REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Paulo Fernando Duarte Ramos∗ RESUMO A regularização fundiária urbana no Brasil é mais um claro exemplo das dificuldades do Estado para cumprir e fazer cumprir os mandamentos constitucionais e infraconstitucionais que o próprio, sob manifestação pura e legitima de autonomia cidadã, instituiu de modo a minimizar os efeitos excludentes de políticas públicas voltadas menos para o social e mais para interesses transnacionais e do poder econômico. Este poder que, mesmo não incluído no trinômio clássico da partição do poder estatal, cada vez mais ditas regras e rumos da decisão política, e dá sinais de interesse na questão. As providências, iniciativas e leis federais instituídas para solução dos problemas municipais, apesar de plenas em qualidade, adequação e oportunidade, esbarram num sem número de dificuldades comunicativas, naturais e previsíveis para um país continental, multifacetado e pluriarticulado, sem atingir com eficiência e eficácia a célula da cidadania, impedindo assim a realização plena do ideal democrático. Oportunizar uma participação interlocutória e emancipatória, de Estado e Sociedade, na direção de uma ação compartilhada é modo possível de alcançar resultados e efetivar o Estado Democrático de Direito. PALAVRAS-CHAVE: REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, AÇÃO COMUNICATIVA, INTERLOCUÇÃO, INTERAÇÃO. RESUMEN La regularización fundiaria urbana en Brasil es más un claro ejemplo de las dificultades del Estado, en todas sus formas, para cumplir y hacer cumplir los mandamientos constitucionales e infla constitucionales que él propio, so manifestación pura y legítima de autonomía ciudadana, instituyó de modo a minimizar los efectos excluyentes de políticas públicas vueltas menos para lo social y más para intereses trasnacionales y del poder económico. Este poder que, mismo no incluso en el trinomío clásico de la repartición del poder estatal, cada vez más dita las reglas y rumbos de la decisión política y da señales de interés en la cuestión. Las providencias, iniciativas y leyes federales instituídas para solución de los problemas municipales, a pesar de plenas en calidad, adecuación y oportunidad, desbarran en un sin número de dificultades comunicativas, naturales y previsibles para un país continental, multifacetado y pluriarticulado, sin atingir con eficiencia y eficacia la célula de la ciudadanía, impidiendo así la realización en plenitud de lo ideal democrático. Propiciar una participación interlocutoria y emancipatoria, de Estado y Sociedad, hacia una acción compartida, posibilita alcanzar resultados y efectivar el Estado Democrático de Derecho. ∗ Paulo Fernando Duarte Ramos é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/RS; Especialista em Direito pela Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS; Mestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Advogado. 2 PALABRAS CLAVE: REGULARIZACIÓN FUNDIÁRIA, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DERECHO, ACCIÓN COMUNICATIVA, INTERLOCUCIÓN, INTERACIÓN. SUMÁRIO – 1 Introdução. 2 A questão fundiária como falha comunicativa. 3 Aspectos da competência legislativa em matéria urbanística: leis que não atingem seus destinatários. 4 O interesse do poder econômico e a participação de novos atores. 5 Regularização fundiária em face dos princípios gerais do Estado Democrático de Direito. 6 Conclusão. 7. Referências. 1. Introdução A realidade fática da existência de questão fundiária, tida como problema nas comunidades urbanas deste país, mostra outra realidade, qual seja: a existência de modernos institutos jurídicos voltados para sua solução. É plausível que o distanciamento entre a proposta legal original e o devido alcance da realização das benesses que pretende deva ser atribuído a causas não exclusivamente ligadas à falhas no conteúdo normativo, nas ações públicas ou dos seus destinatários. Talvez seja atribuível ao âmago do modelo de solução proposto, demonstrando, ao encontro do que diz LEAL1, a tendência cada vez mais burocratizante e centralizadora do processo decisório que afasta desta sociedade a oportunidade de participação e debate sobre temas que lhe dizem respeito, constitui um problema para a consecução da sociedade democrática moderna. No país de dimensões continentais como o nosso, com pluralismo em todos os campos de significação e identificação cidadã, uma solução centrada, coatada e fundamentada em razão de justificação meramente econômica, onde segundo LEAL2, a questão que está a desafiar a imaginação política é o difícil problema de tornar comensurável a heterogeneidade inscrita na vida social. Certamente não se alcançará destinos diversificados na sua totalidade, sem este entendimento. Neste distanciamento temos ruídos de comunicação, isso quando se consegue comunicação, ou nada no mais das vezes e onde mais se necessita. A realidade urbana do interior do Piauí é muito mais grave e premente que no interior de qualquer estado do sul do país, pari passu, a capacidade de alcance, no sentido de eficácia e eficiência da decisão formatada no planalto central, é negativamente proporcional à razão 1 LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade – novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. (pág.28) 2 Op. cit, p.34 3 geométrica dos quilômetros que separam os dois mundos da vida3. E não se pode falar somente em distanciamento geográfico, mais importante, a distância lingüística é que dita a regra, e a distância econômica se atrela e agrava a situação. Paradoxalmente temos o que se considera uma avançada Carta Política, especialmente no sentido social e material, com instituições de grande magnitude. Na questão dos princípios, direitos e garantias fundamentais individuais, poucos são os países que alcançam tal amplitude4. Temos garantido até mesmo o direito a nada fazer5, a ponto deste parecer ser aquele que mais tem sido praticado. O paradoxo está em que o avanço institucional, constitucional e infraconstitucional, não corresponde à realidade cotidiana, especialmente nos núcleos urbanos e suas periferias (de)formados a partir da promessa ilusionista do milagre brasileiro. A partir da constatação da existência de um elevado número de unidades habitacionais, e respectivos moradores, que se encontram na, digamos, clandestinidade e ilicitude, bem como o constante incremento de bidonvilles6, visíveis somente em virtude dos demais problemas sociais decorrentes e correlatos, tais como a criminalidade e violência, e quando então o etéreo poder econômico, ao notar a potencialidade, passou a tecer estratégias para alcançar este universo, agora olhado como filão de negócios, é que começaram a surgir modelos curativos7. 3 Jürgen Habermas usa o conceito de “mundo da vida” , explica GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais. SP: Loyola, 2004, p 137, que: o mundo da vida possui duas dimensões distintas; de um lado, ele se refere a um reservatório de tradições implicitamente conhecidas e de pressupostos automáticos que estão imersos na linguagem e na cultura e são utilizados pelos indivíduos na sua vida cotidiana. Por outro lado, o mundo da vida, contém três componentes estruturais distintos: a cultura, a sociedade e a personalidade. Na medida em que os atores se entendem mutuamente e concordam sobre sua condição, eles partilham uma tradição cultural. Na medida em que coordenam suas ações por intermédio de normas intersubjetivamente reconhecidas, eles agem enquanto membros de um grupo social solidário. Os indivíduos que crescem no interior de uma tradição cultural e participam da vida de um grupo internalizam orientações valorativas, adquirem competência para agir e desenvolvem identidades individuais e sociais. A reprodução de ambas as dimensões do mundo da vida envolve processos comunicativos de transmissão da cultura, de integração social e de socialização. 4 Prova irrefutável é a Constituição da República Federativa do Brasil - CF/88, que em seu art. 5º conta com 76 (setenta e seis) incisos, neste sentido. 5 Conforme art. 5º, II, CF/88. 6 SANTOS, Milton. “A Cidade nos Países Subdesenvolvidos”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 11, nome dado pelo autor aos aglomerados de população mal abrigada, conhecidos como: tegúrios, jacalés, villa miséria, quebradas, barreadas, muceques, kapongs, medinas, favelas e malocas, dependendo da localidade e país, mas que têm como traço comum a extrema pobreza da população, de que derivam as más condições do seu alojamento. 7 SCHEIDT, Cíntia Maria. “O direito à moradia e à Regularização Fundiária nos Assentamentos Urbanos Informais”, in “Direito do Estado – Novas Tendências - volume IV”. Porto Alegre: UFRGS, 4 Presume-se que este poder, com sua inegável capacidade de influenciar o Estado, leiase administrador e legislador, tornou viável o estabelecimento de regras permitidoras e facilitadoras da inclusão daqueles segmentos clandestinos ao modelo vigente. Oportunizando aos excluídos possibilidade de alcançar aquele que é o único inviolável direito fundamental material, ou seja, a propriedade e, assim, obter inclusão social, econômica e financeira; dando mais um passo em direção à realização dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e do ideal de Estado Democrático de Direito. Isto é irreversível. Como se vê, o avanço em matéria legal não está adstrito à Ordem Maior, os nossos legisladores, mesmo sem uma efetiva participação popular, souberam outorgar um texto infraconstitucional de substancial conteúdo, abrangendo e enfrentando a problemática questão fundiária urbana, constituindo mecanismos, instrumentos, elementos e institutos capazes de trazer solução para aquelas necessidades, possibilitando ampla participação e controle dos cidadãos. Mas, a falha comunicativa não permite que estes saibam de suas prerrogativas, mesmo porque não lêem o Diário Oficial da União, aqui sendo referido somente àqueles poucos que sabem ler e interpretar o palavreado técnico-jurídico, nada a dizer quanto aos demais. A tarefa de regularização fundiária, para ter êxito, deverá utilizar mecanismos que tornem possível a participação cidadã; deverá ser delegada a quem se destina, ou seja, aos cidadãos (sociedade) que vivenciam o problema e necessitam da solução; deverá encontrar o caminho que, ensina LEAL8, deve ser pautado a partir de uma filosofia e epistemologia centrados numa racionalidade emancipatória e comunicativa aqui entendida como a estabelecida por sujeitos lingüísticos (Estado X Cidadão), envolvidos numa prática cujo único objetivo deve ser o entendimento/consenso, o que implica permanentes e tensionais pactos de civilidade, que a despeito de provisórios, estão informados por alguns universais modernos, como os direitos humanos e fundamentais, a emancipação dos povos, o controle do poder político, o desenvolvimento auto-sustentável. Uma ação a se tornar possível através de um estímulo do Estado àqueles sub-cidadãos, numa demonstração de desprendimento da 2005, p. 222, ao referir-se à regularização fundiária como um instrumento que não é capaz de reverter por si só o quadro deficitário habitacional. 8 Op. cit. p. 39. 5 sua supremacia, cabendo ao poder local, como epicentro, único habilitado, interessado e capacitado, inclusive geograficamente, a primazia nesta tarefa. Uma solução local para questão nacional, como meio e forma da concretização dos princípios e do ideal de Estado Democrático de Direito. 2. A questão fundiária como falha comunicativa A rapidez com que crescem as cidades e aumenta a população urbana é um fenômeno geral nos países como o nosso. Se por um lado a cidade exibe o mundo tecnológico, pelos modernos edifícios e sinais de conforto hodierno, reflete também a pobreza e as pragas de sua região de influência, tanto nas funções que realiza quanto na paisagem, e pela desorganização e insuficiência dos seus serviços públicos. Para SANTOS9, o que caracteriza as grandes cidades nos países subdesenvolvidos é o seu papel do traço de união entre um mundo industrial que lhe compra os produtos, brutos ou tendo recebido uma primeira preparação, e um mundo rural que fornece essas matérias-primas e, em troca, recebe produtos manufaturados que a cidade importa ou fabrica. Esta introdução faz-se necessária para que seja entendida a importância de avaliar o surgimento e o desenvolvimento da cidade. Somente tendo uma visão histórica da sua origem e razões de existência, que são extremamente variadas para cada local e região, poder-se-á diagnosticar seus problemas e prognosticar soluções próprias. Para delinear a estratégia que melhor atenda o chamado problema fundiário decorrente da expansão urbana dita desordenada, seria necessário examinar a fundo e nos respectivos locais, questões apontadas por SANTOS10, tais como: as funções da cidade, a concentração de recursos não produtivos, as relações com a região, os caracteres da população, a organização do espaço interno, e os bidonvilles, ou seja, os aglomerados urbanos de pessoas mal abrigadas, locais clandestinos ou ilícitos, excludentes e objetos das regularizações pretendidas. Tais elementos significativos e explicativos são heterogêneos e de respostas diversas na razão direta da multifacetada realidade urbana do país, tendo como ponto de partida a origem de cada qual, que exige soluções peculiares. 9 SANTOS, Milton. A cidade nos países subdesenvolvidos. RJ: Civilização Brasileira, 1965, p. 2. Op. cit. p. 3. 10 6 A explicação simplista de que se deva ao êxodo rural e expansão industrial o inchamento urbano e as mazelas fundiárias de invasões de áreas, públicas ou particulares, não responde ao fato de que o crescimento local é bem superior à soma dos habitantes da área rural e que o fenômeno ocorre mesmo em pólos não industrializados. É de se levar em conta que, em certos casos, a maioria da população recente da cidade não é de origem rural ou migratória; uma parcela é resultante dos progressos sanitários, redução da mortalidade infantil e crescimento natural da cidade. Aqui a falha comunicativa se reflete no diagnóstico errôneo ou na falta de diagnóstico preciso de definição da devida composição elementar, e na linguagem a ser utilizada com aquela pessoa mal abrigada, no sentido de lhe oportunizar um espaço de comunicação, entender sua origem e o que quer, e de lhe ser ofertado aquilo que na realidade busca e espera do poder público e da cidade. Para isto é preciso um espaço de interlocução cotidiano, como ensina LEAL11 em vários tópicos de sua obra, ao sugerir mudanças epistemológicas na gestão pública para uma ação pautada no autêntico Estado Democrático de Direito. Do contrário, mesmo que lhe seja dada a propriedade, através da regularização, aquilo que não lhe é dado, por erro comunicativo, fará com que ele acabe alienando o que recebeu para obter algum ganho, indo logo após instalar-se em nova invasão, talvez em outra cidade, para reiniciar o processo e realimentar o problema. Aqui a falha comunicativa revela carência de democracia, para ser democrático, pois, deve-se contar, a partir das relações do poder estendidas a todos os indivíduos, com um espaço político demarcado por regras e procedimentos claros, que efetivamente assegurem, de um lado, espaços de participação e interlocução com todos os interessados e alcançados pelas ações governamentais e, de outro lado, o entendimento às demandas públicas da maior parte possível da população12. 11 Na dicção de Rogério G. Leal (2006, p.136): Assim, análise de políticas públicas e de gestão do espaço público não, necessariamente, se refere apenas à políticas geradas nas instituições propriamente estatais, devendo, também, levar em conta as políticas geradas nas instituições não propriamente estatais. Ou, como é mais freqüente, precisam referir-se às políticas geradas na imbricação da alavancagem propriamente estatal com alavancagem não propriamente estatal, incorporando, por exemplo, processos de interlocução comunitária cotidiana através de mecanismos e instrumentos apropriados, institucionais ou não, como Organizações Não-Governamentais, movimentos populares, Conselhos Municipais institucionalizados, etc.. (nosso grifo). 12 Ob. cit. p.37. 7 No entendimento do fenômeno é preciso considerar que a existência de bidonvilles, e demais modalidades de ocupações clandestinas ou ilícitas, faz parte da estrutura da cidade, cujas funções não aumentam na mesma proporção de seu crescimento populacional, tendo como resultado o desequilíbrio, cada vez mais sensível entre a população ativa e a população global. Este é um fato geral e comum às cidades, onde o crescimento dos recursos não tem medida comum com a população. Daí a proliferação das inúmeras formas de subempregos e uma grande percentagem de pessoas vivendo de rendimentos ocasionais, de biscates. Esta é uma característica da cidade, existe mesmo na cidade planejada, organizada e formatada (por exemplo, Brasília), onde desde seu nascimento haverá de ter este segmento populacional e habitacional. Conforme SANTOS13, de uma maneira geral existem, na cidade, três estratos de certo modo intercomunicáveis (e interdependentes, pode-se acrescentar): 1) as classes altas, formadas: a) pela aristocracia da terra; b) pela nova classe dos industriais, comerciantes, especuladores de todo tipo e “novos ricos da terra”; 2) as classes médias: a) a alta classe média, que participa dos modos de vida da alta classe, sem, entretanto, contar com os mesmos rendimentos; b) a baixa classe média (que habita loteamentos e prédios populares); e, 3) as classes pobres (que habitam bidonvilles), entre as quais: a) os pobres propriamente ditos, que dispõem de um emprego modesto, mas fixo, como os operários e pequenos comerciantes; e, b) os muito pobres ou miseráveis, que vivem do dia a dia. Então, é preciso não apenas maldizer o crescimento, ou verdadeira “inchação” populacional da cidade pois, no dizer de SANTOS14, somente após superar certo nível demográfico pode uma cidade ser dotada da força capaz de lhe criar os serviços que necessita e o aparecimento de importantes indústrias motoras ou de transformação, que lhe garantirão suficiente matéria tributável para sua auto-sustentação. Uma grande população termina sendo a condição, às vezes a principal, para a mobilização de recursos. A população excluída socialmente, que é uma fraqueza dessas cidades, constitui, também, sua força. Corrigida a falha comunicativa de entendimento da estrutura complexa, a expansão urbana tida como desordenada pode ser entendida como benéfica e contributiva ao que se 13 14 Ob. cit. p. 10 Ob. cit. p. 10 8 espera de uma cidade e para seu fortalecimento. Neste sentido, refere BALANDIER15: “la mano sabia de la naturaleza hace nacer el orden del desorden y, sin desorden, no llegaría a nada: tal es el equilibrio profundo”. Para tanto será necessário superar as barreiras comunicativas e lingüísticas que inibem a busca do resultado esperado e que determinam a questão fundiária das comunidades excluídas como sendo um problema, já que para seus ocupantes aquela é a solução que encontraram para suprir suas necessidades. Será necessário estar atento para não apenas faze-los subir de “classe”, nem substituir uma por outra em seu lugar. É fundamental, ainda, uma mudança de atitude do Estado que, na visão de LEAL16, nega a existência de inúmeras tensões sociais que se avolumam sem respostas satisfativas, ou ainda, lançá-las à clandestinidade ou ilicitude, tratando-as como anomalias comportamentais que precisam ser severamente coagidas, tais como os movimentos dos sem terra, dos sem teto, a questão do parcelamento clandestino do solo urbano, violência generalizada, a prostituição, etc.. E, mais adiante completa (...) deixa o Estado, assim, de compreender que administrar os conflitos da sociedade significa conservar a sociedade e ter, como legítima, a complexidade multifacetada de suas articulações e tensões; que não precisam ser extirpadas as diferenças... mas impõe-se a gestão da diversidade em nome da harmonia e pacificação das relações sociais, evitando-se que a comunidade se desintegre. Na medida em que o Estado não é capaz de resolver os conflitos, ele perde sua legitimidade, ou em outros termos, a questão da legitimidade do Estado torna-se um problema. 3. Aspectos da competência legislativa em matéria urbanística: leis que não atingem seus destinatários A partir da elaboração da Carta Maior, o que se destacou foi uma supremacia da esfera federal em detrimento das demais, estadual e municipal, tanto executiva quanto legislativamente falando. As matérias que foram consagradas como de competência exclusiva ou de primazia da União, entre elas a de instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, 15 BALANDIER, Georges. El Desorden - La teoria del caos y las ciências sociales – Elogio de la fecundidad del movimiento. Barcelona, Espana: Gedisa, 1997, p. 173. 16 LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade. p.48. 9 inclusive habitação, saneamento básico e transportes17, são elaboradas de forma e realidade distanciada, sobremodo, do problema e da solução. Assim, estas disposições normativas de matéria geral, urbana, são originadas em foros não diretamente situados no local de onde emergem os problemas e para os quais se apresentam como solução. Apesar disto é inegável o avanço que se alcançou em relação a institutos e dispositivos legais, tanto na Carta Magna como também na lei infraconstitucional federal, cujo resultado deve ser atribuído, ao menos em parte, à qualidade técnica dos legisladores que, mesmo sem uma efetiva participação popular, souberam aprovar textos de leis ordinárias de substancial conteúdo, abrangendo e enfrentando a problemática fundiária urbana, constituindo mecanismos, instrumentos, elementos e institutos capazes de trazer solução para a problemática, ainda que em seus textos não expressem possibilidade de ampla participação e controle dos cidadãos, que venha contribuir para um efetivo Estado Democrático de Direito. Como exemplo tem-se o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº.10.257/2001), cantado como grande marco transformador e implementador de política pública urbana social includente, em função de dispositivos e instrumentos jurídicos, tais como: a exigência de Plano Diretor municipal (art. 41 e incisos); o direito de superfície (art.21); o direito de preempção (art.25); a outorga onerosa do direito de construir (art.28); a transferência do direito de construir (art.35); as operações urbanas consorciadas (arts. 32 a 34); o consórcio imobiliário (art.46); as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS (art. 4º, V, f); a concessão de direito real de uso (art. 4º, V, g); e, a concessão de uso especial para fins de moradia (art. 4º, V, h) que posteriormente foi disciplinado pela Medida Provisória nº 2.200/2001. Tais normas permitem o enquadramento e solução fundiária para todos os casos possíveis de ilegalidades, até mesmo quando se tratar de ocupação de terras públicas, ressalvado os casos de enquadramento proibitivo determinado por leis ambientais, mas não contemplam a interlocução e participação popular na execução das medidas. Talvez por isto, ainda que combinados com a legislação municipal, através de seu respectivo Plano Diretor (a ser elaborado cogentemente [v.art. 41], sob responsabilidade civil e criminal do administrador), passados já seis anos mostram parcos e pontuais resultados corriqueiros, cotidianos ou ações adotadas pelas municipalidades (ir)responsáveis. De modo que, aos 17 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88), art. 21, XX; e, art. 24, I, e §§. 10 excluídos, nada chega, esqueceram de avisá-los de suas prerrogativas e esqueceram que eles não lêem o Diário Oficial da União; e não se está falando tão somente daqueles que sabem ler e interpretar o palavreado técnico-jurídico lá contido. A lei não atinge seu destinatário. Resta bastante clara a proposta de LEAL18 da necessidade de entender que, na perspectiva de uma sociedade republicana e democrática habermasiana19, marcada pela radicalização dos espaços de participação e interlocução política racional, a idéia de uma instância privilegiada de dicção dos “stantards” e pautas deontológicas normativas é tão arbitrária quanto a centralização do Poder nas mãos de um Parlamento ou Executivo imperiais. 4. O interesse do poder econômico e a participação de novos atores Mesmo sem ainda ter atingido o público alvo, recentemente, se é que dois anos possa ser considerado recente, possivelmente atendendo o aceno positivo do invisível poder econômico que estrategicamente se volta para o filão inexplorado dos bidonvilles e demais modalidades de assentamentos urbanos precários, assim como já o fizera em relação aos pobres aposentados facilitando-lhes o crédito com pagamento consignado e segurança do recebimento, oportunizando que se visualize por inteiro aquilo que LEAL20, ao propor uma gestão comunicativa, chama de assalto ao Estado, foi promulgada a Lei Federal nº11.124/05, a qual dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS. Tal diploma, igualmente, se propõe a ser marco de implementação de políticas públicas urbanas e inclusão social, na medida em que centraliza todos os programas e projetos destinados à habitação de interesse social, tendo como objetivos (art. 2º): I – viabilizar para a 18 Ob. cit. p. 61. Aqui Rogério Gesta Leal faz referência às idéias de Jürgen Habermas, autor , entre outras obras de Teoria da la Acción Comunicativa, Madri: Taurus, 1987. 20 Rogério Gesta Leal (2006, p. 63) diz: Ocorre que a forma de gestão pública comunicativa que estamos propondo exige um mínimo de condições subjetivas e objetivas dos seus interlocutores, sob pena de as falas enunciadas e trocadas serem coatadas por circunstâncias exógenas e endógenas à comunicação, tais como as insuficiências formativas e de discernimento dos homens comuns do povo, associada com o alto grau de profissionalismo e burocratismo das elites dominantes que assaltaram o Estado, ou ainda, dos tecnoburocratas que instrumentalizaram ideológica e operacionalmente os aparelhos estatais, como mecanismo de alcançar projetos muito mais corporativos e individuais do que comunitários. (nosso grifo). 19 11 população de menor renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável; II – implementar políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação voltada à população de menor renda; e, III – articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções no setor da habitação. Tem como princípios a observar (art. 4º, I): a) compatibilidade e integração das políticas habitacionais federal, estadual, do Distrito Federal e municipal, bem como das demais políticas setoriais de desenvolvimento urbano, ambientais e de inclusão social; b) moradia digna como direito e vetor de inclusão social; c) democratização, descentralização, controle social e transparência dos procedimentos decisórios; d) função social da propriedade urbana visando garantir atuação direcionada a coibir a especulação imobiliária e permitir o acesso à terra urbana e ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade (nosso grifo). Tem como diretrizes (art. 4º, II): a) prioridade para planos, programas e projetos habitacionais para a população de menor renda, articulados no âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e municipal; b) utilização prioritária de incentivo ao aproveitamento de áreas dotadas de infra-estrutura não utilizadas ou subutilizadas, inseridas na malha urbana; c) utilização prioritária de terrenos de propriedade do Poder Público para a implantação de projetos habitacionais de interesse social; d) sustentabilidade econômica, financeira e social dos programas e projetos implementados; e) incentivo à implementação dos diversos institutos jurídicos que regulamentam o acesso à moradia; f) incentivo à pesquisa, incorporação de desenvolvimento tecnológico e de formas alternativas de produção habitacional; g) adoção de mecanismos de acompanhamento e avaliação e de indicadores de impacto social das políticas, planos e programas; e h) estabelecer mecanismos de quotas para idosos, deficientes e famílias chefiadas por mulheres dentre o grupo identificado como o de menor renda da alínea "a" do mesmo inciso. O aspecto da presença do interesse do poder econômico se manifesta claramente no dispositivo (art. 5º), que abre a possibilidade de acesso dos agentes financeiros (autorizados pelo Conselho Monetário Nacional a atuar no Sistema Financeiro da Habitação – SFH) a recursos públicos; Ou seja, o privilegiado sistema bancário privado em geral, consórcios e financeiras (a mão visível do invisível poder econômico) terão acesso ao criado FNHIS, 12 constituído com recursos do FAT, FGTS, FNHIS21 e outros fundos que vierem a ser incorporados ao Sistema (art. 6º). O acesso dos entes privados aos recursos públicos também é possível na medida em que a transferência de recursos do FNHIS para os Estados, Distrito Federal e os Municípios, fica condicionada ao oferecimento de contrapartida do respectivo ente federativo (art. 12, §1º), a qual poderá ser efetivada através de recursos financeiros, bens imóveis urbanos ou serviços, desde que vinculados aos respectivos empreendimentos habitacionais realizados no âmbito dos programas do SNHIS (art. 12, §2º). Na mesma linha da amplitude de franquia aos recursos públicos, destacam-se dispositivos permissivos que atribuem ao FNHIS (leia-se FAT, FGTS, etc.), sob autorização do Ministério das Cidades, a possibilidade da transferência de valores ao agente operador, Caixa Econômica Federal (art. 16), para ressarcimento de seus custos operacionais e correspondentes encargos tributários (art. 14, VI); subsídios financeiros destinados a complementar a capacidade de pagamento das famílias beneficiárias (art. 23, I); equalização, a valor presente, de operações de crédito realizadas por instituições financeiras autorizadas a operar pelo Conselho Monetário Nacional e fiscalizadas pelo Banco Central, ou seja, pelo sistema bancário como um todo (art. 23, II); a concessão de benefícios destinados a reduzir ou cobrir o custo de construção ou aquisição de moradia, decorrentes ou não de convênios entre o poder público local e a iniciativa privada (art. 23, IV); e, a concepção de subsídio, como benefício pessoal e intransferível, concedido com a finalidade de complementar a capacidade de pagamento do beneficiário para o acesso à moradia, ajustando-a ao valor de venda do imóvel ou ao custo do serviço de moradia, compreendido como retribuição de uso, aluguel, arrendamento ou outra forma de pagamento pelo direito de acesso à habitação (art. 23, §1º, IV). Estes dispositivos, a par do importante aspecto de definir uma estrutura financeira, de base, para implementação de políticas públicas de inclusão social e econômica, denotam o evidente interesse do poder econômico, inclusive transnacional (via bancos estrangeiros), neste segmento até então marginalizado, constituído pelos aglomerados populacionais, sub- 21 Fundo de Amparo ao Trabalhador; Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, respectivamente. 13 urbanizados, clandestinos, irregulares e ilegais, que representam 50% da população das grandes cidades, no dizer de MARICATTO22. Entretanto, o conteúdo destacável no álbum são dispositivos indicadores de passos em direção a uma participação democrática, com fundamentação e justificação numa ação comunicativa e interlocutória a propiciar para e através da participação de novos atores, necessariamente presentes como obrigação imposta aos Estados Federativos e Municípios envolvidos, em ações tais como: constituir conselho que contemple a participação de entidades públicas e privadas, bem como de segmentos da sociedade ligados à área de habitação, garantido o princípio democrático de escolha de seus representantes e a proporção de 1/4 (um quarto) das vagas aos representantes dos movimentos populares (art. 12, II); promover relatórios de gestão (art.12, V); e, a faculdade de constituição de conselhos de caráter regional (art. 12, § 5º). O diploma é, principalmente, inovador ao propor democratização, descentralização, controle social e transparência dos procedimentos decisórios e adoção de mecanismos de acompanhamento e avaliação e de indicadores de impacto social das políticas, planos e programas (art. 4º, I, “c”; e, II, “g”), que torna necessária uma ação comunicativa e interlocutória, especialmente se for integrado por diversos órgãos e entidades, a saber: fundações, sociedades, sindicatos, associações comunitárias, cooperativas habitacionais e quaisquer outras entidades privadas que desempenhem atividades na área habitacional, afins ou complementares, todos na condição de agentes promotores das ações no âmbito proposto (art. 5º, VII), quais sejam: urbanização, produção de equipamentos comunitários, regularização fundiária de áreas submetidas à política urbana expressa no Plano Diretor municipal ou legislação equivalente (art. 11, §2º). Não se contesta a importância e o significado deste avanço legal, o que se pergunta é, qual o resultado? Aonde chegou? Pois até o momento não se nota ações pró-ativas na direção da democratização da regularização fundiária e da utilização de recursos do SFHIS. Mas o caminho está aberto, mesmo que por interesse do poder econômico, é preciso, então, comunicá-lo aos interessados para que o trilhem. 5. Regularização fundiária em face dos princípios gerais23 de Estado Democrático de Direito 22 MARICATTO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias, Petrópolis: Vozes, 2000, pág. 30 14 A definição de ALFONSIN24, amplamente aceita e utilizada por cientistas políticos para o tema da regularização fundiária, apresentada em sua obra e no Seminário de Regularização Fundiária (SP: junho/2003), de que é o processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídicos, físicos e sociais, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária. (nosso grifo). Denota uma conceituação não democrática, uma vez que uma ação pautada na democracia não será jamais fruto de intervenção25 pública, e sim de interação pública; isto é, através de uma ação comunicativa, participativa e interlocutória, equânime e igualitária na medida do possível, entre os atores envolvidos na questão, ou seja, Estado, enquanto administração e legislação, e Sociedade, como um todo interessado; e do atendimento das demandas sociais, como indica LEAL26. A ação democrática proposta é completamente diferente daquela punitiva, repressiva e cogente, com justificação e motivação no princípio do poder de polícia, praticada no dever de agir imediatamente, para impedir a ilicitude que esteja em vias de acontecer, sob forma de invasão de área pública ou privada, assentamento clandestino, loteamento irregular e etc. As situações consolidadas estão a clamar por outras atitudes governamentais. Não se pode negar que os objetivos e resultados estão perfeitamente delineados na definição alfonsiniana; bem como, o modelo interventor tem sido, de fato, utilizado. Mas, é preciso admitir a persistência da problemática fundiária e seu agravamento na maioria das cidades, mesmo naquelas onde alguns poucos, paliativos, pontuais, emergenciais e curativos efeitos o modelo tenha causado, e que, talvez porque pautado em razões de fundamentação, 23 Demarcados por Rogério Gesta Leal (2006, p. 35). ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à moradia – Instrumentos e experiências de Regularização Fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: IPPUR:FASE, 1997, p.24. 25 MICHAELIS – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. RJ: RD, 2000, v. II, p.1171. (lat .interventione) 1 Ato ou efeito de intervir. 2 Med. Operação. 3. Intercessão, mediação. 4. Ação direta do governo federal em um Estado da Federação. 5. Ação do governo ou de uma entidade oficial em uma associação. Como se nota é uma palavra com forte raiz cogente e autoritária. 26 Onde refere Rogério Gesta Leal (2006, p.37): Para ser democrático, pois, deve-se contar, a partir das relações do poder estendidas a todos os indivíduos, com um espaço político demarcado por regras e procedimentos claros, que efetivamente assegurem, de um lado, espaços de participação e interlocução com todos os interessados e alcançados pelas ações governamentais e, de outro lado, o entendimento às demandas públicas da maior parte possível da população. 24 15 justificação e motivação interventora, não tenha alcançado os resultados pretendidos e necessita outras ações e procedimentos. Importa observar o rumo cabível, na dicção de LEAL27, ao Estado Administrador Democrático de Direito como espaço privilegiado, de fomentar, e mesmo viabilizar uma maior articulação de possibilidades implementadoras das condições objetivas à interlocução social reflexiva sobre todos estes temas, oportunizando o surgimento de um processo de autopersuasão, no qual é impossível se pensar em não-participantes (...);.referindo também a uma, crise de identidade, legitimidade e eficácia das instituições representativas e poder instituído se assim não agir. É o caso da Administração Pública Brasileira, fechada em circuitos de poder institucional (Executivo, Legislativo, Judiciário), como únicos espaços legítimos de deliberação e execução do interesse público que não ocorre em razão da falência do modelo endógeno de representação política tradicional vigente até hoje, somados ao aumento quantitativo e qualitativo das demandas sociais. Onde a regularização fundiária emerge como cerne das questões problemáticas e emblemáticas que se lhe derivam e aderem, e a torna visível. Uma nação fundamentada no Estado Democrático Brasileiro (art.1º. CF/88), deve pautar sua existência e ações neste princípio fundamental que, necessariamente, deve impregnar tudo mais, desde a simples compra de material básico de escritório para uma repartição pública até um complexo contrato econômico no âmbito do direito público. Diferente, portanto, não será o tratamento da questão fundiária e ações pró-ativas e correlatas, as quais deverão encontrar suas razões de justificação e fundamentação nos princípios democráticos de direito. Tendo em vista os princípios gerais demarcados na lição de LEAL28, de que: (...) revelase imprescindível conceber o Estado Democrático de Direito como resultado e condicionado à Soberania Popular, segundo os seguintes princípios: a) o do direito subjetivo à participação com igualdade de condições e chances na formação democrática da vontade política de autodeterminação dos cidadãos através de instrumentos e procedimentos eficazes e transparentes; b) o da garantia de uma tutela jurisdicional independente; c) o do controle social, judicial e parlamentar da administração; d) o da separação política entre Estado e Sociedade que visa a impedir que o poder social se transforme, tão somente, em poder 27 28 Ob. cit. p. 41. Ob. cit. p. 35. 16 administrativo sem passar pelo filtro comunicativo do poder, viabilizado pelas múltiplas instâncias de mobilização de indivíduos e grupos sociais específicos (consumidores, aposentados, ambientalistas, étnicos, etc.). De modo que se espera, e urge, um posicionamento e uma visão diferente da postura do Estado interventor, até então presente no cotidiano da definição alfonsiniana, através do corte epistemológico no rumo da abertura de uma interação no trato da questão fundiária, assim como em qualquer outra demanda social. Somente realizável, na lição de LEAL29, a partir de uma (...) a interlocução política de todos os atores que são afetados pela Administração (...) estamos falando da abertura de um campo de interlocução entre a sociedade civil organizada e as tradicionais instituições existentes (por exemplo, conselhos populares, coredes, comissões temáticas, a iniciativa popular, JECs). 6. Conclusão As perspectivas são amplamente favoráveis para o alcance de resultados significativos na questão da regularização fundiária sob uma condição emancipatória fundamentada no Estado Democrático de Direito, possível somente a partir de uma visão não coatada e comunicativa do papel do Estado e da Sociedade, em relação às respectivas razões de existência e finalidade, especialmente para aquele segmento da cidadania sem acesso ao mundo da vida onde se insere. A quantidade e qualidade dos dispositivos legais e respectivos institutos jurídicos existentes no âmbito de matérias urbanísticas, ainda que formatados geograficamente distantes das demandas sociais locais e sob uma esgotada e coatada representação, constituem um avanço na direção de uma atitude e ações democráticas, fornecendo instrumentos jurídicos hábeis para promover a regularização fundiária, mas que ainda não atingiram plenamente seus destinatários e necessitarão de outras normas. Para tanto, e nas palavras de LEAL30, o que interessa é saber exatamente “qual” e “como” deve ser o processo de criação legítimo da norma jurídica, em face de sua função integradora e reguladora das relações sociais (e mesmo intersubjetiva), alcançado sujeitos 29 30 Ob. cit. p. 54. Ob. cit. p. 62. 17 que possuem capacidade racional, discernimento suficiente para operarem como interlocutores no cenário em que ocorrem estas relações e deliberações. Tais sujeitos devem construir formas de comunicação não-coatada pela ideologia hegemônica, elitista e excludente do mercado, a fim de produzir pactos semânticos fundadores dos argumentos justificatórios de seus interesses e projetos de vida, a ponto de serem contrastado/tensionados com as perspectivas e pretensões do mundo da vida em que ocorrem. Tal avanço legal, visivelmente autorizado por interesses do poder econômico, num esquema de dois passos à frente e um atrás, resulta num passo definitivo e irreversível no rumo de uma democratização, descentralização, controle social e transparência dos procedimentos decisórios e à adoção de mecanismos de acompanhamento e avaliação e de indicadores de impacto social das políticas, planos e programas oficiais. Pode-se dizer que a festa, o cardápio, a música, local e convidados estão definidos, mas quem será o responsável pela realização? A tarefa de regularização fundiária, para ter êxito, deverá ser protagonizada por uma iniciativa de criação de espaços de interlocução entre os atores envolvidos, passando a ser executada, paulatinamente, por aqueles a quem se destina, ou seja, pela sociedade que vivencia o problema e necessita da solução, através de instrumentos e mecanismos que adotem soluções, como por exemplo: Parcerias Público Privadas; consórcios, sociedades, condomínios ou fundos imobiliários; ou, ainda, através de entidades civis e organizações não governamentais sem fins lucrativos, especialmente criadas para esta atividade; todos com disponibilidade e acesso a recursos públicos. De modo que se pode responder que, para o êxito, os responsáveis pela realização da festa devem ser os próprios participantes. Este rumo deve ser dado numa razão emancipadora e através de estímulo do Estado enquanto Administrador e Legislador àqueles sub-cidadãos e à Sociedade como um todo, numa demonstração de despreendimento da sua supremacia, de forma ampla e transparente, como meio e modo da concretização do ideal Estado Democrático de Direito. Para finalizar, palavras de Rogério Gesta Leal (2006, p.144), que servem para reflexão e aplicação, também na questão fundiária: Em outros termos, não basta que se garantam as liberdades civis e políticas tradicionais dos umbrais da Idade Moderna, pois os indivíduos, na contemporaneidade, devem ter a possibilidade material de imprimir a estas, a autonomia 18 cognitiva que exige uma efetiva inserção e participação societal, fundada em uma interlocução não coatada pelos discursos e práticas totalitárias das elites dominantes (com suas linguagens tecnoburocráticas e enclausuradas em si próprias), assim, oportunizando que o sistema social possa ser gerido compartilhadamente. Esta possibilidade de interlocução deve contar, por sua vez, com mecanismos e espaços oficiais de diálogo, deliberações e execuções de políticas públicas voltadas para tal desiderato. 7. Referências ALFONSIN, Betânia de Moraes. 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