GESTÃO INTERDISCIPLINAR DO CONHECIMENTO: BASES EDUCACIONAIS E EPISTEMOLÓGICAS RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS DA UFJF. DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE GAMA FILHO. PÓS-DOUTORADO NO CENTRE DE RECHERCHES POLITIQUES RAYMOND ARON – PARIS. ANTÔNIO JULIANO BREYNER DOUTOR EM EDUCAÇÃO PELA UNINCOR – TRÊS CORAÇÕES. PROFESSOR DA UNIVERSIDADE JOSÉ DO ROSÁRIO VELANO – UNIFENAS, MG. Gestão do conhecimento. Este é um tema de obrigatória atualidade. Num país de tradição cartorial, como o Brasil, é comum se pensar que administrar pessoas é como organizar objetos. A nossa longa tradição patrimonialista, bem como o tecnocratismo a serviço do Estado privatizado por clãs e estamentos, levaram a fazer concluir que os cidadãos são fichas que podem ser movimentadas ao bel prazer dos tutores. Essa é a pesada herança das tradições pombalina e contra-reformista, que ensejaram um modelo de moral social vertical, que ainda tentamos esconjurar. Ora, a dificuldade na gestão do que até recentemente se denominava de “recursos humanos” está, justamente, em que o ser humano é uma realidade sui generis, que os filósofos gregos denominavam de anthrópos, ou seja, aquilo que não tem um lugar definido (ou tropos). A pedra, a árvore, o animal, o astro, são trópoi, possuem um comportamento previsível, levando em consideração as variáveis que os cercam. Já os homens fogem a essa regra. O seu comportamento não pode dar ensejo a uma ciência categórica (do previsível, segundo Aristóteles), mas apenas a uma espécie de conjectura dialética, discutível por essência. O problema, do ângulo educacional, radica justamente na pressuposição de que o homem é totalmente previsível, segundo a doutrina desenvolvida pelos cientificismos do século XIX (sendo o nosso tresnoitado marxismo acadêmico a última versão de tal atitude mental, ainda infelizmente subsistente no gramscismo e outras pérolas epistemológicas que vicejam no universo cultural brasileiro). O nosso sistema de ensino superior estruturou-se em cima dessa falsa pressuposição. E partiu para conceber currículos acadêmicos alicerçados em compartimentos estanques, dando ao aluno um magro alimento intelectual, o suficiente para que se comportasse, na vida profissional, como previsto pelos planejadores do stablishment. Pretendemos discutir, neste artigo, a possibilidade de estágios interdisciplinares na Universidade brasileira, como meio para formar, nos futuros profissionais, uma mentalidade pluralista na gestão do conhecimento, em aberto confronto com a visão tutelar herdada de séculos de despotismo esclarecido. Para tanto, desenvolveremos, em primeiro lugar, alguns conceitos básicos como multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, disciplinaridade cruzada e interdisciplinaridade. Aprofundaremos, em segundo lugar, nas condições teóricas em que se dá a prática da interdisciplinaridade. Analisaremos, em terceiro lugar, o caráter de disciplinaridade cruzada na tradição universitária luso-brasileira. Abordaremos, em quarto lugar, as questões da formação nas suas versões generalista, especializada e interdisciplinar, destacando o papel que cabe às humanidades. Por último, trataremos acerca das perspectivas práticas da interdisciplinaridade nos estágios universitários e assinalaremos, também, algumas iniciativas que poderiam ser postas em execução, nas Universidades brasileiras, para implantar os estágios interdisciplinares. I - CONCEITOS BÁSICOS Qual é a natureza dos estágios universitários? Qual é a sua finalidade? Caracterizemos, em primeiro lugar, a sua natureza: consistem eles basicamente em práticas ligadas aos conhecimentos sistemáticos transmitidos pelo sistema de ensino aos alunos. Identifiquemos, a seguir, a sua finalidade: consiste ela na familiarização do futuro profissional com a prática específica da sua área de trabalho e, paralelamente, na realização de ações especializadas em benefício da comunidade em que está inserida a Universidade, ou em prol do aperfeiçoamento desta no plano do ensino e da pesquisa. Os estágios estão, destarte, vinculados à dinâmica do ensino universitário, que deve abarcar três patamares: Teorias ou conhecimentos sistemáticos que permitam aprofundar sine ira ac studio num campo determinado das ciências. Técnicas inseridas no contexto da aplicação desses conhecimentos teóricos a uma parcela da realidade. Valores ou pressupostos axiológicos, de índole idéio-afetiva, que agem como polarizadores da ação humana do cientista ou do profissional, inspirando-a. Esses três patamares que integram o ensino universitário precisam ser postos em relação a partir da prática dos estágios, que devem abarcar tanto a parte teórica, quanto a que diz relação às técnicas e aos valores. Por exemplo, o trabalho de um estudante de direito num consultório jurídico onde faz estágio, no terreno específico do direito do trabalho, deve permitir ao jovem bacharelando, sob a orientação do seu supervisor, a análise da problemática trabalhista concreta que se lhe apresenta, à luz da jurisprudência tecida ao longo dos anos, bem como também à luz da história da formação social do Estado brasileiro e da sua tendência paternalista. Mas não bastam unicamente as relações entre a teoria e a técnica jurídica: é necessário, também, que o jovem bacharelando se sensibilize perante o valor da justiça, que deve pautar a sua ação profissional, descobrindo vivencialmente as raízes humanísticas da ética do advogado, que o torna um bacharel em leis e não simplesmente um rábula. Antes, porém, de discutir a questão da interdisciplinaridade nos estágios, torna-se necessário fixar algumas noções básicas: multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, disciplinaridade cruzada e interdisciplinaridade [cf. Piaget, 1973; Japiassu, 1973: 14 seg.; Japiassu, 1976]. Por multidisciplinaridade entende-se um conjunto de disciplinas oferecidas simultaneamente, sem que se explicitem as possíveis relações entre elas. Por pluridisciplinaridade entende-se a justaposição de diversas disciplinas colocadas no mesmo nível hierárquico, de forma a aparecerem algumas relações entre elas. Por disciplinaridade cruzada entende-se a polarização rígida de várias disciplinas ao redor de uma disciplina que é considerada mais importante. Por interdisciplinaridade entendemos o intercâmbio sistemático de experiências e conhecimentos de especialistas de diferentes campos do saber, a respeito de um determinado objeto material, que pode ser a forma específica e o método, segundo os quais cada um deles chegou ao grau de conhecimento especializado já adquirido. O cientista e educador suíço Jean Piaget. II - A INTERDISCIPLINARIDADE O interdisciplinar, para Hilton Japiassu [1973: 14-15], constitui "a forma mais forte do pluridisciplinar". Uma atividade interdisciplinar tem lugar, no sentir do mencionado autor, quando Ela incorpora os resultados de vários especialistas, quando toma emprestado a outras disciplinas instrumentos e técnicas metodológicas, fazendo uso de esquemas conceituais e de análises que se encontram nos diversos domínios do saber, a fim de os fazer integrar e convergir, depois de tê-los comparado e julgado. Após o advento da ciência moderna e da quebra da unidade cultural da Europa (que se exprimia no latim medieval e na teologia), tornou-se necessária a busca de uma nova forma de síntese que conferisse unidade ao pensamento humano. Foi conhecida, na busca desse intento, a proposta de Gottlieb W. Leibniz (1646-1716), em prol da formulação de uma ars combinatória ou mathesis universalis (de uma lógica matemática, diríamos hoje), que permitisse aos cientistas se comunicarem entre si com a maior precisão possível, superando os riscos da ambigüidade lingüística. A nova física formulada por Galileu Galilei (1564-1642) e por Isaac Newton (16321727), de outro lado, colocou em xeque a tranqüila perspectiva realista que tinha inspirado as grandes sínteses do saber universal e que consistia na suposição de que o nosso conhecimento é capaz de apreender as coisas em si mesmas, desvendando as suas características essenciais. Ora, se isso fosse certo, não se entenderia por que a humanidade aceitou, durante tantos séculos, a hipótese geocêntrica para explicar os movimentos dos corpos celestes. A revolução copernicana ensejou uma outra revolução não menos importante, cujos formuladores foram David Hume (1711-1776) e Immanuel Kant (17241804): a descoberta da perspectiva transcendental, segundo a qual o nosso conhecimento não apreende as coisas em si mesmas, mas apenas elabora representações delas. À luz dessa nova posição, não haveria, de um lado, verdades absolutas acerca do universo, repousando a verdade científica no consenso dos cientistas acerca de determinada hipótese, devidamente verificada. O filósofo alemão Georg Wilhelm Hegel, que destacou, na sua obra principal, A Fenomenologia do Espírito, a índole essencialmente dialética da razão humana. Georg W. Hegel (1770-1831) salientou a dialeticidade que afeta a todas as representações que a razão humana tece do real. Essas representações integram o mundo da cultura, que é, como frisa Miguel Reale [1977: 165], "intrinsecamente dialético". De acordo com essa concepção, a apreensão do real por parte dos cientistas far-se-á de forma parcial e contraposta, jamais de maneira unilinear e definitiva. A racionalidade da apreensão do mundo não se identifica exclusivamente com uma determinada representação, pois ninguém é capaz de abarcar todos os pontos de vista. Daí vem a idéia de Gaston Bachelard (1884-1963) de que o único racionalismo possível é o integral ou dialético, que incorpore, num consenso altamente especializado, as várias representações do mundo tecidas pelos cientistas. Essa é a raiz da interdisciplinaridade. A respeito, escreve o pensador francês: Trata-se (...) de multiplicar e de apurar as estruturas, o que do ponto de vista racionalista deve-se exprimir como uma atividade de estruturação, como uma determinação da possibilidade de múltiplas axiomáticas, para fazer frente à multiplicação das experiências. Uma das características mais novas da epistemologia contemporânea, é que as diferentes aproximações experimentais do real, revelam-se solidárias de uma modificação axiomática das organizações teóricas. O racionalismo integral não poderá, pois, ser mais do que o domínio das diferentes axiomáticas de base. E designará o racionalismo como uma atividade de dialética, pois as axiomáticas diversas se articulam entre elas dialeticamente [Bachelard, 1974: 108-109]. O pensador francês Gaston Bachelard, um dos mais importantes teóricos da interdisciplinaridade, no século XX. Para Jean Piaget (1896-1980), a interdisciplinaridade abarca um ponto de vista genético. Consiste ela na reconstrução, feita pelos estudiosos da epistemologia (os geneticistas), do processo seguido por um cientista determinado na elaboração do próprio pensamento. Aqui entra, para o pensador suíço, a questão da interdisciplinaridade: Concebida dessa forma, a epistemologia genética comporta pesquisas essencialmente interdisciplinares. A análise de toda forma particular de conhecimento supõe, efetivamente, a colaboração de especialistas da disciplina em questão, de historiadores que tracem a sociogênese, de psicólogos para estudar a formação das noções elementares (...), de lógicos e de cibernéticos para elaborar os modelos formais ou artificiais, etc. Na realidade, todo esse mundo seria evidentemente inútil, se cada sujeito de conhecimento possuísse uma memória completa e infalível, que lhe permitisse reconstruir a gênese das suas próprias idéias (...). Mas como a atividade cognitiva é orientada à solução dos problemas novos que apresenta a realidade e não à conservação ou à reconstrução de um passado interno e confuso, nenhum criador científico, por poderoso que seja o seu gênio, é capaz de dominar as questões de onde provém a formação quase totalmente inconsciente da sua própria inteligência [Piaget, 1973: I, 9-10]. Miguel Reale observa que essa complexidade do mundo da cultura, base da interdisciplinaridade, decorre do seu caráter dialético. A propósito, o filósofo brasileiro frisa: Parece-me não padecer dúvida que o mundo da cultura (o que quer dizer tudo aquilo que se tornou ou venha a se tornar momento de participação ou de consciência humana e objeto de seu trabalho criador e transformador), os fenômenos naturais, inclusive, enquanto objetos de ciência, isto é, enquanto sistema de conhecimentos e linguagem técnica, tudo, em suma, que é constituído pela espécie humana através do tempo, é intrinsecamente dialético. O mundo histórico, como o intuiu genialmente Vico, é mundo feito pelo homem e, como tal, projeção do espírito criador que o instaura e dinamiza, valendo-se dos dados naturais, através desse processo incessante de subjetivações e objetivações que constitui a experiência humana [Reale, 1977:165]. O filósofo brasileiro Miguel Reale, o principal representante atual da corrente culturalista. III - A DISCIPLINARIDADE CRUZADA NA TRADIÇÃO LUSO-BRASILEIRA O ensino jesuítico, que configurou em Portugal a segunda escolástica, constitui um caso típico de disciplinaridade cruzada que consiste, como frisamos atrás, na polarização rígida de várias disciplinas ao redor de uma disciplina que é considerada como mais importante. Tudo, no ensino escolástico, girava ao redor da teologia. No Brasil, essa tendência ensejou a corrente de pensamento denominada de saber de salvação, que correspondia às necessidades de catequização dos índios. As reformas efetivadas pelo Marquês de Pombal no século XVIII substituíram a teologia como disciplina fundamental, pela ciência aplicada a serviço do Estado, pomposamente denominada de aritmética política. Diríamos que o modelo de disciplinaridade cruzada estruturava-se ao redor da variável segurança do Estado, considerado como fonte de racionalidade. Tal paradigma, reforçado pelo modelo napoleônico de faculdades isoladas, veio inspirar o surgimento do sistema brasileiro de ensino superior voltado para a profissionalização, a qual, ao seu turno, deveria ser consentânea com as necessidades do Estado. Esse modelo pombalinonapoleônico, que se tinha estruturado ao redor da ciência aplicada, reforçou-se, a partir de 1870, com o ingresso do positivismo como religião oficial do saber, na Academia Militar e na Escola Politécnica, criada esta última, em 1874, por José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco (1819-1880) [Paim, 1984: 434-435; cf. Bittencourt, 1953; Paim, 1981]. Das críticas efetivadas contra o positivismo por Otto de Alencar (1874-1912) e Manoel Amoroso Costa (1885-1928), na Escola Politécnica, e pela Associação Brasileira de Educadores surgiu um momento de arejamento intelectual, que permitiu a estruturação da Universidade do Distrito Federal em 1935 e da Universidade de São Paulo em 1937, entidades abertas à pluridisciplinaridade e à pesquisa. No entanto, ao longo das quatro últimas décadas, retomou-se o modelo pombalino-napoleônico da Universidade puramente profissionalizante, dividida em compartimentos estanques, que impedem o diálogo entre as várias áreas do saber [cf. Prota, 1987]. À presença legiferante e cartorial do Ministério da Educação (que passou a fixar currículos mínimos, muitas vezes sem a participação da comunidade acadêmica), juntou-se o negativo binômio profissionalização-massificação do ensino superior, com a conhecida queda de nível e o banimento da pesquisa, das humanidades e da interdisciplinaridade [cf. Schwartzman, 1981]. O filósofo Gotlieb Wilhelm Leibniz, o mais ilustre membro da Academia Prussiana de Ciências, no século XVII. Evoluiu-se, paulatinamente, ao longo das décadas de 60 e 70 do século passado, no sentido de enquadrar a Universidade, de forma exclusiva, a serviço das necessidades do Estado autoritário, bem no sentido da vã tentativa de manter ocupada a juventude para que não enveredasse pela trilha da contestação política, bem no contexto da formação dos profissionais de que o país precisava para manter vivo o surto desenvolvimentista. O resultado não foi nem um nem outro, em grande medida devido ao banimento das humanidades, ao abandono da educação básica, ao deterioro dos cursos técnicos intermédios e ao descaso para com a pesquisa e a cultura superior. A insatisfação política aumentou e as necessárias reformas foram substituídas pela mudança dos atores no comando da maquinaria do ensino burocratizado. As esquerdas, após a abertura democrática da década de 80, terminaram tomando conta da Universidade, sem que tivessem presente um modelo acadêmico que renovasse verdadeiramente o ensino superior. O quadro atual de atomização do saber na Universidade brasileira é bastante agudo. Os departamentos privatizaram o conhecimento e passaram a criar dificuldades para os alunos que buscassem formas mais abertas e universais de formação, mediante a escolha de disciplinas de várias áreas. Passou-se a considerar inconveniente, por exemplo, que um estudante de física ou de química freqüentasse regularmente algumas disciplinas filosóficas como cosmologia ou teoria do conhecimento. Arrepios cartoriais causa a idéia de projetos integrados de pesquisa entre vários Centros. A Universidade brasileira atual, notadamente a pública, corporativizou-se em grupos que reivindicam estabilidade e melhoria salarial, sem que se discuta a questão de fundo que lhe dá identidade: como garantir a formação científica e profissional, bem como o diálogo interdisciplinar. Prova do desinteresse reinante em face das questões substantivas da educação e da política do conhecimento é o conteúdo do jornal do principal sindicato de docentes universitários do Brasil, o ANDES, quase todo ele dedicado a xingar o Presidente de plantão, seja ele Lula ou Fernando Henrique, e a repetir a ladainha já conhecida de consignas contra o FMI, a globalização e o provão, com que o Ministério da Educação tentava avaliar, entre 1998 e 2003, os cursos superiores. Em não poucas Universidades Federais a avaliação da produtividade acadêmica dos docentes, ordenada pelo governo, sofreu sérias distorções. Como a regulamentação da medida ficou em mãos da burocracia petista que tomou posse da máquina administrativa das Universidades, passou-se a conferir mais valor aos atos de assembleísmo do que à produção do conhecimento. Valia mais pontos, nos formulários de avaliação, pertencer a um colegiado de curso, com a sua insossa rotina de reuniões que nada decidem, do que participar de um grupo de discussão entre pesquisadores. Mais pontos ganhava o ativista burocrata que assistia a uma assembléia ou a uma reunião de departamento, do que o esforçado docente que tinha conseguido publicar um artigo científico em revista de renome internacional. Nos dois últimos anos, a mediocridade do baixo clero passou a dar a tônica, tendo todo mundo incorporado a GED, de forma automática e com total esquecimento dos mecanismos de avaliação periódica. Os aumentos salariais reivindicados pelos grevistas passaram a ser feitos de maneira a não levar em consideração produtividade ou excelência acadêmica. Convenhamos que a última proposta do Ministério da Educação, em face da greve de 2005, pelo menos preservava, em alguma medida, a avaliação por desempenho e titulação. Ora, o sindicalismo docente conseguiu fazer proposta mais “democrática” ainda, deixando de lado as preocupações com excelência ou produtividade. Todo mundo no mesmo patamar salarial, inclusive os aposentados. Isso não se vê em países do mundo desenvolvido, nem sequer em nações semelhantes ao Brasil em termos de desenvolvimento, como a Índia. É a generosidade macunaímica escancarada. Não é necessária bola de cristal para ver o que aconteceu com os estágios, nesse contexto de atomismo, corporativismo e massificação profissionalizante. Simplesmente converteram-se em mais um ritual acadêmico para a obtenção do canudo. Não há integração interdisciplinar a esse nível, simplesmente porque ela não aconteceu ainda no plano do conhecimento. IV - FORMAÇÃO GENERALISTA, ESPECIALIZADA E INTERDISCIPLINAR A prática da interdisciplinaridade pressupõe, como pano de fundo, a formação humanística. Sem ela, são vãs as tentativas de fazer surgir, no formando, uma atitude compreensiva em face do mundo. O pressuposto é basicamente este: a realidade é complexa. O conhecimento pode dar testemunho dela, mas não esgota-la. O mundo da vida é muito mais complexo e rico do que o da representação. Ora, essa atitude de respeito em face do real, implica no reconhecimento da limitação humana diante do ser. O aspecto essencial da formação humanística é esse: a tomada de consciência da nossa realidade humana, no contexto da mais ampla presença do ser. A formação humanística destaca duas variáveis: de um lado, a lição da filosofia ocidental, no que tange ao sentido da existência humana, tendo como pano de fundo a incomensurabilidade do ser. De outro lado, o estudo das manifestações dessa consciência, ao longo da história das civilizações. O homem, no seu devir, foi tentando dar conta da realidade, buscando um sentido para a sua própria existência e, nessa busca pelo sentido e pela manutenção da vida, foi elaborando representações de si próprio e do mundo. Tais representações, nos aproximadamente cem mil anos que vão desde o aparecimento da espécie sapiens sapiens até os nossos dias, foram se aperfeiçoando, sendo que, no início, não eram mais do que balbuciantes mitos que tentavam representar, de maneira plástica, a perplexidade humana diante do Universo, bem como em face das grandes questões que sempre angustiaram aos homens: finitude, doença, morte, busca da felicidade, anseio de imortalidade. Mas, também, perplexidade diante da beleza da natureza, diante da figura humana, em face da descoberta do amor, da violência, dos paradoxos da existência. O lento nascimento das civilizações prende-se a essas representações míticas. Delas emerge a Filosofia, no século VII ª C., na Jônia. A segunda variável contemplada pelas humanidades é, justamente, a do estudo dessas variadas representações culturais, bem como do caminho trilhado pela razão humana, na Grécia e no Ocidente, colocando em relação a representação filosófica com as outras manifestações da cultura: arte, literatura, instituições sociais e religião. Uma pessoa com formação humanística é aquela que tem consciência dessas duas variáveis. Justamente por ter essa consciência, a pessoa formada em humanidades adota, diante do fenômeno humano e das suas manifestações culturais, uma atitude de admiração, de respeito, de saber ouvir. Porque no Brasil perdeu-se o contato com as humanidades, é que o nosso sistema de ensino mergulhou na mediocridade que o afeta hoje. O sistema de ensino superior cuspe, no mercado, profissionais mal-formados, que não têm idéia da complexidade do ser humano e que pretendem, em vã tentativa, equacionar os grandes problemas do homem, do ângulo da aplicação de técnicas. Temos, assim, por exemplo, advogados que sabem, de cor e salteado, o teor dos códigos, mas são absolutamente insensíveis em face da angústia humana. Médicos que se prevalecem do seu saber científico para dominarem os seus pacientes, sem que intermedeie, entre eles e aqueles que os procuram, um diálogo dignificante. Ora, convenhamos que a qualidade no atendimento profissional deve repousar sobre a base que é necessária para que as relações de confiança não se esfacelem: o respeito para com o ser humano. E essa dimensão valorativa somente pode ser gerada pela formação humanística. Se quisermos reerguer o sistema de ensino brasileiro, o primeiro que deve ser feito é reestruturar a formação humanística. Os alicerces dela devem ser dados já no ciclo básico, naquilo que passou a ser denominado de “educação para a cidadania”. As quatro primeiras séries do primeiro grau deveriam estar direcionadas para essa formação, sem a qual não há consciência cívica. Uma vez garantida a educação para a cidadania nos primeiros anos da formação básica (com a assimilação de valores básicos sobre os quais ancora a vida coletiva, como liberdade e responsabilidade), pode-se ir construindo o grande edifício da formação humanística, a partir já do segundo grau, que deveria ter como finalidade formar cidadãos do mundo. O Instituto de Humanidades dedicou-se, durante vários anos, a estudar modelos de educação para a cidadania, e colocou, para a discussão no meio acadêmico, uma proposta alicerçada nos valores da liberdade e da responsabilidade pessoal. Tal proposta encontra-se no volume intitulado Cidadania: o que todo cidadão precisa saber [cf. Paim, Prota, Vélez, 1999]. A formação universitária deve dar continuidade à formação humanística, iniciada nos ciclos anteriores. O Brasil, infelizmente, passou a identificar, de maneira positivista, formação superior com formação profissional especializada. Ora, nenhuma das duas dar-seá se não forem inspiradas, já desde o início, pela formação humanística. Digamos que esta é o que muitos passaram a considerar, depreciativamente, como formação generalista. A formação profissional seria a que comumente se chama de formação especializada. O sistema de educação superior de um país como o Brasil deve se preocupar com ambas as dimensões, a generalista e a profissional especializada. Certamente deverá ser mudado o tradicional sistema de referência do ensino superior no Brasil, submetido à concepção profissionalizante dos ciclos pombalino e positivista, como se o máximo a que pudesse aspirar alguém fosse converter-se em ficha ou engrenagem do Estado empresário. Lembremos as palavras que dão início ao Documento do Congresso de Locarno, realizado em 1997, sobre o interdisciplinar na Universidade: Se as condições iniciais dos diferentes problemas mudam incessantemente e se uma reforma milagrosa é simplesmente impossível, estamos, então, condenados a assistir, impotentes, à decadência progressiva, mas certa, das universidades? A resposta será certamente não, se aceitarmos mudar de sistema de referência. Estamos convencidos de que as Universidades e Centros de formação superior devem retomar a discussão sobre a formação profissional, remetendo a palavra generalista não para as idiossincrasias acadêmicas, mas sim para a vertente da formação humanística. Para ser generalista, devemos entender que o cidadão que cursa uma faculdade deverá possuir todas as informações necessárias para compreender o fenômeno humano, no contexto da história das civilizações. O ponto de partida dessa empreitada deve ser a crítica aprofundada ao velho modelo pombalino, crítica que, aliás, já aconteceu no Brasil nos anos vinte do século passado, de onde emergiu a idéia de Universidade. A propósito de tal atitude crítica, escrevia Antônio Paim, em 1981: A instituição (universitária), nos seus cinqüenta anos de existência, revelou-se capaz de formar profissionais qualificados, em alguns setores limitados, a exemplo dos estabelecimentos isolados que a antecederam. Mas não abrigou qualquer dos segmentos do saber desinteressado: a pesquisa científica, a pesquisa filosófica e a extensão universitária. As declarações de intenção em contrário e mesmo as tentativas de leva-las à prática – como ocorreu depois de 1964, em matéria de pesquisa científica, em decorrência da iniciativa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico de patrocina-la – não conseguem transforma-la radicalmente. A Universidade brasileira é a hidra da profissionalização e até algo tão distante dessa bitola, como a filosofia, é forçada a enquadrar-se. E justamente o afã de tudo reduzir a tais parâmetros, ainda quando assediada pela massificação, é que a precipitaria na presente crise em que se encontra. Dificilmente conseguiremos equacionar adequadamente este problema, se não nos interrogarmos sobre as atribuições que nossa cultura deu ao ensino superior desde fins do século XVIII, se não criticarmos duramente o conceito de ciência que se sedimentou. E dessa mistura é que se formou a idéia consolidada e arraigada de Universidade, expressa, de modo insofismável, na prática que a institucionalizou. As tradições culturais permanecem insuperadas enquanto não reconhecemos sua força e importância. No caso particular da Universidade, deve-se proclamar, com toda ênfase, que é inútil pretender reforma-la sem interessar o seu Corpo Docente e outras parcelas da intelectualidade num debate amplo, do qual possa resultar novo entendimento, a exemplo do que ocorreu nos anos vinte. A Universidade – como a sociedade, em seu todo – não se reforma por decreto. É preciso criar uma circunstância nova e dela fazer um exemplo polarizador. E persistir nesse caminho [Paim, 1981: 14-15]. Uma alternativa, para o Brasil, seria a de buscar um modelo diversificado de Universidade, abandonando, de vez, a idéia monolítica que terminou prevalecendo e que é continuada nas atuais propostas do governo Lula. Leonardo Prota, na sua obra Um novo modelo de Universidade, já indicou, há vários anos, de que forma poderia ser diversificada a idéia de Universidade, atendendo para as diferenças regionais, de um lado, mas, de outro, incorporando a preocupação com o resgate da formação humanística. A respeito, frisava o mencionado autor na introdução à obra citada: Retomando o assunto da Universidade brasileira, numa rápida avaliação crítica, pretendemos salientar a diferente natureza da crise na Europa e no Brasil e a necessidade de abandonar a idéia de um modelo único de Universidade, devido às diferentes culturas regionais que compõem essa imensidão que é o Brasil; verificar, sobretudo, a necessidade de mudança de mentalidade para que se torne possível a idéia de Universidade: o espírito crítico é o caráter distintivo da instituição universitária, e não a profissionalização, que, por sua vez, se deve manter num plano complementar. A Universidade deve oferecer, privativamente, uma formação básica (entendida como iniciação aos principais tipos de processos intelectuais) e uma formação especializada (entendida como treinamento à prática efetiva de um método de pesquisa, que leve a uma efetiva participação na pesquisa científica). A formação profissional, por sua vez, oferecida fora ou dentro da Universidade, terá sempre como pressuposto uma boa formação cultural. À luz dessa nova mentalidade a ser criada, nossa breve análise irá abarcar as funções clássicas e tradicionais atribuídas às Universidades, verificando que elas se revestem de novo enfoque e de novos valores, de tal forma que, uma vez superada a visão unilateral da profissionalização por uma visão globalizante da formação cultural, os demais tópicos, recentemente apontados como focos da crise universitária, assumiriam feições diferentes com possibilidade de mais fácil solução [Prota, 1987: 11-12]. A formação humanística seria a base sobre a qual poder-se-ia colocar a diversificação das Universidades e dos Centros de Formação Superior. Consideramos que a adoção de uma fase introdutória de estudos humanísticos (um ou dois anos), antes da formação propriamente profissionalizante, seria, talvez, uma alternativa válida para o Brasil. Os alunos teriam oportunidade de se familiarizar com o meio universitário, nessa fase introdutória, na qual receberiam maciços conhecimentos de humanidades, estruturados ao redor de um Curso de História da Cultura, utilizando, por exemplo, o roteiro proposto pelo Instituto de Humanidades para o Curso de Humanidades, com uma disciplina introdutória denominada de “A cultura ocidental” e quatro disciplinas subseqüentes (“Política”, “Moral”, “Religião” e “Filosofia”) [cf. Instituto de Humanidades, 2004: 5-51]. Não há dúvida de que a formação profissionalizante ministrada sobre essa base humanística terá, como resultado, a presença de profissionais muito mais abertos ao mundo de hoje, bem como indivíduos sensíveis às questões éticas e humanas em geral. Em resumo, sairiam das nossas Universidades profissionais mais competentes para enfrentarem a complexidade do mundo globalizado. Lembremos, antes de prosseguir, que a proposta de educação humanística aqui colocada, é perfeitamente viável dentro do atual sistema de departamentalização do ensino universitário. No próximo item discutiremos este aspecto com maior profundidade. Os professores Leonardo Prota, Antônio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez, em reunião promovida pelo Instituto de Humanidades, em Londrina, em setembro de 2003. Torna-se imperativo que as Universidades sejam sérias e se transformem, enquanto há tempo. Não há dúvida de que a sociedade procura por um novo modelo de ensino superior. Muitas instituições não estão conseguindo preencher os números de vagas oferecidas, a ociosidade é grande, não são poucos os cursos que estão sendo fechados. Estamos convencidos de que, em pouco tempo, as Universidades e Centros de Estudos Superiores que estiverem oferecendo cursos sem qualidade, perderão o lugar para os que estiverem comprometidos com a seriedade do ensino superior. A adequada estruturação das Universidades e dos Centros de Ensino Superior, adotando a abertura às humanidades, certamente abrirá caminho para a institucionalização, neles, na formação profissional, da interdisciplinaridade. Isso decorre do fato de que a pesquisa, no mundo atual, é de índole interdisciplinar. A Universidade tendo recuperado a sua função primigênia de Universitas scientiarum (universalidade dos conhecimentos) e de Universitas scholarium et magistrorum (universalidade dos que aprendem e dos que ensinam), superará, de forma satisfatória, a encruzilhada em que se encontra, em face da opção puramente profissionalizante e corporativista, que está fazendo minguar o universo educacional brasileiro. Hoje, a Universidade é identificada, erroneamente, com prédios, campi, funcionários, mas o binômio professor-aluno, que é a sua essência, praticamente desapareceu, no contexto do grevismo endêmico e do corporativismo politizado. Ser professor ou pesquisador, ser aluno dedicado, não vale mais a pena. O espaço foi ocupado pelos carreiristas de ocasião, aqueles que fazem, do espaço acadêmico, degraus para carreiras políticas ou peleguistas. Há muitos militantes e poucos amantes da ciência. Retomando o tema, que estamos discutindo, da interdisciplinaridade no contexto da formação universitária, Piaget deixou clara a relação entre aquela e a pesquisa científica, no seguinte texto: Enfim, para encerrar estas reflexões acerca do futuro do ensino das ciências, é preciso ainda insistir em um ponto central, mas que se restringe essencialmente aos níveis secundários e universitários: o aspecto cada vez mais interdisciplinar que assume, necessariamente, a pesquisa em todos os domínios. Ora, mesmo atualmente, os futuros pesquisadores continuam sendo muito mal preparados nesse particular, devido a ensinamentos que visam à especialização e resultam, com efeito, na fragmentação, por não se compreender que todo aprofundamento especializado leva, pelo contrário, ao encontro de múltiplas interconexões. Estamos aqui abordando um problema que diz respeito tanto à epistemologia geral das ciências, quanto à sua metodologia; mas parece incontestável que o futuro do ensino das ciências irá depender, cada vez mais, da sua epistemologia, coisa que já se evidencia através de não poucos indícios [PIAGET, 2002: 20-21]. A análise atenta do que escreveu Jean Piaget nos leva a ponderar sobre a real importância da interdisciplinaridade na universidade. Sem perspectiva interdisciplinar, simplesmente desaparece a idéia de Universidade. Deve-se compreender que o ensino na universidade se valoriza quando está aliado à pesquisa. Se a interdisciplinaridade é peça fundamental para a pesquisa, também o é para o ensino, sendo que ambos, ensino e pesquisa, são as peças basilares da Universidade. O preconceito contra a interdisciplinaridade decorre, segundo Piaget, da perspectiva ensejada pelo positivismo, que parte da suposição de uma observação absolutamente objetiva, da qual se deduziriam, logicamente, leis imutáveis. A propósito, escreve o pensador suíço: O desmembramento das disciplinas científicas se explica, com efeito, pelos preconceitos positivistas. Numa perspectiva onde apenas contam os observáveis, que cumpre simplesmente descrever e analisar, para então extrair as leis funcionais, é inevitável que as diferentes disciplinas pareçam separadas por fronteiras mais ou menos definidas e mesmo fixas, já que estas se relacionam com a diversidade das categorias de observáveis que, por sua vez, estão relacionadas com nossos instrumentos subjetivos e objetivos de registro (percepções e aparelhos). (...) A causalidade consiste, pois, numa composição de produções e observações, tal como as operações lógico-matemáticas, com a diferença de que estas, no plano físico, são então atribuídas aos próprios objetos, assim transformados em operadores. Nesse caso, a realidade fundamental não é mais o fenômeno ou o observável, e sim a estrutura subjacente, reconstituída por dedução e que fornece uma explicação para os dados observados. Mas, por isso mesmo, tendem a desaparecer as fronteiras entre as disciplinas, pois as estruturas ou são comuns (tal como entre a Física e a Química, que Augusto Comte acreditava irredutíveis uma à outra), ou solidárias umas com as outras (como, sem dúvida, haverá de ser o caso entre a Biologia e a Físico-Química) [Piaget, 2002: 21]. A interdisciplinaridade advoga, para si, a intencionalidade de reunião de conhecimentos, onde a troca de informações é necessária e relevante para a produção do conhecimento. Não se espera uma profunda mudança, uma revolução de paradigmas, mas sim um trafegar tranqüilo, paulatino e constante. Hoje o professor deve entender que sua disciplina não é, isolada, a mais importante. Deve, pelo contrário, pressupor que as disciplinas são formativas em seu conjunto, que a epistemologia flui na interlinearidade. Toda e qualquer disciplina, em algum momento, relaciona-se com outra. O professor deverá estar aberto para esse entendimento, para que mostre as correlações existentes na construção do conhecimento. Essa complementaridade, esse alicerce é proposto dentro da interdisciplinaridade, e trabalhar com essas possibilidades é um verdadeiro desafio para nós, professores, que não estamos acostumados a esse tipo de abordagem epistemológica. No fundo da questão da interdisciplinaridade, descobrimos um problema relativo à fundamentação da verdade. A dimensão positivista, atrás criticada, parte do pressuposto de que o verdadeiro é algo absolutamente objetivo, como se nós pudéssemos apreender a essência substancial da realidade (Kant diria o noúmeno). A verdade, para esta perspectiva, consiste no que os escolásticos denominavam de adequatio intellectus ad rem (adequação do entendimento à coisa), como se a realidade imprimisse a sua matriz no entendimento, à maneira da forma que é impressa na cera. Trata-se da perspectiva denominada de realista, que entrou em colapso com a formulação da ciência moderna, ao ensejo da nova física de Galileu e Newton. O filósofo alemão Immanuel Kant, sistematizador da Perspectiva Transcendental na sua obra Crítica da Razão Pura (1785). A interdisciplinaridade, no entanto, afina-se com a denominada perspectiva crítica ou transcendental, formulada, no século XVIII, por David Hume (na sua Investigação sobre o entendimento humano) e por Immanuel Kant (na Crítica da razão pura). Para esta perspectiva, o nosso entendimento possui a capacidade de elaborar representações do real, ao ensejo da experiência, sem que consigamos chegar à apreensão direta da coisa-em-si. Ora, se o que conhecemos é uma representação do real, a verdade consistirá, necessariamente, no consenso dos sujeitos cognoscentes em relação a uma determinada representação. A verdade, na ciência moderna, firma-se como fruto de um consenso entre os cientistas. É o que Thomas Kuhn denomina de paradigma. Paralelamente, a interdisciplinaridade, no terreno do conhecimento científico, firma-se como fruto do intercâmbio de conhecimentos entre os diferentes cientistas. E, no plano da docência, a interdisciplinaridade apresenta-se como a pedagogia que tenta fazer ver ao aluno que a verdade possui múltiplas facetas, não apenas uma única abordagem (positivista). É evidente que essa concepção suscita a inconformidade da parte dos espíritos dogmáticos, acostumados à unicidade da verdade e da visão monocausalista das coisas. Ora, essa é uma distorção do que realmente acontece no mundo e no terreno do conhecimento. Sempre somos surpreendidos com novas abordagens, os aspectos sob os quais podemos contemplar um determinado fato são inúmeros, e nós não podemos trancafiar a abordagem do real numa fórmula previsível para todo o sempre. Se dirigirmos os nossos olhares, com atenção, para os conteúdos das disciplinas, num determinado setor do conhecimento, vamos enxergar, mesmo nas entrelinhas, uma relação entre elas, que abre a possibilidade para um trabalho em conjunto. Quando analisamos os conteúdos dos programas dos cursos relacionados à saúde, por exemplo, notamos claramente essa inter-relação de conhecimentos, vivenciamos cristalinamente as possibilidades de trabalhos grupais, sem deformar uma ou outra disciplina. Entendemos perfeitamente que as possibilidades do trabalho em equipe estão abertas para as nossas incursões. Devemos saber fazê-las, para não criarmos abismos intransponíveis ulteriormente. Consagrar a prática da interdisciplinaridade é uma tarefa das mais elevadas na academia, nos tempos atuais. Existem temas que convergem entre as disciplinas e cada professor deve trabalhar, com clareza, tais abordagens. Fatos convergentes devem ser discutidos e esclarecidos, criando, na interdisciplinaridade, a formação generalista com qualidade. Não se deve subtrair as responsabilidades nas disciplinas. Cada professor deve ser conhecedor do seu assunto com profundidade, e a possibilidade das interações não deve dar lugar a devaneios acadêmicos. No próximo item analisaremos alguns casos particulares, acerca de como se pode praticar a interdisciplinaridade no nível dos estágios universitários. O acadêmico deverá entender perfeitamente essas relações, pois na vida prática essas inter-relações continuamente afloram. Podemos exemplificar tomando o profissional médico. Em uma consulta, quantos conhecimentos ele coloca em prática? Quantas disciplinas foram necessárias à sua formação? E, no momento da consulta, ele colocará em pratica todas elas, não isoladamente, mas em conjunto, visando chegar a um diagnostico e posteriormente a um tratamento adequado. Essa visão construtiva do conhecimento deve ser trabalhada desde o início da graduação. Eis a forma em que Piaget entende a dimensão interdisciplinar, aplicada ao terreno da docência: Quanto tempo perdemos em nosso individualismo acadêmico, em nossas elucubrações solitárias. É necessário que cada um de nós mude o olhar sobre o academicismo, para enxergar a possibilidade de um todo. (...). Do ponto de vista pedagógico, estamos, pois, diante de uma situação muito complexa, que comporta um belo programa para o futuro, mas que atualmente ainda deixa muito a desejar. Com efeito, se todo mundo se põe a falar das exigências interdisciplinares, a inércia das situações adquiridas (...) tende à realização de uma simples multidisciplinaridade; trata-se, ao contrário, de multiplicar os ensinamentos, de tal forma que cada especialidade venha a ser, ela própria, abordada dentro de um espírito permanentemente interdisciplinar, ou seja, sabendo cada qual generalizar as estruturas que emprega e redistribuí-las nos sistemas do conjunto, que englobam as outras disciplinas. Trata-se, em outras palavras, de estar imbuídos os próprios mestres de um espírito epistemológico bastante amplo, a fim de que, sem negligenciarem o campo de suas especialidades, possa o estudante perceber, de forma continuada, as conexões com o conjunto do sistema das ciências. Ora, tais homens são atualmente raros [PIAGET, 2002: 22] Estamos perante um grande desafio: reestruturar os conteúdos e planos pedagógicos para construirmos uma proposta de formação do universitário dentro do aspecto humanista, com uma formação baseada na interdisciplinaridade. Provavelmente encontraremos inúmeros obstáculos para que essas idéias sejam praticadas. Mas vale a pena iniciar esse movimento de renovação. Porque dele depende a dimensão humana da formação profissional. V - PERSPECTIVAS PARA A PRÁTICA DA INTERDISCIPLINARIDADE Não há dúvida quanto à necessidade de os estágios universitários serem feitos num contexto interdisciplinar e isso, basicamente, por duas razões: em primeiro lugar, pelo caráter de interdisciplinaridade que hoje distingue a pesquisa científica e, em segundo lugar, pela complexidade da realidade humana visada pela prática do estágio. Mas, se os estágios interdisciplinares são necessários, é preciso que se dê a existência de algumas condições essenciais para que isso aconteça. Mencionemos algumas delas. A primeira consiste em superar o vezo cartorial e compartimentalizado dos departamentos. O cardápio acadêmico oferecido ao aluno deve ser aberto. Essa é, aliás, a idéia fundamental que deveria permear a departamentalização do ensino universitário. Consideramos que se deu um passo importante, no Brasil, com a extinção das antigas cátedras, que muitas vezes tinham se convertido em feudos com príncipes e vassalos. Mas a departamentalização, que deveria corresponder a uma sadia democratização da administração do ensino, por parte da comunidade acadêmica, terminou não acontecendo de forma plena, pois foi deglutida pelo patotismo e a improdutividade. Um início de interdisciplinaridade acontecerá quando os nossos alunos puderem se matricular nas disciplinas que quiserem cursar, sem as atuais barreiras alfandegárias que os impedem de ter acesso a um saber universal. É certo que na formação profissionalizante são necessárias medidas que incluam pré-requisitos para as disciplinas essenciais. Mas a prérequisitação deve ser a mínima possível e não pode, em hipótese alguma, ter como finalidade desencorajar a presença de alunos de outros cursos numa determinada especialidade. Uma boa percentagem no planejamento curricular das disciplinas seria a seguinte: 60% dos créditos nas disciplinas específicas da área profissional e 40% nas disciplinas que o aluno escolhesse livremente (incluídas aí as matérias humanísticas). Outra condição básica, ligada à anterior, é a superação do corporativismo profissional que afeta a muitos cursos. Departamentos da área de engenharia, por exemplo, ficam incomodados com a presença de alunos de física; departamentos de filosofia enxergam como penetras alunos de ciências exatas. Considera-se violação do espaço profissional, em suma, qualquer intento de diversificação e de pluralismo. Essa dificuldade se removeria, em boa medida, se distinguíssemos claramente entre formação universitária e habilitação para o exercício de determinada profissão. Ao passo que para a segunda é necessária, além da formação superior, o reconhecimento por parte do colegiado que representa o grêmio profissional (Ordem dos Advogados, Clube de Engenharia, Conselho Regional de Medicina, etc.), para a primeira não poderia haver barreiras gremiais. No Brasil, ambos os planos muitas vezes se confundem. Condição essencial para a prática da interdisciplinaridade nos estágios é, também, a formação humanística básica do estudante universitário. A queda da qualidade que hodiernamente afeta ao ensino básico no Brasil, reflete-se irremediavelmente no ensino de terceiro grau. A formação essencial quanto à compreensão da história, da cultura e da cidadania, cujas bases deveriam ser deitadas ao longo do primeiro e do segundo graus, hoje não acontece Outra condição importante é a efetiva prática da pesquisa nas Universidades. Salvo alguns cursos que se destacam como exceções, a prática continuada da pesquisa inexiste. Sem falar da pesquisa básica, para cuja efetivação simplesmente não há recursos, por não ser considerada como prioritária pelos órgãos governamentais encarregados do seu financiamento. Os recursos, quando existem, são concentrados em determinadas instituições das áreas metropolitanas da região centro-sul, que conseguiram colocar representantes seus nos conselhos consultivos da CAPES e do CNPQ. As restantes instituições de ensino superior ficam a ver navios. . Luz iluminando caverna na Grécia. Platão atribuía à contemplação filosófica o papel de libertar os homens das sombras da ignorância. Papel semelhante é assinalado, hodiernamente, ao saber interdisciplinar, por pensadores como Piaget ou Bachelard. BIBLIOGRAFIA BACHELARD, Gaston [1974]. Épistémologie. (Textos escolhidos por Dominique Lecourt). Paris: PUF. BITTENCOURT, Raul Jobim [1953].O ensino brasileiro no Império e na República. Rio de Janeiro: Ministério da Guerra. BOURDIEU, Pierre [1984]. Homo Academicus. Paris: Minuit, 1984. CUNHA, Maria Isabel da; LEITE, Denise B. C [1996]. Decisões pedagógicas e estruturas de poder na universidade. Campinas: Papirus. GUSDORF, Georges [1976]. Prefácio. In: JAPIASSÚ, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago. HUME, David [1973]. Investigação sobre o entendimento humano. (Tradução de L. Vallandro). 1a. Edição. São Paulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores. HUME, David [1975]. Sumário do Tratado da Natureza Humana. 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