GESTÃO INTERDISCIPLINAR DO CONHECIMENTO:
BASES EDUCACIONAIS E EPISTEMOLÓGICAS
RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ
COORDENADOR DO CENTRO DE PESQUISAS
ESTRATÉGICAS DA UFJF.
DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UNIVERSIDADE
GAMA FILHO.
PÓS-DOUTORADO NO CENTRE DE RECHERCHES
POLITIQUES RAYMOND ARON – PARIS.
ANTÔNIO JULIANO BREYNER
DOUTOR EM EDUCAÇÃO PELA UNINCOR –
TRÊS CORAÇÕES.
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE JOSÉ DO
ROSÁRIO VELANO – UNIFENAS, MG.
Gestão do conhecimento. Este é um tema de obrigatória atualidade. Num país de
tradição cartorial, como o Brasil, é comum se pensar que administrar pessoas é como
organizar objetos. A nossa longa tradição patrimonialista, bem como o tecnocratismo a
serviço do Estado privatizado por clãs e estamentos, levaram a fazer concluir que os
cidadãos são fichas que podem ser movimentadas ao bel prazer dos tutores. Essa é a pesada
herança das tradições pombalina e contra-reformista, que ensejaram um modelo de moral
social vertical, que ainda tentamos esconjurar.
Ora, a dificuldade na gestão do que até recentemente se denominava de “recursos
humanos” está, justamente, em que o ser humano é uma realidade sui generis, que os
filósofos gregos denominavam de anthrópos, ou seja, aquilo que não tem um lugar definido
(ou tropos). A pedra, a árvore, o animal, o astro, são trópoi, possuem um comportamento
previsível, levando em consideração as variáveis que os cercam. Já os homens fogem a essa
regra. O seu comportamento não pode dar ensejo a uma ciência categórica (do previsível,
segundo Aristóteles), mas apenas a uma espécie de conjectura dialética, discutível por
essência. O problema, do ângulo educacional, radica justamente na pressuposição de que o
homem é totalmente previsível, segundo a doutrina desenvolvida pelos cientificismos do
século XIX (sendo o nosso tresnoitado marxismo acadêmico a última versão de tal atitude
mental, ainda infelizmente subsistente no gramscismo e outras pérolas epistemológicas que
vicejam no universo cultural brasileiro). O nosso sistema de ensino superior estruturou-se
em cima dessa falsa pressuposição. E partiu para conceber currículos acadêmicos
alicerçados em compartimentos estanques, dando ao aluno um magro alimento intelectual,
o suficiente para que se comportasse, na vida profissional, como previsto pelos
planejadores do stablishment.
Pretendemos discutir, neste artigo, a possibilidade de estágios interdisciplinares na
Universidade brasileira, como meio para formar, nos futuros profissionais, uma
mentalidade pluralista na gestão do conhecimento, em aberto confronto com a visão tutelar
herdada de séculos de despotismo esclarecido. Para tanto, desenvolveremos, em primeiro
lugar, alguns conceitos básicos como multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade,
disciplinaridade cruzada e interdisciplinaridade. Aprofundaremos, em segundo lugar, nas
condições teóricas em que se dá a prática da interdisciplinaridade. Analisaremos, em
terceiro lugar, o caráter de disciplinaridade cruzada na tradição universitária luso-brasileira.
Abordaremos, em quarto lugar, as questões da formação nas suas versões generalista,
especializada e interdisciplinar, destacando o papel que cabe às humanidades. Por último,
trataremos acerca das perspectivas práticas da interdisciplinaridade nos estágios
universitários e assinalaremos, também, algumas iniciativas que poderiam ser postas em
execução, nas Universidades brasileiras, para implantar os estágios interdisciplinares.
I - CONCEITOS BÁSICOS
Qual é a natureza dos estágios universitários? Qual é a sua finalidade?
Caracterizemos, em primeiro lugar, a sua natureza: consistem eles basicamente em práticas
ligadas aos conhecimentos sistemáticos transmitidos pelo sistema de ensino aos alunos.
Identifiquemos, a seguir, a sua finalidade: consiste ela na familiarização do futuro
profissional com a prática específica da sua área de trabalho e, paralelamente, na realização
de ações especializadas em benefício da comunidade em que está inserida a Universidade,
ou em prol do aperfeiçoamento desta no plano do ensino e da pesquisa.
Os estágios estão, destarte, vinculados à dinâmica do ensino universitário, que deve
abarcar três patamares: Teorias ou conhecimentos sistemáticos que permitam aprofundar
sine ira ac studio num campo determinado das ciências. Técnicas inseridas no contexto da
aplicação desses conhecimentos teóricos a uma parcela da realidade. Valores ou
pressupostos axiológicos, de índole idéio-afetiva, que agem como polarizadores da ação
humana do cientista ou do profissional, inspirando-a.
Esses três patamares que integram o ensino universitário precisam ser postos em
relação a partir da prática dos estágios, que devem abarcar tanto a parte teórica, quanto a
que diz relação às técnicas e aos valores. Por exemplo, o trabalho de um estudante de
direito num consultório jurídico onde faz estágio, no terreno específico do direito do
trabalho, deve permitir ao jovem bacharelando, sob a orientação do seu supervisor, a
análise da problemática trabalhista concreta que se lhe apresenta, à luz da jurisprudência
tecida ao longo dos anos, bem como também à luz da história da formação social do Estado
brasileiro e da sua tendência paternalista. Mas não bastam unicamente as relações entre a
teoria e a técnica jurídica: é necessário, também, que o jovem bacharelando se sensibilize
perante o valor da justiça, que deve pautar a sua ação profissional, descobrindo
vivencialmente as raízes humanísticas da ética do advogado, que o torna um bacharel em
leis e não simplesmente um rábula.
Antes, porém, de discutir a questão da interdisciplinaridade nos estágios, torna-se
necessário fixar algumas noções básicas: multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade,
disciplinaridade cruzada e interdisciplinaridade [cf. Piaget, 1973; Japiassu, 1973: 14 seg.;
Japiassu, 1976].
Por multidisciplinaridade entende-se um conjunto de disciplinas oferecidas
simultaneamente, sem que se explicitem as possíveis relações entre elas. Por
pluridisciplinaridade entende-se a justaposição de diversas disciplinas colocadas no mesmo
nível hierárquico, de forma a aparecerem algumas relações entre elas. Por disciplinaridade
cruzada entende-se a polarização rígida de várias disciplinas ao redor de uma disciplina que
é considerada mais importante. Por interdisciplinaridade entendemos o intercâmbio
sistemático de experiências e conhecimentos de especialistas de diferentes campos do
saber, a respeito de um determinado objeto material, que pode ser a forma específica e o
método, segundo os quais cada um deles chegou ao grau de conhecimento especializado já
adquirido.
O cientista e educador suíço Jean Piaget.
II - A INTERDISCIPLINARIDADE
O interdisciplinar, para Hilton Japiassu [1973: 14-15], constitui "a forma mais forte
do pluridisciplinar". Uma atividade interdisciplinar tem lugar, no sentir do mencionado
autor, quando
Ela incorpora os resultados de vários especialistas, quando toma emprestado a outras
disciplinas instrumentos e técnicas metodológicas, fazendo uso de esquemas conceituais e de análises
que se encontram nos diversos domínios do saber, a fim de os fazer integrar e convergir, depois de
tê-los comparado e julgado.
Após o advento da ciência moderna e da quebra da unidade cultural da Europa (que
se exprimia no latim medieval e na teologia), tornou-se necessária a busca de uma nova
forma de síntese que conferisse unidade ao pensamento humano. Foi conhecida, na busca
desse intento, a proposta de Gottlieb W. Leibniz (1646-1716), em prol da formulação de
uma ars combinatória ou mathesis universalis (de uma lógica matemática, diríamos hoje),
que permitisse aos cientistas se comunicarem entre si com a maior precisão possível,
superando os riscos da ambigüidade lingüística.
A nova física formulada por Galileu Galilei (1564-1642) e por Isaac Newton (16321727), de outro lado, colocou em xeque a tranqüila perspectiva realista que tinha inspirado
as grandes sínteses do saber universal e que consistia na suposição de que o nosso
conhecimento é capaz de apreender as coisas em si mesmas, desvendando as suas
características essenciais. Ora, se isso fosse certo, não se entenderia por que a humanidade
aceitou, durante tantos séculos, a hipótese geocêntrica para explicar os movimentos dos
corpos celestes. A revolução copernicana ensejou uma outra revolução não menos
importante, cujos formuladores foram David Hume (1711-1776) e Immanuel Kant (17241804): a descoberta da perspectiva transcendental, segundo a qual o nosso conhecimento
não apreende as coisas em si mesmas, mas apenas elabora representações delas. À luz dessa
nova posição, não haveria, de um lado, verdades absolutas acerca do universo, repousando
a verdade científica no consenso dos cientistas acerca de determinada hipótese,
devidamente verificada.
O filósofo alemão Georg Wilhelm Hegel, que
destacou, na sua obra principal, A Fenomenologia do
Espírito, a índole essencialmente dialética da razão
humana.
Georg W. Hegel (1770-1831) salientou a dialeticidade que afeta a todas as
representações que a razão humana tece do real. Essas representações integram o mundo da
cultura, que é, como frisa Miguel Reale [1977: 165], "intrinsecamente dialético". De acordo
com essa concepção, a apreensão do real por parte dos cientistas far-se-á de forma parcial e
contraposta, jamais de maneira unilinear e definitiva. A racionalidade da apreensão do
mundo não se identifica exclusivamente com uma determinada representação, pois
ninguém é capaz de abarcar todos os pontos de vista. Daí vem a idéia de Gaston Bachelard
(1884-1963) de que o único racionalismo possível é o integral ou dialético, que incorpore,
num consenso altamente especializado, as várias representações do mundo tecidas pelos
cientistas. Essa é a raiz da interdisciplinaridade.
A respeito, escreve o pensador francês:
Trata-se (...) de multiplicar e de apurar as estruturas, o que do ponto de vista racionalista
deve-se exprimir como uma atividade de estruturação, como uma determinação da possibilidade de
múltiplas axiomáticas, para fazer frente à multiplicação das experiências. Uma das características
mais novas da epistemologia contemporânea, é que as diferentes aproximações experimentais do
real, revelam-se solidárias de uma modificação axiomática das organizações teóricas. O racionalismo
integral não poderá, pois, ser mais do que o domínio das diferentes axiomáticas de base. E designará
o racionalismo como uma atividade de dialética, pois as axiomáticas diversas se articulam entre elas
dialeticamente [Bachelard, 1974: 108-109].
O pensador francês Gaston Bachelard, um dos mais
importantes teóricos da interdisciplinaridade, no século
XX.
Para Jean Piaget (1896-1980), a interdisciplinaridade abarca um ponto de vista
genético. Consiste ela na reconstrução, feita pelos estudiosos da epistemologia (os
geneticistas), do processo seguido por um cientista determinado na elaboração do próprio
pensamento. Aqui entra, para o pensador suíço, a questão da interdisciplinaridade:
Concebida dessa forma, a epistemologia genética comporta pesquisas essencialmente
interdisciplinares. A análise de toda forma particular de conhecimento supõe, efetivamente, a
colaboração de especialistas da disciplina em questão, de historiadores que tracem a sociogênese, de
psicólogos para estudar a formação das noções elementares (...), de lógicos e de cibernéticos para
elaborar os modelos formais ou artificiais, etc. Na realidade, todo esse mundo seria evidentemente
inútil, se cada sujeito de conhecimento possuísse uma memória completa e infalível, que lhe
permitisse reconstruir a gênese das suas próprias idéias (...). Mas como a atividade cognitiva é
orientada à solução dos problemas novos que apresenta a realidade e não à conservação ou à
reconstrução de um passado interno e confuso, nenhum criador científico, por poderoso que seja o
seu gênio, é capaz de dominar as questões de onde provém a formação quase totalmente inconsciente
da sua própria inteligência [Piaget, 1973: I, 9-10].
Miguel Reale observa que essa complexidade do mundo da cultura, base da
interdisciplinaridade, decorre do seu caráter dialético. A propósito, o filósofo brasileiro
frisa:
Parece-me não padecer dúvida que o mundo da cultura (o que quer dizer tudo aquilo que se
tornou ou venha a se tornar momento de participação ou de consciência humana e objeto de seu
trabalho criador e transformador), os fenômenos naturais, inclusive, enquanto objetos de ciência, isto
é, enquanto sistema de conhecimentos e linguagem técnica, tudo, em suma, que é constituído pela
espécie humana através do tempo, é intrinsecamente dialético. O mundo histórico, como o intuiu
genialmente Vico, é mundo feito pelo homem e, como tal, projeção do espírito criador que o instaura
e dinamiza, valendo-se dos dados naturais, através desse processo incessante de subjetivações e
objetivações que constitui a experiência humana [Reale, 1977:165].
O filósofo brasileiro Miguel Reale, o
principal representante atual da corrente
culturalista.
III - A DISCIPLINARIDADE CRUZADA NA TRADIÇÃO LUSO-BRASILEIRA
O ensino jesuítico, que configurou em Portugal a segunda escolástica, constitui um
caso típico de disciplinaridade cruzada que consiste, como frisamos atrás, na polarização
rígida de várias disciplinas ao redor de uma disciplina que é considerada como mais
importante. Tudo, no ensino escolástico, girava ao redor da teologia. No Brasil, essa
tendência ensejou a corrente de pensamento denominada de saber de salvação, que
correspondia às necessidades de catequização dos índios. As reformas efetivadas pelo
Marquês de Pombal no século XVIII substituíram a teologia como disciplina fundamental,
pela ciência aplicada a serviço do Estado, pomposamente denominada de aritmética
política. Diríamos que o modelo de disciplinaridade cruzada estruturava-se ao redor da
variável segurança do Estado, considerado como fonte de racionalidade. Tal paradigma,
reforçado pelo modelo napoleônico de faculdades isoladas, veio inspirar o surgimento do
sistema brasileiro de ensino superior voltado para a profissionalização, a qual, ao seu turno,
deveria ser consentânea com as necessidades do Estado. Esse modelo pombalinonapoleônico, que se tinha estruturado ao redor da ciência aplicada, reforçou-se, a partir de
1870, com o ingresso do positivismo como religião oficial do saber, na Academia Militar e
na Escola Politécnica, criada esta última, em 1874, por José Maria da Silva Paranhos,
visconde do Rio Branco (1819-1880) [Paim, 1984: 434-435; cf. Bittencourt, 1953; Paim,
1981].
Das críticas efetivadas contra o positivismo por Otto de Alencar (1874-1912) e
Manoel Amoroso Costa (1885-1928), na Escola Politécnica, e pela Associação Brasileira
de Educadores surgiu um momento de arejamento intelectual, que permitiu a estruturação
da Universidade do Distrito Federal em 1935 e da Universidade de São Paulo em 1937,
entidades abertas à pluridisciplinaridade e à pesquisa. No entanto, ao longo das quatro
últimas décadas, retomou-se o modelo pombalino-napoleônico da Universidade puramente
profissionalizante, dividida em compartimentos estanques, que impedem o diálogo entre as
várias áreas do saber [cf. Prota, 1987]. À presença legiferante e cartorial do Ministério da
Educação (que passou a fixar currículos mínimos, muitas vezes sem a participação da
comunidade acadêmica), juntou-se o negativo binômio profissionalização-massificação do
ensino superior, com a conhecida queda de nível e o banimento da pesquisa, das
humanidades e da interdisciplinaridade [cf. Schwartzman, 1981].
O filósofo Gotlieb Wilhelm Leibniz, o mais
ilustre membro da Academia Prussiana de
Ciências, no século XVII.
Evoluiu-se, paulatinamente, ao longo das décadas de 60 e 70 do século passado, no
sentido de enquadrar a Universidade, de forma exclusiva, a serviço das necessidades do
Estado autoritário, bem no sentido da vã tentativa de manter ocupada a juventude para que
não enveredasse pela trilha da contestação política, bem no contexto da formação dos
profissionais de que o país precisava para manter vivo o surto desenvolvimentista. O
resultado não foi nem um nem outro, em grande medida devido ao banimento das
humanidades, ao abandono da educação básica, ao deterioro dos cursos técnicos
intermédios e ao descaso para com a pesquisa e a cultura superior. A insatisfação política
aumentou e as necessárias reformas foram substituídas pela mudança dos atores no
comando da maquinaria do ensino burocratizado. As esquerdas, após a abertura
democrática da década de 80, terminaram tomando conta da Universidade, sem que
tivessem presente um modelo acadêmico que renovasse verdadeiramente o ensino superior.
O quadro atual de atomização do saber na Universidade brasileira é bastante agudo.
Os departamentos privatizaram o conhecimento e passaram a criar dificuldades para os
alunos que buscassem formas mais abertas e universais de formação, mediante a escolha de
disciplinas de várias áreas. Passou-se a considerar inconveniente, por exemplo, que um
estudante de física ou de química freqüentasse regularmente algumas disciplinas filosóficas
como cosmologia ou teoria do conhecimento. Arrepios cartoriais causa a idéia de projetos
integrados de pesquisa entre vários Centros. A Universidade brasileira atual, notadamente a
pública, corporativizou-se em grupos que reivindicam estabilidade e melhoria salarial, sem
que se discuta a questão de fundo que lhe dá identidade: como garantir a formação
científica e profissional, bem como o diálogo interdisciplinar. Prova do desinteresse
reinante em face das questões substantivas da educação e da política do conhecimento é o
conteúdo do jornal do principal sindicato de docentes universitários do Brasil, o ANDES,
quase todo ele dedicado a xingar o Presidente de plantão, seja ele Lula ou Fernando
Henrique, e a repetir a ladainha já conhecida de consignas contra o FMI, a globalização e o
provão, com que o Ministério da Educação tentava avaliar, entre 1998 e 2003, os cursos
superiores.
Em não poucas Universidades Federais a avaliação da produtividade acadêmica dos
docentes, ordenada pelo governo, sofreu sérias distorções. Como a regulamentação da
medida ficou em mãos da burocracia petista que tomou posse da máquina administrativa
das Universidades, passou-se a conferir mais valor aos atos de assembleísmo do que à
produção do conhecimento. Valia mais pontos, nos formulários de avaliação, pertencer a
um colegiado de curso, com a sua insossa rotina de reuniões que nada decidem, do que
participar de um grupo de discussão entre pesquisadores. Mais pontos ganhava o ativista
burocrata que assistia a uma assembléia ou a uma reunião de departamento, do que o
esforçado docente que tinha conseguido publicar um artigo científico em revista de renome
internacional. Nos dois últimos anos, a mediocridade do baixo clero passou a dar a tônica,
tendo todo mundo incorporado a GED, de forma automática e com total esquecimento dos
mecanismos de avaliação periódica.
Os aumentos salariais reivindicados pelos grevistas passaram a ser feitos de maneira
a não levar em consideração produtividade ou excelência acadêmica. Convenhamos que a
última proposta do Ministério da Educação, em face da greve de 2005, pelo menos
preservava, em alguma medida, a avaliação por desempenho e titulação. Ora, o
sindicalismo docente conseguiu fazer proposta mais “democrática” ainda, deixando de lado
as preocupações com excelência ou produtividade. Todo mundo no mesmo patamar
salarial, inclusive os aposentados. Isso não se vê em países do mundo desenvolvido, nem
sequer em nações semelhantes ao Brasil em termos de desenvolvimento, como a Índia. É a
generosidade macunaímica escancarada.
Não é necessária bola de cristal para ver o que aconteceu com os estágios, nesse
contexto de atomismo, corporativismo e massificação profissionalizante. Simplesmente
converteram-se em mais um ritual acadêmico para a obtenção do canudo. Não há
integração interdisciplinar a esse nível, simplesmente porque ela não aconteceu ainda no
plano do conhecimento.
IV - FORMAÇÃO GENERALISTA, ESPECIALIZADA E INTERDISCIPLINAR
A prática da interdisciplinaridade pressupõe, como pano de fundo, a formação
humanística. Sem ela, são vãs as tentativas de fazer surgir, no formando, uma atitude
compreensiva em face do mundo. O pressuposto é basicamente este: a realidade é
complexa. O conhecimento pode dar testemunho dela, mas não esgota-la. O mundo da vida
é muito mais complexo e rico do que o da representação. Ora, essa atitude de respeito em
face do real, implica no reconhecimento da limitação humana diante do ser. O aspecto
essencial da formação humanística é esse: a tomada de consciência da nossa realidade
humana, no contexto da mais ampla presença do ser.
A formação humanística destaca duas variáveis: de um lado, a lição da filosofia
ocidental, no que tange ao sentido da existência humana, tendo como pano de fundo a
incomensurabilidade do ser. De outro lado, o estudo das manifestações dessa consciência,
ao longo da história das civilizações. O homem, no seu devir, foi tentando dar conta da
realidade, buscando um sentido para a sua própria existência e, nessa busca pelo sentido e
pela manutenção da vida, foi elaborando representações de si próprio e do mundo. Tais
representações, nos aproximadamente cem mil anos que vão desde o aparecimento da
espécie sapiens sapiens até os nossos dias, foram se aperfeiçoando, sendo que, no início,
não eram mais do que balbuciantes mitos que tentavam representar, de maneira plástica, a
perplexidade humana diante do Universo, bem como em face das grandes questões que
sempre angustiaram aos homens: finitude, doença, morte, busca da felicidade, anseio de
imortalidade. Mas, também, perplexidade diante da beleza da natureza, diante da figura
humana, em face da descoberta do amor, da violência, dos paradoxos da existência. O lento
nascimento das civilizações prende-se a essas representações míticas. Delas emerge a
Filosofia, no século VII ª C., na Jônia.
A segunda variável contemplada pelas humanidades é, justamente, a do estudo
dessas variadas representações culturais, bem como do caminho trilhado pela razão
humana, na Grécia e no Ocidente, colocando em relação a representação filosófica com as
outras manifestações da cultura: arte, literatura, instituições sociais e religião. Uma pessoa
com formação humanística é aquela que tem consciência dessas duas variáveis. Justamente
por ter essa consciência, a pessoa formada em humanidades adota, diante do fenômeno
humano e das suas manifestações culturais, uma atitude de admiração, de respeito, de saber
ouvir. Porque no Brasil perdeu-se o contato com as humanidades, é que o nosso sistema de
ensino mergulhou na mediocridade que o afeta hoje. O sistema de ensino superior cuspe, no
mercado, profissionais mal-formados, que não têm idéia da complexidade do ser humano e
que pretendem, em vã tentativa, equacionar os grandes problemas do homem, do ângulo da
aplicação de técnicas. Temos, assim, por exemplo, advogados que sabem, de cor e salteado,
o teor dos códigos, mas são absolutamente insensíveis em face da angústia humana.
Médicos que se prevalecem do seu saber científico para dominarem os seus pacientes, sem
que intermedeie, entre eles e aqueles que os procuram, um diálogo dignificante. Ora,
convenhamos que a qualidade no atendimento profissional deve repousar sobre a base que é
necessária para que as relações de confiança não se esfacelem: o respeito para com o ser
humano. E essa dimensão valorativa somente pode ser gerada pela formação humanística.
Se quisermos reerguer o sistema de ensino brasileiro, o primeiro que deve ser feito é
reestruturar a formação humanística. Os alicerces dela devem ser dados já no ciclo básico,
naquilo que passou a ser denominado de “educação para a cidadania”. As quatro primeiras
séries do primeiro grau deveriam estar direcionadas para essa formação, sem a qual não há
consciência cívica. Uma vez garantida a educação para a cidadania nos primeiros anos da
formação básica (com a assimilação de valores básicos sobre os quais ancora a vida
coletiva, como liberdade e responsabilidade), pode-se ir construindo o grande edifício da
formação humanística, a partir já do segundo grau, que deveria ter como finalidade formar
cidadãos do mundo. O Instituto de Humanidades dedicou-se, durante vários anos, a estudar
modelos de educação para a cidadania, e colocou, para a discussão no meio acadêmico,
uma proposta alicerçada nos valores da liberdade e da responsabilidade pessoal. Tal
proposta encontra-se no volume intitulado Cidadania: o que todo cidadão precisa saber
[cf. Paim, Prota, Vélez, 1999].
A formação universitária deve dar continuidade à formação humanística, iniciada
nos ciclos anteriores. O Brasil, infelizmente, passou a identificar, de maneira positivista,
formação superior com formação profissional especializada. Ora, nenhuma das duas dar-seá se não forem inspiradas, já desde o início, pela formação humanística. Digamos que esta é
o que muitos passaram a considerar, depreciativamente, como formação generalista. A
formação profissional seria a que comumente se chama de formação especializada. O
sistema de educação superior de um país como o Brasil deve se preocupar com ambas as
dimensões, a generalista e a profissional especializada. Certamente deverá ser mudado o
tradicional sistema de referência do ensino superior no Brasil, submetido à concepção
profissionalizante dos ciclos pombalino e positivista, como se o máximo a que pudesse
aspirar alguém fosse converter-se em ficha ou engrenagem do Estado empresário.
Lembremos as palavras que dão início ao Documento do Congresso de Locarno, realizado
em 1997, sobre o interdisciplinar na Universidade:
Se as condições iniciais dos diferentes problemas mudam incessantemente e se uma reforma
milagrosa é simplesmente impossível, estamos, então, condenados a assistir, impotentes, à
decadência progressiva, mas certa, das universidades? A resposta será certamente não, se aceitarmos
mudar de sistema de referência.
Estamos convencidos de que as Universidades e Centros de formação superior
devem retomar a discussão sobre a formação profissional, remetendo a palavra generalista
não para as idiossincrasias acadêmicas, mas sim para a vertente da formação humanística.
Para ser generalista, devemos entender que o cidadão que cursa uma faculdade deverá
possuir todas as informações necessárias para compreender o fenômeno humano, no
contexto da história das civilizações.
O ponto de partida dessa empreitada deve ser a crítica aprofundada ao velho modelo
pombalino, crítica que, aliás, já aconteceu no Brasil nos anos vinte do século passado, de
onde emergiu a idéia de Universidade. A propósito de tal atitude crítica, escrevia Antônio
Paim, em 1981:
A instituição (universitária), nos seus cinqüenta anos de existência, revelou-se capaz de
formar profissionais qualificados, em alguns setores limitados, a exemplo dos estabelecimentos
isolados que a antecederam. Mas não abrigou qualquer dos segmentos do saber desinteressado: a
pesquisa científica, a pesquisa filosófica e a extensão universitária. As declarações de intenção em
contrário e mesmo as tentativas de leva-las à prática – como ocorreu depois de 1964, em matéria de
pesquisa científica, em decorrência da iniciativa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
de patrocina-la – não conseguem transforma-la radicalmente. A Universidade brasileira é a hidra da
profissionalização e até algo tão distante dessa bitola, como a filosofia, é forçada a enquadrar-se. E
justamente o afã de tudo reduzir a tais parâmetros, ainda quando assediada pela massificação, é que a
precipitaria na presente crise em que se encontra. Dificilmente conseguiremos equacionar
adequadamente este problema, se não nos interrogarmos sobre as atribuições que nossa cultura deu
ao ensino superior desde fins do século XVIII, se não criticarmos duramente o conceito de ciência
que se sedimentou. E dessa mistura é que se formou a idéia consolidada e arraigada de Universidade,
expressa, de modo insofismável, na prática que a institucionalizou. As tradições culturais
permanecem insuperadas enquanto não reconhecemos sua força e importância. No caso particular da
Universidade, deve-se proclamar, com toda ênfase, que é inútil pretender reforma-la sem interessar o
seu Corpo Docente e outras parcelas da intelectualidade num debate amplo, do qual possa resultar
novo entendimento, a exemplo do que ocorreu nos anos vinte. A Universidade – como a sociedade,
em seu todo – não se reforma por decreto. É preciso criar uma circunstância nova e dela fazer um
exemplo polarizador. E persistir nesse caminho [Paim, 1981: 14-15].
Uma alternativa, para o Brasil, seria a de buscar um modelo diversificado de
Universidade, abandonando, de vez, a idéia monolítica que terminou prevalecendo e que é
continuada nas atuais propostas do governo Lula. Leonardo Prota, na sua obra Um novo
modelo de Universidade, já indicou, há vários anos, de que forma poderia ser diversificada
a idéia de Universidade, atendendo para as diferenças regionais, de um lado, mas, de outro,
incorporando a preocupação com o resgate da formação humanística. A respeito, frisava o
mencionado autor na introdução à obra citada:
Retomando o assunto da Universidade brasileira, numa rápida avaliação crítica,
pretendemos salientar a diferente natureza da crise na Europa e no Brasil e a necessidade de
abandonar a idéia de um modelo único de Universidade, devido às diferentes culturas regionais que
compõem essa imensidão que é o Brasil; verificar, sobretudo, a necessidade de mudança de
mentalidade para que se torne possível a idéia de Universidade: o espírito crítico é o caráter
distintivo da instituição universitária, e não a profissionalização, que, por sua vez, se deve manter
num plano complementar. A Universidade deve oferecer, privativamente, uma formação básica
(entendida como iniciação aos principais tipos de processos intelectuais) e uma formação
especializada (entendida como treinamento à prática efetiva de um método de pesquisa, que leve a
uma efetiva participação na pesquisa científica). A formação profissional, por sua vez, oferecida fora
ou dentro da Universidade, terá sempre como pressuposto uma boa formação cultural. À luz dessa
nova mentalidade a ser criada, nossa breve análise irá abarcar as funções clássicas e tradicionais
atribuídas às Universidades, verificando que elas se revestem de novo enfoque e de novos valores, de
tal forma que, uma vez superada a visão unilateral da profissionalização por uma visão globalizante
da formação cultural, os demais tópicos, recentemente apontados como focos da crise universitária,
assumiriam feições diferentes com possibilidade de mais fácil solução [Prota, 1987: 11-12].
A formação humanística seria a base sobre a qual poder-se-ia colocar a
diversificação das Universidades e dos Centros de Formação Superior. Consideramos que a
adoção de uma fase introdutória de estudos humanísticos (um ou dois anos), antes da
formação propriamente profissionalizante, seria, talvez, uma alternativa válida para o
Brasil. Os alunos teriam oportunidade de se familiarizar com o meio universitário, nessa
fase introdutória, na qual receberiam maciços conhecimentos de humanidades, estruturados
ao redor de um Curso de História da Cultura, utilizando, por exemplo, o roteiro proposto
pelo Instituto de Humanidades para o Curso de Humanidades, com uma disciplina
introdutória denominada de “A cultura ocidental” e quatro disciplinas subseqüentes
(“Política”, “Moral”, “Religião” e “Filosofia”) [cf. Instituto de Humanidades, 2004: 5-51].
Não há dúvida de que a formação profissionalizante ministrada sobre essa base humanística
terá, como resultado, a presença de profissionais muito mais abertos ao mundo de hoje,
bem como indivíduos sensíveis às questões éticas e humanas em geral. Em resumo, sairiam
das nossas Universidades profissionais mais competentes para enfrentarem a complexidade
do mundo globalizado. Lembremos, antes de prosseguir, que a proposta de educação
humanística aqui colocada, é perfeitamente viável dentro do atual sistema de
departamentalização do ensino universitário. No próximo item discutiremos este aspecto
com maior profundidade.
Os professores Leonardo Prota, Antônio
Paim e Ricardo Vélez Rodríguez, em
reunião promovida pelo Instituto de
Humanidades, em Londrina, em
setembro de 2003.
Torna-se imperativo que as Universidades sejam sérias e se transformem, enquanto
há tempo. Não há dúvida de que a sociedade procura por um novo modelo de ensino
superior. Muitas instituições não estão conseguindo preencher os números de vagas
oferecidas, a ociosidade é grande, não são poucos os cursos que estão sendo fechados.
Estamos convencidos de que, em pouco tempo, as Universidades e Centros de Estudos
Superiores que estiverem oferecendo cursos sem qualidade, perderão o lugar para os que
estiverem comprometidos com a seriedade do ensino superior.
A adequada estruturação das Universidades e dos Centros de Ensino Superior,
adotando a abertura às humanidades, certamente abrirá caminho para a institucionalização,
neles, na formação profissional, da interdisciplinaridade. Isso decorre do fato de que a
pesquisa, no mundo atual, é de índole interdisciplinar. A Universidade tendo recuperado a
sua função primigênia de Universitas scientiarum (universalidade dos conhecimentos) e de
Universitas scholarium et magistrorum (universalidade dos que aprendem e dos que
ensinam), superará, de forma satisfatória, a encruzilhada em que se encontra, em face da
opção puramente profissionalizante e corporativista, que está fazendo minguar o universo
educacional brasileiro. Hoje, a Universidade é identificada, erroneamente, com prédios,
campi, funcionários, mas o binômio professor-aluno, que é a sua essência, praticamente
desapareceu, no contexto do grevismo endêmico e do corporativismo politizado. Ser
professor ou pesquisador, ser aluno dedicado, não vale mais a pena. O espaço foi ocupado
pelos carreiristas de ocasião, aqueles que fazem, do espaço acadêmico, degraus para
carreiras políticas ou peleguistas. Há muitos militantes e poucos amantes da ciência.
Retomando o tema, que estamos discutindo, da interdisciplinaridade no contexto da
formação universitária, Piaget deixou clara a relação entre aquela e a pesquisa científica, no
seguinte texto:
Enfim, para encerrar estas reflexões acerca do futuro do ensino das ciências, é preciso ainda
insistir em um ponto central, mas que se restringe essencialmente aos níveis secundários e
universitários: o aspecto cada vez mais interdisciplinar que assume, necessariamente, a pesquisa em
todos os domínios. Ora, mesmo atualmente, os futuros pesquisadores continuam sendo muito mal
preparados nesse particular, devido a ensinamentos que visam à especialização e resultam, com
efeito, na fragmentação, por não se compreender que todo aprofundamento especializado leva, pelo
contrário, ao encontro de múltiplas interconexões. Estamos aqui abordando um problema que diz
respeito tanto à epistemologia geral das ciências, quanto à sua metodologia; mas parece incontestável
que o futuro do ensino das ciências irá depender, cada vez mais, da sua epistemologia, coisa que já se
evidencia através de não poucos indícios [PIAGET, 2002: 20-21].
A análise atenta do que escreveu Jean Piaget nos leva a ponderar sobre a real
importância da interdisciplinaridade na universidade. Sem perspectiva interdisciplinar,
simplesmente desaparece a idéia de Universidade. Deve-se compreender que o ensino na
universidade se valoriza quando está aliado à pesquisa. Se a interdisciplinaridade é peça
fundamental para a pesquisa, também o é para o ensino, sendo que ambos, ensino e
pesquisa, são as peças basilares da Universidade. O preconceito contra a
interdisciplinaridade decorre, segundo Piaget, da perspectiva ensejada pelo positivismo, que
parte da suposição de uma observação absolutamente objetiva, da qual se deduziriam,
logicamente, leis imutáveis. A propósito, escreve o pensador suíço:
O desmembramento das disciplinas científicas se explica, com efeito, pelos preconceitos
positivistas. Numa perspectiva onde apenas contam os observáveis, que cumpre simplesmente
descrever e analisar, para então extrair as leis funcionais, é inevitável que as diferentes disciplinas
pareçam separadas por fronteiras mais ou menos definidas e mesmo fixas, já que estas se relacionam
com a diversidade das categorias de observáveis que, por sua vez, estão relacionadas com nossos
instrumentos subjetivos e objetivos de registro (percepções e aparelhos). (...) A causalidade consiste,
pois, numa composição de produções e observações, tal como as operações lógico-matemáticas, com
a diferença de que estas, no plano físico, são então atribuídas aos próprios objetos, assim
transformados em operadores. Nesse caso, a realidade fundamental não é mais o fenômeno ou o
observável, e sim a estrutura subjacente, reconstituída por dedução e que fornece uma explicação
para os dados observados. Mas, por isso mesmo, tendem a desaparecer as fronteiras entre as
disciplinas, pois as estruturas ou são comuns (tal como entre a Física e a Química, que Augusto
Comte acreditava irredutíveis uma à outra), ou solidárias umas com as outras (como, sem dúvida,
haverá de ser o caso entre a Biologia e a Físico-Química) [Piaget, 2002: 21].
A interdisciplinaridade advoga, para si, a intencionalidade de reunião de
conhecimentos, onde a troca de informações é necessária e relevante para a produção do
conhecimento. Não se espera uma profunda mudança, uma revolução de paradigmas, mas
sim um trafegar tranqüilo, paulatino e constante. Hoje o professor deve entender que sua
disciplina não é, isolada, a mais importante. Deve, pelo contrário, pressupor que as
disciplinas são formativas em seu conjunto, que a epistemologia flui na interlinearidade.
Toda e qualquer disciplina, em algum momento, relaciona-se com outra. O professor
deverá estar aberto para esse entendimento, para que mostre as correlações existentes na
construção do conhecimento. Essa complementaridade, esse alicerce é proposto dentro da
interdisciplinaridade, e trabalhar com essas possibilidades é um verdadeiro desafio para
nós, professores, que não estamos acostumados a esse tipo de abordagem epistemológica.
No fundo da questão da interdisciplinaridade, descobrimos um problema relativo à
fundamentação da verdade. A dimensão positivista, atrás criticada, parte do pressuposto de
que o verdadeiro é algo absolutamente objetivo, como se nós pudéssemos apreender a
essência substancial da realidade (Kant diria o noúmeno). A verdade, para esta perspectiva,
consiste no que os escolásticos denominavam de adequatio intellectus ad rem (adequação
do entendimento à coisa), como se a realidade imprimisse a sua matriz no entendimento, à
maneira da forma que é impressa na cera. Trata-se da perspectiva denominada de realista,
que entrou em colapso com a formulação da ciência moderna, ao ensejo da nova física de
Galileu e Newton.
O filósofo alemão Immanuel Kant, sistematizador da
Perspectiva Transcendental na sua obra Crítica da
Razão Pura (1785).
A interdisciplinaridade, no entanto, afina-se com a denominada perspectiva crítica
ou transcendental, formulada, no século XVIII, por David Hume (na sua Investigação
sobre o entendimento humano) e por Immanuel Kant (na Crítica da razão pura). Para esta
perspectiva, o nosso entendimento possui a capacidade de elaborar representações do real,
ao ensejo da experiência, sem que consigamos chegar à apreensão direta da coisa-em-si.
Ora, se o que conhecemos é uma representação do real, a verdade consistirá,
necessariamente, no consenso dos sujeitos cognoscentes em relação a uma determinada
representação. A verdade, na ciência moderna, firma-se como fruto de um consenso entre
os cientistas. É o que Thomas Kuhn denomina de paradigma. Paralelamente, a
interdisciplinaridade, no terreno do conhecimento científico, firma-se como fruto do
intercâmbio de conhecimentos entre os diferentes cientistas. E, no plano da docência, a
interdisciplinaridade apresenta-se como a pedagogia que tenta fazer ver ao aluno que a
verdade possui múltiplas facetas, não apenas uma única abordagem (positivista).
É evidente que essa concepção suscita a inconformidade da parte dos espíritos
dogmáticos, acostumados à unicidade da verdade e da visão monocausalista das coisas.
Ora, essa é uma distorção do que realmente acontece no mundo e no terreno do
conhecimento. Sempre somos surpreendidos com novas abordagens, os aspectos sob os
quais podemos contemplar um determinado fato são inúmeros, e nós não podemos
trancafiar a abordagem do real numa fórmula previsível para todo o sempre.
Se dirigirmos os nossos olhares, com atenção, para os conteúdos das disciplinas,
num determinado setor do conhecimento, vamos enxergar, mesmo nas entrelinhas, uma
relação entre elas, que abre a possibilidade para um trabalho em conjunto. Quando
analisamos os conteúdos dos programas dos cursos relacionados à saúde, por exemplo,
notamos claramente essa inter-relação de conhecimentos, vivenciamos cristalinamente as
possibilidades de trabalhos grupais, sem deformar uma ou outra disciplina. Entendemos
perfeitamente que as possibilidades do trabalho em equipe estão abertas para as nossas
incursões. Devemos saber fazê-las, para não criarmos abismos intransponíveis
ulteriormente. Consagrar a prática da interdisciplinaridade é uma tarefa das mais elevadas
na academia, nos tempos atuais.
Existem temas que convergem entre as disciplinas e cada professor deve trabalhar,
com clareza, tais abordagens. Fatos convergentes devem ser discutidos e esclarecidos,
criando, na interdisciplinaridade, a formação generalista com qualidade. Não se deve
subtrair as responsabilidades nas disciplinas. Cada professor deve ser conhecedor do seu
assunto com profundidade, e a possibilidade das interações não deve dar lugar a devaneios
acadêmicos. No próximo item analisaremos alguns casos particulares, acerca de como se
pode praticar a interdisciplinaridade no nível dos estágios universitários.
O acadêmico deverá entender perfeitamente essas relações, pois na vida prática
essas inter-relações continuamente afloram. Podemos exemplificar tomando o profissional
médico. Em uma consulta, quantos conhecimentos ele coloca em prática? Quantas
disciplinas foram necessárias à sua formação? E, no momento da consulta, ele colocará em
pratica todas elas, não isoladamente, mas em conjunto, visando chegar a um diagnostico e
posteriormente a um tratamento adequado. Essa visão construtiva do conhecimento deve
ser trabalhada desde o início da graduação. Eis a forma em que Piaget entende a dimensão
interdisciplinar, aplicada ao terreno da docência:
Quanto tempo perdemos em nosso individualismo acadêmico, em nossas elucubrações
solitárias. É necessário que cada um de nós mude o olhar sobre o academicismo, para enxergar a
possibilidade de um todo. (...). Do ponto de vista pedagógico, estamos, pois, diante de uma situação
muito complexa, que comporta um belo programa para o futuro, mas que atualmente ainda deixa
muito a desejar. Com efeito, se todo mundo se põe a falar das exigências interdisciplinares, a inércia
das situações adquiridas (...) tende à realização de uma simples multidisciplinaridade; trata-se, ao
contrário, de multiplicar os ensinamentos, de tal forma que cada especialidade venha a ser, ela
própria, abordada dentro de um espírito permanentemente interdisciplinar, ou seja, sabendo cada qual
generalizar as estruturas que emprega e redistribuí-las nos sistemas do conjunto, que englobam as
outras disciplinas. Trata-se, em outras palavras, de estar imbuídos os próprios mestres de um espírito
epistemológico bastante amplo, a fim de que, sem negligenciarem o campo de suas especialidades,
possa o estudante perceber, de forma continuada, as conexões com o conjunto do sistema das
ciências. Ora, tais homens são atualmente raros [PIAGET, 2002: 22]
Estamos perante um grande desafio: reestruturar os conteúdos e planos pedagógicos
para construirmos uma proposta de formação do universitário dentro do aspecto humanista,
com uma formação baseada na interdisciplinaridade. Provavelmente encontraremos
inúmeros obstáculos para que essas idéias sejam praticadas. Mas vale a pena iniciar esse
movimento de renovação. Porque dele depende a dimensão humana da formação
profissional.
V - PERSPECTIVAS PARA A PRÁTICA DA INTERDISCIPLINARIDADE
Não há dúvida quanto à necessidade de os estágios universitários serem feitos num
contexto interdisciplinar e isso, basicamente, por duas razões: em primeiro lugar, pelo
caráter de interdisciplinaridade que hoje distingue a pesquisa científica e, em segundo
lugar, pela complexidade da realidade humana visada pela prática do estágio. Mas, se os
estágios interdisciplinares são necessários, é preciso que se dê a existência de algumas
condições essenciais para que isso aconteça. Mencionemos algumas delas. A primeira
consiste em superar o vezo cartorial e compartimentalizado dos departamentos. O cardápio
acadêmico oferecido ao aluno deve ser aberto. Essa é, aliás, a idéia fundamental que
deveria permear a departamentalização do ensino universitário. Consideramos que se deu
um passo importante, no Brasil, com a extinção das antigas cátedras, que muitas vezes
tinham se convertido em feudos com príncipes e vassalos. Mas a departamentalização, que
deveria corresponder a uma sadia democratização da administração do ensino, por parte da
comunidade acadêmica, terminou não acontecendo de forma plena, pois foi deglutida pelo
patotismo e a improdutividade.
Um início de interdisciplinaridade acontecerá quando os nossos alunos puderem se
matricular nas disciplinas que quiserem cursar, sem as atuais barreiras alfandegárias que os
impedem de ter acesso a um saber universal. É certo que na formação profissionalizante são
necessárias medidas que incluam pré-requisitos para as disciplinas essenciais. Mas a prérequisitação deve ser a mínima possível e não pode, em hipótese alguma, ter como
finalidade desencorajar a presença de alunos de outros cursos numa determinada
especialidade. Uma boa percentagem no planejamento curricular das disciplinas seria a
seguinte: 60% dos créditos nas disciplinas específicas da área profissional e 40% nas
disciplinas que o aluno escolhesse livremente (incluídas aí as matérias humanísticas).
Outra condição básica, ligada à anterior, é a superação do corporativismo
profissional que afeta a muitos cursos. Departamentos da área de engenharia, por exemplo,
ficam incomodados com a presença de alunos de física; departamentos de filosofia
enxergam como penetras alunos de ciências exatas. Considera-se violação do espaço
profissional, em suma, qualquer intento de diversificação e de pluralismo. Essa dificuldade
se removeria, em boa medida, se distinguíssemos claramente entre formação universitária e
habilitação para o exercício de determinada profissão. Ao passo que para a segunda é
necessária, além da formação superior, o reconhecimento por parte do colegiado que
representa o grêmio profissional (Ordem dos Advogados, Clube de Engenharia, Conselho
Regional de Medicina, etc.), para a primeira não poderia haver barreiras gremiais. No
Brasil, ambos os planos muitas vezes se confundem.
Condição essencial para a prática da interdisciplinaridade nos estágios é, também, a
formação humanística básica do estudante universitário. A queda da qualidade que
hodiernamente afeta ao ensino básico no Brasil, reflete-se irremediavelmente no ensino de
terceiro grau. A formação essencial quanto à compreensão da história, da cultura e da
cidadania, cujas bases deveriam ser deitadas ao longo do primeiro e do segundo graus, hoje
não acontece
Outra condição importante é a efetiva prática da pesquisa nas Universidades. Salvo
alguns cursos que se destacam como exceções, a prática continuada da pesquisa inexiste.
Sem falar da pesquisa básica, para cuja efetivação simplesmente não há recursos, por não
ser considerada como prioritária pelos órgãos governamentais encarregados do seu
financiamento. Os recursos, quando existem, são concentrados em determinadas
instituições das áreas metropolitanas da região centro-sul, que conseguiram colocar
representantes seus nos conselhos consultivos da CAPES e do CNPQ. As restantes
instituições de ensino superior ficam a ver navios.
.
Luz iluminando caverna na Grécia.
Platão atribuía à contemplação
filosófica o papel de libertar os
homens das sombras da ignorância.
Papel semelhante é assinalado,
hodiernamente, ao saber
interdisciplinar, por pensadores
como Piaget ou Bachelard.
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