DESAPROPRIAÇÃO POR ZONA1
Frederico Rebeschini de Almeida
Orientador: Profª. Me. Magda Azário Kana’an Polanczyk
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo aprofundar o estudo sobre a
desapropriação por zona, tendo em vista os conflitos entre a propriedade privada e
os interesses coletivos baseados até então pelo Decreto Lei n.º 3.365/1941 e as
alterações trazidas pela atual Constituição Federal, diploma este responsável pela
inserção de nova hermenêutica e profundas modificações a respeito do direito de
propriedade. Para tanto, parte-se de aspectos históricos em que se insere o tema e
suas evoluções, passando-se, logo após, à análise da atual conjuntura de
interpretação do tema para que, ao final, se possa verificar a sua continuidade de
aplicação ou sua substituição por outro instituto, a contribuição de melhoria, para os
mesmos casos postos frente à necessidade de reembolso de valores despendidos
na realização de obras e serviços.
Palavras-chave: Desapropriação por zona. Contribuição de melhoria.
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende (propor) um debate sobre a possibilidade de
aplicação do instituto da desapropriação por zona, calcado no Decreto Lei
n.º 3.365/1941, frente aos princípios e regras constitucionais trazidos pela atual
Constituição Federal. Busca-se, ainda, demonstrar o modo como seria possível a
utilização desse instituto, e sob quais fundamentos e conseqüências, e, ainda,
analisar a possível incidência de dispositivo constitucional específico - contribuição
de melhoria – em detrimento da expropriação para os mesmos casos postos frente
ao instituto da desapropriação por zona, traçando-se também um quadro
1
Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel de Direito,
Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
2
comparativo relativo às justificativas de sua utilização bem como de suas
conseqüências.
Desde os primórdios, muito em razão de em muitas sociedades ter havido a
total supressão de direitos de particulares, sempre houve grande discussão acerca
do direito de propriedade e sua devida proteção frente a possíveis intervenções por
parte do Estado nessa esfera dita até então privada. Discutiu-se por muito tempo se
possuía ou não caráter absoluto, ou seja, se seria oponível frente a interesses da
coletividade. Certo é que, com a evolução da sociedade as concepções a respeito
da essência do direito de propriedade foram se transformando.
Com o advento da atual constituição a concepção do direito de propriedade
se modifica substancialmente com a inserção de novos valores e regras no
ordenamento jurídico pátrio.
Desde então, vem-se ampliando ainda mais as discussões em relação a
essa nova concepção trazida pela lei fundamental, não só pelo fato de haver
inserido estes novos “conceitos” jurídicos, mas também pela necessidade enfrentada
pela sociedade em solucionar problemas e entraves que surgem principalmente nas
relações entre Estado e particulares – conflito entre o público e o privado.
Assim, com o objetivo de analisar o universo de incidência da
desapropriação por zona, parte-se de generalidades concernentes ao embate entre
público e privado, pretendendo preparar o terreno para, a partir daí, aprofundar o
estudo especificamente no tocante à matéria central do presente trabalho.
No primeiro capítulo, realiza-se uma breve exposição histórica do Público e
do Privado e sua repercussão no mundo jurídico, direcionando sempre o estudo a
questões pontuais relativas à ingerência do Estado na esfera privada.
A ênfase, e não poderia ser de outra forma, é o direito de propriedade, e a
autonomia privada, pois é sobre eles que irão se debruçar todas as concepções
trazidas para o presente trabalho. Ainda, analisa-se a conjuntura de ambas as
esferas em uma perspectiva moderna, trazendo não apenas dados históricos e
passados, mas enfrentando o problema de maneira bastante atual e dinâmica.
Após, no segundo capítulo, trata-se da intervenção do Estado na
propriedade como meio de ingerência do Público na espacialidade Privada,
especificamente sob a forma da desapropriação por zona. Inicia-se explicando o
instituto, que é um dos quais se utiliza o Estado para a ingerência em esfera que não
originariamente sua, bem como sua evolução histórica desde o seu surgimento e
3
incorporação ao ordenamento jurídico pátrio até os dias de hoje. Realiza-se o exame
de suas principais características bem como de seus objetivos. Destaca-se, nesse
instituto, o Decreto Lei n.º 3.365/41 que estabelece os casos de utilidade pública,
estabelecendo sua natureza jurídica, peculiaridades, pressupostos bem como os
riscos e benefícios de sua aplicação para a Administração Pública e as
conseqüências para o expropriado.
Finalmente, no terceiro capítulo, traz-se ao presente trabalho o instituto da
contribuição de melhoria. Traçam-se também as mesmas linhas utilizadas para a
análise do instituto da desapropriação por zona, mas aqui, vale lembrar, as
conseqüências não são para um expropriado, e sim para um sujeito passivo da
obrigação tributária. Destacam-se, ainda, suas peculiaridades. Ao final, discorre-se
sobre suas utilizações em tempos atuais.
Adota-se o entendimento de que a desapropriação por zona do ponto de
vista da distinção entre Direito Público e Direito Privado é plenamente possível.
Percebemos que a Constituição Federal de 1988 consagrou a concepção, que já
vinha há algum tempo se tornando como majoritária tanto por parte de filósofos
como pelos aplicadores do direito, da repersonalização do direito privado, da
supremacia do interesse público sobre o privado, tornando mais tênue a linha que
dividia ambas as esferas. Com efeito, percebe-se que institutos até então tratados
exclusivamente pelo Código Civil, e que foram considerados por muito tempo como
grandes exemplos de direitos pertencentes à espacialidade privada, passaram a ser
disciplinados também em nível constitucional.
Não obstante tenha havido a repersonalização do direito privado e a
consolidação da supremacia do interesse público sobre o privado, é fato que o
administrador público na condução de sua função pública deve atentar, em razão do
princípio da moralidade, para o fato de que não basta o estrito cumprimento da lei, e
sim, que esse cumprimento venha jungido com princípios éticos de razoabilidade e
justiça, pois o princípio em questão como muito bem define Alexandre de Moraes2
“exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir”. Portanto, competirá a
ele, no caso concreto decidir pela utilização do instituto da desapropriação por zona
ou pela contribuição de melhoria para o ressarcimento dos cofres públicos em
2
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 312.
4
decorrência dos investimentos por ela empreendidos na realização de obras e ou
serviços.
Ressalte-se, no entanto, que não se pretende aqui exaurir todas as questões
concernentes aos institutos da desapropriação por zona e contribuição de melhoria,
mas apresentar um estudo aprofundado e consistente acerca de seus âmbitos de
aplicação. Espera-se que o objetivo seja atingido.
1 DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO
Inicialmente, antes de qualquer exposição mais aprofundada a respeito do
âmbito de incidência do direito privado e do direito público, necessário é estabelecer,
definir, determinar o sentido da expressão “direito”.
Em uma rápida remonta a antiguidade, observamos o surgimento da
simbologia do Direito, presente até os dias atuais. Na Grécia e em Roma, surgiram
as figuras Dikê e Iustitia, deusas dos gregos e dos romanos, respectivamente. Em
ambas, observa-se a existência de uma balança com pratos e quando estes
estivessem equilibrados haveria o equilíbrio e conseqüentemente, a igualdade, a
justiça3.
Em seu sentido denotativo, uma das definições trazidas pelo dicionário
Houaiss4 da língua portuguesa, direito seria aquilo “de acordo com os costumes, o
senso comum, as normas morais e éticas etc.; certo, correto, justo. Nesse mesmo
sentido Silvio Venosa5 ao afirmar que “a palavra direito intuitivamente nos outorga a
noção do que é certo, correto, justo, equânime".
Em termos jurídicos verificamos certa dificuldade por parte dos autores em
definir, conceituar o Direito, por envolver nele questões históricas, filosóficas,
políticas e econômicas.
Goffredo Telles Junior ensina que em razão de a palavra direito ser plurívoca
deve-se atentar para o fato de ela expressar não apenas uma definição. Refere que:
[...] o Direito se define através do Direito Objetivo compreendido por meio do
imperativo autorizante e sistema de imperativos autorizantes que são as
3
WALDMAN, Ricardo Libel. Aulas ministradas na disciplina de Introdução ao estudo do direito I no
semestre de 2002/1.
4
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001. p. 1049
5
VENOSA, Silvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. São Paulo: Atlas,
2004. p. 27
5
normas de uma determinada espécie e o sistema de normas; do Direito
Subjetivo que designaria a permissão concedida por meio de norma jurídica
e finalmente designaria uma qualidade especial que seria o justo segundo o
6
direito, ou em conformidade com a lei.
Afirma Silvio de Salvo Venosa, que:
[...] sob o aspecto geral o direito se apresenta em três acepções. Como
regra de conduta obrigatória, que se traduz no direito objetivo; como um
sistema ordenado de conhecimentos, o que se traduz na ciência do direito;
e como uma faculdade que a pessoa tem de agir para obter de outrem o
7
que entende cabível, o direito subjetivo.
Pode-se então, definir direito como uma regra jurídica (direito objetivo), mas
também como o direito de alguém a determinada coisa (direito subjetivo). Dessa
forma, Direito, em sentido amplo, seria o conjunto de normas jurídicas com o objetivo
de regular as relações oriundas da vida em sociedade, de modo a determinar
direitos e obrigações.
1.1 A DICOTOMIA ENTRE DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO
Feitas as considerações iniciais a respeito do que se compreende por direito
passa-se às definições de Direito Público e de Direito Privado. Como muito bem
lembra Silvio de Salvo Venosa8, pode-se para fins didáticos com conseqüente
melhor interpretação do tema, dividir ou até mesmo subdividir os vários campos do
direito. Nesse sentido, far-se-á a distinção entre ambas as esferas.
Ensina Goffredo Telles Junior que:
[...] para os romanos, o fundamento ou critério desta divisão era,
evidentemente, a utilidade visada pelas leis. Diziam eles que certas coisas
são de utilidade pública, outras são de utilidade particular; se a lei tem por
objeto as primeiras, é lei de Direito Público; se tem por objeto as segundas,
9
é lei de Direito Privado.
Eugênio Facchini Neto10 afirma ao discorrer sobre a intensificação da
dicotomia entre direito público e privado a partir do século XVIII que Direito Público
passou a ser visto como aquele direito responsável pela regulação do Estado,
basicamente em sua estrutura e funcionamento. Direito Privado, por outro lado,
compreenderia a disciplina das relações da sociedade civil. Veremos, no próximo
6
TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 355.
VENOSA, op. cit., p. 30.
8
Ibid., p. 29.
9
TELLES JUNIOR, op. cit., p. 225.
10
FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito
privado In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.) Constituição, Direitos Fundamentais e Direito
Privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 19.
7
6
tópico, mais especificamente com o início da era contemporânea, que essa
definição, bastante estanque, originou a grande separação entre ambas as
espacialidades, trazendo inúmeras conseqüências para a seara jurídica.
Maria Celina Bodin de Moraes por outro turno, salienta que:
[...] neste novo momento da Civilística, a distinção entre relações jurídicas
de caráter público e de caráter privado será feita tendo por base o interesse
preponderante (sem que o outro deixe de se fazer presente).11
Com relação à diferenciação entre as esferas Silvio de Salvo Venosa ensina
que:
[...] pertencerão ao direito público as normas que regulam o Estado quando
exerce a soberania. Nessas relações existe o poder de império. Quando o
Estado se despe da soberania e se relaciona em condições de igualdade
com os indivíduos, pessoas naturais ou jurídicas, o campo será o do direito
privado, assim como quando a relação é entre particulares no mesmo plano
12
de igualdade.
Silvio de Salvo Venosa aduz que Karl Larenz afirma ser o direito privado
aquela parte do ordenamento jurídico que regula as relações de particulares entre si:
[...] com base na sua igualdade jurídica e sua autodeterminação (autonomia
privada). Por direito público, entende-se a parte do ordenamento que regula
as relações do Estado e de outras corporações investidas de poder de
autoridade, tanto com seus membros, como entre si, assim como a
13
organização de ditas corporações.
Para Goffredo Telles Júnior:
[...] o Direito Público é aquele que protege utilidades ou interesses
preponderantemente públicos e regula relações jurídicas de subordinação; e
o Direito Privado é aquele que protege interesses preponderantemente
privados e regula relações jurídicas de coordenação.14
Importante trazer também para melhor compreensão do presente Capítulo o
pensamento de Bobbio acerca da definição de dicotomia, pois, segundo ele:
[...] deve ela ser entendida como uma capacidade de dividir o universo em
duas esferas, conjuntamente exaustivas, no sentido de que todos os entes
daquele universo nelas tenham lugar, sem nenhuma exclusão, e
reciprocamente exclusivas, no sentido de que um ente compreendido na
primeira não pode ser contemporaneamente compreendido na segunda.15
11
TEPEDINO, Gustavo (Org.) A Responsabilidade social do jurista e o ensino jurídico: um breve
diálogo entre o direito e a pedagogia. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. Diálogos sobre Direito
Civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 17.
12
VENOSA, op. cit., p. 42.
13
VENOSA, op. cit., p. 42.
14
TELLES JUNIOR, op. cit., p. 228.
15
BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: público/privado. In: Estado, governo, sociedade: para
uma teoria geral da política [Stato, governo, società. Per uma teoria generale della politica]. 3. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990 [1987]. p. 13-14.
7
Historicamente sempre houve grandes oscilações em torno da separação
entre Direito Privado e Direito Público, ora havendo maior preponderância de uma
esfera, ora de outra, como será objeto de análise no próximo tópico deste Capítulo.
1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Como ensina Eugênio Facchini Neto16, ao fazer a abordagem da evolução
histórica da constitucionalização do direito privado, em um primeiro momento
histórico houve uma penetração recíproca entre as esferas. Na clássica Grécia, por
exemplo, a ágora se constituía em um espaço da liberdade do cidadão na pólis
Ateniense. Nela, o cidadão, embora escravos e estrangeiros não fossem
considerados como tal, participava ampla e diretamente das decisões que envolviam
os interesses da comunidade, através de uma representação direta. Relata o autor
que em Roma já havia uma redução da intervenção do cidadão na seara pública,
vislumbrando-se melhor a separação entre as duas esferas.
Sustenta Eugênio Facchini Neto17 que no regime feudal, em razão de não
existir de fato um Estado, e a propriedade possuir uma supremacia frente a outros
institutos tais como econômico e políticos, verifica-se que a partir do direito de
propriedade é que derivavam outros poderes. Isso era decorrência basicamente da
grande influência exercida pelos senhores feudais.
Eugênio Facchini Neto18 salienta que em meados do século XVIII ressurge,
com maior nitidez, a distinção entre público e privado. Essa maior diferenciação é
fruto de uma necessidade de regulação das esferas do Estado e civil. Enquanto o
Direito Público passou a regular as relações daquela primeira esfera, coube ao
Direito Privado disciplinar as relações desta última.
Salienta, ainda, Eugênio Facchini Neto que:
[...] na fase de surgimento das codificações a estrutura das relações
privadas era calcada nas concepções de ampla liberdade contratual e de
propriedade absoluta. É justamente nesse período histórico que pela
primeira vez o legislador se ocupa de maneira mais abrangente do direito
privado. Portanto, o direito, com essa preocupação em sistematizar o âmbito
privado, acaba por se tornar estatal.19
A Revolução Francesa que marca o início da era contemporânea rompe com
os valores absolutistas, abrindo caminhos para as grandes codificações do direito
16
FACCHINI NETO, op. cit., p. 28.
Idem, Ibidem.
18
Idem, Ibidem.
19
Idem, Ibidem.
17
8
privado do século XIX, assinalando de forma bastante nítida a separação entre a
esfera privada e a pública.
Com relação ao rompimento dos valores do antigo regime Absolutista e a
criação de uma nova ordem social Canotilho alude que:
[...] fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento
político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII,
questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais
de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma nova
forma de ordenação e fundamentação do poder político. Este
constitucionalismo como o próprio nome indica, pretende opor-se ao
chamado constitucionalismo antigo, isto é, o conjunto de princípios escritos
ou consuetudinários alicerçadores da existência de direitos estamentais
20
perante o monarca e simultaneamente limitadores de seu poder.
Em decorrência do receio de que se pudesse retroceder aos antigos moldes
do Absolutismo, os códigos civis deste novo período que surge tiveram como ponto
de apoio a propriedade, com caráter absoluto e individualista, e os ideais de
liberdade e igualdade, esta última, em sentido formal. Nesse sentido Eugênio
Facchini Neto aduz que nesse período:
[...] as relações privadas são estruturadas a partir de uma concepção de
propriedade absoluta e de uma plena liberdade contratual em todos os
Códigos Civis que surgem nesse primeiro ciclo das codificações. Desta
maneira, reduziu-se de maneira significativa a ingerência do Estado na
esfera privada. 21
Refere Maria Celina Bodin de Moraes22 que:
[...] a liberdade era “absoluta”; as restrições a ela tinham unicamente o
condão de proteger as liberdades dos demais indivíduos. A autonomia dos
privados se contrapunha à ordem pública e ou aos interesses da
coletividade, os quais somente em pouquíssimos setores, considerados
estratégicos, podiam prevalecer sobre os interesses da coletividade. Tal
concepção, denominada liberalismo jurídico, apresentava o direito privado
como o “coração de toda a vida jurídica” e o direito público como uma “leve
moldura que devia servir de proteção ao primeiro”.23
Necessário salientar que o individualismo surgido no período Liberal em
nada se confunde com o egoísmo, pois como definiu Aléxis de Tocqueville apud
Eugênio Facchini Neto24, este último seria:
[...] um apaixonado e exagerado amor de si próprio. [...] O individualismo um
sentimento calmo e maduro, que leva cada membro da comunidade a
20
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra,
Almedina, 1998, pág. 46.
21
FACCHINI NETO, op. cit., p. 19.
22
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e
conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.) Constituição, Direitos Fundamentais e
Direito Privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 136.
23
Assim relata RADBRUCH, G. Filosofia do Direito. Coimbra: A. Amado, 1961. p. 8. v. 2.
24
TOCQUEVILLE, Aléxis de. L’Ancien Regime et la Révolution apud FACCHINI NETO, op. cit., p.53.
9
distinguir-se da massa de seus pares e se manter à parte com sua família e
seus amigos.
Trata-se, esse sentimento, de uma reação à era medieval, em que os
estamentos determinavam os valores de cada indivíduo e não suas próprias
características.
Importante referir a lembrança de Eugênio Facchini Neto25 do discurso
proferido por Benjamin Constant, em 1819, em Paris, que traçou comparativo entre a
liberdade dos antigos e dos modernos. Referiu que enquanto a liberdade dos antigos
era caracterizada pelo direito de o indivíduo intervir no âmbito público, a liberdade
dos modernos está relacionada à possibilidade de ampla movimentação na esfera
privada.
Com a decadência do Estado burguês verifica-se o surgimento do Estado do
bem-estar social, também chamado de Welfare State, que nasce de uma
convergência
de
fatores
sociais,
políticos
e
econômicos
resultando
no
constitucionalismo social.
O constitucionalismo social busca a promoção da igualdade, mas não mais
aquela consagrada pela Revolução Francesa e que gerou grandes problemas haja
vista a grande diferença entre os cidadãos, mas sim uma igualdade material,
também denominada de substancial, que consiste em tratar de maneira desigual os
desiguais e não mais igualmente os iguais, a partir da concepção de que os
indivíduos são diferentes, devendo, portanto, receberem tratamentos distintos.
O Estado do bem-estar social trouxe transformações significativas em nível
jurídico. Rosalice Fidalgo Pinheiro26 atenta para o fato de que:
[...] nesse momento, o Direito abre-se para valores deixados à margem do
Estado de Direito Liberal, como a igualdade substancial, a justiça social e a
dignidade da pessoa humana, com vistas a adequar o Direito à realidade
que lhe é apresentada.
Refere Rosalice Fidalgo Pinheiro que:
[...] as injustiças acentuadas pela construção de uma sociedade liberal
clássica, a crise do capitalismo, e o fenômeno das relações de produção e
consumo em massa, tornam imprescindível a intervenção estatal. Rompemse as fronteiras entre o público e o privado, que encontrava fundamento na
separação entre Estado e sociedade, na qual encontrava-se o mercado livre
da intromissão do poder público. Sob a égide de novos princípios traçados
pelas Constituições, delineiam-se microssistemas, que trazem consigo a
25
26
FACCHINI NETO, op. cit., p. 20.
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. A responsabilidade social do jurista e o ensino jurídico: um breve
diálogo entre o direito e a pedagogia. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Diálogos sobre Direito Civil:
construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.p. 505.
10
crescente intervenção do Estado na vida econômica e social, sob a forma
de novos ramos do Direito.27
Nesse novo modelo que surge, o constitucionalismo social, há uma inversão
no que diz respeito à primazia até então do direito privado sobre o público.
Importante nesse sentido é a compreensão do conceito de direito constitucional e
também do denominado constitucionalismo.
Canotilho ensina que:
[...] para se compreender o direito constitucional é necessário, em primeiro
lugar, aludir aos grandes problemas jurídico-políticos a que o movimento
constitucional moderno procura dar resposta, referindo a existência de
28
diversos movimentos constitucionais.
Para Alexandre de Moraes:
[...] o Direito Constitucional é um ramo do Direito Público, destacado por ser
fundamental à organização e funcionamento do Estado, à articulação dos
elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases da
estrutura política.
Sustenta Canotilho que o:
Constitucionalismo é a teoria que ergue o princípio do governo limitado
indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da
organização político-social de uma comunidade. O constitucionalismo
moderno representa uma técnica específica de limitação do poder com fins
garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro
juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a
29
teoria da democracia ou a teoria do liberalismo.
Tendo
em
vista
esses
novos
valores
trazidos
pela
teoria
do
constitucionalismo social não mais se compreende a propriedade como um direito
absoluto, pois deve ela, atender aos interesses coletivos. Verifica-se uma maior
intervenção do Estado na esfera privada. Para Bobbio30, de certo modo:
[...] o primado do público significa o aumento da intervenção estatal na
relação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infraestatais, ou seja, o caminho inverso ao da emancipação da sociedade civil
em relação ao Estado, emancipação essa que fora o resultado da ascensão
da classe burguesa. Com o declínio dos limites à ação do Estado, foi ele
aos poucos se reapropriando do espaço conquistado pela sociedade civil
burguesa até absorvê-lo completamente na experiência extrema do Estado
total.
27
Idem, ibidem.
CANOTILHO, op. cit., p. 45.
29
Idem, Ibidem.
30
BOBBIO, op. cit., p. 25.
28
11
Eugênio Facchini Neto31 afirma que:
[...] no âmbito do direito privado, esse novo período é caracterizado pelo
fato de que também o poder da vontade dos particulares encontra-se
limitado [...]. Essa nova limitação se dá principalmente a partir da
concretização dos princípios constitucionais da solidariedade social e da
dignidade da pessoa humana. Ou seja, abandona-se a ética do
individualismo pela ética da solidariedade; relativiza-se a tutela da
autonomia da vontade e se acentua a proteção da dignidade da pessoa
humana.
Constata-se a partir de então, a previsão constitucional de situações
reguladas apenas pelo Direito Privado, ou seja, as bases das codificações do
passado, propriedade, família e contrato passam a também a ser objeto de disciplina
constitucional, surgindo o fenômeno da constitucionalização do direito privado, que
será objeto de análise no último tópico deste Capítulo 1.
Com esse deslocamento de matérias de regulamentação até então
exclusivas pelo Direito Privado para o Direito Público, deve-se, por óbvio, alterar o
modo de interpretação frente aos casos concretos. Caberá ao jurista não mais se
ater exclusivamente às normas de Direito Privado, mas sim compreender o caso
através de uma interpretação ampla, observando o ordenamento jurídico como um
todo, com amparo principalmente nos novos valores trazidos pela atual Constituição
Federal, do Estado do bem-estar social.
Eroulths Cortiano Junior32 ao discorrer sobre o direito, a pessoa e o
patrimônio afirma que o direito brasileiro encontra na Constituição Federal de 1988
uma nova tábua valorativa, consistente na jurídica supremacia dos valores
existências da pessoa humana sobre os aspectos patrimoniais de sua existência. DA
codificação civil marcadamente proprietarista passou-se a um direito civilconstitucional evidentemente personalista. Esta opção da coletividade – que se
refletiu na escrita do contribuinte – é extraída da preocupação em colocar a
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (Constituição
Federal, art. 1º, inciso III).
31
32
FACCHINI NETO, op. cit., p. 25.
CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. Para além das coisas: breve ensaio sobre o direito, a pessoa e o
patrimônio mínimo. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Diálogos sobre Direito Civil: construindo uma
racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 155.
12
1.3 PONTOS DE CONVERGÊNCIA
Em razão da superação da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado,
podemos observar com maior clareza a existência de pontos de contato entre as
esferas, público e privada, dando margem ao surgimento da publicização do direito
privado e da privatização do direito público, que serão objeto de análise ainda neste
capítulo nos próximos e últimos dois pontos.
Sustenta Eugênio Facchini Neto33 que “do ponto de vista jurídico, percebese que público e privado tendem a convergir. Tal convergência, aliás, opera nas
duas direções, ou seja, cada vez mais o Estado se utiliza de institutos jurídicos do
direito
privado,
estabelecendo
relações
negociais
com
os
particulares,
e
consequentemente abrindo mão de instrumentos mais autoritários e impositivos
(trata-se do fenômeno conhecido como privatização do direito público)”.
Salienta Eugênio Facchini Neto que há um direcionamento do direito privado
em direção ao público, citando como exemplo o reconhecimento da função social da
propriedade.
Como refere Maria Celina Bodin de Moraes34 “defronte de tantas alterações,
direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o
direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não
mais se inspira na subordinação do cidadão. É o fim das dicotomias. Subsistem
diferenças, porém elas são meramente “quantitativas”, pois há institutos onde
prevalecem os interesses individuais, embora também estejam presentes interesses
da coletividade, e outros institutos onde predominam os interesses da sociedade,
embora funcionalizados à realização dos interesses existenciais dos cidadãos.”
Com a superação da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado,
inexistindo aquela linha nítida entre uma esfera e outra, verifica-se a existência de
dois novos fenômenos, o primeiro deles denominado de publicização do direito
privado também denominada de constitucionalização do direito civil e o segundo de
privatização do direito público.
33
34
FACCHINI NETO, op. cit., p. 28.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito
Civil, n. 65, jul./set. 1993 p. 26.
13
1.4 PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO (CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
DIREITO PRIVADO)
Silvio de Salvo Venosa35 afirma que “cada vez mais, no curso das últimas
décadas, ocorre o fenômeno denominado publicização do direito privado. Para ele,
esse fenômeno demonstraria que a distinção entre o direito público e o direito
privado possuiria sentido meramente ideológico.”
Sustenta Eugênio Facchini36 Neto que a publicização do direito privado é a
“intervenção do Estado, de forma imperativa, em extensas áreas que antes eram
deixadas ao livre jogo das vontades privadas”.
ser:
A denominada publicização – constitucionalização - do Direito Privado deve
[...] compreendida como o processo de crescente intervenção estatal,
especialmente no âmbito legislativo, característica do Estado Social do
Século XX. Ou seja, há o primado do político sobre o econômico. Disso
resulta uma redução do espaço privado.
Da constitucionalização do direito civil decorre a migração, para o âmbito
privado, de valores constitucionais.
Rosalice Fidalgo Pinheiro ensina que:
[...] o Direito Civil perde, então, inevitavelmente, a cômoda unidade
sistemática antes assentada, de maneira estável e duradoura, no Código
Civil. [...] O intérprete passa então a se valer dos princípios constitucionais,
como normas jurídicas privilegiadas para unificação do sistema
interpretativo, evitando assim, as antinomias provocadas por núcleos
normativos díspares, correspondentes a lógicas setoriais nem sempre
37
coerentes.
Rosalice Fidalgo Pinheiro afirma que:
[...] sob a égide de novos princípios traçados pelas Constituições, delineiamse microssistemas, que trazem consigo a crescente intervenção do Estado
na vida econômica e social, sob a forma de novos ramos do Direito. Nessa
passagem de monossistema para polissistema, assiste-se a descodificação
do Direito Privado, tornando o cenário jurídico fragmentada, e deixando o
código de ocupar a posição central que lhe fora outorgada pela
Modernidade.38
Apesar do surgimento desses novos fenômenos, cumpre salientar que o
direito privado continua tendo seu âmbito de atuação, não havendo uma substituição
plena do Código Civil pelas Constituições, apenas teve alguns aspectos absorvidos
pelo direito público. Nesse sentido, perde, o código, a função central do
35
VENOSA, op. cit., p. 42.
FACCHINI NETO, op. cit., p. 31.
37
PINHEIRO, op. cit., p. 493.
38
Idem. Ibidem.
36
14
ordenamento, passando agora a ser desempenhada pela Constituição, restando ao
código civil uma função residual.
Sobre a afirmação de que não há a absorção do direito privado pelo direito
constitucional Silvio de Salvo Venosa39 aduz que “a promulgação de um novo
Código Civil nos alvores do século XXI é exemplo patente da sobrevivência e
pujança do direito privado.”
Conclui-se, então, que a constitucionalização do direito privado não implica a
absorção total deste último pelo direito constitucional. É necessário realizar uma
sociedade fundada sobre o direito privado que não seja nem separada nem
absorvida pelo Estado, mas que esteja a ele integrada, garantindo-se a sua
autonomia, em um sistema vinculado à Lei Fundamental.
Resume Rosalice Fidalgo Pinheiro que surge:
[...] a necessidade de reunificação do Direito Privado, uma vez que esse
papel passa a ser desempenhado pela Constituição, ao trazer consigo
princípios básicos para disciplina das relações privadas. Eis o fenômeno da
constitucionalização do direito civil, segundo o qual, a Constituição passa a
ocupar a posição central de todo o ordenamento jurídico, atribuindo-se ao
Código, papel residual na regulamentação da vida jurídica. Trata-se em
questões metodológicas de buscar os valores fundamentais do Direito
Privado na Constituição, ganhando espaço uma nova disciplina civilística,
não mais orientada em torno do patrimônio, com contornos individualistas,
mas em torno da pessoa, com contornos solidaristas, os quais surgem de
um esforço de repersonalização do Direito civil. 40
Deste modo, o direito passa a ter uma nova concepção. Rompe, ele, com os
valores do patrimonialismo e individualismo, para consagrar um novo valor que é a
solidariedade, devendo, portanto, possuir uma função social.
Deve-se então, fazer uma análise dos motivos pelos quais surge o princípio
da solidariedade e a expressão função social da propriedade e o que vem eles a
significarem. Como em todo o direito, os valores e normas devem ser sempre
interpretados a partir do contexto histórico que se apresentam.
Em relação ao surgimento desse novo valor, a solidariedade, sustenta Maria
Celina Bodin de Moraes que:
[...] o século passado presenciou, em grande parte como conseqüência das
trágicas experiências vivenciadas ao longo da Segunda Guerra, o
surgimento de um novo tipo de relacionamento entre as pessoas, baseado
na chamada solidariedade. É de ressaltar a tábua axiológica trazida pelas
Constituições do século XX, elaboradas e promulgadas após o término da
Guerra. Nesse novo ambiente, o valor fundamental deixou de ser a vontade
individual, o suporte fático – jurídico das situações patrimoniais que
39
40
VENOSA, op. cit., p. 42.
PINHEIRO, op. cit., p. 42.
15
importava regular, dando lugar à pessoa humana e à dignidade que lhe é
intrínseca. No caso brasileiro, essa mudança de perspectiva deu-se por
força do art. 1º, III, da CF/88 e da nova ordem que ela instaura, calcada na
primazia das situações existenciais sobre as situações de cunho
41
patrimonial.
que:
Salienta Maria Celina Bodin de Moraes42 sobre o ordenamento jurídico pátrio
[...] a Constituição, ao estatuir os objetivos da República Federetiva do
Brasil, no art. 3º, I, estabelece, entre outros fins, a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária. Tais objetivos foram destacados, no texto
constitucional, no Título I, denominado: “Dos Princípios fundamentais” e,
como tal, sua essencialidade – qualidade do que é fundamental – faz com
que desfrutem de preeminência (superioridade), seja na realização pelos
Poderes Públicos e demais destinatários do ditado constitucional, seja na
tarefa de interpretá-los e, à sua luz, interpretar todo o ordenamento jurídico
nacional.
Depreende-se, inicialmente, da análise da expressão “função social” da
propriedade, que há uma intervenção da esfera pública na espacialidade privada,
limitando essa última esfera. Saliente-se aqui a denominada publicização do direito
privado, objeto de análise deste tópico, compreendida como a crescente intervenção
do público sobre o privado e conseqüente redução da autonomia privada.
Pietro Perlingieri43 aduz que:
[...] em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social, o
conteúdo da função social assume papel de tipo promocional, no sentido de
que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações
deveriam ser atuadas para garantir e promover os valores sobre os quais se
funda o ordenamento.
Ao expor sobre a função social da propriedade André Osório Gondinho44
afirma que:
[...] é imprescindível colocar o direito de propriedade rente à vida, a serviço
do homem e de suas necessidades vitais, contribuindo para a criação de
uma sociedade justa e solidária como preconiza o texto constitucional. O
Código Civil precisa ser estudado à luz da Constituição Federal. O direito de
propriedade, embora não seja concedido ou reconhecido em função da
sociedade, deve ser exercido em função desta, produzindo e abrigando, e
não servindo de reserva de capital a enriquecer o seu domínio, em
detrimento dos objetivos fundamentais de nossa República de construir uma
sociedade justa e solidária.
José Acir Lessa Giodani45 afirma que “ao mesmo tempo em que a
propriedade é regulamentada como direito individual fundamental, revela-se o
41
MORAES, op. cit., 2006, p. 138-139.
Ibid., p. 139.
43
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 1997. p. 231.
44
GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.).
Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 399.
42
16
interesse público de sua utilização e de seu aproveitamento ligado aos anseios
sociais”
André Osório Gondinho46 muito bem define a função social da propriedade
ao afirmar que ela:
[...] não é apenas mais um limite do direito de propriedade. Isto porque limite
é o instrumento com o qual o interesse público ou privado circunscreve um
direito, sacrificando a sua extensão ou determinando o seu conteúdo.
Tradicionalmente, a noção de limite é negativa, voltada a comprimir os
poderes do titular do direito atingido, nunca apta a promover os valores
fundamentais do ordenamento, missão primeira da função social.
Por fim, ressalta Eugênio Facchini Neto47 que “do ponto de vista das
estruturas dogmáticas do Direito objetivo, percebe-se uma evolução no sentido da
despatrimonialização do direito civil, em função do advento do correlato movimento
em prol da sua repersonalização, ou seja, a tutela das situações patrimoniais deixa
de estar no centro das preocupações jurídicas, pois, a partir de uma visão
constitucionalizada do direito privado, a primazia passa para as situações não
patrimoniais, buscando-se dar efetividade ao princípio da dignidade da pessoa
humana”.
Gustavo Tepedino acerca da publicização do direito privado:
[...] trata-se em estabelecer novos parâmetros para a definição da ordem
pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar,
insista-se ainda uma vez, os valores não patrimoniais e, em particular, a
dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, os
direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar
a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.48
1.5 PRIVATIZAÇÃO DO DIREITO PÚBLICO
No tópico anterior tratamos da publicização do direito privado. Cumpre,
agora, verificar se existe a privatização do Direito Público.
Em decorrência do fato de o Estado cada vez mais adquirir para si uma
maior quantidade de funções, acaba ele atuando em atividades que até então eram
de atuação tão somente do indivíduo, do particular. Tendo em vista essa crescente
atividade do Estado na esfera privada, verificamos que ele passa também a atuar
conforme as regras de direito privado. O Estado utiliza-se, então, de meios que
45
GIORDANI, José Acir Lessa. Propriedade imóvel: seu conceito, sua garantia e sua função social na
Nova Ordem Constitucional. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 669, 1991.
46
GONDINHO, op. cit., p. 419.
47
FACCHINI NETO, op. cit., p. 56.
48
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In:
TEPEDINO, Gustavo (Org.). Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 22.
17
antes eram somente utilizados pelos particulares no âmbito de suas relações
privadas. Cite-se, por exemplo, a realização de um contrato de prestação de
serviços entre o Estado e um particular.
Desse modo, verifica-se haver não só a publicização do Direito Privado, mas
também a privatização do Direito Público. Isso, como vimos, é decorrência da
utilização pelo Estado de mecanismos que até então eram deixados para uso da
esfera privada.
2 INTERVENÇÃO DO ESTADO NA PROPRIEDADE
A intervenção do Estado na propriedade está diretamente ligada às
transformações vivenciadas pelas inúmeras sociedades ao redor do mundo. Como
marcos histórico, temos a Revolução Francesa rompendo com os valores do
absolutismo e instaurando uma ampla liberdade do indivíduo na espacialidade
privada e consequentemente uma área de não intervenção do Estado nessa esfera,
conforme demonstrado ao longo do capítulo 1. Ou seja, o Estado possuía uma
liberdade negativa que compreenderia o espaço de não ingerência na esfera
privada. Entretanto, como observado anteriormente, o Estado Liberal que surgiu com
a citada revolução acabou por trazer, além da segurança jurídica baseada nas
codificações, enormes prejuízos para a sociedade como um todo, tomando-se como
principal aspecto as desigualdades geradas. Em resposta, surge um novo modelo de
Estado preocupado com o bem-estar social de seus cidadãos, denominado de
Welfare State ou Estado do bem-estar social, trazendo por conseqüência uma
crescente intervenção na espacialidade privada.
É justamente esse novo Estado que traz alguns princípios muito importantes
para a interpretação da propriedade privada, tais como a dignidade da pessoa
humana, a solidariedade, a igualdade substancial e a justiça social.
Tendo em vista que somos um Estado social-liberal, podemos verificar em
nosso ordenamento jurídico a presença de valores trazidos tanto pelo Estado Liberal
quanto pelo Welfare State. Para podermos contextualizar melhor, trazemos como
exemplo a Constituição Federal de 1988 que embora reconheça o direito de
propriedade
marcado
pela
Revolução
Francesa,
traz
certas
restrições
e
condicionamentos, frutos principalmente do Estado do bem-estar social, como o
caso da necessidade de cumprimento da função social.
18
Portanto, verifica-se que a propriedade não possui mais aquele caráter
absoluto em que não poderia a esfera pública intervir; perde também a marca do
individualismo até então presente, no sentido de que seria oponível aos interesses
da coletividade. Nasce com o Welfare State uma nova concepção de propriedade
baseada na necessidade de promover a justiça social, consagrando o primado do
interesse público sobre o interesse do particular. Em determinadas situações há a
necessidade de se sacrificar o bem individual para a satisfação do bem comum. É a
partir de todas essas transformações sociais por quais passaram as sociedades que
se contextualiza melhor a atual concepção a respeito do direito de propriedade e
suas conseqüências.
Refere Hely Lopes Meirelles que:
[...] para o uso e gozo de bens e riquezas particulares o Poder Público
impõe normas e limites e, quando o interesse público o exige, intervém na
propriedade privada e na ordem econômica, através de atos de império
tendentes a satisfazer as exigências coletivas e a reprimir conduta antisocial do particular. Nessa intervenção estatal o Poder Público chega a
retirar a propriedade privada para dar-lhe uma destinação pública ou de
49
interesse social, através da desapropriação.
Diógenes Gasparini a respeito da intervenção do Estado na propriedade
sustenta que seriam dois os fundamentos da ingerência:
O fundamento político da intervenção do Estado na propriedade privada é a
proteção dos interesses da comunidade contra qualquer conduta anti-social
da iniciativa particular, enquanto o jurídico é qualquer disposição
50
consignada na Constituição ou na legislação infraconstitucional.
Verifica-se, portanto, que embora hajam direitos assegurados ao cidadão,
como, por exemplo, o direito à propriedade, há a previsão de limites a esses direitos.
Tendo em vista isso, depreende-se que os direitos consagrados pelo ordenamento
jurídico deverão observar determinados requisitos legais e também novos valores
trazidos pela atual Constituição Federal, já que estes últimos são os grandes
responsáveis pela nova interpretação que deve ser dada ao Direito Privado bem
como pela elevação constitucional de institutos até então exclusivos do direito
privado.
Por outro lado, não somente o particular fica jungido à observância de certos
limites, mas também o Estado. Nesse sentido, teríamos, então, o âmbito de atuação
do Estado que como bem observa Diógenes Gasparini51 seria “por um lado a
49
MEIRELLES, op. cit., p. 571.
GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 641.
51
GASPARINI, op. cit., p. 641.
50
19
proteção dos interesses da comunidade e, de outro, pela observância dos direitos e
garantias dos administrados. Na conciliação dessas duas necessidades residem os
limites da intervenção do Estado na propriedade e no domínio econômico”. E
acrescenta que “se de um lado sempre se garantiu o direito de propriedade, de outro
nunca se proibiu a desapropriação.”
2.1 NOTÍCIA HISTÓRICA DO SURGIMENTO DA DESAPROPRIAÇÃO
José Carlos de Moraes Salles52 afirma ao discorrer sobre a divergência
acerca do conhecimento ou não por parte dos romanos do instituto da
desapropriação que “é óbvio, entretanto, que, embora não houvessem conhecido o
instituto tal como hoje se apresenta, os romanos “sentiram”, por assim dizer o
fenômeno da desapropriação”.
J. Oliveira e Cruz aduz que:
[...] o direito de propriedade, entre os romanos, nunca foi um direito absoluto
e sagrado, quando se tratava de cultuar os mortos, construir aquedutos e
estabelecer limites em benefício dos vizinhos, medidas que eram
consideradas como de interesse público.53
Ao discorrer sobre a realização de inúmeras obras públicas em Roma
salienta José Carlos de Moraes Salles54 que é evidente que teria o povo romano de
“defrontar-se com a oposição de proprietários atingidos pelas mesmas”.
Ao falar sobre a desapropriação entre os romanos preleciona J. Oliveira e
Cruz
55
que “embora sem apresentar todos os caracteres que lhe são próprios hoje
em dia, era o meio empregado para exigir dos proprietários as áreas de terrenos
necessárias aos reclamos do interesse geral.”
Afirma Eurico Sodré que:
[...] a desapropriação por motivo de obras públicas, se exercia de maneira
mais ou menos despótica, 'mediante compensação às vezes por terrenos do
fisco, servidões sobre os bens públicos ou concessão de honrarias e
privilégios especiais' Ademais, na maioria dos casos, nem mesmo essas
compensações eram dadas. A autoridade pública apossava-se do bem
particular sem nenhuma indenização, cometendo verdadeira espoliação.56
Como vimos no Capítulo 1, mais precisamente no tópico da evolução
histórica da dicotomia entre direito público e direito privado, o período da Idade
52
SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5. ed.
rev., atual.ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 67.
53
CRUZ, J. Oliveira e. Da desapropriação. Rio de Janeiro: Max Limonad, 1942. p. 27.
54
SALLES, op. cit., p. 67.
55
CRUZ, op. cit., p. 27.
56
SODRÉ, Eurico. A desapropriação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1955. p. 11.
20
Média trouxe insegurança ao direito de propriedade, pois o Absolutismo trazia
insegurança para a espacialidade privada, e a partir da Revolução Francesa a
ingerência do Estado na esfera privada, principalmente na propriedade, se reduz.
Ensina José Carlos de Moraes Salles57 que a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão promulgada em 1789 “consagrou a propriedade como
inviolável e sagrada, só permitindo que alguém fosse privado da mesma apenas nos
casos de manifesta necessidade pública e mediante justa e prévia indenização”. E
mais adiante: “a desapropriação, tal como a conhecemos hoje, foi delineada pela
Revolução Francesa, que por assim dizer, é sua matriz”
2.2 BREVE HISTÓRICO SOBRE A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA E CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO NO BRASIL
A constituição de 1824, também denominada de Constituição do Império, em
seu artigo 179º estabelece:
Art. 179 A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos
Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a
propriedade, é garantida pela Constituição do império, pela maneira
seguinte:
XXII – É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o
bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade
do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei
marcará os casos, em que terá lugar esta única excepção, e dará as regras
para se determinar a indemnisação.
Depreende-se da leitura do referido dispositivo da Constituição do período
imperial conforme salienta André Osório Gondinho58:
[...] que a propriedade, naquela ordem constitucional, era prevista como
direito absoluto excepcionado a sua força pela possibilidade de
desapropriação por exigência do bem público, sempre com prévia
indenização em dinheiro.
A Constituição da República de 1891 estabeleceu em seu artigo 72 §17 que:
Art. 72 – A Constituição assegura a brazileiros e a esttrangeiros residentes
no paíz, a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança
individual e á propriedade nos termos seguintes:
§ 17 O direito de propriedade mantem-se em toda a plenitude, salva a
desapropriação por necessidade ou utilidade publica, mediante
indemnização prévia.
57
58
SALLES, op. cit., p. 69.
GONDINHO, op. cit., p. 406.
21
Percebe-se, com extrema clareza, que o texto constitucional republicano não
trouxe modificações em relação à desapropriação.
Já a Constituição Federal de 1934 traz inovações conforme se verifica de
seu artigo 113º:
Art. 113 A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no
paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistência,
á segurança individual e á propriedade nos termos seguintes:
17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido
contra o interesse social ou collectivo, na fórma que a lei determinar. A
desapropriação por necessidade ou utilidade publica far-se-á nos termos da
lei, mediante prévia e justa indemnização. Em caso de perigo imminente,
como guerra ou commoção intestina, poderão as autoridades competentes
usar da propriedade particular até onde o bem publico o exija, ressalvado a
indemnização ulterior.
Refere André Osório Gondinho59 que “pela primeira vez, uma constituição
brasileira afirma que a propriedade não poderá ser exercida contra o interesse social
ou coletivo”.
A Constituição Federal de 1937 assim dispôs sobre o direito de propriedade e
desapropriação:
Art. 122 – A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes
no país o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos
termos seguintes:
14) O direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou
utilidade pública mediante inddenização prévia. O seu conteúdo e os seus
limites serão definidos nas leis que lhe regularem o exercício (redação dada
pela Lei Constitucional nº 5, de 10/03/1942).
Salienta José Carlos de Moraes Salles60 que:
[...] ainda sob a égide da Constituição de 1937, foi baixado o Dec. - lei
3.365, de 21.06.1941, que, com inúmeras alterações posteriormente
introduzidas em seu texto, regula até hoje a desapropriação por utilidade
pública em todo País.
Atente-se para o fato de que a Constituição de 1937, como muito bem
observa André Osório Gondinho61:
[...] apesar de incluir, em seu texto, referência ao conteúdo e ao limite do
direito de propriedade através de lei que viesse a regular o seu exercício, o
que significa o reconhecimento constitucional do caráter não absoluto do
direito de propriedade, comete infeliz retrocesso ao não proibir que este
exercício seja contrário aos interesses sociais e coletivos.
No ano de 1941 surge o Decreto-Lei n.º 3365 que veio disciplinar os casos
de desapropriação por utilidade pública. A partir de então, todos os casos de
59
GONDINHO, op. cit., p. 409.
SALLES, op. cit., p. 75.
61
GODINHO, op. cit., p. 410.
60
22
utilidade pública passaram a ser regulados por essa lei. Cumpre salientar que é
justamente nessa lei que se insere o tema do presente trabalho, mais
especificamente em seu artigo 4º que será objeto de análise no tópico 2.4 deste
Capítulo.
Nestes termos a Constituição de 1946 dispôs sobre o direito de propriedade
e desapropriação:
Art. 141 A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 16 É garantido o direito de propriedade, salvo a desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interêsse social, mediante prévia e
justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou
comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da
propriedade particular, se assim o exigir o bem publico, ficando, todavia,
assegurado o direito a indenização ulterior.”
Art. 147 – O uso da propriedade será condicionado ao bem estar social. A
lei poderá com observância do disposto no artigo 141, §16, promover a justa
distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.
Salienta José Carlos de Moraes Salles que:
[...] o Estatuto Básico de 18.09.1946 trouxe importante inovação ao campo
das desapropriações, ao acrescentar aos pressupostos básicos da
62
necessidade e da utilidade públicas o do interesse social.
Em 1962 surge a Lei n.º 4.132 que veio dispor a respeito dos casos de
desapropriação por interesse social, devendo ser aplicadas, as disposições do
Decreto-Lei de 1941 nos casos de omissão dessa lei bem como quanto ao processo
e à justa indenização devida ao proprietário.
A Constituição da República de 1967 e Emenda Constitucional de 1969
estabeleceram que:
Art. 157 A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base
nos seguintes princípios:
III – função social da propriedade.
Art. 160 da EC de 1969 A ordem econômica e social tem por fim realizar o
desenvolvimento nacional e a justiça social com base nos seguintes
princípios:
III – função social da propriedade.
Aduz André Osório Gondinho63 que “pela primeira vez utiliza-se o termo
“função social da propriedade”, para tratar da necessidade de compatibilização entre
os interesses do proprietário e as necessidades da sociedade”. E mais adiante:
62
63
SALLES, op. cit., p. 76.
GONDINHO, op. cit., p. 411.
23
[...] todavia, os dois Diplomas apenas incluíram a função social da
propriedade com princípio de fundamentação da ordem econômica e social,
mas sem lhe outorgar o posto de garantia fundamental do cidadão, como
faz o atual texto constitucional. Essa diferença de tratamento significará
profunda modificação no direito brasileiro.
Finalmente chegamos à análise das disposições concernentes ao direito de
propriedade e também do instituto da desapropriação na atual Constituição Federal.
O constituinte de 1988 trouxe em inúmeros artigos, referências ao direito de
propriedade e também sobre a desapropriação. Percebe-se, através de uma rápida
leitura do Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu Capítulo I – Dos
direitos e deveres dos cidadãos - que o artigo 5º da Constituição Federal e seus
incisos conferem proteção ao direito de propriedade, mas traz também a noção de
que a propriedade passa a possuir vinculação ao exercício da função social. Ou
seja, como vimos no capítulo 1, ao conferir um direito passa a lhe exigir uma
funcionalização. Dessa forma, percebe-se a existência de uma das inúmeras
limitações ao exercício de propriedade.
André Osório Gondinho64 ensina que:
[...] a atual Constituição, a exemplo do que fizeram as duas últimas
Constituições, também incluiu a função social da propriedade como um dos
princípios da ordem econômica. Além disto, a Constituição assegura a
função social da propriedade no âmbito dos direitos e garantias
fundamentais.
E mais adiante afirma que:
[...] a inserção da função social da propriedade no rol dos direitos e
garantias fundamentais significa que a mesma foi considerada pelo
constituinte como regra fundamental, apta a instrumentalizar todo o tecido
constitucional e, por via de conseqüência, todas as normas
infraconstitucionais, criando um parâmetro interpretativo do ordenamento
jurídico.65
Necessário era a exposição da notícia do surgimento do instituto da
desapropriação, bem como sua evolução constitucional no país para uma melhor
compreensão dos próximos tópicos deste Capítulo.
2.3 DA DESAPROPRIAÇÃO
Primeiramente necessária é a compreensão do instituto da desapropriação.
Hely Lopes Meirelles define como:
64
65
GODINHO, op. cit., p. 412.
Idem, Ibidem.
24
[...] a transferência compulsória da propriedade particular (ou pública de
entidade de grau inferior para a superior) para o Poder Público ou seus
delegados, por utilidade ou necessidade pública, ou, ainda, por interesse
social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, salvo as exceções
66
[...].
Vale lembrar que o termo desapropriação e expropriação são sinônimas,
sendo utilizadas, de maneira majoritária pela doutrina, de maneira indiferente. Nesse
sentido a lição de José Carlos de Moraes Salles67.
Verifica-se, desde logo, que muito embora haja a previsão do direito de
propriedade, não há proibição quanto à desapropriação, muito pelo contrário, a
Carta Maior, como demonstrado, traz inúmeras espécies de desapropriação.
Portanto, a desapropriação deve ser encarada como um instrumento de que
se vale o Estado para a realização do bem comum, ou seja, havendo conflitos entre
os interesses da coletividade e o do particular, que possui a propriedade, ou até
mesmo a posse sobre determinado bem, deve a desapropriação servir como meio
de consecução do bem comum, restando ao interesse privado suportar o ônus da
desapropriação em razão de haver a prevalência dos interesses da coletividade. Se
determinada propriedade for declarada de utilidade pública, nela existe, em princípio,
o interesse da coletividade que entrará em rota de colisão com o direito do
proprietário em ver assegurado sua propriedade. Nesse sentido, haveria então o
conflito entre direitos assegurados constitucionalmente, ou melhor, a colisão entre
um direito previsto constitucionalmente e um mecanismo restritivo desse direito,
instrumento esse, de que se vale o Estado para a remoção de óbices que se
colocam à sua frente na condução da realização do bem comum, que é o instituto da
desapropriação.
A desapropriação serve, portanto, como mecanismo que detém o Estado
para inúmeras hipóteses de necessidade de uso para a realização do bem comum
tal como a remoção de óbices à construção de obras e serviços públicos.
A atual Constituição Federal traz ao longo de seu texto inúmeros artigos
versando sobre o direito de propriedade, basicamente no que diz respeito ao
cumprimento de sua função social, e também sobre espécies de desapropriação e
seus requisitos. Cumpre salientar que nos artigos 5º, XXII, XXIII, XXIV, 182, § 4º, III,
66
67
MEIRELLES, op. cit., p. 576.
SALLES, op. cit., p. 65.
25
e 184 e parágrafos estão previstas as espécies de desapropriação bem como os
requisitos próprios a cada espécie68.
Como vimos ao longo do Capítulo 1 as sociedades sofreram ao longo de
suas histórias profundas alterações, tanto no âmbito político, econômico, mas
principalmente no jurídico. Com a superação do caráter individualista até então
presente na propriedade, marca do Estado Liberal que buscava proteger o indivíduo
do arbítrio do Estado e após, com a conseqüente incorporação da concepção da
solidariedade, trazida pelo Estado do bem-estar social, à propriedade, verificamos
que não mais subsistem dúvidas quanto à licitude de se limitar determinado bem,
seja através da desapropriação ou de qualquer outra forma prevista pelo
ordenamento, desde que, por óbvio, não entre em conflito com a própria
Constituição. Havendo, portanto, uma das causas autorizadoras da desapropriação
previstas na Constituição, e, que serão vistas logo adiante, estaria, em princípio,
legitimada a expropriação.
Muito embora existam esses fundamentos constitucionais autorizadores da
ingerência do Estado na propriedade não significam, eles, que a propriedade perde
o sentido de ser a regra, pois não poderia ser de outra forma, sob pena de haver
68
Constituição Federal, Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública,
ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos
previstos nesta Constituição; [...]
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. [...]
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano
diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado
ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: [...]
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente
aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais
e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. [...]
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a
partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
§ 1º - As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.
§ 2º - O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária,
autoriza a União a propor a ação de desapropriação.
§ 3º - Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário,
para o processo judicial de desapropriação.
§ 4º - O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o
montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.
§ 5º - São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de
imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.
26
extrema insegurança não só no âmbito jurídico, mas econômico e político também.
Teríamos então o direito de propriedade como regra e a desapropriação como
exceção. Nesse sentido José Carlos de Moraes Salles69. Sendo o direito de
propriedade a regra não deve o particular, proprietário ou mesmo o possuidor do
bem, suportar o ônus da desapropriação a não ser nos casos expressamente
previstos em lei. Além disso, atente-se para o fato da necessidade de haver sempre
um dos três motivos ensejadores da desapropriação, conforme estabelece a
Constituição Federal no art. 5º, XXIV, que são a necessidade pública, utilidade
pública e o interesse social.
Ensina José Carlos de Moraes Salles70 que “a necessidade pública surge
quando a Administração defronta situações de emergência, que, para serem
resolvidas satisfatoriamente exigem a transferência urgente de bens de terceiros
para o seu domínio e o seu uso imediato.”
Diógenes Gasparini71 afirma que de utilidade pública é “a desapropriação em
que o Estado, para atender a situações normais, tem de adquirir o domínio e o uso
de bens de outrem.”
Hely Lopes Meirelles72 aduz que:
[...] o interesse social ocorre quando as circunstâncias impõem a
distribuição ou o condicionamento da propriedade para seu melhor
aproveitamento, utilização ou produtividade em benefício da coletividade ou
de categorias sociais merecedoras de amparo específico do Poder Público.
Portanto, devem estar sempre presentes um desses requisitos ensejadores
da desapropriação, sob pena de o decreto expropriatório estar eivado de
inconstitucionalidade e ilegalidade.
2.4 DA DESAPROPRIAÇÃO POR ZONA
Ensina Aliomar Baleeiro73 que a “Excess condemnation” ou “desapropriação
por zona”, “consiste em desapropriar-se a faixa marginal ou adjacente de
logradouros onde se vão realizar obras públicas, para revenda com o lucro do
benefício depois de executado o plano.”
69
SALLES, op. cit., p. 159.
Ibid., p. 91.
71
GASPARINI, op. cit., p. 671.
72
MEIRELLES, op. cit., p. 584.
73
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 15. ed. rev. atual. Rio de Janeiro:
Forense, 1998. p. 267.
70
27
Refere José Cretella Júnior74 que “a desapropriação por zona, em nosso
país, apareceu pela 1ª vez, na Lei n.º 196, de 18 de janeiro de 1936, texto que
instituiu a Lei Orgânica do Distrito Federal. O instituto foi mantido pelo Decreto n.º
96, de 22 de dezembro de 1937, que dispôs sobre a administração do Distrito
Federal, ao estabelecer, em seu artigo 22, que compete ao conselho Federal,
privativamente, legislar naquela esfera do nosso aparelhamento administrativo e
político, em tudo quanto se refira a seu peculiar interesse e, especialmente, sobre
desapropriações. Estes diplomas legislativos preparam o espírito do legislador de
1941.”
Saliente-se que a Constituição Federal de 1988 ratificou a competência
privativa da União para legislar sobre desapropriação em seu artigo 22, inciso II,
assim transcrito: "Art. 22 Compete privativamente à União legislar sobre: II –
desapropriação;"
Como visto anteriormente, há a existência de tripartição em relação aos
fundamentos em que se consubstancia a desapropriação. Cumpre, agora,
estabelecer e definir em que hipótese se enquadra o tema deste tópico. O
enquadramento é bastante simples haja vista a previsão do instituto da
desapropriação por zona no artigo 4º do Decreto Lei 3.365/1941 que versa sobre os
casos de utilidade pública, tratando-se, portanto, de hipótese de utilidade pública.
Assim dispõe o referido artigo:
Art. 4º A desapropriação poderá abranger a área contígua necessária ao
desenvolvimento da obra a que se destina, e as zonas que se valorizarem
extraordinariamente, em conseqüência da realização do serviço. Em
qualquer caso, a declaração de utilidade pública deverá compreende-las,
mencionando-se quais as indispensáveis à continuação da obra e as que se
destinam à revenda.
A desapropriação tem como objeto determinado bem que é necessário,
indispensável, para a realização do bem comum. José Cretella Júnior75 muito bem
leciona, a respeito do objeto da desapropriação, ao afirmar que “o procedimento
expropriatório tem objeto certo, envolvendo determinada propriedade bem definida e
limitada, móvel ou imóvel, que sairá do patrimônio particular e passará a integrar o
patrimônio do Estado.” E mais adiante:
Costuma-se dizer, em linguagem técnica, que a desapropriação tem por
objetivo coisa certa. O Estado desapropria exatamente aquilo de que
precisa. O contrário seria desvirtuar a própria natureza do instituto. Se o
74
75
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 147.
Idem, Ibidem, p. 142.
28
fundamento da desapropriação é a necessidade pública, utilidade pública ou
interesse social, a necessidade marcará determinado objeto, outro será
considerado útil e o objeto seguinte poderá ser declarado de interesse
social. Tais objetos, porém, são certos, precisos, definidos, delimitados,
76
demarcados, circunscritos.
Portanto, percebe-se que a desapropriação pressupõe como objeto um bem
que seja necessário para as obras ou serviços públicos. Com relação à utilização
desses bens que guardam relação direta com a realização de obras e serviços por
parte da Administração Pública não há maiores problemas e nenhuma dúvida surge
quanto à sua possibilidade de utilização.
Ocorre que, a legislação ordinária, através do Decreto Lei nº 3.365/1941 que
trata sobre os casos de utilidade pública trouxe uma inovação em seu texto ao
estender a desapropriação a bens que não os imprescindíveis, indispensáveis para
a consecução de obras e serviços, ou seja, mesmo não se constituindo em óbice
para a realização dos melhoramentos, restaria autorizada a desapropriação.
Seria então possível a desapropriação de um bem que não seja necessário
de modo a ultrapassar os limites da necessidade? O legislador ordinário entendeu
que sim conforme se depreende da análise do art. 4º do referido Decreto Lei.
Entretanto, conforme se depreende da leitura do citado dispositivo, a lei autorizadora
da desapropriação por utilidade pública estabeleceu como exigência a necessidade
de que tenha havido uma valorização extraordinária em relação às zonas que foram
beneficiadas. Além disso, essa supervalorização deve decorrer da realização das
obras e serviços empreendidos pelo Poder Público.
Cumpre salientar a já ultrapassada discussão a respeito da impossibilidade
de o particular opor seu interesse particular frente ao interesse público, lembrando
que não é o interesse da Administração, e sim o da coletividade que possui
supremacia sobre o interesse privado. Dessa forma, sendo o bem indispensável à
realização de obras e serviços por parte da Administração Pública para atender aos
anseios sociais não poderia ele se opor a tal situação.
Entretanto, em nível doutrinário existe a divergência da possibilidade de
aplicação do instituto para a expropriação de áreas não indispensáveis. Sendo o
caso de desapropriação contígua é plenamente possível e de outra forma não
poderia ser já que como vimos nessa modalidade de expropriação o bem é
necessário à complementação da obra, no sentido de que com sua ausência,
76
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 142.
29
prejudicada ficaria a obra em razão de todo o planejamento necessitar também de
áreas anexas. Em sendo o caso de desapropriação por zona, que compreenderia a
expropriação de bens que não os necessários, a posição majoritária da doutrina é no
sentido da possibilidade de aplicação, entretanto, tal posicionamento sofre sérias
limitações em razão dos riscos a que fica submetida à Administração Pública caso
opte pela aplicação de tal instituto. Parte-se, então, ao longo deste capítulo e do
próximo e último, para a busca de uma solução frente às características e
conseqüências da desapropriação por zona, bem como da solução que melhor se
coaduna com o direito de propriedade.
Deve-se atentar para o fato de que muito embora o Decreto-Lei lei tenha
estabelecido os requisitos da valorização extraordinária, deve a declaração de
utilidade pública abranger não só aquelas áreas indispensáveis, mas também as
áreas destinadas à revenda. José Carlos de Moraes Salles77 ao discorrer sobre o
fato de que a valorização extraordinária deve ser futura, ou seja, decorrência das
obras e serviços empreendidos pelo Poder Público, ensina que:
[...] deverá, entretanto, ser prevista pelo expropriante, de modo que a
declaração de utilidade pública, além das áreas estritamente necessárias
àquelas obras e serviços, abranja, também, as que serão beneficiadas pela
mais-valia.
Sustenta Hely Lopes Meirelles78 que a desapropriação por zona “consiste na
ampliação da expropriação às áreas que se valorizem extraordinariamente em
conseqüência da realização da obra ou do serviço público. Estas áreas ou zonas
excedentes e desnecessárias ao Poder Público podem ser vendidas a terceiros,
para obtenção de recursos financeiros.”
Define José Cretella Junior79 que a:
[...] desapropriação por zona ou desapropriação extensiva é o procedimento
expropriatório que abrange, além do imóvel necessário, útil ou de interesse
social, a faixa territorial adjacente ou contígua, fundamentando-se a
desapropriação ou na necessidade dessa zona contígua para melhoria e
aperfeiçoamento do serviço ou na supervalorização dessa zona contígua
em conseqüência da desapropriação da zona necessária – desapropriação
por zona.
José Carlos de Moraes Salles80 faz a distinção da desapropriação de área
contígua que compreende os casos de bens que embora não sejam indispensáveis,
77
SALLES, op. cit., p. 163.
MEIRELLES, op. cit., p. 580.
79
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 146.
80
SALLES, op. cit., p. 159-160.
78
30
são necessários à complementação das obras e serviços. Desapropriação por zona,
por outro lado, compreenderia os casos de valorização extraordinária de
determinados imóveis decorrente de obras e serviços realizados pela Administração
Pública.
Verifica-se, portanto, que um dos fundamentos da desapropriação por zona,
pois o outro, como já visto é fruto da necessidade de se expropriar áreas que são
necessárias à complementação das obras, decorre da supervalorização dos imóveis
situados na zona a ser beneficiada pelas obras empreendidas pela Administração
Pública.
Haja vista então que determinados imóveis possam sofrer uma valorização
extraordinária em razão de empreendimentos realizados pela Administração Pública
para a realização do bem comum, saliente-se, com os recursos da coletividade, não
seria razoável que o proprietário do imóvel fosse beneficiado com mais valia sem ter
participado diretamente das obras. Nesse quadro de significativa valorização de
determinados imóveis, a expensas dos cofres públicos, surge o ponto de contato
entre o instituto da desapropriação por zona, capítulo central do presente trabalho, e
o instituto da contribuição de melhoria, objeto de estudo no próximo e último capítulo
deste trabalho.
Com
a
mais-valia
de
determinados
imóveis
em
decorrência
dos
melhoramentos empreendidos pela Administração Pública, esta, fica frente a duas
possibilidades para se reembolsar dos recursos despendidos com a realização de
melhoramentos que acabaram por resultar em benefício extremamente significativo
para determinados imóveis. A primeira possibilidade, denominada de desapropriação
por zona, decorre da disposição contida no artigo 4º do Decreto-lei n.º 3.365/1941, já
transcrito anteriormente, e a outra possibilidade, denominada de contribuição de
melhoria, decorre de disposição constitucional específica, expressa no artigo 145, II,
da Constituição Federal bem como em legislação infraconstitucional que será
demonstrada no próximo capítulo.
Com relação ao tema do presente capítulo José Cretella Júnior ensina que:
[...] o poder público, ao invés de cobrar tributo correspondente a esse
acréscimo de preço, incorpora os referidos bens imóveis a seu patrimônio
privado, vendendo-os posteriormente, beneficiando-se com a diferença de
81
preço da aquisição e o preço de revenda.
81
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 146.
31
Entretanto, salienta José Cretella Júnior que:
[...] a desapropriação por zona ou desapropriação extensiva é uma exceção.
Regra geral, em nosso direito, a desapropriação deve abranger estritamente
os bens indispensáveis às finalidades imediatas do Estado. No entanto, por
exceção, pode estender-se a zonas, áreas ou terrenos adjacentes,
construídos ou não, quando tais porções de terrenos se tornem
indispensáveis para o prosseguimento futuro da obra, ou quando a
desapropriação do imóvel principal, imprescindível para a execução
imediata das obras, implique sensível supervalorização dos terrenos
contíguos. Trata-se da recepção, no direito brasileiro, do importante instituto
82
da desapropriação extensiva ou desapropriação por zona.
Ocorre que como visto o Decreto Lei n.º 3.365/1941 estende a
desapropriação também a bens que não os estritamente necessários.
Tendo em vista ser essa última hipótese o tema do presente trabalho,
deixaremos para trás maiores explanações a respeito da desapropriação de áreas
contíguas já que fizemos uma breve exposição a respeito dela.
Haveria na desapropriação por zona o fundamento da utilidade pública? Ora,
sabemos que em razão de haver a previsão constitucional do direito de propriedade
não pode ele sofrer ingerências de todas as ordens. Nesse sentido, o Estado deve
desapropriar, havendo como segurança do particular, a necessidade de que a
expropriação fique adstrita ao bem de que necessita a Administração Pública.
Partindo então da análise do direito de propriedade como garantia fundamental do
cidadão e também como instrumento de que dispõe o Estado para a remoção de
obstáculos que surgem para a consecução do bem comum, deve a desapropriação
jungir-se aos bens imprescindíveis para o Estado, pois, do contrário, haveria uma
ampliação significativa e preocupante da exceção que é a desapropriação,
acabando por desvirtuar o próprio instituto.
Seabra Fagundes83 leciona que:
[...] nesse tipo de desapropriação, ocorre uma ampliação da noção de
utilidade, que deixa de ser da obra momentaneamente encarada para dizer
respeito às suas exigências futuras e à sua integração em finalidades
remotas.
Devemos atentar para o fato de que muito embora tenha o constituinte
consagrado novos valores como o da função social da propriedade trazendo nova
hermenêutica para a solução de eventuais conflitos de interesses que possam surgir,
82
83
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 146.
FAGUNDES, Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1949, p. 100.
32
trouxe, também limites a ingerência do Estado na propriedade, como forma de
proteção do particular frente a eventuais arbítrios do poder estatal.
Além de o Estado somente poder desapropriar os bens de que necessita,
não pode ele expropriar meramente com o escopo de auferição de lucro. Ou seja,
não pode o Estado utilizando-se de meio extremamente gravoso ao proprietário e
que sacrifica a propriedade desapropriar com o objetivo único de lucro.
Eurico Sodré afirma que:
[...] é princípio assente em Direito Administrativo que não se pode
desapropriar com o fito exclusivo de lucro. Pela mesma razão não deve o
Poder Público decretar a desapropriação de um bem qualquer, apenas
porque sua aquisição represente um bom negócio. O Poder Público quando
84
desapropria, é administrador, não é negociante.
Se admitíssemos que a propriedade não possuísse o caráter de regra em
nosso ordenamento jurídico, muito embora existam inúmeras limitações ao direito
em questão na própria Constituição Federal, legitimada estaria a desapropriação por
zona haja vista que não necessitaria a observância de requisitos autorizadores para
a sua utilização.
Ocorre que se por um lado o constituinte teve como objetivo consagrar o
instituto da desapropriação através dos fundamentos da necessidade, utilidade
pública e interesse social, como formas de remoção de óbices que se colocam
perante a condução das atividades públicas, por outro, teve como escopo, ao
estabelecer tais requisitos, conferir ao cidadão proteção contra eventuais arbítrios do
administrador público, de modo que este ficaria adstrito aos limites pré-fixados na
Carta Maior. Nesse sentido, estaria a utilização da desapropriação restrita às
hipóteses em que a propriedade se coloca como obstáculo ao interesse da
coletividade, devendo, portanto, tal óbice ser removido para a realização do bem
comum.
Portanto, em sentido amplo, a desapropriação tem cabimento quando
presentes a necessidade, utilidade pública ou interesse social, visando justamente
remover óbices para a realização do bem comum.
84
SODRÉ, Eurico. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública. São Paulo: Saraiva,
1945. p. 86.
33
Ressalta Pontes de Miranda85 que “não há desapropriação porque o bem
convenha à Fazenda Pública, porque aí se trata de interesse privado da união, do
Estado-membro, ou do município.”
Nesse sentido, ausente o interesse da coletividade na desapropriação por
zona. Ter-se-ia, tão simplesmente, como muito bem dito pelo insigne jurista acima
um “interesse privado” não ensejador, portanto, da desapropriação em razão de não
se adequar nos fundamentos constitucionais e autorizadores da intervenção estatal
na propriedade.
Refere Eurico Sodré86 que “a desapropriação por maior valia traz consigo
um fundo antipático de discriminação; fazendo recair sobre alguns, as despesas de
um benefício gerado, afinal pela coletividade.”
2.5 POSSÍVEIS CONSEQÜÊNCIAS DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO PARA A
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Pode-se, para melhor compreensão deste tópico bipartir as conseqüências
da aplicação do instituto para a Administração Pública. Por uma lado considerar-se-á
o êxito em sua aplicação. Em paralelo, traça-se o comparativo com base na hipótese
de restar inexitosa tal aplicação.
Entretanto, antes de analisar a questão do sucesso ou insucesso da
aplicação do instituto da desapropriação por zona, necessário é alertar para o fato
de que a Administração Pública terá de indenizar o proprietário previamente, pois
essa é uma exigência constitucional, para que ao fim, ao cabo das obras e serviços
empreendidos, possa se verificar a ocorrência ou não de mais valia em relação ao
valor pago a título de indenização.
Ocorre que é fato notório os problemas financeiros extremamente
significativos que o Poder Público vem enfrentando nas últimas décadas, mas
principalmente nos últimos anos, de modo que não consegue sequer atender aos
direitos básicos de seus cidadãos. Nesse atual quadro de falência estatal, em que os
recursos são escassos, o Estado teria que, para aplicar a desapropriação por zona,
despender recursos justamente no momento em que mais se necessita de fundos,
qual seja, o de início das obras e serviços.
85
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p.188.
v. 14.
86
SODRÉ, op. cit., 1945, p. 89.
34
Sustenta José Carlos de Moraes Salles que:
[...] embora a expropriação por zona tenha o objetivo primordial de, pela
revenda das áreas beneficiadas pela extraordinária valorização, possibilitar
ao Poder Público a obtenção de recursos financeiros, para reembolsar-se
das despesas tidas com a execução da obra principal, exige a mesma,
inicialmente, o dispêndio de vultosas verbas pela Administração, quase
sempre já onerada com os gastos relativos à obra ou serviços
precipuamente visados.87
Sobre o fato de que a Administração Pública terá de indenizar os
proprietários no início das obras Aliomar Baleeiro88 assevera que “praticamente
obriga o governo a um investimento extraordinário no instante em que necessita de
fundos para as obras.”
Américo Vanini89 traz importante observação ao indagar sobre onde buscar
o numerário de que necessita, quando salvo raras e temporárias exceções, o erário
público não dispõe de reservas suficientes. Salienta que “isto ocorre principalmente
nos grandes centros urbanos, onde o grande número e o vulto das obras e serviços
requeridos pela comunidade empenham todos os recursos.”
A partir de tais considerações passa-se a análise da aplicação do instituto da
desapropriação por zona.
O fundamento da desapropriação extensiva ou desapropriação por zona,
conforme leciona José Cretella Junior, é duplo:
[...] por um lado, visa a permitir a realização integral e satisfatória dos planos
de obras públicas; de outro lado, serve para facilitar, pela revenda dos
terrenos assim adquiridos, a amortização das vultosas quantias nelas
90
despendidas pelo Estado.
A Administração Pública na aplicação do instituto da desapropriação por
zona chama determinado imóvel para seu patrimônio pelo preço anterior à
realização dos melhoramentos, de modo que com o término das obras e serviços,
revende o imóvel beneficiando-se com a mais valia verificada.
Observa-se, portanto, que a utilização do instituto da desapropriação por
zona pela Administração Pública busca, tendo em vista a previsão de uma
valorização extraordinária e futura do imóvel em decorrência de obras e serviços
realizados pelo próprio Poder Público, o reembolso dos valores despendidos com as
87
SALLES, op. cit., p. 165.
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1976, p. 256.
89
VANINI, Américo. Contribuição de melhoria e desapropriação. São Paulo: Resenha Tributária,
1975. p. 11.
90
CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 142.
88
35
obras e serviços de melhoramentos, de modo que, conforme muito bem salienta
José Carlos de Moraes Salles91, “com a revenda de áreas atingidas por essa maisvalia extraordinária, poderá a Administração atender, senão à totalidade, pelo menos
a uma parcela significativa dos gastos relativos à execução da obra”.
Em razão de haver a necessidade de se incluir o imóvel que será objeto da
desapropriação por zona na declaração de utilidade pública deve o Poder Público
realizar, previamente, os estudos em relação à eventual hipótese de valorização
extraordinária de determinado bem. Ocorre que, muitas vezes essa valoração a
respeito de futura valorização depende de cálculos extremamente complexos além é
claro da especulação imobiliária que é inerente a todo e qualquer empreendimento
que vise a realização de obras e serviços.
Atente-se para o fato de que em razão da especulação imobiliária, que se
constitui em fator alheio às previsões feitas pela Administração Pública, a
desapropriação por zona acaba tendo mais uma limitação no sentido de que como a
especulação imobiliária envolve questões comerciais acaba ela tornando a aplicação
do instituto um tanto quanto perigosa, haja vista os riscos que daí decorrem. Ou
seja, a Administração Pública, apesar de realizar uma previsão de mais valia em
determinados imóveis pode se confrontar com uma situação de desvalorização do
imóvel, justamente em razão da especulação imobiliária que é inerente a esse ramo
comercial.
Aliomar Baleeiro afirma sobre a desapropriação por zona que:
[...] analisando em termos econômicos, a excess condemnation envolve
necessariamente especulação imobiliária, que exige da Administração o faro
comercial, o espírito de aventura e o ânimo de assumir risco, enfim, as
qualidades boas e más dos que se entregam a esse gênero de negócios. 92
Sustenta José Carlos de Moraes Salles93 que:
[...] nem sempre a mais-valia extraordinária, vislumbrada pelo expropriante,
se concretiza em condições confirmadoras das previsões, fato que poderá
significar prejuízos ao Poder Público em decorrência da impossibilidade de
se obter, pela revenda, preço sequer equivalente ao pago para a
desapropriação das áreas abrangidas pela zona que se presumia viesse a
ser beneficiada pela valorização.
Como exemplo de desapropriação por zona ocorrida no Brasil pode-se citar
o financiamento adotado para a abertura da Avenida Presidente Vargas, no antigo
91
SALLES, op. cit., p. 161.
BALEEIRO, 1976, op. cit., p. 256.
93
SALLES, op. cit., p. 165.
92
36
Distrito Federal, hoje Estado do Rio de Janeiro, para revenda da área marginal.
Salienta Bilac Pinto94, em parecer concedido ao Prefeito do Distrito Federal à época,
que “a opção por esse tipo de financiamento, pelo menos no que concerne ao trecho
compreendido na zona metropolitana da cidade, parece bem justificada, pois alguns
pressupostos necessários ao seu êxito foram assegurados.”
Ressalte-se o fato de que a desapropriação por zona empreendida pelo
prefeito do Distrito Federal, em seu projeto de urbanização, obteve sucesso
absoluto.
Nesse sentido, ou seja, do sucesso da aplicação da contribuição de
melhoria, a Administração Pública se ressarciria, senão integral, pelo menos
parcialmente, dos valores empreendidos nos melhoramentos, haja vista que chama
para si os imóveis antes mesmo do início das obras, pois já o declara de utilidade de
pública logo após a realização dos projetos, indenizando o proprietário pelo valor
venal do bem à época, e, após a conclusão das obras o revende já acrescido pela
mais valia decorrente dos melhoramentos.
Em sentido semelhante Bilac Pinto preconiza que:
[...] mesmo admitindo, porém, que o sucesso do plano, sob o aspecto
financeiro, seja completo, terá de se considerar que a desapropriação por
zona constitui processo excepcional de financiamento, que só em raros
casos pode ser eficazmente aplicado e que, do ponto de vista fiscal, é
injusto e desigual. Com efeito, o sucesso do financiamento da abertura da
avenida Presidente Vargas não autorizará a generalização da medida a
95
todos os Planos de Urbanização, como é óbvio.
Atente-se para o fato de que em razão de a desapropriação por zona não
ser empregada com muita freqüência, os exemplos são um tanto quanto esparsos,
restando, dessa forma, o debate sobre esse caso brasileiro96.
Entretanto, os casos de desapropriação por zona no direito estrangeiro são
em maior número. Tendo em vista essa maior experiência em relação ao instituto em
questão, já existe, e vale lembrar a algum tempo, posicionamento consolidado a
respeito da utilização ou não da desapropriação por zona, e que será objeto de
análise no próximo e último capítulo do presente trabalho.
94
PINTO, Bilac. Estudos de Direito Público. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1953. p. 337.
Ibid., p. 338.
96
Em nível nacional, vale lembrar, ser esse caso do antigo Distrito Federal, o único apontado pela
doutrina, muito embora tenha se pesquisado em todos os manuais existentes sobre o assunto no
vasto acervo bibliográfico da Biblioteca Central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul.
95
37
A respeito da aplicação da desapropriação por zona, na França, Bilac Pinto97
transcreve os ensinamentos da obra de William Bennett Munro98 nos seguintes
termos: “A primeira aplicação ampla desse processo foi feita em conexão com a
construção das grandes alamedas parisienses pelo barão Haussmann, nos meados
do séc. XIX.” Apesar dos resultados obtidos em relação ao embelezamento urbano,
a experiência não foi considerada como um sucesso financeiro, e o processo nunca
mais voltou a ser usado em Paris.
Segundo depoimento de Willian Bennett Munro99, conforme muito bem relata
Bilac Pinto100 “essa técnica é extremamente propícia à germinação de negociatas à
margem dos Poderes Públicos e tem ocasionado prejuízos freqüentes às cidades
americanas”
Bilac Pinto alerta que:
[...] tantas e tão incisivas são, no entanto, as advertências da experiência
administrativa de outros povos a propósito das surpresas e dos riscos
inerentes a todos os planos de desapropriação por zona, com frinalidade
financeira, que nos deveremos premunir contra a adoção de pontos de vista
rigidamente otimistas, nesta matéria. Uma atitude de prudente reserva,
quanto aos resultados, é a que melhor convém em face dos planos de
excess condemnation.101
Salienta José Carlos de Moraes Salles que Robert Eugene Cushman,
escreveu longo trabalho sobre a desapropriação por zona com base na experiência
americana e européia, aduzindo sobre as vantagens e os riscos da aplicação do
instituto da desapropriação por zona. Salienta, ainda, que:
[...] a leitura dessa obra, e notadamente desse capítulo, tem a virtude
mágica de desarmar o otimismo dos planificadores deste tipo de
financiamento, quase sempre baseados em cálculos aparentemente
102
infalíveis.
Em seu trabalho, Robert Eugene Cushman, conforme relato de José Carlos
de Moraes Salles:
[...] transcreve a opinião do afamado administrativista norte-americano
William Bennett Munro, no que tange aos financial dangers do excess
condemnaton, nos seguintes termos: “A execução de tais projetos,
infelizmente, nem sempre é feita da maneira conveniente. Ocorrem, com
freqüência, negociata nas vendas dos terrenos. A experiência tem revelado
97
PINTO, op. cit., p. 338.
MUNRO, Willian Bennett. Municipal Administration. New York : The Macmillan Co., 1935. Apud
PINTO, op. cit., p. 257.
99
MUNRO apud PINTO, op. cit., p. 256.
100
PINTO, op. cit., p. 343.
101
Ibid., p. 338.
102
SALLES, op. cit., p. 165.
98
38
que as cidades americanas, na maioria dos casos, sofrem prejuízos quando
empreendiam melhoramentos públicos por este dispendioso processo.103
Aliomar Baleeiro104 conclui, sobre a desapropriação por zona, ao alertar para
o fato de que o instituto envolve especulação imobiliária, que “essa técnica é
extremamente propícia a germinação das negociatas à margem dos poderes
públicos e tem ocasionado prejuízos freqüentes às cidades americanas”.
Por outro lado, Bilac Pinto105 sustenta que:
[...] apesar de o plano de financiamento oferecer elementos que nos
autorizam a prognosticar o seu sucesso, não devemos perder de vista a
experiência de outras grandes cidades da Europa e da América do Norte
que, contra a evidência de planos impecáveis, viram, pela ocorrência de
circunstâncias supervenientes, de todo imprevisíveis, as altas cifras das
imaginárias estimativas de lucros transformadas em sensíveis prejuízos a
onerar os seus orçamentos ordinários.
Com relação ao estudo empreendido por Robert Eugene Cushman106, Bilac
Pinto107 destaca um trecho da dissertação em que “um estudo cuidadoso dos casos
em que estes planos têm sido postos em execução indica que sua realização prática
está exposta a riscos que não são, nem um pouco insignificantes”. Destaca, ainda,
que Cushman conclui que “o risco de perda, num projeto de desapropriação por
zona, é tão sério que não se pode sustentar a adoção como método normal de
financiamento municipal”.
3 CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA
Tendo em vista que as inúmeras cidades ao redor do mundo possuem a
necessidade de se adequaram as novas exigências trazidas justamente pela
evolução das sociedades é necessário e indispensável, para o bem comum, que o
Poder Público, realize, com maior freqüência e amplitude, obras de modo a atender
os anseios da sociedade.
Em razão dessa necessidade crescente de empreender melhoramentos para
a sociedade, começou a se perceber que ao final das obras realizadas pelo Poder
Público, e vale lembrar com os recursos de toda a comunidade, determinadas
103
SALLES, op. cit., p. 165.
BALEEIRO, 1976, op. cit., p. 256.
105
PINTO, op. cit., p. 339.
106
CUSHMAN, Robert Eugene. Excess Condemnation. New York: D. Appleton and Company, 1917.
p. 190-191 apud SALLES, op. cit., p. 165.
107
PINTO, op. cit., p. 340.
104
39
pessoas se beneficiavam de maneira distinta das demais, pois seus patrimônios
incorporavam significativas valorizações. Nesse quadro de benefício para certas
pessoas, em decorrência de obras públicas, tem surgimento o instituto da
contribuição de melhoria.
Atualmente, a Contribuição de Melhoria é prevista na Constituição Federal
de 1988 no artigo 145, inciso III. Depreende-se da leitura da Carta Magna que o
instituto é definido como sendo uma espécie do gênero tributo.
Em nível infraconstitucional e federal, temos a Lei nº 5.172/66, mais
conhecida por Código Tributário Nacional, que regula a matéria em seus artigos 81 e
82 e há, ainda, a existência do Decreto-Lei nº 195 de 1967.
Passa-se agora, à análise de toda a evolução do instituto, tanto em nível
internacional quanto nacional, bem como suas peculiaridades e conseqüências de
sua aplicação.
3.1 NOTÍCIA HISTÓRICA DO SURGIMENTO DA CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA
Refere Aliomar Baleeiro que existem precedentes muito remotos, “com base
em certo fragmento do Digesto e em uma Ordenação Manuelina (Liv. I, t. 47, § 1º - e
Lei de 06.07.1596) que se refere a certa finta para “fazimento ou refazimento de
muros, pontes e calçadas”. Salienta haver:
[...] minucioso conhecimento das leis que regularam a recuperação das ruas
de Westminster, em 1662, e obras na parte central de Londres em 1667.
Esses exemplos passam à América, onde uma lei de Nova York, em 1691,
adota o princípio, repetindo as práticas metropolitanas.108
A popularidade das “contribuições de melhoria” conforme ensina Aliomar
Baleeiro109 “provém da aplicação reiterada e sistemática do princípio, sob o nome de
special assessments, pelas cidades americanas, no século XIX.”
3.2 BREVE HISTÓRICO SOBRE A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA E
CONSTITUCIONAL DA CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA NO BRASIL
Aliomar Baleeiro110 afirma com relação às tentativas brasileiras no que
concerne a aplicação da contribuição de melhoria, que:
108
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
p. 260.
109
Ibid., p. 260.
110
Ibid., p. 263.
40
[...] a idéia de recuperação das somas investidas em obras públicas que
valorizam imóveis particulares ocorreu aos estadistas brasileiros muito antes
de se difundirem, no país, as práticas fiscais estrangeiras sobre o assunto.
Verifica-se que a Contribuição de Melhoria teve previsão constitucional pela
primeira vez em 1934 no artigo 124 que dispunha da seguinte forma sobre ela:
Art. 124. Provada a valorização de imóvel, por motivo de obras públicas, a
administração que as tiver efetuado poderá cobrar dos beneficiados a
contribuição de melhoria
Salienta Geraldo Ataliba111 que “a primeira lei a cuidar da matéria foi a lei
paulista de n.º 2509, de 1936, que instituiu a “taxa de melhoria”.
Entretanto, a Constituição de 1937 nada referiu em relação ao instituto,
surgindo o entendimento, por parte de alguns autores, de que poderia a contribuição
de melhoria ter sido abolida do ordenamento jurídico brasileiro.
Já a Constituição Federal de 1946 traz novamente para o texto
constitucional a previsão da contribuição de melhoria. Assim dispôs à época a Carta
Magna em seu artigo 30, I, e parágrafo único:
Art. 30 Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
cobrar:
I - contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel, em
conseqüência de obras públicas;
Parágrafo único - A contribuição de melhoria não poderá ser exigida em
limites superiores à despesa realizada, nem ao acréscimo de valor que da
obra decorrer para o imóvel beneficiado.
Em 1949 surge a lei nº 854 que possuía como escopo regular a contribuição
de melhoria. Geraldo Ataliba112 salienta o insucesso dessa lei em razão da sua
“complexidade e os processos complicados que ele engendrava tornavam
impossível a sua observância, de maneira que, sempre os contribuintes puderam
encontrar razões e motivos para resistir a sua aplicação.”
Em 1966 a Lei n.º 5.172, mais conhecida como Código Tributário Nacional
veio disciplinar em seus artigos 81 e 82 a instituição da contribuição de melhoria.
Assim dispõem os artigos que disciplinam o instituto da contribuição de melhoria:
Art. 81. A contribuição de melhoria cobrada pela União, pelos Estados, pelo
Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas
atribuições, é instituída para fazer face ao custo de obras públicas de que
decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada
e como limite individual o acréscimo de valor que da obra resultar para cada
imóvel beneficiado.
111
ATALIBA, Geraldo. Em prol da Contribuição de Melhoria. São Paulo: Resenha Tributária,1976b.
p. 28.
112
Ibid., p. 31-32.
41
Art. 82. A lei relativa à contribuição de melhoria observará os seguintes
requisitos mínimos:
I - publicação prévia dos seguintes elementos:
a) memorial descritivo do projeto;
b) orçamento do custo da obra;
c) determinação da parcela do custo da obra a ser financiada pela
contribuição;
d) delimitação da zona beneficiada;
e) determinação do fator de absorção do benefício da valorização para toda
a zona ou para cada uma das áreas diferenciadas, nela contidas;
II - fixação de prazo não inferior a 30 (trinta) dias, para impugnação pelos
interessados, de qualquer dos elementos referidos no inciso anterior;
III - regulamentação do processo administrativo de instrução e julgamento
da impugnação a que se refere o inciso anterior, sem prejuízo da sua
apreciação judicial.
§ 1º A contribuição relativa a cada imóvel será determinada pelo rateio da
parcela do custo da obra a que se refere a alínea c, do inciso I, pelos
imóveis situados na zona beneficiada em função dos respectivos fatores
individuais de valorização.
§ 2º Por ocasião do respectivo lançamento, cada contribuinte deverá ser
notificado do montante da contribuição, da forma e dos prazos de seu
pagamento e dos elementos que integram o respectivo cálculo.
Geraldo Ataliba afirma que:
[...] os mesmos defeitos encontrados na lei 854 aí se reproduzem.
Essencialmente são deformações ao instituto, constantes também do CTN,
as disposições que prevêem a publicação prévia de memorial descritivo,
orçamento, delimitação de zona beneficiada, bem como a possibilidade de
113
impugnações, reclamações e recursos por parte dos contribuintes.
Um ano após, verifica-se o surgimento do decreto Lei federal n.º 195 que
conforme aduz Geraldo Ataliba114 apesar de tentar viabilizar o tributo, “vem na
verdade contribuir para solidificar todos os empecilhos e obstáculos à sua
viabilização.”
A Constituição de 1967 em seu artigo 19, III, traz a previsão da contribuição
de melhoria. Assim dispõe o citado dispositivo:
Art.19 - Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
arrecadar:
III - contribuição de melhoria dos proprietários de imóveis valorizados pelas
obras públicas que os beneficiaram.
Por fim, a Constituição Federal de 1988 dispôs em seu artigo 145, III, sobre
a arrecadação contribuição de melhoria:
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão
instituir os seguintes tributos:
III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
113
114
ATALIBA, op. cit., 1976b, p. 32.
Ibid., p. 33.
42
Verifica-se, portanto, que mais uma vez a Constituição Federal prestigiou o
instituto da Contribuição de Melhoria, tendo ela a natureza de tributo.
3.3 DA CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA
Aliomar Baleeiro115 ensina que “inspirou-se o constituinte brasileiro na
corrente doutrinária que reputa a contribuição de melhoria um tributo sui generis,
inconfundível, portanto, com os impostos e taxas”.
Geraldo Ataliba116 salienta que o instituto em questão “não se lastreia nem
no princípio da capacidade contributiva, informador do imposto, nem no da
retribuição, que funda a teoria e a técnica das taxas.”
Aliomar Baleeiro117 aduz que “a contribuição de melhoria oferece matiz
próprio e específico: ela não é a contraprestação de um serviço público incorpóreo,
mas a recuperação do enriquecimento ganho por um proprietário em virtude de obra
pública concreta no local da situação ao prédio”.
Ao afirmar a importância do estudo da contribuição de melhoria Bilac Pinto
ensina que o tributo em questão consiste em:
[...] um instituto fiscal que assegure a recuperação das valorizações
derivadas da realização de melhoramentos públicos, o qual terá o duplo
alcance de consolidar o plano financeiro das obras em andamento,
resguardando o erário municipal contra os imprevisíveis riscos que maculam
os mais perfeitos planos de financiamento por excess condemnation, e de
118
pôr uma nota de equidade e justiça na política fiscal e financeira.
O instituto da contribuição de melhoria é também denominado, pela doutrina
estrangeira, de “betterment tax”, “special assessment”, “contributo di migliora”, sendo
amplamente conhecido, principalmente pela doutrina americana.
Geraldo Ataliba119 afirma que “no plano pré-jurídico, justificações éticas,
políticas, econômicas, financeiras e administrativas são das mais sólidas, em
suporte da Contribuição de Melhoria.”
Geraldo Ataliba120 explica o fundamento de sua exigibilidade:
[...] razões de equidade o reclamam: que as obras de utilidade geral sejam
custeadas por todos; as de utilidade restrita o sejam por aqueles que delas
extraiam proveito e as que reúnam os dois requisitos sejam custeadas
proporcionalmente pela comunidade e pelos beneficiários [...] são também
115
BALEEIRO, 1998, op. cit., p. 259.
ATALIBA, 1976b, op. cit., p. 9.
117
BALEEIRO, 1998, op. cit., p. 259.
118
PINTO, op. cit., p. 339.
119
ATALIBA, 1976b, op. cit., p. 12.
120
Idem. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 176.
116
43
razões éticas que exigem a eficácia da contribuição de melhoria: banir o
enriquecimento sem causa de alguns, à custa de todos.
Frente a esse quadro de disparidades, conforme muito bem esclarece
Geraldo Ataliba121, “se chegou à conclusão de que é mais justo, mais lógico, mais
racional e mais econômico fazer recair o custo parcial ou total de tais obras públicas
sobre os seus diretos beneficiários.”
Nesse mesmo sentido a lição de Aliomar Baleeiro ao ensinar que:
[...] se o Poder Público, embora agindo no interesse da coletividade,
emprega vultosos fundos desta em obras restritas a certo local, melhorandoo tanto que se observa elevação do valor dos imóveis aí situados, com
exclusão de outras causas decorrentes da diligência do proprietário, impõese que este, por elementar princípio de justiça e de moralidade, restitua
parte do benefício originado do dinheiro alheio. Salienta, ainda, que outra
solução conduziria à iniqüidade insuportável de serem uns sobrecarregados
do custo de obras, que lhes interessam e também ao público, ao passo que
outros, sem o mínimo esforço ou investimento, receberam o presente de
obras idênticas realizadas pelos cofres públicos. 122
Geraldo Ataliba123 traduz os ensinamentos de Rose-Water nos seguintes
termos:
[...] o contribuinte paga, não só porque obtém um benefício, mas porque
esse benefício é consectário de uma despesa, cujo ônus encontra mais
adequado repouso em seus ombros, do que nos de outros não
especialmente beneficiados. Em contrapartida, a adoção do tributo evita
“que os dinheiros públicos oriundos dos impostos e outras fontes, sirvam
124
frequentemente para aumentar o patrimônio de poucas pessoas”.
Geraldo Ataliba125 indaga em relação às obras empreendidas no Rio Tamisa
para a facilitação de navegação, se “não é justo exigir, especialmente dos
proprietários das terras valorizadas pelas obras, que concorram para a cobertura de
seu custo. Em resposta, afirma que “é razoável, justo e equânime que os que
participam do benefício decorrente de obra pública, contribuam, em proporção
conveniente, ao seu custo”.
Salienta, ainda, Geraldo Ataliba a possibilidade de ter sido essa obra “a
primeira da história a ser financiada pela contribuição de melhoria.” Sustenta que:
[...] os terrenos ribeirinhos, antes alagadiços, tinham valor insignificante, já
que não eram suscetíveis de nenhuma exploração econômica. Com a obra,
essas áreas conheceram excepcional valorização, porque passaram a ser
121
ATALIBA, op. cit., 1976b, p. 9.
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
p. 259.
123
ATALIBA, op. cit., 1976b, p. 10.
124
ROSE-WATER. Victor. Special Assessments. Studies in History, Economics and Public Law.
2. ed. New York: University of Columbia, 1898. v. 2. apud ATALIBA, op. cit., 1976b, p. 10.
125
ATALIBA, op. cit., p. 10-11.
122
44
plenamente exploráveis e tendem a igualar os valores imobiliários dos
terrenos não inundáveis próximos às cidades de Londres e Oxford.126
Aliomar Baleeiro salienta que Cornick refere:
[...] que a tese do benefício está profundamente arraigada no espírito
público e no dos legisladores. E concede que, na grande maioria dos casos,
a equidade, na acepção comum desta palavra, exige rígida conexão entre o
custo e o benefício, como a lei também o prescreve em vários Estados
americanos.” Sustenta, portanto, a predominância do fator ‘benefício’ e não
‘custo’.127
Aliomar Baleeiro128 muito bem recorda, em relação à tributação das
valorizações imobiliárias não oriundas de obras públicas, que:
[...] os doutrinadores brasileiros, quando consideravam os acréscimos
imobiliários estranhos a inversões ou atividades dos proprietários, sempre
distinguiam nitidamente a 'contribuição de melhoria' (special assessments,
ou betterment tax) – meio fiscal de recuperação do enriquecimento advindo
a imóveis de particulares por efeito direto de obras públicas nas zonas onde
eles se acham situados – do imposto sobre a valorização de imóveis sem
essa causa específica (unearned increment tax).
Geraldo Ataliba ao analisar os requisitos impostos pelo art. 82 do Código
Tributário Nacional, em relação à exigência da contribuição de melhoria, tais como,
por exemplo, a publicação prévia de memorial descritivo do projeto, do orçamento
com o custo da obra, prescreve:
[...] que não há nenhuma relação entre a realização do fato imponível e o
preenchimento destas condições, haja vista que basta que um determinado
imóvel tenha sido valorizado em razão de uma obra pública, para que se
reconheça realizado o fato imponível. A sua previsão somente contribui para
129
complicar um processo que devia necessariamente ser simples.
Aduz Aliomar Baleeiro que:
[...] a dificuldade prática reside na delimitação da área atingida pela
valorização, assim como da estimativa desta em relação a cada imóvel
beneficiado. Essa dificuldade, que pode ser superada e o foi em muitos
lugares, venceu os governos incapazes de organizar a aparelhagem
administrativa adequada a esse fim, dando margem a que os funcionários
130
optassem pelo abreviado processo dimensional ou indiciário.
Aliomar Balleiro ao analisar as dificuldades encontradas pela contribuição de
melhoria, no que diz respeito à sua arrecadação, bem como do que é necessário
para a devida aplicação, ensina que:
126
ATALIBA, op. cit., p. 10.
CORNICK, Philip, “Special Assessment” em Municipal Finance, de A. E. Buck, NY: Macmilan
Co., 1937. p. 388. Apud BALEEIRO, op. cit., 1998, p. 263.
128
BALEEIRO, op. cit., 1998, p. 265.
129
ATALIBA, Geraldo. Em prol da contribuição de melhoria. São Paulo: Resenha Tributária, 1976.
p. 39-47.
130
BALEEIRO, op. cit., 1998, p. 263.
127
45
[...] a administração, em matéria de contribuição de melhoria, está diante da
mesma exigência: selecionar e adestrar seu pessoal à altura de novos
métodos, suscitados por necessidades novas, ao invés de desmoralizar
esses métodos ou sacrificar essas necessidades pelo nível dos agentes
públicos mal recrutados fora do sistema de mérito. Claro que isso exigirá
tempo, tenacidade e critério austero por parte dos governantes. Mas essas
qualidades são o mínimo exigível de homens públicos. 131
Bilac Pinto conclui que:
[...] em face da insegurança da desapropriação por zona” e “entre os
processos fiscais de cobrir, parcial ou totalmente, as despesas municipais
na realização de Planos de Urbanização que determinem a valorização das
áreas contíguas, nenhuma dúvida existe a respeito de que a contribuição de
melhoria, - a que os americanos dão o nome de special assessment, - é o
132
mais seguro e eqüitativo.
Com relação às cidades americanas que aplicaram a contribuição de
melhoria Aliomar Baleeiro133 demonstra que as mesmas “arrecadaram 31 milhões de
dólares, só em 1946. E, conclui aduzindo que por essa razão, “a doutrina, no
confronto entre a excess condemnation e a special assessment, inclina a balança
em favor desta última.”
Não difere a opinião européia, conforme ensina Aliomar Baleeiro134 que
reputa magros os resultados da desapropriação por zona, empreendida por
Hausmann quando realizou os melhoramentos urbanísticos de Paris no meado do
século XIX.
Bilac Pinto afirma que:
[...] nos Estados Unidos aquelas graves objeções de ordem financeira já
apontadas, bem como certas dificuldades constitucionais e, principalmente,
a superioridade do special assessment como meio de recuperação das
valorizações decorrentes das obras públicas, tornaram muito raras as
135
aplicações do excess condemnation como processo de financiamento.
Com relação aos ensinamentos de Ernest Herman Hahne, Bilac Pinto
traduziu-os nos seguintes termos:
[...] a longa fase de experimentação a que as cidades dos Estados Unidos
submeteram o instituto da contribuição de melhoria e o êxito logrado,
autorizam a que os financistas americanos asseverem que o sistema de
contribuição de melhoria tem indubitavelmente demonstrado o seu valor
como elemento permanente das finanças locais.136
131
BALEEIRO, op. cit., p. 264.
PINTO, op. cit., p. 345.
133
BALEEIRO, op. cit., 1998, p. 261.
134
Idem, Ibid., p. 267.
135
PINTO, op. cit., p. 340.
136
HAHNE, Ernest Herman, verb. “Special assessment". In Encyclopaedia of the Social Sciences.
New York: The Macmillan Company, 1932, p. 279. v. 14 apud PINTO, op. cit., p. 345.
132
46
Bilac Pinto137 salienta que as cidades que se desenvolveram rapidamente
utilizaram-se das contribuições de melhoria em larga escala. E, mais adiante,
registra que “o special assessment, graças ao traço de rigorosa equidade que o
caracteriza, goza de decidido apoio da opinião pública, nos Estados Unidos.”
Conclui José Carlos de Moraes Salles138 que perfilhando o entendimento de
insignes juristas por ele referidos, afirmando:
[...] ser a contribuição de melhoria instrumento mais eficaz que a
desapropriação por zona para o reembolso, pela Administração, das
vultosas quantias despendidas com a execução de obras e serviços
públicos, que tenham levado valorização aos imóveis adjacentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito embora uma conclusão se constitua em um desfecho, e sendo assim
só possa ser determinada ao cabo de um estudo, no presente trabalho, na medida
em que o estudo se desenvolvia, diversas conclusões foram sendo construídas, com
o escopo de que, quando da chegada ao final, pudessem ser expostas idéias claras
e bem fundamentadas a respeito do tema central do presente trabalho.
Analisou-se a evolução histórica da separação entre direito público e direito
privado, sempre direcionando o estudo à ingerência do Estado (público) na esfera
privada, especificamente a interferência estatal no direito de propriedade. Verificouse não mais existir aquela linha bastante nítida que dividia as esferas, observada
com maior clareza no período da Revolução Francesa, tendo a linha divisória, se
tornado um tanto quanto tênue em razão dos novos valores trazidos pelo
constitucionalismo social. Quanto ao direito de propriedade, focou-se o estudo da
sua garantia bem como de suas limitações, pois é inerente a todo direito a existência
de restrições a ele, sob pena de o Estado, na condução do interesse público e
justamente buscando a satisfação dos anseios da coletividade, restar impedido de
atender as necessidades da sociedade civil em razão de um direito meramente
individualista.
Destacou-se, ainda, a importância dos novos valores trazidos pelo Estado do
bem estar social para a interpretação do ordenamento, na medida em que institutos
137
138
HAHNE, op. cit., p. 346.
SALLES, op. cit., p. 167.
47
tipicamente disciplinados pelo direito privado, como por exemplo, o direito de
propriedade, passaram a receber tratamento constitucional.
Após estas considerações, atingiu-se a parte mais importante do presente
trabalho, o instituto da desapropriação, sob a forma de expropriação por zona.
Observou-se, no estudo do instituto da desapropriação, as hipóteses constitucionais
autorizadoras da expropriação, especificamente sob as formas de necessidade,
utilidade pública e interesse social.
Analisou-se a evolução constitucional e legislativa sobre o assunto. Após,
apresentou-se, o instituto da desapropriação por zona. Salientou-se se constituir em
hipótese de utilidade pública haja vista estar regulada justamente em um Decreto-Lei
que disciplina os casos de desapropriação por utilidade pública. Desse modo estaria
a aplicação do instituto da desapropriação por zona autorizada. Destacou-se, a
hipótese de êxito em sua aplicação e a possibilidade de se ressarcir dos valores
despendidos com a realização de obras e serviços. Destacou-se o caso brasileiro
sobre o assunto. Nesse sentido, registrou-se as dificuldades para se empreender a
desapropriação por zona, haja vista as dificuldades financeiras que encontra o Poder
Público para, além de financiar a obra, ter que indenizar o proprietário de um bem
que não é necessário para as obras, sendo, portanto, um imóvel que não se constitui
em óbice para o projeto empreendido pela Administração Pública.
Por outro lado, salientou-se as conseqüências e os riscos de sua aplicação.
Examinou-se casos de aplicação do instituto em nível internacional bem como as
respectivas análises.
Em seguida, passou-se à análise do instituto da contribuição de melhoria,
compreendido como espécie do gênero tributo. Analisou-se a evolução do instituto
em nível constitucional e legislativo. Registrou-se, os fundamentos da exigibilidade
do tributo.
Demonstrou-se que em razão de o instituto da contribuição ser mais seguro
em relação ao instituto da desapropriação por zona, de modo a não trazer os riscos
que se colocam com a aplicação deste último instituto, o tributo se constituiria em
substitutivo à expropriação com escopo de revenda das áreas valorizadas
extraordinariamente em decorrência de obras e serviços empreendidos pela
Administração Pública. Salientou-se, nesse sentido, a experiência de outros países
que lograram êxito com a aplicação do instituto da contribuição de melhoria.
48
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