Para que, ainda, filosofia?1
Theodor W. Adorno
Diante de uma questão como “Para que, ainda, filosofia?“, por cuja formulação
sou eu mesmo o responsável e cujo caráter amadorístico não nego, espera-se em geral
uma resposta ou uma argumentação que acumulará todas possíveis dificuldades e
escrúpulos para finalmente desembocar, com maior ou menor prudência, a um “e, no
entanto“ e para afirmar o que retoricamente coloca em dúvida. Essa conclusão bem
conhecida revela uma atitude conformista e apologética; considera-se como positiva e
antecipa compreensão. Afinal, não se deve confiar em que aqueles que praticam a
filosofia profissionalmente e cuja existência civil ela afirma continuem a praticá-la; e
que aqueles cujos próprios interesses costumeiros seriam atingidos se manifestem
contra ela?
Mas, julgo-me no direito de colocar esta questão, pois na verdade
desconheço-lhe a resposta.
Quem defende algo que o espírito do tempo abandonou como coisa passada e
supérflua coloca-se em posição incômoda. Seus argumentos apresentam-se frouxos e
inexperientes. “Sim, mas pense bem...como se pode?” dizem diante de alguém que se
recuse a discutir a questão. Esta fatalidade envolve quem se relaciona com a filosofia.
Deve saber que não é mais técnica de domínio da vida (técnica tanto no sentido literal
quanto no figurado), a que tantas vezes se limitava. E, além dessas técnicas, a filosofia
não mais aparece como meio de formação cultural, como acontecia na época de Hegel,
quando por quase duas breves décadas os intelectuais alemães puderam compreenderse por meio dessa linguagem coletiva. A crise do conceito de formação humanista,
sobre a qual é desnecessário gastar muitas palavras, é atribuída, na consciência pública,
à filosofia como disciplina primeira depois que, aproximadamente desde a morte de
Kant, tornou-se suspeita de más relações com as ciências positivas, pelo menos com as
ciências da natureza. O renascimento kantiano e hegeliano, cuja fragilidade já aparece
na expressão, pouco mudou a situação. Por fim, a filosofia na situação generalizada de
1
Tradução do texto “Wozu noch Philosophie”, In Theodor W. Adorno Gesammelte Schriften - Band 10
(“Kulturkritik und Gesellschaft: Eingriffe, Stichworte). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. Tradução de
Newton Ramos de Oliveira e Revisão técnica de Bruno Pucci.
especialização acabou por se tornar também uma disciplina especializada, ou seja,
purificou-se de todo conteúdo objetivo. Dessa maneira, renegou o que seu próprio
conceito implicava: liberdade espiritual, que o imperativo de ciência especializada não
admite. Por meio da abstinência de conteúdo determinado, seja como lógica formal e
teoria científica, seja como saga de um ser que se oculta diante de todo ente, a filosofia
declarou sua ruptura frente a fins sociais efetivos. Na verdade, assim colocou um ponto
final a um processo que se prolongou por toda sua história. Cada vez mais se apartavam
dela novos domínios objetivos que passavam a integrar a esfera das ciências; não lhe
restou outra opção que converter-se ela mesma numa ciência, ou num reduto mínimo
tolerado, que, nestes termos, entrava em contradição com o que pretendia: um
conhecimento não particularizado. Pois ainda a física de Newton era chamada filosofia.
A moderna consciência científica veria nela um resíduo arcaico, um rudimento daquela
época da remota especulação grega, na qual a firme explicação natural e a metafísica
sublime que invocava a essência das coisas ainda estavam indistintas. Alguns mais
afoitos proclamaram este estrato arcaico como o único filosófico e tentaram restabelecêlo. Mas a consciência, que sofre a situação de ruptura e que ainda lamenta a unidade
necessariamente perdida, contradiz o conteúdo
que aspira a dar-se. Daí que deva
recorrer a uma linguagem original, embora arbitrária. A restauração na filosofia é tão
transitória quanto nos demais campos. Teve que resguardar-se da cultura pedante e
também das concepções mágicas do mundo. Não deve também conceber-se como
trabalho especializado científico-teórico nem pavonear-se com investigações. A
filosofia, porém, que se abstém de tudo isto entra em contradição irreconciliável com a
consciência dominante. Não por outra razão atrai as suspeitas de apologética. A filosofia
que se satisfaz com o que quer ser, sem correr infantilmente atrás de sua história e do
real, tem seu nervo vital na resistência contra a prática hoje corrente; e no que se refere
ao que serve, o que ela mesma é, encontra sua justificação.
Mesmo a especulação mais alta até hoje, a de Hegel, não mais é obrigatória.
Mesmo quem pelas classificações da opinião pública é bem aceito em suas produções
públicas e visto como pensador dialético têm que deixar claras as diferenças em
relação a Hegel. Não se trata de movimento individual, mas de exigência do próprio
objeto ao qual Hegel pretende que o pensamento simplesmente se entregue. Não se pode
separar da apologética a pretensão de totalidade da filosofia tradicional, que culmina na
tese da racionalidade do real. Mas isto se tornou absurdo. A filosofia que ainda se visse
como total, como sistema, cairia num sistema alucinado. Mas se abandona esta
pretensão de totalidade, se não mais pretende extrair de si própria a totalidade em que
consistiria a verdade, então entra em conflito com toda a tradição. Eis o preço que deve
pagar ao curar-se dessa loucura que se chama realidade. Não mais é auto-suficiente
nem uma relação com fundamento. Sua situação na sociedade, em que deveria penetrar
e não rejeitar, corresponde à dúvida constante que é de sua índole: na necessidade de
formular o que, sob o título de absurdo, já foi concebido pela maquinaria. A filosofia, a
responsabilizar-se sozinha pelo todo, não deveria considerar-se capaz de dominar o
absoluto; deveria proibir-se de pensar nele e, no entanto, para não traí-lo, conservar o
conceito enfático de verdade. Essa contradição a caracteriza, a determina
negativamente. A famosa frase de Kant segundo a qual só a via crítica continuaria
aberta é uma dessas frases em que a filosofia, de que se originam, se põe à prova
naquilo em que, como fragmento, supera o sistema. Com certeza, a idéia de crítica
pertence à hoje desorganizada tradição filosófica.
Enquanto, porém, o âmbito de todo conhecimento é tomado pelas ciências
especiais de tal modo que o pensamento filosófico se sente aterrorizado e teme ter que
submeter-se à acusação de puro diletantismo quando chega a algum conteúdo, o
conceito de origem ganha, por reação, uma honra imerecida. Quanto mais penetrável o
mundo, quanto mais densa a rede que lançou sobre a natureza, tanto mais o pensamento
que lança essa rede reivindica ideologicamente ser natureza e experiência originária.
Desde os enaltecidos pré-socráticos, a tradição nos apresenta filósofos que são críticos.
Xenófanes, a cuja escola remonta o atual conceito do ser oposto ao pensar, pretendeu
desmitologizar as forças da natureza. A hipótese platônica do conceito de idéia foi
reexaminada por Aristóteles. Nos tempos modernos, Descartes julgou a escolástica da
dogmatização como mera opinião. Leibnitz foi crítico do empirismo e Kant foi crítico
dos seguidores de Leibniz e, ao mesmo tempo, dos de Hume; Hegel criticou Kant; Marx
fez a crítica de Hegel. Em todos eles, a crítica não foi simples conseqüência do que, no
jargão da ontologia de trinta anos atrás, recebeu a denominação de “projetos”. Não
evidencia atitudes adotadas por simples gosto, mas alimenta-se dos argumentos justos.
Estes pensadores tiveram na crítica a própria verdade. Ela apenas, enquanto unidade de
problemas e de argumentos, ⎯ e que não é recepção de novas teses ⎯ fundamentou o
que pode valer como unidade produtiva na história da filosofia. Tais filosofias
encontram seu núcleo temporal no desenvolvimento da crítica; aí alcançaram o valor de
sua inserção histórica, cujo conteúdo teórico permanece na eternidade e no atemporal.
A crítica filosófica hoje só se depara com duas escolas; que enquanto espirito do
tempo, queiramos ou não, atuam para além dos limites acadêmicos. Diferenciam-se e,
ao mesmo tempo, se complementam. Sobretudo nos países anglo-saxões, o positivismo
lógico, inaugurado pelo Círculo de Viena, conquistou terreno a ponto de chegar a
monopólio. Muitos julgam-no moderno, no sentido de uma explicação mais
conseqüente que, como se diz, torna-se adequada à era tecnocientífica. Desconsidera-se
que o que está implícito nele é apenas um resíduo da metafísica, da mitologia
inconsciente ou da arte ⎯ para usarmos a linguagem dos que são avessos à arte.
Opostas a ele, sobretudo no âmbito da língua alemã, posicionam-se as orientações
ontológicas. Entre essas, destaca-se a de Heidegger, que,
em suas publicações
posteriores à chamada “virada”, abstém-se de mencionar a palavra “ontologia, como a
mais arcaica, enquanto em sua modalidade francesa, o existencialismo, a atitude
ontológica se transforma em iluminista e em engagement político. O positivismo e a
ontologia são, entre si, anátemas; aquele, por intermedio de um de seus maiores
expoentes, Rudolf Carnap, atacou ⎯ aliás, injustamente ⎯ a teoria de Heidegger como
destituída de sentido. Por outro lado, o pensamento positivista aparece à ontologia
heideggeriana como tendo se esquecido do ser; e, assim, profana a própria questão.
Teme-se sujar as mãos com simples entes, que o positivismo quer tratar com
exclusividade. Tanto mais surpreendente, daí, que as duas orientações coincidam em
algo decisivo. Ambas denunciam a metafísica como inimigo comum. Que o positivismo
não admita a metafísica por ultrapassar o fático é algo que não requer maior
esclarecimento, quando se adverte que ele, por seu próprio nome, quer ater-se ao
positivo, ao existente, ao dado. Mas também Heidegger, formado na tradição metafísica,
tenta expressamente dela separar-se. Batiza de metafísico o pensamento, desde, pelo
menos, Aristóteles, (se é que não desde Platão) por separar ser e ente, conceito e
conceituado, ou, como se poderia dizer numa linguagem, que, com certeza, seria
desprezada por Heidegger: por separar sujeito e objeto. O pensamento ⎯ que diferencia
e divide em partes destruindo, através da reflexão, o que as próprias palavras dizem, ou
seja, aquilo que Hegel chamava de elaboração e rigor do conceito e que equiparava à
filosofia ⎯ é já uma queda desta sem reparação e prevista no próprio ser como
correspondente ao “ser historicamente”. Nos dois casos, seja com os positivistas, seja
com Heidegger (pelo menos em sua última fase) se insurge contra a especulação.
Naqueles, o pensamento, que com autonomia e significativamente se eleva sobre os
fatos e que deles não pode ser extraído sem resíduos, é denunciado como vazio e como
mero jogo conceitual; e, de acordo com Heidegger, o pensamento, em seu sentido
configurado pela história ocidental, perde a verdade em sentido profundo. Esta seria
algo que por si aparece e se oculta e o pensamento nada mais é que a capacidade de
percebê-la. Num sentido subjacente, a filologia torna-se instância filosófica. Na aversão
comum contra a metafísica há menos paradoxo do que se pode julgar à primeira vista.
Há pouco, um discípulo de Heidegger, Walter Bröcker, que é professor em Kiel, quis
combinar o positivismo e a filosofia do ser, outorgando ao positivismo o terreno total
dos entes e colocando a doutrina do ser numa camada acima, expressamente como
mitologia. O ser, em cujo nome a filosofia de Heidegger cada vez mais se recolhe, é
para Bröcker algo imediato que se apresenta, como uma aparência, à consciência
passiva, independentemente da mediação do sujeito, do mesmo modo como aos
positivistas se apresentam os dados sensíveis. O pensar torna-se, para as duas
orientações, um mal necessário, desacreditado por sua parcialidade. Perde o caráter de
independência. A autonomia da razão desaparece, aquilo que nela não se esgota no
refletir sobre algo previamente dado, ao qual se conforma. Com isso também desaparece
a concepção da liberdade e, virtualmente, a autodeterminação da sociedade humana. Se
seu sentido humano não lhes impedisse ir tão longe, a maioria dos positivistas teria que
exigir também da práxis a adequação aos fatos, diante dos quais o pensamento é
impotente, pura antecipação ou classificação que fracassa diante ao único que conta,
diante do que é apenas por uma vez. Em Heidegger, no entanto, o pensar, como uma
atenção ao ser ⎯ respeitosa, passiva e destituída de conceitos ⎯, que apenas se
proclama a si mesmo, carece do direito de crítica e se vê obrigado a capitular, sem fazer
distinções, diante do poderio brilhante do ser. A submissão de Heidegger ao regime
ditatorial de Hitler não foi um ato de oportunismo, mas derivado de uma filosofia que
identificava o ser e o Führer.
Se a filosofia ainda é necessária, então terá que ser cada vez mais como crítica;
como resistência a uma heteronomia que se expande, como tentativa impotente do
pensamento para manter-se senhor de si e colocar a mitologia proposta no lugar que sua
própria medida lhe concede. Nela a liberdade teria que buscar refúgio, enquanto a ela
não renuncie como ocorreu na Atenas cristianizada em fins da Antigüidade. Não se
pode esperar que venha eliminar as tendências políticas que, no mundo cotidiano,
menosprezam a liberdade interior e exterior e cujo domínio se insere profundamente até
nas argumentações filosóficas. O que se consuma no interior do conceito sempre reflete
algo do movimento real. Se ambas heteronomias são a não verdade, e se isto pode ser
demonstrado de maneira estrita, então não
acrescenta nova articulação à cadeia
desesperançada das filosofias, mas também se ergue uma réstia de esperança de que a
falta de liberdade e a opressão ⎯ males que não requerem uma demonstração filosófica
para ser o que são, pois que existem ⎯ não prevalecerão como palavras finais. Uma
crítica deste tipo teria que firmar as duas tendências dominantes como momentos
divididos de uma verdade que historicamente viu-se forçada a cindir-se. Como não é
possível reuni-las numa pretensa síntese, deve-se refletir sobre elas mesmas. O falso no
positivismo é que a divisão do trabalho imposta em algum momento entre as ciências e
a práxis social e que supõe ser a ciência a medida da verdade, impeça qualquer teoria de
evidenciar que esta divisão do trabalho é derivada, mediada, o que eliminaria sua falsa
autoridade. Se a filosofia, na época da emancipação, pretendeu-se fundamento da
ciência e se, em Fichte e em Hegel, foi interpretada como a única ciência, então para os
positivistas se converte em experiência endurecida subtraída às ciências, nas maneiras
destas se comportarem, já configuradas e socialmente endurecidas em atividade
autojustificada, círculo ante o qual, surpreendentemente
pouco se incomodam os
fanáticos do rigor lógico. A filosofia renuncia ao se colocar no mesmo nível daquilo que
dela deveria receber luz. A existência da ciência em si mesma, como se apresenta no
emaranhado social com todas as suas incoerências e irracionalidades, torna-se critério
de sua própria verdade. Com tal relação diante das coisas, o positivismo é uma
consciência coisificada. Em que pese toda sua oposição à mitologia, o positivismo trai o
impulso antimitológico da filosofia, que assume o que o homem fez para conduzi-lo à
sua medida humana.
A ontologia fundamental, no entanto, torna-se cega contra a mediação não do
fático, mas do conceito. Sublinha a compreensão de que essas essências, ou como quer
que sejam chamadas numa sublimação progressiva de que lança mão contra o
positivismo, sempre são pensamento, sujeito, espírito. Exatamente o fato de ser sujeito e
ser condicionado traz de volta um ente que não surgiu por um acaso do ser: o homem
socializado. No santuário da morada em que a filosofia da repristinação se entricheira da
profanidade dos meros fatos e dos conceitos, que se separam dos fatos e subordinam-se
a eles como unidades que os captam, voltam a reunir-se os que estavam cindidos e
diante dos quais se supunham imunes os mensageiros do indiviso. Suas palavras são
inevitavelmente conceitos, por longe que se esteja de deverem ser pensados; o
pensamento, porém, continuará, como teoria do ser, a ser um arcaísmo integral. Como,
no entanto, por seu próprio sentido, os conceitos requerem um conteúdo; como, na
intuição insuperável de Hegel, o simples pensamento da identidade exige um nãoidêntico, do qual apenas cabe reivindicar a identidade: assim os conceitos mais puros
são imanentes e de maneira alguma polares na medida em que dirigidos ao Outro. O
próprio pensar, do qual todos os conceitos são funções, não pode ser representado sem a
atividade de um pensador que
diga a palavra “pensar”. Nessa retrospectiva já se
encontra compreendido como momento o que no uso idealista do conceito será apenas
constituído e que, na mitologia do ser, deve ser, com o conceito, epifenômeno de uma
terceira coisa. Sem a determinação desses dois momentos, este terceiro seria totalmente
indeterminado; dizer-lhe o nome já implica sua determinação por meio dos momentos
assiduamente negados. Mesmo o sujeito transcendental kantiano, cuja herança o ser
transcendental, carente de sujeito assumiria de bom grado, precisa, enquanto unidade,
do múltiplo assim como, por sua vez, a multiplicidade precisa da unidade racional.
Independentemente dos conteúdos, que são os unificados, não é possível captar o
conceito correspondente a eles, nem sequer cabe magicamente extrair dos conteúdos o
rastro de algo fático ou a diferença do conceito que deles se requer. Por formal que seja
e mesmo tratando-se de pura lógica, nenhuma unidade pode ser concebida apenas como
possibilidade daquilo de que provém; mesmo este algo formal é a proposição do
material cuja exclusão é o orgulho da lógica pura. O fundamento da razão chamada por
Günther Anders de pseudoconcreção do pensamento ôntico, e com isso, de todo o
engano que se estendeu a seu redor, consiste em que este vê sua própria pureza na falta
de contato com o que, no entanto, ele próprio é e com o que, como concreto, a ele
corresponde. Seu triunfo, ele o festeja na retirada estratégica. Por meio de uma
ambigüidade mítica, oculta simplesmente a limitação determinada de seus elementos,
dos quais pode tão pouco libertar-se como a própria consciência condicionada. Porque
na mitologia ôntica, o ente e o conceito permanecem artificialmente separados,
aparecendo o ser como se estivesse por cima tanto do ente quanto do conceito e, assim,
obtém para falar com Kant, seu caráter absoluto. É também consciência coisificada na
medida que rebaixa a participação humana nos conceitos superiores e que os diviniza.
Mas a dialética nada mais é que insistir na mediação do aparentemente imediato e nos
muitos graus que se desenvolvem em todos os estratos de mediatos e imediatos. A
dialética não é um terceiro ponto de vista, mas a tentativa de, por meio da crítica
imanente, superar os pontos de vista filosóficos e a arbitrariedade do pensamento. que a
eles se agrega. Diante da ingenuidade da consciência arbitrária, que julga ilimitado o
limitado que lhe apresenta, a filosofia seria a obrigação estrita de não admitir esta
ingenuidade. Num mundo que, totalmente socializado, coloca-se tão poderosamente
contra todo particular que só lhe resta aceitá-lo tal como se apresenta, esta ingenuidade
se reproduz ininterrupta e fatalmente. Converte em natureza o que lhe impõe um aparato
desmedido, que os próprios homens
formam e ao qual se vinculam, aparato que
virtualmente elimina os momentos naturais. A consciência coisificada é perfeitamente
ingênua e, como coisificação, é também completamente não ingênua. Caberia à
filosofia, dissipar a aparência do compreensível por si mesmo, bem como do
incompreensível
A integração da filosofia e da ciência, que ressalta já virtualmente nos mais
antigos documentos da metafísica ocidental, quis proteger o pensamento da tutela do
dogmatismo, com o qual tem afinidade por pura arbitrariedade, o negativo de toda
liberdade. A esta se orienta, no entanto, o postulado da “presença” imediata do espírito,
que vitalmente se consuma em todo conhecimento e que, tem sido, desde Spinoza, a
norma imprescindível da evidência. Trata-se, na mera lógica, da imagem antecipatória
de uma situação real em que os homens se encontrariam finalmente livres de toda
autoridade cega. Mas isto se modificou. Invocar a ciência, suas regras de jogo, a validez
de seus métodos, a respeito dos quais se desenvolve, tornou-se instância de controle que
censura o pensamento livre, sem proteção, sem domesticação, e que só tolera do espírito
o que está metodologicamente aprovado. A filosofia, o medium da autonomia, se
converteu num instrumento de heteronomia. O que interessava foi cortado, entregue à
casualidade do difamado aperçu, desonrado até que, isolado, reduziu-se, de fato, a batepapo de concepções do mundo. A crítica filosófica do cientificismo, que combate de
forma concludente a esse sistema de pensamento, não é, por isso, aquilo de que lhe
acusam seus bem intencionados inimigos, mas, na verdade, a destruição da destruição.
A crítica das filosofias existentes não defende o desaparecimento da filosofia, nem
sequer sua substituição por disciplinas especializadas, como a sociologia. Quer, na
verdade, prestar apoio formal e material àquela forma de liberdade espiritual que não é
acolhida pelas tendências filosóficas dominantes. O pensamento, que aberto e
conseqüente se dirige a obter um conhecimento progressivo dos objetos, está também
livre perante este na medida que não aceita a imposição de regras a partir do saber
organizado. Volta à essência da experiência de objetos nele acumulada, rompe a trama
social que a oculta e a redescobre. Se a filosofia desprende-se do medo que o terrorismo
das tendências dominantes propaga ⎯ no caso das ontológicas, a tendência de pensar
apenas o puro; no caso das científicas, a tendência de apenas aceitar o que está
justificado pelo conjunto admitido de descobertas cientificamente reconhecidas como
válidas ⎯ poderia conhecer o que lhe está vedado por este medo, aquilo que uma
consciência não tolhida teria buscado ver. O sonho da fenomenologia de ir “às coisas
mesmas” como num sonho desperto poderia aplicar-se a uma filosofia que não espera
atingir tais coisas com o recurso mágico da intuição eidética, mas que se utiliza de
mediações subjetivas e objetivas, porém sem orientar-se segundo um primado latente do
método estabelecido, o qual sempre apresenta às orientações fenomenológicas meros
fetiches, concepções auto-fabricadas, em vez das coisas desejadas. Se todas as
formulações positivistas não fossem tão profundamente suspeitas, então poder-se-ia
imaginar que só uma consciência ao mesmo tempo livre e auto-reflexiva desenvolva o
que a filosofia tradicional se impede quando se confunde com o que quer significar. O
cansaço da filosofia tradicional nas mutantes regras de seu jogo contém o potencial de
uma filosofia que evitaria a proscrição.
É incerto, no entanto, que a filosofia enquanto atividade do espírito
compreensivo tenha ainda tempo ou se ficou para trás daquilo que tem que
compreender: uma situação que leva o mundo à catástrofe. Para a contemplação parece
ser muito tarde. O que em sua índole absurda está na ordem do dia, coloca-se contra o
compreender. Há mais de cem anos que se apontou o fim da filosofia. Que o Leste
proclame como filosofia marxista o materialismo dialético (Diamat), que seria, sem
mais, identificável com a teoria marxista, demonstra a conversão do marxismo num
dogma estático, contrário a seu próprio conteúdo ou, nas próprias palavras deles, numa
ideologia. Quem hoje filosofa só o pode fazer se negar a tese marxista de que a
interpretação está superada. Esta tese pensou a possibilidade de modificação radical do
mundo como algo a existir aqui e agora. Mas apenas por teimosia poder-se-ia assim
pensar hoje. O proletariado a que ele se referia ainda não estava integrado: a olhos
vistos se empobrecia enquanto que, do outro lado, o poder social não contava ainda com
os meios para se afirmar, em casos graves, como uma força avassaladora. A filosofia,
como pensamento simultaneamente coerente e livre se encontra numa situação
totalmente diferente. Marx teria sido o último a arrancar o pensamento de seu curso
histórico real. Hegel que intuiu a transitoriedade da arte e profetizou seu término, fez
sua continuidade depender da “consciência dos perigos”. O que se aplica à arte é válido
também para a filosofia, cujo conteúdo de verdade converge com o da arte, ainda que
suas formas de experiência sejam diferentes. A duração não diminuída do sofrimento, a
angústia e a ameaça, exigem do pensar, que não pode realizar-se, o não se abandonar.
Após a oportunidade desaproveitada, cumpriria reconhecer, sem renúncias, porque o
mundo que agora e aqui poderia ser o paraíso, poderá tornar-se amanhã um inferno. Um
conhecimento deste tipo já seria filosofia. Seria anacrônico pôr de lado uma práxis que
serviria para eternizar irresistivelmente uma situação cuja crítica é assunto específico da
filosofia. Uma práxis que motiva a constituição de uma humanidade racional e madura,
permanece na trilha do doentio se não conta com uma teoria que pense a totalidade em
sua não verdade. Não se faz necessária qualquer explicação de que esta não deva voltar
a tratar do idealismo, mas, sim, tomar em consideração a realidade social e política com
sua dinâmica.
Nos últimos quarenta ou cinqüenta anos, a filosofia tem afirmado, em grande
parte equivocadamente, que se opõe ao idealismo. O que havia de verdade era a
oposição contra o enunciado decorativo, a oposição à hybris do espírito que se alça ao
absoluto, contra a explicação do mundo como se já se tratasse da própria liberdade. O
antropocentrismo que existe em toda concepção idealista não pode ser salvo; basta
recordar, em grandes linhas, as modificações da cosmologia há cento e cinqüenta anos.
Com certeza, entre as tarefas da filosofia, não será o menor apropriar-se das
experiências científico-naturais para o espírito, sem recorrer a analogias e sínteses
elementares. Estas experiências e o chamado reino do espírito abrem-se um ao outro,
mas de forma infrutífera. tanto que, às vezes, a ocupação do espírito consigo mesmo e
com o mundo social aparece como jogo frívolo. Se a filosofia nada mais tivesse a fazer
do que levar a consciência dos homens a condições de tudo que já sabem da natureza,
para que não vivam por detrás do próprio conhecimento do cosmo, como habitantes da
caverna em que se escoa a penosa existência da pouco sábia espécie humana, já se teria
obtido algo. À vista dessa tarefa e ao conhecimento não limitado das leis do movimento
da sociedade, a filosofia muito dificilmente se apresenta como afirmativa, de estabelecer
algo que tenha sentido positivo. A este respeito, se aproxima do positivismo e, ainda
mais, da arte moderna, cujos fenômenos são negados, como destituídos de relação, no
que hoje se pensa filosoficamente. Mas a virada, anunciada à saciedade, contra o
idealismo não consiste numa explicação militante, mas em resignação. O pensamento
atemorizado não ousa mais alçar-se nem mesmo à resignada ontologia fundamental
sujeita ao ser. Contra tal resignação, brota no idealismo um momento de verdade. O
materialismo realizado seria, hoje, o fim do materialismo, da cega e humanamente
indigna dependência do homem diante das relações materiais. O espírito não é o
absoluto, mas também não se esgota no ente. E apenas reconhecerá o que é se não o
suprimir. A força de tal contradição é hoje a
única medida da filosofia. Tão
inconciliável é hoje com a consciência coisificada como o foi com o entusiasmo
platônico; somente seu excesso permite nomear por seu próprio nome o universalmente
condicionado. Deseja a paz com esse outro, o ente, que as filosofias afirmativas
humilham enquanto a elogiam e se adaptam a ele. Para elas tudo é funcional; até mesmo
a adequação ao ente lhes serve de pretexto para sua submissão ao espírito. Mas o que
está aí não deve ser justificado. O que tem uma função permanece enfeitiçado no mundo
funcional. Somente o pensamento ⎯ e desde que sem reservas mentais, ilusões de um
reino interior que corresponda a sua falta de funcionalidade e a sua impotência ⎯ é
capaz talvez de alcançar uma visão da ordem do possível, do não ente, em que os
homens e as coisas estariam em seu lugar correto. Como a filosofia não serve para nada,
ainda não envelheceu; nem sequer lhe seria lícito , se não se quiser insistir às cegas em
sua culpa, reclamar-se a auto-postulação.
Esta culpa é transmitida pela idéia de uma philosophia perennis, a que se
confiou a verdade eterna. A surpreendente frase de Hegel segundo a qual a filosofia é o
próprio tempo captado no pensar, a fez explodir. Tal exigência lhe parecia tão evidente
que não hesitou em expô-la como definição. Como primeiro alcançou o insight do
cerne temporal da verdade. A ela se vinculava ainda a confiança de que cada filosofia
significativa, ao expressar o próprio grau de consciência, expressa também, como
momento necessário do todo, a própria totalidade. Que esta confiança estivesse, com a
filosofia da identidade, frustrada, não diminui apenas o pathos das filosofias posteriores,
mas também seu próprio status. O que para ele era subentendido é hoje impossível
afirmar das filosofias dominantes. Não mais captam intelectualmente sua própria época.
Apesar de seu provincianismo, os ontólogos tentavam fazer algo. O fiel contraponto a
esta tentativa é a irremediável pobreza conceitual dos positivistas. Suas regras de jogo
estão recortadas para que a consciência coisificada dos bright boys alienados de espírito
possa ser considerada como clímax do espírito do tempo. Mas não passam de seu
sintoma; falseiam o que lhes falta, como virtude inviolável de quem não se deixa
enganar por falsas aparências. Como espírito do tempo, as duas orientações são, no
máximo, formas regressivas; os que estavam “atrás do mundo” na linguagem de
Nietzsche, se tornaram os que estão “atrás da selva”. Diante deles, a filosofia deveria
conservar-se como consciência mais evoluída, convencida da força daquilo que seria de
outra maneira e amadurecida diante do poder do regressivo, sobre o qual se elevará
somente depois de incorporá-lo e captá-lo como peso morto. E se o arcaísmo de hoje
fala, diante dessa exigência, que adverte com cuidado, o faz a partir da antiga verdade; e
se trata o progresso que apenas estorvou como se tivesse superado, com rigor não passa
de algo fraudulento. Não basta dialética alguma para legitimar um estado espiritual, que
só se considera a salvo enquanto não ingressa em seus domínios; até do que se
desprende a objetividade na qual ele mesmo está implicado e que cuida de que toda
invocação à salvação sirva para reforçar imediatamente a desgraça. O sentido profundo
que se justifica a si mesmo e que trata à consciência evoluída de canaille é superficial.
Reflexões que ultrapassam as fórmulas mágicas, bem como as vérités de fait dos
positivistas não são, como supõem humoristas de publicações baratas, loucuras da
moda, mas estão motivadas pelos mesmos estados de coisas que tanto os ontólogos
quanto os positivistas pretendem considerar seriamente. Enquanto a filosofia responda
ainda aos menores ecos do título de um livro publicado há mais de trinta anos por um
antigo kantiano, “Do rincão dos filósofos”, continuará sendo o divertimento que farão
com ela os que a depreciam. Não será por mediação de conselhos de tio experiente que
se alçara sobre a prática das ciências. Toda sabedoria se reduziu a uma sabedoria de
salvação. Também não lhe será proveitoso o comportamento daquele professor que ao
sentir-se, no período que antecedeu ao fascismo, levado a julgar seu tempo,
inspecionava o filme “O anjo azul”, de Marlene Dietrich, para investigar por intuição
direta quanto degenerada estava a situação. Tais fugas ao concreto levam a filosofia,
como resíduo, ao plano da história, com cujo sujeito se confunde como lembranças
culturais. Não seria o pior padrão de uma filosofia hoje evitar em nada igualar-se a tudo
isto. Não lhe cabe reunir informações com aborrecida arrogância, mas tomar posições
integrais e sem reservas mentais, das quais se afastam os que não querem deixar-se
arrebatar o princípio de que algo positivo tem que ser alguma vez extraído em toda
filosofia. A frase de Rimbaud il fault être absolument moderne não é um programa
estético para estetas, mas um imperativo categórico da filosofia. A tendência histórica
desmorona-se com aqueles que nela nada puderam criar. Não promete qualquer
salvação e como possibilidade de esperança apenas a do movimento do conceito, que
busca ao extremo.
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Para que, ainda, filosofia?1 Theodor W. Adorno Diante de