, aí, o papel mais importante foi exercido pelas mulheres, e além disso, que a transformação da intimidade,
a qual reclama por mudança psíquica e também por mudança social - mudança essa partindo “de dentro para
fora” e ramificando-se através de outras instituições, mais públicas - poderia ser uma influência subversiva
sobre as instituições modernas como um todo, de modo que um mundo em que a realização emocional viesse
a substituir o crescimento econômico seria muito diferente daquele que se conhece hoje. Nesse sentido, as
mudanças que atualmente afetam a sexualidade são, verdadeiramente, revolucionárias e bastante profundas
(Giddens, 1992 ).
Ao apontar a possibilidade da intimidade vir a significar promessa de democracia em suas reflexões,
Giddens enfatiza que se trata de uma democracia emocional, o que significa sentir-se legitimado enquanto ser
humano para o diálogo, com direito à cidadania. Isto é da ordem da emoção. Por exemplo, dificilmente
alguém com medo, submisso ou humilhado se sentiria legitimado para essa democracia dialógica, democracia
conquistada e normatizada através do diálogo entre homens autônomos. A fonte dessa promessa, para ele,
vem a ser o relacionamento puro, já mencionado acima, não apenas na área da sexualidade, mas também na
área das relações pais-filhos, e em outras formas de parentesco e amizade. Uma das características de todas as
interpretações da democracia moderna é a preocupação com o modo como os indivíduos podem determinar e
regulamentar as condições de sua associação. Ou seja, embora haja muita discussão a respeito das
características da representação democrática, a maior parte delas têm elementos em comum. Seu interesse é o
de assegurar relações livres e iguais entre os indivíduos, levando-os à aquisição de uma autonomia, a qual
significa exercitar a capacidade de auto-reflexão e autodeterminação: deliberar, julgar, escolher e agir diante
de diferentes cursos de ação possíveis ( Giddens, 1992 ).
Dessa forma, para Giddens, as aspirações que compõem a tendência para a autonomia podem se
configurar como um princípio geral. A saber, o princípio da autonomia: os indivíduos devem ser livres e
iguais na determinação das condições de suas próprias vidas e devem desfrutar de direitos iguais e, em
conseqüência disso, de deveres iguais, na especificação da estrutura que gera e limita as oportunidades a eles
disponíveis, desde que não desenvolvam essa estrutura para negar os direitos dos outros ( Giddens, 1992 ).
Em resumo, esses direitos e deveres definem para o autor o que é realmente a intimidade. Esta última
não deve ser compreendida como uma descrição interacional, mas como um aglomerado de prerrogativas e de
responsabilidades que definem os planejamentos da atividade prática. Ou seja, a intimidade, segundo
Giddens, significa a relação de emoções e ações improváveis de serem expostas pelo indivíduo para um olhar
público mais amplo. Trata-se, acima de tudo, de uma questão de comunicação emocional com os outros e
consigo mesmo, em um contexto de igualdade interpessoal ( Giddens, 1992 ).
Não é difícil perceber que Giddens e Castel enfatizam princípios analíticos diferentes. O primeiro,
destacando a importância de se criar formas de manter a confiança entre as pessoas e a sociedade civil, entre a
sociedade civil e o Estado ( sem confiança o edifício social é passível de desmoronamento ), e manter a
reflexividade social que conduz ao diálogo e à democracia emocional. O segundo, priorizando o sistema de
emprego, e afirmando que o risco de deterioração das condições da democracia é produzido a partir da
degradação da situação salarial.
Na verdade, se a transformação da intimidade constitui, para Giddens, uma influência poderosa sobre
as instituições modernas, já que a realização emocional ganha relevância junto com as questões econômicas, é
possível afirmar, apesar dele não haver refletido sobre exclusão, que ele contribui para ampliar o enfoque
teórico deste fenômeno, evitando o reducionismo economicista. A intimidade, junto com a condição de
empregabilidade e o salário, traz a possibilidade de uma total democratização da esfera interpessoal. Essa
transformação da intimidade é uma influência subversiva sobre as instituições modernas. Por isso mesmo, as
mudanças que afetam a sexualidade são revolucionárias e bastante profundas, a par das transformações macro
e estruturais.
Assim, tanto Sawaia quanto Giddens enfatizam aspectos que considero fundamentais, e sem os quais
torna-se complicado repensar criticamente a teoria da desfiliação. Em relação a Sawaia, já foi apontado
anteriormente que na sua perspectiva a desfiliação vem sempre acompanhada de novas afiliações, e não é
apenas uma questão social, mas psicossocial.
Antes, porém, de incorporar a intimidade como lugar de exclusão/inclusão social, é necessário levantar
alguns questionamentos sobre a teoria de Giddens.
Em primeiro lugar, gostaria de lembrar que embora Castel situe a exclusão predominantemente em
relação ao trabalho, também aponta, como já foi visto anteriormente, que existe uma certa relação entre o que
ocorre na ordem do trabalho e na ordem das relações de proximidade, da família, da vizinhança. Se por um
lado este autor afirma que o desemprego pode provocar uma certa dissociação familiar que pode, inclusive,
culminar em divórcio, por outro, também aponta que jovens desempregados podem estreitar os laços
familiares, permanecendo mais tempo em casa de seus pais. Nesse caso, é como se a família, ao acolher o
filho, tentasse contrabalançar o que estaria se passando de negativo na ordem do trabalho. Portanto, tudo leva
a crer que desfiliação no trabalho não parece ser incompatível com filiação na intimidade. Isto seria, para
Castel, impossível de ocorrer, visto que a desestabilização no trabalho repercutiria, necessariamente de forma
negativa, em todos os outros setores da vida social. Já para Paugam isso não se sustentaria. Como já foi
mencionado anteriormente, o processo de desqualificação social consiste numa sucessão de rupturas e laços
relativos à integração dos indivíduos que são vítimas de uma forte degradação do mercado de trabalho.
Entretanto, para este último autor, essa condição está associada a duas outras. A saber, uma forte degradação
dos vínculos sociais ( desintegrações familiares, rupturas conjugais etc. ), e uma inadaptação aos modos de
intervenção social propostos. Logo, uma desfiliação no trabalho faz-se acompanhar necessariamente por uma
desfiliação na intimidade.
Em segundo lugar, talvez seja promissor se perguntar qual a relação que existe entre as reflexões de
Giddens sobre a esfera da intimidade como transformação, e as reflexões de Heller, autora que será abordada
a seguir, sobre alienação no cotidiano. Intimidade e cotidiano seriam ou não a mesma coisa?
A cotidianidade é um dos pontos abordados por Heller em sua obra, e serve de fundamento ao
paradigma que propõe para as ciências sociais: paradigma das estruturas e das objetivações do cotidiano, o
qual será visto mais adiante. Para esta autora, a vida cotidiana é o que é. Ou seja, um conjunto de atividades
que caracterizam a reprodução dos homens particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade da
reprodução social. Sendo a vida de todo homem, todos a vivem sem exceção. Heller sustenta que ao mesmo
tempo que ninguém consegue desligar-se inteiramente da cotidianidade, não há nenhum homem que viva tão
somente nela, embora essa última o absorva preponderantemente. O homem participa na vida cotidiana com
todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Por isso mesmo, Heller afirma que a vida
cotidiana é a vida do homem inteiro. Embora todas as suas capacidades intelectuais, seus sentidos, suas
habilidades de manipulação e seus sentimentos, paixões, idéias e ideologias aí se encontrem, nenhum deles
pode realizar-se em toda sua intensidade. A vida cotidiana também é, em grande medida, heterogênea ,sob
vários aspectos, e sobretudo no que se refere ao conteúdo e à significação das diversas atividades que vão
sendo realizadas. Mas é igualmente hierárquica. Porém, diferentemente da circunstância da heterogeneidade,
a forma concreta da hierarquia não é eterna, imutável, modificando-se, de modo específico, em função das
diferentes estruturas econômico-sociais ( Heller, 1970).
O paradigma das estruturas e das objetivações do cotidiano, proposto por Heller, possui três níveis de
objetivação, isto é, capacidades humanas que objetivadas ganham vida própria. A saber : as objetivações emsi que são as normas, as regras, os valores, a linguagem, os costumes, os hábitos, o modo de se vestir e etc.
Correspondem à natureza, àquilo que ainda não foi penetrado pela praxis, e dizem respeito ao mínimo
necessário a uma vida em sociedade. As objetivações para-si que são as idéias ( não mais as primeiras,
freqüentemente chamadas de senso comum ) que já têm um caráter mais reflexivo, que estão voltadas para a
reflexão. Compreendem as idéias filosóficas e religiosas, a arte, a literatura e etc. Trata-se de tudo aquilo que
foi modificado ou produzido pelo homem. E por último, as objetivações em-si e para-si que são formadas
pelas instituições que compõem a estrutura social, tais como a família, a escola e etc. ( Granjo, 1998 ).
De todas as esferas da realidade, Heller diz que a vida cotidiana é aquela que mais se presta à
alienação. Esta última está suposta já desde o início, porque o indivíduo, ao nascer, dada a divisão social do
trabalho, está imerso em um ambiente limitado que não lhe permite o contato com toda a realidade, mas
apenas com uma camada ou extrato dela. Se por um lado as objetivações em-si são sempre alienadoras,
fazendo com que o indivíduo fique atrelado aos hábitos, diz Heller, por outro, as objetivações para-si
oferecem a possibilidade da superação da alienação, o que implica em uma escolha autônoma e em
individualidade. Dessa forma, a estrutura da vida cotidiana não é, de modo algum, necessariamente alienada.
As formas de pensamento e comportamento produzidos nessa estrutura podem perfeitamente deixar ao
indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitação, permitindo-lhe uma condensação da
experiência da cotidianidade, de tal modo que ele possa manifestar-se como essência unitária das formas
heterogêneas de atividade próprias da cotidianidade e nelas objetivar-se. Quanto maior for a alienação
produzida pela estrutura econômica de uma sociedade dada, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria
alienação para as demais esferas ( Heller, 1970 ).
Segundo Heller, o homem já nasce inserido em sua cotidianidade, de modo que o seu amadurecimento
significa que ele adquire todas as atividades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade onde se situa.
Nesse sentido, ele deve ser capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade, e aprender a manipular as coisas
mais triviais, como já foi visto anteriormente. A assimilação da manipulação destas últimas já se apresenta
como sinônimo da assimilação das relações sociais, o que começa sempre por grupos ( família, escola,
pequenas comunidades e etc. ) . Esses grupos estabelecem uma mediação entre o indivíduo e os costumes, as
normas e a ética da integração suprema que é a humanidade. Dessa forma, o homem aprende, no grupo,os
elementos de sua cotidianidade,a qual lhe oferece a possibilidade de superação da alienação se for capaz de
manter-se de modo autônomo no mundo, de orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do
grupo humano comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e, além disso, de mover por sua
vez esse mesmo ambiente ( Heller, 1970 ).
Em outros termos, o cotidiano é tanto o lugar da alienação quanto o lugar da possibilidade de
transformação. Ou seja, apresenta-se como uma instância de exclusão, mas também de sua superação.
As principais características da vida cotidiana são, de acordo com Heller, a espontaneidade, a tendência
à ultrageneralização e os preconceitos. A espontaneidade é considerada a mais dominante de todas as
características da vida cotidiana. Nem toda atividade cotidiana é espontânea no mesmo nível. Tampouco uma
mesma atividade pode-se apresentar como identicamente espontânea em situações diversas. De qualquer
forma, para esta autora, em todos os casos a espontaneidade é a tendência de toda e qualquer forma de
atividade cotidiana ( Heller,1970 ).
A tendência à ultrageneralização é, diz Heller, uma categoria do pensamento e do comportamento
cotidianos. Todas as atitudes do ser humano estão baseadas em avaliações probabilísticas. Em breves lapsos
de tempo o indivíduo é obrigado a realizar atividades tão heterogêneas que não viveria se estivesse
empenhado em fazer com que essas últimas dependessem de conceitos fundados cientificamente. Os juízos
ultrageneralizadores são juízos provisórios que a prática confirma ou não refuta, quando, ao tomá-los como
referência o sujeito é capaz de atuar e de orientar-se. Estes podem estar aderidos à confiança ou à fé. Não
sendo o caso de orientação na vida cotidiana, mas sim de individualidade, de integridade moral - circunstância
em que só se pode operar com juízos provisórios , pondo em risco a própria integridade - deve-se ter a
capacidade de abandoná-los ou mesmo modificá-los. Heller salienta que isso só pode ocorrer se o juízo estiver
atrelado à confiança. Os juízos provisórios que se enraízam na particularidade, que se apóiam na fé, são préjuízos ou preconceitos. Dessa forma, os juízos ultrageneralizadores são inevitáveis no conhecimento cotidiano
dos homens, estando, porém, expostos ao perigo de cristalização ( Heller, 1970 ).
Buscando, agora, estabelecer relações entre as reflexões de Giddens sobre a esfera da intimidade como
transformação, e as reflexões de Heller sobre alienação no cotidiano, talvez seja possível afirmar que, quanto
maiores forem as possibilidades concretas de escolha autônoma, de individualidade, ou seja, quanto menor for
a alienação, tanto mais próximo estará o indivíduo da exploração das potencialidades do assim chamado
relacionamento puro, que como foi visto, consiste em um relacionamento de igualdade sexual e emocional,
explosivo em suas conotações em relação às formas pré-existentes do poder do sexo.
Assim sendo, tudo leva a crer que a intimidade, pensada não como uma mera descrição interacional,
mas como um aglomerado de prerrogativas e de responsabilidades, de direitos e deveres estabelecidos por
iguais, decorrentes de uma negociação transacional de vínculos pessoais, é uma esfera específica do cotidiano.
Afirmei, na introdução, que o sofrimento ético-político é uma categoria fundamental nesta pesquisa, ao
redor da qual são incorporados outros elementos. Ele indica que a dialética exclusão/inclusão social não é
vivida apenas no plano social, econômico e político, mas também no plano da subjetividade; não apenas como
carência de bens e direitos, mas como sofrimento, ausência de liberdade e submissão, subjetividades essas que
sustentam ou negam a dialética exclusão/inclusão social.
Em outros termos, isso significa que a dialética exclusão/inclusão social não deve ser unicamente
analisada na perspectiva estrutural, considerada como socialmente determinada. É necessário que também se
leve em conta a forma como o indivíduo é afetado, ou seja, a forma como o social é convertido
subjetivamente. Por conversão não se entende o reflexo do social no psiquismo, como se ele fosse uma
“tábula rasa”. Um exemplo dessa concepção vem a ser a reflexão de Vygotsky sobre sentido.
Concluindo, pode-se, portanto, dizer que o estudo do sofrimento ético-político como forma de melhor
explicitar a vivência da dialética exclusão/inclusão social experimentada por hansenianos institucionalizados
deve levar em conta tanto os valores e as representações sociais dominantes sobre a hanseníase ( os quais,
como já foi assinalado anteriormente, fazem dela uma patologia residual, onde representações arcaicas
convivem com representações científicas ), quanto o universo que compreende os projetos de vida, as
necessidades, a intimidade, o cotidiano, as emoções e a afetividade dos indivíduos que contraíram a doença e
que residem, no caso, no HETM em situação emblemática de exclusão social.
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Exclusão Social Conceito Polissêmico