UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ ADRIANO NIKITENKO O PRINCÍPIO DA IGUALDADE CONSTITUCIONAL NO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO: A POSSIBILIDADE DE INFRIGÊNCIA PELA DIFERENCIAÇÃO PREVISTA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 São José 2009 1 ADRIANO NIKITENKO O PRINCÍPIO DA IGUALDADE CONSTITUCIONAL NO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO: A POSSIBILIDADE DE INFRIGÊNCIA PELA DIFERENCIAÇÃO PREVISTA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Monografia apresentada à Universidade do vale do Itajaí - UNIVALI, como requisito parcial a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: MSc. Prof. Renato Heusi de Almeida São José 2009 2 ADRIANO NIKITENKO O PRINCÍPIO DA IGUALDADE CONSTITUCIONAL NOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO: A POSSIBILIDADE DE INFRIGÊNCIA PELA DIFERENCIAÇÃO PREVISTA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas. Prof. MSc. Renato Heusi de Almeida UNIVALI - Campus de São José Orientador Profª. Elizabete Wayne Nogueira UNIVALI - Campus de São José Membro Profª. Luiza Cristina Valente Almeida UNIVALI - Campus de São José Membro 3 AGRADECIMENTOS Ao Professor MSc. Renato Heusi de Almeida, meu orientador, pela orientação e paciência durante o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa, momentos em que me lançou desafios para progredir e não estagnar. Cada educador é um mestre em mostrar caminhos para o aprimoramento intelectual e para a continuidade do aprendizado acadêmico. Agradeço, em especial, ao Prof. MSc. Alceu de Oliveira Pinto Jr., Coordenador do Curso de Direito, que sempre me deu atenção e apoio quando mais precisei. Muito obrigado professor!!! As Professoras Elizabete Wayne Nogueira e Luiza Cristina Valente Almeida, por participarem da Banca Examinadora. Aos Professores do Curso de Direito que, durante a minha jornada acadêmica, contribuíram com o meu crescimento pessoal e profissional. A Graduação é um dos degraus... Aos meus pais, Neuza Lurdes e Tranquilo (in memorian), e ao me padrasto Ângelo, um espírito que veio para acompanhar minha amada mãe no término de sua jornada, que tudo fizeram e fazem para que eu me torne um ser humano cada vez melhor. Aos meus familiares, em particular meu irmão Ângelo Estevão, pela compreensão nos momentos de ausência e pela oportunidade de convivência no processo evolutivo. À Andreza, minha esposa, pela possibilidade de formar uma família, uma sociedade de ajuda mútua, cujos bens serão os filhos, que é o encontro dos espíritos vinculados pelos processos e necessidades de evolução. Aos meus colegas de Curso, em especial nas pessoas de Gentil Reinaldo Cordioli Filho, João Carlos Siviero da Silva, Everson de Oliveira, e Tânia Lucia Santa Cruz Teodoro, que tudo fizeram me dando forças para que eu não desistisse do Curso. Aos demais colegas, pela amizade e companheirismo nesta jornada acadêmica e na vida pessoal. A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a conclusão desse estudo. 4 Família é o conjunto de pessoas unidas pelo laço do matrimônio, da união estável, ou ainda, da comunidade formada por qualquer dos pais e descendentes, ligados pelo vínculo de afeto independentemente de existir casamento. E no caso de falecimento, é o conjunto de direitos e obrigações que transmitem, em razão da morte, a uma pessoa, ou um conjunto de pessoas, que sobrevivem ao falecido. (Silvio de Salvo Venosa, 2002). 5 TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total de responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo. São José,10 de julho de 2009. Adriano Nikitenko 6 RESUMO O presente trabalho de pesquisa jurídica trata das inovações decorrentes do Código Civil de 2002, no que se refere ao Direito Sucessório do cônjuge e do companheiro, com foco na (in) constitucionalidade do art. 1.790, que fere o Princípio da Igualdade Constitucional no Direito Sucessório. O objetivo do estudo foi avaliar a diferenciação de tratamento entre a posição sucessória do companheiro e do cônjuge prevista na legislação brasileira. Quanto aos objetivos, a investigação foi realizada mediante o uso da técnica de uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, utilizando-se, sempre que possível, de fontes primárias, por meio do método dedutivo. Como resultados foram identificadas algumas divergências na legislação vigente quanto ao Direito Sucessório do cônjuge e do companheiro, as quais necessitam ser revistas, com o intuito de gerenciar e atender os preceitos constitucionais brasileiros e as dificuldades interpretativas da legislação vigente. Palavras-chave: Sucessão. Cônjuge. Companheiro. Princípio de Igualdade Constitucional. 7 ABSTRACT 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 11 CATEGORIAS BÁSICAS E CONCEITOS OPERACIONAIS .......................... 13 1 DA FAMÍLIA ................................................................................................. 13 1.1 FORMAÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR .................................................... 16 1.1.1 Da família romana ................................................................................. 20 1.1.2 Da família atual ...................................................................................... 25 1.2 O RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ............................................................................................. 28 1.2.1 A família no CC/1916 e na CRFB/88 .................................................... 36 1.2.2 A família à luz do CC/2002 .................................................................... 39 1.3 AS FORMAS DE FAMÍLIA NA CRFB/88 ................................................... 39 1.3.1 A família a partir do casamento ........................................................... 39 1.3.2 A família a partir do concubinato e da união estável ........................ 40 1.3.3 A família monoparental ........................................................................ 42 1.4 AS NOMENCLATURAS CONVIVENTES, COMPANHEIROS E CONCUBINOS ......................................................................................... 44 2 DA SUCESSÃO ............................................................................................ 48 2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS ........................................................................ 48 2.2 ASPECTOS CONCEITUAIS ...................................................................... 51 2.3 HERANÇA: CONCEITOS E FORMAS ...................................................... 55 2.4 SUCESSÃO LEGÍTIMA ............................................................................. 58 2.5 SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA ................................................................ 60 3 DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ............................................................................................... 63 3.1 DO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO ....... 63 3.2 DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 .................................. 72 3.2.1 Síntese das posições doutrinárias sobre a (in)constitucionalidade do art. 1.790 ......................................................................................... 88 4 CONCLUSÃO ............................................................................................... 91 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 93 9 CATEGORIAS BÁSICAS E CONCEITOS OPERACIONAIS: Nome da categoria: CASAMENTO CIVIL “É o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência.”1 Nome da categoria: MATRIMÔNIO RELIGIOSO “O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados, foi por Cristo Senhor elevado à dignidade de sacramento.”2 Nome da categoria: CONCUBINATO / UNIÃO ESTÁVEL “Reconhecimento da existência da família de fato, formada à margem do matrimônio, que não tinha proteção do poder político e fora ignorada pela legislação.”3 Nome da categoria: FAMÍLIA “É o grupo fechado de pessoas, composto dos pais e filhos e, para efeitos limitados, de outros parentes, unidos pela convivência e afeto numa mesma economia e sob a mesma direção.”4 Ou, “Conjunto de pessoas unidas pelo laço do matrimônio, da união estável, ou ainda, da comunidade formada por qualquer dos pais e descendentes, ligados pelo vínculo de afeto independentemente de existir casamento.”5 Nome da categoria: DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL “É apenas o estado de dois cônjuges que são dispensados pela justiça dos deveres de coabitação e fidelidade recíproca.”6 1 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.19. [Direito de Família, v.6]. 2 JOÃO PAULO II, PAPA. Código de direito canônico. Cân. 1055, §1. Tradução da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 7.ed. rev. e ampl. com a legislação complementar da CNBB. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p.268-269. [Notas e comentários Pe. Jesús Hortal, SJ]. 3 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2.ed. Florianópolis: OAB Editora, 2006. p.37. 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17.ed. atual. [De acordo com o novo Código Civil]. São Paulo: Saraiva, 2002. [v.5 - Direito de Família]. 5 ROSA, Patrícia Fontanella. Casamento. In: FREITAS, Douglas Philips (Org.). Curso de direito de família. Florianópolis: Vox Legem, 2004. p.47. 6 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito brasileiro. p.247. 10 Nome da categoria: DIREITO SUCESSÓRIO “É o conjunto de direitos e obrigações que transmitem, em razão da morte, a uma pessoa, ou um conjunto de pessoas, que sobrevivem ao falecido.”7 Nome da categoria: SUCESSÃO LEGÍTIMA (ou SUCESSÃO AB INTESTATO) “Aquela que a lei indica expressamente quem serão os sucessores, sem a necessidade de testamento.”8 Nome da categoria: SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA “Aquela em que a transmissão dos bens do de cujus se dá por meio de última vontade, revestido da solenidade exigida por lei, prevalecendo as disposições normativas naquilo que for ins cogens, assim como na matéria em que, por ventura o testamento se omitir.”9 Nome da categoria: HERANÇA “O patrimônio do falecido, ou seja, o conjunto de bens materiais, direitos e obrigações que se transmitem aos herdeiros legítimos ou testamentários.”10 7 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. [Atualizada de acordo com o Novo Código Civil. Estudo comparado com o Código de 1916]. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.1. [v.6 - Direito de Família]. 8 GOMES, Orlando. Sucessões. 12.ed. rev., atual. e aum. [De acordo com o Código Civil de 2002]. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.40. 9 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 18.ed. São Paulo: 2004. p.159. [v.6 - Direito das Sucessões]. 10 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.37. 11 INTRODUÇÃO Esta Monografia tem como objetivo estudar a diferenciação de tratamento dado ao cônjuge e ao companheiro, frente às inovações decorrentes no Código Civil de 2002 no que se refere ao Direito Sucessório. O estudo tem a pretensão de contribuir com informações teóricas para futuras pesquisas, no que diz respeito às mudanças na legislação brasileira ocorridas para o cônjuge e o companheiro no direito sucessório, com foco em especial na (in)constitucionalidade do art. 1.790. A importância deste estudo se deve ao fato de que apesar do reconhecimento de uma nova espécie de formação da entidade familiar - união estável -, com base na ordem constitucional, em seu art. 226, §3º, na Lei n. 8.971/94 e na Lei n. 9.278/96, o Código Civil de 2002 deixou lacunas a serem preenchidas e que devem ser revistas, com o intuito de se obter uma interpretação mais clara quanto ao atendimento dos direitos do companheiro(a), parte da união estável. O art. 1.790 do Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406/02), segundo o entendimento de doutrinadores brasileiros e de alguns Tribunais de Justiça fere o Princípio de Igualdade Constitucional. Desse modo, o questionamento de pesquisa a ser respondido neste estudo está assim definido: “Há possibilidade de infrigência do Princípio Constitucional de Igualdade pela diferenciação prevista no Código Civil de 2002 com relação aos direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro?” As hipóteses levantadas para este estudo são: a) Por ter o constituinte brasileiro recomendado no art. 226, §3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - “que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento” -, não concedeu aos companheiros o mesmo status dado aos cônjuges, que terão maiores direitos em relação à herança quanto ao falecimento de seu parceiro; e b) A união estável recebeu da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 o reconhecimento de entidade familiar, nas mesmas condições do casamento e da família monogâmica. Não pode a legislação infraconstitucional tratar de forma diferenciada o direito de herança em favor do cônjuge e do companheiro, quando do falecimento do parceiro. 12 Para responder esta pergunta, o objetivo geral assim está delimitado: “Avaliar a diferenciação de tratamento entre a posição sucessória do companheiro e do cônjuge.” Em atendimento, os objetivos específicos responderão a esta questão da seguinte forma: a) Demonstrar as inovações decorrentes no Código Civil de 2002 no direito sucessório; b) Identificar as diferenças de tratamento dado ao cônjuge e ao companheiro, com base no art. 1.790, em relação ao art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil; e c) Resgatar jurisprudências sobre a (in)constitucionalidade do art. 1.790 e demonstrar as posições dos juristas críticos frente à diferenciação dada ao cônjuge e ao companheiro no direito sucessório. Para o desenvolvimento deste estudo, o método adotado foi o dedutivo, que ao apresentar argumentos considerados verdadeiros, permite chegar a uma conclusão formal. Para tanto, adotou-se uma forma de pesquisa bibliográfica e documental, por meio de fontes primárias, sempre que for possível. Diante do exposto, o trabalho de pesquisa está dividido por capítulos, sendo que: a) no capítulo 1 abordou-se o tema “família”, quanto a conceituação e evolução, a religião e sua influência, e as formas de constituição da família com base na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. b) o capitulo 2 traz o tema “sucessão”, quando a sua conceituação e evolução, a propriedade, a herança e os herdeiros no Direito brasileiro, e os tipos de Sucessão c) no capítulo 3 analisa-se o tema “sucessão do cônjuge e do companheiro” na legislação vigente (foco deste estudo), e a (in)constitucionalidade do art. 1.790, que fere o Princípio da Igualdade Constitucional no direito sucessório, apresentando as posições doutrinárias e jurisprudenciais. Finalmente, no capítulo 4 são apresentadas as conclusões, em resposta ao questionamento de pesquisa e ao objetivo geral, como também, a confirmação das hipóteses deste estudo. 13 1 DA FAMÍLIA Este capítulo apresenta aspectos históricos e contemporâneos da Família, desde os tempos mais antigos até o atual. Neste sentido, informa-se que o estudo da origem histórica da Família na Antigüidade e na fase Contemporânea, bem como de seu conceito e importância na atualidade fazem-se imprescindíveis para a pesquisa acadêmica, uma vez que nada pode ser construído neste trabalho por meio dos limites a que se propõe sem ter sido mensurado suas necessárias bases doutrinárias. Aponta Frederich Engels11 com relação aos estágios de mudanças ocorridas na entidade familiar, que esta instituição, observada a partir de sua origem, ou seja, antes de se adentrar no estado selvagem, até chegar a sua configuração atual, denominada de Família Monogâmica, passou pelas seguintes formas: a) Promiscuidade (Família Consangüínea); b) Matrimônios Grupais (Família Punaluana); c) Casamento Sindiásmico (Família Sindiásmica) e; d) Família Patriarcal. Neste estudo, ainda quanto às transformações históricas da entidade familiar, é importante observar o modelo da Família Romana clássica, visto que este influenciou diretamente na positivação dos direitos familiares, especialmente na maioria dos países ocidentais. Faz-se, também, uma breve abordagem da entidade familiar brasileira atual, conceituando-a, apresentando seus principais caracteres, e fazendo referência as mudanças históricas da Família no Direito Brasileiro. 1.1 FORMAÇÃO DA ENTIDADE FAMILIAR O surgimento da instituição Família tem diferentes fundamentos, sendo uns com origens religiosas e outros com na promiscuidade, conforme relatam alguns doutrinadores. 11 ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do estado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan. 14.ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p.21. 14 Segundo Frederich Engels, o conceito e os tipos de famílias se modificaram ao longo do tempo. Um dos primeiros tipos de família que existiu foi a Família Consangüínea, onde nela os grupos conjugais classificam-se por gerações: todos os avôs e avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entre si, o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer, com os pais e mães, os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns, e seus filhos, isto é, os bisnetos do primeiro, o quarto círculo.12 Em seguida surgiu a Família Punaluana, na qual houve o primeiro progresso na organização da entidade familiar, pois esta excluía os irmãos das relações sexuais recíprocas, seguindo a tendência do progresso. Prosseguindo nas mudanças ocorridas na entidade familiar, ainda com base nos estudos de Frederich Engels, a família subseqüente denomina-se Família Sindiásmica. O autor entende que neste tipo de Família, um homem vive com uma mulher de maneira tal que a poligamia e a infidelidade conjugal continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas econômicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das mulheres, enquanto dure a vida conjugal.13 Finalmente, chega-se a forma de entidade familiar dominante atualmente, que é a Família Monogâmica. Na visão de Frederich Engels, este tipo marcou o fim do período bárbaro e o começo da civilização vigente. Um de seus fatores preponderantes é a indissolubilidade dos laços e a obrigatoriedade da fidelidade; porém esse último não era originária na afeição e no amor dos parceiros, mas sim na garantia de que a prole herdeira do patrimônio era filho legítimo do genitor.14 12 ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do estado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan. p.37. 13 ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do estado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan. p.48. 14 ENGELS, Frederich. A origem da família, da propriedade privada e do estado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan. p.66. 15 Neste sentido, segundo Numa Denis Fustel de Coulanges, a religião era o principal elemento constitutivo da família, mais importante que do que os laços afetivos. O autor assim escreve: se nos transportarmos em imaginação até o dia-a-dia dessas antigas gerações, encontraremos um altar em cada casa e, em volta desse altar, a família reunida. O que unia os membros da família antiga foi algo mais poderoso que o nascimento, que o sentimento e que a força física: foi a religião do fogo doméstico e dos ancestrais, a qual fez com que a família formasse um corpo nesta e na outra vida. A família antiga era mais uma associação religiosa que uma associação natural. Não há dúvida que não foi a religião que criou a família, mas seguramente foi ela que lhe deu suas regras, daí resultando que a família antiga recebeu uma constituição tão diferente daquela que teria recebido se os sentimentos naturais tivessem constituído por si sós seu fundamento.15 A primeira instituição que foi estabelecida pela lei doméstica foi de fato o casamento. Portanto, por muitos anos, o casamento passou a ser a única forma de organização da entidade familiar. Sobre isso Numa Denis Fustel de Coulanges afirma que: o casamento era, pois, obrigatório. Não tinha por fim o prazer; o seu objeto principal não estava na união de dois seres afinizados e querendo partilhar a felicidade e as agruras da vida. O fim do casamento, para a religião e para as leis, estaria na união de dois seres no mesmo culto domestico, fazendo deles nascer um terceiro, apto a continuar esse culto.16 Contudo, Rodrigo da Cunha Pereira, com base nas pesquisas de Jacques Lacan, afirma que a Família não é um grupo natural, mas sim cultural. Não é constituída apenas pelo homem, pela mulher e pelos filhos, mas sim por um aperfeiçoamento psíquico, onde cada qual ocupa seu lugar, sem necessidade de vínculo biológico.17 15 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Ed. São Paulo, 2005. p.44-45. 16 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. p.55. 17 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalística. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p.13. 16 O mesmo autor nega, também, a existência de promiscuidade e conclui que: a promiscuidade não pode ser afirmada em parte alguma, nem mesmo nos casos ditos de casamento grupal; desde a origem existem interdições e leis. As formas primitivas da família têm os seus traços essenciais de suas formas acabadas: autoridade, se não concentrada no tipo patriarcal, ao menos representada por um conselho, por um matriarcado ou seus delegados do sexo masculino; modo de parentesco, herança, sucessão, transmitidos, às vezes distintamente (Rivers), segundo uma linguagem paterna ou materna. Trata-se aí de famílias humanas devidamente constituídas. Mas, longe de nos mostrarem a pretensa célula social, vêem-se nessas, quanto mais primitivas são, não apenas um agregado mais amplo de casais biológicos, mas, sobretudo, um parentesco menos conforme aos laços naturais da consangüinidade.18 Ou ainda: “[...] incompatível com a idéia exclusivista do ser humano e até mesmo de muitos irracionais, e contraditória com o desenvolvimento da espécie [...]”19 Rodrigo da Cunha Pereira assegura, também, “ser muito mais fácil aceitar a Família Monogâmica como a originária do princípio familiar.”20 1.1.1 Da família romana A Família Romana é tida como o marco para fins de estudo das mudanças da instituição Família. O Direito de Família Romano, segundo Orlando Gomes, dá à Família “[...] uma estrutura inconfundível e a torna unidade jurídica, econômica e religiosa fundada na autoridade soberana de um chefe.”21 A organização da entidade familiar se propagou no caminho da Família Romana que era Patriarcal, com um chefe absoluto. No Direito Romano a Família concentrava grande domínio social, cultuando suas tradições, costumes e julgamentos. 18 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalística. p.13. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalística. p.19. 20 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalística. p.19. 21 GOMES, Orlando. Direito de família. 14.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.340. 19 17 Segundo Numa Denis Fustel de Coulanges, a Família Romana sofreu influência da religião pela superioridade da força do marido sobre a mulher e do pai sobre os filhos. A autoridade paternal não foi a causa principal, mas foi o efeito que se originou na religião e por esta foi instituída. O poder que unia os membros da Família antiga encontrava-se no poder da religião do lar e dos antepassados. O esteio da Família Romana não se encontra no afeto natural, pois esse sentimento não era levado em conta tanto para o Direito Romano clássico, como para o grego. O pai podia amar demais sua filha, mas não podia legar os seus bens. Portanto, o fundamento da Família Romana era o poder marital ou o poder paterno.22 Para Silvio de Salvo Venosa, a Família Romana não tinha como objetivo a prole e muito menos o exercício mútuo dos cônjuges, vivendo como uma comunidade política em miniatura, semelhante ao Estado, e seus membros eram unidos por um vínculo mais poderoso do que o do nascimento, ou seja, a religião familiar era dirigido pelo pater.23 Entende Paulo Dourado de Gusmão que a Família Romana constitui verdadeira unidade política, com suas leis, seus julgamentos e seu culto. O varão mais idoso era o chefe do culto, juiz quanto às questões familiares, e titular dos bens de família. Muitas funções da família antiga passaram para o Estado e para a Igreja. Suavizou-se progressivamente a autoridade paterna. No que concerne à sua finalidade, primeiro, a constituição de um grupo solidário, afetivamente unido; depois a prole e a educação dos filhos, de modo a integrá-los na vida social. [...] a família é um foco de moralidade, de energia, e de doçura, uma escola de dever, de amor, de trabalho, uma escola de vida. Nela são transmitidos os valores e as idéias morais às novas gerações. É guardiã das tradições.24 No que se refere a família regulada pela religião, Orlando Gomes escreve que o Direito Canônico tinha influência na estruturação jurídica do grupo familiar. “A Igreja sempre se preocupou com a organização da família, disciplinando-a por sucessivas regras com seu estatuto matrimonial.25” Na Idade Média o Direito Canônico influenciou a família, haja vista que o matrimônio religioso era o único tipo de enlace conhecido, a par da doutrina dos impedimentos matrimoniais. 22 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. p.29. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. p.18. 24 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo de direito. 25.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.302-303. 25 GOMES, Orlando. Direito de família. 13.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.40. 23 18 Sobre isso complementa Yussef Said Cahali que nos primeiros séculos “a Igreja foi titular quase que absoluta dos direitos sobre a instituição matrimonial, ou seja, os princípios do Direito Canônico representavam a fonte do Direito Positivo.”26 Neste sentido, Maria Helena Diniz escreve que por muito tempo, no Brasil, a Igreja Católica foi titular quase que absoluta dos direitos matrimoniais. Pelo Decreto de 3 de novembro de 1827, “os princípios do Direito Canônico regiam todo e qualquer ato nupcial, com base nas disposições do Concílio Tridentino e da Constituição do Arcebispado da Bahia.”27 O Direito Canônico, para Edson Luiz Sampel, tem fontes divinas e positivas, ou seja, aquelas derivadas diretamente da revelação e da vontade expressa de Cristo, fundador da Igreja, aquelas de criação humana inspiradas pelo Espírito Santo, aquelas derivadas do Direito Natural, e também aquelas derivadas de ordenamentos jurídicos considerados profanos.28 Já segundo Aloir Sanson, “o Direito Canônico não é só ordenamento de normas, é todo um sistema de relações jurídicas, [...] Por isso diferencia-se do Direito Civil e enxerga o ser humano de forma mais percuciente [...].”29 Desse modo, na época do Império, o Direito Brasileiro apenas conhecia o casamento católico, pois essa era a religião oficial do Estado. Somente em 1861 foi instituído o casamento civil para pessoas que seguiam outras religiões. Com a imigração, novas crenças foram introduzidas no Brasil. Assim sendo, a Lei n. 1.144 (regulamentada pelo Decreto e 17-04-1863), dando um grande impulso à instituição do casamento civil.30 Diante disso, praticavam-se, então, três tipos de ato nupcial: a) o católico, celebrado segundo normas do Concílio de Trento, de 1563, e das Constituições do Arcebispado baiano; b) o misto, entre católico e acatólico, sob a égide do Direito Canônico; 26 CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. 9.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p.31. 27 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 18.ed. aum. e atual. [De acordo com o Novo Código Civil (Lei n. 10/01/2002). São Paulo: Saraiva, 2002b. p.52-53. 28 SANSON, Aloir. O advogado no direito civil e direito canônico e sua intervenção nas causas de nulidade matrimonial. 2006. Trabalho de Conclusão (Especialização em Direito Matrimonial Canônico). Pós-Graduação em Direito Matrimonial Canônico, Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. p.18. 29 SANSON, Aloir. O advogado no direito civil e direito canônico e sua intervenção nas causas de nulidade matrimonial. p.18. 30 SANSON, Aloir. O advogado no direito civil e direito canônico e sua intervenção nas causas de nulidade matrimonial. p.18. 19 c) o acatólico, que unia pessoas de seitas dissidentes, de conformidade com os preceitos das respectivas crenças.31 Com o advento da República, o poder temporal foi separado do poder espiritual, e o matrimônio veio a perder seu caráter confessional. O Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, instituiu o casamento civil no Brasil, sendo este obrigatório. Em seu art. 108 dispõe que não mais era atribuído qualquer valor jurídico ao matrimônio religioso, isto é, negou efeitos civis ao matrimônio realizado perante a Igreja, e este ato nupcial passou a ser considerado como concubinato. Desta forma ocorreu uma separação da Igreja e do Estado.32 No que diz respeito à finalidade do casamento, Maria Helena Diniz cita estudiosos, tais como Orlando Gomes, Silvio Rodrigues, Domingos Sávio Brandão Lima, Caio Mário S. Pereira, e Nelson Nery Jr., que tratam sobre o tema: a) instituição da família matrimonial: uma unidade originada pelo casamento e pelas inter-relações existentes entre marido e mulher e entre pais e filhos (CC, art. 1.513); b) procriação dos filhos: é uma seqüência lógico-natural e não essencial do casamento (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 226, §7º; Lei n. 9.263/96). A Norma, por outro lado, requer, a aptidão física dos nubentes, já que só permite o casamento dos púberes e admite sua anulação se um dos cônjuges for impotente para a prática do ato sexual. c) legalização das relações sexuais entre os cônjuges: dentro do casamento a satisfação do desejo sexual, que é normal e inerente à natureza humana, apazigua a concupiscência. A aproximação dos sexos e o convívio natural entre marido e mulher desenvolvem sentimentos afetivos recíprocos; d) a comunicação sexual dos cônjuges é o prazer, a co-participação, prólogo e seguimento de uma vida a dois, plenificação suprema de dois seres que se necessitam, interação dinâmica entre marido e mulher, pois casamento é amor. e) prestação do auxílio mútuo: é o corolário do convívio entre os cônjuges. O matrimônio é uma união entre marido e mulher para enfrentar a realidade e as expectativas da vida em constante mutação; há, então, um complemento de duas personalidades reciprocamente atraídas pela força do sentimento e do instinto, que se ajudam mutuamente, estabelecendo-se entre elas uma comunhão de vida e de interesses, tanto na dor como na alegria. f) estabelecimento de deveres patrimoniais ou não entre os cônjuges: como conseqüência necessária desse auxílio mútuo e recíproco. O dever legal de caráter patrimonial que têm os cônjuges de prover na 31 SANSON, Aloir. O advogado no direito civil e direito canônico e sua intervenção nas causas de nulidade matrimonial. p.18. 32 SANSON, Aloir. O advogado no direito civil e direito canônico e sua intervenção nas causas de nulidade matrimonial. p.18. 20 proporção dos rendimentos do seu trabalho e de seus bens a manutenção da família (CC, art. 1.568) e o não-patrimonial, que eles têm de fidelidade recíproca, respeito e consideração mútuos (CC, art. 1.566, I e V); g) educação da prole: pois no matrimônio não existe apenas o dever de gerar filhos, mas também de criá-los e educá-los para a vida, impondo aos pais a obrigação de lhes dar assistência (CC, art. 1.634; Lei n. 8.069/90, art. 22); h) atribuição do nome ao cônjuge e aos filhos; i) reparação de erros do passado (recente ou não); j) regularização de relações econômicas; j) legalização de estados de fato.33 Neste sentido, César Fiuza escreve que segundo o Cânone 1.013 do Código de Direito Canônico da Igreja Católica Apostólica Romana, tradicionalmente são estas as finalidades do casamento: “a) procriação e educação da prole; b) a mútua assistência; c) satisfação sexual, sendo tudo resumido na comunhão de vida e de interesses.”34 Finalmente, Eduardo de Oliveira Leite entende que as finalidades do casamento são: a) a intenção de viverem (afecctio maritalis), que é o elemento decisivo na indissolubilidade do vínculo; e b) o amor, que independe da mera atração sexual, e encontra sua manifestação mais veemente na afeição, solidariedade, cumplicidade, atração mútua e afinidades pessoais; o companheirismo, calcado num projeto comum, capaz de atender e satisfazer ideais e interesses comuns.35 1.1.2 Da família atual A família é a base da sociedade e tem proteção constitucional. Neste sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil36, in verbis dispõe: 33 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.40-42. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8.ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.896. 35 LEITE, Eduardo de O. Direito de família. São Paulo: RT, 2005. p.31-2. [v.5 - Direito Aplicado]. 36 PINTO, Antonio Luiz de Toledo. Vade Mecum. 3.ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007. p.68. 34 21 Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. §1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. §2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. §3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. §4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. §5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. §6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. §7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. §8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Ainda conforme esta Constituição estão previstas três formas de organização da entidade familiar: pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis; pela união estável; e por qualquer um dos pais e seus descendentes. Neste sentido, Arx Tourino (apud Alexandre de Moraes) ensina que o conceito de família pode ser analisado sob duas acepções: ampla e restrita. No primeiro sentido, a família é o conjunto de todas as pessoas, ligadas pelos laços do parentesco, com descendência comum, englobando, também, os afins-tios, primos, sobrinhos e outros. É a família distinguida pelo sobrenome: família Santos, Silva, Costa, Guimarães e por ai a fora, neste grande país. Esse é o mais amplo sentido da palavra. Na acepção restrita, família abrange os pais e os filhos, um dos pais e os filhos, o homem e a mulher em união estável, ou apenas irmãos. É na acepção strictu sensu que mais se utiliza o termo família, principalmente do ângulo do jus positum [...]37 Então, Família é uma entidade familiar constituída por marido e mulher, casados, ou que convivem em união estável, ou ainda, constituída apenas por um dos pais com seus descendentes.38 37 38 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.682. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. p.682. 22 A respeito da importância da Família José Sebastião de Oliveira39 leciona que: a sua importância reluz por existir e subsistir em todos os quadros de nosso planeta, desde as regiões mais inóspitas até as consideradas como centros de excelência em termo de qualidade de vida, do nosso mundo tido por civilizado, apenas sofrendo as variações quanto às suas formas constitutivas em termos de estrutura, decorrendo isso do maior ou menor grau de aculturamento do povo que habita a região que for submetida a uma análise comparativa. Assim sendo, pode-se identificar que a Família existe independentemente de um modelo pré-fixado, sendo que esta subsiste em consonância com a cultura e os costumes locais, parecendo querer fugir do engessamento proposto pelas legislações em vigor. E acrescenta José Sebastião de Oliveira que: [...] a família, como instituição social, é uma entidade anterior ao estado, anterior à própria religião e também anterior ao direito que hoje a regulamenta, que resistiu a todas as transformações que sofreu a humanidade, quer de ordem consuetudinária, econômica, social, cientifica ou cultural, através da historia da civilização, sobrevivendo praticamente incólume, desde os idos tempos, quando passou a existir na sua estrutura mais simples, certamente de forma involuntária e natural, seguindo, paulatinamente, na sua primordial função natural, que é a conservação e perpetuação da espécie humana.40 O conceito de Família na atualidade contempla o afeto, o companheirismo, o amor familiar, e as relações econômicas, e não somente a família constituída pelo casamento civil, ideologia que esta inspirou a criação do Código Civil de 1916. Desse modo, Maria Berenice Dias entende que: faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que 39 OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.21. 40 OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. p.22. 23 permita nominá-las como família. Esse referencial só pode ser identificado na afetividade.[...]41 No mesmo sentido, cabe destacar as palavras de Eduardo de Oliveira Leite, que traz a conceituação da família atual. A nova família, estruturada nas relações de autenticidade, afeto, amor dialogo e igualdade, em nada se confunde com o modelo tradicional, quase próximo da hipocrisia, da falsidade institucionalizada, do fingimento. A noção de vida comum atual repousa soberana sobre sua solidariedade constantemente provocada pela intensidade afetiva. Intensidade que é procurada e mantida como meio de escapar a banalidade cotidiana. Só os sentimentos verdadeiros, reais, espontâneos e autênticos são capazes de garantir a duração de uma vida em comum. Nesta ótica, a permanência das relações passa a independer de condutas preestabelecidas e formalizadas em códigos e leis, mas decorre da atitude de cada cônjuge em relação ao outro. Ou, como diria Foucault, é a ‘plenitude do possível’ que mantém unido o casal. No amor, cada um representa para o outro o único acesso possível em direção à totalidade do real.42 Assim sendo, com base nos entendimentos referenciados até aqui, pode-se observar que nos dias de hoje, cada vez mais, as pessoas buscam formas diferentes de organizar uma entidade familiar, não dando importância à rigidez das leis que impõem uma forma preestabelecida do que seja Família. Desse modo, tem-se como fundamental para o reconhecimento da família, seguindo as idéias dos autores supracitados, o afeto e o amor, sentimentos verdadeiros de quem deseja constituir uma Família. Família, conclui Maria Helena Diniz: é o grupo fechado de pessoas, composto dos pais e filhos e, para efeitos limitados, de outros parentes, unidos pela convivência e afeto numa mesma economia e sob a mesma direção 43 41 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família. 3.ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.39. 42 apud OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. p.130. 43 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17.ed. [Atualizada de acordo com o Novo Código Civil]. São Paulo: Saraiva, 2002. p.15. [v.5 - Direito de Família]. 24 Cabe destacar as palavras de Euclides de Oliveira: [...] Assim, no panorama atual de nosso sistema jurídico a consolidarse com a entrada em vigor do Novo Código Civil, tem-se moderna a conceituação de família como decorrência de união entre homem e mulher, seja legalizada pelo casamento ou sedimentada por duradouro tempo de convivência, ou mesmo passageira, mas vindo a gerar descendência.44 Acrescenta, ainda, Patrícia Fontanella Rosa: a família passa a ser constituída do conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio, da união estável, ou ainda, da comunidade formada por qualquer dos pais e descendentes, ligados pelo vínculo do afeto, independentemente de existir casamento.45 Têm-se, então, várias formas de composição da entidade familiar, e conforme Maria Berenice Dias “é difícil encontrar uma definição de família de forma a dimensionar o que, no contexto social dos dias de hoje, se insere nesse conceito.”46 Extrai-se, também, o entendimento de Maria Berenice Dias: a família moderna, até então considerada apenas a constituída pelas leis do Estado - com características patriarcais, patrimoniais e rurais vê seu conceito ser redesenhado a partir do reconhecimento na Constituição de 1988, no art. 226 e seus parágrafos, de outras espécies de família, quais sejam: a matrimonial, oriunda do casamento; a não matrimonial, oriunda da união estável (união entre pessoas fora dos laços do matrimônio com o intuito de constituir família) e a monoparental (constituída por qualquer dos pais e seus descendentes). A família passa a ser [...] nuclear, horizontalizada, apresentando formas intercambiáveis de papeis, sem o selo do casamento. (Grifo da autora). 47 Desse modo, busca-se constituir uma história em comum, na qual existe comunhão afetiva, e cuja ausência implica a falência do projeto de vida. Nessa nova óptica, traição e infidelidade estão perdendo espaço.48 44 OLIVEIRA, Euclides Benedito. União estável: do concubinato ao casamento; antes e depois do novo código civil. 6.ed. atual e ampl. São Paulo: Método, 2003. p.35. 45 ROSA, Patrícia Fontanella. Casamento. In: FREITAS, Douglas Philips (Org.). Curso de direito de família. Florianópolis: Vox Legem, 2004. p.47. 46 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família. p.38. 47 ROSA, Patrícia Fontanella. Casamento. p.45. 48 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família. p.39. 25 Para Antônio Luiz de Toledo Pinto, a Família atual é constituída com o intuito de se manter uma relação duradoura, baseada na convivência, entre um homem e uma mulher, e sua prole. A entidade familiar constituída por um dos pais e seus descendentes, ligados entre si pelo elo da consangüinidade, afetividade, companheirismo, e relações econômicas, enfim tudo o que implique comunhão plena de vida.49 Sobre isso, o Código Civil de 2002, em seu art. 1.511, dispõe que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.” A respeito do assunto posiciona-se Maria Helena Diniz ao ensinar que “[...] está estabelecida a completa paridade dos cônjuges ou conviventes, tanto nas relações pessoais como nas patrimoniais”, visto que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 igualou seus direitos e deveres e também seu exercício na sociedade conjugal ou convencional. “Não se trata de decadência do homem diante da sociedade, mas sim o fim das conjecturas e do sistema de idéias que atingem esta sociedade.”50 Mais tarde surgiram algumas leis esparsas que regulamentaram direitos e deveres dessas uniões. O item a seguir aborda o reconhecimento da organização da entidade familiar. 1.2 O RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A Família, como já dito anteriormente, é considerada a base da sociedade, ela sempre existiu. Inicialmente, a Família no Brasil teve suas regras de formação ditadas pela Igreja Católica, haja vista que somente com o Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, da autoria de Rui Barbosa, é que houve a regulamentação do casamento civil no Brasil, o qual considerava como único casamento válido o realizado perante autoridades civis. 49 PINTO, Antonio Luiz de Toledo. Vade Mecum. 3.ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007. p.258. 50 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. p.20. 26 Washington de Barros Monteiro; Humberto Theodoro Júnior escrevem que a partir da edição do Código Civil de 1916 a matéria foi tratada em âmbito de legislação codificada, sendo reconhecida como família apenas a união advinda do casamento. As definições instituídas no Brasil, além de omitir tratamento legal as relações extramatrimoniais, culminou por puni-las, seguindo, é verdade, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1891, que protegia somente as famílias legitimas. Estas, com o passar dos anos, mostraram-se frágeis diante da evolução e do desgaste produzido pelas novas exigências da ordem social contemporânea.51 Segundo Maria Berenice Dias, a evolução pela qual passou a Família acabou forçando sucessivas alterações legislativas. A mais expressiva foi o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121/62), que devolveu a plena capacidade à mulher casada e deferiu-lhe bens reservados que asseguravam a ela a propriedade exclusiva dos bens adquiridos com o fruto do seu trabalho. (Grifo da autora).52 No que diz respeito ao casamento civil, inicialmente este era indissolúvel, e somente com a edição da Emenda Constitucional n. 9/77 e, posteriormente, da Lei n. 6.515/77 (Lei do Divórcio), é que as relações matrimoniais passaram a ser dissolvidas. No entanto, antes da Lei n. 6.515/77 entrar em vigor, os casais já se desquitavam e, na maioria das vezes, constituíam novas famílias, as quais não eram reconhecidas pelo Estado. Este fato contribuiu para a difusão de uma nova forma de organização da entidade familiar na sociedade brasileira, ou seja, a relação denominada de Concubinato. Neste sentido, o Código Civil de 1916 não reconhecia as famílias constituídas fora do casamento. No entanto, um número significativo de relações concubinárias levou os tribunais a reverem esta posição, até então tida quanto aos direitos e deveres oriundos dessas uniões. De acordo com Orlando Gomes, a imagem da Família projetada no Código Civil de 1916 correspondia “somente aquela cuja constituição do casamento civil, tal 51 MONTEIRO, Washington de Barros; THEODORO Jr., Humberto. Curso de direito civil. 36.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. [v.2 - Direito das Sucessões]. p.22. 52 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família. p.28. 27 e qual, definido na lei que o introduziu no País. A livre união conjugal e mesmo o casamento religioso não possuíam qualquer efeito civil.”53 Sobre isso Jesualdo Eduardo de Almeida Jr. contribui escrevendo que: no século XX, a sociedade brasileira passa por grandes transformações. A mulher assume cada vez mais espaço no mercado de trabalho; as entidades familiares livres, sem a regularidade do casamento, são cada vez mais comuns; a liberdade sexual implica numa ruptura de costumes, com a presença constante da troca de casais, refletindo num anseio da existência do divórcio; expressões como adulterinos e concubinos, são tidos como reminiscentes, eis que não se fazia mais sentido falar das mesmas.54 Não obstante as uniões livres existirem no Brasil desde a época da colonização, somente com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é que se passou a reconhecer expressamente em texto de lei as uniões não constituídas pelo casamento, hoje denominada de união estável. Segundo Arnaldo Wald, tendo em vista a necessidade de se regulamentar esta nova forma de organização da entidade familiar, surgiram as Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994 e a Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, que definiram os direitos e deveres dos companheiros (membros que constituem união estável).55 Com o advento do Código Civil de 2002, houve profundas mudanças no que se refere ao Direito de Família, e o legislador incorporou as legislações esparsas referentes à união estável. Desse modo, pode-se constatar que a entidade familiar sempre existiu, antes mesmo do surgimento das normas pelas quais elas são regidas nos dias atuais. Antes do Direito Positivo as regras da Família eram ditadas pela Igreja. O item a seguir tratará sobre as regras da Família no CC/1916 e na CRFB/1988. 53 GOMES, Orlando. Direito de família. 14.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.20. 54 ALMEIDA Jr., Jesualdo Eduardo. A evolução do direito de família no Brasil. In: FREITAS, Douglas Philips (Org.). Curso de direito de família. Florianópolis: Vox Legem, 2004. p.21-22. 55 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 15.ed. rev. atual. e ampl. [De acordo com a jurisprudência e com o Novo Código Civil de 2002, com a colaboração da Profª. Priscila M. P. Corrêa da Fonseca]. São Paulo: Saraiva, 2004. p.25. 28 1.2.1 A família no CC/1916 e na CRFB/1988 Conforme escreve Arnold Wald, a primeira legislação aplicável à Família no Brasil referia-se apenas ao casamento, e teve sua origem em 1595, quando foi determinada a Compilação das Ordenações Filipinas, com base em uma lei de 11 janeiro de 1603, que mandava observar tanto em Portugal quanto no Brasil.56 Patrícia Fontanella Rosa57 entende que “no Brasil, em meados do século XVI, a união livre era a forma mais comum de relacionamento existente no Brasil Colônia.” Contudo, Arnoldo Wald complementa escrevendo que as normas impostas por Portugal, cujo direito provinha principalmente do Direito Canônico, afrontavam os costumes e as tradições dos que aqui vivam, visto que a Igreja local decidia isoladamente acerca das questões matrimoniais. As Ordenações Filipinas admitiam, também, o casamento entre os cônjuges fora da Igreja, quando os cônjuges eram tidos “em pública voz e fama de marido e mulher por tanto tempo que, segundo direito, baste para presumir matrimônio entre eles, posto se não provém as palavras de presente.”58 Admitia-se, assim, ao lado do casamento religioso na forma do Concílio Tridentino, o denominado casamento de marido conhecido, que lembrava um pouco a tradição romana do usus, em que o casamento se provava pela affectio maritalis, pela pública fama de marido e mulher e pelo decurso do tempo.59 Conforme Arnoldo Wald tal ordenamento manteve a indissolubilidade do casamento, mas, no entanto, se o casamento não fosse consumado, em situações especiais, era admitido sua anulação. Ademais, o Ordenamento Filipino exigia a outorga uxória para venda de imóveis, sendo o regime qual fosse, sob pena de nulidade do ato. Com o Decreto de 03 de novembro de 1827, que vigorou em todas as dioceses do Brasil, o Concílio Tridentino e a Constituição do Arcebispo da Bahia determinaram que quando os noivos requeressem o casamento, sendo ambos ou 56 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.17. ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia regulamentadoras. 2.ed. Florianópolis: OAB Editora, 2006. p.32. 58 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.17-18. 59 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.17-18. 57 temporal das leis 29 pelo menos um do bispado, e não havendo impedimentos, se realizasse o casamento.60 Somente nos meados do século XIX surgiu entre nós uma legislação especial referente ao casamento dos acatólicos. A Lei n. 1.144, de 11 de setembro de 1861, deu efeitos civis aos casamentos religiosos realizados pelos não católicos, desde que estivessem devidamente registrados.61 Sobre isso, conforme escreve José Sebastião de Oliveira, constitucionalmente a família brasileira teve seus primeiros traços delineados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1824 e de 1891, as quais pouco se referiam à instituição familiar. O assunto família no Brasil praticamente passou despercebido pelos responsáveis pela elaboração das duas primeiras Constituições Nacionais, pois a primeira, nenhuma referência fazia a família em particular, e a segunda apenas passou a reconhecer o casamento civil como o único ato jurídico capaz de constituir família, determinando que a sua celebração fosse gratuita. Nada mais disse sobre a constituição de família.62 Com a Proclamação da República em 1899 houve a desvinculação da Igreja em relação ao Estado. Neste sentido, assim escreve Arnoldo Wald: a regulamentação do casamento civil foi feita pelo Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, de autoria de Rui Barbosa, em virtude do qual ficou abolida a jurisdição eclesiástica, considerando-se como único casamento válido o realizado perante as autoridades civis. O decreto permitiu separação de corpos com justa causa ou havendo mútuo consenso, mantendo, todavia, a indissolubilidade do vínculo e utilizando a técnica canônica dos impedimentos.63 Já com a vigência do Código Civil de 1916, o legislador ateve-se muito aos princípios vigentes no Direito Canônico, tais como os impedimentos para o casamento, o processo de habilitação que influencia o ordenamento brasileiro até os 60 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.18. WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 20. 62 OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.25. 63 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.21. 61 30 dias atuais, bem como considerou indissolúvel o vínculo conjugal, seguindo a esteira constitucional. Cabe ressaltar que este Código, além de tratar do casamento na parte que se referia ao Direito de Família, também abrangia os efeitos jurídicos do casamento, o regime de bens entre os cônjuges, a dissolução da sociedade conjugal e a proteção da pessoa dos filhos, as relações de parentesco, a tutela, a curatela, e a ausência. Sobre isso, pode-se observar que o legislador teve a preocupação de resguardar o interesse da família matrimonial ao elaborar o referido Código. No entanto, o mesmo não assistiu de forma ampla todas as necessidades da sociedade, sendo que, após a sua edição, inúmeras leis foram criadas para resguardar os interesses da família. Pode-se destacar as palavras de Arnoldo Wald: importante diploma legislativo referente ao Direito de Família é a Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, que emancipou a mulher casada, reconhecendo-lhe, na família, direitos iguais aos do marido e situação jurídica análoga, restaurando, outrossim, o pátrio poder (poder familiar) da mulher bínuba. A mencionada lei modificou os princípios básicos aplicáveis em matéria de regime de bens e guarda de filhos [...]64 No entanto, tais leis sofreram modificações após sua promulgação, pois a transformações da sociedade fizeram com que sua atualização fosse necessária. Como já visto, a Emenda Constitucional n. 9/77 possibilitou a dissolução do vínculo matrimonial regulamentada, posteriormente, pela Lei n. 6.515/77 de 26 de dezembro de 1977, que passou a regular a dissolução de sociedade conjugal e do casamento, sendo que em seu art. 5º, §3º, dispõe sobre a destinação dos bens nos casos específicos. Sobre isso escrevem Cleyson de Moraes Mello; Thelma Araújo Esteves Fraga: tem-se assim que, durante todo o século XX, o modelo de família patriarcal, fundada sobre o casamento indissolúvel e rigidamente guiado pelos postulados do Direito Canônico da Igreja Católica Apostólica Romana foi sendo sucessivamente superado, a ponto de, em 26 de dezembro de 1977, com a aprovação da Lei do Divórcio n. 64 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.22. 31 6.515, ser completamente descaracterizado no próprio ordenamento jurídico.65 A Lei n. 6.515/77, além de regular os casos de dissolução, também regulou a proteção da pessoa dos filhos, bem como tratou dos alimentos, em caso de ruptura de matrimônio. Conforme Silvio Rodrigues, a Lei supracitada modificou, também, o regime legal, dispondo que em não havendo pacto antenupcial, o regime que prevalece é o da comunhão parcial. Anteriormente a esta Lei, no silêncio dos contraentes, prevalecia o regime de comunhão universal.66 Maria Berenice Dias contribui a este respeito escrevendo que: a instituição do divórcio (EC n. 9/77 e Lei n. 6.515/77) acabou com a indissolubilidade do casamento, eliminando a idéia da família como instituição sacralizada. O surgimento de novos paradigmas, quer pela emancipação da mulher, quer pela descoberta dos métodos contraceptivos e pela evolução da engenharia genética, dissociaram os conceitos de casamento, sexo e reprodução. O moderno enfoque dado à família pelo direito volta-se muito mais à identificação do vinculo afetivo que enlaça seus integrantes. (Grifo da autora).67 Ainda sobre a Emenda Constitucional n. 9/77, José Sebastião de Oliveira escreve que: o texto de 1988, estimulado pela Emenda Nelson Carneiro - Acioli Filho (EC n. 9/77), mostrou que o divórcio não causa nenhum trauma social. [...] A Constituição Federal reduziu o prazo de cinco para dois anos de separação de fato (divórcio direto) e estabeleceu o prazo de um ano após prévia separação judicial (divórcio indireto).68 Com a supracitada Emenda, foi abolido o termo “desquite”, passando a ser utilizado o termo “separação judicial”. 65 MELLO, Cleyson de Moraes; FRAGA, Thelma Araújo Esteves. O novo código civil comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003. p.1418. v.2. 66 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 25.ed. ao Paulo: Saraiva, 2002. p.177. [v.7 - Direito das Sucessões]. 67 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família. p.28. 68 OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. p.138. 32 A este respeito também leciona Arnoldo Wald: possibilitada a dissolução do vínculo matrimonial pela Emenda Constitucional n. 9/77, a Lei n. 6.515/77, alterou profundamente o sistema do Código Civil em matéria de família, que repousava na indissolubilidade do matrimônio. A lei aboliu a palavra desquite, trazida ao nosso direito pelo Código Civil, e substituiu-a pela 69 expressão separação judicial. ( Grifo do autor). E aduz José Sebastião de Oliveira: que a manutenção do regime de indissolubilidade do vínculo conjugal ao contrário do que defendiam os setores conservadores da sociedade brasileira, não garantia, de fato, a manutenção da família através do casamento. Quando muito esta manutenção formal. Contudo, pragmaticamente, os consortes que não reuniam afetividade em grau suficiente para manter unidos os elos matrimoniais acabavam se separando de fato.70 Como visto, até 1977 não era possível dissolver o vínculo matrimonial. No entanto, inúmeros eram os casos em que os casais se separavam de fato e, nesse contexto, a fim de regularizar a situação fática, foram editadas as supracitadas leis (EC n. 9/77 e Lei n. 6.515/77). A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe um capítulo próprio ao Direito de Família, onde abrange a família, a criança, o adolescente e o idoso. Porém, isso não ocorreu, com as Constituições anteriores a esta. Acrescenta, também, Silvio Rodrigues: o fim dessa discriminação contra a família assim formada ocorreu, em princípio, com a Constituição Federal de 1988, cujo art. 226, §3º, proclama que a união estável entre o homem e a mulher representa uma entidade familiar, que está sob a proteção do Estado, independentemente de matrimônio. Adiante, no §4º, do mesmo dispositivo constitucional, atribui-se igualmente a qualidade de entidade familiar à comunidade constituída por um dos pais e seus descendentes.71 69 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.23. OLIVEIRA, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. p.130. 71 RODRIGUES, Silvio, Direito civil. 28.ed. rev.e atual. [por Francisco José Cahali, de acordo com o Novo Código Civil - Lei n. 10.406, de 10/01/2002]. São Paulo: Saraiva, 2004. p.13-14. [v.6 – Direito de Família]. 70 33 Assim sendo, após a promulgação da supracitada Constituição foram criadas outras legislações importantes, e dentre elas pode-se citar: Lei n. 8.009, de 29 de março de 1990, que ampliou a proteção ao bem de família; Lei n. 8.560, de 29 de dezembro de 1992, que abordou aspectos da investigação de paternidade e do registro de nascimento dos filhos havidos fora do casamento; e a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994 e Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, que definiram os direitos e deveres dos companheiros. Sobre isso, Antonio Luiz de Toledo Pinto72 escreve a Constituição da República Federativa do Brasil contribuiu significativamente para a evolução legislativa, pois até então estas uniões eram discriminadas e não possuíam proteção do Estado. Assim dispõe: Art. 226 - [...] §3º - “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Neste sentido, este autor escreve, ainda, que a Lei n. 8.971/94, embora regulasse o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, introduziu as primeiras conquistas ao apresentar parâmetro para o reconhecimento judicial da união estável. Assim dispõe: Art. 1º - A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei n. 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade. Neste sentido, Maria Berenice Dias entende que a Lei n. 8.971/94 assegurou direito a alimentos e à sucessão do companheiro. No entanto, conservara, ainda, um certo ranço preconceituoso ao reconhecer como união estável a relação entre pessoas solteiras, judicialmente separadas, divorciadas ou viúvas, deixando fora, injustificadamente, os separados de fato. Também a lei fixou condições outras, só reconhecendo como estáveis as relações existentes há mais de cinco anos ou das quais houvesse nascido prole, como se tais requisitos purificassem a relação. Assegurou ao 72 PINTO, Antonio Luiz de Toledo. Vade Mecum. 3.ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007. p.68. 34 companheiro sobrevivente o usufruto sobre parte dos bens deixados pelo de cujus. No caso de inexistirem descendentes ou ascendentes, o companheiro (tal como o cônjuge sobrevivente) foi incluído na ordem de vocação hereditária como herdeiro legítimo. (Grifo da autora).73 A supracitada Lei impôs o prazo de cinco anos para o reconhecimento da união, mas se existisse prole não era necessário este tempo de convivência. A comunidade jurídica muito discutiu o critério objetivo imposto pela Lei, razão pela qual foi editada a Lei n. 9.278, de maio de 1996. Assim prevê o dispositivo: Art.1º - O reconhecimento como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher estabelecida com objetivo de vida em comum. Desse modo, houve a modificação no critério para o reconhecimento das uniões estáveis, estabelecendo-se critério subjetivo, deixando para o julgador a análise ao caso concreto. Sobre isso, Maria Berenice Dias traz que: a Lei n. 9.278/96, teve maior campo de abrangência. Para o reconhecimento da união estável, não quantificou prazo de convivência e albergou as relações entre pessoas separadas de fato. Alem de fixar a competência das varas de família para o julgamento de litígios, reconheceu o direito real de habitação. Gerou a presunção juris et de jure de que os bens adquiridos a titulo oneroso na constância da convivência são frutos do esforço comum, afastando questionamentos sobre a efetiva participação de cada parceiro para proceder à partilha igualitária dos bens. (Grifo da autora).74 Desse modo, a partir da edição da Lei n. 9.278/96 formaram-se três correntes. A primeira corrente defendia “a vigência simultânea das duas leis, posto que regulavam duas entidades diferentes, quais sejam: o concubinato (Lei n. 8.971/94) e a união estável (Lei n. 9.278/96).”75 73 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família. p.146. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família. 2.ed. rev. e atual. [De acordo com o Novo Código Civil]. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006. p.146. 75 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. p.48. 74 35 Sobre isso, Patrícia Fontanella Rosa citando Silvio Rodrigues, escreve que: o art. 226, §3º, da Constituição, que proclama estar a união estável sob a proteção do estado, atribuindo ao concubinato status de entidade familiar, teve, assim, duas leis que lhe regulamentara os efeitos, uma atribuindo direitos sucessórios e alimentícios a uma espécie de conviventes e outro atribuindo direitos de natureza 76 diversa a outra condição de companheiros. A segunda corrente “existia a total revogação da Lei n. 8.971/94, de acordo com o Enunciado n. 1 da Corregedoria Geral da Justiça do Rio de Janeiro.” A terceira corrente “sustentava a derrogação da Lei n. 8.971/94 e a revogação apenas de parte desta, pois incompatível com a Lei n. 9.278/96.”77 Conforme escreve Patrícia Fontanella Rosa, mais tarde acabou prevalecendo o entendimento de que “a Lei n. 8.971/94 havia sido derrogada pela Lei n. 9.278/96, permanecendo apenas a parte não tratada na anterior - o art. 2º relativo à Sucessão.”78 Concluindo, Silvio Rodrigues79 escreve que a família nascida fora do casamento, com origem na união estável entre o homem e a mulher, ganhou novo status dentro do Direito Brasileiro. Desse modo, todas as modificações que perpassaram o instituto da Família durante o século XX, bem como das demais matérias civis, deu-se o distanciamento do Código Civil de 1916 da realidade das relações civis no Brasil, o que levou a aprovação do texto do Código Civil de 2002. Diante do exposto, o item a seguir trata da Família à luz do Código Civil de 2002. 76 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia regulamentadoras. p.48. 77 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia regulamentadoras. p.48. 78 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia regulamentadoras. p.49. 79 RODRIGUES, Silvio, Direito Civil: direito de família. p.256. temporal das leis temporal das leis temporal das leis 36 1.2.2 A família à luz do CC/2002 Com o advento do Código Civil de 2002 foram significativas as mudanças no que se refere ao Direito de Família. De acordo com Cleyson de Moraes Mello; Thelma Araújo Esteves Fraga: a nova codificação civil ampliou os horizontes do ordenamento jurídico familiar contemporâneo. Além de acrescentar à codificação toda uma parte ignorada pelo Código Civil de 1916, tal como a regulamentação da dissolução do casamento pelo divórcio, a possibilidade de procriação por inseminação artificial e a disciplina da união estável como entidade familiar constitucional reconhecida, também eliminou do ordenamento civil partes arcaicas, tais como: a diferença de tratamento jurídico entre os cônjuges e entre os filhos frutos ou não do enlace matrimonial e, de específica relevância para este estudo, a eliminação do regime de bens total.80 No que se refere às mudanças, a principal foi a referência à união estável, dentro do Livro IV, Titulo III. Neste sentido, conforme escreve Euclides de Oliveira; Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: o referido código adveio com ampla e atualizada regulamentação dos aspectos essenciais do Direito de Família à luz dos princípios e normas constitucionais - é bem verdade -, procurando adaptar-se à evolução social e dos costumes, observada com maior ênfase nos anos que circundaram a passagem do milênio, e também incorporando as mudanças legislativas sobrevindas no período.81 E acrescenta Silvio Rodrigues: [...] verifica-se estar ultrapassado o texto de 1916, mas não o sistema normativo que se lhe seguiu. E assim o texto superado já vinha merecendo nova leitura e interpretação pelas modificações introduzidas pela Constituição Federal e pela legislação esparsa posterior, de tal sorte que, no entender do atualizador desta obra, O Direito de Família já se apresentava como um regramento contemporâneo, próximo às expectativas da sociedade.82 80 MELLO, Cleyson de Moraes; FRAGA, Thelma Araújo Esteves. O novo código civil comentado. p.1421. 81 OLIVEIRA, Euclides de Oliveira; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Do direito de família. In: DIAS, Maria Berenice Dias; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de família e o novo código civil. 4.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p.5. 82 RODRIGUES, Silvio, Direito Civil. p.15. 37 E Arnoldo Wald leciona que o Código Civil de 2002 enfatiza desde logo a igualdade dos cônjuges (art. 1.511) e a nãointerferência das pessoas jurídicas de direito público na comunhão de vida instituída pelo casamento (art. 1.513), além de definir o regime religioso e dos seus efeitos.83 Porém, segundo os autores citados, embora o Código Civil de 2002 tenha trazido inovações, a sociedade e a comunidade jurídica ficaram frustradas, pois sendo o projeto de 1975, o mesmo não acompanhou a transformação da sociedade nestes últimos vinte e sete anos, tendo deixado a desejar em vários aspectos, como por exemplo, o Direito Sucessório. Mesmo assim, estes autores escrevem que um dos aspectos mais importantes trazidos no livro de Direito de Família foi a igualdade entre os cônjuges, passando a mulher a ter os mesmos direitos e obrigações que o homem, desaparecendo dessa forma o poder marital, seguindo a determinação constitucional. Neste sentido, Eduardo de Oliveira Leite contribui relacionando as mudanças mais importantes ocorridas no Código: a) a qualificação da família como legítima foi substituída pelo reconhecimento de outras formas de conjugalidade, ao lado da família legitima (arts. 1.723 a 1.727). b) a diferença de estatutos entre o homem e a mulher, que agasalhava o mais assimétrico tratamento de gêneros, no CC/1916, é substituído pela igualdade absoluta entre o homem e a mulher (arts. 1.511, 1.565 a 1.569). c) a categorização dos filhos com diversidade de estatutos ganha nova dimensão com a paridade de direitos entre filhos de qualquer origem (art. 1.596). d) a indissolubilidade do vínculo matrimonial (já resgatada pela Lei 6.515/1977) adentra no universo codificado, não mais como microssistema, mas como intuito próprio do Direito Civil (arts. 1.571 a 1.582). e) a proscrição do concubinato é substituída pelo reconhecimento das uniões estáveis, em capítulo, igualmente, próprio (Título III – Da união estável). (Grifo do autor)84 83 84 WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p.25. LEITE, Eduardo de O. Direito de família. p.31-2. 38 Para Roberto Senise Lisboa, as mudanças socioeconômicas e uma maior participação popular na política foram os fatores que contribuíram decisivamente para que a Família passasse por consideráveis alterações até os dias atuais.85 Neste sentido, Maria Helena Diniz escreve que: hodiernamente, com a quebra do patriarcalismo e da hegemonia do poder marital e paterno, não há mais, diante do novel Código Civil, qualquer desigualdade de direitos e deveres do marido e da mulher ou dos companheiros, pois em seus artigos não mais existem quaisquer diferenciações relativamente àqueles direitos e deveres. Esta é a principal inovação do Novo Código Civil: a instituição material da completa paridade dos cônjuges ou conviventes tanto nas relações pessoais como nas patrimoniais, visto que igualou seus direitos e deveres e também seu exercício na sociedade conjugal ou convivencial.86 Desse modo, segundo Roberto Senise Lisboa, busca-se, hoje, o asseguramento dos direitos da personalidade de cada integrante da família, pouco importando se ele é o genitor, a genitora, ou algum filho havido ou não havido do casamento.87 Com efeito, tem-se à luz do Código Civil de 2002, a família formada “pela consangüinidade e laços de afeto”, ou seja, os pais e seus filhos; e a família formada “por união estável pelo casamento” e, como característica principal, tem a fraternidade, o amor e o companheirismo dentro dela. O item a seguir apresenta a Família à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 85 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. 4.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.38. [v.5 - Direito de Família e das Sucessões]. 86 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.20. 87 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. p.40. 39 1.3 AS FORMAS DE FAMÍLIA NA CRFB/88 Ao iniciar este item, cumpre informar que com a vigência da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Código Civil de 2002, desaparece do ordenamento jurídico o tipo de Família Patriarcal, pois não existe qualquer desigualdade entre os filhos, entre os direitos e deveres dos cônjuges ou ainda dos companheiros. 1.3.1 A família a partir do casamento É a forma mais comum para a constituição da entidade familiar. É aquela que depois do homem e da mulher se conhecerem resolvem registrar seu convívio. Esta união está prevista no art. 226, §1º e §2º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e menciona que o casamento civil e o matrimônio religioso têm o mesmo efeito perante a lei. Como previsto no Código Civil de 2002, em seu art. 1.511, o casamento estabelece comunhão plena de vida - o que só pode ocorrer entre pessoas que se amam e se respeitam, que desejam construir uma vida juntos - com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Assim sendo, o enlace traz direitos e obrigações previstos em lei, que os nubentes se comprometem a respeitar, sob pena de serem reconhecidos culpados pela dissolução da sociedade conjugal ou extinção do vínculo. Ou seja, conforme entende Cláudia Stein Vieira, o casamento tem de ser definido “sob o prisma psicológico, que envolve o ponto ais importante, qual seja o amor entre os nubentes, e sob a ótica jurídica, que englobará os direitos e deveres advindos do ato.”88 Ao definir casamento de forma mais tradicional, Washington de Barros Monteiro e Humberto Theodoro Júnior escrevem que é “[...] a união permanente entre homem e a mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos.”89 88 VIEIRA, Cláudia Stein. Do casamento. In: BARBOSA, Arruda et al. (Coords.). Direito de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. [v.7 - Direito Civil]. p.37. 89 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito de civil: direito de família. p.22. 40 Casamento para Orlando Gomes, é “[...] o vínculo entre um homem e uma mulher, para constituição de uma família [...]”90 Segundo Patrícia Fontanella Rosa, casamento é: a união entre um homem e uma mulher, celebrada com observância das formalidades exigidas na lei. É o ato formal em que os cônjuges adquirem direitos e deveres recíprocos, de natureza pessoal e patrimonial.91 Silvio Rodrigues considera que casamento “é o instituto básico e dominante, ordinariamente e na maioria dos casos, resulta a família.”92 Para Arnaldo Rizzardo, casamento vem a ser: um contrato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferentes se unem para constituir uma família e viver em plena comunhão de vida. Na celebração do ato, prometem elas mútua fidelidade, assistência recíproca, e a criação e educação dos filhos.93 Desse modo, é faculdade afirmar que o casamento é tido como a forma mais comum de se constituir uma Família. 1.3.2 A família a partir do concubinato e da união estável Segundo Silvio de Salvo Venosa, a união fora do casamento civil (união livre) também gera efeitos jurídicos. Porém, anteriormente, o legislador via no casamento a única forma de constituição da Família, negando efeitos jurídicos à união livre, mais ou menos estável, traduzindo essa posição em nosso Código Civil do século passado.94 Isso ocorreu por influência da Igreja Católica. Coube por isso à doutrina, a partir da metade do século XX, tecer posições em favor dos direitos dos concubinos, preparando terreno para a jurisprudência e para a alteração legislativa. Com isso, 90 GOMES, Orlando. Direito de família. p.45. ROSA, Patrícia Fontanella. Dicionário técnico jurídico e latim forense. Florianópolis: Habitus, 2002. p.27. 92 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.76. v.6. 93 RIZZARDO, Arnaldo. 2006. p.17. COMPLETAR 94 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006. [v.6 - Direito de Família]. p.35-37. 91 41 por longo período, os tribunais passaram a reconhecer direitos aos a essa nova organização familiar na esfera obrigacional. Casamento, separação, divórcio, dimensões constitutivas da família, ou de sua dissolução, são elementos fundamentais para a Igreja Católica que os avalia de acordo com diretrizes específicas. Como a Igreja exerce grande influência na sociedade brasileira, sua interpretação acerca dessas questões são relevantes, sobretudo, para os católicos. Por isso, esses elementos não podem ser analisados sem se levar em conta a postura da Igreja Católica diante das mudanças profundas e intensas que afetam a família. Nos ensinamentos de Hélio Borghi, pode-se identificar que “além do casamento, há outra espécie de união, diferente da meramente transitória, [...], que já é ou vem sendo regularizada em vários países, [...] a união estável, [...]”95 A partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que estabeleceu a plena igualdade entre homem e mulher, o casamento passou a não ser o único meio de formação familiar, uma vez que o Código Civil de 2002 reconheceu, em seu art. 1.723, a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, calcado no comando expresso da referida Constituição. Assim dispõe o artigo constitucional: Art. 226 - [...] §3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Ainda cabe aqui transcrever o referido dispositivo do Código: Art. 1.723 - É reconhecida como entidade familiar à união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. §1º - A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI - No caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. §2º - As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável. 95 BORGHI, Hélio. Casamento e união estável: formação, eficácia e dissolução. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. p.45. 42 Desse modo, segundo Euclides de Oliveira, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o Código Civil de 2002 trouxeram uma ampla definição de família, como base da sociedade, pela qual foi formada esse novo tipo de união familiar, fortalecendo, assim, como uma outra maneira de formação da família brasileira, independentemente da existência de impedimento matrimonial entre os seus partícipes, antes verificado pela falta do divórcio no Direito Brasileiro.96 1.3.3 A família monoparental Esse é o nome que se dá a uma entidade familiar organizada pelo filho que convive somente com um dos pais, sendo que neste caso os dois (pai e mãe) não mantêm uma relação familiar entre si. Como previsão legal desse tipo de Família assim dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 226 - [...] §4º - Entende-se, também, como entidade familiar à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Neste sentido, Caio Mário da Silva Pereira escreve que: priorizada a convivência familiar, ora nos confrontamos com o grupo fundado no casamento ou no companheirismo, ora assumimos o reconhecimento da família monoparental identificada com os mesmos direitos e deveres [...]97 Sobre isso faz-se necessário ressaltar que, por ser uma Família prevista em lei, possui direitos e deveres como qualquer outra formação familiar. 96 OLIVEIRA, Euclides de. União estável: do concubinato ao casamento - antes e depois do novo código civil. p.29-30. 97 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p.6. v.5. 43 Leciona Sílvio de Salvo Venosa que: [...], a própria Constituição reconhece que pode existir família, entidade familiar, fora do casamento e fora da união estável, constituída por apenas um de seus genitores e seus descendentes, a chamada família monoparental [...]98 Sobre essa forma de organização da entidade familiar, Caio Mário da Silva Pereira disciplina que: a Carta de 1988 reconheceu a proteção do Estado [...] às famílias monoparentais constituídas por um dos pais com os filhos. Qualquer dos cônjuges na Separação ou no Divórcio, as mães solteiras, viúvas e, mesmo, os celibatários com seus filhos, são reconhecidos como base para a convivência familiar e comunitária identificada como Direito Fundamental Constitucional.99 Roberto Senise Lisboa complementa afirmando que há relação monoparental nos seguintes casos: a) entre qualquer dos pais e seus filhos, ante a morte, o desaparecimento ou a ausência do outro genitor. b) entre qualquer dos avós e seus netos, ante a morte, o desaparecimento ou a ausência dos pais. c) entre qualquer dos bisavós e seus bisnetos, ante a morte, o desaparecimento ou a ausência dos avós e dos pais; e assim por diante.100 Pode-se afirmar que a mãe ou o pai solteiro, separado, divorciado, ou viúvo que vive com o seu filho ou filha, vive em uma espécie de Família. 98 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. p.472. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. p.15. 100 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. p.261. 99 44 1.4 AS NOMENCLATURAS CONVIVENTES, COMPANHEIROS E CONCUBINOS Segundo leciona Patrícia Fontanela, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, buscando proteção à união estável, atentou para os conceitos jurídicos modernos.101 Para Rodrigo da Cunha Pereira, a referida legislação estabelece novas concepções para o Direito Concubinário, principalmente, a partir da forma de organização familiar - união estável, como um fato social marcante em nosso País.102 Neste sentido, esclarece Patrícia Fontanela Rosa103 que: o termo concubinato, sinônimo de convivência, foi alterado para união estável quando finalmente, reconheceu-se a existência da família de fato, formada à margem do matrimônio, que não tinha proteção do poder político e fora ignorada pela legislação. Complementa Rodrigo da Cunha Pereira que a Lei n. 8.971/94, preferiu usar o termo “companheiros” no lugar do “concubinos” para designar os sujeitos de uma relação concubinária ou, nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de uma união estável. Sem nenhuma explicação lógica, talvez por capricho do legislador, a Lei n. 9.278/96, substituiu a expressão “Companheiro” por “Convivente”.104 O Código Civil de 2002, com redação aprovada pelo Congresso Nacional em agosto de 2001, preferiu utilizar a expressão “Companheiros” na parte que trata especificamente sobre união estável, mas também usou a expressão “Convivente” ao tratar dos alimentos no art. 1.694. Entretanto, a determinação e a nomeação dos sujeitos de uma relação concubinária serão aquelas que o costume consagrar, como já vinha 101 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. 2.ed. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p.37-38. 102 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável de acordo com o novo código civil. p.34. 103 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. p.37. 104 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável de acordo com o novo código civil. p.67; 69. 45 acontecendo com a expressão companheiros, adotada em vários textos normativos, desde 1975, com a alteração da Lei n. 6.015/73.105 Tal como foi inserida no texto constitucional a expressão “união estável”, veio a substituir a expressão “concubinato”. A união estável é o concubinato nãoadulterino. Assinala Rodrigo Pereira da Cunha: em razão do princípio jurídico da monogamia, não recebe a proteção do Estado como uma forma de família. Os direitos decorrentes do concubinato adulterino não estão no campo do Direito de Família, mas na teoria das sociedades de fato, no direito obrigacional, que encontra respaldo e fundamentação teórica para justificá-lo.106 Entende Irineu Antonio Pedrotti que concubinato, sociedade de fato, e/ou união estável: não cria, em verdade um estado civil e nem modifica a condição jurídica que a pessoa tem. Tratando-se de alguém que viva more uxório será considerado concubino, companheiro, unido estavelmente, por se encontrar configurada essa situação jurídica.107 Dentro deste contexto, pode-se constatar que na Doutrina, união estável ou concubinato pode ser puro ou impuro. Para Maria Helena Diniz: será puro se apresentar como uma união duradoura, sem casamento civil, entre o homem e a mulher livres e desimpedidos, isto é, não comprometidos por deveres matrimoniais ou por outra ligação concubinária. Assim, vivem em união estável ou concubinato puro: solteiros, viúvos, separados judicialmente ou de fato e divorciados. [...]; e concubinato impuro, ou simplesmente concubinato, são as relações não eventuais em que um dos amantes ou ambos estão comprometidos ou impedidos legalmente de se casar.108 Complementando, Maria Helena Diniz entende que no concubinato: há o panorama de clandestinidade que lhe retira o caráter de entidade familiar, visto que não poder ser convertido em casamento. Apresenta-se como adulterino, se fundar no estado de cônjuge de 105 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável de acordo com o novo código civil. p.69. 106 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável de acordo com o novo código civil. p.3. 107 PEDROTTI, Irineu Antonio. Concubinato união estável. p.191. 108 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.345-346. 46 um ou de ambos os concubinos e incestuoso, se houver parentesco próximo entre os amantes.109 Compartilhando desse entendimento, Rodrigo da Cunha Pereira110 escreve que concubinato “é um gênero que comporta duas espécies: o concubinato adulterino, a que se tem denominado simplesmente de concubinato, e o nãoadulterino, que se pode denominar união estável.” Sobre a partilha do patrimônio observa Patrícia Fontanela Rosa que a Súmula 380 consolidou a respeito da divisão de haveres no Concubinato, utilizando-se de tal nomenclatura, “comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos é cabível a sua dissolução judicial com partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.” A partir daí os tribunais começaram a aceitar a possibilidade de divisão do patrimônio adquirido pelo esforço comum ou direito à partilha, desde que restasse plenamente comprovado durante a instrução processual que a companheira tivesse realmente contribuído juntamente com o companheiro para aumentar o patrimônio do casal.111 Patrícia Fontanela Rosa observa, ainda, que havia nítida distinção entre sociedade de fato e concubinato, pois com a Súmula 380 passou-se a reconhecer a existência da sociedade de fato, “cuja extinção não poderia gerar enriquecimento injustificado em detrimento, normalmente, da mulher.” Já a companheira que não exercia atividade remunerada, entretanto, “restava indenização por serviços domésticos prestados, o que não se vinculava ao patrimônio do companheiro.”112 A esse respeito a autora cita, também: Concubina - A concubina que tem direito à remuneração dos serviços domésticos é aquela que se torna verdadeira companheira do amante, residindo sob o mesmo teto e fazendo tais serviços em benefício da economia de ambos.113 109 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.346-347. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável de acordo com o novo código civil. p.29. 111 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. p.37. 112 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. p.37. 113 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. p.38. 110 47 Desse modo, ao dissolver a união os concubinos deveriam provar o esforço comum na aquisição patrimonial. “Os juízes atribuíam percentuais dos bens, conforme a prova amealhada nos autos. Não eram reconhecidos direitos sucessórios e tampouco alimentos.”114 Ainda sobre este assunto, o Supremo Tribunal Federal, na esteira da Súmula 380 editou a Súmula 382, que enunciava: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato.” Isto é, esta coabitação era considerada indispensável para se caracterizar o relacionamento estável, passou a ser requisito dispensável para fins de sua identificação.115 Diante disso, após escrever sobre a organização da entidade familiar, o capítulo a seguir abordará a configuração do Direito Sucessório no ordenamento jurídico pátrio. 114 ROSA, Patrícia Fontanella. regulamentadoras. p.38. 115 ROSA, Patrícia Fontanella. regulamentadoras. p.40. União estável a eficácia temporal das leis União estável a eficácia temporal das leis 48 2 DA SUCESSÃO Este capítulo apresenta as mudanças ocorridas no Direito Sucessório no Brasil, sua conceituação, a definição de herança, a sucessão legítima, e a sucessão testamentária. 2.1 ASPECTOS HISTÓRICOS O Direito Sucessório existe desde os mais remotos povos, desde a Antigüidade, por meio da transmissão dos bens pela morte, e não é novidade entre as sociedades. Conforme descreve Silvio Rodrigues: a possibilidade de alguém transmitir seus bens, por sua morte, é instituição de grande Antigüidade, encontrando-se consagrada, entre outros, nos direitos egípcio, hindu e babilônico, dezenas de séculos antes da Era Cristã.116 Sobre isso disserta Giselda Maria Fernandes Novaes Hinoraka que: [...] na Grécia e na Índia das leis de Manu, a religião desempenha um papel de suma importância para a agregação familiar. Pertencem à mesma família aqueles que participam do mesmo culto aos deuses domésticos, sendo que estes são os próprios antepassados daqueles que em vida comungam para reverenciar os que já se foram. E o culto desenvolve-se diante do altar doméstico, onde o fogo sagrado arde, onde são depositados os artigos de comer e de beber e ao redor de onde se constrói a habitação da família e se cultivam os gêneros de subsistência. Os membros da família, ao assentarem o lar, fazem-no com o pensamento e a esperança de que permanecerá sempre no mesmo lugar. O lar toma posse do solo; apossa-se desta parte de terra que fica sendo, assim sua propriedade. E a família, destarte, ficando, por dever e por religião, agrupada ao redor do seu altar, fixa-se ao solo tanto como o próprio altar.117 116 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. p.4. HINORAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao código civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p.4. [v.20 - Parte Especial do Direito das Sucessões]. 117 49 Nuna Denis Fustel de Coulange sexplica sobre o mesmo assunto escrevendo que: a velha religião estabelecia diferenças entre o primogênito e o segundo nato: [...] Em virtude desta superioridade original o filho mais velho tinha, depois da morte do pai, o privilégio de presidir a todas as cerimônias do culto doméstico; era o filho quem oferecia os banquetes fúnebres [...] O primogênito era, pois o herdeiro dos hinos, o continuador do culto, e o chefe da família. Dessa crença nasceu uma regra de direito: só o primogênito podia herdar.118 Leciona Silvio Rodrigues que num primeiro momento a Sucessão não se transmitia aos herdeiros através da partilha dos bens, ou seja, isso não prevalecia. O direito de primogenitura e varonia, entretanto, perpetua-se em muitas civilizações, inspirando em outras razões de ordem política e social de considerável relevância. A primeira e principal delas é o propósito de manter poderosa a família, impedindo a divisão de sua fortuna entre em vários filhos. Nota-se que antigas regras sobre a sucessão, quer inspiradas em motivos religiosos, quer fundações no anseio de fortalecer a família, não levam em consideração o sentimento de eqüidade, ou seja, o instituto de aquinhoar igualmente os descendentes, ou os parentes em igualdade de grau. Entretanto, foi nesse sentido que o direito hereditário evolui, visto que, na quasetotalidade dos países, a sucessão legítima se processa entre os herdeiros que se encontram no mesmo grau e que, por conseguinte, recebem partes iguais.119 Neste sentido, Orlando Gomes disciplina sobre o Direito Romano: heredes sui et necessarri eram os filhos sob pátrio poder, a mulher in manu, quia filiae loco est e outros parentes sujeitos ao de cujus. Agnati as pessoas sob o mesmo pátrio poder ou de quem a ele se sujeitariam se o pater famílias não estivesse morto. A herança não era deferida a todos os aganados, mas ao mais próximo no momento da morte. Gentiles, os membros da mesma gens. O sistema foi substituído pelo direito pretoriano, que admitiu quatro ordens de sucessíveis: liberi, legitimi, cognait e cônjuge 120 sobrevivente (vir et uxor). Ainda sobre as relações de parentesco no Direito Romano ensina Giselda Maria Fernandes Novaes Hinoraka: 118 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.3. COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Ed. São Paulo, 2005. p.90. 120 GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. 12.ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1. 119 50 com a Lei das XII Tábuas, passou-se a prever três classes de herdeiros para a hipótese de morte sem disposição de última vontade. A primeira delas (sui heredes) era composta por aquelas que se encontravam sob o poder do pater e que se tornavam sui iuris com a sua morte, ai compreendidos os filhos, homens ou mulheres, a esposa sujeita ao poder marital (porque ocupava o lugar da filha) e os netos, desde que houvesse pré-morrido o pai, em nítida previsão de direito de representação [...] A segunda classe de herdeiros (agnatus proximus) é composta pelo parente agnado mais próximo do falecido. Entende-se por agnado o colateral de origem exclusivamente paterna, ai compreendido o irmão consangüíneo, o tio que fosse filho do avô paterno, o filho desse mesmo tio e assim sucessivamente, sem restrição de grau. O agnado distingue-se do cognato, que é o parente colateral de origem materna, assim o tio que fosse filho do avô materno, uma vez que esse não guardava relação com o tronco exclusivamente paterno do de cujus. Por fim, seriam chamados a sucessão na ausência de membros das classes anteriores os gentiles, ou membros da gens, que é o grupo familiar em sentido lato, podendo-se incluir aqui, ao que parece, a mãe sobreviva do falecido.121 Silvio de Salvo Venosa escreve que no Direito Romano era absoluta a liberdade de testar, abrangendo todo patrimônio e a quem quisesse. No Direito Romano, [...] a sucessão causa mortis ou se deferia inteiramente por força de testamento, ou inteiramente pela ordem de vocação legal. Isso porque o patrimônio do defunto se transmitia de forma integral. Caso falecesse com testamento, o herdeiro nomeado [...] seria um continuador do culto recebendo todo o patrimônio.122 Conforme Washington de Barros Monteiro, a relação do falecido com os bens estava condicionado à: [...] propriedade que se extinga com a morte do respectivo titular e não se transmita a um Sucessor não é propriedade, porém mero usufruto, a transmissão causa mortis é a decorrência lógica da propriedade, tal como caracterizada, dentre outros aspectos, pela perpetuidade e estabilidade da relação jurídica formada; ou sob outro ângulo, é o complemento do direito de propriedade, prolongando-se além da morte de seu titular.123 121 HINORAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao código civil. p.5. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. p.19. 123 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 36.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.8. [v.6 - Direito das Sucessões]. 122 51 Com outra visão mais abrangente alguns doutrinadores124, dentre eles Cunha, Gonçalves, Savigny e Cahali, sustentam o fundamento da transmissão hereditária não só na propriedade, mas também na Família, combinando estes dois institutos, e chegando-se a afirmar que o Direito Sucessório é o “Regime da Propriedade da Família.” E não há como se negar a relevante função social desempenhada pela possibilidade de transmissão causa mortis, pois como enfatizam Francisco José Cahali; Gisela Maria Fernandes Novaes Hironaka “[...] valoriza a propriedade e o interesse individual na formação e avanço patrimonial, estimulando o desenvolvimento da própria sociedade.”125 2.2 ASPECTOS CONCEITUAIS O Direito Sucessório, de acordo com Arnoldo Wald, trata das normas referentes à transmissão dos bens pertencentes às pessoas falecidas. Sua regulamentação consta do Código Civil de 2002, além de encontrar amparo na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.126 O vocábulo Sucessão, segundo Plácido; Silva, origina-se do latim sucessio, de succedere, que significa suceder.127 Nas palavras de Orlando Gomes, o Direito Sucessório “é a parte especial do Direito Civil que regula a destinação do patrimônio de uma pessoa depois de sua morte.”128 Ou ainda, conforme Sílvio de Salvo Venosa, Direito Sucessório “é o conjunto de direitos e obrigações que transmitem, em razão da morte, a uma pessoa, ou a um conjunto de pessoas que sobrevivem ao falecido.”129 124 apud MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. p.8-9; apud DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro: direito das sucessões. p.6. 125 CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Gisela Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil. p.27. 126 WALD, Arnaldo. Direito das sucessões. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.1. 127 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 27.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.780. 128 GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. 12.ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1. 129 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 35.ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.1. 52 No Direito Sucessório, afirma Washington de Barros Monteiro, que entretanto, emprega-se o vocábulo num sentido mais restrito, para designar tãosomente a transferência da herança, ou de legado, por morte de alguém, ao herdeiro ou legatário, seja por força de lei, ou em virtude de testamento (hereditas nihil aliud est quam sucessio in universum jus, quod, quod defunctus habuit).130 Conforme entendimento de Arnoldo Wald, o conceito de Sucessão abrange além dos casos de transferência de direito subjetivo ou de dever jurídico mortis causa, ou atos intervivos. O Direito Sucessório ou Hereditário tem restrito o seu campo de ação á transmissão de direitos ou deveres - oriunda do falecimento do seu titular - que se transferem a terceiros, em virtude da declaração de vontade do de cujus ou de disposição de lei.131 Neste sentido, Maria Helena Diniz escreve que: com a morte do autor da herança o sucessor passa a ter a posição jurídica do finado, sem que haja qualquer alteração na relação de direito, que permanece a mesma, apesar da mudança do sujeito. Deveras, ressalvado o sujeito, mantêm-se todos os outros elementos dessa relação: o título, o conteúdo e o objeto. Dessa forma, o herdeiro insere-se na titularidade de uma relação jurídica que lhe advém do de cujus.132 Roberto Senise Lisboa considera Sucessão em sentido amplo, como a substituição da pessoa física ou da pessoa jurídica por outra, que assume todos os direitos e obrigações do substituído ou sucedido, pelos modos aquisitivos existentes.133 Já Maria Helena Diniz entende Sucessão em sentido restrito, como a transferência total ou parcial de herança por morte de alguém, a um ou mais herdeiros, “é a sucessão mortis causa que, no conceito objetivo, indica a universalidade dos bens do de cujus, que ficaram com seus direitos e encargos.”134 130 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das sucessões. 36.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.1. 131 WALD, Arnaldo. Direito das sucessões. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.1. 132 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.3. 133 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil. Direito de família e das sucessões. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2004. p.367. 134 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.16. 53 Sobre isso esclarece Arnaldo Wald: a sucessão é o modo de transmissão, enquanto a herança é o conjunto de bens, direitos e obrigações, que se transmitem aos herdeiros e legatários. Portanto, a herança transmite-se em virtude de sucessão mortis causa, a sucessão mortis causa é o modo de transmitir a herança. Em sentido subjetivo, e, assim, cogitamos do direito de herdeiro à sucessão do de cujus. Por outro lado, certas leis identificam a sucessão com herança, definindo-a como o conjunto de bens, direitos e obrigações que constituem o patrimônio do falecido [...]135 Conforme Maria Helena Diniz, a Sucessão no mundo jurídico se apresenta sob duas formas: sentido amplo e sentido estrito. [...] sentido amplo, aplicando-se a todos os modos derivados de aquisição do domínio, de maneira que indicaria o ato pelo qual alguém sucede a outrem, investindo-se, no todo ou em parte, nos direitos que lhe pertenciam. Trata-se de sucessão inter vivos; [...] sentido estrito, designando a transferência, total ou parcial, de herança, por morte de alguém, a um ou mais herdeiros. É a sucessão mortis causa, que, no conceito subjetivo, vem a ser o direito em virtude do qual a herança é devolvida a alguém, ou, por outras palavras, é o direito por força do qual alguém recolhe os bens da herança, e, no conceito objetivo, indica a universalidade dos bens do de cujus que ficaram, com seus encargos e direitos.136 Sobre isso Silvio de Salvo Venosa entende que: quando o conteúdo e o objeto da relação jurídica permanecem os mesmos, mas mudam dos titulares da relação jurídica, com uma substituição, diz-se que houve uma transmissão no direito ou na sucessão. Assim, o comprador sucede ao vendedor na titularidade de uma coisa, como também o donatário sucede ao doador, e assim por diante.137 Complementa, ainda, Silvio de Salvo Venosa, que no Direito costuma-se fazer uma grande linha divisória entre as duas formas de Sucessão: a que deriva de um ato entre vivos, como um contrato; e a que deriva ou tem como causa a morte (causa mortis), quando os direitos e 135 WALD, Arnaldo. Direito das sucessões. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.7. DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.15-16. [v.6 - Direito das Sucessões]. 137 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. p.15. 136 54 obrigações da pessoa que morre transferem-se para seus herdeiros e legatários.138 Nas palavras de Clóvis Beviláqua, Direito Sucessório “é o complexo dos princípios segundo os quais se realiza a transmissão do patrimônio de alguém, que deixa de existir.”139 Sobre isso Silvio Rodrigues explica que: a idéia de sucessões sugere, genericamente, a de transmissão de bens, pois implica a existência de um adquirente de valores, que substitua o antigo titular. Assim, em tese, a sucessão pode operar-se a título oneroso, inter vivos ou causa mortis. Todavia, quando se fala em direito das sucessões entende-se, apenas a transmissão em decorrência de morte, excluindo-se, portanto, do alcance da expressão, a transmissão de bens por ato entre vivos.140 No entendimento de Arnaldo Rizzardo, a Sucessão de algum modo, tem uma sensação de prolongamento da pessoa, ou de atenuação do sentimento do completo desaparecimento, especialmente quando são realizadas obras que refletem o ser daquele que morre, e que o tornam vivo ou presente nas memórias.141 Para José Francisco Cahali, Direito Sucessório “é o conjunto de regras e complexo de princípios jurídicos pertinentes à passagem da titularidade do patrimônio de alguém que deixa de existir aos seus sucessores.”142 O autor ressalta que o fundamento do Direito Sucessório procede da individualização da propriedade, ensejando assim a titularidade do patrimônio. Quanto à forma de Sucessão, de acordo com Maria Helena Diniz, o Direito Sucessório tem como cerne a morte natural, pois somente com ela dá-se início à abertura da Sucessão, já que, sem o óbito do de cujus não se configura a Sucessão Hereditária, tendo em conta que não há herança de pessoa viva (viventus nulle est hereditas).143 138 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. p.15. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de família. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. p.15. 140 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2002. p.3. 141 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.1. 142 CAHALI, José Francisco. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.24. 143 DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro. Direito das sucessões. 2004. p.23. 139 55 2.3 A HERANÇA: CONCEITOS E FORMAS Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 presenteou o Direito Sucessório com dignidade constitucional, ao inserir em seu art. 5°, inciso XXX, a garantia da herança no capítulo destinado aos Direitos Fundamentais da pessoa humana. Herança é o conjunto de direitos, deveres e bens deixados pelo de cujus, podendo também ser chamada de monte, ou como é tratada juridicamente, espólio.144 Maria Helena Diniz entende que: o objetivo da sucessão causa mortis é a herança. [...] A herança é, portanto, o patrimônio do falecido, ou seja, o conjunto de bens materiais, direitos e obrigações (CC/2002, art. 91 e art. 943) que se transmitem aos herdeiros legítimos ou testamentários.145 Conforme esclarece Arnaldo Wald: os conceitos de herança e de sucessão têm sido obscurecidos pelo significado que entre ambos quiseram estabelecer. Na realidade, a sucessão é o modo de transmitir direitos, sendo a sucessão geralmente entendida como sucessão hereditária, ou seja, mortis causa. Mas por sucessão também se entende, em sentido subjetivo, o direito que cabe ao sucessor de exigir os bens do sucedido, e, assim, cogitamos do direito do herdeiro á sucessão do de cujus. Por outro lado, certas leis identificam a sucessão com a herança, definindo-a como o conjunto de bens, direitos e obrigações do falecido.146 Desse modo, a herança é considerada no Direito Brasileiro, em virtude de ficção legal, como um bem imóvel, independente de ser composta de bens móveis ou imóveis. A herança como condomínio que é, indivisível até a partilha é considerada como um bem imóvel e para tanto deve obedecer às regras determinadas para esta espécie de bem. Art. 80 - Consideram-se imóveis para efeitos legais. II - o direito a sucessão aberta. 144 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao código civil. p.5 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. p.37. 146 WALD, Arnaldo. Direito das sucessões. 2002. p.7. 145 56 Portanto, a transmissão de quaisquer dos bens integrantes da herança só poderá ser feita através de escritura pública, sempre através de autorização judicial, sendo a herança considerada como um condomínio indivisível até a partilha, sendo que todos os herdeiros possuem a posse e a propriedade conjuntamente. Somente após a partilha é que serão designados os quinhões hereditários de cada herdeiro. Sobre isso, cabe destacar as palavras de Silvio de Salvo Venosa: a compreensão da herança é uma universalidade. O herdeiro recebe a herança toda ou uma quota-fração dela, sem determinação de bens, o que ocorrerá somente com a partilha. O herdeiro pode ganhar essa condição por estar colocado na ordem de vicação hereditária (art. 1829; antigo art. 1603) ou por ter sido aquinhoado com uma fração da herança por testamento.147 Complementa Arnaldo Wald que herança “é o conjunto de direitos e deveres patrimoniais, ou seja, a universalidade das relações jurídicas de caráter patrimonial, nas quais o falecido era sujeito ativo e passivo.”148 Pode apresentar um caráter positivo ou negativo. Isto é, na compensação do seu ativo e passivo, podemos chegar à conclusão que o primeiro supera o segundo, havendo superávit, ou que, ao contrário, é por ele ultrapassado, ocorrendo déficit. Tem-se, no primeiro caso, a herança positiva, e no segundo, a herança negativa, caracterizada pela existência de dívidas superiores aos haveres.149 Também deve integrar a herança as dívidas deixadas pelo falecido, devendo ser ressaltado que o ordenamento jurídico brasileiro adotou o princípio do benefício de herança. Portanto, as dívidas serão suportadas até as forças da herança, não respondendo os herdeiros com seu patrimônio. Sobre isso ensina José Francisco Cahali: assim, de todo o acervo, verificado os bens e direitos, em confronto com o passivo (dívidas e obrigações), isolada eventual meação do cônjuge o saldo positivo é destinado aos herdeiros pela sucessão, caracterizando a chamada herança positiva (inventário positivo). Caso na compensação entre ativo e passivo venha a se apurar um déficit, ou seja, a existência de dívidas superiores aos haveres, 147 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. p.21. WALD, Arnaldo. Direito das sucessões. 2002. p.2. 149 WALD, Arnaldo. Direito das sucessões. 2002. p.2. 148 57 caracteriza-se o chamado inventário negativo (herança negativa), utilizando-se do processo, até por provocação dos credores, apenas para administrar o acervo objetivando saldar as obrigações do falecido, e não destinar bens (ou direitos) aos sucessores.150 Ao tratar sobre herança, acrescenta Roberto Senise Lisboa: a herança é a universidade ou totalidade dos direitos ou obrigações abstratamente considerados que integram o patrimônio deixado pelo falecido, em face da sua morte, suscetíveis de transmissão aos seus respectivos herdeiros.151 Esclarecem José Francisco Cahali; Giselda Maria Fernades Novaes Hironaka ao tratar de Direito Sucessório: direcionam-se as normas legais principalmente à destinação do patrimônio deixado pela pessoa falecida, indicando seus herdeiros (sucessão legítima), às regras pertinentes à nomeação de sucessores, por disposição de última vontade, com as respectivas formalidades e restrições (sucessão testamentária) e a forma com que se dará essa transmissão. Substitui-se o sujeito (o sucessor assume os direitos e obrigações do falecido), mantendo-se íntegra a relação jurídica mesmo após o desaparecimento do seu primitivo titular, não se aplicando, nestas condições, o preceito mors omnia solvit.152 Assim sendo, há três espécies de herança: Herança Testamentária, baseada na vontade do testador; Herança Legítima, com base nos dispositivos legais, onde estão estabelecidas quais pessoas têm direito de suceder, conforme a ordem de vocação hereditária; e Herança Necessária, que é aquela destinada aos herdeiros necessários (ascendentes, descendentes e o cônjuge), ou seja, se houver herdeiros necessários não se pode testar 50% do patrimônio do de cujus. Porém, não é permitida tal situação no ordenamento jurídico brasileiro, pois a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe a igualdade entre os filhos. Assim dispõe: 150 CAHALI, José Francisco. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003. p.32. 151 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direito de família e sucessões. 2004. p.368. 152 CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. p.30-31. 58 Art. 227 §6º - Os filhos nascidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Quanto aos tipos de Sucessão, pode-se dizer que quanto à fonte, divide-se em: Sucessão Legítima, Sucessão Testamentária, Sucessão Singular, e Sucessão Universal. Neste estudo serão abordadas a Sucessão Legítima e a Sucessão Testamentária. 2.4 SUCESSÃO LEGÍTIMA Orlando Gomes escreve sobre a Sucessão Legítima ou Sucessão ab Intestato, conceituando-a como aquela que a lei indica expressamente quem serão os sucessores, sem a necessidade de testamento.153 Então a Sucessão Legítima ocorre quando “tem o autor da herança herdeiros que, de pleno direito, fazem jus; recolher uma parte dos bens; o testamento caduca; o testamento é declarado inválido.”154 Desse modo, a existência do testamento não exclui a Sucessão Legítima, pois esta ocorrerá em virtude da existência de herdeiros obrigatórios ou havendo bens excedentes das disposições testamentárias. Caso o testamento seja ineficaz, por ter caducado, ou ter sido declarado nulo, aplicam-se as regras da Sucessão Legítima. Portanto, Sucessão Legítima está relacionada a uma ordem de preferência entre as pessoas da família do de cujus, que são os herdeiros necessários convocados, e entre eles, os descendentes, os ascendentes, e o cônjuge ou companheiro (CC, art. 1.829). Esta espécie de Sucessão ocorrerá quando o falecido não houver disposto, no todo ou em parte, dos bens, em testamento válido, ou quando não pode dispor de parte desses bens por ter herdeiros necessários (neste caso ocorre inevitavelmente a Sucessão Legal ou legítima).155 153 GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. p.40. GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. p.40. 155 GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. p.40. 154 59 O Código Civil de 2002 estabelece a ordem de vocação hereditária na Sucessão Legítima. Assim dispõe: Art. 1.829 - A sucessão legitima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos descendentes em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais. Este dispositivo, no entender de Washington de Barros Monteiro, ensina que a ordem ali estabelecida está pautada nas relações de família e de sangue. Isto é, deve predominar nas relações entre os pares sentimentos de solidariedade e de amparo uns com os outros, alicerçando a Sucessão Legítima, com referência à vocação hereditária. “Legítima vem a ser a porção de bens que a lei reserva ao herdeiro necessário.”156 Na nova ordem de vocação hereditária o legislador trouxe a inédita figura da “concorrência sucessória”, chamando o cônjuge (agora herdeiro necessário - art. 1.845) a dividir - em determinadas situações - com descendentes e (em qualquer situação) com ascendentes o patrimônio amealhado elo de cujus. Mas, o legislador não se lembrou da Sucessão do companheiro, deixando esta tarefa no art. 1.790, do Código Civil de 2002.157 Orlando Gomes ao analisar o art. 1.829, afirma que se distinguem na Sucessão Legítima as “ordens”, que são os parentes e cônjuge; as “clases”, que são os descendentes, ascendentes, colaterais e cônjuges; e os “graus”, que na linha reta ou colateral exerce influência na vocação, determinando preferências.158 Assim sendo, a Sucessão Legítima é aquela que se processa por força da lei, na data da morte do de cujus, ou seja, naquele momento quais são os legitimados para suceder. “E com a morte natural ou presumida do de cujus (CC, art. 9º, I) ou da sentença que declare a ausência ou a morte presumida da pessoa natural (CC, art. 156 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das sucessões. 35.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p.86. 157 NICOLAU, Gustavo René. Sucessão legítima no novo código civil. In: Revista IOB de Direito de Família, v.9, n.44, out./nov., 2007, p.49. 158 GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. p.40. 60 9º, IV), que termina a existência da pessoa natural (respectivamente CC, art. 6º e art. 7º). Além disso, segundo Orlando Gomes, os pressupostos da Sucessão Legítima podem ser denominados em duas categorias: “a morte do de cujus (supracitado) e a vocação hereditária dos herdeiros.”159 2.5 SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA Maria Helena Diniz escreve que a Sucessão Testamentária é aquela em que “a transmissão dos bens do de cujus se dá por meio de ato de última vontade, revestido da solenidade exigida por lei, prevalecendo as disposições normativas naquilo que for ius cogens”, assim como na matéria em que, “por ventura o testamento se omitir.”160 Conforme Sebastião José Roque, a Sucessão Testamentária “dar-se-á sempre que existir um testamento válido, derivado da vontade do sucedido.”161 Segundo José Luiz Gavião de Almeida, a Sucessão Testamentária não impede a Sucessão Legítima, podendo as duas coexistir. A Sucessão Legítima é subsidiária da Sucessão Testamentária. É utilizada quando não há testamento, quando ele é inválido ou ineficaz, ou quando não se egula, por ele, toda a transferência patrimonial do sucedido (CC, art. 1.788).162 O Código Civil de 2002 estabelece sobre Sucessão Testamentária. Assim dispõe: Art. 1.857 – Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de dua morte. §1º - A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento. 159 GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. p.40. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 18.ed. São Paulo: 2004. p.159. [v.6 - Direito das Sucessões]. 161 ROQUE, Sebastião José. Direito das sucessões. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: Ícone, 2003. p.18. 162 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código civil comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão legítima - arts. 1.784 a 1.856. Álvaro Villaça Azevedo (Coord.). São Paulo: Atlas, 2003. p.22-23. 160 61 §2º - São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado. No entanto, cabe salientar, o que escreve José Sebastião Roque: “mesmo sendo a Sucessão Testamentária classificada como mista, vigorando a última vontade do de cujus e os direitos legítimos dos herdeiros necessários, o testador poderá dispor da metade de seus bens (CC, art. 1.789).”163 Da abertura da Sucessão escreve Maria Helena Diniz: no momento do falecimento do de cujus abre-se a sucessão, transmitindo-se, sem solução de continuidade, a propriedade e a posse de bens do defunto aos seus herdeiros sucessíveis, legítimos ou testamentários que estejam vivos naquele momento, independente de qualquer ato.164 Em suma, o Direito Sucessório é um ramo autônomo do Direito que tem por objeto a regulação e destinação do patrimônio de uma pessoa depois de seu falecimento, isto é, regula a relação jurídica que se estabelece com o herdeiro em virtude do falecimento do titular do patrimônio. Neste processo são classificados os herdeiros. O sucessor ou herdeiro é aquele que recebe os bens deixados pelo de cujus. Com relação ao sucessor, é reconhecida a seguinte classificação: Herdeiro Legítimo, Herdeiro Necessário, Herdeiro Testamentário, e Legatário. No entendimento de Orlando Gomes, o herdeiro legítimo é aquele designado em lei como herdeiro nos casos de Sucessão Legítima, a quem se transfere a totalidade da herança ou quota-parte desta.165 O herdeiro legítimo, para José Francisco Cahali, “é aquele sucessor eleito pela legislação, através da ordem de vocação hereditária” (CC, art. 1.829), ou “por regra especial, como ocorre na Sucessão entre companheiros decorrente da união estável (CC, art. 1.790).”166 Nas palavras de Orlando Gomes “a classificação do Herdeiro Legítimo tem origem na organização da família.” Leciona, ainda, que “reside seu chamamento em três ordens de direito: “1 - jus familiae; 2 - jus sanguinis, ação hereditária (CC, 163 ROQUE, Sebastião José. Direito das sucessões. p.18. DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro. Direito das sucessões. 2004. p.23. 165 GOMES, Orlando. Sucessões. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.40. 166 CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. p.56. 164 62 art.1.829); e por regra especial, como ocorre na sucessão entre companheiros decorrente da união estável (CC, art. 1.790).”167 Após abordar o Direito Sucessório, o capítulo a seguir tratará do objeto deste estudo, que é a (in) constitucionalidade do art. 1790, que fere o Princípio da Igualdade Constitucional no Direito Sucessório. 167 GOMES, Orlando. Sucessões. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.1. 63 3 DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Este capítulo apresenta a sucessão do cônjuge e do companheiro, e a (in)constitucionalidade do art. 1.790, que fere o Princípio da Igualdade Constitucional no Direito Sucessório. 3.1 DO DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO A Súmula 380 consolidou a respeito da divisão de haveres no Concubinato, utilizando-se de tal nomenclatura. Patrícia Fontanella Rosa observa que “comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos é cabível a sua dissolução judicial com partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.”168 A partir daí os tribunais começaram a aceitar a possibilidade de divisão do patrimônio adquirido pelo esforço comum ou direito à partilha, desde que restasse plenamente comprovado durante a instrução processual que a companheira tivesse realmente contribuído juntamente com o companheiro para aumentar o patrimônio do casal.169 Havia nítida distinção entre sociedade de fato e concubinato, pois com a Súmula 380 passou-se a reconhecer a existência da sociedade de fato, cuja extinção não poderia gerar enriquecimento injustificado em detrimento, normalmente, da mulher. Já a companheira que não exercia atividade remunerada, entretanto, restava indenização por serviços domésticos prestados, o que não se vinculava ao patrimônio do companheiro.170 168 ROSA, Patrícia Fontanella. regulamentadoras. p.37. 169 ROSA, Patrícia Fontanella. regulamentadoras. p.37. 170 ROSA, Patrícia Fontanella. regulamentadoras. p.37. União estável a eficácia temporal das leis União estável a eficácia temporal das leis União estável a eficácia temporal das leis 64 Desse modo, ao dissolver a união os concubinos deveriam provar o esforço comum na aquisição patrimonial. “Os juízes atribuíam percentuais dos bens, conforme a prova amealhada nos autos. Não eram reconhecidos direitos sucessórios e tampouco alimentos.”171 Ainda sobre este assunto, o Supremo Tribunal Federal, na esteira da Súmula 380 editou a Súmula 382, que enunciava: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato.” Isto é, esta coabitação era considerada indispensável para se caracterizar o relacionamento estável, passou a ser requisito dispensável para fins de sua identificação.172 Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil173 de 1988 a instituição Família sofreu um novo rumo, obtendo uma especial proteção do Estado. O dispositivo assim estabelece: Art. 226 - [...] §3º - Para efeito de proteção do estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Segundo Patrícia Fontanella Rosa174, paralelamente ao dispositivo constitucional, a Família conta ainda com a edição das Leis n. 8.971/94 e n. 9.278/96, que regulam a entidade familiar chamada união estável e estabelece as condições e os efeitos do novo instituto. A Lei n. 8.971/94 reconhece aos conviventes os direitos aos alimentos, à sucessão, e aos bens amealhados na constância da união. Assim dispõe: Art. 1º - A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei n. 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade. 171 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal regulamentadoras. p.38. 172 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal regulamentadoras. p.40. 173 BRASIL. Constituição (1988). 21.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.124. 174 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal regulamentadoras. p.45. das leis das leis das leis 65 Porém, por aquela Lei ficaram excluídas de proteção da união estável se um dos companheiros fosse separado apenas de fato, e deixaria a convivência à margem da lei, sendo-lhe então negado qualquer direito. Conforme entendimento de Maria Berenice Dias: [...] A Lei assegurou direito a alimentos e à sucessão do companheiro. No entanto, conservara, ainda, um certo ranço preconceituoso ao reconhecer como união estável a relação entre pessoas solteiras, judicialmente separadas, divorciadas ou viúvas, deixando fora, injustificadamente, os separados de fato. Também a lei fixou condições outras, só reconhecendo como estáveis as relações existentes há mais de cinco anos ou das quais houvesse nascido prole, como se tais requisitos purificassem a relação. Assegurou ao companheiro sobrevivente o usufruto sobre parte dos bens deixados pelo de cujus. No caso de inexistirem descendentes ou ascendentes, o companheiro (tal como o cônjuge sobrevivente) foi incluído na ordem de vocação hereditária como herdeiro legítimo. (Grifo da autora).175 Diante dos impasses criados pela referida Lei, foi sancionada a Lei n. 9.278/96. Assim dispõe: Art.1º - O reconhecimento como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher estabelecida com objetivo de vida em comum. Nos demais artigos a Lei definiu os direitos e deveres dos companheiros. Assim, foi modificado o critério para o reconhecimento da união estável, estabelecendo-se o critério subjetivo, deixa para o julgador a análise ao caso concreto. Com a sanção da Lei n. 10.406 - Código Civil, de 10 de janeiro de 2002, em relação à ordem da vocação hereditária, no caso da Sucessão Legítima, ficou estabelecido que não obstante tenha mantido os descendentes e os ascendentes e o cônjuge sobrevivente nas primeiras classes e a este último foi assegurado uma posição privilegiada de concorrer, igualmente, com àqueles primeiros colocados e, às vezes, com certa prioridade. Assim dispõe: 175 DIAS, Maria Berenice. Direito de família e o novo código civil. 3.ed. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2004. 66 Art. 1.829 - A sucessão legitima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos descendentes em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais. Washington de Barros Monteiro escreve que a ordem ali fixada está pautada nas relações de família e de sangue. Isto é, “deve predominar nas relações entre os pares sentimentos de solidariedade e de amparo uns com os outros, alicerçando a Sucessão Legítima, com referência à vocação hereditária.”176 Assim sendo, a Sucessão Legítima é aquela que se processa por força da lei. Pode-se observar, então, que o cônjuge passou a integrar o rol dos herdeiros necessários, obtendo os mesmos direitos restritos aos ascendentes e descendentes no Código Civil anterior. Além disso, passou a contar com a possibilidade de concorrer com descendentes e ascendentes na herança deixada pelo cônjuge falecido, cuja situação o coloca em posição privilegiada, em relação à posição reservada para os companheiros na união estável. Sobre isso, Washington de Barros Monteiro177 escreveu que o Código Civil de 2002 trouxe uma importante inovação ao assegurar ao cônjuge o direito de concorrência, exceto se este era casado com o falecido pelo regime de comunhão universal, da separação obrigatória, ou da comunhão parcial. 176 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 36.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p.86. [v.6 - Direito das Sucessões]. 177 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. p.88. 67 Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, no caso da concorrência do cônjuge com os descendentes, a legislação estabeleceu um pressuposto relacionado ao regime matrimonial de bens. O art. 1.829, inciso I, faz depender a vocação do cônjuge sobrevivente do regime de bens anteriormente escolhido pelo casal, haja vista que a determinação da lei deve-se ao fato do entendimento de que “a escolha do regime de bens é uma demonstração prévia dos cônjuges no sentido de permitir ou não a confusão patrimonial e o nível de profundidade que essa confusão deve atingir.”178 Desse não será convocado a herdar o cônjuge sobrevivente se casado com o de cujus pelo regime da comunhão universal de bens, ou pelo regime da separação obrigatória de bens. Todavia, aqueles casais que, não realizaram pacto antenupcial, optando pelo regime da comunhão parcial, fazem jus à meação dos bens em comum da família e passam a participar da sucessão do cônjuge falecido, na porção dos bens particulares deste.179 Faz-se necessário destacar que a concorrência do cônjuge não ocorre em todos os regimes de casamento, sendo uma condição específica de determinadas situações. Isto é, se o regime de bens que vigorava no casamento ao falecer um dos cônjuges era o de comunhão universal, mediante o qual se comunicam todos os bens e suas dívidas passivas (art. 1.667 e art. 1.671), cabendo ao cônjuge sobrevivente, por direito próprio, a meação, ele não concorre com os descendentes (art. 1.829, I). Assevera sobre o tema Sílvio de Salvo Venosa180, escrevendo que o art. 1.829, inciso I, dispõe que “o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes se for casado com o falecido no regime de comunhão universal de bens ou no regime de separação obrigatória.” 178 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novas. Concorrência do companheiro e do cônjuge na sucessão dos descendentes. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coords.). Novo código civil: questões controvertidas. São Paulo: Editora Método, 2003. v.1. p.431. 179 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novas. Concorrência do companheiro e do cônjuge na sucessão dos descendentes. p.431. 180 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006. [v.6 - Direito de Família]. 68 Sobre a concorrência do cônjuge, Eduardo de Oliveira Leite181 e Maria Berenice Dias182 escrevem que: dois são os motivos que justificam o direito do cônjuge casado em regime de comunhão parcial de bens concorrer com os descendentes no recebimento da herança. O primeiro tem uma razão de ordem jurídica, que consiste na mudança do regime de bens do casamento; e o segundo se refere à absoluta equiparação do homem e da mulher, haja vista a igualdade da mulher em termos de poder familiar. Segundo Eduardo de Oliveira Leite, o inciso I do art. 1.829, do Código Civil de 2002, determina que na primeira classe de preferência, em concorrência com os descendentes, o cônjuge será convocado de acordo com o regime de bens aliado à existência de patrimônio particular quando as núpcias forem pela comunhão parcial. Talvez a intenção do legislador tenha sido dar ao cônjuge uma participação sucessória sobre os bens nos quais não terá meação pelo regime de bens adotados no casamento. Porém, como apresentado no texto, sem referência a esta incidência da herança apenas sobre o acervo individual, temos para nós que a regra estabelece um critério de convocação, se preenchidos os seus requisitos, para concorrer na universalidade do acervo. [...] Convocado o cônjuge, terá direito a uma parcela sobre toda a herança, inclusive recaindo o seu quinhão também sobre bens nos quais eventualmente já possui a meação.183 Assim dispõe o Código Civil de 2002 sobre a concorrência do cônjuge com os descendentes: Art. 1.832 - Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer. Neste sentido o Código Civil de 2002 excetua os três regimes de bens comunhão universal de bens, comunhão parcial de bens, seus bens articulares e 181 LEITE, Eduardo de Oliveira. A nova ordem de vocação hereditária e a sucessão dos cônjuges. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coords.). Novo código civil: questões controvertidas. São Paulo: Editora Método, 2003. v.1. p.438. 182 DIAS, Maria Berenice. Direito de família e o novo código civil. p.138. 183 LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo código civil. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. [v.XXI - Direito das Sucessões: arts. 1.784 2.027]. 69 separação obrigatória de bens. Ou seja, conforme entendimento de Eduardo de Oliveira Leite, a legislação citada abre “a possibilidade do cônjuge sobrevivente concorrer com o descendente quando o autor da herança tiver deixado bens particulares, no regime da comunhão parcial de bens.”184 Mas se o regime de bens for de participação final dos aqüestos, previsto no art. 1.672 do Código Civil de 2002? Sobre isso Ricardo Fiúza escreve que: Pela literalidade das hipóteses de exclusão contidas no texto do art. 1.829 do Código Civil de 2002, haverá direito sucessório recíproco entre os cônjuges assim casados. Aliás, inadequada a situação, pois o regime de participação final dos aqüestos tem características similares ás do regime de comunhão parcial, no que se refere a ter direito o cônjuge sobre o acervo adquirido durante o casamento, diferenciando-se um do ouro, praticamente, apenas na forma como se faz a iquidação dos direitos.185 Eduardo de Oliveira Leite complementa escrevendo que nos demais casos “o cônjuge será meeiro ou retomará, simplesmente, a sua massa de bens particulares.” Porém, para ter direito a esses bens particulares, o cônjuge “não pode estar separado no momento do falecimento, judicialmente ou de fato há mais de dois anos do de cujus.”186 Neste sentido, Orlando Gomes escreve que o direito hereditário do cônjuge sobrevivente: pressupõe casamento válido; não estarem judicialmente separados os cônjuges no momento da abertura da sucessão; não estarem separados de fato há mais de dois anos; ocorrendo a separação de fato, que a culpa da separação não seja do cônjuge sobrevivente.187 Sintetizando, Maria Helena Diniz escreve que haverá concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do auto da herança, segundo o regime 184 LEITE, Eduardo de Oliveira. A nova ordem de vocação hereditária e a sucessão dos cônjuges. p.443. 185 FIÚZA, Ricardo. Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002. p.1791. 186 LEITE, Eduardo de Oliveira. A nova ordem de vocação hereditária e a sucessão dos cônjuges. p.443. 187 GOMES, Orlando. Direito civil: direito das sucessões. 12.ed. rev., atual. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.63. 70 matrimonial de bens, se preenchido os requisitos legais do art. 1.829, inciso I, e do art. 1.830.188 Entretanto, Zeno Veloso189 escreve que não se deve confundir meação com direito hereditário. “A meação decorre de uma relação patrimonial (condomínio, comunhão) existente em vida dos interessados e é estabelecida por lei ou pela vontade das partes.” O substantivo meação (derivado do verbo mear) nada mais é, do que a simples atribuição dos bens a cada um dos cônjuges que unidos trabalharam (em planos diferentes) para construir o patrimônio que - por ocasião da dissolução da sociedade conjugal (divórcio, separação judicial, morte e anulação) deverá ser partido ao meio, meado.190 Assim, para este autor191, meação é “um direito individual e fundamental do cônjuge (e do companheiro)”, aliás, reflexo do caput do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, onde está previsto o direito de propriedade ao lado de outros direitos imprescindíveis como vida, liberdade, igualdade, e segurança. Já sucessão, para Zeno Veloso, se dá porque uma das hipóteses de dissolução da sociedade conjugal coincide com a premissa básica das sucessões: o falecimento. Então, “a sucessão hereditária em origem na morte e a herança é transmitida aos sucessores conforme as previsões legais (sucessão legítima) ou a vontade do hereditando (sucessão testamentária).”192 Em suma, alguém pode ser meeiro e herdeiro, como pode ser meeiro sem ser herdeiro, ou herdeiro sem ser meeiro, e essas posições jurídicas têm causa diversa, são diferentes, e se baseiam em motivos e regras distintos. Se os bens são comuns, o companheiro sobrevivente tem direito à meação. Mas esse direito não tem origem na morte do outro convivente. O meeiro já é dono de sua parte ideal antes da abertura da sucessão, por outro título (Direito de Família). A meação do 188 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 23.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.117. v.5. 189 VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). Direito de família e o novo código civil. 2.ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003a. p.243-256. 190 NICOLAU, Gustavo René. Sucessão legítima no novo código civil. In: Revista IOB de Direito de Família, v.9, n.44, out./nov., 2007.p.49. 191 NICOLAU, Gustavo René. Sucessão legítima no novo código civil. p.49. 192 VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.243-256. 71 falecido é que vai ser objeto da sucessão, juntamente com outros bens, de propriedade exclusiva, se houver.193 Conforme Giselda Maria Fernandes Novas Hironaka, no que se refere ao inciso II, do art. 1.829, do Código Civil de 2002, quando da inexistência de descendentes, os ascendentes são chamados à Sucessão, também em concorrência com o cônjuge. Ao concorrer com os ascendentes em primeiro grau, pertencerá ao cônjuge um terço da herança. Caso haja somente um ascendente, ou se maior for aquele grau, caber-lhe-á a metade da herança (CC, art. 1.837).194 Para esta mesma autora: na situação de concorrência com os ascendentes, o cônjuge herda na somente os bens particulares do de cujus, como também a fração dos bens comuns ao casal, pois o inciso II, do art. 1.829, não repete qualquer uma das ressalvas presentes no inciso I, do mesmo dispositivo legal. Isso evidencia claramente que aquelas exceções somente servem para proteger os descendentes do falecido e não os ascendentes deste, sempre que em concorrência com o cônjuge sobrevivente.195 Eduardo de Oliveira Leite196 escreve que o Código Civil de 2002 assegura ao cônjuge sobrevivente uma posição de igualdade, pois este é quem partilhou a vida em comum do casal e não, certamente, os ascendentes. Nesta concorrência não há mais qualquer distinção acerca do regime de bens em que era casado, como ocorre na concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes. O art. 1.845 estabelece que são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, cabendo-lhes, de pleno direito, a metade dos bens da herança. Dessa forma, não se pode, através de testamento, dispor de todo o patrimônio, como era possível anteriormente, diante da falta de descendentes e ascendentes. 193 VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.243-256. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novas. Concorrência do companheiro e do cônjuge na sucessão dos descendentes. p.431. 195 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novas. Concorrência do companheiro e do cônjuge na sucessão dos descendentes. p.431. 196 LEITE, Eduardo de Oliveira. A nova ordem de vocação hereditária e a sucessão dos cônjuges. p.339. 194 72 Porém, o cônjuge sobrevivente participa da Sucessão, desde que, por ocasião da morte do outro, não estivessem separados judicialmente ou de fato há mais de dois anos, a não ser que, nesta hipótese, seja comprovada a impossibilidade da convivência sem que houvesse culpa do sobrevivente. 3.2 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 Conforme Patrícia Fontanella Rosa o direito sucessório possui previsão no art. 1.790 do Código Civil de 2002 e tem sido alvo de inúmeras críticas, “pois configurou verdadeiro retrocesso relativamente à sucessão dos companheiros, eis que limita-se aos bens adquiridos a título oneroso constância da união estável.”197 Assim dispõe: Art. 1.790 - A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocarlhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. Zeno Veloso entende que, contrariando as expectativas, o Código Civil de 2002 promove um recuo notável. “Colocou o companheiro em posição infinitamente inferior à que ostenta o cônjuge.”198 Conforme Barbara Heliodora de Avellar Peralta, há inúmeras críticas doutrinárias e jurisprudenciais acerca do art. 1.790, no sentido de ser a norma guerreada um retrocesso.199 Com o fito de corroborar o ventilado colaciona-se a R. 197 ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. p.52. 198 apud ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia temporal das leis regulamentadoras. p.52. 199 PERALTA, Barbara Heliodora de Avellar. A sucessão do companheiro face à ausência de norma dispositiva focada na concomitância de filhos comuns e exclusivos do falecido: Abordagens práticas. Disponível em: <www.ambitojurídico.com.br>. Acesso em: 20 abr 2009. 73 decisão proveniente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, aduzindo que o artigo focado é eivado de inconstitucionalidade, in verbis: EMENTA: Agravo de Instrumento nº 70009524612. Inventário. Companheiro sobrevivente. Direito à totalidade da herança. Colaterais. Exclusão do processo. Cabimento. A decisão agravada está correta. Apenas o companheiro sobrevivente tem direito sucessório no caso, não havendo razão para permanecer no processo as irmãs da falecida, parentes colaterais. A união estável se constituiu em 1986, antes da entrada em vigor do Novo Código Civil. Logo, não é aplicável ao caso a disciplina sucessória prevista nesse diploma legal, mesmo que fosse essa a legislação material em vigor na data do óbito. Aplicável ao caso é a orientação legal, jurisprudencial e doutrinária anterior, pela qual o companheiro sobrevivente tinha o mesmo status hereditário que o cônjuge supérstite. Por essa perspectiva, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro sobrevivente tem direito à totalidade da herança, afastando da sucessão os colaterais e o Estado. Além disso, as regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no Novo Código Civil são inconstitucionais. Na medida em que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade. Negaram provimento. (Relator Des. Ruy Portanova, 18/11/2004).200 Ainda no tocante aos direitos do companheiro, os juízes das Varas da Família e das Sucessões do interior de São Paulo201, elaboraram os seguintes enunciados, destacados: Enunciado 49 - O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima. Enunciado 50 - Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação. 200 Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 20 abr 2009. Reunidos em Piracicaba no dia 10/11/2006, no I Encontro dos Juízes de Família do Interior de São Paulo (por maioria de 2/3 dos presentes). 201 74 ENUNCIADO 52 - Se admitida a constitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança deixada pelo outro, na falta de parentes sucessíveis, conforme o previsto no inciso IV, sem a limitação indicada na cabeça do artigo. Concordando com estas posições, Carlos Roberto Gonçalves202 escreve que: a nova disciplina dos direitos sucessórios dos companheiros é considerada pela doutrina um evidente retrocesso no sistema protetivo da união estável, pois no regime da Lei n. 8.971/94 o companheiro recebia toda a herança na falta de descendentes ou ascendentes. No mesmo sentido, Zeno Veloso, entende que o art. 1.790 “merece censura e crítica severa porque é deficiente e falho, em substância. Significa um retrocesso evidente, representa um verdadeiro equívoco.”203 Sintetizando escreve, ainda, que: diferentemente do que ocorre com o cônjuge, que herda quota parte dos bens exclusivos do falecido quando concorre com os descendentes deste, percebendo, quanto aos bens comuns, apenas a meação do condomínio até então existente (e não mais do que isso), o companheiro que sobreviver a seu par adquire não apenas a meação dos bens comuns (e aqui em igualdade ao cônjuge supérstite), como herda quota-parte destes mesmos bens comuns adquiridos onerosamente pelo casal, nada recebendo no entanto, relativamente aos bens exclusivos do hereditando, solução esta que para adaptar uma expressão de Zeno Veloso a uma outra realidade, não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema. Seja qual for a formulação ou critério que se escolha, contudo, a verdade é que parece impossível conciliar, do ponto de vista matemático, as disposições dos incisos I e II, deste art. 1.790. 202 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. p.560. v.VI. 203 apud NOGUEIRA, Cláudia. Direito das sucessões [Comentários à Parte Geral e à Sucessão Legítima]. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. p.187. 75 A jurisprudência também já trilha nesse sentido: INVENTÁRIO. SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. ABERTURA DA SUCESSÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO NOVO CÓDIGO CIVIL. APLICABILIDADE DA NOVA LEI, NOS TERMOS DO ARTIGO 1.787. HABILITAÇÃO EM AUTOS DE IRMÃO DA FALECIDA. CASO CONCRETO, EM QUE MERECE AFASTADA A SUCESSÃO DO IRMÃO, NÃO INCIDINDO A REGRA PREVISTA NO 1.790, III, DO CCB, QUE CONFERE TRATAMENTO DIFERENCIADO ENTRE COMPANHEIRO E CÔNJUGE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA EQUIDADE. Não se pode negar que tanto à família de direito, ou formalmente constituída, como também àquela que se constituiu por simples fato, há que se outorgar a mesma proteção legal, em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. Ademais, a própria Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do artigo em questão, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei. Preliminar não conhecida e recurso provido.” (TJ-RS, Agravo de Instrumento nº 70020389284, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, 12/09/2007).204 Nos entendimentos de Francisco José Cahali e Giselda Maria Hironaka, por reprovável impropriedade técnica, deixou o legislador de contemplar, na ordem de vocação hereditária, o direito sucessório decorrente da união estável, vindo inadequadamente a tratar da matéria no Capítulo I das Disposições Gerais, estabelecendo as regras sucessórias no art. 1.790 e seus incisos.205 Conforme Silvio Rodrigues, a ordem de vocação hereditária: “a ordem de vocação hereditária “é a relação preferencial, estabelecida pela lei, das pessoas que são chamadas a suceder o finado. O legislador, nesta relação de pessoas, as divide em várias classes.”206 Este autor assim dispõe a respeito da limitação da herança destinada ao companheiro pelo art. 1.790: 204 Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 20 abr 2009. CAHALI, Francisco José. Sucessão dos colaterais e do poder público. In: CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria. Curso avançado de direito civil. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p.162. 206 apud CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria. Curso avançado de direito civil. p.162-164. 205 76 o caput é a unidade básica da disposição, o núcleo do artigo, contendo a substância da norma, a regra geral, o princípio a respeito do assunto tratado. Os parágrafos, incisos e alíneas são desdobramentos do caput, divisões do artigo, que desenvolvem, restringem, explicitam a regra principal, da qual, obviamente, dependem.207 Ao analisar o art. 1.790, José Luiz Gavião de Almeida entende que: verifique-se que o direito de recolher a totalidade da herança parece que se dá apenas sobre os bens adquiridos onerosamente e durante a convivência concubinária. Se existirem bens de outra natureza, poder-se-ia imaginar que deveriam eles ser destinados ao Estado.208 Em razão do princípio de igualdade de tratamento dos partícipes que formam a entidade familiar, e a união estável sendo reconhecida pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como uma entidade familiar, estando praticamente equiparada às famílias matrimonializadas, “a grande disparidade de tratamento entre a posição sucessória do cônjuge e do companheiro vai de encontro aos fundamentos constitucionais.”209 Assim sendo, partindo-se da premissa de que a Sucessão Legítima está baseada nos vínculos familiares, o conceito de família deverá ser atualizado para o efetivo alcance e o sentido das normas, pois o Código Civil de 2002 diferencia os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro, não atendendo aos princípios constitucionais. Então, faz-se necessário que este Código seja reformado no que tange à sucessão dos companheiros para que seja obedecido o comando constitucional constante no art. 226, caput, §3º.210 A partir do entendimento de que tanto a família de direito (formalmente constituída), como a que se constituiu por simples fato merecem a mesma proteção legal, conforme o “princípio da eqüidade”, inclusive no plano sucessório, com 207 apud CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria. Curso avançado de direito civil. p.162-164. p.249. 208 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código civil comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão legítima - arts. 1.784 a 1.856. Álvaro Villaça Azevedo (Coord.). São Paulo: Atlas, 2003. p.69. 209 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código civil comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão legítima - arts. 1.784 a 1.856. p.69. 210 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código civil comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão legítima - arts. 1.784 a 1.856. p.69. 77 igualdade de tratamento, a 7ª Câmara Cível do TJ/RS deu provimento a recurso movido por companheiro de mulher falecida, contra decisão que deferiu a habilitação do irmão dela no inventário de seus bens. A decisão foi unânime. RECURSO: A Câmara afastou a sucessão do irmão, considerando não poder ser aplicada a regra do Código Civil brasileiro (art. 1.790, III), que estabeleceu tratamento diferenciado entre companheiro e cônjuge. O autor sustentou que o irmão da falecida não é herdeiro necessário e que, diante da inexistência de ascendentes ou descendentes, a sucessão será deferida por inteiro ao cônjuge sobrevivente. Argumentou que viveu em união estável com a mulher desde 1995, até o falecimento dela, situação reconhecida também pela família da companheira. Eqüidade - O Desembargador Ricardo Raupp Ruschel, relator, salientou que o ponto central da discussão do agravo dizia respeito com o direito ou não de o recorrente, na condição de companheiro, herdar a totalidade da herança de alguém que não deixou descendentes ou ascendentes. “Se a ele se confere o status de cônjuge, ou se se lhe impõe as disposições do Código Civil de 2002, onde restou estabelecida, mediante interpretação restritivamente literal, distinção entre cônjuge e companheiro, conferindo àquele privilégio sucessório em relação a este. Negar provimento ao recurso, no caso concreto, em que o direito do recorrente tem por base situação de fato não impugnada pela parte recorrida, ou seja, a união estável com início em 1995, importa, ao fim e ao cabo, em conferir odioso tratamento desigual entre cônjuge e companheiro, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, e conferindo proteção legal privilegiada à família constituída de acordo com as formalidades da lei.” Legislação - O Des. Ruschel destacou que a própria Constituição Federal, ao dispor no §3º do art. 226 que, para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros. “Tampouco o faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do novo Código Civil (Lei n. 8.971/94 e Lei n. 9.278/96). Não é aceitável, assim, que prevaleça a interpretação literal do art. 1.790 do CC 2002, cuja sucessão do companheiro na totalidade dos bens é relegada à remotíssima hipótese de, na falta de descendentes e ascendentes, inexistirem, também, ‘parentes sucessíveis’, o que implicaria em verdadeiro retrocesso social frente à evolução doutrinária e jurisprudencial do instituto da união estável havida até então.” (7ª Câmara Cível, participação da Des. Maria Berenice Dias e do Des. Luiz Felipe Brasil Santos - Proc. 70020389284 - TJ/RS, 13 set 2007).211 211 Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 20 abr 2009. 78 Em suma, na opinião de Silvio Rodrigues, quanto aos aspectos gerais da sucessão do companheiro, o Código Civil de 2002 regulou o direito sucessório dos companheiros com enorme redução, com dureza imensa, de forma tão encolhida, tímida e estrita, que se apresenta em completo divórcio com as aspirações sociais, as expectativas da comunidade jurídica e com o desenvolvimento de nosso direito sobre a questão.212 Desse modo, evidencia-se no Código Civil Brasileiro de 2002 um visível tratamento diferenciado entre os institutos familiares do casamento e da união estável, favorecendo o casamento. Neste sentido Silvio Rodrigues escreve que: para os que entendem as entidades familiares como gênero, e casamento e união estável como espécies, a distinção se mostra correta e justa. Já para quem faz a leitura constitucional como sendo iguais todas as entidades familiares, a distinção evidenciada no Novo Código Civil é tida como uma inaceitável discriminação.213 Ao se referir ao Código Civil de 2002, José Luiz Gavião de Almeida escreve que: o normal seria que o Novo Código Civil tratasse do companheiro na sucessão legítima, quando regulasse a ordem de vocação hereditária. Talvez ainda por preconceito contra a inclusão do companheiro entre os herdeiros, preferiu regular a matéria no capítulo referente às disposições gerais sobre a sucessão. A falta de sistematização irá levar dificuldade àquele que não estiver habituado ao Código que, procurando entre os contemplados na sucessão legítima, isto é, na ordem da vocação hereditária, e não vendo referência ao companheiro, pode, por equívoco entender não haver sido ela amparada pela lei.214 E como se pode observar, o caput do art. 1.790 edita, claramente, que a sucessão dos companheiros só é admitida quanto aos bens que foram adquiridos onerosamente durante o tempo da convivência. Sobre isso, Maria Faria de Souza e Patrícia Fontanella Rosa escrevem que a conclusão que se pode tirar do caput do art. 1.790 é que “o direito sucessório do 212 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.249-250. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. p.271. 214 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código civil comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão legítima - arts. 1.784 a 1.856. p.59. 213 79 companheiro se limita e se restringe aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável durante o tempo de convivência.”215 Neste sentido, esclarece Tatiani Bianco: mas não será tarefa fácil distinguir quais bens foram adquiridos, onerosamente, por um dos companheiros, independentemente do bem estar em nome de um só deles, pois existe o auxílio mútuo, que não poderá ser desconsiderado pelo julgador, ou até mesmo as contribuições financeiras por parte de um dos companheiros, que, porém, na hora da celebração do contrato ou da escritura, não fora adicionado o nome do companheiro contribuinte. Enfatiza-se, também, a possibilidade de outros tipos de aquisições e contribuições, tais como: alimentos, vestuário, saúde, educação, apoio moral em benefício do outro companheiro ou da prole, que não aparecerão, futuramente, no campo contratual para eventual divisão.216 Para Silvio Rodrigues, não se pode chegar a outra conclusão, diante do imperativo da regra contida no caput do art. 1.790. A não ser que o intérprete, a título de dar interpretação construtiva, ingresse no campo da criação normativa, tomando o espaço e o lugar do legislador, o que lhe é vedado; mas, reconheço, às vezes tem sido praticado, para corrigir falhas gritantes e erronias contidas 217 em alguns preceitos. Entretanto, o art. 1.790, embora deslocado, é demonstração evidente de que o companheiro é beneficiado na Sucessão Legítima, embora a matéria tenha algumas questões que necessitam cuidado especial de entendimento. Este dispositivo estabelece direito hereditário ao companheiro apenas quanto aos bens adquiridos a título oneroso na vigência da união estável. Embora concorra com os demais herdeiros, tanto necessários (descendentes e ascendentes) como facultativos (colaterais), essa participação do companheiro se dá tão somente quanto aos bens adquiridos onerosamente e na vigência da união estável.218 215 In: FREITAS, Douglas Phillips (Org.). Curso de direito das sucessões. Blumenau: Nova Letra, 2006. p.305. 216 In: FREITAS, Douglas Phillips (Org.). Curso de direito das sucessões. p.136. 217 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. p.271. 218 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. p.271. 80 Neste sentido comenta Giselda Maria Hironaka: a sucessão de pessoas que viviam em união estável até o momento de sua morte não dependerá, para a concorrência do companheiro com os demais herdeiros, da verificação do regime de bens adotado por contrato de convivência, ou mesmo por forma tácita, acatando as regras do regime legal por força de disposição legal supletiva, mas dependerá da origem dos bens que componham o acervo hereditário deixado pelo de cujus.219 Ainda para esta autora220, o companheiro sobrevivente participará na sucessão do outro apenas quanto aos bens adquiridos durante a convivência, ou seja, a concorrência ocorrerá justamente quanto aos bens que o companheiro já é meeiro. Assim, se durante a união estável não houve, pelos companheiros, aquisição a título oneroso de nenhum bem, “não haverá possibilidade de o sobrevivente herdar coisa alguma, mesmo que o falecido tenha deixado um enorme patrimônio formado anteriormente à constituição da união estável.”221 Neste caso, Silvio de Salvo Venosa escreve que “o testamento é, por assim dizer, o único meio em que o convivente poderá ser beneficiado com patrimônio mais amplo do que aquele ali definido”, consoante nos termos do art. 1.790.222 Além disso, Giselda Maria Hironaka faz outra diferenciação decorrente do estado civil que unia o falecido ao sobrevivente, no que diz respeito à abrangência da restrição relativa ao regime de bens ou origem do patrimônio: [...] a restrição da espécie de bens sobre os quais ocorre a concorrência do companheiro sobrevivente foi expressa no caput do art. 1.790, irradiando seus efeitos durante toda a vocação hereditária estabelecida em seus incisos.223 219 HIRONAKA, Giselda Maria; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). sucessões e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.99. 220 HIRONAKA, Giselda Maria; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). sucessões e o novo código civil. p.99. 221 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. p.118. 222 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 4.ed. São 2004a. p.125. 223 HIRONAKA, Giselda Maria; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coords.). sucessões e o novo código civil. p.99. Direito das Direito das Paulo: Atlas, Direito das 81 Zeno Veloso complementa escrevendo que a situação do companheiro sobrevivente é também precária e débil quando concorre com os colaterais. No direito sucessório brasileiro já estava consolidado e quieto o entendimento de que, na falta de parentes em linha reta do falecido, o companheiro sobrevivente devia ser o herdeiro, afastando-se os 224 colaterais e o Estado. “O legislador não pode dar as costas para o fato social de que a família hoje é menor, menos hierarquizada. Fala-se em família nuclear, na qual predominam os laços de afetividade e os princípios da liberdade e igualdade.”225 Pela nova lei, o companheiro participará da divisão da herança, concorrendo com os demais herdeiros, sejam descendentes, ascendentes ou colaterais, embora não esteja incluída entre os herdeiros necessários. Registre-se que, no caso do cônjuge, a participação se dá de forma diversificada, seja na distribuição dos valores, seja na ordem do chamamento. Conforme Washington de Barros Monteiro, a colocação do companheiro no capítulo da ordem hereditária deveria, no mínimo, estar em paralelo com o cônjuge, no capítulo d sucessão legítima.226 Corroborando com este pensamento leciona Ana Luiza Maia Nevares que o mesmo não pode ser dito em relação ao companheiro. Se a inclusão do cônjuge no rol dos herdeiros necessários foi uma medida positiva operada pelo Código Civil de 2002, o mesmo não pode ser dito em relação ao companheiro neste diploma legal, que só recebe por herança os bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável, concorrendo na sucessão, inclusive, com os colaterais (art. 1.790, III).227 Quanto ao direito de habitação, “sendo ou não herdeiro terá assegurado o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à moradia da família, 224 VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.243-256. VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.243-256. 226 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. p.88-89. 227 NEVARES, Ana Luiza Maia. Os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, ano 8, n.36, p.139-169, jun./jul., 2006. 225 82 desde que seja o único daquela natureza a inventariar.”228 Esta situação é identificada na decisão a seguir: EMENTA: SUCESSÃO. UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRA SUPÉRSTITE. AÇÃO MOVIDA PELO ESPÓLIO REIVINDICANDO IMÓVEL QUE SERVIA DE RESIDÊNCIA AO CASAL, PARTILHADO ENTRE OS FILHOS DE FORMA AMIGÁVEL, SEM A INCLUSÃO DA CONVIVENTE. DEFESA DO DIREITO DE HABITAÇÃO, NÃO DE PROPRIEDADE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO, ENQUANTO VIVER OU NÃO CONTRAIR NOVA UNIÃO A CONVIVENTE (LEI n. 9.278/96, ART. 7º, § ÚNICO). AÇÃO IMPROCEDENTE. APELAÇÃO DESPROVIDA... (TJ-RS, Apelação cível n. 70015179294, Rel. Des. Luiz Ari Azambuja Ramos, julgado em 14/09/2006). O Código Civil de 2002 contempla o cônjuge diferentemente do companheiro. Nem um nem outro têm, atualmente, o direito ao usufruto de parte da herança. E somente o cônjuge tem direito real de habitação. (art. 1.829 e art. 1.830). Desse modo, há ocorrência de diferenças de tratamentos na Lei em relação ao direito à herança cabível ao cônjuge e ao companheiro, ferindo o princípio constitucional da igualdade. Sobre isso pode-se observar nas decisões expostas a seguir, proferidas pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. DIREITO SUCESSÓRIO. COMPANHEIRA. Regida a Sucessão pelo atual Código Civil de 2002, não há falar em direito da companheira a quinhão no imóvel que decorre de herança do falecido. Conforme disposto nos artigos 1.787 e 1.790 do CC, a agravante faz jus tão-só aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. Precedentes. Recurso desprovido... (TJ-RS, Agravo de Instrumento n. 70017785247, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julgado em 12/01/2007). EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO SUCESSÓRIO DO COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. COLATERAIS. EXCLUSÃO. Quando o de cujus não deixa descendentes ou ascendentes, o companheiro sobrevivente tem direito à totalidade da herança, o que afasta o direito hereditário dos parentes colaterais. Precedentes jurisprudenciais. AGRAVO PROVIDO. EM MONOCRÁTICA... (TJ-RS, Agravo de Instrumento n. 70027645217, Rel. Des. Rui Portanova, julgado em 25/11/2008). 228 NEVARES, Ana Luiza Maia. Os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro. p.139-169. 83 EMENTA: CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. DECISÃO QUE IMPEDIU A PARTICIPAÇÃO DA COMPANHEIRA NA SUCESSÃO AO ARGUMENTO DE QUE LHE BASTAVA A MEAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO À SUCESSÃO ASSEGURADO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DOS ARTS. 1829, I, 1.725, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL. VEDADA A DISTINÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRA PARA FINS SUCESSÓRIOS OPERADA PELO ART. 1.790 DO REFERIDO DIPLOMA LEGAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 226, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Os tribunais pátrios têm admitido a aplicação do art. 1.829, I, c/c art. 1.725 do referido Diploma Legal não somente para os cônjuges, como também para os companheiros, colocando ambos em posição de igualdade na sucessão. (TJ-SC, de São José, Agravo de Instrumento n. 2007.035282-1, Rel. Des. Marcus Tulio Sartorato, julgado em 21/08/2008). EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE EXISTÊNCIA DE UNIÃO ESTÁVEL. FALECIMENTO DO COMPANHEIRO. PEDIDO PARA PERMANÊNCIA NA POSSE E ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DO DE CUJUS. TUTELA DEFERIDA À COMPANHEIRA. IRRESIGNAÇÃO DA FILHA MENOR DO FALECIDO. ALEGAÇÃO DE USO DESORDENADO DO ESPÓLIO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. Cuidando-se de demanda ajuizada com o fito de ver declarada a existência de união estável contra a filha menor do primeiro casamento do companheiro falecido, pode o magistrado, ante prova razoavelmente convincente, antecipar parte da tutela e permitir que a companheira permaneça na posse da administração dos bens adquiridos na constância da união estável. (TJ-SC, de Capital / Estreito, Agravo de Instrumento n. 2003.029238-1, Rel. Des. Eládio Torret Rocha, julgado em 16/05/2008). Desse modo, restringir a incidência do direito sucessório do companheiro sobrevivente aos bens adquiridos onerosamente pelo de cujus na união estável não tem nenhuma razão. Isto é, não tem lógica alguma e quebra todo o sistema, podendo gerar conseqüências extremamente injustas. A companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época em que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro se este não adquiriu outros bens durante o tem o da convivência. Ficará essa mulher - se for pobre - literalmente desamparada. Mormente quando o falecido não cuidou de beneficiála em testamento.229 O problema se mostra mais grave e delicado se for considerado que o novo 229 NEVARES, Ana Luiza Maia. Os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro. p.139-169. 84 Código Civil nem fala no direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, ao regular a sucessão entre companheiros, deixando de prever, em outro retrocesso, o beneficio já estabelecido no art. 70, Parágrafo único, da Lei n. 9.278/96.230 Para Zeno Veloso “vê-se, então, não só que a posição sucessória do companheiro sobrevivente está profundamente diminuída na concorrência com ascendente do de cujus”231, como apresenta discordância se comparada com a solução legal no caso da concorrência do cônjuge sobrevivente com os ascendentes do falecido. Não havendo parentes sucessíveis, o companheiro sobrevivente recebe a integralidade da herança (art. 1.790, IV). Esta totalidade é aquela a que o companheiro sobrevivente está autorizado a concorrer (bens adquiridos onerosamente na constância do casamento). Assim, sendo maior o patrimônio do falecido, aqueles bens não contemplados no caput do art. 1.790, serão tidos como herança jacente, passando para o Município ou Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições ou à União, quando situados no Território Federal.232 Neste sentido, ao criticar o art. 1.790, Euclides de Oliveira entende que: demais disso, considere-se a hipótese de o falecido ter deixado apenas bens adquiridos antes da união estável, ou havidos por doação ou herança. Então, o companheiro nada herdará, mesmo que não haja parentes sucessíveis, ficando a herança vacante para o ente público beneficiário (Município ou Distrito Federal), se localizada nas respectivas circunscrições, ou União, quando situado em 233 Território Federal - art. 1.844 do NCC). Sobre este mesmo assunto, César Fiúza afirma que: seria absurdo interpretar a norma no sentido de colocar o companheiro em situação inferior à Administração Pública. Ao se interpretar o art. 1.790 apenas de acordo com seu caput, poderá ocorrer o caso em que o companheiro nada herdará, por não haver 230 NEVARES, Ana Luiza Maia. Os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro. Revista Brasileira de Direito de Família, p.139-169. 231 VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.243-256. 232 VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.243-256. 233 apud GONÇALVES, Carlos. Sinopses jurídicas - Direito das sucessões. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 85 patrimônio adquirido a título oneroso durante a união estável. Supondo que haja outro patrimônio, este seria incorporado aos cofres municipais. Tal situação iria muito além das raias do absurdo.234 Portanto, o dispositivo não está em consonância com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma vez que a Lei Maior reconhece a união estável como entidade familiar. Sendo um dos objetivos do Direito Sucessório a perpetuidade do patrimônio da família do de cujus, não deve prosperar a interpretação literal do caput do art. 1.790, que afasta do patrimônio hereditário do companheiro os bens individuais deixados pelo autor da herança. Com clareza Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery prelecionam que com a limitação do dispositivo supracitado, em seu caput, é de se indagar se o legislador ordinário quis excluir o companheiro da sucessão desses bens, fazendo com que a sucessão deles fosse deferida ao Poder Público. Parece que não por três motivos: a) o CC, em seu art. 1.844 manda que seja devolvida ao ente público, apenas na hipótese de o de cujus não ter deixado cônjuge, companheiro ou parente sucessível; b) quando o companheiro não concorre com parente sucessível, a lei se apressa em mencionar que o companheiro terá direito à totalidade da herança (CC, art. 1.790, IV), fugindo do comando do caput, ainda que sem muita técnica legislativa; c) a abertura de herança dá-se quando não há herdeiro legitimo (CC, art. 1.819) e, apesar de não constar do rol do CC, em seu art. 1.828, a qualidade sucessória do companheiro é de sucessor legítimo e não de testamenteiro.235 Para tornar a situação mais grave e intolerável, assim dispõe a severa restrição do caput do art. 1.790, “o que o companheiro sobrevivente vai herdar sozinho não é todo o patrimônio deixado pelo de cujus, mas apenas o que foi adquirido na constância da união estável e a título oneroso.” Uma interpretação equivocada seria “o companheiro terá direito a todos os bens adquiridos onerosamente, durante a união estável, incorporando-se os demais bens ao patrimônio do Município em que se acharem.”236 234 FIÚZA, César. Novo direito civil. 7.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.867. [Curso completo de acordo com o Código Civil de 2002]. 235 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil anotado e legislação extravagante. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2003. p.784. 236 FIÚZA, César. Novo direito civil. p.872. 86 Mas uma interpretação correta seria “é que não havendo nem descendentes, nem ascendentes, nem colaterais, o companheiro herda todo o acervo hereditário, e não só o adquirido onerosamente durante a união estável.” E os direitos hereditários dos companheiros foram estabelecidos, em princípio, em concorrência e não com exclusividade.237 Na opinião de Zeno Veloso, existe uma grande disparidade no tratamento dado entre cônjuge sobrevivente e companheiro, no que diz respeito à posição de cada um na ordem preferencial dos chamados a herdar. Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil Brasileiro que começou a vigorar no Terceiro milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o quarto grau do de cujus. Temos que convir. Isso é demais! Sem dúvida, neste ponto o 238 C.C. não foi feliz. Para Caio Mário da Silva Pereira239, a expressão herança constante nos incisos III e IV do art. 1.790 deve ser interpretada em seu sentido próprio, “mais abrangente do que bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável.” Diante de todo o exposto, faz-se necessário uma nova redação para o art. 1.790 do Código Civil. Neste sentido, Ricardo Fiúza considera que é fundamental “promover uma reforma legislativa para que a sucessão entre companheiros seja regulada de forma idêntica à sucessão entre cônjuges, dada a evidente paridade das situações.”240 O Código Civil de 2002 no tocante do direito sucessório dos companheiros foi sucinto ao explicitar em apenas um artigo toda a matéria referente com uma difícil interpretação, que traz à tona uma gama de discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Sobre isso, avalia Zeno Veloso que: 237 In: FREITAS, Douglas Phillips (Org.). Curso de direito das sucessões. p.309-310. VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.255. 239 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.156. [v.6 - Direito das Sucessões]. 240 In: FREITAS, Douglas Phillips (Org.). Curso de direito das sucessões. p.309-310. 238 87 a lei não está imitando a vida, nem se apresenta em consonância com a realidade social. O próprio tempo se incumbe de destruir a obra legislativa que não seguiu os ditames do seu tempo, que não obedeceu as indicações da história e da civilização.241 Segundo Patrícia Fontabella Rosa, a discussão em torno do Direito Sucessório dos companheiros fica a cargo dos tribunais pátrios, que traçarão o verdadeiro entendimento acerca da sucessão entre companheiros, prevista no art. 1.790, do Código Civil de 2002.242 Sobre este tema, o Des. Ricardo Raupp Ruschel destaca a existência de Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional, propondo a revogação do art. 1.790 e a alteração do art. 1.829 do Código Civil de 2002 (Projeto de Lei n. 4.944/2005 - de autoria do Deputado Antônio Carlos Biscaia), que é fruto de estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família. Para este estudioso, “primar pela aplicação literal da regra prevista no art. 1.790, III, da nova Lei Civil, além de afrontar o princípio da eqüidade, viola também o princípio da vedação do enriquecimento sem causa [...]” Uma síntese das posições doutrinárias e jurisprudenciais está descrita no item a seguir. 3.2.1 Síntese das posições doutrinárias sobre a (in)constitucionalidade do art. 1.790 Muitos doutrinadores e juristas têm opiniões contrárias à redação atribuída ao art. 1.790 e seus incisos, no Código Civil de 2002. Estas posições podem ser constatadas nas transcrições a seguir. “Configurou verdadeiro retrocesso relativamente à sucessão dos companheiros, eis que limita-se aos bens adquiridos a título onerosos constância da união estável” (PATRÍCIA FONTANELLA ROSA). “Colocou o companheiro em posição infinitamente inferior à que ostenta o cônjuge” (ZENO VELOSO). 241 VELOSO, Zeno. O direito sucessório dos companheiros. p.255. ROSA, Patrícia Fontanella. União estável a eficácia regulamentadoras. 242 temporal das leis 88 “As regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no Novo Código Civil são inconstitucionais. Na medida em que a nova Lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade” (DES. RUY PORTANOVA, 18/11/2004). “A nova disciplina dos direitos sucessórios dos companheiros é considerada pela doutrina um evidente retrocesso e cita a Lei n. 8.971/94” (CARLOS ROBERTO GONÇALVES). “Merece censura e crítica severa por que é deficiente e falho em substância. Significa um retrocesso evidente, representa um verdadeiro equívoco” (ZENO VELOSO). “[...] É impossível conciliar, do ponto de vista matemático, as disposições dos incisos I e II do art. 1.790” (ZENO VELOSO). “[...] Em observância ao princípio da eqüidade, assegurando-se igualdade de tratamento entre cônjuge e companheiro, inclusive no plano sucessório. [...] a Constituição Federal não confere tratamento iníquo aos cônjuges e companheiros, tampouco faziam as Leis que regulamentavam a união estável antes do advento do Novo Código Civil, não podendo, assim, prevalecer a interpretação literal do art. 1.790, sob pena de se incorrer na odiosa diferenciação, deixando ao desamparo a família constituída pela união estável, [...]” (RICARDO RAUPP RUSCHEL, 12/09/2007). “Por reprovável impropriedade técnica, deixou o legislador de contemplar, na ordem de vocação hereditária, o direito sucessório decorrente da união estável [...]” (FRANCISCO JOSÉ CAHALI e GISELDA MARIA HIRONAKA). “[...] A grande disparidade de tratamento entre a posição sucessória do cônjuge e do companheiro vai de encontro aos fundamentos constitucionais” (JOSÉ LUIZ GAVIÃO DE ALMEIDA). “Faz-se necessário que o Código Civil de 2002 seja reformado no que tange à sucessão dos companheiros, para que seja obedecido o comando constitucional constante no art. 226, caput, §3°” (JOSÉ LUIZ GAVIÃO DE ALMEIDA). “[...] não é aceitável, assim, que prevaleça a interpretação literal do art. 1.790 do Código Civil de 2002, [...] o que implicaria em ‘verdadeiro retrocesso’ social frente à evolução doutrinária e jurisprudencial do instituto da união estável havida até então” (DES. MARIA BERENICE DIAS e DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS). 89 “A sucessão do companheiro no Código Civil de 2002 regulou o direito sucessório dos companheiros com enorme redução, com dureza imensa, de forma tão encolhida, tímida e estrita, que se apresenta em completo ‘divórcio’ com as aspirações sociais, as expectativas da comunidade jurídica e com o desenvolvimento de nosso direito sobre a questão. [...] Que faz a leitura constitucional como sendo iguais todas as entidades familiares, a distinção evidenciada no Novo Código Civil é tida como inaceitável discriminação” (SILVIO RODRIGUES). “Faz-se necessário uma nova redação do Código Civil de 2002, com o intuito de se dar a evidente paridade das situações” (RICARDO FIÚZA). “A lei não está imitando a vida, nem se apresenta em consonância com a realidade social [...]” (ZENO VELOSO). Diante do exposto, sabe-se que a discussão ficará a cargo dos tribunais, mas novos estudos sobre a (in)constitucionalidade do art. 1.790 e seus incisos são fundamentais, somando-se aos estudos anteriores efetuados pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família. Os estudos do referido Instituto gerou o Projeto de Lei n. 4.944 de 2005, que está em tramitação no Congresso Nacional, propondo a revogação do art. 1.790 e a alteração do art. 1.829 do Novo Código Civil, em defesa do princípio da igualdade e da dignidade. 90 4 CONCLUSÃO Ao terminar esta Monografia acredita-se que o questionamento de pesquisa “Há possibilidade de infrigência do Princípio Constitucional de Igualdade pela diferenciação prevista no Código Civil de 2002 com relação aos direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro?” foi respondido. O objetivo geral “Avaliar a diferenciação de tratamento entre a posição sucessória do companheiro e do cônjuge” foi atendido na revisão de literatura do capítulo 2, onde foram demonstradas as inovações decorrentes no Código Civil de 2002 no direito sucessório, identificando as diferenças de tratamento dado ao cônjuge e ao companheiro, com base no art. 1.790, em relação ao art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, e resgatando as jurisprudências sobre a (in)constitucionalidade do art. 1.790 e demonstrando as posições dos juristas críticos frente à diferenciação dada ao cônjuge e ao companheiro no direito sucessório, constantes no capítulo 3 deste estudo. As hipóteses deste estudo: a) Por ter o constituinte brasileiro recomendado no art. 226, §3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - “que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento” -, não concedeu aos companheiros o mesmo status dado aos cônjuges, que terão maiores direitos em relação à herança quanto ao falecimento de seu parceiro; e b) A união estável recebeu da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 o reconhecimento de entidade familiar, nas mesmas condições do casamento e da família monogâmica. Não pode a legislação infraconstitucional tratar de forma diferenciada o direito de herança em favor do cônjuge e do companheiro, quando do falecimento do parceiro, foram confirmadas quando se desenvolveu o capítulo 3 e buscou-se analisar na doutrina e nos julgamentos dos Tribunais de Justiça Estaduais brasileiros os entendimentos quanto aos direitos sucessórios dos cônjuges e dos companheiros. Na revisão de literatura o capítulo 1 abordou o tema “família”, sua formação, o reconhecimento no ordenamento jurídico brasileiro, as formas, e as nomenclaturas utilizadas. Este capítulo atendeu o primeiro objetivo específico quando descreve a entidade familiar e o reconhecimento jurídico das novas formações. 91 O capitulo 2 abordou o tema “sucessão”, mostrando sua evolução, a propriedade, a herança e os herdeiros no Direito brasileiro, e os tipos, com base na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no Código Civil de 2002. Este capítulo atendeu o segundo objetivo específico quando descreveu pontos que foram inovados no Código Civil de 2002, no que se refere ao direito sucessório do cônjuge e do companheiro, em relação à legislação então vigente em respeito aos princípios e normas constitucionais. O capítulo 3 abordou o tema “sucessão do cônjuge e do companheiro” na legislação vigente (foco deste estudo), e a (in)constitucionalidade do art. 1.790, que fere o Princípio da Igualdade Constitucional no direito sucessório, apresentando as posições doutrinárias e jurisprudenciais. Este capítulo atendeu o último objetivo específico quando demonstra as posições doutrinárias e jurisprudenciais divergentes sobre os direitos do cônjuge e do companheiro, constantes no art. 1.790 do Código Civil de 2002. Diante do exposto, e com base no capítulo 3, conclui-se que há inúmeras divergências jurisprudenciais a favor da aplicação igualitária dos direitos do cônjuge e do companheiro no direito sucessório, a respeito da aplicação do art. 1.790, do Código Civil de 2002. Na análise do conteúdo da revisão de literatura pode-se constatar que as relações familiares sofreram um avanço nas uniões informais, modificando as espécies, porém algumas posições de doutrinadores não acompanharam este processo, como podem ser constatadas nos posicionamentos a favor do art. 1.790 do Código Civil de 2002 na revisão de literatura deste estudo. Como se pode constatar no capítulo 3 houve um retrocesso na legislação que trata da união estável, quanto à diferenciação dada entre as duas espécies de formação da entidade familiar, ocorrendo aí uma afronta ao Princípio da Igualdade e Dignidade da pessoa humana. Aqui se pode concluir que o Código Civil de 2002, em seu art. 1.790 e art. 1.829, deixa lacunas no que tange à sucessão dos companheiros, não obedecendo ao art. 226, caput, §3° da Constituição da República Federativa do Brasil, sendo necessário uma nova redação, com o intuito de se dar a evidente paridade das situações. 92 REFERÊNCIAS ALMEIDA JR., Jesualdo Eduardo. 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