FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO DANIEL PROCHALSKI O CRITÉRIO ESPACIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS E OS CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS CURITIBA 2007 DANIEL PROCHALSKI O CRITÉRIO ESPACIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS E OS CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS Dissertação apresentada no Programa de Mestrado em Direito Empresarial das Faculdades Integradas Curitiba, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito. Orientador: Professor Doutor José Roberto Vieira CURITIBA 2007 DANIEL PROCHALSKI O CRITÉRIO ESPACIAL DA REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS E OS CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito pelas Faculdades Integradas Curitiba. Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores: Presidente: Orientador: Professor Doutor José Roberto Vieira Professora Doutora Gisela Maria Bester Professora Doutora Betina Treiger Grupenmacher Curitiba, fevereiro de 2007 AGRADECIMENTOS A decisão de ingressar em um programa de mestrado implica, freqüentemente, a renúncia ao convívio de nossos entes queridos, o que se intensifica sobremaneira no período dedicado à redação da dissertação, quando, nessas longas horas de silêncio e meditação, contamos tão-somente com a companhia fria – mas fiel – dos livros ao nosso lado. No entanto, a solidão, nesses momentos, é apenas aparente, pois em nossa retaguarda sempre estão aqueles que, com incondicionais apoio e afeto, não medem esforços para que nossa caminhada seja o menos árdua possível. Os agradecimentos, portanto, são imprescindíveis. Aos meus pais Eduardo Prochalski e Sr.ª Wanda Prochalski, pelo exemplo de amor, honestidade, disciplina e educação. À minha amada esposa Sr.ª Kauana, pelo carinho e pela compreensão. Ao Professor Doutor José Roberto Vieira, que, compartilhando sua imensa sabedoria nas áreas do Direito e da Linguagem, contribuiu decisivamente na correção de falhas em nosso raciocínio, sempre de forma respeitosa e amigável. Portanto, os defeitos e as incorreções ainda existentes resultam exclusivamente das limitações do autor. Aos colegas do escritório de advocacia João Paulo Capella Nascimento, Ângelo Eduardo Ronchi e Tiago da Costa Bilesky, que de forma solícita atenderam meus compromissos durante o período em que essa dissertação exigiu meu afastamento. Ao professor e advogado tributarista Doutor Luiz Carlos Derbli Bittencourt, que, cedendo gentilmente sua valiosa biblioteca, muito contribuiu para a elaboração deste trabalho. Finalmente, a todos os que, embora não mencionados, de alguma forma estiveram ao meu lado nessa caminhada. RESUMO O presente trabalho tem por objetivo geral uma aplicação da teoria da norma tributária à regra-matriz de incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza, designado pela sigla, de uso corrente, “ISS”, conforme sua matriz constitucional e também segundo a legislação nacional que disciplina esse imposto, em nível infraconstitucional. O objetivo específico é, com base na unidade lógica da norma jurídica tributária, proceder ao estudo da estrutura integral do núcleo constitucional da regra-matriz do ISS, o que servirá de fundamento para expor qual é a nossa visão sobre o único critério espacial possível da hipótese de incidência desse tributo, em virtude da certeza científica de que, na escolha, pelo legislador constituinte, das materialidades aptas a integrar a hipótese de incidência dos tributos, os traços da definição dos demais critérios da hipótese – temporal e espacial – também já estão implicitamente contidos naquele núcleo. O mesmo raciocínio é eficaz na identificação de quais sejam a base de cálculo e o sujeito passivo possíveis do tributo. Constitui ainda premissa fundamental, neste estudo, o entendimento de que os serviços passíveis de incidência pelo ISS não podem ser outros senão aqueles cuja prestação represente o cumprimento de uma “obrigação de fazer”. Por outro lado, o presente estudo também almeja dar relevo à responsabilidade social que subjaz à obrigação tributária, como reflexo da evolução conceptual da noção de imposição tributária, o que é resultado, em grande parte, do advento do Estado Democrático de Direito. Esse novo contexto ganhou especial relevo em face do papel da receita tributária do ISS como importante meio de efetivação da Autonomia Municipal. Palavras Chave: ISS, Norma Jurídica Tributária, Responsabilidade Social, Autonomia Municipal. Regra-Matriz do ISS, ABSTRACT The present work has for general objective an application of the theory of the tributary norm to the rule-head of incidence of the tax on services of any nature, designated by the acronym, of current use, “ISS" (Tax on Services), according to its constitutional matrix and also according to the national legislation that disciplines that tax, in infraconstitutional level. The specific objective is, with base in the logical unit of the tributary juridical norm, to proceed to the study of the integral structure of the constitutional nucleus of the rule-head of ISS, what will serve as foundation to expose which is our vision on the only possible spatial criterion of the hypothesis of incidence of that tribute, by virtue of the scientific certainty that, in the choice, by the constituent legislator, of the capable materiality to integrate the hypothesis of incidence of the tributes, the lines of the definition of the others criterions of the hypothesis - temporal and spatial - are also implicitly contained in that nucleus. The same reasoning is effective in the identification of which are the calculation base and the passive subject possible for tribute. The understanding that the services susceptible to incidence by ISS, that still constitutes fundamental premise, in this study, cannot be other than those whose rendering represents the execution of a " obligation of doing ". On the other hand, the present study also longs for highlighting the social responsibility that underlies the tributary obligation, as reflex of the evolution conceptual of the notion of tributary imposition, what is resulted, largely, of the coming of the Democratic State of Right. This new context won special outline in face of the paper of the tributary revenue of ISS as important middle of effectiveness of the Municipal Autonomy. Key words: ISS, Tributary Juridical Norm, Rule-Head of ISS, Spatial Criterion, Social Responsibility, Municipal Autonomy. SUMÁRIO RESUMO................................................................................................ 5 ABSTRACT............................................................................................ 6 INTRODUÇÃO...................................................................................... 10 1 O DIREITO............................................................................................ 16 1.1 A PERSPECTIVA CIENTÍFICA............................................................ 16 1.2 CIÊNCIA DO DIREITO E LINGUAGEM............................................. 23 1.3 O DIREITO COMO UM SISTEMA....................................................... 31 1.4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................................ 36 2 SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL.............................................. 44 2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS............................................................... 44 2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS........................... 47 2.2.1 Princípios: Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal............ 48 2.2.2 Princípio da Legalidade Tributária.......................................................... 65 2.2.3 Princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva........... 79 2.2.3.1 Solidariedade Social e Tributação........................................................... 81 2.2.4 Princípio da Irretroatividade da Lei Tributária........................................ 96 2.2.5 Princípio da Anterioridade da Lei Tributária........................................... 98 2.2.6 Princípio da Vedação de Utilização de Tributo com Efeito de Confisco................................................................................................... 103 2.3 LEI COMPLEMENTAR EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA...................... 104 2.3.1 Lei complementar em sentido material e formal. Problema da hierarquia................................................................................................. 104 2.3.2 Lei complementar tributária..................................................................... 113 2.3.3 Conteúdo das normas gerais de Direito Tributário.................................. 117 3 A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA............................................... 136 3.1 A ESTRUTURA DA NORMA JURÍDICA............................................ 136 3.2 A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA....................... 3.3 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA............................................................ 148 3.3.1 Considerações introdutórias.................................................................... 3.3.2 Critério material....................................................................................... 159 3.3.3 Critério temporal...................................................................................... 160 140 148 3.3.4 Critério espacial....................................................................................... 163 3.4 A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA..................................................... 164 3.4.1 Considerações Introdutórias.................................................................... 164 3.4.2 Critério subjetivo..................................................................................... 173 3.4.2.1 Sujeito ativo............................................................................................. 174 3.4.2.2 Sujeito passivo......................................................................................... 177 3.4.3 Critério objetivo....................................................................................... 184 3.4.3.1 Base de cálculo........................................................................................ 185 3.4.3.2 Alíquota................................................................................................... 190 3.4.3.3 Local e prazo de pagamento.................................................................... 192 4 A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS............................... 195 4.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.................................................. 195 4.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ISS........................................................ 203 4.3 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ISS.............................................. 4.3.1 O critério material.................................................................................... 204 4.3.1.1 Natureza jurídica da obrigação................................................................ 204 233 4.3.1.2 Relações com o ICMS e o IPI.................................................................. 237 4.3.1.3 A Lei Complementar de que trata o inciso III do artigo 156................... 256 4.3.1.4 A Lista de serviços................................................................................... 268 4.3.2 O critério temporal................................................................................... 278 4.3.3 O critério espacial.................................................................................... 4.3.4 A questão da incidência condicionada ao pagamento do serviço............ 285 4.4 A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA DO ISS........................................ 288 4.4.1 O critério subjetivo.................................................................................. 288 4.4.1.1 Sujeito ativo............................................................................................. 288 4.4.1.2 Sujeito passivo......................................................................................... 290 4.4.2 281 O critério objetivo.................................................................................... 297 4.4.2.1 Base de cálculo........................................................................................ 297 4.4.2.2 Alíquota................................................................................................... 314 5 CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS........... 321 5.1 CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS............................................................... 321 5.2 PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA........ 328 5.3 ESTABELECIMENTO E ESTABELECIMENTO PRESTADOR........ 337 5.4 O ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI N 406/68...................................... 347 5.5 A JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF............................................ 358 5.6 O CRITÉRIO ESPACIAL NA LEI COMPLEMENTAR N 116/2003.................................................................................................. 368 5.7 A REGRA DO DOMICÍLIO DO PRESTADOR.................................... 387 5.8 A AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO............................. 392 5.8.1 Características do direito processual tributário brasileiro........................ 392 5.8.2 Tutela do direito à observância da regra-matriz do ISS........................... 394 CONCLUSÕES ESPECÍFICAS.......................................................... 400 CONCLUSÃO GERAL......................................................................... 411 REFERÊNCIAS..................................................................................... 412 INTRODUÇÃO O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é tributo de competência municipal, conforme prevê o artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988. Interpretando-se esse dispositivo de forma sistemática, em harmonia com o ordenamento jurídico, depreende-se que os serviços tributáveis pelos municípios não podem ser outros senão aqueles cuja prestação representa o objeto de uma relação jurídica bilateral, em que as partes envolvidas – tomador e prestador –, possuem direitos e deveres recíprocos, ou seja, direito subjetivo e dever jurídico, respectivamente, à prestação do serviço assim como ao pagamento do preço previamente acertado. A razão dessa afirmação deve-se ao fato de que, no sistema jurídico brasileiro, as normas impositivas tributárias, criadoras de impostos, devem obrigatoriamente revelar, em sua materialidade, fatos signo-presuntivos de riqueza, consoante a expressão autorizada de ALFREDO AUGUSTO BECKER, querendo, com isso, referir-se à necessidade de observância do Princípio da Capacidade Contributiva, na sua acepção objetiva.1 Portanto, somente poderão ser considerados tributáveis pelo ISS aqueles serviços cuja prestação represente o cumprimento de uma obrigação jurídica. Tal obrigação jurídica, pela natureza do ISS, só pode ser classificada como sendo “obrigação de fazer”, já que prestação gratuita de serviços não pode ser tributada por esse imposto, por não representar riqueza para o prestador nem poder indicar critérios para definição de uma base de cálculo juridicamente legítima. Esse raciocínio demonstra o vínculo inevitável entre o Direito Privado, aplicável aos contratos realizados entre os prestadores de serviços e seus respectivos tomadores, e o Direito Tributário, neste caso, em especial, as normas jurídicas relativas ao ISS. O cumprimento da obrigação de fazer pelo prestador do serviço é fato jurídico tributário, posto que, assim que ocorrido, deflagra, de forma automática e infalível, o nascimento de outra obrigação empresarial, agora, porém, de natureza compulsória, a qual não resulta de acordo de vontades, como ocorre com a anterior relação entre tomador e prestador. Essa nova obrigação empresarial nada mais é do que a relação jurídica tributária, tendo como sujeito ativo o município competente para exigir o recolhimento 1 Teoria Geral do Direito Tributário, p. 454-456. 10 do valor objeto da prestação, e como sujeito passivo o prestador do serviço, salvo as hipóteses legais de retenção na fonte pelo tomador, quando então este passa ser o que se convencionou denominar de “substituto tributário”. O ISS era regulado integralmente, em âmbito nacional, até o ano de 2003, pelo Decreto-Lei nº 406, de 31 dez. 1968, o qual, em seu artigo 12, fixava a regra geral segundo a qual o local da prestação do serviço correspondia ao local do estabelecimento prestador ou, na falta desse estabelecimento, o do domicílio do prestador. Apenas os serviços de construção civil constituíam exceção a essa regra, atividade cujo fato tributário se considerava ocorrido no local da efetiva prestação. O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, pacificou o entendimento de que o ISS é devido onde o serviço é efetivamente prestado, o que veio a causar uma série de transtornos, posto que as empresas que, estabelecidas em um município, mas prestadoras de serviços em outro, viram-se diante de verdadeira bitributação, com ambas as prefeituras exigindo o pagamento de imposto sobre o mesmo fato. A controvérsia sobre o critério espacial, portanto, tem provocado a indefinição com relação a quem é o legítimo sujeito ativo da relação tributária do ISS. Com o advento da Lei Complementar nº 116, de 31 jul. 2003, procurou-se solucionar a questão do conflito de competência e também da guerra fiscal entre municípios. No caput do artigo 3º dessa lei, repetiu-se a regra constante do pré-citado artigo 12 do Decreto-Lei nº 406/68, pela qual o serviço é considerado prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador e, na sua falta, no local do domicílio do prestador. Como exceções a essa regra, foram previstos, nos incisos I ao XXII desse mesmo artigo 3º, serviços cuja prestação é considerada ocorrida e o imposto devido (a) no local da efetiva prestação – grande maioria dos casos – ou (b) no local do estabelecimento do tomador do serviço, sendo essa última regra aplicável em apenas duas hipóteses: serviços provenientes do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País (inciso I) e aos serviços de fornecimento de mão-de-obra (inciso XX). Com efeito, no plano do Direito Positivo, apesar de louvável iniciativa política, a nova lei complementar parece não ter servido de garantia para o fim das controvérsias, seja em razão do núcleo da regra-matriz de incidência do ISS, que se extrai da interpretação direta da Constituição Federal, seja de outros problemas também conexos ao critério espacial, como é exemplo a questão da responsabilidade do tomador ou intermediário de determinados serviços constantes da lista anexa a essa lei, conforme 11 prevê seu artigo 6º, § 2º, II, posto resultar na possibilidade de um município legislar sobre sujeição passiva de empresas situadas em municípios diversos. Não obstante o longo tempo de existência do ISS no ordenamento jurídicotributário brasileiro – tem sua origem na Emenda Constitucional nº 18, de 1º de dezembro de 1965 –, assim como pela sua grande relevância jurídica, em especial pelo seu caráter instrumental em relação ao princípio constitucional da Autonomia Municipal, o presente estudo observou que são poucas as obras produzidas pela doutrina nacional que examinam esse tributo municipal em sua completude.2 Por outro lado, numerosos são os trabalhos que analisaram questões pontuais do ISS. Deles, aqueles que reputamos mais importantes foram objeto de análise no presente estudo. A pequena produção científica sobre o ISS é, talvez, resultado de uma falta de expectativa quanto à sua permanência no sistema jurídico-tributário brasileiro, em face de numerosas e recentes propostas de reforma tributária, que recomendam a sua substituição, em conjunto com o ICMS e o IPI, por um “IVA” – Imposto sobre o Valor Agregado.3 Tal fenômeno, no entanto, não justifica um menoscabo em relação ao ISS, em especial pelo advento da Lei Complementar nº 116/2003, norma que, a pretexto de solucionar antigos pontos polêmicos em torno desse tributo municipal, pouco alterou do seu regime infraconstitucional, o que reforça, mais uma vez, a necessidade de uma interpretação da legislação nacional, sobre o ISS, no contexto da Constituição Federal de 1988. A importância do tema também se justifica à medida que a recente doutrina, nascida após a publicação da Lei Complementar nº 116/2003, não tem sido unânime sobre as questões que surgem a respeito do local de ocorrência do fato tributário do ISS – critério espacial – do que decorre a necessidade de a Ciência do Direito Tributário se debruçar sobre esse tema, influenciando de forma positiva as decisões judiciais e administrativas a seu respeito, e visando, em última análise, propiciar maior segurança jurídica aos contribuintes. A discussão, com efeito, ultrapassa os limites do direito 2 Dentre todas as obras, as seguintes se destacam pelo rigor científico e são atualmente marcos doutrinários obrigatórios em qualquer pesquisa sobre o ISS: O Imposto Sobre Serviços na Constituição (São Paulo: RT, 1985), do respeitado jurista paranaense MARÇAL JUSTEN FILHO, produzida ainda sob a égide da Constituição anterior; ISS – Aspectos Teóricos e Práticos (3. ed. São Paulo: Dialética, 2003), de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, professor livre-docente da PUCSP; ISS na Constituição e na Lei (2. ed. São Paulo: Dialética, 2003) de AIRES BARRETO, professor paulista que preside o Instituto Geraldo Ataliba de Direito Público e Empresarial; e a mais recente, ISS: do Texto à Norma (São Paulo: Quartier Latin, 2005) do advogado e professor paranaense MARCELO CARON BAPTISTA. 3 BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 51-52. 12 material para, dentro da seara da efetividade, buscar subsídios para que o contribuinte possa, judicial ou extrajudicialmente, ter segurança no momento do adimplemento da obrigação tributária. Este trabalho, portanto, tem por objetivo geral o estudo da regra-matriz de incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza, que, aqui, será designado pela sigla de uso corrente “ISS”, conforme sua matriz constitucional e também segundo a legislação nacional que disciplina esse imposto, em nível infraconstitucional. Como objetivo específico, e com base na unidade lógica da norma jurídica tributária, o estudo parte da estrutura integral do núcleo constitucional da regra-matriz do ISS como premissa para expor qual é a nossa visão sobre o único critério espacial possível da hipótese de incidência desse tributo, posto já estar cientificamente demonstrado que, na escolha, pelo legislador constituinte, das materialidades passíveis de integrar a hipótese de incidência dos tributos, já estão implicitamente abrangidos, também, os traços da definição dos demais critérios da hipótese – temporal e espacial – assim como, a partir daí, já é possível inferir quais sejam a base de cálculo e o sujeito passivo do tributo. Como essa interpretação tem origem única e exclusivamente no contexto constitucional, dela não podem os municípios se afastar, pois é a Constituição o fundamento de validade das leis tributárias editadas não só pelos municípios, mas também, e com os mesmos fundamentos, das leis emanadas da União Federal, dos Estados-membros e do Distrito Federal. Simultaneamente, o mesmo raciocínio serve para definir quais os limites a que a União Federal está vinculada quando da edição das normas gerais em matéria tributária, onde está inserida a competência para legislar sobre o ISS em nível nacional. A foz do presente estudo está na análise conjunta das conclusões extraídas acerca do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, diante da investigação das razões do surgimento dos constantes conflitos de competência entre os municípios, o que também tem como uma das causas a eleição do sujeito passivo do ISS, em flagrante desrespeito à matriz constitucional do imposto municipal. Nesse sentido, a polêmica e atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça desempenha papel de destaque, pois serviu e ainda tem servido como orientação na elaboração de muitas leis municipais. Como já se pode dessumir, este trabalho não se propõe a analisar nenhuma regra-matriz específica, ou seja, não trataremos de nenhuma lei municipal que já tenha criado o ISS em definitivo, tendo os contribuintes e responsáveis tributários como 13 destinatários.4 O nosso estudo dirige-se às normas jurídicas que prescrevem qual é, dentro da regra-matriz do ISS, o critério espacial possível, a ser observado pelos legislativos municipais, assim como questões conexas relativas à sujeição passiva tributária, tendo como pano de fundo os conflitos entre municípios. Trata-se, portanto, de uma análise de regras de estrutura. De forma preliminar, está consignada nossa visão acerca do que é o Direito, assim como qual seja, em nossa opinião, a metodologia para melhor conhecê-lo, para o que reputamos imprescindível uma utilização devida da teoria da linguagem, como instrumento para identificar os níveis lingüísticos em que tanto o Direito Positivo como a Ciência do Direito são veiculados. Ato contínuo, e lastreados na noção do Direito como um sistema, expomos nossa visão sobre qual seja a ideologia encampada pela Constituição em relação ao Estado Democrático e Social de Direito para, após, e nessa perspectiva, comentar a eficácia dos mais relevantes princípios constitucionais aplicáveis em matéria tributária. Ainda antes de adentrar especificamente no estudo do ISS, trataremos do tema da estrutura das normas jurídicas, conforme sua formulação advinda da Teoria Geral do Direito, para então aplicar as conclusões sobre a estrutura lógica da norma jurídica tributária, adotada como premissa para o estudo da regra-matriz de incidência do ISS. No âmbito desta, nossas atenções voltam-se, como já afirmado, para o critério espacial da hipótese de incidência, ou seja, para os dados existentes no ordenamento jurídico que indicam qual é o único local onde se reputa ocorrido o fato tributário do ISS, o que terá como principal conseqüência a definição da pessoa política competente para instituir esse imposto e em especial do sujeito ativo da relação jurídica tributária. Por fim, ressaltamos que o presente estudo também procurará dar relevo à responsabilidade social que subjaz à obrigação tributária, posto que a receita tributária, por ser pública, deve ser efetivada dentro de uma nova interpretação da Constituição Federal, mais adequada à atual realidade, para exigir que, além da observância aos cânones do Estado de Direito, devam os atos e negócios jurídicos ser realizados em consonância com as conquistas do Estado Social e Democrático de Direito, no sentido de não mais se tolerar uma visão egoística da atividade do setor privado – liberdade 4 É de se lembrar que em nosso país existem 5.564 Municípios e um Distrito Federal, todos com competência para aprovar leis ordinárias criando em definitivo o ISS, conforme dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2005/default.shtm> Acesso em: 20 jan. 2007. 14 negativa – cujos respectivos efeitos devem respeitar a Igualdade, a Solidariedade e a liberdade positiva no meio social. Essa perspectiva ganha especial destaque em virtude da relevância da receita tributária do ISS, como um dos mais importantes instrumentos de efetivação da Autonomia Municipal. 15 1. O DIREITO 1.1 A PERSPECTIVA CIENTÍFICA O Direito é passível de investigação por vários ramos do saber. Cada um, no entanto, analisa esse objeto sob uma perspectiva particularizada. A Filosofia do Direito, por exemplo, ocupa-se de investigar não como é, mas como deve ser o Direito; a História do Direito tem por objeto o Direito de outrora; a Política do Direito estuda como deve o Direito ser construído; a Sociologia Jurídica ocupa-se com a eficácia social do Direito, e assim por diante, com outros campos de investigação. Já a atividade de interpretação do Direito – entendido esse como um conjunto de normas postas em um determinado espaço e em uma determinada época – para que possa revestir a qualidade de um labor rigorosamente científico, requer a desconsideração de qualquer elemento estranho ao sistema jurídico ou de qualquer atitude valorativa proveniente de alguma ideologia que se revele extranormativa. Admite-se, no entanto, a importância e o valor de outros campos de investigação qualificados como pré-jurídicos ou metajurídicos. Porém, seus objetivos não se podem confundir com os objetivos visados pelo cientista do Direito, em cuja atividade não se permite discricionariedade científica. Esse cientista, longe de aplicar suas próprias ideologias no estudo dos textos normativos, deverá, no nível pragmático da análise da linguagem jurídica, encontrar qual é a ideologia intranormativa que o sistema privilegiou. Nessa pesquisa elegerá, dentre as normas, as que possuem maior carga axiológica, com o que poderá identificar, dentro do sistema jurídico, aquelas que revestem a qualidade de verdadeiros e legítimos princípios jurídicos. Na interpretação das normas da Constituição, há que se levar em conta a existência de valores políticos que foram positivados no sistema jurídico, e porque tais valores, conforme EROS ROBERTO GRAU, “[...] penetram o nível do jurídico, na Constituição, quando contemplados em princípios [...], desde logo se antevê a necessidade de os tomarmos, tais princípios, como conformadores da interpretação das regras constitucionais”.5 Na mesma trilha é o raciocínio de JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, para quem “Sob o ponto de vista teorético-político, a interpretação das 5 A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), p. 176-177. Informamos que as citações diretas, realizadas no corpo do texto, serão grafadas em itálico, como forma de destaque. 16 normas constitucionais deve ter em conta a especificidade resultante do facto de a constituição ser um estatuto jurídico do político [...]”.6 Para a investigação de nosso objeto de estudo, o critério espacial da regramatriz de incidência do ISS, optamos, como faríamos na interpretação de qualquer outra norma, pelo chamado positivismo metodológico. Nesse sentido, as palavras de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, ao discorrer sobre a sua perspectiva científica em uma de suas obras: Metodológico, precisamente porque não elimina outros campos de investigação e pesquisa. Porque há outros saberes que a decisão pelo positivismo jurídico-metodológico não exclui. [...] A opção metodológica consiste em circunscrever a investigação científica ao complexo normativo que integra a ordem jurídica. Ela não implica conseqüentemente a negação da Sociologia Jurídica, nem da História do Direito, nem da Filosofia do Direito. Antes se aparta dessas investigações por um corte lógico no objeto material que estuda, ou seja, as normas de direito positivo e a conduta juridicamente normada.7 Ressalte-se que a postura metodológica adotada nesses termos deve andar de mãos dadas com a prudência. É que a interpretação do Direito Positivo está condicionada à ideologia constitucionalmente adotada, e que “[...] esta ideologia, perfeitamente determinável e definível no bojo do discurso constitucional, vincula o intérprete, de sorte precisamente, a repudiar a postura, aludida por Canotilho, assumida por quantos optam por concepções ideológicas dela diferentes, e a ensejar o exercício [...] de um prudente positivismo, indispensável à manutenção da obrigatoriedade normativa do texto constitucional”.8 O Direito, portanto, não é neutro, mas um objeto cultural e político, e como tal, carrega dentro de si intensa carga axiológica. Não se pode negar, na linguagem do cientista do Direito, a valoração inerente ao Direito Positivo, mas é importante lembrar que os valores já estão objetivados no sistema, não cabendo ao cientista do Direito atitudes valorativas que não constam do objeto único de seu estudo. Não cabe ao intérprete, portanto, valorar uma ideologia extranormativa, cabendo-lhe somente analisar da ideologia que já está positivada no sistema, ou seja, a ideologia intranormativa. E é exatamente nesses valores intranormativos, fixados na ordem jurídica positiva, que poderemos identificar os princípios do sistema. São nas normas carregadas axiologicamente que o intérprete identifica os princípios maiores de 6 Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1.081. Obrigação tributária (uma introdução metodológica), p.19-20. 8 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica..., op. cit., p. 194-195. 7 17 um sistema, mesmo porque não está explícito, em cada dispositivo legal, a condição de ser ou não princípio. É, portanto, na opção ideológica estabelecida dentro da ordem jurídica que poderemos identificar o nível pragmático da linguagem do cientista do Direito, ou seja, da interpretação jurídica. A doutrina é abundante na menção aos métodos de interpretação das normas jurídicas, atividade que é objeto de estudo da hermenêutica que, de forma pacífica, tem concluído pela inexistência de métodos que sejam eficazes de forma isolada. Já vimos acima que interpretar normas jurídicas é fazer Ciência do Direito, e que esta também se estrutura em um sistema. Depreende-se disso que todos os métodos interpretativos (como o literal, histórico, lógico e teleológico) possuem sua utilidade, mas somente será eficaz aquele que leva em consideração todo o sistema, ou seja, todos os métodos devem levar ao método sistemático. Não por outra razão, MARÇAL JUSTEN FILHO defende que “[...] a interpretação sistemática é, não apenas mais um ‘método interpretativo’, senão o método hermenêutico”.9 KARL LARENZ10 e KARL ENGISCH11, com acerto, defendem a inconsistência das teses que defendem a superioridade de um método de interpretação em relação a algum outro, ou aos demais. Ambos exprimem bem essa idéia, defendendo que os métodos de interpretação não devem ser isolados, mas devem, sim, sempre atuar conjuntamente. LARENZ conclui que “[...] não se trata de diferentes métodos de interpretação, como permanentemente se tem pensado, mas de pontos de vistas metódicos que devem ser todos tomados em consideração para que o resultado da interpretação deva poder impor a pretensão de correcção (no sentido de um enunciado adequado)”.12 Apesar de cada um dos métodos ser potencialmente válido, dependendo do contexto em que se situe, inegável é a importância e imprescindibilidade da interpretação sistemática, que abrange e pressupõe todos os demais métodos interpretativos. Por outro lado, a porção pragmática da linguagem da Ciência do Direito depara-se com o posicionamento ideológico do cientista em relação aos valores já positivados no sistema, e somente no método sistemático, o intérprete, após percorrer todos os demais métodos, transcorrerá, sempre com rigor científico, todos os níveis da 9 O imposto sobre serviços na Constituição, p. 60. Metodologia da ciência do direito, p. 445-450. 11 Introdução ao pensamento jurídico, p. 148-149. 12 Metodologia..., op. cit., p. 445-450. 10 18 linguagem, posto pressupor esse método interpretativo a passagem pelos planos sintático, semântico e pragmático. Corroborando esse entendimento, sólidas são as argumentações de CARLOS MAXIMILIANO: “O Direito é um todo orgânico; portanto não seria lícito apreciarlhe uma parte isolada, com indiferença pelo acordo com as demais. Não há intérprete seguro sem uma cultura completa. O exegeta de normas isoladas será um leguleio; só o sistematizador merece o nome de jurisconsulto...”.13 Já no campo da Ciência do Direito Tributário, pode-se afirmar que a “Teoria geral do direito tributário”, de ALFREDO AUGUSTO BECKER, foi a obra que causou verdadeira revolução no Brasil, apesar de não ter, na época de seu lançamento, a merecida acolhida.14 Essa obra alertou para a existência de uma “[...] infeliz mancebia do Direito Tributário com a Ciência das Finanças Públicas que o desviriliza, pois exaure toda a juridicidade da regra jurídica tributária”,15 do que resultaram obras que não passavam de “[...] coletâneas de leis fiscais singelamente comentadas à base de acórdãos contraditórios e paupérrimos de argumentação cientificamente jurídica” 16, e com isso alertando o leitor para a compreensão de que se faz necessário desenvolver uma “[...] atitude mental jurídica tributária que lhe será útil para manejar – em qualquer tempo e lugar - o Direito Tributário”.17 Apesar das críticas que a obra de BECKER sofreu, a melhor doutrina ressalta a importância epistemológica de sua obra no estudo do Direito, assim como o seu valor por ter sido a obra precursora de sua época, servindo de ponto de partida para outros autores. O pensamento de BECKER originou a idéia no Direito Tributário de que o operador jurídico somente deve descrever o Direito Positivo, o qual é visto como um “dado” que o jurista deve captar em sua integridade, tal como uma “câmara fotográfica”, ou seja, o conhecimento jurídico partiria do objeto para o sujeito, conforme observa OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, acrescentando que, à Ciência do Direito Tributário, caberia, portanto, apenas uma função descritiva do Direito Positivo, enquanto esse tem uma função prescritiva, pois “[...] existe para regular as condutas humanas em sua intersubjetividade”.18 13 Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 195. Teoria Geral do Direito Tributário. 15 Ibidem, p. 4. 16 Ibidem, p. 5. 17 Ibidem, p. 14. 18 A contribuição ao PIS, p. 12. 14 19 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES acrescentou que mais do que simplesmente descrever, a ciência deve explicar os fenômenos, evitando uma indevida redução em seu campo de investigação, pelo que há que se ver “[...] a explicatividade como um atributo das proposições descritivas da ordem jurídica, sem sacrificar-se o rigor da exposição científica”. O vocábulo “explicar”, ensina o autor, tem acepção mais profunda do que “descrever”. Explicar significa “[...] despregar, desdobrar, desenvolver, justificar, interpretar, expor, comentar, explanar. E também esclarecer o que não estava claro, isto é, o oculto, aclará-lo, elucidá-lo”. Por sua vez, a noção de descrever “[...] é, digamos: trivial: expor, narrar, referir com certo desenvolvimento, delinear etc.”; pelo que não pode ser aceita.19 Em comentário sobre esse raciocínio, JOSÉ ROBERTO VIEIRA, com acerto, tece relevantes argumentos, no sentido de que a norma jurídica não é extraída pronta do direito positivo: não se entenda essa idéia de retirar a norma jurídica das dobras do direito positivo como implicando afirmar que ela já ali estava pronta e acabada, apenas escondida em suas pregas. Debruçando-o sobre o direito posto, investigando todos os ângulos de sua linguagem (Sintático, semântico e pragmático), conhecendo-o, descrevendo-o e explicando-o, em verdade, ao cientista do direito cabe, isso sim, construir a norma jurídica.20 OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, entretanto, entende que “[...] mesmo essa ‘função explicativa’ continua a conferir muita importância a somente um dos pólos da relação de conhecimento, o objeto [...]”.21 A brilhante observação desse autor amparase no ensinamento de AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO, defensor da utilização de uma epistemologia dialética na Ciência do Direito, pela qual o importante é a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento na construção científica. 22 Contribui, dessa forma, para uma visão superadora da dualidade empirismoracionalismo, representada pelas suas respectivas formas clássicas, o jusnaturalismo e o positivismo jurídico, às quais critica justamente pela atitude metafísica de privilegiar um dos pólos da relação cognitiva, e não ela própria. Vejamos alguns excertos do pensamento desse mestre: 19 O direito como fenômeno lingüístico, o problema de demarcação da ciência jurídica, sua base empírica e o método hipotético-dedutivo. Anuário do Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco, p. 13-15. 20 A Semestralidade do PIS: Favos de Abelha ou Favos de Vespa? Revista Dialética de Direito Tributário, n. 83, p. 90, grifos no original. 21 A Contribuição..., op. cit, p. 13. 22 A Ciência do Direito: conceito, objeto, método. 20 Para a dialética, o importante é a própria relação, tomada não exatamente em seu sentido abstrato e genérico, mas a relação concreta que efetivamente ocorre dentro do processo histórico do ato de conhecer. Ela busca, assim, tomar consciência das condições reais do ato cognitivo, dentro do processo de sua elaboração. Toda pesquisa criadora é um trabalho de construção de conhecimentos novos, mas de uma construção ativa, engajada, e não uma simples captação passiva da realidade, porque o conhecimento não pode ser puro reflexo do real como querem os positivistas.23 Para melhor explicar, o autor faz a distinção entre o objeto real e o objeto de conhecimento: “O objeto real é a coisa existente independentemente de nosso pensamento, quer considerada em si mesma (o númeno de Kant), quer através de suas manifestações concretas (o fenômeno). Já o objeto de conhecimento é o objeto tal como o conhecemos, isto é, o objeto construído, sobre o qual se estabelecem os processos cognitivos (filosóficos, científicos, artísticos etc.)”.24 Não se trata aqui de uma crítica ao Direito Positivo, mas sim de ter-se a consciência de que a interpretação jurídica não se resume em uma simples (e impossível) captação do objeto real, mas sim na construção do objeto de conhecimento. Ou melhor, na reconstrução, pois o ato de conhecer pressupõe construir a partir de conhecimentos anteriores.25 O operador jurídico, na elaboração do processo de conhecimento, deve ter consciência dos efeitos dos seus trabalhos no contexto social em que são produzidos. A neutralidade e a objetividade, apesar de serem sempre perseguidas, não lhe são inerentes, pois o operador jurídico não é mero “espectador do mundo”. Como resultado, não existe “a” ciência do direito, mas sim “várias” Ciências do Direito, “[...] cada uma delas analisando-o em uma determinada dimensão”.26 O operador jurídico não deve ter em mente que, por natureza, o Direito seja reduzido à lei, “[...] pois, tal visão decorre, em última instância, muito mais da imposição de uma determinada classe política do que um ‘achado’ científico por parte dos juristas”.27 Encontramos uma boa síntese de nossas intenções jurídicas nas afirmações de SACHA CALMON NAVARRO COELHO, em obra que retrata sua tese de doutoramento, pois, assim como ela, nosso trabalho também parte da estrutura da norma jurídica tributária como premissa: “O fato de centrar-se na teoria da norma, enquanto 23 Ibidem, p. 13-14. Ibidem, p. 14. 25 Idem. 26 FISCHER, Octávio Campos. A Contribuição..., op. cit., p. 13. 27 Ibidem, p. 14. 24 21 estrutura lógica, não implica adesão a certo ‘normativismo’ que reduz o direito a mero formalismo, amesquinhando-o”.28 É que o Direito é “[...] o reflexo, no plano da cultura, dos valores e interesses sociais dominantes, diversos no tempo e no espaço”.29 Reitere-se, no entanto, que, para legitimar seus resultados, o cientista do Direito deve, antes, optar por certos critérios, aceitos como condição de validade em um dado sistema jurídico, sem o que as conclusões quedariam frágeis, ante a aleatoriedade dos argumentos utilizados como premissas de seu trabalho. Esse rigor metodológico, entretanto, deve ser aplicado tendo em vista não ser o Direito encarado com um fim em si mesmo, mas como um instrumento a serviço da humanidade, com o que se objetiva atingir, através da linguagem jurídica, os mais elevados ideais de justiça, sempre em harmonia com a inegável necessidade de segurança jurídica. Como poderá ser observado no decorrer deste trabalho, o posicionamento científico adotado procurou centrar-se, ainda, na inafastabilidade da supremacia constitucional, vetor interpretativo cuja noção foi desenvolvida com propriedade pela professora de Direito Constitucional GISELA MARIA BESTER: É por isso que a dupla condição da Constituição como norma jurídica e como norma suprema a configura não somente como fonte de Direito, mas também como norma reguladora e delimitadora do próprio sistema de fontes do Direito. Aí está a sua supremacia, e daí ser também chamada de Lei Fundamental, Lei Magna, Carta Magna, Norma Ápice ou Norma Normarum (norma das normas). [...] Reforçamos: o dogma de que uma norma não possa ter validade se não estiver de acordo com a Constituição levou a que esta não somente seja considerada fonte de Direito, mas que também regule o próprio sistema de fontes e seja o parâmetro de aplicação e de interpretação do Direito.30 Além disso, intentou-se proceder a uma leitura de cada dispositivo constitucional de forma não isolada, mas, antes, envolvido no contexto da ordem jurídica brasileira. Com esses incontestáveis argumentos, temos a certeza de que estamos amparados em forte suporte doutrinário quanto ao nosso entendimento pela supremacia dos dispositivos constitucionais que tratam do ISS, diante da legislação infraconstitucional que trata desse imposto. 28 Teoria geral..., op. cit., p. 21. Idem. 30 Direito Constitucional. v.1: fundamentos teóricos, p. 59-60, grifos no original. 29 22 1.2 CIÊNCIA DO DIREITO E LINGUAGEM O jurista italiano NORBERTO BOBBIO, comentando a crise científica do Direito na pós-modernidade, refuta a idéia daqueles que questionam a cientificidade da Ciência do Direito, sob a alegação de que essa ciência não se teria conformado aos modelos de ciência que vigoraram nos últimos séculos. Ele defende que essas concepções de ciência é que na verdade são questionáveis, porque sempre parciais e insuficientes e, portanto, não abrangem a Ciência do Direito. O autor italiano, com propriedade, ensina que a Ciência do Direito: en cuanto que pone como objeto propio proposiciones normativas ya dadas (resultado ellas mismas de un estudio empírico precedente que el jurista debe respetar hasta el límite del absurdo manifiesto o de la injusticia escandalosa), consta exclusivamente de la parte crítica propia de todo sistema científico, es decir, de la construcción de un lenguaje riguroso a los fines de la plena comunicabilidad de las experiencias fijadas de antemano. La parte crítica común e indispensable de toda ciencia es el llamado análisis del lenguaje. Pues bien, la jurisprudencia es en su parte esencial un análisis del lenguaje, y, de modo más preciso, de ese específico lenguaje en el que a través de las proposiciones normativas se expresa el legislador.31 Ainda na defesa da cientificidade da Ciência do Direito, BOBBIO sustenta que as operações da Ciência do Direito são as mesmas inerentes a uma parte de qualquer ciência, e que, sem tais operações, nenhum estudo pode pretender valer como ciência. É que, como toda ciência possui o seu respectivo objeto de estudo, também o Direito, como ciência, possui o seu específico, que não pode ser outra coisa senão o próprio Direito Positivo, que não é o de ontem – que já não existe – muito menos é o de amanhã – que ainda nem foi criado – mas o de hoje, que vigora em um determinado território. E se temos que o Direito posto é uma linguagem, a Ciência do Direito nada mais é do que uma análise dessa linguagem, análise essa que recebe o nome de interpretação do Direito. Sustenta, portanto, que essas operações: no son más que esa actividad compleja en la que tradicionalmente se hace consistir la labor del jurista: la interpretación de la ley. ¿Qué es, en efecto, la interpretación de la ley, sino análisis del lenguaje del legislador, de ese lenguaje en el que se expresan las reglas jurídicas? Pues entonces, estando así las cosas, si el análisis del lenguaje jurídico y la interpretación jurídica son todo uno y si el análisis del lenguaje es la operación propiamente científica del jurista, se deberá concluir que el jurista, precisamente en cuanto jurista en el sentido tradicional de la palabra, en cuanto intérprete de las leyes, construye la ciencia del Derecho. No hay ciencia del Derecho, en suma, fuera de la labor del jurista intérprete, el cual precisamente como tal intérprete 31 Contribución a la teoría del derecho, p. 181-184. 23 realiza ese análisis lingüístico del que ninguna ciencia puede prescindir y constituye ese lenguaje riguroso en el que consiste – según la concepción moderna de la ciencia que ha pasado el problema de la ciencia de la verdad al rigor – el carácter esencial de todo estudio que pretenda tener validez de ciencia.32 Estamos, portanto, de acordo com BOBBIO, de que a Ciência do Direito é uma análise da linguagem em que se expressa o legislador, e de que toda análise feita pelo cientista do Direito refere-se ao labor hermenêutico, ou seja, a análise do Direito Positivo nada mais é do que a interpretação das leis. É natural também que, como será analisado adiante, a Ciência do Direito, por apresentar-se sob a forma de um discurso, também seja linguagem, mas, por ser uma linguagem sobre outra linguagem, está vertida de uma forma diferente. Mas se a Ciência do Direito é uma análise de uma linguagem, produzida pelo homem, é natural que cada um dos elementos dessa linguagem tenha conteúdo de significação (semântico) diversificado, sendo imprescindível, portanto, a disciplina do pensamento a ser transmitida na mensagem, tarefa essa que cabe à Lógica Jurídica. O Direito é objeto cultural, fruto do meio em que nasce, espontaneamente. Assim, o Direito deve servir ao homem, e não o homem ao Direito. Por essa razão, alguns defendem não se adequar à interpretação jurídica às regras da lógica, e que, por força dos valores objetivados nas normas, somente seria possível uma interpretação axiológica. Ousa-se, contudo, discordar, exatamente pelo fato de que, por ser o Direito um objeto cultural, é carregado axiologicamente pelas aspirações sociais que, quando positivadas, trazem consigo as imperfeições lingüísticas e as atecnias jurídicas, ínsitas ao trabalho do legislador, oriundo dos mais diversos segmentos da sociedade, fato natural e necessário em um Estado que se queira representativo e democrático. Na década de vinte do século XIX, um grupo de filósofos, conhecido sob a denominação de Círculo de Viena, fundou uma teoria lingüístico-epistemológica, conhecida em geral como Positivismo Lógico, corrente que defendia o rigor discursivo como paradigma científico. Em suma, à produção de qualquer discurso que se pretendesse científico deveria anteceder uma análise rigorosa da linguagem utilizada. Essa corrente pregava, portanto, que, onde não há rigor lingüístico não há ciência, e que “[...] fazer ciência é traduzir numa linguagem rigorosa os dados do mundo; é elaborar uma linguagem mais rigorosa que a linguagem natural”.33 32 33 Ibidem, p. 184. WARAT, Luís Alberto. O direito e sua linguagem, p. 37. 24 A filosofia de hoje tem sido unânime em aceitar que a análise de qualquer linguagem, para que resulte satisfatória e suficiente, deve obrigatoriamente percorrer os denominados três níveis ou planos da linguagem: o sintático, o semântico e o pragmático. O discurso jurídico, por também ser científico, obedece também a essa necessidade de incursionar nesses três planos da linguagem. Ou seja, o direito também é uma linguagem. Mas, antes de ingressar em maiores comentários, mister é esclarecermos, desde já, as duas camadas lingüísticas nas quais pode verificar-se a existência do Direito, para então prosseguirmos nesse estudo. Estamos referindo-nos à diferença entre a realidade do Direito Positivo e da Ciência do Direito. Para PAULO DE BARROS CARVALHO, jurista que no Brasil foi um dos precursores do estudo lingüístico dentro do âmbito jurídico, “Muita diferença existe entre a realidade do Direito Positivo e a da Ciência do Direito. São dois mundos que não se confundem, apresentando peculiaridades tais que nos levam a uma consideração própria e exclusiva. São dois corpos de linguagem, dois discursos lingüísticos, cada qual portador de um tipo de organização lógica e de funções semânticas e pragmáticas diversas”.34 Podemos assim definir Direito Positivo como sendo o conjunto de normas jurídicas válidas em um determinado país, ou ainda, um determinado ordenamento jurídico delimitado no tempo e em um espaço geográfico determinado. Cabe à Ciência do Direito, por sua vez, “[...] descrever esse enredo normativo, ordenando-o, declarando sua hierarquia, exibindo as formas lógicas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação”.35 Para HANS KELSEN, os textos jurídico-positivos, ao contrário das proposições jurídicas feitas pela Ciência do Direito, “[...] são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito”.36 Percebe-se que KELSEN fazia a distinção entre norma jurídica e proposição jurídica. Em síntese, norma jurídica seria aquela posta pela autoridade pública, enquanto que proposição jurídica seria o resultado da interpretação do ordenamento jurídico realizada pelo cientista do Direito. Como efeito desse raciocínio, somente a proposição do cientista do Direito poderia ser definida como juízo hipotético, tendo a norma jurídica a forma de um imperativo (comando, permissão, autorização). Esse 34 Curso de direito tributário, p.1. Ibidem, p. 2. 36 Teoria Pura do Direito, p. 79-84. 35 25 posicionamento foi impugnado, com propriedade, pelos cultores da lógica jurídica, a exemplo de LOURIVAL VILANOVA, para quem “[...] a terminologia kelseniana não é exata: tanto a norma jurídica quanto o enunciado com que a ciência dogmática descreve a norma, logicamente, são proposições”.37 Amparado nesse raciocínio, JOSÉ ROBERTO VIEIRA ensina que as normas jurídicas, no sentido de prescrições legislativas, também são veiculadas através de juízos hipotéticos. Esses juízos, assim como qualquer outro, manifestam-se como proposições, pelo que correto, defende esse autor, teria sido KELSEN ter falado em “proposições prescritivas” e “proposições descritivas”.38 O Direito Positivo tem por objetivo regular o comportamento humano, no campo de suas relações de intersubjetividade, o que significa dizer que as regras jurídicas objetivam organizar a conduta das pessoas, umas com relação às outras, mesmo porque os problemas da pessoa para com ela mesma (intra-subjetivos), desde que não se exteriorizem, não interessam para o Direito. Em razão desse seu modo de expressão, afirma-se que o Direito Positivo é um conjunto de proposições que está vertido em uma linguagem prescritiva, ou seja, uma linguagem que prescreve comportamentos. Por sua vez, o objetivo da Ciência do Direito é o estudo desse conjunto de proposições, ou seja, o cientista do Direito vai debruçar-se sobre esse conjunto de regras, descrevendo-as segundo determinada metodologia científica. Depreende-se então que a linguagem utilizada pela Ciência do Direito é de caráter descritivo – descreve normas jurídicas – e que é uma linguagem sobre outra linguagem, ou melhor, a linguagem da Ciência do Direito descreve a linguagem prescritiva do Direito Positivo. O Direito Positivo é, assim, uma linguagem-objeto, e a Ciência do Direito é uma linguagem de sobrenível, ou metalinguagem. Nesse sentido, RUDOLF CARNAP sustenta como “linguagem-objeto” a linguagem em que se fala e “metalinguagem” como a linguagem em que se fala da linguagem-objeto.39 WARAT define a necessidade de estabelecer esses dois níveis de linguagem, necessidade essa que surge quando tomamos como objeto de nossa reflexão a própria linguagem, e defende que “O sentido desta distinção é dado, segundo os lógicos positivistas, pela incapacidade das linguagens produzirem processos de autocontrole sobre a lei de sua organização lógica. Necessita-se, então, da construção de um outro 37 As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 143. A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p. 57. 39 Apud WARAT, Luís Alberto. O direito..., op. cit., p. 48. 38 26 nível de linguagem, a partir do qual se possa fazer uma investigação problematizadora dos componentes e estruturas da linguagem que se pretenda analisar”.40 A cada uma das linguagens corresponde, necessariamente, também uma diferente lógica. Ou seja, como as linguagens do Direito Positivo e da Ciência do Direito são vertidas de formas diferentes, a lógica também será, obrigatoriamente, diversa em relação a cada uma delas. As proposições normativas que compõem o Direito Positivo dirigem-se para a região material da conduta, e pode-se dizer que tais proposições usam os valores de “validade” ou “invalidade”, ínsitos à lógica do deverser (lógica deôntica), ao passo que as proposições científicas simplesmente descrevem seu objeto, sem nele interferir, pelo que seus valores somente podem ser a “verdade” ou “falsidade” (lógica clássica, lógica das ciências). Vimos acima que toda linguagem, de certa forma, é metalinguagem de outra linguagem-objeto. Fixamos a idéia, portanto, de que o Direito Positivo está vertido em uma linguagem prescritiva, e que se trata de uma metalinguagem da realidade. Portanto, nada mais coerente do que estabelecermos que a Ciência do Direito é a metalinguagem da linguagem do Direito Positivo. E linguagem que é, pode ser analisada em seus três níveis: o semântico, o sintático, e o pragmático. No nível semântico da linguagem jurídica, os signos existentes nas normas revelam o conteúdo de significação de um objeto, podendo também resultar na verificação de que um mesmo signo jurídico pode veicular significados de mais de um objeto. Nesse plano, analisaremos o sentido dos signos utilizados pelo legislador para regular a conduta dos homens em suas relações de intersubjetividade, e conseqüentemente sofreremos com as vaguezas e ambigüidades, inerentes à textura aberta do Direito. Em linguagem jurídica, é o modo de referência à realidade, ou seja, visa alterar normativamente a conduta. Em especial, pode-se dizer que, em grande parte, o trabalho do cientista do Direito é o de eliminar os conteúdos de vagueza e de ambigüidade do produto legislado. A vagueza – ou vaguidade – ocorre quando estamos diante de uma palavra imprecisa, em virtude da indeterminada extensão do seu significado. Exemplo clássico utilizado na doutrina é a vagueza do vocábulo “calvície”. Apesar de sabermos com certeza que uma pessoa sem nenhum fio de cabelo é calva, já não podemos saber com 40 Idem. 27 precisão a partir de quantos fios de cabelos existentes na cabeça de alguém pode-se afirmar que essa pessoa deixa de ter tal característica. 41 Os termos vagos comportam três zonas de conhecimento: (a) zona de luminosidade positiva: naquela circunstância há certeza da aplicação do termo. (b) zona de luminosidade negativa: situação na qual com certeza não se aplica o termo. (c) zona de nebulosidade ou zona cinzenta: é a zona intermediária, na qual se pode pender para ambos os lados, e onde se originam os problemas de interpretação.42 Ambigüidade, por sua vez, refere-se ao problema das multissignificações (ou plurissignificações), e indica que um determinado termo pode ser aplicado a mais de um objeto, a mais de uma circunstância ou situação. Podemos exemplificar como um termo ambíguo o vocábulo “manga”, o qual tanto se pode referir a uma espécie de fruta quanto pode ainda se referir à extremidade de certas peças do vestuário. 43 HERBERT HART, ao analisar a questão das polissemias inerentes ao jurídico, fala com propriedade de uma textura aberta do direito, a qual “[...] significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso”.44 Por essa razão, é no nível sintático, o qual se refere à relação que os signos mantém entre si, que poderemos reduzir os seus respectivos conteúdos semânticos. Estaremos no plano sintático da linguagem da Ciência do Direito quando analisamos as articulações das normas jurídicas entre si. São sintáticas, portanto, as relações verticais e horizontais das normas entre elas mesmas. Dizendo de outra forma, as relações de hierarquia entre as normas, como por exemplo, a relação entre uma norma constitucional e uma lei ordinária (relação vertical), bem assim a relação entre uma norma que estabelece um dever e outra que estabelece uma sanção, ou ainda a relação entre a hipótese e o conseqüente de uma mesma norma (relação horizontal). Para PAULO DE BARROS CARVALHO, “[...] pertencem ao plano sintático todos os critérios que se detêm no arranjo dos signos jurídicos. A boa disposição das 41 VIEIRA, José Roberto. Medidas provisórias tributárias e segurança jurídica: a insólita opção estatal pelo “viver perigosamente”. In: CARVALHO, Paulo de Barros (pres.); DE SANTI, Eurico Marcos Diniz (coord.). Segurança Jurídica na tributação e Estado de Direito, p. 337. 42 Ibidem, p. 339-340. 43 Ibidem, p. 336. 44 O conceito de Direito, p. 148. 28 palavras, na frase normativa, é condição para o sentido da mensagem”. Depreende disso que os métodos literal e lógico de interpretação situam-se no plano da sintaxe. Acresce, com proveito, que “Não há qualquer exagero no afirmar-se que os problemas relativos à validade das normas jurídicas, à constitucionalidade de regras do sistema, são questões que têm um lado sintático e, em parte, podem ser estudadas no plano da gramática jurídica. Dizem respeito à correta posição que as unidades normativas devem manter no arcabouço do direito”.45 Entretanto, mesmo com o auxílio das relações sintáticas entre os signos, há a possibilidade de ainda restar mais de um sentido. Nesse momento surge a necessidade de analisarmos o terceiro nível da linguagem: o pragmático, caracterizado por representar as relações entre o signo e o sujeito que o utiliza. O nível pragmático cuida das formas utilizadas pela linguagem em relação ao discurso e na comunidade social para motivar comportamentos, e “[...] por seu intermédio é possível distinguir o conteúdo semântico de um signo, pois a habitualidade de sua utilização, em um mesmo sentido, no contexto de uma linguagem, credencia o receptor da mensagem a decodificá-la com proximidade da precisão”.46 Em relação ao sistema do Direito, é a forma como o jurista – aquele que se ocupa com a Ciência do Direito – vê esse cosmos jurídico, como o entende, e em conseqüência, a forma como ele discursa exteriorizando a sua respectiva linguagem. Apesar de ser a sua visão sobre o sistema, não lhe é permitido, ante a perspectiva de um necessário rigor científico, inserir valorações (suas) que não encontrem correspondência com os valores positivados no sistema. É, sem sombra de dúvida, o que nos traz maiores dificuldades no que tange à definição de seus exatos limites. O que queremos dizer é que, por tratar das relações dos signos com seus usuários, aqui, grande é o risco de avançarmos desmedidamente e deixarmos para trás os limites da linguagem-objeto, ou seja, da linguagem normativa, estritamente a linguagem prescritiva do Direito Positivo. Nessa altura, é importante ressaltar a total diferença entre perceber que o Direito, como fenômeno empírico, tem uma linguagem, e que sua interpretação pelo cientista ocorre através da linguagem, ou seja, o Direito como linguagem. A opção, com efeito, é epistemológica, e não ontológica. Não se quer dizer que o Direito se reduz 45 46 Curso..., op. cit., p. 100. BRITO, Edvaldo. Interpretação econômica da norma tributária e o planejamento tributário. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O planejamento tributário e a lei complementar 104, p. 55. 29 integralmente à linguagem, ainda que se imagine ela em um sentido amplo de comunicação. Nesse caminho é a advertência feita com propriedade por TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, o qual afirma que, se o Direito, como sistema de proposições normativas, pode ter o aspecto lingüístico como fundamental, “[...] não se pode esquecer que ele corresponde também a uma série de fatos, empíricos, que não são linguagem, como relações de força, conflitos de interesse, instituições administrativas etc., os quais, portanto, se não deixam de ter uma dimensão lingüística, nem por isso são basicamente fenômenos lingüísticos”.47 Acolhe-se a visão desse autor, posto que o que se deseja não é analisar a linguagem do Direito, mas sim analisar o próprio Direito – especificamente a norma jurídica do ISS – ao nível da linguagem, pois dela necessita, para sua própria existência. É que, ao investigar a norma jurídica, não se dispensam “[...] as características operacionais da teorização jurídica, como a referência à práxis decisória, a possibilidade de solução de conflitos, a regulamentação de comportamento, etc.”, devendo a expressão “ao nível lingüístico” ser entendida, aqui, como “ao nível do discurso”. O discurso, como um conjunto de fatos lingüísticos, “[...] conduz a pesquisa, a nosso ver, ao plano privilegiado da pragmática”, sem menosprezar os planos sintático e semântico.48 Esclarecemos que, conferir privilégio ao plano pragmático não significa o abandono da dogmática jurídica, o que ocorreria apenas na hipótese de a relação de conhecimento ter, como perspectiva, tão-somente o sujeito cognoscente. Antes, resulta de nosso posicionamento a favor da utilização da chamada epistemologia dialética na Ciência do Direito, defendida por AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO, pela qual o importante – ao invés de privilegiar-se um dos pólos da relação cognitiva – é a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento na construção científica.49 47 Teoria da norma jurídica, p. 6-7. Ibidem, p. 7. 49 Vide supra, item 1.1. A Ciência ... op. cit. 48 30 1.3 O DIREITO COMO UM SISTEMA Já ao tempo de sua clássica obra, e à frente de seu tempo, PONTES DE MIRANDA afirmava que a ciência jurídica de então evoluiu de forma considerável, devido sua investigação ter-se elevado ao nível da investigação de outras ciências, com maior precisão da linguagem e raciocínio: “A subordinação dela à metodologia que resultou da lógica contemporânea, inclusive no que concerne à estrutura dos sistemas, é o último degrau a que se atingiu”.50 Ao defender-se a supremacia da interpretação sistemática, necessariamente vem à mente a idéia de sistema. E o que é, exatamente, um sistema? Em estudo sobre o tema, JOSÉ ROBERTO VIEIRA encontra na doutrina nacional e estrangeira três noções de sistema: uma primeira, pela qual sistema seria um conjunto de elementos (repertório) que se relacionam por certas regras (estrutura do sistema); uma segunda, à qual obtevese somando à noção primeira a idéia de unidade; e por fim a terceira, que além das características das anteriores incorpora a de coerência, resultando, pois, na noção de sistema como “[...] um conjunto de elementos (repertório) que se relacionam (estrutura), compondo um todo coerente e unitário (ordenação e unidade)”.51 O mesmo autor, comentando a existência de sistema no Direito Positivo e sistema na Ciência do Direito, esclarece que somente em relação a esta última o sistema exige a característica de coerência, em razão da impossibilidade da existência em seu bojo de contradições. Por outro lado, a existência de antinomias entre as regras do Direito Positivo, ainda que conflite com a idéia de coerência, não lhe infirma a condição de sistema. É que a exigência de coerência atende à Lógica Apofântica, aplicável à Ciência do Direito, mas não ao Direito Positivo, sujeito à Lógica Deôntica. 52 Mas para os fins desse estudo o sistema que nos interessa é o da Ciência do Direito. E os elementos desse sistema responsáveis pela coerência são, sem dúvida, os princípios jurídicos e dentre esses, mais precisamente os princípios constitucionais, vetores interpretativos e diretrizes de aplicação de todas as normas jurídicas. Os princípios constitucionais têm como uma de suas principais funções colmatar as aparentes falhas na aplicação do Direito, interligando as normas umas às outras para que, no fim de cada interpretação, resulte sempre garantida a unidade da Constituição. 50 Tratado de Direito Privado, v. 1, p. 20-22. A Noção de Sistema no Direito. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, p. 55. 52 Ibidem, p. 60-61. 51 31 Pertinentes são as considerações de CANOTILHO nesse sentido, ao analisar o princípio da unidade da constituição, que para o autor português “[...] é uma exigência da ‘coerência narrativa’ do sistema jurídico”, e que as normas constitucionais devem ser entendidas “[...] como se fossem obras de um só autor”. A necessidade dessa unidade decorre, para esse autor, da existência de conflitos (tensão) entre os princípios, originários do “[...] facto de a constituição constituir um sistema aberto de princípios”; ou seja, “os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma ‘lógica do tudo ou nada’, antes podem ser objeto de ponderação e concordância prática, consoante o seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso”.53 Entende-se que a tese da Constituição como um sistema aberto de regras e princípios, defendida por CANOTILHO, e por nós aqui acatada, não conflita com a opção metodológica adotada neste trabalho, de que a Ciência do Direito exige rigor discursivo, pois entendemos que os níveis semântico e pragmático da linguagem jurídica, especialmente a dos princípios constitucionais, necessariamente devem adequar-se à realidade espaço-temporal em que é aplicada, sem perder de vista as aspirações sociais legítimas que informaram o nascimento desse sistema. É nessa adequação que entendemos existir a abertura do sistema do Direito, necessária à noção do já citado prudente positivismo. Em uma outra noção de sistema, ROQUE ANTONIO CARRAZZA acentua o papel dos princípios: “Sistema [...] é a reunião ordenada das várias partes que formam um todo, de tal sorte que elas se sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas primeiras. As que dão razão às outras chamam-se princípios, e o sistema é tanto mais perfeito, quanto em menor número existam”54. Apesar dos bons argumentos utilizados, esse autor não deixa claro, quando usa a expressão “reunião ordenada”, se a referência é em relação à característica da “estrutura” – existente em qualquer sistema – ou à característica da “coerência” que, como já demonstrado acima por JOSÉ ROBERTO VIEIRA, não é um atributo inerente, por exemplo, ao sistema do Direito Positivo.55 Na Constituição há, portanto, normas que revelam verdadeiros princípios e normas que revelam apenas regras. As primeiras caracterizam-se pelo elevado grau de abstração, não possuindo aplicação direta aos casos concretos, mas servem de fundamento de interpretação e aplicação para as segundas, além de estarem mais 53 Direito Constitucional..., op. cit., p. 1.057. Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 31. 55 A Noção de Sistema..., op. cit., p. 60-61. 54 32 vinculados à idéia de direito, por serem “[...] ‘standards’ juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de ‘justiça’ [...] ou na ‘idéia de direito’”. Já as segundas, as normas que revelam regras, essas possuem reduzido grau de abstração, sendo, por essa razão, susceptíveis de aplicação direta ao caso concreto.56 É de rigor, portanto, que a interpretação e a aplicação de qualquer norma tenha por pressuposto a observância do sentido indicado pelos princípios constitucionais aplicáveis à espécie. EDVALDO BRITO, comentando sobre o papel das normas-regra e das normas-princípio, ressalta importante aspecto de nosso ordenamento jurídico: Este é um sistema interno da Constituição que condiciona a sua interpretação, no que diz respeito à subordinação desses elementos, operando-se a partir da esfera de maior generalidade, às de menor; bem assim, por ser um sistema aberto, há de estar sensível a uma interpretação de legitimação das aspirações sociais que o informaram desde a sua origem, quando da eleição das normas pelo legislador constituinte. No caso brasileiro de 1988, essa sensibilidade avulta pelo fato de ter havido constante participação popular no permanente acompanhamento da elaboração do texto, como nunca houve dantes.57 Paralelamente ao tradicional dualismo entre princípios e regras, HUMBERTO ÁVILA acrescentou relevante contribuição científica ao defender a existência, dentre as normas jurídicas, de princípios, regras e postulados. Os princípios, para o autor, são normas de 1º grau, com a função de estabelecer finalidades (normas finalísticas), ou seja, estabelecem um estado ideal de coisas a ser perseguido. Subdividem-se em princípios em sentido estrito e sobreprincípios. Estes, ao contrário daqueles, buscariam a realização de um ideal mais amplo, como, por exemplo, o princípio do Estado de Direito. Por sua vez, os postulados, porque se qualificam como normas sobre a aplicação de outras normas, seriam normas de 2º grau, e constituem-se nas condições essenciais a que se submete a interpretação do direito posto. Dentre esses, existem os postulados meramente hermenêuticos, destinados à compreensão em geral do Direito e os postulados aplicativos, cuja função é estruturar a sua aplicação concreta. O autor cita, dentre os mais importantes postulados hermenêuticos, o da unidade do ordenamento jurídico. Dentre os postulados normativos aplicativos, os principais seriam os da proporcionalidade, da razoabilidade e da proibição de excesso.58 Ressalte-se que nenhuma análise dos princípios constitucionais será tida como válida e legítima se não considerar o resultado da evolução política, social e cultural de 56 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional..., op. cit., p. 1.034. Interpretação Econômica..., op. cit., p. 62-63. 58 Sistema Constitucional Tributário, p. 38-44. 57 33 seu meio, mas também não o será se inobservar os valores políticos e sociais que informaram a sua respectiva positivação. É que as normas que expressam princípios, diferentemente das que revelam regras, podem entrar em aparente contradição entre si, por não haver, sob uma certa perspectiva, hierarquia entre elas, mas sim uma necessidade de aplicação diferenciada dependendo da situação fáctico-jurídica a ponderar em cada caso. Como observa KARL LARENZ, “[...] no caso de uma contradição entre princípios, tem, portanto, cada princípio de ceder perante o outro, de modo a que ambos sejam actuados ‘em termos óptimos’ (‘mandado de optimização’). Em que medida seja este o caso depende do escalão do bem jurídico em causa em cada caso e requer, ademais, uma ponderação de bens”.59 É o que CLAUS-WILHELM CANARIS denominou de “jogo concertado de princípios”, única forma de conhecermos os significados e o alcance de cada um dos princípios constitucionais.60 Para PONTES DE MIRANDA, os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, que utilizam proposições que se referem a fatos da vida, do mundo. Somente os fatos do mundo escolhidos pelas regras jurídicas é que integram o mundo jurídico, e elas – as regras jurídicas – imprimem valores a tais fatos por considerá-los relevantes e assim objetivam a harmonização do homem no meio social. A determinação do conteúdo da regra jurídica é função do intérprete – juiz ou jurista – o qual deve, para tal mister, “[...] conhecer o passado do sistema jurídico e, pois, de cada regra jurídica, e o sistema jurídico do seu tempo, no momento em que se pensa, ou pensa e fala ou escreve”. Interpretar é, em grande parte, “[...] estender a regra jurídica a fatos não previstos por ela”, o que está além da analogia.61 Ao interpretar, investiga-se o sistema jurídico, com o que não se pode estar adstrito à letra da lei, buscando “[...] o sentido [...] mais adequado às relações humanas, sem se dar ensejo ao arbítrio do juiz”. Se o legislador não se expressou bem, deve prevalecer o pensamento que se tentou exprimir, mas esse pensamento deve ser buscado no sistema jurídico, e não no espírito ou na vontade do legislador, “[...] porque seria atravessar a linha distintiva do político e do jurídico”.62 Como síntese dos efeitos da sistematicidade do Direito, PIETRO MEROLA CHIERCHIA ensina, com extremo proveito, que “[...] mais do que um critério ou de 59 Metodologia..., op. cit., p. 675-677. Apud LARENS, Karl. Ibidem, p. 677. 61 Tratado..., op. cit., p. 13-14. 60 34 um instrumento interpretativo, fala-se de uma ‘interpretação sistemática’, justamente porque, referida à Constituição, a sistematicidade deve ser assumida não como um simples método de trabalho do intérprete, mas sim como uma característica essencial, no sentido de que a interpretação, antes do que de normas isoladas, é sempre e necessariamente interpretação do sistema constitucional inteiro”.63 A premissa da interpretação sistemática tem importância fundamental no estudo do objeto deste trabalho. É que o regime jurídico tributário do ISS envolve normas editadas antes e depois da atual Constituição. As anteriores, como é cediço, permanecem válidas em razão do fenômeno da recepção das normas anteriores, materialmente compatíveis com o atual ordenamento jurídico. O aspecto formal, desde que observado no sistema anterior, é desconsiderado para fins de recepção, e a norma anterior recepcionada passa a ter a eficácia da espécie normativa prevista pela atual Constituição para o trato da sua matéria. Entretanto, a recepção, em si mesma, não é argumento suficiente para concluir pela manutenção da interpretação existente em torno do dispositivo recepcionado, quando ainda vigente sob a égide da Constituição anterior. A inserção de um texto normativo pretérito na atual Constituição exige uma nova contextualização, para que seja cumprido o cânone hermenêutico pelo qual a aplicação de uma norma pressupõe a aplicação conjunta de todo o ordenamento jurídico. Com efeito, é perfeitamente possível que um mesmo dispositivo tenha sua interpretação ampliada ou restringida, após sua recepção pela nova ordem jurídica, do que resulta a advertência da necessária cautela com que se adotam conclusões doutrinárias e jurisprudenciais firmadas quando ainda vigente a Constituição pretérita. Nesse sentido são as conclusões acertadas de MARÇAL JUSTEN FILHO, em comentário sobre a interpretação do Decreto-lei 406, de 31/12/68, no atual sistema jurídico: a substituição de uma constituição produz decorrências significativas para o intérprete. A existência, na constituição posterior, de dispositivo com redação idêntica ou similar à de uma disposição da carta anterior deve ser enfocada com cautela. Não se autoriza a automática seqüência de aplicação de doutrina e jurisprudência desenvolvidas sob a constituição revogada, desde que tais entendimentos retratavam a interpretação da constituição anterior considerada 62 63 Ibidem, p. 14. Apud JUSTEN FILHO, Marçal. O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-Lei nº 406. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 3, p. 65. 35 em seu todo. A nova constituição pode, no seu conjunto, produzir conseqüências não cogitadas sob a égide da anterior.64 Estabelecidas essas premissas, passemos agora à análise da necessidade atual de uma nova interpretação das normas jurídicas tributárias no ordenamento jurídico brasileiro, não tanto por força da positivação de direitos na atual Constituição, mas sobretudo pela nova roupagem que princípios já antes existentes vêm assumindo com o crescimento da noção de Estado Social e Democrático de Direito, em substituição à antiga idéia de Estado de Direito. 1.4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A transição do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito verifica-se com especial destaque no enriquecimento da carga valorativa existente na expressão “liberdades”, cuja eficácia jurídica vem exigindo sua efetivação não só no aspecto negativo, correspondente à clássica noção do princípio da legalidade no âmbito privado, em que ao indivíduo é facultado fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, mas também e especialmente no aspecto positivo, pelo qual não basta que a atividade dos indivíduos não esteja vedada pela lei, sendo necessário que esteja de acordo com a proteção aos direitos sociais positivados constitucionalmente. Essa evolução jurídica tem como um de seus marcos iniciais a idéia de república. Da essência legítima de república, bem como de sua etimologia (res publica = coisa do povo) nasceram várias idéias, muitas das quais passaram a representar verdadeiros princípios presentes nas modernas constituições. Mas foi seguramente na noção de representatividade no poder que o princípio republicano mais se disseminou por quase todo o mundo. E representatividade nada mais é do que governar através da lei. Disso resulta, como inferência lógica, que o princípio da legalidade está umbilicalmente ligado às diretrizes republicanas, desde que o governo, mesmo que através de leis, seja real e efetivamente expressão da vontade popular, forte na noção de auto-governo, idéia que remonta às teorias sobre o contrato social de TOMAS HOBBES, JONH LOCKE e em especial de JENA JAQUES ROUSSEAU. 64 O ISS..., op. cit., p. 65. 36 À noção de república confluem os ideais da democracia, tendo vários autores até mesmo concluído pela confusão conceitual entre ambos os termos, crescendo assim em grande escala a utilização da expressão república democrática. É também na reunião de ambas as idéias que CANOTILHO afirma que “[...] a ‘forma republicana de governo’ reivindica uma legitimação do poder político baseado no povo (‘governo do povo’). Num governo republicano a legitimidade das leis funda-se no princípio democrático (sobretudo no princípio democrático representativo) com a conseqüente articulação da autodeterminação do povo com o ‘governo de leis’ e não ‘governo de homens’”.65 Semelhante é a posição de ROQUE ANTONIO CARRAZZA sobre o conceito de República, com a diferença de que sua definição acentua em primeiro lugar a idéia de igualdade entre as pessoas: “República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.66 As estreitas relações entre os ideais republicanos e democráticos foram objeto de excelente estudo de JOSÉ ROBERTO VIEIRA, para quem “[...] caracterizam a República: a representatividade, decorrente da eletividade, a transitoriedade e a responsabilidade”, conferindo relevo ao primeiro desses traços, pois a República é, antes e acima de tudo, um regime de governo em que as autoridades são meros administradores da coisa pública, a título de mandatários do povo.67 Acrescenta o autor que, da idéia de representatividade, inerente à república, decorre também a noção de democracia, cujo mínimo semântico indica obrigatoriamente a participação do povo no exercício do poder, o que se realiza, indiscutivelmente, na produção legislativa, daí sua “[...] indefectível conexão com o Princípio da Legalidade”.68 A definição precisa de GISELA MARIA BESTER complementa o amparo doutrinário ao nosso trabalho, dando ênfase à essência eletiva e representativa dos mandatários e à divisão do poder. Ao final, o entendimento dessa autora também revela a inevitável relação da República com a democracia: “A República pressupõe eleição periódica do Chefe de Estado, a divisão do poder em três funções distintas e implica a 65 Direito Constitucional..., op. cit., p. 223. Curso..., op. cit., p. 48. 67 Fundamentos republicano-democráticos da legalidade tributária: óbvios ululantes e não ululantes, In: FOLMANN, Melissa (coord.). Tributação e Direitos Fundamentais: propostas de efetividade, p. 203. 68 Ibidem, p. 208. 66 37 necessidade de legitimidade popular dos seus mandatários, isto é, do Presidente da República, dos Governadores dos Estados e dos Prefeitos Municipais, bem como do poder Legislativo, simplesmente porque isto é da essência do regime democrático representativo”.69 Também em nosso ordenamento jurídico vigora o princípio republicano, tendo a Constituição de 1988, previsto, já em seu artigo 1°, que “A República Federativa do Brasil” – acrescentando adiante, no mesmo artigo – “constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Aqui surge, qualificado pela democracia, outra expressão jurídica: Estado de Direito. Mas a história demonstra que nem sempre o Direito (legítimo) foi o adjetivo na grande maioria dos Estados. No Estado Moderno – que nasce em razão do fim dos feudos, na Europa, diversamente do que ocorreu na Antiguidade clássica e na sociedade feudal, verificou-se uma “[...] crescente concentração de poder nas mãos do príncipe, [...] operada com o auxílio da noção de soberania recém-elaborada por juristas e teóricos” – diríamos forjada – o que resultou no surgimento do Estado absolutista.70 Esta situação gerava insegurança nas relações jurídicas, situação agravada com a existência de várias ordens paralelas (clero, nobreza etc.). Importante registrar que “[...] nem todos os Estados de tipo social foram ou são democráticos”, como adverte, em boa hora, GISELA MARIA BESTER, para quem “[...] o Estado Democrático de Direito é o regime jurídico que autolimita o poder de governo ao cumprimento das leis que a todos subordinam, inclusive a si próprio”. Mais do que isso, adverte a autora, não basta a submissão ao Direito, mas que esse direito seja criado democraticamente, o que, em última instância, resulta na origem democrática tanto da composição do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo, que são os dois poderes com aptidão para criar normas, o primeiro como função típica, o segundo como exceção. “Logo, este princípio permite ao povo (governados) uma efetiva participação no processo de formação da vontade pública (governantes e legisladores), sendo a marca principal deste tipo de Estado a origem democrática do poder e das normas”.71 Todos os problemas gerados pelo Estado Absoluto, aliados ao surgimento do racionalismo iluminista, favoreceram, ideológica e politicamente, a eclosão das revoluções burguesas, surgindo, com esse movimento, a chamada teoria constitucional, 69 Direito Constitucional..., op. cit., p. 277. CLÈVE, Clemerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo, p. 21-22. 71 Direito Constitucional..., op. cit., p. 283-284. 70 38 a qual daria ao Estado uma constituição jurídica, com o objetivo de fixar os limites do poder político e vincular esse Estado à sociedade civil, através da positivação dos direitos individuais aspirados pela burguesia. Por propiciar tais ensejos, ganhou relevância a teoria da separação dos “poderes” – primeiro através de Locke e depois com seu precursor, Montesquieu – sendo adotada nas constituições seguintes, tanto nos Estados Unidos como na França, iniciando-se então o processo de sua positivação. As revoluções contrárias ao Estado absoluto não pretendiam destruir o aparelho estatal, visto como um mal necessário, mas sim opor limites ao poder político, objetivando mantê-lo concentrado. Isso seria feito primeiro com o controle do poder pelo próprio poder, e depois com a transferência da soberania, do Rei para o povo. Surge assim, como herança do liberalismo, a idéia de Estado Constitucional ou de Direito. É comum referir-se ao liberalismo como sendo o modelo do qual resultaram dois legados: um, no âmbito econômico, representado pela idéia de bem-comum, advindo das leis naturais do livre mercado; e outro, no espectro político, representado de forma especial pela positivação das liberdades nos ordenamentos jurídicos. O liberalismo econômico puro, como é cediço, quedou impotente ante a inevitável conclusão de uma necessária participação estatal na regulação do mercado e na prestação de serviços ao público, sendo que a discussão ideológica permanece quanto à intensidade e à dimensão mais indicadas de intervenção. O liberalismo político legou-nos o primado do Estado de Direito, consolidando a idéia da inviabilidade de um Estado que não fosse criado e regulado pela ordem jurídica legitimamente instituída. As características básicas desse modelo seriam, conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, (a) a submissão ao império da lei, que era a essência do seu conceito, sendo a lei necessariamente considerada ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo-cidadão; (b) divisão de “poderes”, para que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário sejam separados com independência e harmonia, resultando em técnica que garanta a produção legislativa ao primeiro, a viabilidade do atendimento das exigências sociais ao segundo e a independência e a imparcialidade do último diante dos demais e das pressões do setor privado mais poderoso; e, por fim, o (c) enunciado e a garantia dos direitos 39 individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, o qual representa uma grande conquista da civilização liberal.72 A teoria da separação de “poderes”, por constituir-se em mecanismo de garantia das liberdades individuais, conquistou prestígio na doutrina constitucional do liberalismo, “[...] doutrina política que fundamentou a construção da teoria do Estado de Direito; um Estado juridicamente limitado pela Constituição e ideologicamente assumido pela doutrina liberal”.73 A liberdade de que se fala no liberalismo não é a mesma da antiguidade, que se exercitava através de uma forma direta de democracia, mas um novo conceito, que define um campo de autonomia do cidadão e da sociedade em contraposição à autonomia estatal. O Estado deve ser concebido como expressão da vontade dos indivíduos (contratualismo), e deve ter o seu poder e os seus fins limitados. O único fim do Estado liberal parece ser o de garantir a segurança de que os indivíduos necessitam para que possam livremente desenvolver-se. O liberalismo defendia a responsabilidade do Estado somente para garantir a segurança das relações sociais, não possuindo outras funções além da legislativa, da executiva e da judicial. No início do capitalismo, os liberais acreditavam que o egoísmo em geral produziria o bem comum através de uma “mão invisível”, sem imaginarem que as mudanças provocadas pela acumulação de capital e a recente noção de poder econômico exigiriam uma mudança no Estado e no Direito. Para o liberalismo, o Parlamento representava a vontade da nação, que não se confundia com o povo ou com o eleitorado. A conquista do sufrágio universal, portanto, teve a virtude de conciliar as idéias de liberalismo e democracia, que, em suas origens, não são coincidentes. Mas ainda mesmo nos Estados de Direito em que não se verificaram tendências totalitárias, demonstrou-se que o individualismo e o neutralismo do Estado liberal resultaram em grandes injustiças, deflagradoras de importantes movimentos sociais, ocorridos em especial nos dois últimos séculos. O qualificativo “liberal”, desse modo, não era mais “bem visto” ao Estado de Direito, o qual não mais poderia justificar-se de tal forma. Como conseqüência, percebeu-se o abandono da visão meramente formal do Estado de Direito, nascendo de tal transição paradigmática um Estado material de Direito, acrescendo, à positivação jurídica das liberdades, o “plus” dos direitos sociais, donde nasce o Estado Social de Direito. 72 73 Curso de direito constitucional positivo, p. 112-113. Atividade legislativa..., op. cit., p. 34. 40 Entretanto, JOSÉ AFONSO DA SILVA anota que, embora a concepção liberal do Estado de Direito tenha servido de apoio aos direitos do homem, transformando os súditos em cidadãos livres, verificou-se a existência de concepções deformadoras, “[...] pois é perceptível que seu significado depende da própria idéia que se tem do Direito”, do que resulta sua ambigüidade quando apartado de outro qualificativo que indique qual é o seu conteúdo material. Diante disso, e apoiado em construções formalistas e normativistas do Direito, infelizmente serviu a interesses de regimes totalitários e ditatoriais, como ocorreu na Alemanha nazista.74 A limitação jurídica estatal cede espaço diante da necessidade do Estado de assumir novas funções. Os direitos fundamentais, antes restritos à idéia de liberdades negativas (dever de abstenção do Estado), agora incluem os chamados direitos econômicos, sociais e culturais (prestações positivas pelo Estado). Fatores como a crise capitalista, sufrágio universal, reivindicações dos trabalhadores, revoluções socialistas, redução das empresas, oligopólio, sociedade de massas, urbanização etc., acabaram por exigir o nascimento do Estado Social de Direito, fenômeno que não pôde ser ignorado pelo direito constitucional, tendo como primeiros modelos a Constituição mexicana de 1917 e a alemã de 1919 (Weimar), surgindo, no Brasil, com a Constituição de 1934. Diante das numerosas exigências que lhe são feitas, e em decorrência das profundas modificações sofridas no meio social, o Estado avolumou-se, inchou. E é o mesmo Estado quem tem o dever de assegurar as liberdades, abstendo-se muitas vezes de ultrapassar certos limites. A liberdade outrora existente, não é mais imaginável hoje. Os indivíduos dependem do Estado para quase tudo, além de dependerem uns dos outros. Além de indivíduos, a sociedade é formada hoje por grandes grupos – sindicatos, igreja, partidos políticos, grandes empresas, bancos etc. – cada um com interesses muitas vezes conflitantes com outros grupos ou com o próprio Estado. Assim, tem o Estado a função de quebrar o domínio dos grupos e corporações. Em um Estado social, o Executivo vê ampliada sua atuação, pois é um Estado de serviços, o que lhe dificulta uma conciliação com o Estado de Direito, pois “[...] a separação de poderes só tem sentido em um Estado de Direito”.75 Não faltam exemplos de Estados sociais que se tornaram totalitários. É que, diante da ambigüidade da expressão “social”, o modelo do “Estado Social de Direito”, infelizmente, serviu de justificativa para a implantação de uma série de regimes em que se verificou total 74 Curso..., op. cit., p. 113-114. 41 desrespeito à vontade popular e aos mínimos direitos humanos. Foram, assim, “Estados Sociais”, a Alemanha nazista, a Itália fascista, e inclusive o Brasil, na época do Estado novo. O Estado “Social” comporta, portanto, a coexistência de regimes políticos antagônicos, como a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo. O “social” deve qualificar o Direito, e não o Estado. Conclui-se, portanto, que, nem o Estado liberal de Direito, nem o Estado social de Direito, garantem a existência de um Estado Democrático, regime fundado na soberania popular, exigindo a participação formal e material do povo, não só na formação das instituições representativas, mas, além disso, na gestão da coisa pública, visando “[...] realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana”.76 Como bem observou BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, “[...] entre as ruínas que se escondem atrás das fachadas, podem pressentir-se os sinais, por enquanto vagos, da emergência de um novo paradigma”; ou dizendo de outro modo, os novos paradigmas sempre nascem das mazelas dos velhos paradigmas. 77 Assim, do Estado absoluto, nasceu o Estado Liberal, e desse surgiu o Estado Social. Mas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Estado social e o Estado de Direito reencontraramse, com a união do novo papel do Estado à já conquistada sujeição do Estado ao Direito. É quando nascem os Estados Democráticos de Direito. Do princípio republicano democrático, portanto, bem assim dos fundamentos do Estado de Direito, surgem, para o cidadão, direitos fundamentais, entre nós, positivados no rol do artigo 5° da Constituição de 1988, assim como vários direitos sociais, indicados no artigo 7º da Lei Maior. Dentro do Direito Tributário, porém, sempre foi dado destaque aos direitos à liberdade, à igualdade, à segurança jurídica e à propriedade, devido em grande parte à estreita vinculação desse ramo jurídico com o princípio da legalidade.78 É importante, no entanto, atentar para os novos conteúdo e alcance do princípio da legalidade, renovado com novos matizes, após o advento do Estado Democrático de 75 CLÈVE, Clemerson Merlin. Atividade legislativa..., op. cit., p. 34. Curso..., op. cit., p. 115-117. 77 Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v.1, A crítica da razão indolente: contra o desperdiço de experiência, p. 16. 78 O direito à vida, direito fundamental por excelência, é patrimônio primeiro do cidadão, devendo ser priorizado em qualquer circunstância. Apenas não o citamos, aqui, em razão de que a tributação atual, apesar de agressiva, felizmente não tem ocasionado violações à vida, pelo menos não diretamente, pois se poderia defender que, do regime tributário do país, resultam as mazelas sociais e econômicas, e que, por via reflexa, portanto, a tributação seria a causa das mortes ocorridas, devido a estados extremos de pobreza e subnutrição. 76 42 Direito, como expressa com propriedade JOSÉ AFONSO DA SILVA, constitucionalista que defende ser a legalidade um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, modelo que, como todo Estado de Direito, sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça, não pela sua generalidade, mas pela busca da equalização das condições dos socialmente desiguais. Mais adiante, ressalta que o Estado Democrático de Direito “[...] tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade”, pois “[...] a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa [...], pois precisa influir na realidade social”.79 Não se poderia chegar a outra conclusão, pois se a Constituição é o berço legítimo das transformações políticas, econômicas e sociais almejadas pela sociedade brasileira, a lei terá importância fundamental, posto que, na qualidade de expressão clássica do direito positivo, fruto do desdobramento do conteúdo constitucional, revela-se como instrumento de transformação democrática da sociedade. No presente trabalho e, portanto, no contexto da análise da regra-matriz de incidência do ISS, essa nova perspectiva, resultante do advento do Estado Democrático de Direito, implica uma necessidade de uma nova consciência político-tributária, tanto para os representantes do povo – seja em âmbito nacional como nos Municípios – como para os contribuintes – nesse caso, os prestadores de serviço. Esse novo contexto é marcado, de forma especial, pelo influxo, no âmbito tributário, do valor constitucional da solidariedade social, previsto no artigo 3º da Constituição Federal de 1988. Devido à importância do tema, dedicamos a ele um subitem específico, razão pela qual deixamos de analisá-lo detidamente nesse momento.80 79 80 Curso..., op. cit., p. 121-122. Vide infra, subitem 2.1.3.1. 43 2. SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL 2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A análise jurídica de qualquer tributo, inserido no ordenamento jurídico pátrio, não pode ser feita somente a partir de seus dispositivos específicos, o que pressuporia a interpretação isolada dos textos normativos, como se eles gozassem de uma autonomia normativa. “Não há norma jurídica avulsa, como que pairando no ar...”, dizia, com autoridade científica, GERALDO ATALIBA, acrescendo que não é possível entender o texto, “[...] sem inseri-lo no contexto do qual faz parte”.81 Com efeito, não há outra opção hermenêutica válida, legítima, senão aquela que privilegie uma interpretação sistemática de toda e qualquer norma, dentro do seu respectivo sistema. O maior ou menor sucesso nessa empreitada dependerá, ainda, de um correto e coerente dimensionamento axiológico dos princípios maiores que informam o ordenamento jurídico, é dizer, há que se saber aplicar, em cada caso, qual é o princípio que revela o vetor constitucional mais indicado para que a solução final seja consentânea com os valores prestigiados no sistema, aqui e agora. A razão disso está no entendimento de que não há relação de hierarquia entre os princípios constitucionais, em especial entre aqueles de maior envergadura – com graus de generalidade e abstração equivalentes – senão um campo de aplicação específico para cada um, hipótese em que todos os demais deverão ser, para aquele caso único, desconsiderados, posto ser aquele princípio eleito o único que realiza, por meio de uma só norma, o Direito como um todo. Há casos, por exemplo, em que o valor da segurança jurídica determinará a aplicação do princípio da legalidade tributária ou de seu corolário imediato, a tipicidade fechada da norma tributária, e a conclusão pela inaplicabilidade do princípio da isonomia tributária. Em outra situação, nada impede que, por exigência inafastável de prestígio ao cânone da capacidade contributiva, a isonomia tributária deva ser a opção do intérprete. Quando se fala em “aplicação de um princípio”, ou “opção por um princípio”, parte-se da premissa implícita de que essa “aplicação” ou “opção” é efetivada com uma independência parcial do intérprete, pois em razão de os valores já 81 Imposto sobre serviços: competência tributária é, eminentemente, legislativa – matéria constitucional – função das normas gerais de direito tributário – ampla autonomia tributária do Município – tributação dos serviços de vigilância bancária. Revista de Direito Tributário, n. 35, p. 69. 44 estarem positivados no sistema, àquele somente resta, no plano pragmático da linguagem jurídica, subsumir seus valores pessoais à ideologia encampada pela Constituição. É lógico que, devido ao elevado grau de abstração e generalidade das normas que revelam princípios, evidencia-se uma verdadeira e legítima “folga interpretativa”, espaço no qual se justifica a convivência de conclusões diferentes sobre o mesmo tema, assim como é o que permite às expressões e vocábulos, constantes dos textos normativos, adaptarem-se às peculiaridades fáticas, no tempo e no espaço. Essa “flexibilidade” existente no sistema jurídico, verificável, como se disse, somente no nível pragmático da linguagem jurídica, e que peculiariza a lógica da Ciência do Direito (“dever-ser”) diante da lógica inerente às ciências naturais (“ser”) é a única justificativa legítima para resultados interpretativos divergentes. Fora dessa perspectiva, qualquer análise de um texto normativo resulta falsa, não podendo nem mesmo ser qualificada como interpretação, pois, ou a interpretação é sistemática, ou de interpretação não se trata. É o caso clássico da interpretação literal (gramatical) que, apesar de válida como um primeiro estágio hermenêutico, não é bastante em si para chegar a qualquer resultado verdadeiro. De resto, o caráter sistemático e unitário do Direito é, em rigor, verdadeiro axioma, que por essa razão dispensa maiores esforços em sua demonstração. O Sistema Tributário Nacional é expressão que abrange todas as normas, constantes do ordenamento jurídico, que disciplinam as relações jurídicas tributárias. Constitui-se, portanto, em verdadeiro subsistema, em razão das peculiaridades que esse ramo jurídico apresenta. Não se quer com isso afirmar a existência de foros de autonomia científica para o Direito Tributário, pois já é cediço que o caráter unitário do Direito impede possa um determinado ramo jurídico pretender ser titular de institutos e conceitos próprios, desvinculados do restante do sistema jurídico. Quando muito, há uma autonomia tão-só didática, e que não passa de relativa, pois não há ramo jurídico cujo ensino prescinda do recurso às demais áreas do Direito. O Direito Tributário, além de não poder ser diferente, é intensamente marcado por essa característica. Basta um breve lançar de olhos a qualquer norma jurídica tributária, em cuja hipótese de incidência são facilmente identificáveis conceitos e institutos advindos de outros ramos, em especial do Direito Civil e do Direito Comercial. No plano do Direito Tributário formal, onde estão inseridas as normas jurídicas que tratam da exigibilidade dos tributos, destacam-se as participações do Direito Administrativo e do 45 Direito Processual. Não por outra razão o Direito Tributário é denominado de “direito de superposição”. O Sistema Tributário Nacional, assim como o sistema jurídico, pode ser vislumbrado como a clássica figuração da pirâmide jurídica. No ápice estão as normas jurídicas que, não obstante existirem em menor número, são as mais importantes do ponto de vista axiológico, o que lhes confere a posição hierárquica superior. A cada degrau da pirâmide, reduzindo-se o grau de abstração e generalidade, as normas tributárias vão aumentando em quantidade e concreção, mas sempre tendo a forma e o conteúdo vinculados ao que dispõem as normas superiores, que lhes servem de fundamento de validade. São as normas constitucionais, portanto, que ocupam o mais alto nível na hierarquia normativa. Dentre elas, ainda se podem classificar as mais relevantes, e que condicionam a interpretação do restante do ordenamento jurídico, inclusive das demais normas constitucionais. São os chamados princípios constitucionais e, para o que interessa ao presente estudo, os princípios constitucionais que orientam a aplicação de todo o Direito Tributário brasileiro. Com essa afirmação não se quer defender que apenas os princípios constitucionais previstos no Capítulo I do Título VI (Do Sistema Tributário Nacional) orientam a aplicação do Direito Tributário no Brasil. Isso implicaria franca contradição com a anterior afirmação da inexistência de autonomia do Direito Tributário. Essa exigência hermenêutica foi bem demonstrada por HUMBERTO ÁVILA, em acertada crítica sobre a “combinação de princípios” levada a efeito pela tradicional interpretação sistemática do Direito Tributário, onde a descrição, pela doutrina, das limitações ao poder de tributar abrange, em geral, as limitações negativas, sem uma investigação mais profunda e conjunta das limitações positivas, como, por exemplo, a proporcionalidade e os princípios e direitos fundamentais.82 82 Sistema constitucional tributário, p. 21-22. 46 2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS 83 O artigo 150 da Constituição Federal de 1988, antes de enumerar em seus incisos as mais importantes “limitações constitucionais ao poder de tributar”, dispõe, em seu caput, o seguinte:“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:” (grifamos). Ou seja, a expressão “outras garantias” confere a certeza de que os princípios constitucionais tributários subsumem-se entre os “direitos e garantias individuais” previstos no artigo 60, § 4°, IV, da Constituição Federal de 1988, o que os qualificam como cláusulas pétreas. E não poderia ser de outra forma. São os princípios que presidem o funcionamento de todo o sistema jurídico. Se assim não fosse, o Direito seria um amontoado de normas, cuja aplicação em cada caso dependeria do humor momentâneo do magistrado, instaurando-se o caos da insegurança jurídica e da inexistência de certeza do Direito. Dessume-se, então, que as noções de sistema jurídico e princípio são indissociáveis. É da essência de todo e qualquer sistema a existência de elementos mais importantes que comandam a intelecção e aplicação dos demais. No sistema jurídico brasileiro, os princípios são a mais legítima expressão da vontade popular, sendo compromisso ético e moral dos representantes do povo, tanto no Poder Legislativo como no Poder Executivo, a luta incessante pela sua eficácia, mediante a irradiação de seus valores sobre a legislação infraconstitucional. GERALDO ATALIBA, publicista que se destacou como um dos maiores defensores dos princípios constitucionais, revela esse pensamento, nos seguintes termos: “Olvidar o cunho sistemático do Direito é admitir que suas formas de expressão mais salientes, as normas, formam um amontoado caótico, sem nexo, nem harmonia, em que cada preceito ou instituto pode ser arbitrária e aleatoriamente entendido e aplicado, grosseiramente indiferente aos valores jurídicos básicos resultantes da decisão popular”.84 No entanto, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “É extensa e larga a diversidade semântica da palavra ‘princípio’[...]”, sendo comum na seara do Direito, 83 Alguns princípios, que aqui serão analisados, não são de aplicação exclusiva no Direito Tributário, como é o caso dos princípios republicano, federativo e da autonomia municipal, valores supremos que se irradiam por todo o ordenamento jurídico. Não há, nesse sentido, princípio específico e exclusivo de algum ramo jurídico, senão manifestações específicas dos princípios gerais de Direito, que ganham nova roupagem em cada área do jurídico. 47 lembra o autor, referi-los metaforicamente como alicerces do edifício jurídico, ou ainda como bases ou pilares do ordenamento. Em razão dessa multiplicidade de sentidos da expressão “princípios constitucionais”, o jurista paranaense nos adverte da necessidade de “[...] elucidar o sentido em que a estamos utilizando, de modo mais específico do que a noção muito ampla de fundamentos do sistema [...]”, e, amparado nas quatro acepções arroladas por PAULO DE BARROS CARVALHO, o autor adota a expressão, nesse seu estudo, com os sentidos de “[...] normas jurídicas de posição privilegiada, portadoras de valor expressivo ou que estipulam limites objetivos”.85 Em virtude da boa síntese, e da sua aderência com os nossos objetivos, adotamos também, neste trabalho, a expressão “princípios constitucionais” com essa conotação. 2.2.1 Princípios: Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal A Constituição Federal, já em seu artigo 1º, estabelece: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos...”. A circunstância de os primados da República e da Federação já constarem do primeiro artigo da Constituição não é mera coincidência. Antes, é fruto da solidificação jurídico-cultural desses que estão entre os mais importantes princípios de nosso sistema jurídico, pois deitam luzes sobre todas as demais normas do ordenamento jurídico, inclusive sobre os demais princípios constitucionais, os quais têm eficácia na medida exata em que, com eles, entrem em harmonia. Segundo a definição irretocável de GERALDO ATALIBA, República é o “[...] regime político em que os exercentes de funções políticas (executivas e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renováveis periodicamente”.86 As características da República, para o autor, são, portanto, a eletividade (instrumento de representação), a periodicidade (asseguradora da fidelidade aos mandatos) e a responsabilidade (penhor da idoneidade da representação popular). Verifica-se que, para o referido autor, a tônica do ideal republicano está na exigência de que a tomada de decisões seja feita pelo povo, através de seus 84 85 República e Constituição, p. 15. Bocage e o Terrorismo Constitucional das Medidas Provisórias Tributárias: a emenda pior do que o soneto. In:: FERRAZ, Roberto (coord.). Princípios e Limites da Tributação, p. 685-688. 48 representantes. Ou seja, o Direito que disciplina a sociedade e o próprio Estado é fruto da vontade popular. Quer parecer que a principal conseqüência desse posicionamento será a necessidade de rigorosa observância, pelo Estado e pela própria sociedade, dos valores prestigiados pelo povo, e que, por essa razão, erigiram-se como os magnos princípios constitucionais, com destaque para o princípio da legalidade. ROQUE ANTONIO CARRAZZA tem definição semelhante, cujo traço distintivo, no entanto, parece ser a ênfase na idéia da igualdade, como reflexo principal da república: “República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade”.87 Como decorrência de seu raciocínio, ressaltam, como principais reflexos do princípio republicano no campo tributário, o princípio da isonomia tributária (artigo 150, II, da Constituição) e o cânone da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º, também da Constituição). Não restam dúvidas, todavia, que, no seu raciocínio, também se manifesta a idéia da legalidade, fruto do exercício do poder político por meio dos representantes. O mesmo entendimento é defendido por SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO.88 Tamanha é a força e intensidade axiológica do princípio republicano que todo o restante do ordenamento jurídico tem seu sentido dirigido em razão de seus postulados. De outra forma, pode-se afirmar que o princípio republicano influi, de modo decisivo, na interpretação de todas as demais normas constitucionais, sejam as que revelam verdadeiros princípios, sejam as que revelam simplesmente regras. Com mais razão, todas as normas infraconstitucionais devem ter seu sentido condicionado à conformidade com suas exigências.89 O principal reflexo do princípio republicano no Direito Tributário é a exigência inafastável de que todo tributo só pode ser criado ou aumentado tendo em vista o bemcomum, o que se estende, por força de pura lógica, às isenções tributárias, as quais não podem ser concedidas ou revogadas em detrimento desse supremo valor constitucional. Disso decorre o princípio da destinação pública dos valores arrecadados mediante a tributação, assim como a proibição de vantagens tributárias a determinadas pessoas sem 86 República..., op. cit., p. 13. Curso..., op. cit., p. 52. 88 Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, p. 4-5. 89 ATALIBA, Geraldo. República..., op. cit., p. 32. 87 49 respaldo constitucional, como no passado ocorria, por exemplo, com aqueles que possuíam títulos de nobreza ou que faziam parte do clero.90 ROQUE ANTONIO CARRAZZA também ressalta que o princípio republicano leva ao princípio da generalidade na tributação, pelo qual “[...] todos os que realizam o fato imponível tributário venham a ser tributados com igualdade”.91 O princípio republicano, portanto, leva à igualdade na tributação, o que exige tratamento tributário isonômico para todos os que se encontram na mesma situação jurídica. Por via de conseqüência, o princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, de nossa Carta Magna, também é manifestação do ideal republicano, pois é o discrímen que permite atribuir tratamento desigual aos contribuintes. Ou seja, os iguais e os desiguais, no Direito Tributário, são os que revelam a mesma ou diversa capacidade contributiva.92 GERALDO ATALIBA leciona que os princípios mais importantes são os da Federação e o da República, razão pela qual “[...] exercem função capitular da mais transcendental importância, determinando inclusive como se devem interpretar os demais, cuja exegese e aplicação jamais poderão ensejar menoscabo ou detrimento para a força, eficácia e extensão dos primeiros”.93 Tão cristalizada está a certeza da importância desses princípios no ordenamento jurídico, que a Constituição Federal, no § 4º do seu artigo 60, tratou de petrificá-los, não podendo, diante desse dispositivo, nem mesmo ser objeto de deliberação, no Congresso Nacional, a proposta de emenda que tão-somente tenda a aboli-los.94 Ainda que a vedação somente seja expressa em relação à “forma federativa de Estado” (inciso I), a Constituição alberga outras inequívocas manifestações do ideal republicano, sendo o “voto direto, secreto, universal e periódico” (inciso II), certamente, a principal delas, por representar a idéia essencial de representação. Em seguida, pode-se ainda citar a “separação dos Poderes” (inciso III) e “os direitos e garantias individuais” (inciso IV). Se a Constituição é qualificada como rígida, em razão da complexidade de seu processo de reforma, quanto a esses dois princípios ela é “rigidíssima”, conforme 90 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar, p. 258 et seq. Curso..., op. cit., p. 73. 92 Curso..., op. cit., p. 80-81. 93 República..., op. cit., p. 36. 94 “§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.” 91 50 expressão de ATALIBA, pois não pode o Congresso Nacional nem mesmo discutir qualquer projeto tendente – “[...] que abrigue tendências; que leve; que conduza; que encaminhe; que facilite; que possibilite, mesmo indiretamente” – à abolição da República e do Federalismo.95 Todas as demais normas constitucionais, exceto as cláusulas pétreas, são modificáveis, o que conduz à conclusão de que em hipótese alguma a interpretação de qualquer norma, inclusive reveladora de outros princípios constitucionais, poderá sequer reduzir a eficácia desses dois princípios, quanto mais inobservá-los. ROQUE ANTONIO CARRAZZA entende que, não obstante a suprema importância do princípio republicano, ele não se constitui mais em cláusula pétrea, ao contrário do que ocorria na Constituição de 1967/1969. Contudo, em razão de o “voto direto, secreto, universal e periódico” (artigo 60, § 4º, II da Constituição Federal) permanecer como cláusula irreformável, o autor conclui que pelo menos os reflexos do princípio republicano não podem ser alterados por meio de emenda constitucional, pois “[...] é justamente o que torna possíveis o sistema representativo e o regime democrático, decorrências naturais da forma republicana de governo”.96 Percebe-se, portanto, que, não obstante o entendimento pela subsistência ou não da República como cláusula pétrea, em qualquer caso não se pode negar que são inalteráveis os postulados republicanos, o que poderia inclusive ser ratificado pela ocorrência da “preclusão” da oportunidade de o povo, através de plebiscito, eleger a monarquia constitucional como forma de governo, já que a única oportunidade deu-se em 21 abr. 1993, pela Emenda Constitucional n° 2, de 25 ago. 1992, a qual antecipou a data anterior (07 set. 1993), prevista que estava no artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A razão parece estar, portanto, no entendimento defendido por CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, para quem a república não foi cláusula pétrea no período entre a promulgação constitucional e o plebiscito de 1993, devido à possibilidade de sua modificação pela via revisional, tendo, após, recobrado sua condição de imutabilidade, como limite material implícito.97 Dentre os dois princípios, pode-se ainda afirmar que a noção de república vem em primeiro lugar, posto que a federação é um instrumento de sua realização. A autonomia dos entes federados e a descentralização política em que se traduz a 95 96 República..., op. cit., p. 38. Curso..., op. cit., p. 75-77. 51 federação, fazem com que melhor funcione a representatividade e o exercício, pelo povo, de suas prerrogativas de cidadania e de autogoverno, nas palavras de GERALDO ATALIBA, que, amparado em Rui Barbosa, lembra que a expressão regime “republicano-federativo” denuncia a íntima e necessária relação entre os dois princípios.98 A divisão do Estado brasileiro em pessoas políticas – União Federal, Estadosmembros, Distrito Federal e Municípios – deve-se aos princípios constitucionais do federalismo e da autonomia municipal. Como se verá adiante, o estudo desses princípios é de fundamental importância na análise do tema da distribuição de competências legislativas entre as pessoas políticas, o que, obrigatoriamente, também exige uma devida compreensão do conteúdo e do alcance possíveis das leis ordinárias e complementares de âmbito nacional. MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, amparada em MIGUEL REALE, afirma que: a todo poder social corresponde uma ordem jurídica, sendo a ordenação do Direito a forma de organização da coerção social. Por conseguinte, com a descentralização política própria do Estado federal se dá, necessariamente, uma descentralização jurídica. O enfoque estritamente jurídico da questão, leva-nos a constatar o inverso. À descentralização jurídica corresponderá a política, já que o poder estatal, sob tal ângulo, é mera validade e eficácia da ordem jurídica [sic].99 Portanto, independente do ponto de vista de que se analisa o tema, o certo é que a descentralização do Estado Federal confere à União, aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios tanto a função política como a função jurídica, é dizer, as pessoas políticas tanto têm a aptidão constitucional para criar as leis vigentes em seus respectivos espaços territoriais, dentro das matérias que lhes foram reservadas, e executá-las, no relacionamento com os cidadãos, como têm a força coercitiva de exigir sejam elas cumpridas. Dentro dos limites constitucionais, pode-se afirmar terem as pessoas políticas autodeterminação política e administrativa. No âmbito tributário, em face de previsões como, por exemplo, a do artigo 146, caput, da Constituição Federal de 1988, o conhecimento amplo dos primados do federalismo e da autonomia municipal será crucial para a análise do espectro de atuação 97 República e Federação no Brasil: Tração Constitucionais da Organização Política Brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 70, 86 e 88-89. 98 República..., op. cit., p. 43-44. 99 Fundamentos da competência tributária municipal. Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 105. 52 da lei complementar de normas gerais em matéria tributária. A expressão “normas gerais” já denuncia tratar-se de normas de âmbito nacional. A existência das leis nacionais – complementares ou ordinárias, conforme a matéria – não só para o Direito Tributário, mas também em relação a outros ramos do Direito Público, deve-se a uma necessidade, prevista pelo legislador constituinte, de que a Constituição Federal fosse observada por todas as pessoas políticas de uma forma harmônica, quando do exercício de suas competências, preservando assim a unidade dos interesses nacionais. A repartição de competências legislativas, entre as pessoas políticas, é, portanto, resultado imediato da existência do Estado Federal e do Princípio da Autonomia dos Municípios. O federalismo contrapõe-se à forma unitária de Estado em razão da descentralização do poder, fenômeno jurídico pelo qual outros entes, frutos da divisão interna do próprio Estado, são dotados de certa autonomia políticoadministrativa. São chamados de Estados-membros. Não há um conceito único de federalismo, em razão de ser “[...] um sistema de composição de forças, interesses e objetivos que podem variar, no tempo e no espaço, de acordo com as características, as necessidades e os sentimentos de cada povo”.100 ROQUE ANTONIO CARRAZZA fornece conceito que destaca o aspecto da inexistência de soberania para os entes federados: “É uma associação, uma união institucional de Estados, que dá lugar a um novo Estado (o Estado Federal), diverso dos que dele participam (os Estados-membros). Nela, os Estados Federados, sem perderem suas personalidades jurídicas, despem-se de algumas tantas prerrogativas, em benefício da União. A mais relevante delas é a soberania”.101 A soberania, ensina o autor, é o principal atributo do Estado, e que lhe outorga o poder supremo, tendo como características: (a) é uma: a soberania é exclusiva, não podendo, em um mesmo Estado, haver duas ou mais soberanias; (b) é originária: a soberania é um poder que encontra em si mesma sua própria fonte, ou seja, ela não deriva de outros ordenamentos anteriores ou superiores; (c) é indivisível: não pode ser fracionada, pois do contrário desaparece; e (d) é inalienável: o Estado não pode renunciar à soberania. Ainda que a perspectiva vislumbrada pelo autor seja relevante, entendemos que as características mais importantes do federalismo residem na (a) descentralização de competências; (b) na participação dos entes federados na vontade nacional; e (c) na 100 101 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 112-113. Ibidem, p. 113. 53 prerrogativa de autogoverno, com destaque para a possibilidade de aprovarem suas próprias constituições. Convivem harmonicamente no Brasil, a ordem jurídica total (ou global), representada pelo Estado Brasileiro, e as ordens jurídicas parciais. As parciais subdividem-se em: ordem jurídica parcial central, resultante da união (vínculo) de todas as ordens parciais, que por essa exata razão recebeu o nome de União Federal; ordens jurídicas parciais periféricas, denominadas de Estados-membros; e, por fim, as ordens jurídicas parciais locais, representadas pelos Municípios. Perceba-se a crucial diferença entre o que é resultado da soma das ordens jurídicas parciais (Estado brasileiro), e o que se constitui do vínculo entre elas (União Federal). Nesse sentido é o entendimento, por exemplo, de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES102, ROQUE ANTONIO CARRAZZA103 e SACHA CALMON NAVARRO COELHO104. Quanto à questão de os Municípios integrarem ou não a federação, entende-se que, apesar do sentido literal do artigo 1º da Lei Maior, melhor razão assiste àqueles que vêem os Municípios como componentes da federação na qualidade de entes federativos – divisões políticas dos Estados-membros – e não como entes federados propriamente ditos, em especial pelo fato de que não participam tais pessoas políticas da formação da vontade jurídica nacional, posto que não integram o Congresso, não possuindo representantes nem no Senado (Casa dos Estados) nem na Câmara dos Deputados (Casa do Povo).105 Portanto, é nesse sentido a redação do artigo 1º da Constituição, ao estabelecer que o Estado Federal Brasileiro resulta da união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal.106 Em qualquer caso, inafastável é a conclusão de que a autonomia dos Municípios é conseqüência direta não apenas do princípio federativo, como também do princípio republicano, o que a posiciona dentre os mais importantes princípios de Direito Público previstos na Constituição. Afirma ATALIBA que “[...] por meio da autonomia municipal realizam-se os ideais republicanos de maneira excelente e conspícua no que concerne à vida política local e no exercício das liberdades políticas, 102 Lei complementar tributária, p. 64-66. Curso..., op. cit., p. 126. 104 Curso de direito tributário brasileiro, p. 96. 105 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 149-150. 106 SILVA, José Afonso da. Curso..., op. cit., p. 101. 103 54 em matéria própria do ‘círculo de vizinhos’, em que se funda a instituição municipal”.107 Acresce ainda o autor: Realiza-se no Município brasileiro, com notável extensão, o ideal republicano da representatividade política, com singular grau de intensidade. Aí, a liberdade de informação, a eficácia da fiscalização sobre o governo, o amplo debate das decisões políticas, o controle próximo dos mandatários pelos eleitores, dão eficácia plena a todas as exigências do princípio republicano representativo. [...] Todos os preceitos constitucionais direta ou indiretamente aplicáveis aos Municípios têm a dupla finalidade de: a) dar eficácia ao princípio republicano, garantindo o autogoverno local; e b) assegurar mecanismos republicanos de funcionamento do Município, nas suas relações internas. [...] O modo pelo qual foi constitucionalmente tratado o Município no Brasil só faz esplender, com maior intensidade e brilho, as virtudes notáveis da república representativa, com seus postulados democráticos.108 Do raciocínio lúcido e inatacável do referido autor, resulta a inviabilidade da pretensão da União Federal de, quando no exercício de competências de âmbito nacional, pretender amesquinhar a autonomia municipal, como é o caso da competência para editar, por meio de lei complementar, as normas gerais de direito tributário, instrumento que não pode ser invocado para invadir a competência municipal, pois nem mesmo o legislador constituinte derivado tem essa prerrogativa. HELY LOPES MEIRELLES entende que, pela Constituição Federal de 1988, os Municípios integram a Federação como entidade de terceiro grau, por não se justificar a sua exclusão, “[...] já que sempre fora peça essencial da organização político-aministrativa brasileira”.109 Apesar da excelência das argumentações expendidas por esse mestre, entende-se não integrarem os Municípios a Federação, mesmo porque essa afirmativa não diminui a sua importância na organização política e administrativa brasileira, a qual é assegurada pelo princípio da autonomia municipal. O incremento na autonomia dada aos Municípios pela Constituição de 1988 é ressaltado por GISELA MARIA BESTER, para quem “[...] os municípios nunca antes em nossa organização político-territorial desfrutaram de tão ampla autonomia como pela CF/88”, pois além da prerrogativa do autogoverno, os Municípios receberam, da atual Lei Maior, competência de auto-organização, em face da previsão constitucional de que se devem reger por suas próprias leis orgânicas. A autora ressalta, entretanto, que, se por um lado, a atual Constituição efetivamente aumentou a autonomia dos 107 República..., op. cit., p. 45. Ibidem, p. 46. 109 Direito municipal brasileiro, p. 36. 108 55 Municípios (artigo 18), “[...] por outro lado também lhes acarretou um aumento de responsabilidades e das competências materiais [...]”.110 JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que o fato de uma entidade territorial possuir autonomia político-constitucional não leva, necessariamente, à conclusão de que a mesma seja um ente federativo. Explica, ainda, que os Municípios nem mesmo são essenciais ao conceito de federação brasileira, pois não há uma federação de Municípios, mas uma federação de Estados-membros, únicos essenciais ao conceito de qualquer federação. Caso houvesse uma federação de Municípios, eles passariam a constituir uma nova classe de Estados-membros, o que resultaria em um conflito, já que desapareceria a autonomia federativa, a qual pressupõe território próprio, ou seja, não compartilhado.111 Apesar de os Municípios serem somente componentes da federação, mas não entidades federativas, os Municípios, da forma como disciplinados na Constituição Federal de 1988, são pessoas políticas dotadas de grande autonomia, e que recebem suas competências diretamente da Constituição, que é o único fundamento de validade de suas leis.112 Portanto, “[...] toda a lei tributária municipal válida é suprema sobre qualquer outra da União, do Estado ou de outro Município com a qual conflite”.113 Importante ressaltar, contudo, que a autonomia não é poder originário, mas sim prerrogativa política concedida e limitada pela Constituição Federal, conforme ensina HELY LOPES MEIRELLES, para quem tanto os Estados-membros como os Municípios têm a sua autonomia garantida constitucionalmente, não como um poder de autogoverno, decorrente da soberania nacional, mas como um direito público subjetivo de organizar o seu governo e prover a sua Administração, nos limites traçados pela Lei Maior.114 Como síntese do que foi visto até agora, pode-se concluir que os Municípios, não obstante não serem entes federados, são entes federativos, pois, ainda que de forma indireta, participam do pacto federativo como divisões políticas dos Estados-membros. Comprovam a assertiva dispositivos constitucionais como o artigo 18, caput, pelo qual “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos 110 Direito Constitucional..., op. cit., p. 281-282. Curso..., op. cit., p. 473. 112 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 150. 113 Ibidem, p. 152. 114 Direito municipal..., op. cit., p. 81. 111 56 desta Constituição”; como a aliena “c”, do inciso VII, do artigo 34, onde está previsto que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: c) autonomia municipal”. Note-se que o constituinte, não se limitando somente a consignar a autonomia municipal como princípio, o que já seria bastante para a sua efetividade como tal, preferiu assegurá-lo, mediante a conseqüência da sanção extrema de intervenção federal no Estado-membro agressor, elevando esse princípio ao mesmo patamar, por exemplo, da proteção à forma republicana, ao sistema representativo e ao regime democrático, cuja proteção também é garantida pela ameaça da intervenção, conforme a alínea “a”, do inciso VII, do mesmo artigo 34. Não se vislumbra para os Municípios proteção constitucional diversa da que é conferida aos Estados-membros. A peculiaridade de que estes possuem funções outras no cenário nacional, visualizáveis de forma especial na atividade legiferante do Senado Federal, não implica concluir pela eventual existência de relação de hierarquia com os Municípios. A proteção constitucional da autonomia político-administrativa dos Municípios resulta do contexto constitucional, em especial de normas como as veiculadas pelo artigo 18, caput (acima transcrita), e pelos artigos 30, incisos I a IX 115; e 31, §§ 1 a 4116; e 34, inciso VII, letra “c”117, todos da Carta Magna. 115 “Artigo 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual; V organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental; VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.” 116 “Artigo 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei. § 1º. O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas, dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver. § 2º. O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal. § 3º. As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei. § 4º. É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou Órgãos de Contas Municipais”. 117 “Artigo 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: [...] VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: [...]; c) autonomia municipal;” 57 Mais uma vez, corrobora nosso entendimento MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, em comentário ainda sobre o ordenamento jurídico anterior, o que, todavia, não prejudica sua aplicação no atual panorama jurídico-político: À luz do nosso Texto Constitucional, a autonomia municipal é assegurada, configurando sua inobservância, caso de intervenção federal no Estadomembro que a quebrar [...]. Encontra-se, pois, o Município, inserido no Estado brasileiro, como pedra de apoio ao federalismo. O poder de instituir seus próprios tributos, a que chamamos competência tributária, não pode, portanto, ser tolhido ou mitigado. Somente os limites e restrições desenhados no próprio texto Constitucional confirmam e bitolam o campo de atuação municipal.118 Ressalte-se que a vedação presente no artigo 60, § 4º, I, da Constituição Federal, refere-se à impossibilidade de a autonomia municipal ser suprimida por emenda constitucional. Uma forma de supressão seria, inegavelmente, restringir a participação dos Municípios na repartição de competências tributárias. Entende-se, todavia, que não há impedimento para que o legislador constituinte derivado possa alterar a distribuição das materialidades tributáveis, desde que, sublinhe-se, a nova divisão mantenha o anterior potencial de receitas ou, o que seria mais recomendável, que o melhore, tendo em vista a crescente centralização de “poder” tributário na esfera federal, o que segue na direção oposta aos ideais democráticos e republicanos. Esse entendimento, que parece ser o mais coerente, merece atenção especial quando da análise de cada caso concreto, conforme ensina MARCELO CARON BAPTISTA: Sobre a possibilidade de modificação da repartição da competência tributária, a explicação é um tanto mais complexa. Superada a questão da supressão total, não existe impedimento formal para que a competência tributária seja modificada por emenda constitucional. Isso porque, mantida a divisão das competências de tributar, a menos em um primeiro momento restaria intocada, formalmente, a Federação. Todavia, a modificação da competência para legislar em matéria tributária, a depender dos efeitos que provoque, poderá acarretar inconstitucionalidade material, em relação a um ou a vários entes federados. [...] A resposta, então, quanto à possibilidade de emenda constitucional modificar a distribuição da competência tributária depende da análise de cada caso concreto.119 Sobre o ISS em especial, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES afirmava, ainda na vigência da Carta anterior, que a competência exclusiva dos Municípios para instituí-lo está compreendida no dispositivo constitucional do “[...] peculiar interesse municipal”. Na atual Constituição, o inciso I, do artigo 30, dispõe que “compete aos Municípios 118 Fundamentos..., op. cit., p. 111. 58 legislar sobre assuntos de interesse local”, interesse esse que é um pré-requisito para a efetivação da autonomia do Município na gestão dos seus próprios negócios, pois, como é cediço, não há autonomia política e administrativa sem autonomia financeira.120 Confirma esse raciocínio o escólio de HELY LOPES MEIRELLES, aqui amparado em AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO: “Com efeito, inexpressivas seriam a autonomia política e a autonomia administrativa sem recursos próprios que garantissem a realização de obras e a manutenção de serviços públicos locais. Seria uma quimera atribuir-se autogoverno ao Município sem lhe dar renda adequada à execução dos serviços necessários ao seu progresso”.121 A insistência em afirmar a autonomia financeira dos Municípios tem, aqui, o objetivo claro de defender a impossibilidade de a União Federal, através de lei complementar, restringir o direito de os Municípios legislarem sobre os tributos que lhe couberam na repartição constitucional de competências, ainda que sob o pretexto de, em tais hipóteses, estar o Congresso Nacional legislando em âmbito nacional. Como será analisado adiante, leis infraconstitucionais – nacionais, federais, estaduais, distritais e municipais – regra geral, não possuem relação de hierarquia, mas sim competências ratione materiae – distintas, salvo quando uma lei busca seu fundamento de validade em outra lei também infraconstitucional. A análise dos princípios Federativo e da Autonomia Municipal, neste trabalho, pretende servir de pressuposto para o estudo dos limites da lei complementar nacional em matéria tributária, em especial no que se refere às leis complementares criadas em cumprimento às normas constitucionais que outorgam a competência tributária municipal para dispor sobre o ISS, o que será tratado adiante. Entretanto, e preliminarmente à análise direta dos dispositivos que outorgam competência tributária aos Municípios, cabe consignar algumas premissas que devem vincular o legislador em nível infraconstitucional, quando da leitura do artigo 30 da Constituição Federal. Em primeiro lugar, é pacífico que a Constituição, além de ter elevado a autonomia municipal à categoria de magno princípio, estabeleceu como essência de sua efetivação a instituição e arrecadação dos tributos de sua competência, conforme determina o inciso III, do artigo 30 da Lei Maior. Com supedâneo nessa premissa, GERALDO ATALIBA, em comentário sobre a necessidade de lei complementar na 119 ISS: do texto à norma, p. 99 e 101. Lei Complementar..., op. cit., p. 187-188. 121 Direito municipal…, op. cit., p. 100. 120 59 previsão dos serviços tributáveis pelo ISS, ainda conforme o texto da Constituição de 1967, defende que não é consentido ao intérprete desprezar o princípio da autonomia municipal e, subvertendo a ordem jurídica, por apego à literalidade de uma mera regra de importância secundária, pretender atribuir à lei complementar a faculdade de anular esse princípio.122 Nesse sentido, cabe ressaltar que a discriminação constitucional de competências legislativas, de acordo com a base territorial das pessoas políticas, tem assento, em princípio, na conveniência de descentralizar o Poder Legislativo, considerando, conforme lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, a “[...] variável amplitude de interesses” que corresponde a cada esfera: “Então, no caso brasileiro, os interesses mais amplos assistem à União; os circunscritos ao âmbito regional, aos Estados; e os que concernem tão-só à esfera local, aos Municípios”.123 A questão, contudo, não é tão simples, pois é inevitável que as diferentes pessoas políticas possam compartilhar, por vezes, dos mesmos interesses, exigindo-se, em tais casos, um devido sopesamento para aferir qual dos interesses é mais relevante. Quer-se com isso dizer que os assuntos decididos em nível nacional, com toda a certeza, também são de interesse dos Estados e Municípios, assim como os temas afeitos à esfera dos Estados também refletem no âmbito municipal. O raciocínio inverso, ainda que com menos intensidade, também é correto, ou seja, os assuntos municipais interessam aos Estados e à União e, por sua vez, as questões estaduais interessam, da mesma forma, à União. Em síntese, é aplicável, aqui, a máxima pela qual “[...] o todo afeta as partes, assim como o que afeta as partes afeta o todo”, como ensina CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO.124 O autor esclarece que a obviedade de suas afirmações tem como objetivo advertir que, diante de dificuldades interpretativas, deve-se evitar incorrer no equívoco de defender a existência de um interesse de dada esfera, mediante aspectos que bem poderiam inseri-lo em quaisquer das demais órbitas e que, por tais razões, permite subsumi-lo em uma ou outra, o que varia conforme as tendências pessoais de cada intérprete. Esse equívoco deve ser evitado mediante uma interpretação que consiga 122 Imposto sobre serviços: competência tributária é, eminentemente, legislativa – Matéria constitucional – Função das normas gerais de direito tributário – Ampla autonomia tributária do Município – Tributação dos serviços de vigilância bancária. Revista de Direito Tributário, n. 35, p. 76-77. 123 Discriminação constitucional de competências legislativas: a competência municipal. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de (org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito administrativo e constitucional, p. 271-272. 124 Ibidem, p. 272-273. 60 “[...] separar a generalidade da especificidade do interesse, pois é este último – e só ele – que pode fornecer a diretriz procurada pelo intérprete”.125 O artigo 30 da Constituição dispõe caber aos Municípios: “I – legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber; III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência...”. Da análise desse dispositivo, depreende-se que a Constituição estabelece uma dualidade de fundamentos para definir a competência legislativa municipal, ou seja, resumem-se a duas as hipóteses em que determinada matéria pode ser considerada como de competência municipal, coincidentes com os incisos I e II do precitado artigo 30. O inciso III, que dispõe sobre a competência tributária, como se verá, aloca-se em uma das duas hipóteses. O inciso I, quando fala de “[...] assuntos de interesse local”, está se referindo aos interesses próprios da pessoa política classificada como “Município”, considerada em si mesma, prescindindo, portanto, das peculiaridades de cada uma delas, como é exemplo a legislação edilícia, da coleta de lixo, do transporte de passageiros intermunicipal etc. A competência, nessa hipótese, pertine a todo e qualquer Município, mas é vedada a qualquer outra entidade (Estados e União), por caracterizarse como assunto de interesse local. O inciso II trata das matérias que, não obstante o exercício de sua competência ter sido atribuído à União ou aos Estados, devido serem interesses que transcendem o universo municipal, a Constituição o fez de forma genérica, o que poderia deixar a descoberto certas peculiaridades desse ou daquele Município, caso não lhes fosse possível editar normas suplementares, a fim de regulamentar os casos que lhes são especificamente próprios. Como exemplo, pode-se citar a necessidade de um dado Município legislar sobre o horário de funcionamento do comércio local, em virtude de um feriado comemorado somente na região, em que pese competir privativamente à União Federal legislar sobre Direito Comercial, conforme prescreve o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Com efeito, ou o interesse é local, quando então encontra abrigo no inciso I, do artigo 30, ou o interesse, apesar de ser federal ou estadual em um sentido genérico, por força de uma especificidade local, não regulada na lei federal ou estadual, passa a exigir uma suplementação legislativa por parte do respectivo Município. É óbvio que essa suplementação só será válida se o interesse do Município, além de caracterizar-se como 125 Ibidem, p. 273. 61 particular daquele ente municipal, já não estiver regulado na lei federal ou estadual – daí a razão da expressão “no que couber” – assim como dito interesse deverá estar em harmonia com o contexto constitucional.126 Ousa-se, no entanto, acrescentar que a competência tributária, prevista no inciso III, acima parcialmente transcrito, subsume-se a uma das duas hipóteses acima mencionadas. Ou seja: ou a competência tributária é assunto de interesse local, e portanto, vincula-se ao inciso I, do qual se entende tratar de matérias afeitas a todos os Municípios de igual forma, ou trata-se de matéria de competência genérica da União ou dos Estados, e só poderia ser tratada pela lei municipal nos casos em que alguma peculiaridade municipal assim o exigisse, conforme é a inteligência do inciso II do mesmo artigo 30. Como o artigo 156, III, da Constituição, expressamente estabelece que “Compete aos Municípios instituir impostos sobre...”, fica inequivocamente refutada a segunda opção e, por conseqüência, só se pode concluir que a competência tributária municipal é assunto de interesse local de todos os Municípios – tributo local. JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO confirma esse raciocínio, afirmando que a arrecadação dos tributos locais constituía, na Constituição anterior, assunto de “peculiar interesse” dos Municípios, assim como se consubstancia em assunto de “interesse local”, na atual Constituição.127 Confirma-se a assertiva pela certeza de que o exercício da competência tributária municipal tem sua validade diretamente extraível da Carta Constitucional, assim como a remissão à lei complementar, de que tratam o artigo 156, III – definição dos serviços tributáveis pelo ISS – e todos os incisos do artigo 146 – normas gerais de Direito Tributário – ambos da Constituição, não tem o condão de infirmar esse raciocínio. É que essa legislação, como o próprio nome está a indicar, só pode complementar a Constituição, e, assim mesmo, tal complementação está rigorosamente limitada aos vocábulos e expressões dotados de vagueza ou ambigüidade, com vistas a auxiliar a cumprir os desígnios constitucionais, impedindo a disparidade na interpretação de suas normas, por parte das diversas esferas competenciais. Procura-se, com esse raciocínio, somar argumentos que ratifiquem a aptidão constitucional outorgada aos Municípios para a criação dos tributos que lhes couberam na repartição das receitas tributárias, bem como oferecer resistência às teses que 126 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discriminação..., op. cit., p. 277-278. 62 pretendem conceder ao legislador complementar um poder que esse não tem, atitude que tem o efeito nefasto de centralizar o poder nas mãos de poucos, inviabilizando a autonomia na gestão política e administrativa pelos Municípios, o que, insista-se, é um fator que fragiliza os ideais republicanos e democráticos. Após demonstrar o papel superior dos princípios dentro do sistema jurídico, GERALDO ATALIBA acresce que, “[...] sendo a autonomia municipal expressamente figurada como um ‘princípio constitucional’, é à luz dela que se hão de interpretar as simples normas constitucionais e legislação infraconstitucional. [...] Os poderes do Congresso para – mediante lei complementar – definir os serviços tributáveis, não podem ser tais que anulem o sentido substancial dessa autonomia”. Amparado em CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, assinala que, por ser uma entidade constitucionalmente autônoma, o Município não pode ser encarado como uma autarquia, pois, ao contrário dessa, não se limita a cumprir leis feitas por outras pessoas jurídicas.128 Não restam dúvidas, portanto, de que a outorga constitucional da competência tributária aos Municípios é plena, admitido somente o delineamento posto pela própria Constituição, o que pode ser resumido na obrigatoriedade de observância dos demais princípios constitucionais, em especial os declinados dentre as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, conforme dispõem os artigos 150 a 152 da Lei Maior. Nas palavras autorizadas de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, “[...] seu poder heterônomo é constitucionalmente exclusivo e não pode ser limitado nem pela União, nem por Estados, Distrito Federal, ou obviamente por outros Municípios, conforme o princípio do destinatário territorial (o sujeito em seu território)”.129 JOSÉ ROBERTO VIEIRA lembra, com proveito, uma perspectiva de análise da autonomia municipal que a fortalece e ratifica ainda mais, pela qual esse princípio “[...] surge como corolário do Princípio Republicano, no mesmo sentido da realização da representatividade, estabelecendo o grau máximo de proximidade entre governantes e governados”.130 A relação da autonomia municipal, como princípio diretamente informado pelo princípio republicano, resulta, portanto, de interpretação coerente com o contexto constitucional. 127 Local da incidência tributária. Revista de Direito Tributário, p. 336. República..., op. cit., p. 72. 129 Competência tributária municipal. Revista de Direito Tributário, n. 53, p. 86. 130 Princípios constitucionais e Estado de Direito. Revista de Direito Tributário, n. 54, p. 103. 128 63 Pertinentes também são os argumentos de PAULO DE BARROS CARVALHO, quando, em artigo sobre os princípios constitucionais tributários, tece críticas ao artigo 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, dispositivo que, em flagrante desrespeito à isonomia constitucional das pessoas políticas, estabelece ordem de preferência entre elas na cobrança judicial de seus créditos tributários: Sabemos que as mensagens prescritivas dos arts. 29 a 31, da Constituição do Brasil, realizam o ‘princípio da autonomia dos Municípios’, confirmado pela análise do sistema vigente. Nada obstante, juristas de renome, menos inclinados ao ‘municipalismo’, conquanto não neguem a indigitada autonomia, reduzem drasticamente a relevância dessas pessoas políticas, em suas interpretações, chegando ao ponto de designá-las por ‘entes menores’. Esforçados nessa mesma inspiração, compreendem, ao pé da letra, o que preceitua o artigo 187, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, chegando ao resultado deplorável de admitir a ‘ordem’ que o dispositivo estabelece, com o que relegam os Municípios a uma condição de flagrante inferioridade em face dos Estados, do Distrito Federal e da União, sobre violarem de maneira frontal o princípio implícito da isonomia das pessoas políticas de Direito Constitucional interno.131 Não há como olvidar a coerência dos argumentos que pugnam pela necessidade de atribuir uma maior eficácia à lei complementar, com vistas a evitar uma corrosão da própria Federação, o que poderia ocorrer caso fosse permitido a cada um dos milhares de Municípios extrair, do respectivo núcleo constitucional – materialidade – a regramatriz dos tributos que lhes couberam na repartição de competências. Por outro lado, mais prejudicial seria permitir uma demasiada centralização na União Federal, o que relegaria a Federação a um aspecto meramente formal. Como bem observa OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, a inegável existência de argumentos distintos, porém coerentes, exige do intérprete e aplicador da norma o recurso ao princípio da proporcionalidade na solução das questões, princípio cujo vetor interpretativo é revelado de acordo com o contexto normativo, axiológico e fático existente no momento em que surge o conflito.132 Por outro lado, os limites jurídicos que restringem o exercício abusivo do direito à elisão tributária133, em torno dos tributos municipais, têm como um de seus 131 Sobre os princípios constitucionais tributários. Revista de Direito Tributário, n. 55, p. 149. A tributação dos serviços de registros públicos, cartorários e notariais. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 458459. 133 JOSÉ ROBERTO VIEIRA adverte que o adjetivo “fiscal” abrange as receitas, a gestão e as despesas, ou seja, todos os campos da atividade financeira do Estado, o que o identifica muito mais com “financeiro” do que com “tributário”. Com base nesse raciocínio, temos que a elisão, por se referir à eventual incidência ou não-incidência de uma norma tributária, pode perfeitamente ser adjetivada de “tributária” – 132 64 principais fundamentos o fato de a autonomia financeira ser a principal viabilizadora da autonomia político-administrativa dos Municípios. Por exemplo: no contexto do tema objeto do presente trabalho, o planejamento tributário consistente na transferência do estabelecimento de um prestador de serviços para um município vizinho, onde a alíquota do ISS seja reduzida, não será considerado válido se representar apenas uma alteração formal, com a continuidade da prestação dos serviços no município antigo. No subitem seguinte, que tratará do princípio da legalidade tributária, a questão dos limites do planejamento tributário será examinada, ainda que brevemente, em sua nova conformação, resultante da tipificação, no atual Código Civil, do abuso de direito (artigo 187) e da fraude à lei (artigo 166, VI), como ilícitos gerais, ou seja, aplicáveis a toda a ordem jurídica. 2.2.2 Princípio da Legalidade Tributária O artigo 5°, II, da Constituição, estabelece a máxima pela qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. É o princípio da legalidade, em sua disposição genérica, que pode ser traduzido como a mais clássica noção de liberdade, no sentido de que o cidadão é livre para fazer tudo aquilo que a lei não proíba. Tão grande é a importância e expressão do Princípio da Legalidade, que o mesmo foi incluído entre os direitos e garantias individuais, o que lhe garante a condição de cláusula pétrea, estando vedada qualquer deliberação sobre proposta de emenda à Constituição que até mesmo tenda a abolir essa garantia, conforme disposição do artigo 60, § 4°, IV da Constituição Federal de 1988. O termo “tenda” significa que a vedação de deliberação de propostas de emenda à Constituição não alcança somente aquelas que violem frontalmente a legalidade, mas impede também as que indiretamente venham a conflitar, seja com que intensidade for, com o primado da legalidade. No campo tributário, tamanha é a sua importância, que a grande maioria dos países, de uma forma ou de outra, o adotou em suas constituições, revelando que a sua essência constitui verdadeiro princípio geral de Direito. RAMÓN VALDÉS COSTA, ex-professor titular da Faculdade de Direito da Universidade da República do Uruguai, Prefácio. O direito de crédito do contribuinte: excelências e excrescências. In: CASSULI, Ceia Gascho. O direito de crédito do contribuinte, p. XIX-XX. 65 em acurado estudo sobre o Princípio da Legalidade no sistema uruguaio, ante o Direito Comparado, confirma esse entendimento, conforme se verifica desse seu raciocínio: 66 Seguramente ningún principio jurídico ha acumulado a través de siglos mayores adhesiones en la doctrina y en los Derechos Positivos, que el de la legalidad em materia tributaria. Con razón ha sido calificado como ‘principio común de Derecho Constitucional Tributario’ en virtud de su recepción expresa o implícita en las constituciones del Estado de Derecho Contemporáneo. Esta raigambre constitucional permite afirmar, como lo hemos hecho en repetidas oportunidades, que se trate de la proyección de un principio general de Derecho, en el campo específico de la rama juridíca que en este siglo hemos categorizado como Derecho Tributario.134 Quando visto sob a óptica da liberdade, o princípio da legalidade expressa uma permissão, visto, portanto, com um conteúdo positivo. Mas do ponto de vista de uma garantia, encerra uma proibição, que tem por destinatário o próprio Estado, no sentido de impedir que atos estatais não fundamentados em lei venham a atingir a liberdade ou a propriedade das pessoas – dever de abstenção. A legalidade está, dessa forma, dentre aqueles direitos que ROBERT ALEXY denomina de “derechos a acciones negativas” ou “derechos de defensa”.135 E, mais do que isso, a lei que fundamenta todo e qualquer ato estatal deve estar em consonância com as diretrizes maiores veiculadas pelos princípios constitucionais. Mesmo porque, do contrário, não seria lei, teria apenas aparência de lei, pois a expressão lei inconstitucional, em rigor, encerra uma contradictio juris. Ao contrário, portanto, do sentido que o princípio veicula quando os destinatários são os cidadãos – relação de compatibilidade com a lei, pode-se fazer tudo o que a lei não proíba – quando o destinatário é o Poder Público, surge obrigatoriamente uma relação de conformidade com a lei, o que se traduz na exigência de que toda e qualquer atividade realizada pelo Estado deva estar prevista em lei. Sobre as relações de compatibilidade ou conformidade com a lei, JOSÉ ROBERTO VIEIRA, amparado em CHARLES EISENMANN, entende o que chama de “concepção restritiva do princípio” como uma noção mínima de legalidade, correspondente ao que denominamos acima de relação de compatibilidade, indicada também pelo autor como uma “relação de não-contrariedade” com a lei, “[...] que só fixa limites”.136 Como o princípio da legalidade expressa a idéia de que o povo é governado “por si próprio”, através de seus representantes, seria um contra-senso admitir que fosse obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, ou, ainda, ter seu direito de propriedade atingido, por um ato que não represente a vontade popular. Por essa razão, a 134 135 El principio de legalidad. Revista de Direito Tributário, n. 38, p. 93-94. Teoria de los derechos fundamentales, p. 189. 67 Constituição exige que a administração pública esteja rigorosamente subordinada à lei, além de condicionar sua atividade aos princípios da moralidade, publicidade, impessoalidade, conforme dispõe o artigo 37 de nossa Carta Magna, pois o Estado existe em razão do interesse público e do bem comum. Sintetizando bem o tema, CARRAZZA sustenta que “[...] sendo a lei ‘a expressão da vontade geral’, é inimaginável que o povo possa oprimir a si próprio. Eis por que as matérias mais importantes são inteiramente reservadas à lei; é o caso das que dizem respeito à liberdade e à propriedade, v.g., penas, multas, tributos etc.”.137 Como observa VICTOR UCKMAR, o surgimento do parlamentarismo ocorreu na Europa da Idade Média, tendo em vista impedir que qualquer prestação pecuniária pudesse ser imposta sem anterior deliberação pelos órgãos legislativos. Para o autor italiano, é errônea a idéia generalizada de que a legalidade tributária tenha surgido com a Magna Charta, quando, durante o reinado de João sem Terra, os barões rebelaram-se contra a onerosidade dos tributos, citando o autor vários países nos quais, em épocas anteriores, já existiam formas de aprovação legislativa para a cobrança de tributos. O parlamentarismo surge, acrescenta o autor, tendo em vista a “[...] necessidade de se adequar entradas e despesas públicas”.138 Entretanto, JOSÉ ROBERTO VIEIRA esclarece que o destaque conferido pela doutrina à Magna Carta justifica-se plenamente “[...] pelas suas notáveis características de generalidade e abstração, que revelam sua natureza legal; enquanto os documentos medievais típicos, marcados pela especificidade e concretitude, não foram além de uma natureza meramente contratual”.139 Sendo a cobrança de tributos atividade que invade sobremaneira tanto a esfera da propriedade, como também a da liberdade dos cidadãos, é de concluir-se pela acentuada necessidade de que todas as fases inerentes à tributação, desde a sua instituição, passando pelos procedimentos de fiscalização, lançamento, recolhimento e também de sanção nos casos de descumprimento, rigorosamente obedeçam ao que foi estabelecido na lei em sentido formal e material, ou seja, lei que obedeceu aos requisitos constitucionais de elaboração e de aprovação. Dizendo de outra forma, a lei deve ser constitucional tanto no conteúdo como na forma. 136 Legalidade tributária ou lei da selva: sonho ou pesadelo. Revista de Direito Tributário, n. 84, p.104. Curso..., op. cit., p. 217. 138 UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário, p. 21-22. 139 Prefácio. O direito..., op. cit., p. XI-XII. 137 68 Por essas razões, a exigência de lei em matéria de tributos é representada pelo brocardo nullum tributum sine lege, à semelhança do existente no Direito Penal, onde nullum crimen nulla poena sine lege. Ressalte-se, contudo, que, no Direito Tributário, o princípio ganhou maior intensidade, conforme se depreende da leitura do artigo 108, §§ 1° e 2°, do Código Tributário Nacional, os quais, respectivamente, estabelecem que “O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei” e “O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido”. Essa maior intensidade do Princípio da Legalidade da Tributação é, também, demonstrada pela expressão reserva absoluta de lei140, o que significa dizer que não basta a existência de lei formal como fundamento da instituição de um tributo, sendo necessário que essa lei esteja revestida de características especiais, ou seja, que traga em seu conteúdo todos os elementos necessários a identificar, com previsibilidade, todos os fatos que se subsumam na previsão normativa, assim como todos os que com ela não se compatibilizem, por não se adequarem ao tipo tributário em todos os seus aspectos. Comentando a exigência de reserva absoluta de lei em relação ao ISS, que é o tributo objeto de nosso estudo, AIRES BARRETO ensina: A reserva relativa de lei formal [...] não satisfaz, nem é suficiente à instituição ou aumento do ISS. Em relação a este, não basta a existência de lei como fonte de produção jurídica específica; requer-se a fixação, nessa mesma fonte, de todos os critérios de decisão, sem qualquer margem de liberdade ao administrador. [...] Vigora, destarte, nessa matéria, aí incluído o ISS, o princípio da reserva absoluta de lei formal. [...] Não basta a lex scripta; indispensável ainda uma lex stricta, equivalendo esta à subtração dos órgãos do Executivo de quaisquer elementos de decisão, que haverão de estar contidos na lei mesma.141 Essa exigência, sob a égide da Carta anterior – Emenda Constitucional nº 1, de 17 out. 1969 – resultava da inteligência de seu artigo 153, § 2º, dispositivo que previa a legalidade genérica e, especificamente no âmbito tributário, do artigo 19, I. 142 Em nível infraconstitucional, a previsão constava do caput, incisos e § 1º do artigo 97 do Código 140 Registre-se que, no Direito brasileiro, por força do Princípio da Legalidade genérica, previsto no artigo 5º, II, da Constituição de 1988, pelo qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, a expressão “reserva absoluta de lei” não pode resultar na conclusão de que algumas matérias estão reservadas à previsão legal, enquanto outros assuntos poderiam ser previstos em norma infralegal, como os decretos, por exemplo, pois todos os direitos e deveres devem ter previsão na lei, salvo se já estiverem previstos, de forma suficiente, em norma de hierarquia superior. 141 ISS na constituição e na lei, p. 13-14. 142 “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - instituir ou aumentar tributo sem que a lei o estabeleça, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;” 69 Tributário Nacional, dispositivos válidos até hoje, face à sua recepção pela atual Constituição, e que prevêem o seguinte: “Somente a lei pode estabelecer: I - a instituição de tributos, ou a sua extinção; II - a majoração de tributos, ou sua redução ...; III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal ...; IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo ...; [...] § 1º Equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso.” Mas em 1988 essa garantia foi consagrada pela nova Constituição, que além de prever a legalidade tributária no artigo 150, I, o qual estabelece que “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”, foi além, no seu artigo 146, III, “a”, dispositivo que reservou à lei complementar a competência absoluta para definir, em relação aos impostos, seus elementos essenciais: “Cabe à lei complementar: estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”. ALBERTO XAVIER, jurista que se destacou no estudo da legalidade e da tipicidade da tributação, afirma que a alínea “a” do inciso III do artigo 146 nada mais seria que a consagração do Princípio da Tipicidade da tributação, pelo qual se exigiria que a lei complementar definisse os “elementos essenciais” dos tributos, que são o fato tributário, a base de cálculo e o contribuinte. Esclarece o autor que, apesar de o artigo 146, III, “a”, somente mencionar a tipicidade “[...] em relação aos impostos discriminados nesta Constituição”, a regra seria aplicável também aos impostos da competência residual da União, pois o artigo 154, I, da Constituição Federal de 1988, exige que os impostos que eventualmente venham a ser criados pela União “[...] sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”, resultando na conclusão de que tais impostos deverão ter definido, também, todo o seu respectivo tipo tributário, para impedir a ocorrência do fenômeno do “bis in idem”. Disso resultaria que, em matéria de impostos, cabe “única e exclusivamente” à lei complementar definir os respectivos tipos 70 tributários, em um procedimento de determinação do núcleo essencial do tributo, que já é tipificado na própria Constituição.143 Entende-se, no entanto, que tanto o Princípio da Legalidade Tributária, como o seu corolário da Tipicidade Fechada, existem independentemente da previsão do inciso III, “a”, do artigo 146 da Constituição. Com efeito, concorda-se com a visão de ALBERTO XAVIER, desde que tal consagração da tipicidade tributária, pela lei complementar, ocorra como uma eventual conseqüência da instituição de normas gerais, pois estas têm seu conteúdo limitado a dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária ou regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e, dentre essas últimas, somente aquelas que requerem complementação, por não se constituírem em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata. É por decorrência, portanto, da reserva absoluta de lei formal que o Princípio da Legalidade assume conteúdo extremamente rígido, que se manifesta através de outro princípio, o da Tipicidade da Tributação, que deverá ser observado tanto na criação, como na majoração dos tributos. AIRES BARRETO, aplicando esse raciocínio ao ISS, defende ser inafastável que somente a lei possa definir a norma tributária do ISS, o que exige estejam explicitados, na lei, tanto os critérios que compõe a hipótese de incidência – material, temporal e espacial – como os que tratam do conseqüente, como o pessoal (sujeitos ativo e passivo) e quantitativo (base de cálculo e alíquota), resultando assim na construção daquilo que se tem denominado de tipo fechado ou tipo cerrado, por não ensejar dilargamento pelo aplicador da lei.144 A cada um dos entes políticos caberá, através de suas respectivas leis ordinárias, decidir se instituem ou não os tributos que lhe couberam na repartição de competências, podendo até mesmo ficar aquém do que dispôs a lei complementar, nunca podendo, entretanto, ir além, sob pena de instituir-se tributos sobre fatos que não se encontram dentro de sua faixa de competência, tal como estabelecida pela Constituição. E quais são as razões do rigor com que se expressa o Princípio da Legalidade na tributação? Com a conquista do Estado Democrático de Direito, o cidadão recebeu da Constituição prerrogativas, positivadas sob a rubrica de direitos fundamentais – artigo 5° da Constituição Federal de 1988 – e que certamente possuem hierarquia superior à de qualquer norma relativa à tributação. O setor da tributação, por sua vez, sempre se 143 Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p. 21-22. 71 revelou “generoso” em desrespeitar os direitos e garantias dos cidadãos, e, como a atividade de tributar atinge diretamente o direito de propriedade das pessoas, podendo afetar drasticamente também o seu direito à liberdade – seja a clássica de ir e vir, como também a livre iniciativa, prevista no artigo 170 da Constituição – necessário foi que o Princípio da Legalidade fosse qualificado por regras que vinculassem estritamente tanto o aplicador da lei, como o próprio legislador, tudo com o fim maior de assegurar a observância ao Princípio da Segurança Jurídica e que, em síntese, visa garantir a previsibilidade nas relações jurídicas.145 É nesse sentido o raciocínio de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, conforme se observa nessa sua crítica: chama-nos a atenção que, em um Estado Democrático de Direito, a cada inovação fiscal, ainda temos que nos preocupar com normas basilares do direito tributário e que há muito já deveriam ter sido incorporadas à atuação dos poderes públicos. Se hoje descobrimos a importância para a tributação de princípios como a boa-fé, a moralidade, a eficiência, a proporcionalidade, por outro lado, ainda não conseguimos superar a fase da legalidade tributária. Há um eterno retorno a esse princípio cada vez que nova legislação é produzida. Não só porque o executivo passou a amealhar uma maior gama de funções legislativas, mas porque se verificou que o Legislativo também é capaz de ser tão agressor da Constituição quanto aquele.146 Acrescenta o autor, entretanto, que, paradoxalmente, percebe-se que a legalidade tributária é um princípio privilegiado, ao menos do ponto de vista normativo, destacando uma estreita ligação desse princípio com a segurança jurídica, com o que se pode nele enxergar três facetas, muito bem definidas: “[...] a) legalidade constitucional (princípio da constitucionalidade), porque a instituição e a regulamentação dos tributos somente podem ser feitas com autorização constitucional e nos limites dessa; b) reserva de lei, porque, além da autorização constitucional, a instituição e estruturação dos tributos somente podem ser feitas por lei; e c) legalidade administrativa, na medida em que a cobrança e a fiscalização dos tributos somente podem ser feitas nos limites autorizados por lei”.147 O artigo 3º do Código Tributário Nacional, ao dispor que tributo é uma prestação instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, faz expressa menção à legalidade, tanto na criação como na exigência do tributo. 144 ISS…, op. cit., p. 14. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, p. 148. 146 A tributação..., op. cit., p. 455-456. 147 Ibidem, p. 456. 145 72 O Princípio da Legalidade na Tributação também se encontra estreitamente relacionado com o Princípio da Divisão de Poderes, pois sua observância também objetiva impedir que a tarefa de instituição e/ou majoração de tributos, que pela Constituição é reservada exclusivamente ao Poder Legislativo, possa vir a ser exercida, ainda que de modo indireto ou oblíquo, pelo Poder Executivo e pelo Poder Judiciário.148 Vedadas são, portanto, quaisquer inversões que deleguem aos poderes Executivo ou Judiciário competência para complementar, completar ou delimitar o tipo tributário. Como bem lembra SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, “[...] o jus tributandi, antes apanágio dos reis, é agora indeclinável função dos parlamentos”.149 Interessante observar que, mesmo com o advento do Estado Social de Direito, e, após, com a sua evolução para um Estado Democrático de Direito, quando ao Executivo foi atribuída uma imensidão de novas responsabilidades, não houve enfraquecimento do primado da Legalidade Tributária. Ao contrário, como se pode observar em nossa Constituição, as disposições em matéria tributária, ao invés de serem reduzidas, foram substancialmente aumentadas, vinculando a atividade de tributar às disposições de um verdadeiro Estatuto do Contribuinte. Como aspecto negativo, temos, infelizmente, o histórico do indiscriminado e abusivo uso de medidas provisórias em matéria tributária, problema que não foi resolvido, mesmo com o advento da Emenda Constitucional n° 33/2001, a qual objetivou minimizar os problemas da utilização em massa desse instrumento normativo. Não há espaço, por fim, para aqueles que pretendem reduzir o alcance da estrita Legalidade Tributária, defendendo que, mediante o Princípio da Isonomia Tributária, poderia o aplicador da lei tributar um negócio jurídico não tipificado em norma tributária, devido a ele possuir o mesmo conteúdo econômico – mesma capacidade contributiva – de uma outra forma jurídica, prevista em hipótese de incidência tributária. Esse raciocínio é fruto da chamada interpretação econômica ou funcional do fato gerador, teoria elaborada por ENNO BECKER na Alemanha e consagrada na Abgabenordnung em 1919150; tendo, mais tarde, sido direcionada aos fins 148 XAVIER, Alberto. Tipicidade..., op. cit., p.26. Curso..., op. cit., p. 199. 150 Código Tributário Alemão. Em 1977, com o advento do novo Código Tributário, a interpretação econômica foi revogada na Alemanha. 149 73 do nazismo.151 No Brasil, um dos maiores defensores da interpretação econômica foi AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, conforme denuncia a seguinte afirmativa: Em Direito Tributário, autoriza-se o intérprete, quando o contribuinte comete um abuso de forma jurídica (“Missbrauch von Formen und Gestaltungsmöglichkeiten dês bürgerlichen Rechts”), a desenvolver considerações econômicas para a interpretação da lei tributária e o enquadramento do casso concreto em face do comando resultante não só da literalidade do texto legislativo, mas também do seu espírito da mens ou ratio legis. [...] Para que tal aconteça, é necessário que haja uma atipicidade da forma jurídica adotada em relação ao fim, ao intento prático visado.152 No entanto, apesar de defender a interpretação econômica, o mesmo autor demonstra a impossibilidade de adotar-se a analogia em sede de Direito Tributário, sob o argumento de que ela é forma de integração da lei, e não de sua interpretação, o que parece encerrar uma contradição científica, pois aplicar uma norma tributária (tipo) específica para um fato de conteúdo econômico equivalente – porém juridicamente diverso – nada mais é do que aplicar a analogia, vedada, de resto, pelo § 1º do artigo 108 do Código Tributário Nacional. Para fins tributários, o que são análogos nos fatos são os seus respectivos conteúdos econômicos, ou, dizendo de outra forma, a capacidade contributiva revelada. Não por outra razão é que ela, a capacidade contributiva, é o critério de discrímen do Princípio da Isonomia Tributária. A questão crucial que se impõe está na exigência de que a isonomia, além de dever estar presente quando da criação da lei, é princípio, nessas condições, a ser invocado pelo contribuinte, e nunca pelo fisco, salvo casos em que a conduta daquele esteja contaminada por alguma ilicitude. No Brasil, infelizmente, com o advento da Lei Complementar n° 104, de 10 jan. 2001, que acrescentou um parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional, e após, com a Medida Provisória n° 66, de 29 ago. 2002, tentou-se introduzir em nosso ordenamento a interpretação econômica do fato gerador, através de uma norma geral antielisão, visando dificultar a realização do planejamento tributário, mesmo o lícito.153 Em boa hora, a Lei n° 10.637, de 30 dez. 2002, resultado da conversão da MP 66/2002, não contemplou os artigos que tratavam da desconsideração 151 NOGUEIRA, Johnson Barbosa. A teoria da interpretação econômica frente ao princípio da legalidade. In: Escola de Administração Fazendária – ESAF (coord.). Anais do seminário internacional sobre elisão fiscal, p. 45-46. 152 O fato gerador da obrigação tributária, p. 21. 153 “Artigo 116. [...] Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a 74 de negócios jurídicos, e que tinham como um dos fundamentos a interpretação econômica. Com relação ao citado parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, boa parte da doutrina tem se pronunciado no sentido de que, se a intenção do legislador era introduzir mecanismos que possibilitassem ao fisco desconsiderar negócios jurídicos originalmente não tributados, para então equipará-los a outros negócios jurídicos previstos em normas tributárias, tal não foi o resultado, posto que somente possibilita ao fisco desconsiderar negócios jurídicos praticados com simulação, o que, de resto, já era previsto no artigo 149, VII, também do Código Tributário Nacional154. Por outro lado, caso interprete-se o referido parágrafo único, do artigo 116, como apto a introduzir uma norma geral antielisão, fundamentada em uma interpretação econômica, esse objetivo, além de encontrar óbices intransponíveis nos princípios da Legalidade e da Tipicidade tributárias, “[...] jamais poderia ser atingido sem a revogação do § 1° do artigo 108 do Código Tributário Nacional, segundo o qual o emprego da analogia não pode resultar na exigência de tributo não previsto em lei”.155 Não se quer, porém, defender uma posição ultrapassada do Princípio da Legalidade Tributária, como se fosse um instrumento perverso a justificar, por exemplo, negócios jurídicos praticados em flagrante exercício abusivo do direito. É importante, entretanto, compreender que o Princípio da Legalidade Tributária, como, aliás, ocorre em qualquer outro ramo do direito, deve ser interpretado de forma condizente com as novas exigências advindas do Estado Democrático de Direito, modelo que, como todo Estado de Direito, sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da equalização das condições dos socialmente desiguais, como ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA, pois se a Constituição é a origem das aspirações às transformações políticas, econômicas e sociais, a lei, como desdobramento do conteúdo constitucional, é instrumento de natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. 154 Como exemplo, vide, com proveito, O Planejamento Tributário e a Lei Complementar 104, sob a coordenação de Valdir de Oliveira Rocha, Dialética, São Paulo, 2002. “Artigo 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: [...] VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;” 155 TROIANELLI, Gabriel Lacerda. Comentários aos novos dispositivos do CTN: a LC 104, p. 27-44. 75 transformação democrática da sociedade.156 O desafio reside em consolidar esse novo paradigma da Legalidade Tributária no Direito brasileiro, sem prejuízo das garantias já conquistadas pelos contribuintes, em defesa dos abusos constantemente cometidos pelos fiscos federal, estaduais e municipais. É nesse novo contexto que parte da doutrina passou a defender que a possibilidade de o fisco desconsiderar planejamentos tributários não se restringe mais às tradicionais hipóteses do artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional, ou seja, quando restarem demonstrados o dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do atual Código Civil, que positivou as figuras do abuso de direito (como ato ilícito) e da fraude à lei (como ato nulo), surgiu a tese de que o fisco passou a ter o poder-dever de lançar o tributo também nessas novas hipóteses. 157 Isso implica uma nova definição dos limites em que o planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária (lícita) para tipificar caso de evasão tributária (ilícita). Nesse sentido é o pensamento de MARCO AURÉLIO GRECO158, de DOUGLAS YAMASHITA159 e de LUCIANO ALAOR BORGO160, por exemplo. No entanto, essa tese ainda está longe de ser pacífica, havendo boa parte da doutrina que defende só haver evasão fiscal nas hipóteses de dolo, fraude e simulação, posto que previstas no seio do Direito Tributário – artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional. Esse é o entendimento, por exemplo, de ALBERTO XAVIER.161 Contudo, entende-se que o abuso de direito e a fraude à lei não são figuras de aplicação restrita às relações privadas, o que alguns defendem em razão da positivação desses institutos no Código Civil. Uma premissa importante e também inafastável reside no entendimento de que os dispositivos do Código Civil não pertencem apenas ao Direito Privado. Deve-se lembrar que a Lei de Introdução ao Código Civil, e a parte geral do próprio código, por exemplo, tratam de temas que dizem respeito a todos os ramos jurídicos, inclusive os ramos do direito público, não sendo o Direito Tributário exceção a essa regra. 156 Curso..., op. cit., p. 121-122. “Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” “Artigo 166. É nulo o negócio jurídico quando: [...] VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa.” 158 Planejamento tributário. 159 Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso do direito e da fraude à lei. 160 Elisão tributária: licitude e abuso do Direito, p. 329-333. 161 Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. 157 76 Nesse contexto estão, por exemplo, as regras sobre a vigência e a eficácia das normas jurídicas, as disposições sobre os fatos, atos e negócios jurídicos, regime das pessoas naturais e pessoas jurídicas, inclusive as de direito público etc. Esse é o entendimento de SÍLVIO DE SALVO VENOSA162, MARIA HELENA DINIZ163, assim como de MIGUEL REALE, para quem “[...] nada mais errôneo do que pensar que o que se encontra num livro de Direito Civil seja sempre Direito Civil”.164 Seria ilógico, portanto, que alguém pudesse defender que um planejamento tributário é legítimo, ainda que fundamentado em negócio nulo e/ou ilícito, apenas porque não há norma especificamente tributária que o tipifique dessa forma. A questão relaciona-se intimamente com o princípio da legalidade tributária, porque, regra geral, as hipóteses de planejamento tributário, contaminadas por abuso de direito e/ou fraude à lei, têm, como fundamento uma interpretação da norma tributária que conclui pela não incidência e/ou incidência reduzida, mas que, apesar de ser um dos sentidos literais possíveis, é violadora de algum princípio jurídico de maior hierarquia. Ou seja, o contribuinte não pode invocar o Princípio da Estrita Legalidade Tributária diante de uma interpretação literal que contraria, por exemplo, o Princípio da Isonomia Tributária. Esse é o entendimento, por exemplo, de RICARDO LOBO TORRES.165 Nesse sentido é o acórdão proferido nos autos da Apelação Cível nº 115.478/RS, do extinto Tribunal Federal de Recursos. Nesse processo, discutiu-se a viabilidade da criação de oito sociedades pelos mesmos sócios de uma única indústria fornecedora, com o fim de possibilitar a opção pelo lucro presumido, regime a que a mesma não teria direito por ser de grande porte. Embora não tenha considerado a operação nem simulada nem fraudulenta, definiu-a como ilícita e evasiva, por ofensa ao Princípio da Igualdade: AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. IMPOSTO DE RENDA. LUCRO PRESUMIDO. OMISSÃO DE RECEITA. Legitimidade da atuação do Fisco, em face dos elementos constantes dos autos. Constituídas foram, no mesmo dia, de uma só vez, pelas mesmas pessoas físicas, todas sócias da autora, 8 (oito) sociedades com o objetivo de explorar comercialmente, no atacado e no varejo, calçados e outros produtos manufaturados em plástico, no mercado interno e no internacional. Tais sociedades, em decorrência de 162 Direito civil: parte geral, p. 93. Curso de Direito civil brasileiro, v.1, p. 54. 164 Lições preliminares de Direito, p. 15. 165 A norma antielisão, seu alcance e as peculiaridades do sistema tributário nacional: objeto da norma, efeitos na aplicação, fundamentos e limites, abrangência, pressupostos, avaliação de motivos, condição de aplicação. In: Escola de Administração Fazendária – ESAF (coord.). Anais do seminário internacional sobre elisão fiscal, p. 208. 163 77 suas características e pequeno porte, estavam enquadradas no regime tributário de apuração e resultados com base no lucro presumido, quando sua fornecedora única, a autora, pagava o tributo de conformidade com o lucro real. Reconhece-se à recorrente, apenas, o direito de compensação do Imposto de Renda pago pela aludidas empresas. Reforma parcial da sentença.166 Outra questão delicada diz respeito à eventual necessidade de a nulidade ou ilicitude ser previamente declarada pelo Poder Judiciário, interpretação que poderia resultar do artigo 168, parágrafo único, do Código Civil, pelo qual “As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes.” Em que pese o teor do dispositivo, ressalte-se que, em sede de lançamento tributário, nunca houve necessidade de declarar que o ato foi praticado com dolo, fraude ou simulação, pois, em tais casos, a desconsideração pelo fisco tem efeitos apenas no âmbito tributário, permanecendo o negócio válido perante as partes, pelo menos até que uma sentença judicial definitiva afirme o contrário. Com os atos nulos e/ou ilícitos, o raciocínio parece deva seguir o mesmo caminho. Entretanto, não cabe, nos limites deste trabalho, adentrar na polêmica instaurada entre os defensores de ambas as teses. A intenção de examinar, ainda que brevemente, o tema dos limites do planejamento tributário, é dar relevo à importância da receita tributária do ISS como instrumento viabilizador da autonomia financeira dos Municípios e, em especial, porque essa autonomia financeira é concretizadora das suas autonomias política e administrativa. Como já foi visto no subitem anterior, os ideais da República e da Democracia são tanto mais prestigiados quanto maior é a observância do princípio da autonomia municipal, tendo em vista que aqueles valores exigem uma possibilidade efetiva de os cidadãos fiscalizarem a gestão dos recursos públicos pelos seus representantes. Inserindo essa análise no contexto do presente estudo, a importância da receita do ISS para os Municípios reforça a necessidade de observância do local de ocorrência 166 Apelação Cível no 115.478-RS, Ac. da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, de 18.2.87, Rel. Min. Américo Luz, Revista do Tribunal Federal de Recursos 146: 217, 1987. Às fls. 5 do voto consta o entendimento de que a operação violou o princípio da igualdade de tratamento tributário: “As respostas do laudo não infirmam essa conclusão (a de que as oito sociedades não teriam finalidade própria), porquanto enfatizam o envoltório jurídico das operações cuja finalidade era acobertar a receita representada pela diferença financeira resultante da justaposição de regimes tributários, privilegiados (lucro presumido), de um lado, do lucro real de outro. Eis um efeito tributário ilícito, não meramente elisivo, conclusão a que se chega inclusive pela via do absurdo que representa o garantir à autora o beneplácito a um procedimento que quebra o princípio da igualdade de tratamento tributário perante a comunidade de contribuintes”. 78 do fato tributário desse imposto, tal como extraído da Constituição Federal, para que os Municípios tenham garantia da arrecadação sobre todos os serviços que, perante a Lei Maior, sofrerem a incidência das respectivas leis locais. Essa exigência demanda o respeito pelo critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, não só pelos Municípios, mas também se dirige aos contribuintes, de forma a servir como mais um forte argumento a deslegitimar os planejamentos tributários realizados com o objetivo de reduzir esse ônus tributário, sempre que se demonstrar serem ilícitos os atos ou negócios jurídicos que lastreiam tais operações. 2.2.3 Princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva A Constituição da República, em seu artigo 150, II, prescreve que “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”. Verifica-se que este dispositivo recepcionou a tradicional visão aristotélica, pela qual o princípio da isonomia consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na razão de suas desigualdades. Embora a legitimidade do princípio o constitua em primado inafastável, seu alto grau de abstração é insuficiente para que tenha eficácia satisfatória junto ao mundo fenomênico, posto não estabelecer quais os critérios hábeis a identificar as desigualdades em cada caso. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, a partir dessa verificação, a que ele resume afirmando que, apesar de reconhecer nesta afirmação “[...] sua validade como ponto de partida, deve-se negar-lhe o caráter de termo de chegada”, o que leva à imprescindibilidade de saber, para fins jurídicos, quem são os iguais e quem são os desiguais.167 O referido autor, após questionar qual espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem violação aos objetivos do princípio constitucional da isonomia, conclui que “[...] as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente 167 Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 10-11. 79 quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição”.168 A Igualdade Tributária, no ensinamento de PAULO DE BARROS CARVALHO, está intimamente ligada ao conteúdo econômico dos fatos escolhidos pela lei impositiva, os quais são mensurados pela base de cálculo. Quando o legislador, ao escolher os fatos tributários, opta pelos que expressem signos de riqueza econômica, observa a chamada capacidade contributiva absoluta ou objetiva. Quando, ato contínuo, ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição dos participantes de forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido, realiza a capacidade contributiva relativa ou subjetiva. Com efeito, é dessa forma que se realiza o Princípio da Igualdade previsto no artigo 5º, caput da Constituição Federal.169 Confirma o raciocínio AIRES BARRETO: “Lanço por lanço, dispositivo por dispositivo, vê-se na Constituição a afirmação e reiteração de que a outorga de competência para a criação de tributo se circunscreve a manifestações de capacidade contributiva”.170 Portanto, no âmbito do direito tributário, de regra, o critério a ser utilizado para estabelecer discriminações, pelo menos no que tange aos impostos, somente pode ser o critério da Capacidade Contributiva, conforme, aliás, explicita o § 1º do artigo 145 da Lei Maior, o qual exige que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]”. Dizemos “de regra”, e a expressão constitucional “sempre que possível” confirma a assertiva, em razão de haver, na própria Constituição, autorização para que sejam instituídos impostos cuja maior ou menor intensidade, na cobrança, tenha finalidade extrafiscal, como é exemplo o caso das alíquotas progressivas do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU, visando o atendimento da função social da propriedade, afastando-se, nesses casos, a Capacidade Contributiva. No entanto, a extrafiscalidade, como bem adverte JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “[...] é uma medida excepcional em face da via regular dos tributos que é a finalidade arrecadatória, que é o abastecimento dos cofres públicos”.171 168 Ibidem, p. 17. Curso..., op. cit., p. 336-337. 170 BARRETO, Aires Fernandino. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais, p. 26. 171 IPI e extrafiscalidade. Revista de Direito Tributário, n. 91, p. 76. 169 80 Em matéria tributária, ensina AIRES BARRETO, a agressão ao princípio verifica-se de forma mais constante pela inadequação da base de cálculo, como ocorre, por exemplo, com os chamados “tributos fixos”. É que a análise do Princípio da Capacidade Contributiva, em conjunto com a função constitucional da base de cálculo de servir de critério de distinção das espécies tributárias, assim como o de indicar os limites das competências tributárias – conforme ilustra o artigo 154, da Constituição Federal de 1988 – revela a inconstitucionalidade dessa sistemática impositiva. 172 Para o autor, o Princípio da Capacidade Contributiva: é diretriz que impõe ao legislador ordinário, cumulativamente, a escolha de fatos com conteúdo econômico e a eleição de critério de mensuração (base de cálculo) ad valorem. [...] Em face dos impostos, fere-se o princípio, seja pela eleição de fato sem conteúdo econômico, seja pela adoção de base de cálculo não lastreada no valor. [...] No caso do ISS, a eventual tributação fixa esbarra nesse entrave, implicando instituição e exigência de tributo inconstitucional.173 No que se refere ao tema objeto deste estudo, é importante registrar que os numerosos conflitos de competência entre Municípios, sobre qual seja o titular da receita tributária do ISS, têm freqüentemente causado a cobrança do imposto em duplicidade, em relação a prestadores de serviço que, estabelecidos em um Município, prestam seus serviços em outro, em flagrante violação dos princípios da Isonomia, da Capacidade Contributiva, e da Vedação de Tributo com Efeito de Confisco. 2.2.3.1 Solidariedade Social e Tributação Com o advento do Estado Social e Democrático de Direito, ganhou força a tese que defende a necessidade de interpretar a relação jurídica tributária de forma contextualizada com o valor constitucional da solidariedade social. Ainda que em todo o capítulo da Constituição Federal de 1988, dedicado ao Sistema Tributário Nacional – Capítulo I, Título VI – não se encontre disposição expressa sobre o assunto, é de rigor concluir que o preceito contido no artigo 3º, I, da Lei Maior, pelo qual “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; ...”, tem aplicação obrigatória em relação a todos os demais dispositivos constitucionais. Registre-se também a expressão constante do seu preâmbulo, a qual indica o ideal de uma “sociedade fraterna”. Isso não significa, porém, 172 Ibidem, p. 134. 81 que a busca da solidariedade social prevalecerá sempre sobre todas as demais normas constitucionais, pois sempre existirão situações onde restará configurada a supremacia de outros valores, também positivados no texto constitucional. De início, é relevante identificar o significado da expressão “solidariedade social”. MARCIANO SEABRA DE GODOI esclarece que o termo solidariedade, apesar de plurívoco, “[...] aponta sempre para a idéia de união, de ligação entre as partes de um todo...”, e que etimologicamente, “[...] o termo remonta a termos latinos que indicam a condição de sólido, inteiro, pleno”. Mas, em seu sentido jurídico – que é o que interessa ao nosso trabalho – a solidariedade social “[...] remonta à idéia próxima de justiça social, conceito típico do início do século XX”.174 A solidariedade de que trata a Constituição, no entanto, é a solidariedade genérica, referente à sociedade como um todo, em oposição à solidariedade de grupos sociais homogêneos, a qual se refere a direitos e deveres de um grupo social específico. Por força da solidariedade genérica, é lógico concluir que cabe a cada cidadão brasileiro dar a sua contribuição para o financiamento do “Estado Social e Tributário de Direito”.175 Vários autores que se debruçaram sobre o tema identificaram o Princípio da Capacidade Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º, da Constituição, como o vínculo essencial entre a tributação e a solidariedade social.176 Ou seja, o contribuinte cumpre com seu dever de solidariedade, no meio social, quando efetivamente contribui para a manutenção dos gastos estatais – através do recolhimento dos tributos que lhe são exigíveis – na exata medida de sua capacidade contributiva. Nas palavras de JOSÉ CASALTA NABAIS, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, “[...] a simples existência de um Estado Fiscal convoca desde logo uma idéia de justiça, que se não contém nos estritos quadros de uma justiça comutativa, como seria a concretizada num Estado financeiramente suportado por tributos bilaterais ou taxas, figura tributária cuja medida se pauta pela idéia de equivalência”.177 O autor lusitano acrescenta que tal não ocorre em um “Estado Fiscal”, 173 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na lei, p. 13. Tributo e solidariedade social. In:.GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade social e tributação, p. 142. 175 YAMASHITA, Douglas. Princípio da Solidariedade em Direito Tributário. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 59-60. 176 YAMASHITA, Douglas. Princípio da Solidariedade..., op. cit., p. 160. 177 Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade social e tributação, p. 128. 174 82 que é suportado por todos ou, em especial, por aqueles que revelem capacidade contributiva. Disso resulta que o conjunto dos contribuintes deva suportar o custeio de todos os serviços públicos, que beneficiam todos os cidadãos, sejam ou não contribuintes, do que surge a idéia de justiça distributiva, traduzida na redistribuição dos rendimentos dos contribuintes para os que não sejam contribuintes. Conclui que essa situação tem, como importante aspecto, o fato de que a lei criadora do tributo teve a participação democrática tanto dos representantes dos contribuintes, como dos não contribuintes, o que não ocorria durante a vigência do sufrágio censitário. Com efeito, entende o autor que a máxima inglesa “no taxation without representation” passou a ter um sentido mais democrático do que a clássica noção da “autotributação”. 178 Na doutrina brasileira, MARCO AURÉLIO GRECO é um dos autores que mais se destacam no exame dessa questão: Esta mudança do perfil do Estado repercute, também, no âmbito da tributação, que deixa de ser vista da perspectiva do confronto entre contribuinte e Fisco – a partir do que as respectivas normas constitucionais assumem o papel de instrumentos de limitação do poder do Estado e proteções ao patrimônio do indivíduo – para ser vista como instrumento de viabilização da solidariedade no custeio do próprio Estado. Daí a capacidade contributiva ser guindada à condição de princípio geral do sistema tributário, a teor do § 1º do art. 145 da CF.179 Infelizmente, é um fato cultural e histórico o contribuinte desconfiar do Estado, assim como ver na arrecadação dos tributos uma “subtração”, em vez de uma contribuição a um Erário comum. Diante disso, o tema da solidariedade é fundamental, porque leva a uma reflexão sobre as razões pelas quais se pagam tributos, ou porque deva existir uma lealdade tributária. Inegável, todavia, que esse “mal-estar” em pagar tributos resulta de uma gestão corrupta das receitas arrecadadas, serviços públicos ineficientes, assim como de uma carga tributária muitas vezes distribuída de forma não equânime.180 Para CLÁUDIO SACCHETTO, catedrático de Direito Tributário e Internacional, Comunitário e Comparado da Universidade de Turim, “Como corolário da solidariedade, no campo fiscal, surgiu a reconstrução do dever tributário como um dever de concorrer para a própria subsistência do Estado e não como uma prestação correspectiva-comutativa diante da distribuição de vantagens específicas para o 178 NABAIS, José Casalta. Solidariedade Social..., op. cit., p. 128-129. Planejamento tributário, p. 284. 180 SACCHETTO, Cláudio. O Dever de Solidariedade no Direito Tributário: o ordenamento italiano, in GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 11. 179 83 obrigado”.181 Pagar tributos, portanto, é um dever constitucional, que deve ter como perspectiva não o caráter impositivo, porque oriundo do império da lei, mas da consciência jurídica de que a lei criadora do tributo reflete a vontade e a decisão de todos, quanto à necessidade de custeio dos encargos estatais por todos os cidadãos, na medida da capacidade econômica de cada um. Daí a noção do vocábulo “contribuinte”, pois o dever de contribuir para as despesas públicas é um dever individual de solidariedade social, pela simples razão de pertencer a uma comunidade. O autor citado defende, com acerto, que não é mais possível considerar o tributo como prestação coercitiva apenas porque sua instituição está submetida à reserva de lei, pois “[...] legalidade e autoridade não são mais correlatas”. O Princípio da Legalidade passou a representar, nos Estados Republicanos, a vontade expressa de forma democrática pelo povo, que é o único titular da soberania. Acrescenta o autor: “Um dever de solidariedade fiscal só pode ter como referência a comunidade. A repartição das despesas públicas só pode ser, in primis, perante bens e serviços indivisíveis, portanto, bens e serviços que devem ser colocados à disposição de todos. Não faz sentido um tributo a cargo de um único indivíduo beneficiário do serviço público;...”.182 Do raciocínio do professor italiano resulta clara a idéia de que a solidariedade social, no âmbito tributário, aplica-se também na exigência de os tributos – com destaque para os impostos – serem suportados por todas as pessoas que revelem capacidade contributiva, não tendo a Constituição estabelecido uma contrapartida direta a ser suportada pelo Estado, o que somente ocorre com os chamados tributos vinculados, como a taxa e a contribuição de melhoria. A idéia ganha coerência quando lembramos de certos serviços sociais impossíveis de serem sempre custeados pelos próprios beneficiários, como a educação e os serviços de assistência social. A imposição tributária não pode mais ser vista como tendo apenas caráter fiscal, ou que esse prevaleça, pois a arrecadação tributária não é um fim em si mesmo. Nesse novo paradigma, prestigiou-se a natureza extrafiscal dos tributos, os quais passaram a servir de instrumento para atingir outros fins de ordem econômica e social encampados pela Constituição, os quais, por sua vez, somente são legítimos na medida em que viabilizam os ideais republicanos e democráticos. 181 182 Ibidem, p. 21. Ibidem, p. 23. 84 Essa nova perspectiva, entretanto, não autoriza a instituição de tributos – e muito menos a sua cobrança – com base apenas em princípios constitucionais, em virtude da existência de normas constitucionais que condicionam as atividades do Estado no campo da tributação, dentre as quais o Princípio da Legalidade tributária, previsto no artigo 150, I, da Lei Maior, e as regras que distribuem as competências tributárias, são os exemplos mais relevantes. Nessa perspectiva, HUMBERTO ÁVILA tece argumentos indispensáveis no trato da matéria: Na perspectiva da espécie normativa que as exterioriza, as normas de competência possuem a dimensão normativa de regras, na medida em que descrevem o comportamento a ser adotado pelo Poder Legislativo, delimitando o conteúdo das normas que poderá editar. O decisivo é que a Constituição Brasileira não permitiu a tributação pelo estabelecimento de princípios, o que deixaria parcialmente aberto o caminho para a tributação de todos e quaisquer fatos condizentes com a promoção dos ideais constitucionalmente traçados. Em vez disso, a Constituição optou pela atribuição de poder por meio de regras especificadoras, já no plano constitucional dos fatos que podem ser objeto de tributação. Essa opção pela atribuição de poder por meio de regras implica a proibição de livre ponderação do legislador a respeito dos fatos que ele gostaria de tributar, mas que a Constituição deixou de prever. Ampliar a competência tributária com base nos princípios da dignidade humana ou da solidariedade social é contrariar a dimensão normativa escolhida pela Constituição.183 Uma tributação com fundamento tão-somente em princípios, acabaria por conflitar com as regras constitucionais que outorgam as competências tributárias e as demarcam entre as pessoas políticas, como, por exemplo, a divisão das materialidades tributáveis pelos impostos, com base nos artigos 153, 154, 155 e 156 da Constituição Federal, entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A idéia de que os princípios são normas de maior importância pode levar à falsa conclusão de que os mesmos devem prevalecer sobre as regras, no caso em exame, as que tratam de competências tributárias. A questão, na verdade, refere-se à diferente eficácia entre essas normas, ou seja, “[...] as regras têm uma eficácia que os princípios não têm. [...] Em primeiro lugar, a eficácia das regras é decisiva, ao passo que a dos princípios apenas contributiva, não cabendo ao intérprete, por conseqüência, afastar, sem mais, a decisão tomada pela Constituição Federal pela sua própria decisão pessoal.” Em síntese: “[...] não há poder de tributar com base no princípio da solidariedade social de acordo com 183 Sistema constitucional tributário, p. 159-160. 85 a Constituição de 1988”.184 Admitir o contrário implicaria a contrariedade com outras normas constitucionais, como as referidas regras de competência e o sobreprincípio da Segurança Jurídica, bem como os seus corolários da Legalidade, Irretroatividade e Anterioridade. Como anota HUMBERTO ÁVILA, esse entendimento tem sido prestigiado pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive em relação às contribuições sociais, tributos previstos na Constituição especificamente como instrumentos de busca do ideal da solidariedade social. Encontramos um bom exemplo desse posicionamento no Recurso Extraordinário nº 150.764-1, onde a Suprema Corte decidiu que a seguridade social, ainda que deva ser financiada por toda a sociedade, só o poderá, em relação às contribuições, mediante bases de incidência próprias185 – as previstas no artigo 195 da Constituição – e não apenas com base no princípio da universalidade do financiamento.186 Se esse raciocínio se aplica às contribuições, com maior razão deve refletir, também, sobre a interpretação das regras de competência relativas aos impostos, os quais se submetem, nesse contexto, apenas ao princípio da capacidade contributiva, conforme o artigo 145, § 1º da Constituição. Ainda que a linguagem utilizada pela Constituição possa ser indeterminada, isso não autoriza concluir pela inexistência, em qualquer caso, de núcleos de determinação, ou que ela não possa sofrer determinação pelo próprio sistema no qual esteja inserida. As normas constitucionais que atribuem competências indicam os critérios materiais das hipóteses de incidência dos tributos e, assim o fazendo, estabelecem conceitos, “[...] cujos núcleos de significado não podem ser desprezados pelo intérprete, nem mesmo a pretexto de prestigiar algum valor constitucional, supostamente de maior hierarquia”. Felizmente o Supremo Tribunal Federal tem prestigiado esse entendimento, como se pode verificar na decisão proferida no Recurso Extraordinário nº 117.887-6187; que, ao analisar a incidência de imposto sobre a renda na distribuição de dividendos pelas sociedades, concluiu não ter havido auferimento de renda, raciocínio que partiu do conceito constitucional dessa materialidade como “acréscimo patrimonial”.188 184 ÁVILA, Humbelo. Limites à Tributação com Base na Solidariedade Social. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade..., op. cit., p. 70-71. 185 DJ 02 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 186 ÁVILA, Humberto. Limites à Tributação..., op. cit., p. 72. 187 DJ 23 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 188 ÁVILA, Humberto. Limites à Tributação..., op. cit., p. 73-74. 86 Com base na análise das decisões do Supremo Tribunal Federal, HUMBERTO ÁVILA conclui que essa Corte tem prestigiado de forma firme e reiterada o entendimento de que as regras constitucionais atributivas de competência, quando utilizam expressões com conotação dada pela própria Constituição ou pela legislação infraconstitucional vigente à época de sua promulgação, “[...] prevêem ou incorporam conceitos que fixam balizas instransponíveis ao legislador infraconstitucional”, não havendo espaço para entender essas normas como constitucionalmente abertas.189 A eficácia do Princípio da Solidariedade Social no âmbito tributário deve, portanto, restringir-se a informar a aplicação do cânone da Capacidade Contributiva e, por seu intermédio, consagrar a Isonomia Tributária, estabelecida no artigo 150, II, da Constituição, pelo qual é vedado às pessoas políticas “[...] instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”. De forma especial, entendemos que a maior eficácia da solidariedade social, em relação ao Direito Tributário, resulta da observância da aplicação da progressividade nas alíquotas dos impostos, instrumento ótimo no atendimento do caráter extrafiscal da tributação, ou seja, promover o bem-estar social, tendo em vista que a tributação apenas proporcional, além de atender apenas ao aspecto fiscal da imposição tributária, cria situação de extrema injustiça, ao onerar na mesma intensidade contribuintes em situação desigual. Partindo desse raciocínio, concorrer de modo progressivo e não proporcional, significa fazê-lo em função das necessidades não só próprias, mas também das alheias, do que decorre a estreita ligação entre solidariedade e progressividade. A não valorização do Princípio da Solidariedade certamente explica a queda presenciada na defesa da progressividade tributária.190 Ao lado da progressividade, a exigência de alguns impostos estará em sintonia com a solidariedade social mediante o atendimento da seletividade, como são exemplos, no Sistema Tributário Nacional, o IPI e o ICMS, por força, respectivamente, do disposto nos artigos 153, § 3º, I, e 155, § 2º, III, da Constituição Federal. Em que pese o dispositivo relativo ao ICMS prescrever literalmente que esse imposto “poderá” ser seletivo, ROQUE ANTONIO CARRAZZA, de forma acertada, defende que a 189 190 Ibidem, p. 77. SACCHETTO, Cláudio. O Dever de Solidariedade..., op. cit., p. 28. 87 seletividade é instrumento de extrafiscalidade obrigatório, tanto para o ICMS como para o IPI.191 É verdade que a receita tributária é condicionada à existência da economia privada e também à garantia dos direitos dos particulares. Por outro lado, o contrário também é verdade, pois é a receita obtida com a tributação que possibilita a existência e manutenção do direito à propriedade, ao patrimônio privado, à livre iniciativa etc. “Se estas premissas são aceitas, então todos aqueles que têm direitos, e todos são titulares de direitos – são obrigados à solidariedade e à solidariedade fiscal”.192 Essa tomada de posição não implica aceitar a tese de que a eficácia jurídica do Princípio da Capacidade Contributiva autorizaria o Fisco a exigir tributos com base na chamada “interpretação econômica do fato gerador”. Da mesma forma, não nos parece possa a Capacidade Contributiva servir de fundamento para desconsiderar negócios jurídicos lícitos, apenas porque celebrados com o propósito isolado de economia tributária. A evasão tributária somente pode resultar de ilicitudes que contaminam o planejamento tributário, e a economia tributária, em si mesma, não pode tipificar um ato como ilícito, ainda que se admita a recepção, no Direito Tributário, das figuras da fraude à lei e do abuso de direito, previstas, respectivamente, nos artigos 166, VI e 187, ambos do Código Civil – Lei nº 10.406/2002. Não se pode concordar, portanto, com o pensamento de MARCO AURÉLIO GRECO, para quem o Princípio da Capacidade Contributiva elimina o predomínio da liberdade, ainda que inexistente qualquer ilicitude. Nas palavras do autor: “Ou seja, mesmo que os atos praticados pelo contribuinte sejam lícitos, não padeçam de nenhuma patologia; mesmo que estejam absolutamente corretos em todos os seus aspectos (licitude, validade), nem assim o contribuinte pode agir da maneira que bem entender, pois sua ação deverá ser vista também da perspectiva da capacidade contributiva”.193 O raciocínio de GRECO deve-se à sua perspectiva não só da eficácia jurídica desse princípio, mas também da identificação de quem são os destinatários do comando do artigo 145, § 1º, da Constituição de 1988. Para o autor, à expressão “sempre que possível”, prevista nesse dispositivo, deve ser dado um “sentido forte”, em razão de sua identificação como princípio geral – diretrizes positivas – e não apenas como limitação – restrições – não sendo possível, em sua visão, aceitar a interpretação de que a 191 Curso..., op. cit., p. 89. SACCHETTO, Cláudio. O Dever de Solidariedade..., op. cit., p. 36. 193 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento...,op. cit., p. 281. 192 88 expressão contém apenas uma recomendação, como “se puder, faça”, e “se não puder, não faça”. Esse sentido forte seria representado na existência de um ângulo positivo da expressão “sempre que possível”, colocando a tônica no “sempre” e não no “possível”, para que sempre que for possível, deva-se atender à capacidade contributiva. Assim, haveria inconstitucionalidade sempre que for possível atender à capacidade contributiva e isso não seja feito.194 Entende, como resultado de seu raciocínio, que, ao contrário de outros dispositivos, o preceito da capacidade contributiva não se refere somente à lei, pois o dispositivo prevê que os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, e não que a lei graduará os impostos segundo ela. O autor defende, assim, a possibilidade de a capacidade contributiva se dirigir também ao aplicador da lei.195 DOUGLAS YAMASHITA também está de acordo com a eficácia positiva da capacidade contributiva, defendendo que esse princípio necessita de concretização inclusive pelo aplicador da lei, como no caso das decisões judiciais.196 MARCO AURÉLIO GRECO argumenta que essa sua afirmação não deveria causar espanto, pois é qualidade imanente a todas as normas constitucionais, mesmo que se tratem de normas meramente programáticas, as quais, no moderno constitucionalismo, não são mais vistas como singelas recomendações ou declarações de propósito, nem se apresentam apenas com eficácia negativa – fundamentar a inconstitucionalidade de dispositivos que a contrariem. Ou seja, a norma programática possui eficácia positiva, pois contém preceitos que podem e devem ser aplicados. O autor, no entanto, esclarece: “Isto não significa que o princípio da capacidade contributiva possa ser aplicado sem lei, nem estou afirmando que podem ser cobrados tributos sem lei e sem tipo. Estou apenas afirmando que o princípio ilumina o tipo previsto na lei; que esta será irrigada pela interpretação com os olhos da capacidade contributiva, mas sem que isto signifique atropelar a lei ou o tipo nela previsto”.197 Entretanto, o raciocínio seguinte do autor parece conflitar com essa sua afirmação: Ora, se o legislador deve atingir isonomicamente a capacidade contributiva, deverá fazê-lo em relação a todas as suas manifestações: aqueles que tenham praticado atos indicativos daquela aptidão devem ser atingidos pelo mesmo tributo. Se existirem idênticas manifestações de capacidade contributiva, 194 Ibidem, p. 300. Ibidem, p. 301-302. 196 YAMASHITA, Douglas. Elisão e evasão de tributos: limites à luz do abuso de direito e da fraude à lei, p. 185. 197 GRECO, Marco Aurélio. Planejamento...,op. cit., p. 307. 195 89 sujeitas a tributações diferentes, não haverá tributação isonômica. Em última análise, a tributação estará se dando inconstitucionalmente.[sic]198 O entendimento do autor levanta um questionamento: como conciliar a (a) possibilidade de o aplicador da lei tributária – o Fisco, por exemplo –utilizar o Princípio da Capacidade Contributiva com (b) a vedação da tributação por analogia, regra que, apesar de prevista no artigo 108, § 1º, do Código Tributário Nacional, é, em verdade, a manifestação do Princípio da Legalidade insculpido no artigo 150, I, da Constituição? Para nós, o problema, na tese de GRECO, está em que esse respeitável autor considera que haverá abuso de direito sempre que um negócio jurídico for celebrado unicamente com propósito de economia tributária.199 Ocorre que a economia tributária é um fator de altíssima relevância em qualquer operação jurídica, sendo, por si só, justificativa plausível para realizar um negócio jurídico. Isso será defensável, pensamos nós, quando, por exemplo, constituir-se em único meio para a manutenção de uma atividade econômica como lucrativa, ou ainda, quando for imprescindível para assegurar condições mínimas de uma família viver com dignidade, situações que se subsumem às chamadas “excludentes de ilicitude” previstas no Código Civil, na condição de “exercício regular de um direito”.200 Não se nega plausibilidade jurídica à tese de MARCO AURÉLIO GRECO, mas caso seja possível a outorga ao Fisco dessa eficácia positiva ao Princípio da Capacidade Contributiva, caberá ao Poder Judiciário a correção de um sem número de abusos que certamente serão praticados pelas administrações tributárias, tendo em vista o vetor interpretativo fazendário ter notoriamente, na maior parte dos casos, apenas um viés arrecadatório. A necessidade de buscar atingir o valor da solidariedade social, pensamos, não justifica uma situação grave como essa, onde certamente a Segurança Jurídica sucumbirá, ante a violação de direitos como a liberdade, propriedade, livre iniciativa etc. A solidariedade social no campo tributário também sofre os reflexos do tema da função social do contrato. É que os contratos podem ser analisados sob a perspectiva de sua função econômica e/ou de sua função social. A função econômica 198 Ibidem, p. 307. Um exemplo esclarece o raciocínio: um pai doa em vida todos os seus bens aos filhos, tendo em vista a alíquota do imposto sobre doações ser inferior ao imposto causa mortis. Em tal hipótese, ele não queria doar, pelo menos não naquele momento, mas o fez apenas para reduzir a carga tributária, que seria maior por ocasião do inventário. 200 “Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; [...].” 199 90 dos contratos consiste na circulação de bens e serviços, com os reflexos daí decorrentes. É importante ressaltar que cada tipo contratual possui uma função econômica específica, que lhe é peculiar, como, por exemplo: troca (compra e venda, doação, permuta), crédito (mútuo), garantia (penhor, hipoteca, fiança), custódia (guarda e conservação de bens alheios, como depósito, estacionamento), laboral (contrato de trabalho, locação de serviços, comissão), previsão (seguro), recreação (turismo, espetáculos) etc. Com efeito, na hipótese de o exercício do direito à liberdade de contratar contrariar manifestamente a função econômica peculiar daquele tipo contratual – o princípio que justifica o contrato – ocorrerá abuso do direito de contratar. Com base nesses argumentos, DOUGLAS YAMASHITA defende que “[...] tal excesso só será manifesto se o exercício da liberdade de contratar perseguir finalidade ilegítima, constituir um meio incapaz para atingir a finalidade legítima, existir outro meio jurídico capaz e menos oneroso para realizar a finalidade legítima ou a liberdade de contratar impor um sacrifício desproporcional em relação à finalidade perseguida”.201 Em relação à sua função social, o contrato deve observar critérios de justiça, de eqüidade, de boa-fé, para que a parte “forte” não tenha o direito de se aproveitar da credibilidade da parte “fraca”, abusando de sua confiança através de cláusulas leoninas e abusivas. O atual Código Civil exige o cumprimento dessa diretriz em seu artigo 421, pelo qual “[...] a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. No entanto, desde a edição da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC – Decreto-Lei nº 4.657, de 04 set. 1942 – nosso ordenamento já previa que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (art. 5º). É imperioso advertir, no entanto, que a função social dos contratos não pode anular a função primária e natural dos contratos, que é a econômica, conforme bem acentua HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, autor que em boa hora nos lembra que o contrato é, antes de tudo, um fenômeno econômico e não uma criação do Direito. Esse autor adverte ainda que ao contrato cabe uma função social, mas não uma função de “assistência social”. Por mais que o indivíduo mereça uma assistência social, não será no contrato que encontrará a solução para tal carência. Ou seja, o contrato é um instituto econômico com fins econômicos a realizar, os quais não podem ser ignorados, seja pela 201 Elisão..., op. cit., p. 190. 91 lei ou pelo aplicador da lei.202 Para parte da doutrina, a função social dos contratos corresponde, no Direito Tributário, à eficácia positiva do Princípio da Capacidade Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido é o pensamento de MARCO AURÉLIO GRECO203 e também de DOUGLAS YAMASHITA204. Todavia, essa transposição para o Direito Tributário exige uma reflexão sobre o tema. Mesmo que se aceite que a liberdade de contratar deva adequar-se à função social do contrato, é de se indagar: que função social maior poderá ter um contrato senão aquela que justifica sua existência, ou seja, servir à circulação de riquezas, proporcionando segurança ao tráfego do mercado? Em primeiro lugar, portanto, deve-se assegurar a função natural e específica do contrato que lhe é primária dentro da vida social, qual seja a de propiciar a circulação da propriedade e emanações dela em clima de segurança jurídica – função socioeconômica. Apenas depois é que se pode pensar em limites dessa natural e necessária função. DOUGLAS YAMASHITA observa, nesse sentido, que: A função social é um plus que se acrescenta à função econômica. Não poderá jamais ocupar o lugar da função econômica no domínio do contrato. Contrato sem função econômica simplesmente não é contrato. [...] Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a função social não se apresenta como meta do contrato, mas como limite da liberdade do contratante de promover a circulação de bens patrimoniais (art. 421 do CC/2002). Em suma, função social e função econômica do contrato são coisas distintas. Uma não substitui nem anula a outra. Devem coexistir harmonicamente. [...] Portanto, sempre que um contrato cumpra sua função econômica típica (troca, crédito, garantia etc.), não há que se questionar se ele descumpre ou excede os limites impostos por sua função social. Não se pode prejudicar a função econômica em nome da função social. Em outras palavras, se o ato tiver um propósito econômico, jamais poderá ser desconsiderado em nome da função social do ato que se examina.205 Diante dos argumentos expostos, entendemos que a solidariedade social é, efetivamente, um valor a ser atendido, inclusive no âmbito tributário. No entanto, essa efetivação deve ter como instrumento, de forma especial, a eleição, pelo legislador, de hipóteses de incidência que revelem capacidade contributiva – aqui em sua acepção objetiva – assim como através da progressividade e da seletividade em relação aos impostos, o que viabiliza o atendimento da chamada capacidade contributiva subjetiva. 202 O contrato e sua função social, p. 95 et. seq. Planejamento...,op. cit., p. p. 456 e ss. 204 Elisão..., op. cit., p. 192. 205 Elisão..., op. cit., p. 193-194. 203 92 Obviamente, o Poder Judiciário poderá e deverá, sempre que provocado, desconsiderar atos e negócios jurídicos contaminados por alguma ilicitude, tendo em vista a necessidade de coerência interna no ordenamento jurídico. No que pertine ao nosso estudo, ou seja, o exame da regra-matriz de incidência do ISS, a solidariedade social encontra uma aplicação importante no tema da “descentralização fiscal” própria do federalismo. CLÁUDIO SACCHETTO ensina que o dever de solidariedade sempre esteve ligado a atuações de entidades públicas tipicamente estatais, ou, se locais, financiadas pelo Estado, o que pode ter ocorrido em razão do Estado, pela função que lhe é inerente, sempre ter sido considerado como a sede de maior garantia, ou ainda devido à exigência de um tratamento estatal igual a todos os beneficiários da solidariedade, através de uma oferta de serviços equivalente a todos os cidadãos. 206 Esse posicionamento, no entanto, não mais se justifica. O princípio da subsidiariedade, inerente à descentralização resultante do federalismo, “[...] exprime um valor e uma exigência democrática de eficiência e melhor governabilidade”, pois “aproxima” o cidadão da entidade pública do governo, permitindo que com ele tenha um vínculo mais estreito, acentuando a relação entre tributação e serviços públicos, inclusive os que revelam, em seu conteúdo, um instrumento de busca da solidariedade social. 207 Conclui o autor, com proveito: “Pode-se, então, afirmar que hoje não só não existe incompatibilidade entre solidariedade e subsidiariedade, mas realmente sinergia”, e que “A subsidiariedade pode ser um meio para responder ao problema da solidariedade/eficiência”.208 A Constituição Federal de 1988 representa o fim do regime de exceção e o prestígio aos ideais democráticos. Não é por outra razão que a Lei Maior reiterou aos municípios sua condição de entes federativos, dotados de autonomia política, administrativa e financeira. A intenção constitucional, seguindo a orientação dos demais países democráticos, foi descentralizar recursos e poderes para as esferas locais, com o objetivo de estimular o exercício da cidadania e a democracia, verdadeiros ideais republicanos. Diante das dimensões territoriais do Brasil, os municípios brasileiros têm um papel fundamental nesse processo, assim como em razão do aumento na demanda da 206 O Dever de solidariedade..., op. cit., p. 37. Registre-se que as expressões “estatais” e “locais”, utilizadas por esse autor, equivalem, no contexto brasileiro, respectivamente, ao Estado – na acepção de soma de entes federados – e aos municípios. 207 Idem. 208 Ibidem, p. 40. 93 população por serviços na área social, os quais somente podem ser atendidos de forma mais personalizada e eficaz caso sejam prestados e fiscalizados pelos governos mais próximos ao cidadão. Para uma maior eficácia da descentralização, os governos municipais devem deter o controle de suas próprias fontes de receitas, sob pena da inépcia da autonomia que lhes é inerente, resultando em uma dependência perversa da União Federal. Isso exige tornar eficaz o exercício das competências tributárias por parte dos Municípios, com a implantação de uma política de tributação que busque viabilizar a criação dos tributos autorizados pela Constituição, assim como a fiscalização e a cobrança dos tributos municipais no atual contexto jurídico, com a utilização de todos os expedientes aptos a evitar e desestimular a inadimplência e a evasão tributária, viabilizando, assim, a manutenção dos serviços públicos locais em um nível de excelência. A adoção dessas medidas também se justifica diante da crescente transferência de responsabilidades sociais aos municípios, sem que isso represente, em todos os casos, uma necessária contrapartida de recursos, o que, por sua vez, dificulta a observância da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao contrário disso, a União Federal prefere incrementar sua competência tributária mediante o aumento das contribuições sociais, tributos não sujeitos à repartição com os Estados e Municípios. Nesse contexto, a receita oriunda do ISS é o instrumento tributário mais importante para a realização da autonomia financeira dos Municípios, o que se tem intensificado devido à crescente participação, no mercado, da prestação de serviços tributáveis pelo ISS. Um exemplo disso é a atual possibilidade de tributação dos serviços bancários, para o que se faz necessário, apenas, sua previsão na lista de serviços, diante da infeliz jurisprudência que a entende como taxativa. E no contexto específico de nosso objeto de estudo – o critério espacial da regra de incidência do ISS – a solidariedade social/fiscal exige uma reiteração da supremacia constitucional, no que tange à observância – pela legislação de normas gerais, que trata do ISS em âmbito nacional, e também a local, que institui efetivamente o ISS em cada município – da materialidade desse imposto, ou seja, do conceito de prestação de serviços encampado pela Constituição e, como conseqüência, do efetivo local em que os serviços são prestados, pois como será analisado neste trabalho, é a lei desse respectivo município que incidirá sobre os fatos ocorridos em seu território, assim como é esse município quem deterá a capacidade tributária de exigir o recolhimento do 94 ISS. Ressalte-se que esse exercício de competência/capacidade é não apenas um direito, mas um dever constitucional de cada ente federativo. O prestador dos serviços tributáveis pelo ISS, por sua vez, tem o dever constitucional de recolher o respectivo ISS apenas e tão-somente no município onde os serviços forem efetivamente prestados, sob pena desse contribuinte estar promovendo um enriquecimento ilícito de outra pessoa política, em flagrante desrespeito do Princípio Federativo e da Autonomia Municipal. Com efeito, o Direito Tributário deve propiciar aos municípios instrumentos jurídicos que possibilitem questionar a validade de planejamentos tributários consubstanciados na mudança das sedes de contribuintes que, embora estabelecidos em um município apenas para sujeitar-se à sua alíquota reduzida do ISS, prestam seus serviços, efetivamente, em municípios diversos. JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO ensina, sobre o assunto, que: Embora o contribuinte tenha liberdade para instalar sua sede e o estabelecimento prestador de serviços nos locais que sejam de seu exclusivo interesse (princípio da autonomia da vontade que regra os negócios particulares), a atividade somente poderá ficar sujeita à alíquota menos gravosa se efetivamente possuir de modo concreto (e não apenas “caixa postal”) um estabelecimento no Município. Um simples local que nada possui (bens, pessoas e instalações) representará mera simulação, cujos efeitos tributários podem ser desconsiderados.209 A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal, já em 1980, entendia o seguinte: Imposto sobre serviços. Escritório de contato. Competência tributária. A forma ou modalidade de atuação da empresa, por conveniência de sua organização, por si só não poderá afastar a competência tributária do Município, desde que caracterizada a ocorrência do fato gerador. Interpretação razoável (súmula 400). Recurso extraordinário não conhecido.210 Entretanto, caso a reestruturação das atividades do prestador dos serviços seja lícita, não se poderá questioná-la, apenas porque houve uma redução da carga tributária, já que ninguém é obrigado a escolher o caminho mais oneroso para a gestão de seus negócios. Nem mesmo o dever moral a isso impõe. LUCIANO AMARO confirma nossos argumentos: Os limites da legalidade circundam, obviamente, o território em que a busca de determinada instrumentação para negócio jurídico não chega a configurar ilegalidade. Essa zona de atuação legítima (economia lícita de tributos) baseia-se no pressuposto de que ninguém é obrigado, na condução de seus 209 210 Impostos federais, estaduais e municipais, p. 267. Recurso Extraordinário nº 92.883/RS – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 95 negócios, a escolher os caminhos, os meios, as formas ou os instrumentos que resultem em maior ônus fiscal, o que, repita-se, representa questão pacífica.211 Diante do suporte doutrinário acima, concluímos, enfim, que o dever de observar o valor constitucional da solidariedade social, seja pelo legislador nacional, seja pelo dos municípios, cinge-se à efetiva observância do núcleo das regras-matrizes dos tributos municipais, como estabelecido na Constituição e, em conseqüência, dos respectivos critérios temporais e espaciais, para que se respeitem quando e onde ocorrem os fatos tributários, tudo com o objetivo de garantir a receita tributária ao ente legitimado para sua arrecadação. Os contribuintes, por sua vez, têm o dever de estruturar seus negócios sempre de forma lícita, pagando os respectivos tributos sempre em observância do Princípio da Legalidade, o qual deve, no entanto, ser invocado de forma sistemática com o restante do ordenamento jurídico, e não de forma a mascarar ilicitudes, o que certamente resultará em violação de outros valores constitucionais também relevantes. 2.2.4 Princípio da Irretroatividade da Lei Tributária Embora o título desse subitem cogite de Irretroatividade da Lei Tributária, entende-se que esse princípio veda a aplicação retroativa gravosa para todas as “fontes formais do Direito”, e não só da “lei”, entendida essa em seu sentido restrito, ou seja, como resultado da atividade legislativa. A irretroatividade, assim, deve ser aplicada às normas jurídicas em geral. As sentenças judiciais, por exemplo, apesar de serem aplicáveis a um só caso concreto, são, por tudo, normas jurídicas, que se peculiarizam tão-somente pela inexistência de generalidade e abstração, pelo que é inequívoco que também a atividade jurisdicional deverá respeitar o direito adquirido e a coisa julgada, como garante o artigo 5, XXXVI, da Constituição. Confirma a assertiva o pensamento de MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI: Urge erradicar o vício de se restringir o princípio da irretroatividade a uma limitação imposta exclusivamente ao legislador. O princípio da irretroatividade aplica-se também à totalidade das fontes de formação do Direito, quer às decisões do Poder Judiciário, quer aos atos e decisões do Poder Executivo. Somente assim a segurança jurídica e a proteção da confiança, como valores elementares do Estado Democrático de Direito, podem ser asseguradas. Ao contrário do que se supõe [...], somente assim, ou 211 Direito tributário brasileiro, p. 229-230. 96 seja, a partir do pleno respeito à segurança e à confiança, é que a igualdade e a evolução do Direito se tornam possíveis.212 Em que pese esse dispositivo constitucional usar a palavra “lei”, a interpretação sistemática da Constituição exige que se entenda o vocábulo de forma ampla, de forma a compreender a lei não só em seu sentido estático, ou seja, como resultado do labor político, mas também quando de sua atuação dinâmica, seja aplicada pelo Executivo, seja pelo Judiciário: A expressão lei, utilizada mo artigo 5, XXXVI, significa a inteligência da lei em determinado momento, ou seja, certa leitura da lei, abrangendo, assim, os atos que a ela se conformam, emanados do poder Judiciário e do Executivo. [...] A irretroatividade é assim, do Direito e alcança, portanto, a irretroatividade da inteligência da lei aplicada a certo caso concreto, que se cristalizou por meio de atos administrativos e da coisa julgada. Não podem retroagir as decisões judiciais, ainda que a título de uniformização jurisprudencial, nem tampouco os atos administrativos.213 É nesse sentido, portanto, que a expressão “Irretroatividade da Lei Tributária” deverá ser compreendida neste trabalho. Lei retroativa é aquela que atinge fato ocorrido anteriormente à sua vigência, ou seja, há retroatividade quando a lei alcança fatos já consumados anteriormente à sua entrada em vigor, imputando-lhes determinados efeitos jurídicos. Visando impedir que tal fenômeno ocorra, em prejuízo do destinatário da norma jurídica, a Constituição Federal dispõe, em seu artigo 5°, XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito”; dispositivo que estabelece o Princípio da Irretroatividade em sua formulação genérica. Esse princípio dirige-se tanto ao legislador como ao aplicador da lei. Esse mandamento refere-se à irretroatividade relativa porque a lei pode, em princípio, atingir fatos anteriores à sua publicação, como nas hipóteses de leis interpretativas – em que a interpretação pretendida pela lei somente poderá retroagir caso sejam observados os princípios constitucionais pertinentes, com destaque para o da Segurança Jurídica, o que torna muito reduzida a aplicação da lei interpretativa no âmbito tributário – e/ou de leis penais mais benéficas, conforme inteligência do artigo 5º, inciso XL da Constituição, que, no âmbito tributário, são as que atenuam penalidades ligadas ao não cumprimento de obrigações tributárias. Caso contrário, a lei somente terá eficácia em relação aos fatos futuros. É um qualificativo inerente ao Princípio da Legalidade: como decorrência do Princípio da Segurança Jurídica, as leis 212 A irretroatividade do direito no direito tributário. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de (org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito tributário, p. 180. 97 devem ser feitas em obediência ao Princípio da Irretroatividade. De nada adiantaria, por exemplo, que os tributos só fossem criados ou aumentados por meio de lei, se essa pudesse atingir livremente fatos ou situações já consumados. Em razão da importância do assunto em matéria tributária, a Constituição reforçou a necessidade de obediência ao princípio, em seu artigo 150, III, “a”, vedando expressamente que a lei que crie ou aumente tributos alcance fatos ocorridos antes do início de sua vigência. A lei que cria ou aumenta tributo nunca pode ser retroativa. Essa regra é absoluta, pois não admite exceções, aplicando-se, portanto, também ao ISS. O artigo 106, I, do Código Tributário Nacional, criou a figura da retroatividade da lei tributária interpretativa, pela qual a lei tributária aplica-se a ato ou fato pretérito, “[...] em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados”. Entende-se que tal artigo deve ser desconsiderado, posto que a hermenêutica repudia a existência de leis interpretativas de outras leis, mesmo porque tais leis também devem ser interpretadas. A interpretação é função do aplicador da lei, e nunca de seu criador. Esse é o entendimento de LUCIANO AMARO, para quem conferir ao legislador a função de interpretar, vinculante para o Judiciário na apreciação de fatos concretos ocorridos anteriormente, seria o mesmo que conceder àquele a atribuição de dizer o direito aplicável aos casos concretos, tarefa conferida pela Constituição precipuamente ao Poder Judiciário. Como conclusão, “[...] ou a lei nova dá ao preceito interpretado o mesmo sentido que o juiz infere desse preceito, ou não; no primeiro caso, a lei é inócua; no segundo, é inoperante, por retroativa (ou porque usurpa função jurisdicional)”.214 2.2.5 Princípio da Anterioridade da Lei Tributária A Constituição prevê, em seu artigo 150, III, “b” e “c”, que “[...] é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: cobrar tributos: [...] b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”. A alínea “c” foi incluída pela Emenda Constitucional nº 42, de 19 dez. 2003, tendo em vista minorar os 213 DERZI, Mizabel de Abreu Machado. A irretroatividade..., op. cit., p. 217. 98 efeitos negativos gerados pela redação anterior, em que a Constituição somente exigia a dilação da eficácia para o exercício seguinte, quando então as leis tributárias publicadas nos últimos dias de dezembro já passavam a ter eficácia poucos dias após, a partir de 1º de janeiro do exercício seguinte. Por essa razão, a redação anterior desse artigo sempre foi criticada pela doutrina, conforme ilustra esse pensamento de AIRES BARRETO: Esse princípio – destinado a preservar o sobreprincípio da segurança jurídica – em verdade não realiza inteiramente os propósitos a que destinado porquanto. Comumente, as leis são editadas nos últimos dias de dezembro de dado exercício, produzindo eficácia logo após, em 1º de janeiro do exercício subseqüente. É razoável, portanto, a exegese de que o princípio exigiria, ao menos, o cumprimento do interregno nonagesimal, por força do entrelaçamento harmônico desse princípio com o termo inscrito no § 6º, do artigo 195, da CF.[sic]215 O Princípio da Anterioridade, que se aplica exclusivamente em Direito Tributário, passou a exigir, portanto, que a lei que cria ou aumenta certos tributos, ao entrar em vigor, fica com sua eficácia paralisada no mínimo por noventa dias (anterioridade nonagesimal); e no máximo até o início do próximo exercício financeiro, quando só então incidirá, produzindo os seus respectivos efeitos na ordem jurídica. O Princípio da Anterioridade refere-se, portanto, à eficácia das leis tributárias, e não à sua vigência ou validade. Possuir vigência (estar em vigor) é ter força para regular os comportamentos intersubjetivos, sobre os quais a norma jurídica incide; é uma propriedade da regra jurídica que está apta para propagar efeitos, assim que aconteçam no mundo os fatos nela descritos abstratamente. Eficácia jurídica é o processo mediante o qual, ocorrendo o fato descrito na hipótese (antecedente) da norma jurídica, desencadeiam-se os efeitos prescritos em seu mandamento (conseqüente). Exemplo: quem praticar o fato “A” (antecedente ou hipótese), deverá cumprir o mandamento “B” (conseqüente). Portanto, a lei tributária sujeita à anterioridade pode estar em vigor, por exemplo, desde a publicação, mas sua eficácia está condicionada ao prazo nonagesimal ou ao início do exercício financeiro seguinte, que, no Brasil, coincide com o ano civil, ou seja, começa em 1° de janeiro e termina em 31 de dezembro. O Princípio da Anterioridade não deve ser confundido com o extinto princípio da anualidade, que existiu no Brasil durante a vigência da Constituição Federal de 214 215 Direito tributário brasileiro, p. 195. ISS…, op. cit., p. 23. 99 1946, pelo qual nenhum tributo podia ser cobrado, em cada exercício, sem prévia autorização orçamentária anual. A palavra cobrar, constante no artigo 150, III, da Constituição Federal de 1988, deve ser entendida no sentido de exigir. Caso contrário, o fisco poderia usar de ardil para somente retardar a cobrança do tributo para o exercício seguinte ou após noventa dias, tornando a disposição constitucional “letra morta”. Assim, por exemplo, um tributo criado em junho poderia incidir sobre fatos ocorridos em julho do mesmo ano, bastando ao fisco, para observar a anterioridade, que realizasse a cobrança – mero ato administrativo – no exercício seguinte.216 O raciocínio acima resulta da interpretação sistematizada do inciso III do artigo 150 da Constituição, com o sobreprincípio da Segurança Jurídica, o qual visa evitar surpresas para o contribuinte, através da criação ou aumento de tributos, durante o exercício financeiro, ou, conforme a modificação introduzida em bom tempo pela Emenda Constitucional nº 42/2003, antes de noventa dias. Esse princípio exige que o contribuinte conheça com antecedência os tributos que lhe serão exigidos, para que possa efetuar um devido planejamento de sua vida econômica. O contribuinte pode, inclusive, esquivar-se à tributação, evitando praticar o fato tributário que o tornaria sujeito passivo de eventual obrigação tributária. As pessoas – físicas ou jurídicas – possuem o direito subjetivo à elisão tributária, meio lícito de evitar ou reduzir a carga tributária. Portanto, para a observância do Princípio da Anterioridade, não basta que o tributo seja apenas cobrado no exercício financeiro seguinte ou após noventa dias. É preciso que o tributo – aqui entendido como relação jurídica tributária – nasça, ou, seja majorado, somente no exercício seguinte, ou, no mínimo, após noventa dias de sua criação ou aumento. Como exemplo, se neste ano for instituído o imposto sobre grandes fortunas, o fato de alguém, neste exercício, possuir “grande fortuna”, não será considerado fato tributário daquele tributo, ainda que a cobrança ocorra somente após o prazo da anterioridade. Somente ocorrerá a incidência – apta a tornar alguém sujeito passivo desse novo imposto – com o fato de alguém possuir grande fortuna após aquele prazo. As exceções ao princípio da anterioridade estão previstas no § 1º do artigo 150, da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 42/2003. Em primeiro lugar, podem-se reunir as exceções comuns a ambas espécies de anterioridade, 216 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 178. 100 seja a que desloca a eficácia para o início do exercício seguinte (artigo 150, III, “b”), seja a que a posterga para após noventa dias (artigo 150, III, “c”), as quais não se aplicam ao empréstimo compulsório criado “para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência” (148, I), aos impostos de importação e exportação (153, I e II), ao imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários – conhecido como imposto sobre operações financeiras – IOF (153, V), impostos extraordinários, podendo ser criados na iminência ou no caso de guerra externa (154, II). Em segundo lugar, entre os tributos não sujeitos somente à vedação do inciso III, “b” (anterioridade do exercício seguinte), está somente o imposto sobre produtos industrializados – IPI (artigo 153, IV). As razões dessas exceções estão no fato de que, dada a urgência das causas que justificam a incidência, alguns tributos necessitam de maior flexibilidade e demandam rápidas alterações, não podendo aguardar o exercício seguinte, ou os noventa dias, para serem exigidos. Por fim, as exceções somente à vedação do inciso III, “c” (anterioridade nonagesimal) são o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (artigo 153, III), e a fixação da base de cálculo do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (artigo 155, III) e do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (artigo 156, I). Quanto a essas últimas exceções, JOSÉ ROBERTO VIEIRA bem observa que “[...] as concessões do estado arrecadador não costumam ser gratuitas”, pois tratam justamente dos tributos cujas medidas tributárias dos últimos dias do ano tomavam de inopino os contribuintes. Arremata o autor: “Ou seja, admitem-se algumas mudanças, mas luta-se desesperadamente para minimizá-las ao extremo!”.217 Entretanto, andou mal o legislador constituinte, ao dispor sobre a necessidade de observar a anterioridade do exercício seguinte no caso de empréstimo compulsório criado para atender “investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional”, pois acaba por resultar em uma contradição, haja vista que, se o investimento público é de caráter urgente, como poderia então ter de aguardar o início do exercício seguinte, quando então até mesmo é possível o risco de irreversibilidade dos danos ocorridos? As contribuições para o financiamento da Seguridade Social, previstas no artigo 195, incisos I, II e III, também se sujeitam à anterioridade nonagesimal, prevista 217 Uma Reforma Tributária de Gatinhos e Hienas. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional: anais do V Simpósio Nacional de Direito Constitucional, p. 44. 101 porém no § 6° deste mesmo artigo 195, o qual dispõe que “[...] só poderão ser exigidas após decorridos 90 (noventa) dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no artigo 150, III, b”. Em relação ao ISS, não restam dúvidas de que se trata de imposto não compreendido em quaisquer das hipóteses de exceção ao princípio da anterioridade eficacial, seja a alusiva ao exercício seguinte, seja a que institui o prazo de noventa dias. Disso resulta que a lei que criar ou majorar o ISS só terá eficácia, ou seja, só produzirá efeitos, no exercício seguinte àquele em que tiver sido editada, ou ainda, após o decurso mínimo de noventa dias, caso o exercício seguinte tenha início antes desse prazo. As leis que extinguem ou reduzem uma isenção tributária, por possuírem os mesmos efeitos econômicos do que uma lei que cria ou majora um tributo, também deverão observar o princípio da anterioridade tributária. O princípio, portanto, aplica-se também nas hipóteses de revogação ou redução de uma isenção de ISS. Em relação à hipótese de isenção heterônoma, prevista no inciso II do § 3º do artigo 156 da Constituição – dispositivo que autoriza a União Federal, por meio de lei complementar, a conceder isenção de ISS no caso de exportação de serviços para o exterior – AIRES BARRETO entende que, devido a lei complementar concessiva da isenção não ter o poder de revogar a lei ordinária municipal criadora do ISS, mas tãosomente de paralisar-lhe a eficácia, caso seja revogada a lei complementar que concedeu a isenção heterônoma, a lei municipal, como conseqüência, teria a sua eficácia restabelecida de imediato, passando o ISS a incidir desde então. 218 É nesse sentido, também, o entendimento de ROQUE ANTONIO CARRAZZA.219 PAULO DE BARROS CARVALHO, em comentário sobre a isenção heterônoma, vedada pelo artigo 151, III, da Constituição, entende que “[...] ainda que se tenha em conta de isenção [...], consubstancia hipótese de revogação temporária do tributo ou dos tributos dos Estados e Municípios”. Nesses casos, o que ocorre é a “[...] automática supressão do critério pessoal do conseqüente, no que diz respeito ao sujeito ativo”.220 Diante da lição desse mestre, que nos parece irrefutável, entendemos que o retorno da eficácia da lei municipal – em virtude da revogação da referida lei complementar – estará condicionado à observância da anterioridade, pois esse é o único raciocínio que prestigia a supremacia constitucional. 218 BARRETO, Aires Fernandino. ISS..., op. cit., p. 23. Curso..., op. cit., p. 220-221. 220 Curso..., op. cit., p. 494 e 496. 219 102 2.2.6 Princípio da Vedação de Utilização de Tributo com Efeito de Confisco A vedação da utilização de tributo com efeitos confiscatórios pode ser examinada, conforme AIRES BARRETO, em dois planos. Em um primeiro, sem qualquer quantificação, do que cabe afirmar que haverá confisco sempre que houver violação aos princípios da liberdade de iniciativa, trabalho, ofício ou profissão, assim como quando o Estado absorver o valor equivalente ao da propriedade imóvel, ou ainda quando o tributo impossibilitar a exploração de atividades econômicas, o que se pode resumir da seguinte forma: haverá confisco por afronta, isolada ou conjunta, dos incisos XIII e XXII do artigo 5º e do artigo 170 e seu parágrafo único, todos da Constituição Federal. Sob uma segunda perspectiva, o tema pode ser analisado como registro de números relativos, ou, dizendo de outra forma, será confiscatório o tributo que exceder a capacidade contributiva. Sob ambos os primas, é inequívoco que o conceito sobre a vedação de efeito de confisco assume alto grau de indeterminação.221 Diante da verificação de que o confisco trata-se de sanção, nada mais sendo do que absorção total ou parcial da propriedade sem indenização, seria equivocado dizer que “é vedado o confisco”, pois se o tributo é instituto que não se constitui em sanção de ato ilícito, a Constituição só poderia mesmo proibir que, por meio da exigência de um tributo, chegue-se a um resultado cujo efeito seja equivalente ao confisco, mas não a confisco propriamente dito. Como a própria Constituição, de um lado, autoriza a tributação, e de outro, garante o direito de propriedade – ainda que vinculado à sua função social – somente tem efeito confiscatório a tributação que ofenda à propriedade. 222 Em relação ao tema do presente trabalho, e no mesmo sentido já examinado em relação aos princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva, a vedação constitucional de tributo com efeito de confisco é gravemente inobservada quando um prestador de serviço que, estabelecido em um Município, presta seus serviços em outro, é forçado a recolher o ISS em duplicidade. Esse é, inequivocamente, um forte argumento a exigir a observância do critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, nos seus moldes constitucionais, por todos os seus destinatários. 221 Ibidem., p. 17. 103 2.3 LEI COMPLEMENTAR EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA 2.3.1 Lei complementar em sentido material e formal. Problema da hierarquia Não há, em princípio, relação de hierarquia entre as leis nacionais e as leis editadas pelas pessoas políticas – federais, estaduais, distritais e municipais – pela razão de que todas buscam seu fundamento de validade na própria Constituição. Somente haverá relação de subordinação entre normas, quando uma constituir-se em fundamento de validade da outra. É nesse sentido a advertência de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, pugnando pelo rigor lingüístico quanto ao vocábulo “hierarquia”, imprescindível para o trato do tema da lei complementar dentro do sistema jurídico brasileiro: A relação de hierarquia supõe que uma norma retira a sua validade da conformação com outra norma. Diz-se então que a primeira é uma norma subordinada ou de grau inferior e a segunda, uma norma subordinante, ou de grau superior. A relação entre a norma subordinante e a norma subordinada, cuja criação é regulada pela norma subordinante, é uma relação de hierarquia, consistente num vínculo de supra e subordinação. [...] Essas normas portanto não guardam entre si uma relação de coordenação, mas de subordinação hierárquica.223 A diferença entre a União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios não está, portanto, em um nível hierárquico, mas, nas competências distintas que receberam da própria Constituição. No campo das competências, com efeito, descabe invocar qualquer fundamento com base no argumento da hierarquia, pois “[...] o deverser da competência é redutível apenas a uma validade normativa”.224 O critério que preside a classificação das leis em federais, estaduais e municipais não é a hierarquia, mas, sim, a amplitude do âmbito material de validade atribuído à cada pessoa política. Pode-se acrescentar, conforme ensinam CLÉBER GIARDINO e HERON ARZUA, que, além do critério material, a Constituição também adotou, em conjunto com esse, o critério territorial (situs), o que é de supina relevância na discriminação das competências tributárias.225 226 222 Ibidem, p. 17-19. Lei complementar tributária, p. 15. 224 BORGES, José Souto Maior. Aspectos fundamentais da competência municipal para instituir o ISS (do Decreto-lei n. 406/68 à LC n. 116/2003). In:.TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 5. 225 ISS – competência municipal. Revista de Direito Tributário, n. 32, p. 219. 223 104 A coexistência, em um mesmo território, de várias ordens jurídicas, implica a necessidade de uma sistemática que impeça os atritos entre as leis emanadas de cada uma das pessoas políticas. A solução, para tanto, está na específica atribuição, para cada uma das pessoas de direito público interno, de competências exclusivas, o que significa dizer que o aspecto material das leis emanadas de cada um de seus respectivos poderes legislativos está previamente demarcado pela Constituição, de forma a impedir que ocorra o chamado conflito de competências. As leis qualificadas como nacionais diferem das federais, em razão de emanarem do Estado Federal, e não da União Federal, ainda que o Poder Legislativo, de onde se originam tais leis, seja o mesmo. A polêmica em torno desse tema, portanto, deve-se basicamente ao fato de que, em no sistema jurídico brasileiro, um só corpo legislativo serve, simultaneamente, à União Federal e ao Estado Brasileiro. Como resultado, o Congresso Nacional detém competência para legislar sobre assuntos que terão como destinatários, também, as demais pessoas políticas, ou seja, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Esse raciocínio é confirmado pelo ensinamento de HELENO TAVEIRA TÔRRES: Por determinação constitucional, no Brasil, o Congresso Nacional exerce três funções legislativas distintas: é i) constituinte derivado, ao discutir e votar Emendas à Constituição, e é o legislador ordinário da União, sob duas modalidades: ii) legislador federal, ao exercer as competências típicas da União, na qualidade de pessoa de direito público interno, plenamente autônoma; e iii) legislador nacional, ao dispor sobre normas gerais aplicáveis às quatro pessoas políticas, nas matérias previstas no artigo 24, da CF, e em outras previstas no corpo da Constituição.227 Semelhante é o entendimento de SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, para quem o Congresso Nacional, paralelamente às suas funções normais de órgão legislativo da União Federal (ordem jurídica parcial), também exerce outras, que não são do exclusivo interesse desta, como, por exemplo, a aprovação de algumas matérias sujeitas às leis complementares e as emendas constitucionais. 228 Adverte o autor, no entanto, que a lei complementar está a serviço da Constituição, e não da União Federal, a qual somente “empresta” o seu órgão legislativo para a edição das leis 226 O imposto sobre serviços e o princípio da territorialidade. In:. MELLO, Celso Antonio Bandeira de (org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito tributário, p. 143. O Distrito Federal cumula as competências reservadas aos Estados e aos Municípios, conforme revelam, no âmbito tributário, os artigos 147 e 155, caput, da Carta Constitucional. 227 Código Tributário Nacional: teoria da codificação, funções das leis complementares e posição hierárquica no sistema. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 71, p. 92. 228 Curso..., op. cit., p. 98. 105 complementares, leis que se caracterizam como instrumentos constitucionais, utilizados para integrar e fazer atuar a própria Constituição.229 A lei nacional é, assim, categoria jurídico-positiva distinta da lei federal, sendo que a dificuldade para o estabelecimento dessa distinção decorre da origem comum, já que ambas são leis editadas pela União. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, embora concorde com essa divergência, defende que ela se deve basear na teoria kelseniana dos âmbitos de validade da norma: a) material; b) pessoal; c) espacial; e d) temporal. Com relação aos âmbitos espaciais de validade, são idênticos, tanto os da lei federal, como os da lei nacional, posto que ambas vigoram em todo o território do país. Também não existe diferença no que toca aos âmbitos temporais de validade, porque não vigora nenhum critério específico de predeterminação de vigência da lei federal e da lei nacional. Quanto ao âmbito pessoal de validade, a lei federal vincula-se somente à União, enquanto que a lei nacional, embora editada pelo Congresso Nacional, tem como destinatários, além da União, também os Estados e Municípios. Por fim, quanto ao âmbito material de validade, a lei nacional distingue-se da lei federal porque tem por conteúdo matéria que vincula também os Estados e os Municípios, em conjunto ou isoladamente.230 Importante ressaltar que, caso seja matéria que vincule somente os jurisdicionados e administrados da União, não será hipótese de lei nacional, e sim federal. Diante disso, a lei nacional e a lei federal somente seriam idênticas, entre si, se todos os seus âmbitos de validade coincidissem, o que, como já vimos, não ocorre em relação aos âmbitos materiais, que são sempre distintos, e também, em relação aos âmbitos pessoais, pois os destinatários da lei nacional nunca se restringem somente aos vinculados à União Federal.231 Registre-se que as leis nacionais não são, necessariamente, leis complementares – ou vice-versa – ainda que, especialmente em matéria tributária, na maior parte dos casos, coincidentemente o sejam. Da mesma forma, não é porque a lei complementar emana do Congresso Nacional, órgão legiferante da União, que o seu âmbito de validade estará, em todos os casos, restrito ao nível federal, ou seja, aos assuntos que a Constituição atribuiu somente à União Federal. Ao contrário, é instrumento legislativo que bem cumpre a disciplina dos assuntos de âmbito nacional, pois a maior relevância desses, para o Estado brasileiro, exige uma maior 229 Ibidem, p. 99. Lei complementar..., op. cit., p. 63 e ss. 231 Ibidem, p. 68. 230 106 representatividade popular na sua aprovação. Isso, contudo, não é argumento bastante em si para pugnar pela superioridade hierárquica das leis complementares em relação às leis ordinárias. Pode-se entender o qualificativo “complementar” em um sentido amplo, lato sensu, tido por alguns como sentido “ontológico” ou “doutrinário”, pelo qual “lei complementar” seria toda lei que “complementa” a Constituição, sem considerar qualquer aspecto alusivo à forma de sua aprovação, a qual exige maioria absoluta, conforme dispõe o artigo 69 da Lei Maior. Nesse sentido, amplo, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES e PAULO DE BARROS CARVALHO ensinam que todas as leis são complementares em relação à Constituição, ao conferir eficácia a seus dispositivos e princípios ou, com outras palavras, lei complementar é toda aquela que integra dispositivo constitucional não auto-executável.232 No entanto, para o sentido que interessa ao presente trabalho, lei complementar será aquela que é exigida pela interpretação sistemática da Constituição, haja ou não previsão expressa nesse sentido, pois do contexto constitucional é possível concluir pela exigência dessa espécie normativa para tratar de matérias que, pela interpretação literal, não a requerem. O conceito de lei complementar que será buscado, portanto, é o conceito jurídico-positivo, da forma como construído pelo sentido harmônico da Constituição, ou seja, pelo regime jurídico a que é subordinada a edição das leis complementares. No sistema jurídico brasileiro, o regime jurídico da lei complementar abrange não só o aspecto material – que diz respeito à matéria que, por força da Constituição, deva ser objeto de tal disciplina – mas, também, do aspecto formal, pelo qual o processo de elaboração da lei complementar exige a aprovação da maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, desde que, é óbvio, o processo tenha sido iniciado mediante projeto de lei complementar. Segundo preceitua PAULO DE BARROS CARVALHO, os dois traços identificadores da lei complementar são: a) matéria expressa ou implicitamente indicada na Constituição, denominado de pressuposto material ou ontológico; e b) o quorum especial do artigo 69 da Constituição, designado como o requisito formal. Disso resulta a afirmação de que a lei complementar reveste-se de natureza ontológico-formal.233 232 Ibidem, p. 31. Curso..., op. cit., p. 204-205. 233 Curso..., op. cit., p. 205. 107 O único critério jurídico válido, portanto, para distinguir uma lei complementar de uma lei ordinária, reside no regime jurídico aplicável a cada uma das espécies legislativas, o qual envolve tanto o processo constitucionalmente previsto para a elaboração e aprovação legislativa, como o conteúdo material que a Carta Constitucional exige seja veiculado por espécie legislativa. Não há consistência, contudo, na tese daqueles que advogam ser a lei complementar distinta da lei ordinária, face aquela veicular matérias de âmbito nacional e, esta, matérias de ordem exclusivamente federal. A simples leitura da Constituição traz exemplos que derrubam esse raciocínio, pois tanto há leis ordinárias da União que tratam de assuntos alusivos somente ao seu campo de competência – como é exemplo a lei que institui o imposto de importação – como há leis ordinárias da União que regulam matérias de inegável âmbito nacional – como é o caso da Lei nº 8.666, de 21 jun. 1993, que “[...] estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Por outro lado, a Constituição exige a figura da lei complementar tanto para matérias de ordem nacional, como é o exemplo do artigo 146, III, da Constituição, ao reclamar essa espécie normativa para tratar das normas gerais de direito tributário, aplicáveis à todas as pessoas políticas, assim como também requer a aprovação por maioria absoluta para matérias de âmbito exclusivamente federal, como é o caso da lei complementar necessária ao exercício da competência federal para instituição do empréstimo compulsório, conforme estabelece o artigo 148, I e II. Não por outra razão, HELENO TAVEIRA TÔRRES afirma que, nas atividades típicas de legislador ordinário “federal”, o Congresso Nacional poderá tanto usar de lei ordinária, como de lei complementar, a depender da exigência constitucional para o respectivo exercício de competência, exigência essa que pode ser explícita ou implícita, sendo, em ambos os casos, inafastável o cumprimento do requisito do artigo 69 da Constituição. Todas as demais matérias poderão ser objeto de leis ordinárias.234 Depreende-se de nosso sistema jurídico que, assim como não há a possibilidade de uma lei ordinária revogar uma lei complementar, também não há como uma lei complementar possa revogar uma lei ordinária, o que leva à conclusão da inexistência de superioridade formal entre tais espécies de normas. E isso ocorre basicamente por 234 Código tributário nacional..., op. cit., p. 93. 108 dois argumentos, conforme ensina JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES: a) não há interpenetração entre os âmbitos materiais de uma e outra, em virtude da técnica constitucional de distribuição ratione materiae de competências legislativas; e b) a superveniência de lei complementar, em certos casos excepcionais, somente suspende ou paralisa a eficácia da lei ordinária. Por força do princípio da competência, portanto, é falso o problema da possibilidade de uma lei complementar ser revogada por uma lei ordinária.235 O referido autor classificou as hipóteses de invasão inconstitucional dos âmbitos materiais privativos, tendo como critério as diferentes conseqüências jurídicas de cada uma: (a) invasão por lei complementar de campo reservado às leis ordinárias da União Federal; (b) invasão por lei ordinária de campo reservado à lei complementar; (c) invasão por lei complementar de campo reservado às leis ordinárias dos Estadosmembros e Municípios; e (d) invasão por leis ordinárias dos Estados-membros e Municípios de campo da lei complementar.236 Na hipótese de invasão, por uma lei complementar, de campo reservado à lei ordinária, ocorre o que a doutrina convencionou denominar de “queda de status”, pois lei complementar que não satisfaça, de forma cumulativa, os aspectos formal – quorum de aprovação qualificado de maioria absoluta – e material – previsão constitucional do conteúdo da lei complementar – será simples lei ordinária com nomen juris inapropriado, podendo, inclusive, ser revogada por tal espécie legislativa. Entretanto, para ter existência, validade e eficácia, somente poderá tratar de assunto que esteja reservado à competência legislativa da União Federal.237 Se, ao contrário, uma lei ordinária tratar de assunto reservado ao campo de lei complementar, invadindo-o, estará maculada por flagrante inconstitucionalidade, uma vez que, para tal matéria, a Constituição ali exigiu fosse a aprovação qualificada por um quorum especial que, de acordo com o artigo 69 da Lei Maior, deverá ser o de maioria absoluta. Nas hipóteses em que uma lei complementar invada o campo reservado às leis ordinárias de Estados-membros e Municípios, ou de as leis ordinárias de Estadosmembros e Municípios invadirem o campo reservado à lei complementar, estar-se-á 235 Lei complementar..., op. cit., p. 25. Idem. 237 Ibidem, p. 26-27. 236 109 diante de atos inconstitucionais do Congresso Nacional, no primeiro caso, ou das Assembléias Legislativas e/ou Câmara de Vereadores, na segunda hipótese. 238 Salvo a hipótese da letra “a”, em que a (falsa) “lei complementar” terá sido “aproveitada”, nas demais situações o respectivo ato será inconstitucional, não sendo possível solucionar o problema mediante a revogação do mesmo, mas a partir daí tãosomente através de declaração de inconstitucionalidade por decisão do Supremo Tribunal Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN, a qual possui efeitos erga omnes – artigo 102, I, “a”, da Constituição Federal de 1988 – ou mediante Resolução do Senado Federal que suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal – artigo 52, X, da Constituição Federal de 1988. O problema da alegada superioridade formal da lei complementar diante das leis ordinárias, sejam da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, dáse no plano da eficácia da lei, o que se constitui no argumento científico apto a demonstrar a inexistência dessa pretensa hierarquia. A Ciência do Direito distingue os planos de (I) existência, (II) validade, (III) vigência, (IV) incidência, (V) aplicação e (VI) eficácia da lei.239 No plano da existência da lei só cabe argumentar se a lei “é” ou “não é”. A regra jurídica, como qualquer outro fato jurídico, só existirá se for fato colhido pelo mundo do direito. É conceito prévio aos planos da validade, vigência e eficácia, pois uma norma só terá validade, vigor e eficácia, se existir. Após existir, a norma poderá ser válida ou não válida (= nula ou anulável) – dependendo de sua compatibilidade ou não com o ordenamento jurídico, tanto no aspecto formal – processo legislativo previsto na Constituição – como no material – conteúdo conforme a Constituição. O conceito de vigência não se confunde com o de incidência, pois a lei que já está em vigor tem potencial para incidir, não significando, contudo, que já incida. A incidência surge com a ocorrência do fato jurídico no mundo fenomênico, que é fato sobre o qual incide a regra jurídica. A incidência é sempre infalível, ao contrário do cumprimento da regra pelo destinatário (respeitabilidade). Também se distingue a vigência da eficácia, pois uma norma pode já estar em vigor e ainda não ser eficaz, ou seja, não comporta praticabilidade ou realizabilidade. Dizendo de outro modo, eficaz é a norma que tem capacidade para produzir os efeitos jurídicos que lhe são próprios. Não 238 Ibidem, p. 27. 110 há que se confundir a eficácia jurídica, com a eficácia social das regras jurídicas, que é a eficácia observada pelo efetivo atendimento da conduta prescrita pela regra jurídica, assunto que, todavia, é pós-jurídico, a ser analisado pela sociologia jurídica. Com efeito, a eficácia jurídica é conceito que exige a preexistência da lei, requerendo o seu ingresso no sistema jurídico. Com base nesse raciocínio, conclui-se que o quorum qualificado, exigido pelo artigo 69 da Constituição para a aprovação das leis complementares, é um requisito de existência e não de eficácia da lei complementar, posto que esta, a eficácia, “[...] pressupõe a adequação do ato legislativo com os limites constitucionalmente postos à competência da União para editá-la, na observância do devido processo constitucional”.240 A maioria absoluta, portanto, é requisito constitucional de existência e validade de uma lei complementar apenas em seu aspecto formal. A eficácia da lei complementar, desse modo, deve ser vislumbrada em outro plano, o do seu respectivo objeto, em que a Constituição elegeu determinadas matérias para serem positivadas mediante um processo legislativo especial. Também carece de fundamentação científica a tese pela qual a posição hierárquica superior da lei complementar seria resultado de sua localização intercalar entre as emendas constitucionais e as leis ordinárias, nos incisos I a III do artigo 59 da Constituição. Essa afirmação, como bem defende JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, envolve uma inadvertida petição de princípio, ao dar como demonstrado aquilo que deveria ter sido e não o foi, haja vista que teria que se embasar no fato de ser a lei complementar o fundamento de validade de uma lei ordinária – federal, estadual ou municipal. Incorreu, entretanto, em raciocínio inverso, pois parte da função intermediária como conclusão da superioridade da lei complementar sobre a ordinária. Acrescenta o autor, ainda, que categoria intermediária em razão da matéria, entre a Constituição e a lei ordinária, não será superior à lei ordinária, no plano da eficácia, “[...] dado que eficácia é mera relação entre norma e conduta e não relação entre normas”.241 O quorum qualificado, necessário à aprovação das leis complementares, existe como uma conseqüência jurídica de uma decisão política do legislador constituinte, tendo por fundamento a proteção de valores reputados relevantes, mediante um processo 239 Ibidem, p. 36. Ibidem, p. 45. 241 Ibidem, p. 47. 240 111 legislativo mais rígido que assegure maior representatividade, já que a lei complementar tem por aspecto material questões que são de interesse nacional, ou seja, não só da União Federal, como também dos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. A subordinação hierárquica entre normas, no Direito, não é uma necessidade da regulação da conduta, mas uma construção do sistema positivo, ou seja, é uma decisão que tem origem em ato de vontade do detentor do poder político.242 Os planos da validade e da eficácia jurídicas são essencialmente distintos, do que resulta a conclusão de que a investigação do problema da validade da norma não interfere com a solução a ser dada para o problema de sua eficácia, o qual se põe, quanto à lei complementar, em momento lógica e cronologicamente diverso, ou seja, após o seu ingresso no sistema jurídico por ato do Congresso Nacional, através da forma estabelecida no artigo 69 da Constituição. A eficácia é um atributo da norma que se relaciona com a conduta humana – conforme ou desconforme à norma – não sendo conceito de relação entre normas, do que resulta não ser a eficácia jurídica um conceito suscetível de quantificação, não tendo, juridicamente, nenhum sentido defender-se que uma norma possui mais eficácia do que outra, ou que possua uma “superioridade eficacial” em relação à outra norma.243 A lei complementar tem por função a integração ou a contenção de eficácia das normas constitucionais, complementando o sistema federal de governo, não podendo, em hipótese alguma, emendar a Constituição, sob pena de violar-lhe a rigidez. Não há, diante disso, superioridade hierárquica da lei complementar em relação à lei ordinária. Na verdade, só há hierarquia entre normas jurídicas quando uma norma é inferior à outra porque esta é o seu fundamento de validade, ou seja, a superior estabelece o processo de criação e o conteúdo material da inferior. Em nosso ordenamento jurídico, regra geral, a lei ordinária busca o seu fundamento de validade diretamente da Constituição, e não da lei complementar. Por fim, como bem observa JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, “É um irremediável ilogismo reconhecer que a lei complementar somente pode explorar um campo de competência cujo limite esbarra na área privativamente reservada à legislação ordinária e pretender, ao mesmo tempo, identificar na lei complementar superioridade hierárquica ou eficacial... dentro desse campo privativo”.244 242 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 207. BORGES, José Souto Maior. Lei complementar..., op. cit., p. 51-52. 244 Ibidem, p. 57-58. 243 112 2.3.2 Lei complementar tributária Todo estudo sobre o Direito Tributário no Brasil tem, como premissa inafastável, o fato de o sistema constitucional brasileiro, além de extenso e complexo, ser dos mais rígidos e exaustivos que existem. Quase toda a matéria tributária está na Constituição, restando muito pouco para a dicção infraconstitucional, onde somente é possível obedecer-lhe e completá-la, nas hipóteses em que a própria norma superior assim o requerer.245 Com base nesse raciocínio, HERON ARZUA ensina: Essa especialidade do sistema constitucional tributário, essa disciplina quase exaustiva de toda a atividade tributária, essa verdadeira retenção do poder tributário pleno, resulta na pouca liberdade da legislatura, jungida fortemente às normas e aos princípios constitucionais tributários. Significa expressar que a lei infraconstitucional não pode mexer nas previsões constitucionais, seja para ampliar, reduzir ou alterar tais comandos.246 GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO, em comentário sobre a definição de serviço por lei complementar, ressaltam, com acerto, que, “[...] se a Constituição é rígida e, com extrema rigidez, fixa as competências tributárias, discernindo as áreas exclusivas de atuação das pessoas políticas, por critério material objetivo, não pode a lei complementar diminuir, nem ampliar as competências. A legislação 247 infraconstitucional não altera a Constituição”. Uma das melhores fundamentações acerca dos estreitos limites da lei complementar em matéria tributária coube a MARÇAL JUSTEN FILHO, em item intitulado “Colocações prévias imperiosas” [sic], de sua clássica obra sobre o ISS, onde o jurista paranaense traça interessante paralelo entre esse tema e o problema da discricionariedade na administração pública: “Mutatis mutandis, o problema é muito assemelhado ao ora tratado, eis que o fulcro da discussão é acerca da liberdade juridicamente admissível na tarefa de complementar disposições normativas”.248 Como base de seu raciocínio, o autor ampara-se no pensamento de FERNANDO SAINZ MORENO, o qual assinala que a linguagem legislativa vale-se de conceitos jurídicos, os quais, como qualquer outro conceito, revestem-se de uma certa indeterminação (vaguidade):249 245 ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 144-145. Ibidem, p. 145. 247 ISS – conflitos de competência e tributação de serviços. Revista de Direito Tributário, n. 6, p. 61. 248 O imposto sobre serviços na Constituição, p. 60-61. 249 Conceptos jurídicos, interpretación y discricionalidad administrativa, p. 364. 246 113 La indeterminación consiste em que la aplicación del concepto a su objeto se mueve entre dos límites, uno de certeza positiva que marca la idea nuclear del concepto (aquello a lo que con seguridad puede aplicarse), y otro de certeza negativa (aquello a lo que con seguridad no puede aplicarse), existiendo entre ambos límites una zona de duda (hal del cencepto)... La idea nuclear en que todo concepto consiste, al proyectarse sobre los objetos, deja una zona en penumbra entre el ámbito de realidad propeio de ese concepto y el ámbito que corresponde a otros conceptos.250 Existem, de fato, conceitos de maior determinação do que outros, tendo em vista ser menor o âmbito de penumbra que pode ocorrer no seu cotejo com a realidade. Entretanto, quando uma norma, por utilizar um conceito jurídico (mais) indeterminado, remete a uma segunda norma a tarefa de tornar mais determinado esse conceito, isso não confere qualquer parcela de liberdade à norma interpretante, mesmo nas zonas de maior obscuridade. Defender o contrário seria admitir uma faculdade de interpretação desvinculada dos limites da norma interpretada ou complementada, em ofensa ao princípio da legalidade e da hierarquia superior das normas constitucionais. Deve-se, para descobrir o sentido da norma, aplicar os mesmos princípios e limites existentes em relação à interpretação dos conceitos jurídicos mais indeterminados. A presunção de validade da determinação contida na norma inferior será sempre relativa, afastável toda vez que restar configurada a incompatibilidade lógica com a vontade extraível não só da norma superior, mas também de todo o sistema.251 Esse raciocínio, aplicado às normas complementares do Sistema Constitucional Tributário, leva à inevitável conclusão da inexistência de qualquer liberdade para o legislador complementar, a qual desvirtuaria a exaustiva normatização da matéria tributária em nível constitucional. A norma complementar, assim, tem por objeto apenas e tão somente tornar mais determinado o conceito jurídico utilizado pelas normas constitucionais, afastada qualquer possibilidade de inovação. Conclui MARÇAL JUSTEN FILHO: É postulado imperioso o de a lei complementar não poder incidir sobre os campos de certeza (positiva ou negativa) do conceito jurídico constitucional. Não poderá afastar do âmbito de incidência desse aquilo sobre o que certamente incide, nem poderá pretender fazê-lo incidir sobre aquilo que certamente não incide. Seu campo próprio será o da chamada zona grísea – aquele campo sobre o qual é duvidoso que a norma constitucional incida.252 250 Apud JUSTEN FILHO, Marçal. ibidem, p. 61. Ibidem p. 61-62. 252 Ibidem, p. 62-63. 251 114 Nessa esteira, depreende-se ser inequívoco que a atribuição expressa das competências da lei complementar de normas gerais, de que trata o artigo 146, da Constituição Federal, abrangendo todas as matérias veiculadas nos seus incisos I, II e III, não autoriza o uso discricionário nas hipóteses em que a Constituição consignou normas cujo conceito é certo e determinado. HERON ARZUA pontua que, ainda no campo da prevenção de conflitos de competência tributária (artigo 146, I), campo por excelência da lei integrativa, a liberdade da lei complementar é relativa, “[...] visto já nascer a competência tributária com suas fronteiras marcadas pela própria Constituição”.253 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES lembra que a doutrina invariavelmente sustenta estar a lei complementar em uma posição intermediária ou intercalar entre a Constituição e a lei ordinária, como resultado de uma sua pretensa superioridade hierárquica, conforme já foi refutado em item anterior. Ainda que se discorde dessa posição doutrinária, há que se observar que prevalece o entendimento pelo qual a vigência e a eficácia da lei complementar, em especial em matéria tributária – como são exemplos as normas gerais de direito tributário – não podem ficar condicionadas à sua observância pelas leis dos Estados e Municípios, os quais não podem, por simples omissão, desobedecer tais normas e, com isso, manter a existência de conflitos de competência tributária.254 O que efetivamente ocorre é que “[...] a superveniência de lei complementar sobre normas gerais de direito tributário paralisa ou suspende a eficácia da lei tributária estadual e municipal”, provocando um “vácuo” que só poderá ser preenchido pela legislação competente, ou seja, a própria legislação estadual ou municipal.255 Não podem os Estados e Municípios incorporar as normas gerais previstas em lei complementar através de decreto, sob pena de violação ao Princípio da Legalidade. Enquanto isso não ocorrer, o tributo não poderá ser exigido. Não é logicamente possível, portanto, defender que a lei complementar possua eficácia plena, e, simultaneamente, conferir-lhe a função de ato legislativo intercalar.256 O referido autor comenta que uma parcela da doutrina aceita, como se fosse uma obviedade inatacável e prescindível de fundamentação, a tese de que a lei complementar ocupa uma “posição hierárquica supraordenada”, do que resultaria uma 253 O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 145-146 Lei complementar..., op. cit., p. 59. 255 Ibidem, p. 60. 254 115 pretensa “superioridade eficacial” desse ato legislativo com relação à lei ordinária. Diz o autor que essa posição doutrinária estuda a lei complementar como se a mesma fosse uma “categoria legislativa unitária”, ou seja, “[...] como se todas as leis complementares previstas na Constituição estivessem submetidas a idêntico regime jurídico-material”.257 O regime jurídico-formal da lei complementar é o que decorre da exigência constitucional, prevista no artigo 69 da Lei Maior, de aprovação por maioria absoluta, enquanto que o regime jurídico-material dessa espécie legislativa diz respeito, como o próprio nome acusa, às matérias para as quais a Constituição reservou a forma da lei complementar. As razões para a defesa dessa equivocada posição doutrinária residem na inquestionada certeza de que a lei complementar seja sempre o fundamento de validade das leis ordinárias federais, estaduais e municipais, conclusão que, muitas vezes, resulta da sua localização intercalar entre as emendas constitucionais e as leis ordinárias, conforme está disposto no artigo 59 da Constituição. Em uma análise jurídica mais detida, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES demonstra que nem sempre isso ocorre. A análise de que fala o autor resultou na classificação das leis complementares em dois grupos básicos: 1º) leis complementares que fundamentam a validade de atos normativos (leis ordinárias, decretos legislativos e convênios); e 2º) leis complementares que não fundamentam a validade de outros atos normativos.258 A conclusão a que se chega através dessa classificação é que, ratione materiae, a lei complementar não constitui uma categoria legislativa unitária, ainda que seja disciplinada de modo uniforme pela Constituição. O autor lembra ainda, com acerto, que a isonomia das pessoas políticas é reforçada pelo fato de a lei complementar poder fundamentar a validade não só das leis estaduais e municipais, mas também das federais.259 Sem contrapor a excelente classificação feita pelo referido autor, SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, sob outro prisma, oferece contribuição de vulto em sua classificação das formas de atuação das leis complementares em matéria tributária, as quais podem, na visão desse renomado autor: 256 Ibidem, p. 60-61. Ibidem, p. 80. 258 A classificação do autor, feita com base na Constituição Federal de 1969, não prejudica a nossa teorização, em razão não só da similitude do regime jurídico anterior com o atual, assim como da extensão das comparações realizadas. 259 Lei complementar..., op. cit., p. 82-84. 257 116 a) integrar dispositivos constitucionais de eficácia limitada, atribuindo-lhes normatividade integral: é o caso das imunidades previstas no artigo 150, VI, “c”, cuja eficácia depende da observância dos requisitos previstos em lei que, a teor do artigo 146, II, da Constituição, só pode ser a complementar, por tratar-se de regulamentação de “limitação constitucional ao poder de tributar”; b) complementar dispositivos constitucionais de eficácia contida, definindo-lhes o alcance: como é exemplo o dispositivo prescrito no artigo 155, § 2º, X, “a”, na redação anterior à Emenda Constitucional nº 42/2003, pelo qual as exportações de produtos industrializados eram imunes ao ICMS, com exceção dos semi-elaborados a serem definidos em lei complementar que, enquanto não editada, tornou a exceção sem efeito; c) atuar diretamente: aqui cabe citar o exemplo da lei complementar exigida pelo artigo 148 da Constituição, para instituição dos empréstimos compulsórios nos casos definidos nos incisos I e II, ou, ainda, a que trata o artigo 146, I, para dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária.260 2.3.3 Conteúdo das normas gerais de Direito Tributário Em excelente artigo, publicado em 1969, GERALDO ATALIBA, comentando sobre o tema das normas gerais de Direito Tributário, reflete com argúcia sobre o Sistema Tributário Nacional, dando legítimo relevo ao papel dos princípios constitucionais que informam e condicionam o seu adequado funcionamento. Partindo dessas sólidas premissas, o autor entende, raciocinando por exclusão, que “[...] outra função não podem ter as normas gerais senão completar a Constituição onde e quando seja previsível – ou efetivamente venha a ocorrer – conflito entre as pessoas tributantes”.261 O autor fundamenta que seria ilógico e absurdo que a Constituição houvesse concedido aos Estados e Municípios autonomia, tributos privativos e ampla competência na sua instituição e regulamentação e, simultaneamente, tivesse conferido 260 261 Curso..., op. cit., p. 100-101. Normas gerais de direito financeiro e tributário e autonomia dos Estados e Municípios. Revista de Direito Público, n. 10, p. 47-48. 117 ao Congresso Nacional poderes para que pudesse limitar, de forma arbitrária, aquelas faculdades e competências. Acrescenta que “[...] sem a rigorosa visão de conjunto desse complexo, o aplicador da legislação tributária é levado à perplexidade, quando não às erronias mais deploráveis”.262 O raciocínio de GERALDO ATALIBA deu-se em relação ao texto da Constituição Federal de 1967, alterado pela Emenda n 1, de 17 out. 1969. Em que pese a concordância com suas conclusões, naquele contexto, o texto da atual Constituição, por apresentar alterações que reputamos relevantes, merece uma nova leitura, mais consentânea com a nova redação inequivocamente desejada pelo legislador constituinte. É óbvio que tais dispositivos devem ter a sua interpretação vinculada aos valores revelados pelos princípios constitucionais, posto que a adoção de sua análise em si mesma implicaria admitir a aceitação tão-somente da interpretação literal, o que, desde logo, refutamos veementemente, uma vez que, conforme já defendemos no início desse trabalho, a única interpretação válida, para nós, é aquela que desemboca no contexto sistemático da Constituição. Preliminarmente à análise do artigo 146 da Carta Constitucional, é relevante tecer alguns comentários sobre o artigo 24 da Constituição de 1988. A parte que interessa ao trabalho dispõe o seguinte: Artigo 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário...; § 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. (grifamos) A disposição do caput, pela qual a União, os Estados e o Distrito Federal legislam concorrentemente sobre direito tributário, se interpretada literalmente, pode levar a um resultado falso, pois as pessoas políticas, em matéria tributária, concorrem em campos distintos. A previsão do § 1º tem, por objetivo, impedir que as normas gerais editadas pela União tenham por destinatários somente uma classe de pessoa política, ou seja, que atinjam ou só os Municípios, ou só os Estados. Conclui-se que, para serem qualificadas como normas gerais, deverão ser aplicáveis a todas as pessoas políticas, incluindo a própria União. O § 2º e o § 3º tratam das hipóteses em que a União quede 262 Ibidem, p. 48. 118 inerte em sua competência para a edição de determinada norma qualificada como geral, o que transfere aos Estados a aptidão para exercerem a chamada competência suplementar. Conclui-se que, do exercício dessa competência (§ 3º), só poderão resultar normas aplicáveis ao próprio Estado, posto ser pacífico que um Estado não pode editar norma aplicável à União ou mesmo aos Municípios, diante da autonomia inerente à cada pessoa política.263 O § 4º é claro ao dispor que, se após a criação de norma suplementar estadual, sobrevier norma geral editada pela União, a norma estadual, automaticamente, terá sua eficácia suspensa, naquilo que conflitar com a lei nacional. Por sua vez, o artigo 146 e incisos da Constituição estabelecem caber à lei complementar: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no artigo 155, II, das contribuições previstas no artigo 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o artigo 239. Na Constituição de 1967, o artigo 18, § 1, tratava da competência da lei complementar de forma semelhante ao que dispõe o artigo 146 da atual Carta, acima transcrito, mas com a diferença de que não discriminava qual era o conteúdo específico a ser legislado pelas normas gerais, como fez o atual inciso III, nas letras “a”, “b”, “c”, assim como a letra “d”, recentemente incluída pela Emenda Constitucional n 42/2003. Da análise, à época, sobre o real alcance e função desse dispositivo, resultaram duas correntes doutrinárias de opiniões divergentes, as quais estiveram, desde então, sempre presentes nos debates acadêmicos. Uma primeira corrente foi designada tricotômica, também conhecida por “trialismo”, por entender que o dispositivo em exame estabeleceria três funções distintas para a lei complementar, conforme ilustra o pensamento, à época, de IVES 263 ATALIBA, Geraldo. Lei complementar em matéria tributária. Revista de Direito Tributário, n. 48, p. 86-87. 119 GANDRA DA SILVA MARTINS, e que, nitidamente, prestigia o sentido literal do texto: Reza o 1º do artigo 18 da Constituição Federal que ‘Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre conflitos de competência dessa matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder de tributar’, definindo bem o campo da atuação da lei complementar, ou seja, com tríplice função, sempre de esclarecimento [...].264 A interpretação levada a cabo por essa corrente, se transplantada para o atual artigo 146, resulta na errônea conclusão de que as únicas matérias a serem tratadas por normas gerais de direito tributário são as que estão previstas nas alíneas do inciso III do artigo 146, quando na verdade todo o artigo 146, incluindo também os incisos I e II, dispõe sobre matérias de inegável caráter geral. Outra conseqüência do “trialismo” reside no entendimento de que a lei de normas gerais poderia definir a hipótese de incidência do tributo, o que se revela no mínimo temerário, pois a estruturação definitiva do tributo, dentro da qual está a definição do antecedente, é tarefa inequivocamente destinada à lei tributária material editada pela pessoa política competente para instituir cada tributo. Pelo posicionamento mais restrito ao teor literal, tal corrente passou a ser chamada de “[...] escola bem comportada do Direito Tributário brasileiro”.265 Uma segunda corrente, chamada de dicotômica, ou “dualismo”, capitaneada por GERALDO ATALIBA, criticou a anterior, por entender que a mesma estaria privilegiando uma interpretação meramente literal, a qual possibilitaria ao legislador da União, diante da não delimitação das normas gerais de direito tributário, ofender o pacto federativo e a autonomia municipal, por meio de leis complementares que invadissem as competências reservadas às demais pessoas políticas. Por defender que o dispositivo em análise teria apenas a finalidade de veicular normas gerais de direito tributário, as quais somente poderiam (i) ou dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária, ou (ii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar. 266 Os seus defensores – GERALDO ATALIBA267, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES268, PAULO DE BARROS CARVALHO269, ROQUE ANTONIO 264 Imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Tributos municipais – ISS, IPTU e contribuição de melhoria, p. 7. 265 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 198. 266 Apud TORRÊS, Heleno Taveira. Código tributário nacional..., op. cit., p. 95-96. 267 Normas gerais..., op. cit., p. 70. 120 CARRAZZA270, entre outros – defendem, para a lei complementar de normas gerais de direito tributário, uma função meramente declaratória do conteúdo constitucional, pois, devido às competências tributárias já possuírem seus limites rigorosamente demarcados no próprio texto constitucional, assim como não se admite que os direitos e garantias individuais do contribuinte – “limitações constitucionais ao poder de tributar” – possam sofrer restrições em nível infraconstitucional, muito pouco ou nenhum espaço sobraria para ser regulado pelas normas gerais de direito tributário. Durante muito tempo a doutrina dividiu-se entre as duas posições. Diante do exame conjunto das mesmas, a corrente dicotômica, inegavelmente, representa um raciocínio mais coerente e sistêmico sobre o tema, em face do ordenamento jurídico, em especial quanto à crítica da literalidade presente na corrente tricotômica e seus efeitos potencialmente violadores dos princípios federativo e da autonomia municipal. Todavia, e com o devido respeito, entende-se que disso não resulta o total acerto de suas conclusões. Mais recentemente, parte da doutrina parece defender um terceiro posicionamento, contrário à redução do papel das normas gerais às duas funções propostas pelos “dualistas” – dispor sobre conflitos em matéria tributária e regular as limitações constitucionais ao poder de tributar – pois esse raciocínio poderia remeter a um resultado interpretativo cujo espectro é inferior ao que seria efetivamente possível para essa espécie de normas no atual Sistema Tributário Nacional. HELENO TAVEIRA TÔRRES teceu relevantes reflexões nesse sentido. Esse jurista, com base nas teorias da codificação, ao invés de reduzir as funções das normas gerais a somente duas, prefere explicitar as possibilidades da aludida lei complementar, no que tange às funções representadas em cada uma das hipóteses do artigo 146 da Constituição. Na visão desse autor, caberia, portanto, à lei complementar de normas gerais de direito tributário: i) regular limitações constitucionais ao poder de tributar; detidamente àquelas que exigem lei específica para surtir seus efeitos; ii) evitar conflitos de competência entre as pessoas tributantes, ao dispor sobre fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos já identificados na Constituição; iii) definir os tributos e suas espécies; iv) harmonizar os procedimentos de cobrança e fiscalização dos tributos, tratando de obrigação, lançamento e crédito; e v) uniformizar prazos de decadência e prescrição; vi) 268 Lei complementar..., op. cit., p. 198. Curso..., op. cit., p. 197-202. 270 Curso..., op. cit., p. 805-806. 269 121 fomentar, de modo harmonizado, adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.271 O autor também defende que todas essas funções devem ser exercidas tendo em vista a observância aos princípios maiores estabelecidos na Constituição, sendo vedada qualquer possibilidade de que normas gerais tratem de assunto reservado ou já previsto de forma satisfatória na própria Lei Maior. Acrescenta-se, em razão do advento da Emenda Constitucional n 42/2003, a competência para a lei complementar estabelecer normas gerais visando definir tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte, conforme inclusão da letra “d” no inciso III do artigo 146. Outra renomada jurista, MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, vê uma necessidade de padronização das várias ordens jurídicas tributárias existentes, em virtude de uma política econômica de âmbito nacional: “O Estado intervencionista e planificador, que visa a controlar e possibilitar um planejamento econômico e financeiro nacional, teve que adotar determinados instrumentos que pudessem estabelecer diretrizes para a produção das ordens jurídicas parciais federal, estadual e municipal”.272 Para a autora, o que a Constituição quer é evitar que cada legislativo municipal e/ou estadual, ao instituir seus próprios tributos, imprima uma interpretação em desarmonia com o texto constitucional. Entretanto, esclarece que, não obstante seu posicionamento, não pode a União Federal, quando do exercício de sua competência para editar normas gerais, impor às demais pessoas políticas uma interpretação das exigências constitucionais que não se coadune com o ordenamento jurídico como um todo, em especial com os princípios constitucionais. Nesse caso, ainda que houvesse, na lei tributária de todas as pessoas políticas, um mesmo vetor interpretativo oriundo da lei complementar, todas estariam em conflito com a Lei Maior. É inegável que esse posicionamento representa uma contribuição científica relevante, em especial pela intenção de proceder a uma análise contextual do tema das normas gerais, não se reduzindo, como fez a teria tricotômica, a aceitar o que literalmente está disposto na Constituição. Entende-se, entretanto, que a única função das normas gerais em matéria tributária compatível com o contexto constitucional é a de 271 272 Código tributário nacional..., op. cit., 96-97. Apud BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, p. 42. 122 regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e, dentre estas, somente as que não possuam eficácia plena e aplicabilidade imediata. Partindo dessa premissa, conclui-se que, visualizar como funções das normas gerais todas as hipóteses representadas nos incisos I, II e III, do artigo 146 da Constituição, resulta em considerar como função algo que na verdade é apenas e tãosomente uma explicitação constitucional do caminho a ser seguido pela lei complementar de normas gerais, quando estiver cumprindo sua única função permitida, ou seja, quando estiver regulamentando aquelas limitações constitucionais ao poder de tributar que exigem essa forma de integração. Toda a discussão sobre o Direito Tributário que está na Constituição e aquele que pode estar na legislação complementar resume-se a somente dois aspectos. Um primeiro trata da repartição das competências tributárias, efetivada pela Constituição, ou seja, preliminarmente, há que se saber quais são as materialidades que cada uma das pessoas políticas recebeu como passíveis de serem oneradas mediante a instituição do tributo, tarefa designada de exercício da competência e que, pelo pacto federativo e pela autonomia dos Municípios, cabe tão-somente à lei ordinária da respectiva pessoa política. Um segundo envolve o conhecimento preciso de quais são os limites a serem observados quando do exercício dessa competência. Dentre esses limites, estão: a) a materialidade reservada à competência alheia; b) a observância dos princípios constitucionais tributários; e c) as hipóteses de não-incidência constitucionalmente qualificadas, ou seja, as imunidades tributárias. Em síntese, seja qual for a limitação, ela é denominada de “limitação constitucional ao poder de tributar”. Então, quando o artigo 146, I, da Constituição Federal, dispõe que cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, ou ainda quando o inciso III, “a”, do artigo 146, outorga competência ao legislador complementar para definir tributos e suas espécies, bem como os fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos, quaisquer dessas leis, se editadas, estarão regulando uma espécie do gênero “limitação constitucional ao poder de tributar”, ou seja, a limitação da materialidade reservada à competência alheia. Por outro lado, as letras “b”, “c” e “d”, do inciso III, do mesmo artigo 146, outro objetivo não podem ter senão o de remeter à lei complementar a disciplina dos princípios constitucionais tributários, uma outra espécie do gênero “limitação constitucional ao poder de tributar”, aumentando a concretude daqueles no âmbito infraconstitucional. 123 Nessa trilha é a posição mais recente de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES273, para quem a discussão entre o “dualismo” e o “trialismo” é um “[...] diálogo de surdos, no qual só a divergência de opiniões se move”. As conclusões das duas correntes, diz o autor, “[...] ficaram no meio do caminho porque rendem espaço a uma construção doutrinária unificadora, que por isso mesmo as suplanta...”.274 Para o autor, as três funções da lei complementar do artigo 146 da Constituição (linguagem-objeto) podem ser reduzidas, na metalinguagem doutrinária, à função de dispor sobre as limitações constitucionais ao poder de tributar, sendo que a mais eminente delas, sem nenhuma violação ao espírito da Constituição, é a legalidade tributária. Para o citado autor, “[...] na ordem da sua importância axiológica, as questões de limites primam sobre as demais”. Como síntese, as três funções das normas gerais seriam redutíveis a uma: “[...] dispor a norma geral sobre a legalidade tributária das pessoas constitucionais”, teoria unificadora que não acarreta nenhuma redução no âmbito de validade do artigo 146, III, da Constituição. Ao que nos parece, essa foi a melhor análise do tema das normas gerais até o momento.275 Outro argumento relevante, ainda que político, não jurídico, reside no notório uso abusivo, pela União Federal, de sua competência de editar normas gerais, o que confirma HERON ARZUA, para quem “[...] a União não é confiável em matéria de tributação”.276 Comentando a afirmação desse autor, a Professora LUCIA VALLE FIGUEIREDO afirma: “Esta é uma frase lapidar, é uma frase que deveria encimar qualquer consideração sob o ponto de vista da tributação. A União não é confiável. Além do que as estatísticas também não são confiáveis”.277 A lei de normas gerais é, nas palavras de RAUL MACHADO HORTA, “[...] normas não exaustivas”. Ensina esse autor que “[...] a lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa”.278 MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI transfere essa definição para a seara tributária: “Lei quadro, lei moldura, lei de princípios, a lei de normas gerais de Direito Tributário emana da União por meio de 273 Em sua obra Lei complementar tributária, p. 198, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES ainda defendia os mesmos argumentos da corrente dicotômica. 274 Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 19. 275 Ibidem, p. 24 e ss. 276 IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário: mesa de debates – temas gerais. Revista de Direito Tributário, n. 67, p. 163. 277 IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário: mesa de debates – temas gerais. Revista de Direito Tributário, n. 67, p. 165. 278 Apud BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário..., op. cit., p. 41. 124 lei complementar e pertence àquela ordem jurídica no Estado Federal”.279 Discordamos dessa autora, no entanto, quando ela defende serem as leis de normas gerais hierarquicamente superiores às ordens jurídicas parciais da própria União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pois como já se demonstrou acima, há, na verdade, tão-somente um campo de competência diverso entre tais leis, não havendo como identificar conflito de hierarquia uma vez que possuem aspecto material diverso conforme traçado na Constituição.280 É óbvio que a Constituição, com supedâneo nos princípios do Federalismo e da Autonomia Municipal, impõe rigorosos limites à União Federal, quando estiver legislando sobre esse tema, uma vez que tal competência não poderá, em hipótese alguma, servir de pretexto para que sejam menoscabadas a autonomia e a igualdade existente entre as pessoas políticas internas. É de rigor, portanto, que as leis nacionais tributárias, destinadas ao legislativo dos demais entes políticos – verdadeiras normas sobre normas – não inovem além do que já dispõe a própria Constituição Federal, servindo tão-somente para facilitar, explicitar, a aplicação dos cânones constitucionais. É que determinados vocábulos e expressões constantes do texto constitucional são, por vezes, dotados de vagueza (textura aberta), o que os tornam “conceitos até certo ponto indeterminados”, situados em campo qualificado semanticamente como zonas cinzentas, oferecendo mais de uma possibilidade significativa. Entretanto, é preciso ressaltar que na própria Constituição estão positivados os valores ideológicos que permitem e impõem um devido direcionamento interpretativo, possibilitando efetuar uma contextualização que acaba por afastar os significados que se revelem em dissonância com o sistema jurídico em geral. O principal papel da lei complementar em matéria tributária – em especial quando dispõe sobre conflitos de competência – é, portanto, afastar a indeterminação dos conceitos existentes na Lei Maior, não se podendo constituir em instrumento de inovação jurídica nascida da vontade exclusiva da pessoa política central, já que sua utilização não é fruto de decisão do Poder Legislativo, mas sim de previsão constitucional expressa.281 Como já se demonstrou acima, a previsão quanto à competência da União Federal para instituição, mediante lei complementar, de normas gerais em matéria 279 Idem. Idem. 281 Diz-se principal, pois a Constituição reserva outras funções à lei complementar, destinadas a tratar de assuntos de competência exclusiva da União Federal, como é o caso, por exemplo, da criação dos empréstimos compulsórios (artigo 148) e do imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, VII). 280 125 tributária, conforme dispõe o artigo 24, I, da Constituição, está situada no âmbito da legislação concorrente. A criação dessas normas gerais não pode substituir o exercício da competência legislativa própria dos Estados e Municípios, pois o artigo 150, I, da Constituição Federal, que dispõe sobre o Princípio da Estrita Legalidade Tributária, assim como o artigo 97 do Código Tributário Nacional, que o regulamenta, fazem referência à exigência de lei da pessoa competente – federal, estadual ou municipal – para a instituição do tributo, não sendo suficiente, para tanto, nem a previsão constitucional, nem a edição da lei complementar federal criadora das normas gerais. 282 Pode-se dizer que os limites da União Federal na edição de normas gerais encontram-se na própria autonomia dos entes políticos internos. Embora a prevenção de conflitos de competência, no Direito Tributário, seja assunto de extrema importância, a padronização levada a efeito pelo legislador complementar resultará em dúvidas para o intérprete quanto à sua extensão.283 Nesse sentido, o ensinamento de MISABEL DERZI: “O federalismo integrativo, já por si centralizador, não pode sufocar, de forma nenhuma, a autonomia e a descentralização, enfim, a dissimetria a que se refere Pontes de Miranda, sob pena de converter-se o país em verdadeira unidade política”.284 Verifica-se ainda, do próprio texto constitucional, que as normas que atribuem competência tributária às pessoas políticas têm eficácia imediata, servindo de fundamento de validade direto e originário para o legislador ordinário, quando da instituição do tributo. Diante disso, se não existir lei complementar editada com base nos incisos I, II ou III, do artigo 146 da Constituição, ou seja, não havendo norma geral que disponha sobre conflitos de competência tributária, que regulamente as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, ou que defina os tributos, suas espécies e, quanto aos impostos, suas hipóteses de incidência e suas bases de cálculo, ainda assim as pessoas políticas poderão instituir seus tributos, tomando como diretrizes, diretamente, os artigos da Constituição. A própria Constituição é quem diz, conforme se infere do seu artigo 24, § 3º, que “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”, assim como o § 4º do mesmo artigo complementa prescrevendo que “A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”. Como se não 282 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário..., op. cit., p. 41. Ibidem, p. 43. 284 Idem. 283 126 bastasse, o artigo 34, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelece que “Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto”. Conclui-se que, desde que observados os princípios constitucionais tributários e as normas gerais eventualmente já editadas, é suficiente a lei ordinária da pessoa política competente para a efetiva criação do tributo, com exceção das hipóteses taxativas de instituição de determinados tributos federais por lei complementar, como os empréstimos compulsórios (artigo 148) e os tributos da competência residual, sejam impostos (artigo 154, I) ou contribuições para a Seguridade Social (195, § 4º). Entretanto, ainda que existente lei complementar de normas gerais em matéria tributária, nos termos do artigo 146 da Constituição, seu caráter será sempre meramente declaratório, como ensina ROQUE ANTONIO CARRAZZA, autor que, com propriedade, defende que os possíveis conflitos de competência em matéria tributária já estão resolvidos na própria Constituição, o que os torna conflitos aparentes, pois não são oriundos do texto constitucional, mas sim dos erros de interpretação, eventualmente constantes das leis das pessoas políticas. Da mesma forma, as “limitações ao poder de tributar” já estão todas delineadas na Carta Constitucional, não sendo possível ao legislador infraconstitucional, como o complementar, pretender inovar esse campo, mas tão-somente possuem o poder e o dever de reafirmá-las. O autor acrescenta que “[...] ou a lei complementar veiculadora de ‘normas gerais em matéria de legislação tributária’ limita-se a declarar a Constituição, nas matérias a que está autorizada, ou a afronta, e, neste caso, há que ser afastada, em última análise, pelo Poder Judiciário”, e que “[...] só o Judiciário, em nosso Direito, é competente para declarar, quando provocado, a vontade constitucional, definitivamente e com força de coisa julgada”.285 Conclui lembrando o seguinte: Aliás, as normas gerais em matéria de legislação tributária, em rigor, não obrigam nem ao Poder Legislativo (que busca suas competências diretamente na Constituição), nem ao Poder Executivo (que, com maior ou menor grau de liberdade, cumpre as determinações válidas do Legislativo), nem, tampouco, ao Poder Judiciário, que – convém sublinhemos – abdica de sua majestade sempre que, comodamente endentado na entrosagem das leis complementares que as veiculam, não as submete ao indispensável crivo da constitucionalidade, mas, rendendo-lhes homenagens, manda simplesmente ... que se cumpram.286 285 286 Curso..., op. cit., p. 821. Ibidem, p. 822. 127 Em artigo sobre a lei complementar tributária, GERALDO ATALIBA põe a nu as inconsistências dos argumentos contrários à corrente dicotômica. Em um primeiro comentário, sobre o inciso I do artigo 146, que remete à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, o autor defende, com lógica, que o dispositivo, em rigor, seria desnecessário, pois no aspecto eminentemente jurídico da Constituição, não há a possibilidade de conflitos de competência. É lógico que, no plano fático, não só as normas que outorgam competências, mas toda a Constituição pode ser violada. Mas isso, porém, seria assunto a ser resolvido pelo Poder Judiciário.287 Entende-se, porém, que, como foi extremamente clara e expressa a Constituição ao dispor sobre a competência material prevista no artigo 146, I, não resta ao intérprete senão analisá-lo da forma que mais bem se adapte aos princípios constitucionais. A norma que se extrai do inciso I do artigo 146 da Constituição – “Cabe à lei complementar... dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” – existe, em síntese, devido à Constituição Federal prever, nos artigos 153, 154, 155 e 156, todas as situações que podem ser tributadas pela via dos impostos, dividindo-as entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Como resultado, é possível, contudo, restarem dúvidas no saber de quem é a competência para tributar um determinado fato ou negócio jurídico, ocasionando um conflito de competência entre as pessoas políticas. Quando a União Federal edita uma lei complementar, com base no inciso I do artigo 146, da Constituição, tratando de tais conflitos, essa lei terá âmbito nacional, não vinculando somente as pessoas políticas envolvidas. Por essa razão, esse assunto também é considerado como sendo normas gerais de direito tributário. Entretanto, é preciso compreender que os conflitos não estão na Constituição – não são jurídicos – mas decorrem de falha hermenêutica, conforme ensina com mestria CLÉBER GIARDINO: Acho que a problemática dos conflitos, na verdade, nos coloca diante de duas situações: do ponto de vista fático, do ponto de vista concreto, conflito, na verdade, significa uma situação de ‘disputa’sobre uma determinada competência. Por definição, uma das partes envolvidas nessa disputa, estará extravasando o campo de competência que lhe foi constitucionalmente reservado. Esse é um corolário da afirmação inicial de que a repartição constitucional de competências tributárias esgota, na verdade, essas competências, e coloca, efetivamente, em cada um dos entes contemplados, campos absolutamente autônomos e privativos para o exercício desses 287 ATALIBA, Geraldo. Lei complementar..., op. cit., p. 90. 128 poderes. Daí, nesse aspecto, a situação conflitiva ser uma situação ‘falsa’. [...] Sob outro ângulo, a situação de conflito se reduz a um problema exegético. Todas as vezes que se diz: estamos diante de um conflito, quer-se significar, na verdade, que estamos diante de uma situação de maior ou menor dificuldade no sentido de corretamente interpretar o texto constitucional. Portanto, poder-se-ia encaixar a expressão ‘conflito’ no plano da interpretação jurídica, no plano do trabalho científico de localizar, na Constituição, o verdadeiro conteúdo das normas de competência.[sic]288 Comentando o teor do inciso II do artigo 146 da Constituição Federal de 1988, GERALDO ATALIBA, mais uma vez, critica a forma apressada e incoerente desse trecho do texto constitucional. Lembra que RUI BARBOSA, que para o autor foi o maior mestre do Direito Constitucional no Brasil, defendia que “[...] quando um preceito constitucional é proibitivo, quando um preceito constitucional é negativo não cabe complementação, não cabe lei complementar”, e eventual lei que pretender complementar preceito proibitivo ou negativo será inconstitucional, porque onde a Constituição diz não é não, não havendo espaço para ampliar ou reduzir o “não” constitucional, senão para, desnecessariamente, repetir o “não”, reproduzir o “não”. São dessa espécie os dispositivos da Constituição localizados na Seção II, do capítulo dedicado ao Sistema Tributário Nacional, que estabelecem as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, pois ali está expresso, nos artigos 150, 151 e 152, a expressão “é vedado”.289 A conclusão, em relação a esse inciso II do artigo 146, é do mesmo teor do que foi tecido acima em relação ao inciso I, ou seja, ainda que pertinentes as observações do autor citado, o texto constitucional não deixa outra alternativa senão tentar compatibilizar seu conteúdo com as normas que revelam os princípios constitucionais tributários. O precitado inciso II do artigo 146, ainda que desnecessariamente, remete à lei complementar a regulamentação das disposições que limitam o exercício da competência tributária por parte dos entes políticos, como o Princípio da Legalidade, da Anterioridade, da Irretroatividade, as imunidades etc. A essa altura, poder-se-ia indagar acerca da consistência do raciocínio de GERALDO ATALIBA, em relação à imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “c”, onde está previsto que é vedado instituir impostos sobre “[...] patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei” (grifamos). 288 289 Conflitos entre ICM, ISS e IPI. Revista de Direito Tributário, n. 7/8, p. 111-112. Lei complementar..., op. cit., p. 90. 129 É óbvio que, por exigência do referido inciso II do artigo 146, a lei de que trata o dispositivo só pode ser a complementar, sendo facilmente verificado o equívoco existente na literalidade do texto. GERALDO ATALIBA entende que, em vez de remeter o assunto à lei complementar, deveria a própria Constituição estabelecer os requisitos para gozar da imunidade.290 Tais requisitos foram previstos pelo artigo 14 do Código Tributário Nacional. A maior parte dessas disposições, portanto, são autoaplicáveis; outras, como a comentada acima, necessitam de uma lei que as complemente, determinando as condições de sua aplicabilidade. Como as leis complementares que disporão sobre essas limitações vincularão todas as pessoas políticas no território nacional, também são consideradas como sendo normas gerais de direito tributário. Reforçando esse posicionamento, a competência da lei complementar, nesses casos, somente poderá ser exercida nos casos em que se faz necessária lei específica para surtir os efeitos que lhe são próprios, não se admitindo restrição alguma a princípios como o da Isonomia ou da Capacidade Contributiva, por exemplo. No inciso III do artigo 146, estão as matérias que a Constituição prevê, de forma expressa, caber à lei complementar “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária...”. Insista-se, como já foi dito, que o fato de a expressão “normas gerais” só estar inserida neste inciso não resulta na conclusão de que somente as matérias ali contidas é que se constituem nessa espécie de normas. Na alínea “a”, dispõe a Constituição que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais “[...] especialmente sobre: definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”. ALBERTO XAVIER defende que a alínea “a” do inciso III do artigo 146, consagra o Princípio da Tipicidade da Tributação, mediante a exigência de que a lei complementar defina os “elementos essenciais” dos tributos, que são o “fato gerador”, a base de cálculo e o contribuinte. Acresce ainda que a regra é aplicável também aos impostos de competência residual da União, pois o artigo 154, I, da Constituição Federal, exige que os impostos que eventualmente venham a ser instituídos pela União “[...] sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios 290 Ibidem, p. 92. 130 dos discriminados nesta Constituição”, resultando que tais impostos terão que ter definido todo o tipo tributário para impedir a ocorrência do “bis in idem”. Portanto, na visão desse autor, em matéria de impostos, cabe única e exclusivamente à lei complementar definir os respectivos tipos tributários, em um procedimento de determinação do núcleo essencial do tributo que já é tipificado na própria Constituição.291 Como já foi comentado no item 2.1.2 – Princípio da Legalidade Tributária – em que pese a excelência das argumentações desse jurista, entende-se que tanto o Princípio da Legalidade Tributária, como o seu corolário da Tipicidade Fechada, existem de forma independente à previsão do inciso III, “a”, do artigo 146 da Carta Magna. Defende-se, ao contrário, que as normas gerais a que alude esse dispositivo, assim como ocorre com as demais alíneas do inciso III, têm seu conteúdo limitado a “dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária” ou “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar” e, dentre estas últimas, somente aquelas que requerem complementação, por não se constituírem em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Para GERALDO ATALIBA, a própria Constituição já classifica todos os tributos, não só pelos nomes, como também fornece a materialidade de todos eles, o que torna desnecessária qualquer lei complementar sobre o assunto. Quanto à definição dos “fatos geradores”, bases de cálculo e contribuintes dos impostos, o referido autor é veemente ao afirmar que todos os tributos já possuem suas respectivas hipóteses de incidência suficientemente desenhadas no próprio texto constitucional, assim como, na Teoria Geral do Direito, é fácil encontrar subsídios para concluir que a base de cálculo somente pode ser aquela que mede, mensura, a hipótese de incidência e, se a hipótese já está na Constituição, então a base de cálculo indiretamente também lá está prevista, ainda que de forma implícita. Assim, qualquer lei complementar, nesse sentido, só vai dispor o óbvio, reproduzindo o que já existe na própria Constituição.292 Melhor sorte não assiste ao texto constitucional quando dispõe caber à lei complementar definir os contribuintes. É que se a capacidade contributiva é o cânone constitucional inafastável na instituição dos impostos, por óbvio que o sujeito passivo somente poderá ser aquela pessoa que exterioriza os chamados sinais de riqueza, reveladores da citada capacidade. 291 Tipicidade da tributação..., op. cit., p. 21-22. 131 Se a essência de toda e qualquer hipótese de incidência de um imposto é a previsão de uma capacidade econômica, e se a materialidade dessa hipótese de incidência sempre se expressa pela existência de um verbo acrescido de um complemento (PAULO DE BARROS CARVALHO), é lógico que, ocorrido no mundo fenomênico o fato que se subsume àquela hipótese normativa, e por essa razão é qualificado como fato jurídico tributário, o sujeito passivo, o destinatário legal tributário, conforme defende HECTOR VILLEGAS, e aqui no Brasil, MARÇAL JUSTEN FILHO, que de forma feliz adaptou a expressão para destinatário constitucional tributário, somente poderá ser aquele que praticou esse fato.293 Caso a lei eleja outra pessoa como contribuinte, será inconstitucional. A utilização da técnica legislativa da responsabilidade tributária não altera nem desmente esse raciocínio, pois o que se tem, nesse caso, é uma forma de o Fisco garantir o recebimento do crédito tributário, devido originalmente pelo contribuinte, através da qualificação como sujeito passivo de um “terceiro” que tenha alguma relação pessoal e direta com o fato tributário, conforme prevê, inclusive, o artigo 128 do Código Tributário Nacional. Em tais hipóteses, o sujeito passivo da relação jurídica tributária deve encontrar na lei os meios de não sofrer o ônus econômico do tributo, através de técnicas que permitam repassá-lo ao chamado “contribuinte de fato”, como é o caso clássico da retenção na fonte, por exemplo. Na alínea “b”, ainda do inciso III, do artigo 146, está prescrito que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de “obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”. A Constituição, nesse dispositivo, não pode ser interpretada de modo a concluir que essa lei complementar deve definir o que sejam esses institutos jurídicos, pois há muito tempo disso já se ocuparam o Direito Civil e a Teoria Geral do Direito, e o fizeram muito bem. Ou seja, não pode haver, por exemplo, uma obrigação jurídica para o Direito Civil, e outra para o Direito Tributário. Igual raciocínio vale para a noção do crédito que é inerente a essa obrigação. Como forma de “salvar” esse dispositivo, pode-se entender que a sua única interpretação razoável seria aquela que estabelece alguns parâmetros máximos a serem observados nas leis ordinárias das pessoas políticas, tendo com fundamento, para tanto, a consagração de magnos princípios como o da Segurança Jurídica etc. Como exemplo, 292 293 Lei complementar..., op. cit., p. 90-91. Destinatário legal tributário – contribuintes e sujeitos passivos na obrigação tributária. Revista de Direito Público, n. 30, p. 241-242. 132 poder-se-ia citar os artigos do Código Tributário Nacional que dispõem sobre os prazos de decadência e prescrição – artigos 150, 173 e 174. Nesse caminho, tais dispositivos, de âmbito nacional, serviriam como limites máximos a serem observados em cada uma das leis ordinárias, sendo possível dispor em contrário somente se for em benefício do contribuinte. Entretanto, esse posicionamento pode criar problemas para tributos que, por suas peculiaridades intrínsecas, exigem disciplina jurídica individualizada, como seria o caso, por exemplo, do prazo de decadência de dez anos para o lançamento das contribuições para a Seguridade Social, instituído pelo artigo 45 da Lei nº 8.212, de 24 jul. 1991, dispositivo que no Superior Tribunal de Justiça, vem sendo afastado, por violar, no entendimento dessa corte, o artigo 173 do Código Tributário Nacional, o qual estabelece para tanto o prazo de cinco anos. Na alínea “c”, a Constituição remete à lei complementar a criação de norma geral que preveja “[...] adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”. JOSÉ ROBERTO VIEIRA, amparado em HELENO TAVEIRA TÔRRES, leciona que o sentido do dispositivo “[...] só pode ser perquirido à luz do art. 174, § 2º, que ordena o apoio e o estímulo ao cooperativismo, como se o primeiro desses dispositivos constituísse verdadeiro corolário do segundo”. Acrescenta que “[...] nessa confluência normativa, tratamento adequado passa a significar necessariamente tratamento vantajoso, favorável, favorecido, privilegiado”.294 Por fim, a alínea “d”, recentemente incluída pela Emenda Constitucional nº 42/2003, prevê caber à lei complementar estabelecer normas gerais sobre “[...] definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no artigo 155, II, das contribuições previstas no artigo 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o artigo 239”. Com base nas mesmas premissas até aqui sustentadas, entende-se que o regime tributário das microempresas e das empresas de pequeno porte somente será aquele cujas respectivas leis de cada uma das pessoas políticas entenderem por bem instituir. Então, o que for microempresa para a União Federal, não será, ou poderá não ser, o mesmo regime de microempresa aplicáveis aos Estados ou aos Municípios. Isso é 294 Sujeição passiva tributária, p. 262. Prefácio. Tributação das cooperativas: dos preconceitos ao conceito, um itinerário voltaireano. In: Tributação das Cooperativas à Luz do Direito Cooperativo, p. 22. 133 assunto de nítida autonomia das pessoas políticas, e por conseqüência, somente a elas seria dado escolher a forma de tributação dessas espécies de pessoas jurídicas, o que torna a Emenda Constitucional nº 42/2003, nessa parte, de duvidosa constitucionalidade.295 Como último comentário desse item, o Código Tributário Nacional - Lei n° 5.172, de 25 out. 1966 – é uma lei formalmente ordinária que, apesar de ter sido aprovada em 1966, contém dispositivos compatíveis com o conceito de normas gerais de Direito Tributário. Naquela época, vigorava a Carta de 1946, a qual não previa a existência das leis complementares. Com o advento da Constituição de 1967, assim como com a Emenda nº 1/69, passou-se a prever que determinadas matérias, entre as quais estavam as normas gerais de direito tributário, deveriam ser aprovadas por lei complementar. Pelo fenômeno da recepção, esses dispositivos – apenas os que se identificaram materialmente com a Constituição de 1967, e não todo o Código Tributário Nacional – foram incorporados ao ordenamento jurídico capitaneado pela então nova Carta. O mesmo ocorreu com a atual Constituição, promulgada em 1988, e com isso firmou-se o entendimento de que o Código Tributário Nacional, na parte em que a Constituição o recepcionou, é uma lei formalmente ordinária e materialmente complementar. Portanto, a eventual alteração ou revogação de qualquer desses dispositivos requer nova lei complementar. A denominação “Código Tributário Nacional” não veio na própria Lei 5.172/66, mas só depois, através do artigo 7º do Ato Complementar nº 36, de 13 mar. 1967. Por outro lado, e aplicando-se, em relação ao Código Tributário Nacional, o que até aqui foi exposto quanto ao tema do conteúdo possível das normas gerais de Direito Tributário, conclui-se que essa lei nacional só trata de normas gerais enquanto dispõe sobre conflitos de competência em matéria tributária ou quando regula as limitações constitucionais ao poder de tributar. Em rigor, inclusive, o tema “conflitos de competência” constitui matéria compreendida dentre as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, posto que o exercício da competência de cada ente político encontra 295 Em cumprimento a esse dispositivo constitucional foi aprovada a Lei Complementar nº 123, de 14 dez. 2006, a qual “Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte”, dentre outros assuntos correlatos. 134 seus limites na própria Constituição, conforme a tese, acima comentada, de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES.296 Partindo dessa premissa, os dispositivos das leis complementares nacionais que extrapolarem esses limites não poderão ser considerados como recepcionados pelo atual ordenamento jurídico, pois materialmente incompatíveis com o que dispõe a Lei Maior. Esse entendimento será de extrema relevância no exame dos dispositivos infraconstitucionais que regulam o ISS em âmbito nacional – o Decreto-lei nº 406/68 e a Lei Complementar nº 116/2003 – pois, em virtude de serem considerados leis complementares de normas gerais de Direito Tributário, deverão ter, como limites, os pressupostos identificados no presente estudo, ou seja, tais normas somente serão válidas se e enquanto regularem alguma “limitação constitucional ao poder de tributar”. Com isso, já é possível concluir que as principais normas tributárias do sistema jurídico brasileiro não estão nas leis complementares ou no Código Tributário Nacional, mas sim na Constituição Federal.297 296 297 Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 19 e ss. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 831-832. 135 3. A NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA 3.1 A ESTRUTURA DA NORMA JURÍDICA Como este estudo terá por perspectiva o exame da estrutura da norma jurídica tributária do ISS, com destaque ao seu critério espacial, é de rigor expor o entendimento sobre a expressão norma jurídica, definindo a causa e as conseqüências do qualificativo “jurídica” dado ao vocábulo “norma”, e, na seqüência, revelar a posição doutrinária adotada sobre sua estrutura lógica. É, nesse sentido, a recomendação precisa de PAULO DE BARROS CARVALHO: Qualquer trabalho jurídico de pretensões científicas impõe ao autor uma tomada de posição no que atina aos conceitos fundamentais da matéria em que labora, para que lhe seja possível desenvolver seus estudos dentro de diretrizes seguras e satisfatoriamente coerentes. E, desde logo, se coloca o problema da própria conceituação do Direito, na medida em que se procura discorrer sobre a natureza e estrutura interior da norma jurídica, posto que falar em norma jurídica, em última análise, é tratar do próprio Direito.[sic]298 Em sentido semelhante é o seguinte pensamento de GERALDO ATALIBA: “O direito (em sentido objetivo) é um conjunto de normas que – por isso que integrando a ordem jurídica – se chamam normas jurídicas. Formam o direito positivo: o direito que foi posto (e só pode ser retirado) por quem tem poder jurídico para tanto”.299 O Direito, nessa acepção, é também chamado de sistema jurídico, ordenação jurídica, do que surge a necessidade de se entender o alcance da expressão norma jurídica. HANS KELSEN defendia que uma norma seria jurídica quando o seu descumprimento pelo destinatário ensejasse a aplicação coativa de uma sanção, ou seja, com o uso da força física, se necessário.300 Para a doutrina kelseniana, a formulação do Direito dava-se com fundamento na chamada “norma dúplice” ou “norma complexa”, formada pela “norma primária” e pela “norma secundária”. Em uma primeira fase, a “norma primária” era aquela que descreveria a sanção pelo descumprimento de determinada obrigação, enquanto que a “norma secundária” prescreveria o comportamento desejado, ou seja, a prestação, tendo, ambas, a mesma natureza de um “juízo hipotético”: “dado fato F ‘deve-ser’ a 298 Teoria da norma tributária, p. 29. Hipótese de incidência tributária, p. 22. 300 Teoria Pura do Direito, p. 33-35. 299 136 prestação P” (norma secundária) e “dado não-P ‘deve-ser’ a sanção S” (norma primária). As normas jurídicas, para HANS KELSEN, são atos de vontade, formulados através de juízos hipotéticos, e não categóricos, como até então sustentava a Teoria Imperativista. Os juízos hipotéticos corresponderiam, conforme o pensamento de KANT, ao mundo do dever-ser, assim como o mundo do ser corresponderia aos juízos categóricos. Nesta primeira fase, HANS KELSEN entendia que o ilícito não estava fora do direito, pelo que a norma que estabelece a sanção seria a primária, ao contrário do que até então sustentava a doutrina tradicional. A norma secundária seria apenas um expediente técnico para expor o Direito, sem possuir autonomia ôntica. 301 A teoria egológica, de CARLOS COSSIO, apesar de não coincidir em alguns pontos com a teoria de HANS KELSEN, também via a norma jurídica como dupla ou complexa. A diferença está em que esse jusfilósofo argentino não via a norma jurídica como “juízo hipotético”, mas sim como “juízo disjuntivo”: “‘dado A deve-ser P’ ou ‘dado não-P deve-ser S’”. Ou seja, na mesma estrutura lógica de uma norma jurídica integral, estariam reunidas, por meio da conjunção disjuntiva “ou”, duas proposições de “dever-ser”: a primeira, equivalente à “norma secundária” de KELSEN, a qual COSSIO denominou de “endonorma”, e a segunda, com a mesma função da “norma primária”, chamou de “perinorma”. Apesar das semelhanças, COSSIO, ao contrário de KELSEN, não via a “endonorma” (norma secundária) como simples expediente técnico para expor o Direito, mas como integrante principal da estrutura disjuntiva da norma jurídica. 302 Em uma segunda fase, apesar de ainda não ter aceitado as críticas de COSSIO, KELSEN passou a aceitar a existência de outras normas ao lado das secundárias, normas não-autônomas, em lado oposto às normas autônomas, que estariam restritas às normas primárias. Como KELSEN ainda mantinha a idéia de Direito como ordem coativa, a idéia de sanção ainda prevalecia na sua estrutura da norma jurídica. 303 Em sua obra publicada postumamente, e alterando entendimento anterior, passou a ver, na norma primária, a que determina a conduta desejada, e, na norma secundária, a que estabelece a sanção pela inobservância da norma primária.304 Discorda-se do entendimento de KELSEN quanto à coatividade ser o único aspecto relevante nas normas jurídicas, pois é claro, no ordenamento jurídico a 301 Apud JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto sobre serviços na Constituição, p. 15. Apud CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria..., op. cit., p. 46. 303 Apud FISCHER, Octávio Campos. A contribuição ao PIS, p. 27. 302 137 existência de normas de natureza e finalidade diversas, prescrevendo conteúdo não sancionatório, como defende MARÇAL JUSTEN FILHO.305 KELSEN distinguia, ainda, a norma jurídica da proposição jurídica. Norma jurídica seria a que é posta pela autoridade pública, enquanto que, proposição jurídica, seria a descrição do ordenamento jurídico feita pelo cientista do direito. Com efeito, somente esta última é que se revelaria como um juízo hipotético, posto que a norma jurídica seria um imperativo, um comando, permissão etc. Concorda-se com o raciocínio de JOSÉ ROBERTO VIEIRA, que com fundamento na lógica jurídica, esclarece a questão: “Ora, também a norma jurídica (prescrição legislativa) é veiculada mediante juízos hipotéticos, que, como os demais, exprimem-se mediante proposições. Correto, em termos lógicos, portanto, teria sido referir-se KELSEN a proposições prescritivas e proposições descritivas”.306 Irretocável também é o juízo de PAULO DE BARROS CARVALHO. Esse mestre aceita a feição dúplice das regras de Direito, ou seja, norma primária – ou endonorma, segundo COSSIO – a que prescreve um dever, se e quando acontecer o fato previsto no suposto; e norma secundária – ou perinorma, na denominação de COSSIO – a que prescreve uma sanção, no caso de descumprimento da conduta prevista na norma primária.307 Entretanto, o referido autor entende que as duas entidades juntas (norma primária e secundária) formam a norma completa, pois “[...] expressam a mensagem deôntico-jurídica na sua integridade constitutiva, significando a orientação da conduta, juntamente com a providência coercitiva que o ordenamento prevê para seu descumprimento”.308 A essa idéia, conforme ensina BOBBIO, deve ser acrescentada outra, a de que “[...] a norma jurídica é aquela que pertence a um ordenamento jurídico”, com o que entende que a significação do jurídico está em uma norma pertencer a um ordenamento, e não na norma em si mesma. A questão: “O que se entende por norma jurídica?”, então, é solucionada ampliando a pesquisa com outra questão: “O que se entende por ordenamento jurídico?”, pois só a essa segunda questão é possível dar uma resposta coerente. Não é por outra razão que BOBBIO afirma que o problema da definição do Direito encontra sua localização apropriada na teoria do ordenamento jurídico e não na 304 Teoria geral das normas, p. 181. O imposto..., op. cit., p. 18. 306 A regra-matriz..., op. cit.,, p. 56. 307 Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 31. 308 Ibidem, p. 32. 305 138 teoria da norma.309 O Direito não é uma regra, mas um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que entendemos por sistema, sendo impossível conhecer a natureza do Direito se analisarmos uma regra isolada. E uma norma integra um sistema porque o Direito regula a sua própria criação, na medida em que uma norma jurídica estabelece o modo pelo qual outra norma é criada e, também, o conteúdo dessa norma. Uma norma jurídica sempre é válida por ser criada de um modo determinado por outra norma jurídica, ou seja, essa última é o fundamento de validade daquela. A norma que determina a criação de outra norma é a norma superior, e a norma criada segundo essa determinação é a inferior. A ordem jurídica, portanto, não é um sistema de normas que se encontram no mesmo nível, mas um sistema de normas em diferentes níveis de hierarquia. GERALDO ATALIBA, de forma diversa, defendia a inclusão da sanção dentro da estrutura lógica da norma jurídica, ou seja, para esse autor, ela decompõe-se em hipótese de incidência, mandamento e sanção – conseqüência jurídica que incide no caso de descumprimento do mandamento principal da norma.310 Entende-se, todavia, que melhor razão assiste à formulação defendida por PAULO DE BARROS CARVALHO: toda norma jurídica é constituída por duas partes: uma hipótese de incidência – também chamada de antecedente, suporte fático, pressuposto de fato, descritor normativo – e uma conseqüência jurídica – mandamento, regra jurídica. A hipótese contém a descrição, teórica e abstrata, de um evento do mundo fenomênico, o qual, se ocorrer, deflagrará a incidência da respectiva regra jurídica, tendo, então, como efeito automático e infalível, o nascimento da relação jurídica ali prevista.311 Na conseqüência, há a previsão abstrata de um comando jurídico, o qual prescreve que o destinatário da norma deve sujeitar-se a uma determinada conduta que, conforme os três modais deônticos, pode ser proibida, permitida ou obrigatória. Dizendo de outra forma, somente há a incidência de uma norma jurídica quando um fato ocorrido no mundo real subsumir-se (corresponder) ao modelo teórico previsto na hipótese de incidência. 312 309 Apud SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, p. 126-129. Hipótese..., op. cit., p. 39-40. 311 Em sua visão mais recente, PAULO DE BARROS CARVALHO passou a defender que a incidência só é automática e infalível quando o “evento” do mundo real for descrito na linguagem competente do lançamento tributário, convertendo-se, então, em “fato jurídico” – Direito Tributário..., op. cit, p. 182-184. 312 Teoria..., op. cit., p. 48. 310 139 3.2 A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA É imprescindível, nesse momento, ressaltar a contribuição dada por ALFREDO AUGUSTO BECKER à Ciência do Direito Tributário no Brasil, através de sua obra “Teoria Geral do Direito Tributário”.313 Embora nem todas as conclusões desse jurista tenham sido bem recebidas pela moderna doutrina, sua obra representa a primeira advertência para que os estudiosos do Direito Tributário purificassem, de suas considerações, influências oriundas da Ciência das Finanças. Queria o autor, pois, que fosse dada prevalência ao “Direito” – leia-se: à Teoria Geral do Direito – e não ao “Tributário”, do que resulta a necessidade de estudar a estrutura lógica e a atuação dinâmica da norma jurídica tributária, de forma desvinculada de questões atinentes à eventual justiça ou injustiça de sua aplicação. Foi de BECKER, portanto, dentro do Direito Tributário, a primeira contribuição relevante sobre o tema, para quem a estrutura lógica da regra jurídica (visão estática) é formada por duas partes: hipótese de incidência – “fato gerador”, suporte fáctico, “fattispecie”, “Tatbestand” – e regra – norma, regra de conduta, preceito.314 No mesmo sentido, ainda, a afirmativa de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES: “A estrutura lógica da regra-jurídica consta de uma previsão (hipótese de incidência, suporte fático) e uma disposição correlata (norma, preceito, regra de conduta)”.315 OCTÁVIO CAMPOS FISCHER chama atenção para o fato de que “[...] muitos estudiosos do Direito Tributário no Brasil não procuraram olhar para as lições de Kelsen e Cossio para enriquecer suas contribuições para a análise da estrutura da norma jurídica tributária”, atitude que levou bons autores, em um passado próximo, a seguirem a “escola de glorificação do fato gerador”, conferindo importância demasiada à hipótese de incidência, em detrimento da conseqüência jurídica (mandamento).316 Não obstante esse antigo posicionamento ter sido substituído por novos doutrinadores, os quais passaram a identificar a real importância do conseqüente da norma jurídica, seus então seguidores merecem todos os nossos encômios, pois que, à sua época, revolucionaram o estudo do Direito Tributário e, em especial, prepararam o solo para os trabalhos posteriores. 313 Teoria geral do direito tributário, passim. Ibidem, p. 274. 315 Teoria geral da isenção tributária, p. 180. 314 140 A “escola de glorificação do fato gerador”, acima citada, era, então, formada por autores que viam, na hipótese, a parte mais relevante da norma jurídica. Sua origem é freqüentemente vinculada ao jurista italiano, radicado na Argentina, DINO JARACH, um dos autores que mais influenciou os estudiosos do Direito Tributário no Brasil; 317 com destaque para as obras de AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO318 e de GERALDO ATALIBA319. Como resultado de seu posicionamento, JARACH defende que todos os elementos da relação jurídica tributária, subjetivos e objetivos, resumem-se no único conceito de pressuposto de fato definido pela lei. Com efeito, entende que os sujeitos e o objeto da relação jurídica tributária não são um elemento “a priori”, e que não estariam desvinculados do pressuposto de fato objetivo.320 AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, apesar de criticar a afirmação de JARACH, de que toda a teoria do Direito Tributário material não passa de um desenvolvimento da própria teoria do “fato gerador”, a qual qualifica como “radical”, acaba, infelizmente, conferindo importância extremada ao antecedente da norma tributária, o qual seria importante para a fixação de noções como, por exemplo, determinação do sujeito passivo, alíquota, base de cálculo etc., elementos que, como já se demonstrou, localizam-se no conseqüente normativo, por dizerem respeito, essencialmente, à relação jurídica tributária.321 GERALDO ATALIBA, apesar de ver a norma jurídica como uma estrutura complexa, compreendendo sempre hipótese, mandamento e sanção, via na hipótese quase todos os aspectos da norma tributária: pessoal, temporal, espacial e material – incluindo, neste último, a base de cálculo – relegando, para a conseqüência, somente a alíquota. Posteriormente, em artigo elaborado com J. A. LIMA GONÇALVES, inseriu na hipótese o prazo de recolhimento dos tributos, entendendo em síntese que, “[...] num clima inflacionário, o prazo de pagamento do tributo passa a ser altamente modificador do quantum e, portanto, passa a ser tão essencial (juridicamente relevante) quanto a alíquota e a base”, integrando, na visão desse autor, o elemento quantitativo da hipótese de incidência.322 316 A contribuição..., op. cit., p. 31. Aspectos da hipótese de incidência tributária, Revista de Direito Público, n. 17, p. 287-304; El Hecho Imponible: Teoria General del Derecho Tributario Substantivo, passim. 318 O fato gerador da obrigação tributária, passim. 319 Hipótese de Incidência Tributária, passim. 320 Estrutura e elementos da relação jurídico-tributária. Revista de Direito Público, n. 16, p. 337-338. 321 O fato gerador..., op. cit., p. 31-33. 322 Carga tributária e prazo de recolhimento de tributos. Revista de Direito Tributário, n. 45, p. 29. 317 141 Conforme ensina JOSÉ ROBERTO VIEIRA, essa tendência esvazia o conteúdo do conseqüente da norma tributária, pois desloca para a hipótese os seus critérios, “[...] esvaziando-o do liame jurídico decorrente da incidência, e até mesmo da base de cálculo; o que implica, em resumo, a negação do caráter de juízo hipotético da formulação da norma jurídica tributária, pela via da negação da conseqüência”.323 Correta também é a crítica de MARÇAL JUSTEN FILHO, que, conquanto ressalte a grande contribuição dos trabalhos de JARACH para a revelação da estrutura da norma tributária, demonstra que “[...] o resultado foi a confusão entre estrutura e dimensão da norma tributária e dimensão da hipótese”, pois concentrou, nessa última, todos os elementos localizados na norma, do que resultou o entendimento de ser a hipótese constituída tanto pelos elementos necessários à descrição abstrata do fato jurídico – materialidade com suas coordenadas de tempo e espaço – como pelos elementos necessários à identificação tanto dos sujeitos, como do objeto da relação jurídica tributária.324 O autor aponta, de forma coerente, as possíveis razões que levaram à atitude científica de não imputar à conseqüência jurídica os elementos que lhe pertencem, diante da análise da estrutura lógica da norma. Entretanto, adverte que, ainda que tais argumentos possam demonstrar as razões da adoção desse pensamento, eles não têm o condão de legitimar-lhe a correção do raciocínio: É compreensível esse defeito de óptica que oblitera a conseqüência da norma tributária. A relação jurídica nela prescrita tem natureza obrigacional e em nada se peculiariza. Só é possível caracterizar uma relação jurídica como tributária (conseqüência jurídico-tributária) conjugando-a com seu fato imponível (hipótese de incidência). Logo, há uma irrefreável tendência a concentrar na hipótese tudo o que a norma tributária tem de peculiar – o que é incorreto, a nosso ver. [...] Além disso, há outro motivo. É o temor de que a desvinculação (lógica) entre aspectos da hipótese e da conseqüência abra margem ao arbítrio, possibilitando que a uma hipótese de incidência se atribua uma conseqüência que lógica e materialmente em nada se relacione com ela. O caso mais evidente desses descalabros é a adoção de uma base imponível totalmente incompatível com o aspecto material da hipótese de incidência.325 Foi, contudo, PAULO DE BARROS CARVALHO quem avançou sobremaneira no tema, representando verdadeiro marco na Ciência do Direito Tributário, devido à desmistificação do que pregavam esses autores que, apesar da excelência, pecaram por valorizar em demasia a hipótese de incidência em detrimento 323 324 A regra-matriz..., op. cit., p. 62. O imposto..., op. cit., p. 43. 142 da conseqüência (mandamento, regra de conduta). Procurou o autor demonstrar que, na norma jurídica tributária, há certos “critérios” que não se encontram na hipótese, proposta que revalorizou toda a sua estrutura, mantendo sua integridade, deixando na hipótese somente os critérios necessários à identificação do fato jurídico tributário, e atribuindo à conseqüência os critérios aptos a identificar a relação jurídica. 326 A doutrina tem reconhecido a contribuição desse autor por sua nova visão da estrutura da norma tributária, como demonstra o testemunho de MARÇAL JUSTEN FILHO, jurista paranaense que atribui “grande perspicácia” àquele autor, por ter estabelecido a distinção entre a hipótese e o mandamento normativos, além de ter destacado que, assim como estão previstos na hipótese todos os dados hábeis ao reconhecimento de um evento a ocorrer no mundo dos fatos, constam do mandamento as regras acerca do comando jurídico, ou, sendo fiel ao seu pensamento, as regras necessárias à identificação da relação jurídica. 327 OCTÁVIO CAMPOS FISCHER também assevera que, apesar das grandes lições de outros autores, “[...] o melhor estudo a respeito da estrutura da norma jurídica tributária” coube a PAULO DE BARROS CARVALHO. Não tira, entretanto, o mérito de autores como BECKER, precursor no sentido de que a estrutura da regra jurídica (norma) é composta por uma hipótese e por uma regra.328 Esse raciocínio ampara-se, em grande parte, no que já sustentava o jurista alemão KARL ENGISH329; a quem PAULO DE BARROS CARVALHO credita a melhor formulação do problema, conforme se pode verificar em algumas de suas afirmações, como a de que as regras jurídicas “[...] são regras de dever-ser, e são verdadeiramente, como sói dizer-se, proposições ou regras de dever-ser hipotéticas. Elas afirmam um dever-ser condicional, um dever-ser condicionado através da ‘hipótese-legal’”;330 ou ainda, mais especificamente em relação à uma necessária visão de equivalência entre hipótese e conseqüência: “Pertence, com efeito, à hipótese legal tudo aquilo que se refere à situação a que vai conexionado o dever-ser (Sollen), e à conseqüência jurídica tudo aquilo que determina o conteúdo deste dever-ser”331. 325 Ibidem, p. 43-44. Teoria..., op. cit., p. 108-115. 327 ISS no tempo e no espaço. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 2, p. 53. 328 A contribuição..., op. cit., p. 33. 329 Teoria..., op. cit., p. 120-121. 330 Introdução ao pensamento jurídico, p. 36. 331 Ibidem, p. 55. 326 143 Utilizando com propriedade os fundamentos da lógica jurídica, PAULO DE BARROS CARVALHO seccionou a norma jurídica tributária, por meio de um corte metodológico imaginário, em hipótese tributária (antecedente, suposto, ante-suposto ou pressuposto) e conseqüência tributária. A primeira (hipótese) corresponde à previsão fáctica, “[...] a descrição normativa de um evento que, concretizado no nível das realidades materiais e relatado no antecedente de norma individual e concreta, fará irromper o vínculo abstrato que o legislador estipulou na conseqüência”.332 A segunda – conseqüência ou conseqüente tributário – que é o prescritor da relação jurídica que nascerá, automática e infalivelmente, caso o evento da hipótese se concretize. Essa divisão da norma em hipótese e mandamento (seccionamento) ocorre somente no plano lógico, haja vista cada uma dessas entidades constituir unidade inseparável uma da outra, ou seja, são, como qualquer outra categoria jurídica, conceitos unitários. Para o autor, existem referências a critérios tanto na hipótese, aptos a identificar o fato jurídico tributário, como na conseqüência, possibilitando identificar a relação jurídica que nasce pela ocorrência daquele fato, sendo tal seccionamento feito exclusivamente no plano lógico, posto cada um dos segmentos da regra-matriz constituir unidade inseparável do outro, ou seja, são conceitualmente unitários, assim como qualquer outra categoria jurídica. Quanto ao vocábulo utilizado para designar as entidades resultantes desse seccionamento provisório da regra-matriz tributária, ainda vigora na doutrina divergência quanto ao termo “aspectos” – sustentado por GERALDO ATALIBA333 – ou “critérios” – proposto por PAULO DE BARROS CARVALHO334 – ainda que, salvo melhor juízo, não se vislumbre prejuízo a um resultado rigorosamente científico. Desde já, contudo, consignamos nossa adesão à terminologia defendida por PAULO DE BARROS CARVALHO, para quem tanto a hipótese, quanto a conseqüência, possuem referências a critérios, que permitem reconhecer o fato jurídico previsto na norma e a relação jurídica deflagrada pela ocorrência daquele fato, pois os “aspectos” não existem na norma em si mesma, mas sim no fato jurídico, como esclarecem MARÇAL JUSTEN FILHO335 e JOSÉ ROBERTO VIEIRA336. 332 Curso..., op. cit., p. 244. Hipótese..., op. cit., p. 74-75. 334 Teoria..., op. cit., p. 123. 335 Imposto..., op. cit., p. 44. 336 A regra-matriz..., op. cit., p. 60. 333 144 PAULO DE BARROS CARVALHO, portanto, inovou ao repensar a estrutura da norma jurídica tributária, mantendo no antecedente somente as entidades necessárias à identificação da ocorrência do fato jurídico tributário, às quais denominou de critérios. Para o autor, o legislador constrói a hipótese através de uma proposição descritiva de uma situação objetiva real, onde recolhe os dados de fato da realidade social que deseja disciplinar e os qualifica normativamente como fatos jurídicos. “Ao escolher os fatos que lhe interessam como pretexto para desencadear efeitos jurídicos, o legislador expede conceitos que selecionam propriedades do evento”, posto que não há como uma descrição possa captar o fato em todas as suas infinitas peculiaridades.337 Passou, então, a defender que os critérios hábeis a identificar a ocorrência do fato tributário, descrito na hipótese tributária (descritor), são três: material – comportamento de uma pessoa – espacial – condicionamento daquele comportamento no espaço – e temporal (condicionamento do comportamento no tempo. Portanto, ao construir a hipótese tributária, ou seja: conceituar o fato que dará ensejo ao nascimento da relação jurídica do tributo, o legislador também seleciona as propriedades que julgou importantes para caracterizá-lo. E desse conceito, podemos extrair critérios de identificação que nos permitam reconhecê-lo toda vez que, efetivamente, aconteça. No enunciado hipotético vamos encontrar três critérios identificadores do fato: a) critério material; b) critério espacial; c) critério temporal.338 Por sua vez, deslocou para a conseqüência (prescritor), os critérios aptos a identificar a relação jurídica que nasceria com a ocorrência in concreto daquele fato descrito abstratamente na hipótese, os quais seriam dois: pessoal – sujeito ativo e sujeito passivo da relação jurídica – e quantitativo – base de cálculo e alíquota.339 Seguindo o caminho trilhado por PAULO DE BARROS CARVALHO, JOSÉ ROBERTO VIEIRA340 e AMÉRICO LACOMBE341, apesar de desenvolverem o raciocínio desse mestre, adotaram, na essência, a mesma fórmula para a estrutura da norma jurídica tributária. Entende-se, no entanto, ser mais correto, do ponto de vista da Teoria Geral do Direito, ver no mandamento um critério subjetivo e um critério objetivo, pensamento semelhante ao defendido por MARÇAL JUSTEN FILHO, o qual defende a existência 337 Curso..., op. cit., p. 252. Ibidem, p. 252-253. 339 Ibidem, p. 239. 340 A regra-matriz..., op. cit., p. 60-61. 338 145 de determinações subjetiva e objetiva no conseqüente tributário: “A determinação subjetiva contém os mandamentos acerca dos sujeitos ativo e passivo da relação jurídica. [...] A determinação objetiva consiste na imposição de uma conduta, devida pelo sujeito passivo em benefício do ativo”. Esse autor rejeita o vocábulo “quantitativo”, a que alude PAULO DE BARROS CARVALHO, pois reputa que “a norma determina o objeto da relação jurídica – não uma quantia”.342 A nossa concordância com esse autor, portanto, restringe-se à substituição do critério quantitativo por um “critério objetivo”, por ser mais abrangente no que tange à estrutura da relação jurídica, e da expressão “critério pessoal” pela expressão “critério subjetivo”, mais coerente e harmônica ao lado daquela. Mantém-se, assim, a opção pelo vocábulo “critérios”, ainda que não se veja erronia no vocábulo “determinações”. Esse raciocínio identifica-se com a posição adotada por OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, autor que, filiando-se parcialmente as lições de MARÇAL JUSTEN FILHO, assinala que “[...] o vocábulo ‘objetivo’ é muito mais adequado para figurar no mandamento da norma tributária, na medida em que, além da base de cálculo e da alíquota, outros são os componentes necessários para bem delinear o objeto da relação jurídica”. Prefere o autor, também, manter a utilização do vocábulo “critérios” ao invés de “determinações”: “Não se duvida que a hipótese ‘descreve’ um fato, enquanto a conseqüência ‘prescreve/determina’ uma certa relação jurídica”. Entretanto, fala em “critérios” não como entes implícitos na hipótese ou no mandamento, mas como ferramentas conceituais utilizadas pelo cientista do Direito para conseguir extrair o fato e a relação previstos na norma jurídica em sua integridade. Com efeito, ainda que o mandamento prescreva/determine uma relação, entende o autor que “(…) o cientista tem a seu dispor certos ‘critérios’ para desenhá-la”.343 Serão tratados, no item destinado à análise do conseqüente tributário, outros detalhes complementares a esse tema. Hipótese e conseqüência, portanto, equivalem-se em importância, conforme corrobora o pensamento de PAULO DE BARROS CARVALHO: “(…) a ‘regra-matriz de incidência tributária’ prevê a ocorrência de um fato apto a fazer nascer uma relação jurídica, por ela também prescrita abstratamente, na qual uma determinada pessoa se vê obrigada a levar uma quantia x de dinheiro aos cofres públicos, a título de tributo”. Em observância aos princípios fundamentais do Direito Tributário, em especial o 341 Obrigação tributária, p. 115. Imposto..., op. cit., p. 53. 343 A contribuição..., op. cit., p. 37-38. 342 146 “princípio da tipicidade”, o intérprete da norma tributária, na arquitetura dessa regra, deve fazer do modo mais correto possível a subsunção entre o fato e a norma, para que reste cumprido integralmente o desígnio constitucional.344 Com relação à classificação das normas jurídicas em “regras de conduta” e “regras de estrutura”, adotada por PAULO DE BARROS CARVALHO, a regra-matriz de incidência do ISS – no sentido da fixada pela lei municipal instituidora do tributo – está entre as regras de conduta, já que objetiva regular diretamente a tributação das prestações de serviço como fatos jurídicos tributários municipais. Por outro lado, quando analisamos as normas jurídicas da Constituição, ou as leis nacionais sobre a matéria, estamos diante de regras de estrutura – também denominadas de regras de organização – pois estas prescrevem como devem ser produzidas as leis municipais (regras de conduta) que prescrevem a obrigação de pagar o ISS. Melhor esclarecendo, regras de conduta são as que “(…) têm como objetivo final ferir de modo decisivo os comportamentos interpessoais, modalizando-os deonticamente como obrigatórios (O), proibidos (V) e permitidos (P), com o que exaurem seus propósitos regulativos”; já as regras de estrutura, “[...] dispõe também sobre condutas, tendo em vista, contudo, a produção de novas estruturas deôntico-jurídicas”, ou seja, são regras que estabelecem como outras regras devem ser produzidas, não regulando, diretamente, a conduta de seus destinatários.345 No campo tributário, portanto, são regras de conduta, dentre outras, as regrasmatrizes de incidência dos tributos, como são exemplos as derivadas das leis municipais que exigem o ISS dos contribuintes que prestam serviços. E são típicas regras de estrutura aquelas que definem as competências, como, por exemplo, o artigo 156 da Constituição Federal, o qual outorga a competência tributária aos Municípios, ou, ainda, as normas tributárias infraconstitucionais de âmbito nacional, tendo como exemplo a lei complementar de que trata o artigo 146, III, alínea “a”, da Constituição Federal, dispositivo que exige essa espécie normativa para a edição das “[...] normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre [...] definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”. Nos subitens seguintes, será aprofundada a análise do conteúdo da regra-matriz tributária, não só em relação à hipótese de incidência e à conseqüência da norma 344 Ibidem, p. 38. 147 jurídica tributária (visão estática), mas também, ainda que de forma breve, quanto à relação jurídica tributária, fato jurídico – aqui não no sentido de fato que se subsumiu a hipótese – que nasce por força do fenômeno da incidência (visão dinâmica). 3.3 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA 3.3.1 Considerações introdutórias A expressão “hipótese de incidência” é designada por várias outras expressões, sendo “fato gerador” a mais utilizada no Direito brasileiro, vista por ALFREDO AUGUSTO BECKER como a mais infeliz, porque “[...] não gera coisa alguma além de confusão intelectual”, pois a relação jurídica nasce somente após a incidência da regra jurídica sobre o “fato gerador”, e não somente com a ocorrência desse, em si mesmo considerado. Como resultado, é comum encontrar na doutrina do Direito Tributário “[...] autores que, embora dotados de vigorosa inteligência e brilhante erudição, escrevem – imersos numa atitude mental pseudo-jurídica – capítulos e livros destituídos de valor jurídico, os quais todavia são excelentes no plano pré-jurídico da Ciência das Finanças Públicas e da Política Fiscal”.346 AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO também teceu críticas à expressão “fato gerador”. No entanto, as mesmas restringiram-se ao qualificativo “gerador”, o qual tinha, para o autor, uma impropriedade, no sentido de que não é o “fato gerador” que gera a obrigação tributária, sendo, a fonte de tal obrigação, a energia ou força que a cria ou gera a própria lei. O “fato gerador” seria, apenas, o pressuposto material estabelecido pelo legislador para que se instaure a relação obrigacional. O autor, contudo, mantém o uso da expressão “fato gerador”, justificando que a mesma não exclui a virtude de assinalar que o momento da ocorrência do “fato gerador’ é aquele mesmo em que se reputa instaurada a obrigação tributária, além da vantagem de o uso do vocábulo “fato” esclarecer que o “fato gerador” é conceitualmente um fato jurídico e não um ato jurídico. Por fim, acrescenta o argumento de que a expressão já é comum na terminologia jurídica.347 345 Direito Tributário..., op. cit., p. 36. Teoria..., op. cit., p. 288-289. 347 Fato gerador..., op. cit., p. 29-30. 346 148 Essa crítica, no entanto, revelou-se insuficiente, pois manteve a expressão “fato gerador” como única para referir-se a duas entidades ontologicamente diversas: a hipótese de incidência e o fato jurídico tributário. Por outro lado, discorda-se da afirmação de que é a lei a fonte de onde nasce a obrigação tributária, pois como já se demonstrou anteriormente, a relação jurídica nasce, na verdade, por força do fenômeno da incidência. Como o tributo é uma obrigação ex lege, surge com a concreta realização, em um determinado momento, de um fato que está previsto em lei anterior e que da lei recebeu a força jurídica que determina o nascimento dessa obrigação. Portanto, a obrigação tributária somente nascerá se e quando ocorrer, no tempo e no espaço, esse fato concreto, que deve ser idêntico ao previsto na hipótese legal, como defende ATALIBA.348 Partindo desse raciocínio, esse autor também reforçou as críticas de BECKER à utilização, por parte da doutrina, da expressão “fato gerador”, para designar tanto a hipótese legal (conceito abstrato), como o fato efetivamente ocorrido (conceito concreto), o que causou enorme confusão terminológica que não pode ser aceita, ante um necessário rigor científico. Diante disso, o autor passou a defender a utilização da expressão “hipótese de incidência” para referir-se à previsão legal, e “fato imponível” para o fato realmente ocorrido no mundo fenomênico.349 ATALIBA define a hipótese de incidência como sendo a “hipótese da lei tributária”: “É a descrição genérica e abstrata de um fato. É a conceituação (conceito legal) de um fato: mero desenho contido num ato legislativo”.350 Importante ressaltar, quanto à correta utilização do vocábulo “conceito”, a distinção entre conceito lógico-jurídico e conceito jurídico-positivo. O primeiro, também chamado de categoria lógico-jurídica, tem validez universal, não resultando da interpretação de um determinado sistema jurídico, assim como independe de vínculos com institutos jurídicos localizados no tempo e no espaço. “É aplicável assim ao direito vigente como ao revogado ou constituendo. É válido aqui, como alhures, onde haja direito, porque conceito lógico-jurídico”.351 Como exemplos de conceitos lógicojurídicos, temos: “relação jurídica”, “sanção”, “direito subjetivo”, “dever”, “pessoa”, “preceito” etc. 348 Hipótese..., op. cit., p. 47-48. Ibidem, p. 48-50. 350 Ibidem, p. 53-54. 351 Ibidem, p. 54-55. 349 149 Por sua vez, um “conceito jurídico-positivo” está delimitado ao ordenamento jurídico do qual faz parte, devendo ser resultado da interpretação das normas existentes e válidas em um dado sistema jurídico, sendo, com efeito, inválido, perante o direito alienígena. A distinção entre “categoria lógico-jurídica” e “conceito jurídico-positivo” é dada com propriedade por JUAN MANOEL TERAN: la validez de un concepto jurídico-positivo está sujeta a la vigencia del derecho mismo en que se apoya. En cambio, cuando se formula un concepto lógico que sirve de base para la conceptuación jurídico-positiva, esa noción se formula con pretensión de validez universal. ... En conclusión: uno es el plano de los conceptos jurídico-positivos y otro el plano de las nociones o fundamentos lógico-jurídicos. Los conceptos jurídico-positivos tienen un ángulo equivalente al de la positividad del derecho concreto que los ha comprendido e implantado, en tanto que los fundamentos lógicos pretenden tener una validez común y universal para todo sistema jurídico y, por lo tanto, para toda conceptuación jurídica. ... Por otra parte, los conceptos jurídico-positivos son calificados como nociones a posteriori; es decir, se obtienen una vez que se siente la experiencia del derecho positivo, de cuya comprensión se trata; en tanto que los otros conceptos, los lógico-jurídicos son calificados como conceptos a priori; es decir con validez constante y permanente, independiente de las variaciones del derecho positivo”, como “Por ejemplo: la noción genérica de persona en derecho, como sujeto de imputación, no se alterará porque varién los sistemas jurídico-positivos: seguirá valiendo.352 O conceito de “hipótese de incidência”, portanto, é universal, no sentido de não ser exclusivo, privativo, de determinado sistema jurídico. É um conceito formulado pela Ciência do Direito, com alcance limitado ao universo jurídico (conceito da Teoria Geral do Direito). “Deve-se distinguir o conceito, como ato de pensamento (como conteúdo de pensamento), do objeto do conceito”, o qual seria o resultado da análise desse conceito pelo pensamento.353 Entretanto, a hipótese de incidência não é um simples conceito, mas um conceito legal. Confirma a assertiva a ilustração dada por ESTEVÃO HORVATH ao conceito de tributo no Direito Tributário brasileiro: “Tributo é conceito jurídico-positivo – e não lógico-jurídico (Juan Manuel Terán) – e, assim sendo, o Direito positivo dirá o que é tributo”.354 Isso implica que a hipótese de incidência, como conceito legal, não se confunde com o seu objeto, que é algum fato ou estado de fato, e que não tem todas as suas características, mas recolhe e espelha somente aquelas necessárias à sua função técnico-jurídica. É por isso que, ao intérprete, só interessam, do fato concreto que se 352 Apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 58. Hipótese..., op. cit., p. 55. 354 Classificação dos tributos. In: BARRETO, Aires Fernandino; BOTTALLO, Eduardo Domingos (coord.). Curso de Iniciação em Direito Tributário, p. 37. 353 150 subsume à hipótese de incidência, os caracteres que tenham sido contemplados pela lei, sendo os restantes irrelevantes para esse fim.355 Ainda que na hipótese possamos visualizar isoladamente seus diversos elementos, como categoria lógico-jurídica ela é una e indivisível.356 Como resultado, cada hipótese de incidência só é igual a si mesma e não se confunde com as restantes. Cada tributo, portanto, só é igual a si mesmo.357 A hipótese de incidência não existe só na regra jurídica tributária, cuja estrutura lógica e atuação dinâmica é idêntica a qualquer outra regra jurídica. A hipótese de incidência tributária pode ser qualquer fato – ato, fato ou estado de fato – lícito – econômico ou jurídico – pois do contrário, o objeto da prestação será sanção e não tributo, conforme ensinamento de BECKER, o qual entendia que o fato escolhido para base de cálculo exerce a função de núcleo da hipótese de incidência e, por exclusão, todos os demais fatos exercem a função de elementos adjetivos.358 Como veremos adiante, identificar a localização da base de cálculo no antecedente foi perdendo espaço na doutrina, pois se verificou mais lógico que, junto com a alíquota, constituísse ela um dos elementos necessários à quantificação da relação jurídica tributária, a qual é o objeto da prescrição contida no mandamento da norma. Entretanto, a tese de BECKER teve o aspecto positivo de prestigiar a necessidade de a base de cálculo ter uma correspondência lógica com a materialidade da hipótese de incidência, assim como foi esse autor foi preciso em afirmar a necessidade de a hipótese de incidência também compreender as coordenadas de tempo e de lugar para a sua realização. ATALIBA, apesar de ter defendido, com acerto, que os aspectos da hipótese de incidência não estão necessariamente arrolados de forma explícita e integrada na lei, pois, em geral, estão esparsos em um ou diversos textos normativos, estando muitos de forma implícita no sistema jurídico, e que o caráter múltiplo desses “aspectos” não ofende a unidade e indivisibilidade da hipótese, incluiu, equivocadamente, na hipótese de incidência, o aspecto pessoal, ao lado dos demais aspectos, que lhe são lógicos, ou seja, o material, o temporal e o espacial. Como resultado, o autor vislumbrava, na hipótese de incidência, a quase totalidade dos elementos identificáveis na norma tributária, com exceção da alíquota, 355 ATALIBA, Geraldo. Hipótese..., op. cit., p. 56-57. Exemplo: a hipótese “vender mercadorias” tem como elementos: (a) o ato da venda e (b) o objeto dessa venda, a mercadoria. 357 ATALIBA, Geraldo. Hipótese..., op. cit., p. 60-61. 358 Teoria..., op. cit., p. 238. 356 151 único integrante, em sua visão, a compor o mandamento. Via, portanto, um aspecto pessoal, como identificador dos sujeitos ativo e passivo da relação jurídica, integrando a hipótese de incidência. O aspecto material, qualificado pelos aspectos espacial e temporal, tinha como perspectiva dimensível a base de cálculo, a qual preferia denominar de “base imponível”.359 O autor aderia, nesse ponto, ao pensamento de BECKER, para quem o fato escolhido para base de cálculo exerce a função de núcleo da hipótese de incidência e todos os demais fatos, por exclusão, exercem a função de elementos adjetivos.360 Por ouro giro, ATALIBA denominou de “fato imponível” o fato ocorrido no mundo fenomênico, que, por encontrar absoluta identidade com a descrição prevista na hipótese de incidência, identifica-se, com essa, no fenômeno denominado de subsunção, cuja propriedade é a deflagração imediata e automática do nascimento da relação jurídica tributária. Ao afirmar que “[...] o vínculo obrigacional que corresponde ao conceito de tributo nasce, por força de lei, da ocorrência do fato imponível”, quis com isso dizer, pois, que a obrigação tributária não nasce somente da lei, nem somente do fato imponível por si só, mas da circunstância de tal fato, por ser considerado imponível, por subsumir-se a uma hipótese de incidência.361 Dizendo de outra forma, o que faz a obrigação tributária nascer é a incidência da regra jurídica sobre um fato que corresponde à sua respectiva hipótese de incidência. Afirma o autor, ainda, que o fato imponível é um fato jurídico, e não um ato jurídico, porque, quando a lei coloca como aspecto material da hipótese de incidência um fato que é voluntário para outros ramos do direito, para o Direito Tributário esse fato será simplesmente fato jurídico, sendo irrelevante sua classificação como fato voluntário ou não. “Para o direito tributário é irrelevante a vontade das partes na produção de um negócio jurídico”, sendo sua única vontade a que emana da lei, ainda que tal vontade seja relevante para os efeitos privados do negócio.362 O qualificativo “imponível” ganhou destaque com as obras “El hecho imponible”, de DINO JARACH e “Análisis jurídico del hecho imponible”, de SÁINZ DE BUJANDA, conforme anota JUAN RAMALLO MASSANET, para quem ambos “[...] son los autores que en mayor medida han profundizado y derivado consecuencias de la institución del hecho imponible. En relación a este término – hecho imponible – 359 Hipótese..., op. cit., p. 108. Teoria..., op. cit., p. 238. 361 Hipótese..., op. cit., p. 64. 360 152 ambos autores se han detenido de manera especial en el análisis del calificativo ‘imponible’”.363 O autor espanhol ressalta que, além do qualificativo “imponible” (imponível), também entende relevante a análise do substantivo “hecho” (fato): Yo, por mi parte, llamaria tanbién la atención sobre el sustantivo ‘hecho’. En efecto, ‘hecho’no es más que el participio pasivo irregular del verbo hacer, y equivale a suceso o cosa que ocurre. La realidad es que el ‘hecho imponible’ es en esencia siempre un verbo (obtener, poseer, gastar, transmitir, ejercer... algo por alguien); y el verbo, gramaticalmente, constituye el ‘elemento nuclear ordenador’ de una oración. [...] De ahí que se pueda afirmar: así como el verbo ordena los demás elementos de la oración gramatical, el hecho imponible ordena los demás elementos de la obligación tributaria. 364 Percebe-se que a intenção de MASSANET foi demonstrar que a ocorrência do fato “imponível” ordena – relação de imputação, causalidade – o nascimento da obrigação tributária, com todos os seus elementos (critérios), previstos de forma abstrata na regra-matriz de incidência. Já para a hipótese de incidência, o autor expressa-se da seguinte forma: “[...] la ley no se limita a establecer los supuestos de hecho que, de darse en la realidad, generan las obligaciones tributarias”.365 JOSÉ JUAN FERREIRO LAPATZA, outro grande professor espanhol, demonstra, no Direito Comparado, a mesma preocupação em distinguir a realidade fática da normativa: Debemos aclarar inmediatamente que con las expresiones ‘presupuesto de hecho del tributo’ y ‘hecho imponible’ se alude a idéntica realidad, al hecho hipoteticamente previsto en la norma cuya realización determina el nacimiento de la obligación tributaria. Ambas expresiones son, pues, equivalentes; ambas se refieren a lo mismo, si bien cada una de ellas lo hace desde diferente perspectiva, resaltando distintos matices de aquel hecho al que se refieren. Cuando decimos ‘presupuesto de hecho del tributo’ resaltamos que tal hecho está supuesto o previsto en la norma, dibujado y delimitado por ella.366 Para PAULO DE BARROS CARVALHO, a hipótese das normas jurídicas sempre representa a descrição de um fato, e assim como todos os conceitos, sejam ou não jurídicos, possui uma integridade lógica – idéia única e incindível – inexistente nos acontecimentos reais, que podem ser vistos de modo unitário. No entanto, a indecomponibilidade lógica dos conceitos pode ser transposta pela operação lógica da 362 Ibidem, p. 68-69. MASSANET, Juan Hamalo. Hecho imponible y cuantificación de la prestación tributaria. Revista de Direito Tributário, n. 11/12, p. 11. 364 Idem. 365 Idem. 366 Relación jurídico-tributaria – la obligación tributaria. Revista de Direito Tributário, n. 41, p. 25. 363 153 abstração – onde se separa o inseparável – para fins de investigação científica. Portanto, incorreta é a divisão dos “fatos geradores” em simples e complexos (ou “complexivos”)367, haja vista que, se as hipóteses tributárias são conceitos lógicos, gozam de um caráter unitário, sendo impossível serem simples ou complexas, atributos, todavia, inerentes aos eventos do mundo físico.368 Como exemplo, o referido autor fala sobre o costume em considerar o “fato gerador” do imposto sobre produtos industrializados, por exemplo, como simples, porque a mera saída do produto industrializado – IPI, faz nascer a obrigação tributária, e do imposto de renda como complexo, pela razão de que a ocorrência da renda líquida tributável dependeria de uma série de acontecimentos, a ocorrerem durante o exercício financeiro – rendimentos, deduções etc. Ou seja, qualquer fato depende de algo que lhe é anterior.369 Houve, no entanto, autores que, a partir da obra de PAULO DE BARROS CARVALHO, elaboraram novos raciocínios, através de inclusões e/ou alterações na sua fórmula sobre a norma tributária. Dentre esses, podemos destacar, com proveito, as teses de MARÇAL JUSTEN FILHO370, SACHA CALMON NAVARRO COELHO371, MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI372, autores que criticam, na estrutura da norma tributária proposta por PAULO DE BARROS CARVALHO, a ausência de um critério/aspecto pessoal ou subjetivo na hipótese, mediante o argumento de que o fato descrito no antecedente sempre estará vinculado a uma pessoa, com o que estaria incompleto tal modelo. Todos os citados autores, entretanto, refutam a existência desse critério/aspecto pessoal na hipótese como apto a identificar o sujeito passivo da relação jurídica, nos moldes em que defendia GERALDO ATALIBA373. SACHA CALMON NAVARRO COELHO ilustra esse pensamento com o antigo ICM, pois tal imposto exigia em certas 367 Para AMÍLCAR DE ARAÚJO FALCÃO, “instantâneos” seriam os fatos geradores que “[...] ocorrem num momento dado de tempo e que, cada vez que surgem, dão lugar a uma relação obrigacional tributária autônoma”, como é exemplo o fato gerador “importação”, em relação ao imposto de importação. Já os fatos geradores “complexivos” ou “periódicos” são aqueles “[...] cujo ciclo de formação se completa dentro de um determinado período de tempo [...] e que consistem num conjunto de fatos, circunstâncias ou acontecimentos globalmente considerados”, como seria o exemplo do fato gerador “renda”, em relação ao imposto de renda. – O fato gerador..., op. cit., p. 126-127. 368 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 249-250. 369 Teoria..., op. cit., p.128-129. 370 O imposto..., op. cit., p. 46-52. 371 Teoria geral..., op. cit., p 113. 372 Do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, p. 219-220. 373 Hipótese..., op. cit., p. 77. 154 operações de circulação a figura de determinado sujeito, como o industrial, comerciante, produtor agropecuário etc., além de defender a utilidade da presença do aspecto pessoal na hipótese, para explicar institutos de Direito Tributário, como é o exemplo da “substituição tributária”.374 MARÇAL JUSTEN FILHO também concorda com o exemplo do antigo ICM, acrescentando, porém, que o “[...] caso mais evidente de critério pessoal expresso tem-se no campo dos tributos vinculados”.375 OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, com base na idéia da integridade lógica da norma jurídica como conceito que é, refuta tal raciocínio, defendendo que “[...] a existência de um critério pessoal na hipótese não é um pressuposto para a incidência das regras-matrizes de determinados tributos”, sustentando que o fenômeno da incidência ocorre de modo unitário, sem que possa haver uma cronologia entre hipótese e conseqüência.376 Em que pese esse respeitável entendimento, quer nos parecer que assiste razão aos argumentos defendidos por PAULO DE BARROS CARVALHO em sua tese de livre-docência, acerca da “Regra-Matriz do ICM”, onde o aludido critério pessoal da hipótese seria excepcional, fortuito, ocasional, quando o objetivo em rigor é identificar o “[...] arcabouço essencial da norma jurídica tributária, seu mínimo irredutível ou sua unidade monádica”377. Igualmente pertinentes são as considerações de JOSÉ ROBERTO VIEIRA, para quem é inegável a existência desse aspecto subjetivo no antecedente, quando a materialidade refere-se a um comportamento de pessoas e exigindo verbo pessoal. “A questão é se este dado tem relevância suficiente para ser elevado à categoria de critério da hipótese de incidência tributária”. Raramente o terá, sustenta esse jurista paranaense, pois “[...] o único exemplo a afiançar a tese [...] era o ICM (Constituição de 1967/1969, artigo 23, II)”, alterado na Constituição Federal de 1988 para o ICMS, em que o fato tributário somente se considerará ocorrido se a operação de circulação for realizada por certos sujeitos – industrial, comerciante, produtor agropecuário ou equiparados. Entretanto, já na vigência da Constituição Federal de 1988, na redação anterior à Emenda Constitucional nº 20, de 15 dez. 1998, as contribuições sociais sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro, também dependiam da existência do sujeito “empregadores”, conforme 374 Teoria geral..., op. cit., p. 114. O imposto..., op. cit., p. 51. 376 A contribuição..., op. cit., p. 40. 377 Apud VIEIRA, José Roberto. A regra-matriz..., op. cit., p. 64. 375 155 raciocínio de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER em relação à Contribuição ao PIS378. Quanto à existência dos critérios material, espacial e temporal na hipótese de incidência, não restam divergências. Além da visão estática da regra-matriz de incidência tributária, ou seja, do sentido abstrato do texto normativo, pode-se visualizar a norma jurídica tributária também pela sua visão dinâmica, o que é possível através do estudo da fenomenologia da incidência, com o acontecimento concreto do fato ocorrido no mundo fenomênico que, por força de sua subsunção àquela previsão normativa, faz irromper o nascimento da relação jurídica tributária.379 Entretanto, disso surge a necessidade de posicionamento quanto à terminologia a ser utilizada para este fato ocorrido, posto que a validez de um método científico exige que duas realidades tão diversas recebam também diversa denominação. Conforme já mencionado no início deste subitem, esta já era a preocupação de BECKER, pois a expressão “fato gerador”, infelizmente ainda utilizada pela legislação tributária e felizmente repudiada pela doutrina dominante, abrange em seu conteúdo semântico aquelas duas realidades estanques, resultando em equívoco que, conquanto existente na linguagem do Direito Positivo, é inadmissível na linguagem da Ciência do Direito. Quanto ao antecedente da regra-matriz tributária, a expressão “hipótese de incidência”, cunhada por GERALDO ATALIBA, logrou obter grande adesão da doutrina e jurisprudência, assim como o vocábulo “antecedente”, não se vislumbrando, em relação a eles, qualquer impeditivo científico. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer da expressão “fato imponível”, com que GERALDO ATALIBA denominou o evento ocorrido no mundo e que se identifica com a sua descrição normativa, pois, se é imponível, ainda não pode ser tido como fato ocorrido, e, após a incidência, com a sua ocorrência efetiva, deixará de sê-lo (imponível), conforme crítica precisa de PAULO DE BARROS CARVALHO, autor que defende as expressões “hipótese tributária” para a prescrição geral e abstrata, e “fato jurídico tributário”, para sua equivalente ocorrência efetiva no mundo, as quais reputamos plenamente válidas em relação à realidade a que se referem.380 378 A contribuição..., op. cit., p. 39-40. Vide infra, subitem 3.4. 380 Curso..., op. cit., p. 244-245. 379 156 Antes da análise dos critérios da hipótese de incidência tributária, é necessário consignar algumas premissas, que serão de supina relevância em toda a argumentação relativa ao local de ocorrência do fato tributário do ISS. MARÇAL JUSTEN FILHO lembra que “[...] o Direito não pode alterar o mundo físico, mas pode alterar a relevância desses fatos”. É o Direito que determina o que integrará o seu mundo (jurídico), que não são os fatos como tais, mas os fatos como juridicamente relevantes. Os fatos não têm eficácia jurídica própria, mas apenas aquela que o Direito lhes reconhece. Nesse sentido, é comum designar por ficção jurídica “[...] a situação que se passa quando o Direito determina que não se produzam efeitos atribuídos por ele próprio a uma situação fática determinada, ou quando determina que se produzam certos efeitos sem que a situação fática usualmente imprescindível faça-se presente” [sic]. Assim como ALFREDO AUGUSTO BECKER381, MARÇAL JUSTEN FILHO vê na utilização do vocábulo “ficção” um despropósito, pois “[...] em termos puramente jurídicos, aí não se passa algo diverso do que se dá nos demais casos”. Não há confusão entre os mundos do ser e do dever-ser.382 Transpondo o raciocínio anterior ao tema do aspecto espacial da hipótese de incidência, conclui o autor que “[...] teríamos de reconhecer a plena possibilidade de a norma eleger uma situação fática qualquer para desencadear a incidência de seu mandamento – ainda que essa situação fática viesse a ocorrer em um espaço geográfico sobre o qual a pessoa política editora da norma não dispusesse de competência. Essa possibilidade é ilimitada no caso de Estados soberanos e pode ser limitada no tangente a normas editadas por pessoas políticas de uma Federação”, o que não ocorreu no Brasil, onde não há norma constitucional expressa que afete o aspecto espacial da hipótese de incidência das normas tributárias, o que não ocorre em relação ao aspecto temporal, por força dos princípios da irretroatividade e da anterioridade. Como resultado, lembra o autor que podem surgir dúvidas sobre a possibilidade de um Município tributar serviço prestado em território de outro Município.383 Todavia, as dúvidas desaparecem quando lembramos que os fatos são no tempo e no espaço, como já dizia PONTES DE MIRANDA, ou seja, têm data e lugar. Os critérios da hipótese de incidência – denominada por esse autor de suporte fático – 381 Teoria..., op. cit., p. 464. O imposto..., op. cit., p. 143. 383 Ibidem, p. 143-144. 382 157 podem apresentar uma relação de tempo de sucessão e simultaneidade. A regra jurídica (conseqüência) e o suporte fático devem coexistir no momento em que se dê a incidência, não sendo preciso que tal ocorra no momento da aplicação, o que é importante na análise de regras retroativas.384 Diante disso, e partindo sempre da perspectiva de que a descrição abstrata do fato do mundo a ser tributado deve propiciar ao destinatário da norma o máximo possível de segurança jurídica, a hipótese resultaria insuficiente se só revelasse a materialidade desse evento. Como o próprio vocábulo implicitamente acusa, se é evento, ocorre em determinado lugar e em determinado momento do tempo. É necessário, portanto, que o critério material da hipótese de incidência seja qualificado pelo critério espacial, o qual fornecerá as coordenadas de espaço para poder identificar onde se considerará ocorrido o fato jurídico tributário; e também pelo critério temporal, revelador das coordenadas de tempo imprescindíveis ao conhecimento do momento exato em que um fato do mundo poderá ser considerado jurídico, por subsumir-se àquela materialidade já localizada no espaço. É crucial a verificação de que os critérios da hipótese de incidência – material, espacial e temporal – não obstante poderem ser analisados de forma individualizada, com abstração dos demais, no plano da Ciência do Direito, são inseparáveis no plano fático, o que implica a impossibilidade lógica de dissociação desses critérios em relação ao fato tributário, assim como a qualquer outro fato jurídico. O que se quer defender é que os critérios da hipótese de incidência, quando da análise da regra-matriz constitucional do tributo, são interdependentes e, como resultado, não é permitido ao legislador ordinário, quando da instituição do tributo, ampla margem de liberdade na escolha desses dados. Como a Constituição tem a materialidade como o critério expresso para a repartição de competências tributárias, resta inequívoco que os demais critérios – espacial e temporal – também já estão previstos no contexto constitucional, ainda que de forma implícita. Qualquer outra conclusão, por força de raciocínio lógico, é juridicamente absurda, pois, para cada critério material, somente pode haver um critério espacial e um critério temporal, como efetivamente ocorre em sede constitucional. Caso se admita que possa a lei, complementar ou ordinária, dispor em sentido contrário, estar-se-á a admitir a falácia de que a Constituição é (extremamente) flexível, podendo ser alterada de 384 Tratado..., v.1., op. cit., p. 76-78. 158 acordo com o rumo das (in)conveniências do legislador infraconstitucional. Conforme adverte GERALDO ATALIBA, ainda que se possa visualizar na hipótese de incidência seus diversos elementos isoladamente, como categoria lógico-jurídica, ela é una e indivisível.385 3.3.2 Critério material O critério material é o núcleo da hipótese, referindo-se a um comportamento pessoal, isolado das condicionantes de espaço e tempo, o que o distingue da “descrição objetiva do fato”, pois caso assim fosse conceituado confundir-se-ia com toda a hipótese, resumindo-se, na verdade, a um verbo seguido de um complemento. Com relação a esse verbo, adverte PAULO DE BARROS CARVALHO que não podem ser utilizados os pertencentes à classe dos impessoais (como haver), assim como estão desqualificados os que não possuem sujeito (como chover), sob pena de inviabilizar o alcance da operatividade dos fins normativos. É de rigor, portanto, a existência de um complemento do predicado verbal, o que impede a utilização de verbos de sentido completo. Em síntese, o verbo deve ser pessoal e de predicação incompleta, o que exige sempre a presença de um complemento.386 JOSÉ ROBERTO VIEIRA acrescenta que o complemento pode ser um objeto direto ou indireto, o que exclui verbos impessoais, sejam os essenciais, os quais exprimem, por exemplo, fenômenos da natureza, ou os acidentais, como, por exemplo, “haver”, na acepção de existir; “fazer” indicando decurso de tempo etc.; e também, regra geral, os verbos unipessoais, que são aqueles que, por exemplo, exprimem uma ação ou um estado peculiar a um determinado animal.387 Como resultado da unidade lógica e incindível da regra-matriz tributária resulta o corolário da interdependência dos critérios da hipótese – material, espacial e temporal. O critério material, como núcleo da hipótese, condiciona os critérios espacial e temporal. Do fato de a Constituição, nos dispositivos que outorgam as competências tributárias, ter-se referido expressamente só às materialidades, não autoriza concluir não tenha também fornecido, ainda que implicitamente, o que não reduz o alcance do raciocínio, os demais critérios. Por essa razão, o legislador infraconstitucional não pode 385 Hipótese..., op. cit., p. 60-61. Curso..., op. cit., p. 255. 387 A regra-matriz..., op. cit., p. 63. 386 159 alterar os critérios espacial e temporal, pois assim agindo estará inevitavelmente tributando materialidade diversa daquela descrita na hipótese tributária. Como exemplo, se a norma determina que o critério espacial do fato tributário do ISS é o local (município) onde está seu domicílio, a tributação passa a incidir não mais sobre a prestação do serviço, como quer a Constituição, mas sobre o fato de manter-se uma sede.388 A materialidade da hipótese de incidência também é o critério que vinculará a eleição do sujeito passivo, do que se conclui que o legislador, quando da conclusiva criação do tributo, não possui plena discricionariedade para eleger quem figurará no pólo passivo da obrigação tributária. Não desmente essa afirmação o fato de, em muitos casos, o destinatário constitucional tributário, para usar a expressão de MARÇAL JUSTEN FILHO, não ser o sujeito passivo, mas figurar como substituído tributário. É que, em tais casos, o sujeito passivo, qualificado como substituto, além de estar obrigatória e diretamente vinculado à materialidade da hipótese tributária, deverá ter condições jurídicas de transferir o ônus econômico do tributo ao contribuinte substituído.389 3.3.3 Critério temporal O tempo, isoladamente, não é fato jurídico, mas entra, como fato, no suporte fático de fatos jurídicos. “O tempo [...] pode ser tido como extensão em que fatos positivos, ou fatos negativos ocorram”.390 O tempo pode ser elemento do suporte fático, para que, com a incidência da regra jurídica, nasça o direito, ou que ocorra a sua extinção. Nas palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO, no âmbito tributário, o critério temporal é “[...] o marco de tempo, indicado no contexto da regra instituidora do tributo, e que nos permite saber do momento exato quando surde à luz o liame jurídico que vincula credor e devedor em função de um objeto”. Acrescenta o autor: “De extraordinário relevo, é por tal indicação que temos ciência do nascimento de um direito subjetivo público, para o Estado, de um dever jurídico, para o sujeito passivo, a despeito de o laço haver-se instalado com grau de 388 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 74-75. Sujeição..., op. cit., p. 262. 390 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado..., v.1., op. cit., p. 78-80. 389 160 eficácia mínima ou média, no caminho da tese de Pontes de Miranda e de Alfredo Augusto Becker, que também acolhemos”.391 O critério temporal, portanto, constitui o grupo de indicações que permitem conhecer o exato momento em que ocorre o fato descrito na hipótese, fator de extrema importância, pois indica o momento exato do surgimento, no mundo jurídico, da relação jurídica tributária. No entanto, da exacerbação desse fenômeno, o legislador, e parte da doutrina e da jurisprudência, passaram a confundir o critério temporal de certos impostos com a descrição integral da hipótese de incidência, o que ocorreu de forma acentuada em tributos como o IPI e o ICMS, cujas disposições legais prevêem, em síntese, que a hipótese tributária (“fato gerador”) é, conforme o caso, a saída ou entrada do produto ou da mercadoria. O artigo 116 do Código Tributário Nacional dispõe que, “Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável”. Na linguagem do Código, o artigo 116, portanto, define o “momento de ocorrência do fato gerador”. Essa redação foi alvo de acertadas críticas pelo professor PAULO DE BARROS CARVALHO, para quem o legislador cometeu erro jurídico grosseiro, “[...] ao diferenciar as situações jurídicas, sabendo que as primeiras (situações de fato), uma vez contempladas pelo direito, adquiriram a dignidade de situações jurídicas”.392 Mais adiante, contudo, o autor esclarece que, não obstante sua crítica, o conteúdo do artigo 116 apresenta méritos, pelo que não é de ser desprezado. O inciso I, quando usa a expressão “[...] situações de fato”, na verdade quer se referir aos meros fatos jurídicos, não qualificados como institutos jurídicos, ou seja, entidades cuja definição não se encontrava antes positivada pelo sistema jurídico. Um exemplo é o fato “auferir renda”, tributável pelo imposto sobre a renda, previsto no artigo 153, III, da Constituição de 1988. Já no inciso II, a expressão “[...] situações jurídicas” refere-se aos institutos já anteriormente qualificados pelo direito, como, de regra, os atos e negócios jurídicos, como é exemplo a compra e venda de bens imóveis, onde a respectiva transmissão é tributada pelos municípios através do ITBI (artigo 156, 391 Hipótese de incidência do ICM. Revista de Direito Tributário, n. 11/12, p. 264-265. 161 II). Em rigor, entende-se como parcialmente falha essa distinção, pois esse artigo, indevidamente, não considera “fato” como “situação jurídica”, pois qualquer fato que esteja previsto hipoteticamente em lei adquire qualificação jurídica. 393 Uma advertência importante reside na correta interpretação que exige a expressão “Salvo disposição de lei em contrário...”, constante do início do caput do artigo 116 do Código Tributário Nacional. É que se o fato jurídico tributário somente surge após a concretização de sua materialidade no mundo fenomênico, a liberdade do legislador ordinário existe para fixar o momento de ocorrência do fato tributário em qualquer átimo, desde que posterior àqueles previstos nos incisos I e II do mesmo artigo 116. Comunga desse entendimento o professor AIRES BARRETO: “[...] o artigo 116, do CTN, não é norma autorizativa de exigência de tributo antes da ocorrência do fato tributário”.394 Nesse aspecto, é importante o que dispõe o artigo 144, também do Código Tributário Nacional, ao prever que “O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”. É pacífico, na doutrina tributária, que inexistem fatos tributários cuja formação é prolongada no tempo, havendo um instante exato, no tempo, em que se reúnem todos os elementos fenomênicos caracterizadores do fato jurídico. Todos os eventos, ocorridos antes dessa ultimação, não são fatos jurídicos, ainda que, somados, sejam imprescindíveis à configuração do fato tributário. “Ao Direito só interessam os específicos momento e local em que se completou o fato imponível”.395 Será inconstitucional, portanto, toda lei que estabeleça, por meio de indevida ficção jurídica, critério temporal como um momento outro que não aquele em que ocorre aquela específica materialidade ou, em momento posterior à sua concretização. Não há o menor indício de que a Constituição tenha autorizado a criação de ficções jurídicas em matéria de competência tributária. Portanto, padecerá de irremediável inconstitucionalidade a eventual lei complementar ou ordinária que venha a estatuir, como critério temporal, momento dissociado da regra-matriz constitucional, ainda que, no primeiro caso, a pretexto de dispor sobre conflitos de competência.396 392 Curso..., op. cit., p.273. Ibidem, p. 273-274. 394 ISS na Constituição e na lei, p. 300. 395 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 74. 396 Idem. 393 162 3.3.4 Critério espacial O conhecimento dos critérios material e temporal da hipótese de incidência permite, mediante raciocínio lógico, identificar qual seja o mandamento constitucional implícito acerca do seu critério espacial. O critério espacial identifica o local onde ocorre o fato jurídico, não se restringindo ao âmbito de validade territorial da lei, ou seja, pode coincidir com o campo de eficácia da lei, mas com este não se confunde ontologicamente. Esse critério sempre está presente na hipótese tributária, seja de forma expressa ou implícita, cabendo a opção ao legislador. PAULO DE BARROS CARVALHO classifica o gênero tributo, em relação ao seu critério espacial, da seguinte forma: (a) hipótese cujo critério espacial menciona determinado local para a ocorrência do fato tributário, como são exemplos os impostos que gravam o comércio exterior, como o Imposto de Importação e o Imposto de Exportação, cujo critério espacial são as repartições alfandegárias; (b) hipótese em que o critério espacial alude a áreas específicas, quando o acontecimento ocorrerá somente se estiver geograficamente contido dentro delas, como o imposto municipal IPTU (zona urbana do município) e o imposto federal ITR (zona rural do município); e (c) hipótese de critério espacial bem genérico: o fato será tributário sempre que ocorra dentro do âmbito de validade territorial da norma, estando nesta espécie todos os demais, como o ICMS, o ISS ou o IPI, exceto, quanto a este último, o que incide sobre a importação, quando então se enquadrará na primeira espécie, por ocorrer o fato somente na repartição aduaneira.397 É preciso, entretanto, compreender que, na hipótese da letra “c” acima, o critério espacial, por se confundir com o próprio âmbito de validade da lei, não pode ser ampliado por iniciativa do legislador tributário, sob pena de violação do critério territorial que, junto com o critério material, constituem os elementos escolhidos pela Constituição na discriminação das competências tributárias. Ou seja, o legislador constituinte não distribuiu as competências tributárias somente em razão das matérias (ratione materiae), como também o fez em razão do âmbito espacial (territorial) de vigência da lei de cada uma das pessoas políticas (ratione loci). Quando da instituição do tributo, portanto, pode o legislador reduzir o âmbito espacial de validade da lei, mas não pode ampliá-lo, sob pena de grave ofensa à 397 Curso..., op. cit., p. 258. 163 Constituição. Esse raciocínio será de extrema relevância para o objeto principal desse estudo, o critério espacial do ISS, pois servirá como princípio balizador para definir onde se considera ocorrido o fato tributário desse imposto municipal. 3.4 A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA 3.4.1 Considerações introdutórias Além da hipótese tributária, a regra-matriz de incidência contempla ainda o conseqüente, ou mandamento, que é o prescritor da relação jurídica que se instaurará, de forma automática e infalível, caso o evento da hipótese se concretize. Ou seja, o conseqüente fornece-nos os critérios necessários a identificar o vínculo jurídico que nasce, “[...] facultando-nos saber quem é o sujeito portador do direito subjetivo; a quem foi cometido o dever jurídico de cumprir certa prestação; e seu objeto, vale dizer, o comportamento que a ordem jurídica espera do sujeito passivo e que satisfaz, a um só tempo, o dever que lhe fora atribuído e o direito subjetivo de que era titular o sujeito pretensor”.398 A estrutura da regra-matriz tributária idealizada por PAULO DE BARROS CARVALHO representou um verdadeiro marco no Direito Tributário, por ter desmistificado o pensamento de outros autores que, apesar da excelência, insistiam em supervalorizar o antecedente em detrimento do mandamento da norma jurídica tributária. Sua noção da estrutura lógica da norma tributária rompeu com o pensamento de uma série de renomados tributaristas, labor levado a cabo pelas exigências do rigor científico. Isso verifica-se especialmente pela sua configuração do conseqüente, cujos critérios, são dois: o “pessoal” e o “quantitativo”. O critério pessoal trata do conjunto de elementos existente no prescritor da norma, indicando os sujeitos da relação jurídica. De um lado, o sujeito ativo (credor ou pretensor) e, de outro lado, o sujeito passivo (devedor). Noutro giro, o critério quantitativo, na visão desse autor, fornece o objeto da prestação que, para a regramatriz tributária, é constituído pela base de cálculo e pela alíquota. 399 398 399 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 280-281. Idem. 164 A visão da conseqüência da regra-matriz tributária, idealizada por PAULO DE BARROS CARVALHO, à semelhança do que ocorreu em relação à hipótese de incidência, também sofreu propostas de alteração de parte da doutrina. SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO entende que, no mandamento, além da base de cálculo, alíquota e dos sujeitos ativo e passivo, há outros critérios pertinentes à relação jurídica que se forma com a realização da hipótese de incidência: como, onde, de que modo, quando e em que montante deve ser satisfeito o débito para com o sujeito ativo.400 Para o autor, ao reduzir o aspecto quantitativo da conseqüência a tão-somente dois elementos – a base de cálculo e a alíquota – PAULO DE BARROS CARVALHO restringiu o alcance de sua teoria, por duas razões: (a) há tributos que sequer apresentam base de cálculo e alíquota, como ocorreria freqüentemente com as taxas, e (b) há outros tributos, mais complexos, como são exemplos o imposto de renda (IR), o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (ICMS), o imposto sobre produtos industrializados (IPI) e o imposto territorial rural (ITR), dentre outros, os quais exigem, após a aplicação da alíquota à base de cálculo, outros elementos como adições, deduções e cálculos, seja pela complexa quantificação, seja pela obediência à nãocumulatividade, sem os quais não seria possível fixar o valor da prestação devida pelo sujeito passivo.401 O equívoco no raciocínio desse autor foi bem demonstrado por JOSÉ ROBERTO VIEIRA, para quem os procedimentos necessários à apuração da base de cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas “[...] constituem operações cronologicamente anteriores à mesma; e, em verdade, tais passos estão embutidos na base de cálculo, compondo-a em sua plenitude”. Quanto ao ICMS e ao IPI, diversamente do que ocorre em relação ao Imposto de Renda, os procedimentos de apuração do saldo devedor e/ou credor, mediante o encontro de débitos e créditos, “[...] só terão lugar em átimos posteriores à atuação da base de cálculo, permanecendo irretocável, uma vez mais, o critério quantitativo do conseqüente tributário” (grifos do autor).402 MARÇAL JUSTEN FILHO também apresenta divergência em relação à posição de PAULO DE BARROS CARVALHO, apesar de admitir concordar com a 400 Teoria geral..., op. cit., p. 117. Ibidem, p. 117-118. 402 A regra-matriz..., op. cit., p. 124. 401 165 essência do raciocínio desse mestre. O jurista paranaense, em primeiro lugar, somente aceita a utilização do vocábulo “critérios” para o antecedente, discordando da utilização desse vocábulo para o mandamento da norma, defendendo que a conseqüência, na verdade, abrangeria “determinações subjetiva e objetiva”.403 A “determinação subjetiva” compreende o mandamento, no que diz respeito aos sujeitos ativo e passivo da relação jurídica tributária. Por sua vez, a “determinação objetiva” consiste na imposição da conduta que é imposta ao sujeito passivo em benefício do sujeito ativo, repelindo, esse autor, o vocábulo “quantitativo” aludido por PAULO DE BARROS CARVALHO, por defender que, cientificamente, “[...] a norma determina o objeto da relação jurídica – não uma quantia”.404 Para o referido autor, a razão está em que, se na conseqüência devem estar previstos todos os elementos necessários à identificação do objeto da relação jurídica, imprescindível que ali estejam também definidos, além da base de cálculo e alíquota, os dados necessários a informar o local onde a conduta exigida deverá ser satisfeita (onde pagar), assim como o momento em que esta deverá ocorrer (quando pagar), como determinações espacial e temporal do mandamento normativo. No entanto, para evitar um esquema de muita complexidade, prefere manter o entendimento de que o mandamento contém determinações subjetiva e objetiva, essa última compreendendo as determinações quantitativa, espacial e temporal. Apesar da bem fundamentada crítica a tais posições realizada por JOSÉ ROBERTO VIEIRA, o qual defende que ao “como”, “quando” e “onde” pagar, “[...] embora revestidas de significação econômica, constituem questões de menor relevância jurídica, às quais falta sintonia com a idéia de regra-matriz dos tributos como arcabouço essencial, mínimo irredutível, unidade monádica”, defende-se, salvo melhor juízo, que, por força de princípios constitucionais como o da segurança jurídica e o da certeza do direito, não há como divergir da idéia de que o objeto da relação jurídica tributária não se restringe ao produto da operação matemática entre a base de cálculo e a alíquota.405 Concorda-se, no entanto, que, salvo o “quando” e o “onde” pagar, os quais devem estar presentes no mandamento da norma tributária, o “como” pagar – como, por 403 O imposto..., op. cit., p. 53. Idem. 405 A regra-matriz..., op. cit., p. 68. 404 166 exemplo, o tipo de guia de recolhimento – é elemento melhor situado em ato expedido pelo executivo, não advindo disso maiores prejuízos aos contribuintes. Por outro lado, entende-se plenamente procedentes as críticas de JOSÉ ROBERTO VIEIRA em relação à inclusão, no critério quantitativo, além da base de cálculo e da alíquota, das adições e deduções de que fala SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO: “Ora, adições e subtrações posteriores à base de cálculo são irrelevantes, pois também posteriores à norma-padrão e aos seus efeitos; e as adições e subtrações anteriores já se presumem embutidas na base de cálculo”.406 Quanto ao vocábulo utilizado, prefere-se manter “critérios” ao invés de “determinações”, pois, apesar da correta argumentação desenvolvida por MARÇAL JUSTEN FILHO, no sentido de que o mandamento determina uma relação jurídica, não se visualiza uma incompatibilidade desse raciocínio específico com o entendimento de que a conseqüência disponibilize “critérios”, para que o cientista do direito possa construir a estrutura da relação jurídica tributária. Ou seja, temos que ambos os raciocínios estão corretos, pois partem de perspectivas diversas, não havendo necessariamente conflito entre “determinações” e “critérios”. Conforme ensinamento de OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, fala-se em “critérios” não como entes implícitos na hipótese ou no mandamento, mas como ferramentas conceituais utilizadas pelo cientista do Direito para conseguir extrair o fato e a relação previstos na norma jurídica em sua integridade. Com efeito, ainda que o mandamento prescreva/determine uma relação, entende-se que “[...] o cientista tem a seu dispor certos ‘critérios’ para desenhá-la”.407 Com efeito, a conseqüência constitui, na estrutura da norma jurídica tributária, a prescrição da regra aplicável, caso o evento descrito abstratamente na hipótese venha a ocorrer no mundo fenomênico. Dizendo de outro modo, é a parte da norma que prescreve quais são os efeitos jurídicos que nascerão simultaneamente à ocorrência do fato jurídico tributário, que é o momento em que se dá o fenômeno da incidência. Tais efeitos jurídicos, previstos hipoteticamente na norma jurídica, constituem a descrição normativa da relação jurídica a instaurar-se com a ocorrência daquele fato. Caso uma norma jurídica já esteja apta a produzir tais efeitos jurídicos, dizemos que ela já possui eficácia jurídica, a qual não se confunde com a eficácia social e nem com essa possui relação de dependência. 406 Idem. 167 O fenômeno da incidência é assunto tratado pelo estudo da atuação dinâmica da norma jurídica. Na doutrina pátria, grande foi a contribuição de PONTES DE MIRANDA nesse tema, o qual defendia que a incidência independe de sua efetiva aplicação, ou do respeito à regra jurídica, que é questão a ser analisada à luz da Sociologia do Direito, e não da Teoria Geral do Direito. A incidência é infalível. Não se pode confundir a eficácia da regra jurídica, que é a da sua incidência (eficácia só da lei), com a eficácia jurídica, que se refere aos efeitos dos fatos jurídicos (eficácia da lei e do fato, cumulativa). “As conseqüências da incidência são fato, como os outros, portanto algo a mais no mundo jurídico”, como, e.g., o surgimento de relações jurídicas.408 Para que a regra jurídica incida, é preciso que o fato se identifique com toda a hipótese de incidência – “suporte fático abstrato” – na expressão utilizada por PONTES DE MIRANDA – quando então será fato jurídico. Se o “suporte fático concreto” não é suficiente, a regra jurídica deixa de incidir. A eficácia só se perquire depois da incidência, pois ainda quando simultâneas, esta é um prius lógico. Importante, pois, a prova do suporte fático e da sua suficiência.409 ALFREDO AUGUSTO BECKER trouxe os ensinamentos de PONTES DE MIRANDA sobre a incidência para o Direito Tributário, em contribuição de inestimável valor. A incidência da regra jurídica, dizia BECKER, é infalível, o que falha é o respeito aos efeitos jurídicos dela decorrentes, e que não há regra ordenando a incidência – automatismo – pois que essa é infalível pela especificidade do jurídico como instrumento praticável de ação social.410 Essa infalibilidade não contradiz aquilo que o autor denomina de “atitude mental jurídica”, que é o conhecimento e respeito aos efeitos das regras jurídicas, pois a sua falta é reparada pela Doutrina Jurídica, pelo Advogado, pelo Judiciário, pelo Órgão Executivo. A não-sujeição também não altera ou enfraquece essa infalibilidade ou ainda a coercibilidade da eficácia jurídica, posto que é somente na não-sujeição que se torna necessário o exercício da coação, hoje monopólio do Estado. O Judiciário, portanto, não “aplica” a lei, mas analisa se houve ou não a incidência da regra jurídica, seus efeitos jurídicos e, caso o sujeito passivo ainda ignore ou não se sujeite à eficácia jurídica, então intervém o Órgão Executivo através da coação. 407 A contribuição..., op. cit., p. 37-38. Tratado..., v.1., op. cit., p. 62-64. 409 Ibidem, p. 72-74. 410 Teoria..., op. cit., p. 280. 408 168 Esse tema é de enorme importância, já que o objetivo primordial do Direito, que é o de ordenar a vida social nas suas relações de intersubjetividade, tem sua operatividade através da relação jurídica, a qual, surgindo com a ocorrência dos fatos jurídicos, irradia direitos e deveres que são os efeitos prescritos na conseqüência da norma. Com base nisso, PAULO DE BARROS CARVALHO ressalta que “[...] o prescritor normativo é o dado por excelência da realização do direito, porquanto é precisamente ali que está depositado o instrumento da sua razão existencial”. Esse autor bem adverte que a expressão relação jurídica possui mais de uma acepção, e que a que utiliza nesse contexto é a da Teoria Geral do Direito: 411 “[...] vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada de sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação”.412 A relação jurídica, para nascer, exige somente a imputação normativa, sendo irrelevante que haja, anteriormente à disciplina jurídica, um liame de caráter sociológico, político, econômico, ético, religioso ou biológico. A relação jurídica é sempre entre dois sujeitos, vinculados a um objeto, o qual é o “[...] centro de convergência do direito subjetivo e do correlato dever”.413 Do ponto de vista lógico, a relação jurídica é irreflexiva, pois é perante outro sujeito, e assimétrica, já que enquanto o sujeito ativo tem “um direito a”, o sujeito passivo tem “a obrigação de”, constituindo uma relação conversa, o que é expresso pelo referido autor na seguinte fórmula: S’ R S” implica sempre em S” Rc S’. A hipótese normativa liga-se à conseqüência pelo elo da imputação deôntica, e a relação jurídica, de forma diversa, rege-se pelas leis da lógica.414 Dentre as possíveis classificações dos elementos da relação jurídica, destaca-se aquela segundo a qual, quanto ao objeto, o critério que seleciona as espécies é o caráter patrimonial da prestação, teorização levada a efeito em especial pelos civilistas. No âmbito do Direito Tributário, parte da doutrina, a exemplo de PAULO DE BARROS CARVALHO415, RICARDO LOBO TORRES416, JOSÉ ROBERTO VIEIRA417, 411 Outras acepções para “relação jurídica”, por exemplo: liame de parentesco; laço processual que envolve autor, juiz e réu. 412 Curso..., op. cit., p. 282-283. 413 Ibidem, p. 284. 414 Idem. 415 Ibidem, p. 286-287. 416 Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 212. 417 A regra-matriz..., op. cit., p. 65-66. 169 entende que as relações suscetíveis de avaliação econômica são denominadas de relações jurídicas de cunho obrigacional, e na hipótese contrária, relações jurídicas não obrigacionais, ou veiculadoras de meros deveres. Em sentido contrário, temos, também como exemplos, os pensamentos de MARÇAL JUSTEN FILHO, para quem a “[...] conduta humana é insuscetível de consideração patrimonial”418; e de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, o qual em síntese defende – com base no que está positivado nos parágrafos 1º e 2º do artigo 113 do Código Tributário Nacional419 – que “[...] tanto as prestações de cunho patrimonial, quanto as prestações que não o têm, são, pelo direito positivo brasileiro, caracterizadas como obrigacionais”.420 Adotamos a primeira posição, em especial pela sua identificação com a denominação “deveres instrumentais”, ou também “deveres formais”, dada pela doutrina dominante, em substituição à imprópria expressão “obrigações acessórias”, que, ao lado da expressão “obrigação principal”, foi infelizmente positivada no Código Tributário Nacional, já que necessariamente não há vínculo de acessoriedade entre tais espécies de relações jurídicas. RICARDO LOBO TORRES define a relação jurídica tributária como aquela que “[...] estabelecida por lei, une o sujeito ativo (Fazenda Pública) ao sujeito passivo (contribuinte ou responsável) em torno de uma prestação pecuniária (tributo) ou não pecuniária (deveres instrumentais)”, em conceito que tem a virtude de demonstrar as espécies de objetos possíveis em uma relação jurídica tributária. 421 Não se pode concordar, entretanto, quanto à restrição da figura do sujeito ativo à Fazenda Pública, posto não haver óbice na Constituição Federal para que, por força do fenômeno da parafiscalidade, seja a capacidade tributária ativa delegada à pessoa de direito privado, como acontece, por exemplo, com as contribuições sindicais. Também discordamos, sob uma perspectiva eminentemente jurídica, da clássica divisão do sujeito passivo em contribuinte ou responsável, por ser classificação correta somente do ponto de vista econômico-financeiro. 418 Sujeição..., op. cit., p. 61. “Artigo 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorrente da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º [...]”. 420 BORGES, José Souto Maior. Obrigação tributária: uma introdução metodológica, p. 81. 421 Curso..., op. cit., p. 205. 419 170 A relação jurídica tributária, portanto, não se reduz somente à de caráter patrimonial, ou seja, aquela cujo liame entre o sujeito ativo e o passivo tem por objeto uma prestação pecuniária, o pagamento do tributo. Ao lado dessa, a ordem jurídica prevê outros comportamentos, positivos ou negativos, consistentes em um fazer ou nãofazer, os quais não são um fim em si mesmos, mas que objetivam dar ao Fisco condições de conhecer e controlar a arrecadação dos tributos. Diante disso, encontramse, entre as relações jurídicas tributárias, as duas espécies: “[...] as de substância patrimonial e os vínculos que fazem irromper meros deveres administrativos. As primeiras, situadas no núcleo da norma que define o fenômeno da incidência – regramatriz – e as outras, circumpostas a ela, para tornar possível a operatividade da instituição tributária: são os deveres instrumentais ou formais”.422 Por força do Princípio da Estrita Legalidade Tributária, qualificado pelo cânone da Tipicidade Fechada, a conseqüência tributária, ou seja, a respectiva relação jurídica, somente nascerá caso ocorra o fenômeno denominado de subsunção. A doutrina é pacífica no afirmar que, para ser possível, juridicamente, que alguém esteja na posição de sujeito passivo em uma relação jurídica tributária, é imprescindível que haja a subsunção do fato ocorrido concretamente no mundo real à norma jurídica, especificamente com o critério material contido na hipótese de incidência – materialidade da norma. Sempre partindo de uma perspectiva de rigor científico, PAULO DE BARROS CARVALHO defendia que a subsunção, por ser operação lógica, só poderia operar-se entre iguais. Por tal razão, entendia não ser correto o enunciado de que “o fato subsumese à norma jurídica”. O correto então seria utilizarmos a expressão “subsunção do conceito do fato ao conceito da norma” para designarmos a fenomenologia da incidência da norma jurídica. Com efeito, somente ocorreria a subsunção quando o conceito do fato jurídico tributário fosse idêntico (tipicidade) ao conceito da hipótese tributária. Entretanto, esse autor reverteu tal posicionamento, passando a defender que a subsunção, “[...] como operação lógica que é, não se verifica simplesmente entre iguais, mas entre linguagens de níveis diferentes”, pelo que “[...] o certo é falarmos em subsunção do fato à norma, pois ambos configuram linguagens”.423 Ocorrendo o fato em concreto, instala-se, automática e infalivelmente, na expressão de ALFREDO AUGUSTO BECKER, o laço abstrato pelo qual o sujeito ativo 422 Curso..., op. cit., p. 287. 171 torna-se titular do direito subjetivo público de exigir a prestação, ao passo que o sujeito passivo ficará na contingência de cumpri-la.424 PAULO DE BARROS CARVALHO utiliza o esquema das proposições aritméticas para demonstrar que “[...] a hipótese tributária está para o fato jurídico tributário assim como a conseqüência tributária está para a relação jurídica tributária”, o que representa através da fórmula: Ht/Fjt = Ct/Rjt.425 Em relação ao mandamento da norma tributária, como já defendido nesse mesmo subitem, entende-se mais apropriado falar-se em critério objetivo, ao lado do critério subjetivo, do que somente em critério quantitativo, como defende PAULO DE BARROS CARVALHO, por expressar, além da base de cálculo e alíquota, outros elementos da norma necessários à configuração do objeto da relação jurídica tributária, a saber: o quando e o onde pagar. JUAN RAMALLO MASSANET também põe ênfase na necessidade de a lei prever o objeto da obrigação tributária: “Como es sabido, la ley no se limita a establecer los supuestos de hecho que, de darse en la realidad, generan las obligaciones tributarias. La ley debe también indicar, de un modo u otro, cuál sea el objeto de esta obligación...”.426 No mandamento, portanto, encontram-se os critérios subjetivo e objetivo. O primeiro trata dos sujeitos ativo e passivo da relação tributária, enquanto que o segundo prescreve não só a base de cálculo e alíquota, mas também o local e o prazo para a satisfação da prestação devida pelo sujeito passivo, delineando a própria conduta em sua compostura integral, como ensinam MARÇAL JUSTEN FILHO 427 e OCTÁVIO CAMPOS FISCHER428. 423 Idem. Ibidem, p. 246. 425 Ibidem, p. 247-248. 426 Hecho imponible..., op. cit., p. 11. 427 O imposto..., op. cit., p. 53. 428 A contribuição..., op. cit., p. 40. 424 172 3.4.2 Critério subjetivo O critério subjetivo do conseqüente normativo contém as indicações necessárias a que se possa identificar o sujeito ativo e o sujeito passivo da relação jurídica tributária. Antes de ocorrido o fato tributário, na análise tão-somente da regramatriz de incidência, já é possível reconhecer, com precisão e concretude, quem é o sujeito ativo da obrigação tributária, ou seja, aquele titular do direito subjetivo público de exigir o pagamento, pelo sujeito passivo, de uma determinada quantia a título de tributo. E isso ocorre porque a obrigação tributária é ex lege, ou seja, o Estado, a um só tempo, é criador da regra jurídica tributária e ocupante do pólo ativo da relação jurídica, que nasce pela ocorrência do fato que se identifica com aquela regra.429 A escolha do sujeito ativo é livre pelo titular da competência tributária, o qual pode atribuir a capacidade tributária ativa à própria pessoa política da qual emana a lei, quando então é desnecessária a menção, por implícita, ou, então, pode delegá-la, desde que expressamente, à pessoa diversa. Nessa segunda hipótese, o sujeito ativo, que tanto pode ser pessoa de Direito Público ou de Direito Privado, pode ser um mero agente arrecadador, ou então pode, cumulativamente, ficar para si com o produto da arrecadação, para a consecução de seus fins, com o que surge a figura da parafiscalidade. Se o sujeito ativo “in concretu” já é conhecido, tão-só pela análise da norma jurídica, a priori, o mesmo não ocorre com o sujeito passivo. O mandamento da norma tributária somente fornece critérios para sua futura e eventual identificação, o que só ocorrerá se e quando alguém praticar, no mundo fenomênico, um fato que se subsuma à situação fática descrita, abstratamente, na hipótese de incidência. O sujeito passivo, portanto, somente será conhecido após a ocorrência do fato tributário, a posteriori. Como resta claro, a distinção tem origem na circunstância de que o sujeito ativo é sempre o mesmo, enquanto o sujeito passivo pode ser qualquer pessoa que venha a praticar o fato jurídico. A seguir, analisar-se-á cada um deles. 429 Salvo as hipóteses de delegação da capacidade tributária ativa (parafiscalidade), quando outra pessoa pode ocupar o lugar do Estado na condição de sujeito ativo da obrigação tributária. 173 3.4.2.1 Sujeito ativo A distribuição de competências, inclusive a tributária, tem origem direta nas exigências ditadas pelos Princípios do Federalismo e da Autonomia Municipal. Os limites de cada competência devem ser encontrados dentro da própria Constituição. Na hipótese de surgirem conflitos, eles devem ser considerados juridicamente aparentes, pois a própria Lei Maior fornece os remédios jurídicos para afastá-los. O destinatário das regras constitucionais de distribuição de competências é sempre o legislador, sendo, por essa razão, classificadas essas normas como de estrutura, e definidas por PAULO DE BARROS CARVALHO como aquelas que estabelecem de que modo outras regras jurídicas devem ser criadas, transformadas ou expulsas do sistema jurídico. Para o que interessa ao presente estudo, são normas que prescrevem qual deve ser o aspecto formal e o aspecto material de outras normas. Não se tratam, portanto, de normas de comportamento, também designadas de conduta, pois essas se caracterizam por serem diretamente voltadas para a conduta das pessoas, em suas relações de intersubjetividade.430 Competência tributária é a aptidão para criar, “in abstracto”, tributos, conforme expressão utilizada por ROQUE ANTONIO CARRAZZA. 431 Em virtude do princípio da legalidade (artigo 150, I, da Constituição), os tributos são criados, in abstracto, sempre através de lei. A lei que cria o tributo deve descrever todos os elementos essenciais da norma jurídica tributária, como a hipótese de incidência do tributo, seus sujeitos ativo e passivo, sua base de cálculo, sua alíquota e, acrescentamos, o momento e o local do pagamento. Entende-se, entretanto, que a criação do tributo tem início já com a sua previsão constitucional, ultimando-se com a lei ordinária da respectiva pessoa política, na esteira do entendimento defendido, com acerto, por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, o que será melhor examinado adiante (item 4.1).432 O conceito de competência, portanto, refere-se à criação de tributos – tarefa legislativa – e não à sua cobrança – tarefa administrativa. Portanto, a competência está ligada ao Poder Legislativo, e trata da criação do tributo. A cobrança do tributo, ligada 430 Curso..., op. cit., p. 138-139. Curso..., op. cit., p. 437. 432 Teoria geral..., op. cit., p. 171-172. 431 174 ao Poder Executivo, ou quem lhe faça às vezes, é o exercício da capacidade tributária ativa, o que é diferente.433 A titularidade da competência para criar o tributo também abrange, em relação a ele, a faculdade de estabelecer majoração, redução, parcelamento, isenção, remissão – perdão de dívida tributária – e anistia das infrações tributárias. Quem a detém – a competência – pode, mediante decisão política legítima, até mesmo decidir pelo seu não exercício – não tributar – sendo, portanto, inconstitucionais as leis que estabeleçam essa obrigatoriedade para os entes políticos, como fez o artigo 11, caput, da Lei Complementar nº 101, de 04 maio 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal – em violação ao Princípio Federativo.434 O legislador, ao exercitar a competência tributária, encontra, nas normas constitucionais, em especial, as que revelam os princípios, os grandes limites jurídicos. A competência tributária, portanto, já nasce limitada. Somente possuem competência tributária as pessoas políticas, ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, posto que somente elas possuem Poder Legislativo com representação própria. Portanto, os entes políticos receberam um campo tributário próprio, exclusivo, da Constituição Federal. Por isso se diz que a Constituição é a Carta das Competências.435 ROQUE ANTONIO CARRAZZA aponta como características da competência tributária: (a) privatividade, pela qual a pessoa política tem aptidão para criar, querendo, um dado tributo e, simultaneamente, proíbe as demais pessoas de virem a instituir esse mesmo tributo; (b) indelegabilidade, pela qual a competência tributária, recebida da Constituição, não pode ser delegada a outra pessoa política nem ao Poder Executivo da mesma pessoa política, ainda que por meio de lei; (c) incaducabilidade, pois a competência tributária pode ser exercida sempre, ainda que não o tenha sido feito durante prolongado tempo; (d) inalterabilidade, atributo que impede as pessoas políticas de ampliar ou reduzir a dimensão de suas respectivas competências tributárias; e) irrenunciabilidade, pois as pessoas políticas não podem legislar decidindo definitivamente não mais tributar determinada materialidade de sua competência tributária; (f) facultatividade, pela qual as pessoas políticas, apesar de não poderem renunciar, nem delegar sua competência tributária, podem decidir se a exercem ou não. 433 434 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 437-439. “Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.” 175 Sujeito ativo, portanto, diz respeito não à competência, mas à capacidade tributária ativa, sendo aquela pessoa situada no pólo positivo da relação jurídica tributária, a quem é conferido o direito subjetivo à prestação tributária, devida pelo sujeito passivo. Na estrutura da regra-matriz tributária, o sujeito ativo está localizado no critério subjetivo do mandamento. Como já afirmado, no direito positivo pátrio, e na relação jurídica tributária, o sujeito ativo tanto pode ser uma pessoa jurídica pública ou privada. Incorreta, portanto, a disposição constante do artigo 119 do Código Tributário Nacional, onde se define sujeito ativo como a “[...] pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu cumprimento”, por confundir “competência tributária”, exercida pelo Poder Legislativo e indelegável, com “capacidade tributária ativa”, que pode ser exercida pelo Poder Executivo, mas, por ser aptidão delegável, como reconhece o próprio Código Tributário Nacional (artigo 7º), também pode ser exercida por pessoa jurídica de Direito Privado.436 Entre as pessoas jurídicas de direito público, estão as investidas de capacidade política – pessoas políticas de direito constitucional interno – e que possuem a competência legislativa tributária. Nada impede, como já se demonstrou antes, que a capacidade tributária de ser sujeito ativo possa ser delegada a pessoa jurídica privada, como as entidades paraestatais que exercem funções de interesse público. Com efeito, a redação do artigo 119 do Código Tributário Nacional não se sustenta quando prevê que sujeito ativo da obrigação é a “[...] pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu cumprimento”, já que restringe a posição de sujeito ativo às pessoas políticas internas, além de não considerar o instituto da parafiscalidade, que é a delegação da capacidade tributária ativa, pela pessoa política detentora da competência tributária, a outra pessoa, pública ou privada, que fica com o produto da arrecadação para a consecução de suas finalidades, como é o caso do INSS, do SESC, do SENAC etc.437 O sujeito ativo, pois, é da obrigação tributária, e sua identificação, portanto, deve ser buscada na relação jurídica em que nasce essa obrigação, e não na titularidade da competência para instituir o tributo. Como decorrência do Federalismo e da Autonomia Municipal, toda outorga de competências legislativas envolve, a um só tempo, uma autorização e uma limitação. A autorização existe em relação à matéria atribuída a determinado ente político, e a 435 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 439-444. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso..., op. cit., p. 296-297. 437 Ibidem, p. 297-298. 436 176 limitação diz respeito aos lindes territoriais em que essa competência pode ser exercida. É dizer, o titular da competência só tem aptidão constitucional para legislar sobre as matérias que recebeu diretamente da Constituição, assim como está jungido a destinar suas leis para os fatos ocorridos exclusivamente dentro dos limites de seu território, salvo os casos constitucionalmente admitidos de extraterritorialidade. No âmbito tributário não é diferente, e com exceção das hipóteses em que haja delegação da capacidade tributária ativa – parafiscalidade – o sujeito ativo da relação jurídica tributária será a pessoa política em cujo território se consumou o fato tributário. 3.4.2.2 Sujeito passivo Sujeito passivo é a parte devedora na relação jurídica tributária, ou seja, é a pessoa que tem de cumprir, para o credor ou sujeito ativo, a prestação pecuniária que é o objeto da obrigação tributária. Se a prestação for de natureza não patrimonial, o sujeito passivo está submetido ao cumprimento dos chamados deveres instrumentais, que são denominados pelo Código Tributário Nacional, impropriamente, de “obrigações acessórias”. Não há controvérsias quanto à necessidade de o sujeito passivo da obrigação tributária ser definido em lei, formal e materialmente, o que já se extrai da própria Constituição. O artigo 97, III, do Código Tributário Nacional, em preceito didático, dispõe que “Somente a lei pode estabelecer [...] a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, [...] e do seu sujeito passivo”. Quanto ao sujeito passivo das chamadas obrigações acessórias, há entendimento jurisprudencial segundo o qual é possível a fixação por meio de ato normativo infralegal, diante de uma interpretação conjunta do § 2º do artigo 113 do Código Tributário Nacional, o qual prevê que a obrigação acessória é decorrente da “legislação tributária”; com o artigo 96 do mesmo diploma, onde está disposto que a expressão “[...] legislação tributária compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”.438 Com a devida vênia, 438 TRIBUTÁRIO – DECLARAÇÃO DE INFORMAÇÕES SOBRE ATIVIDADES IMOBILIÁRIAS – DIMOB – OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA – INSTITUIÇÃO POR MEIO DE INSTRUÇÃO NORMATIVA – POSSIBILIDADE – QUEBRA DO SIGILO DE TERCEIROS – INOCORRÊNCIA – IN Nº 304-SRF – Nos termos do artigo 113, § 2º, do CTN, a obrigação acessória decorre da legislação tributária. Neste conceito estão compreendidas as instruções normativas expedidas por autoridade administrativa competente, razão pela qual não há qualquer ilegalidade na instituição da Dimob por meio da Instrução Normativa nº 304-SRF. [...]. (TRF 5ª R. – AGTR 48945 – 177 entende-se que o Princípio da Legalidade Genérico insculpido no artigo 5º, II, da Constituição Federal, veda tal possibilidade. A norma infralegal pode somente regulamentar o dever instrumental que já se encontra previsto na lei, mas que ainda requer redução no seu grau de abstração. Os elementos hábeis para a determinação do sujeito passivo encontram-se no critério subjetivo do conseqüente da regra-matriz de incidência tributária. PAULO DE BARROS CARVALHO, em definição ampla em toda e qualquer relação jurídica tributária, afirma que sujeito passivo “[...] é a pessoa – sujeito de direitos – física ou jurídica, privada ou pública, de quem se exige o cumprimento da prestação: pecuniária, nos nexos obrigacionais; e insuscetível de avaliação patrimonial, nas relações que veiculam meros deveres instrumentais ou formais”. Verifica-se que esta definição abrange tanto o sujeito passivo da obrigação tributária “principal”, como o da obrigação tributária “acessória”, como dispõe a imprópria classificação adotada pelo artigo 113 do Código Tributário Nacional.439 É irretocável a definição dada por esse autor à figura do sujeito passivo. Entretanto, a sua formulação analisa o tema somente do ponto de vista da pessoa que praticou um fato tributário e que, por conseqüência, está na posição de devedor do Fisco de uma determinada quantia a título de tributo, ou, no caso dos deveres instrumentais, da pessoa que deve cumprir uma prestação positiva ou negativa, de caráter não pecuniário, também em benefício do Fisco. Nesse estágio, a lei tributante, obviamente, já foi criada, tendo ou não respeitado os desígnios constitucionais. Ou seja, aquele de quem está sendo exigido o cumprimento da prestação pode estar nessa posição na forma prevista na Constituição, assim como é possível que a respectiva lei tenha sido editada em desrespeito aos ditames constitucionais e, até que seja assim declarada pelo Poder Judiciário, continuará obrigando aquele que está indevidamente na condição de sujeito passivo. Com esse raciocínio, o que se quer dizer é que é possível estudar “o que é” o sujeito passivo, assim como também se pode investigar “quem pode ser” o sujeito passivo, o que inegavelmente se revela de maior relevância no âmbito desse estudo. No primeiro caso, a resposta, mais simples, é dada pela Teoria Geral do Direito, onde é mais comum encontrar a expressão equivalente “devedor”, pois é certo que o conceito (2003.05.00.010056-3) – RN – 1ª T. – Rel. Des. Fed. Francisco Wildo Lacerda Dantas – DJU 17.02.2004 – p. 492/493) – Disponível em <http://www.trf5.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 439 Curso..., op. cit., p. 300. 178 de devedor no Direito Tributário é o mesmo do conceito de devedor em qualquer outra relação jurídica, seja comercial, civil, trabalhista etc. Já na segunda hipótese, a resposta somente virá da análise sistemática do que dispõe a Constituição Federal, uma vez que a regra-matriz de todos os tributos, como já se afirmou, já está prevista em seu texto, ou melhor, contexto. Com efeito, também na Constituição poderão ser obtidas as definições de quem pode vir a ser legitimamente colhido como sujeito passivo pela lei criadora em cada um dos tributos previstos. Em princípio, pode-se afirmar que somente poderá ser atribuída a condição de sujeito passivo de relação jurídica tributaria a pessoa que figura no contexto constitucional como o destinatário da carga tributária. É nesse sentido o ensinamento de HECTOR VILLEGAS, para quem o sujeito passivo somente pode ser o destinatário legal tributário, em construção que se tornou clássica sobre o tema.440 Em razão de o regime jurídico tributário, no ordenamento jurídico pátrio, ter sua estrutura principal na Constituição, a expressão de VILLEGAS recebeu feliz alteração pela pena de MARÇAL JUSTEN FILHO, para quem o sujeito passivo, no Brasil, somente pode ser o destinatário constitucional tributário, advertência que não encontra opositores na doutrina e na jurisprudência.441 O autor esclarece que a expressão “destinatário legal tributário”, construída por VILLEGAS, deve-se ao entendimento de que ao “contribuinte”, por ser aquela pessoa que se encontra em relação com o fato signo-presuntivo de riqueza descrito na hipótese de incidência, é que se “destina” a condição de sujeito passivo tributário, pois “[...] a construção da materialidade da hipótese de incidência condiciona a escolha de sujeito passivo...”.442 RENATO LOPES BECHO também defende que os dados para identificar cientificamente o sujeito passivo são obtidos a partir da própria Constituição Federal. Em alguns casos, afirma o autor, o sujeito passivo já está mesmo delimitado claramente na Carta Constitucional, como ocorre em relação aos impostos sobre a propriedade, como o IPTU e o IPVA.443 Para o autor, em um ou em outro caso, é possível descobrir 440 Destinatário legal tributário – contribuintes e sujeitos passivos na obrigação tributária. Revista de Direito Público, n. 30, p. 241-242. 441 Sujeição..., op. cit., p. 262. 442 Idem. 443 Sujeição passiva e responsabilidade tributária, p. 77 179 na própria Lei Maior quem é o sujeito passivo constitucional.444 No mesmo sentido caminham GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO: Em princípio, só pode ser posta, como sujeito passivo das relações obrigacionais tributárias, a pessoa que – explícita ou implicitamente – é referida pelo Texto Constitucional como ‘destinatário da carga tributária’. [...] Será sujeito passivo, no sistema tributário brasileiro, a pessoa que provoca, desencadeia ou produz a materialidade da hipótese de incidência de um tributo como inferida na Constituição: ou ‘quem tenha relação pessoal e direta’ – como diz o artigo 121, parágrafo único, inciso I do CTN – com essa materialidade. [...] A própria Constituição designa os destinatários dos encargos tributários. A lei só pode substituí-los ou atribuir responsabilidade a outrem, se assegurar que o encargo, finalmente, seja da pessoa constitucionalmente pressuposta.445 O critério escolhido pela Constituição para a eleição das materialidades constantes na hipótese de incidência dos impostos é o Princípio da Capacidade Contributiva, tomado na acepção objetiva, encampado no § 1º do artigo 145 como um dos “Princípios Gerais” na Constituição de 1988, conforme demonstra o título da Seção I, do capítulo destinado ao Sistema Tributário Nacional. Por esse princípio, “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte...”. Dessume-se de seu teor que, no momento da efetiva criação do tributo, o legislador deverá construir a hipótese de incidência de forma a captar a melhor manifestação da capacidade contributiva que subjaz à materialidade constitucional. O fato escolhido como hipótese de incidência deve revelar a capacidade contributiva do próprio contribuinte, e não de um terceiro. Amparados em RUBENS GOMES DE SOUSA, GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO lembram que “[...] a pessoa que deve ter seu patrimônio diminuído em razão do acontecimento desse fato há de ser a que o provoca ou causa e que dele extrai proveito ou vantagem”, o que anula qualquer parcela de discricionariedade ao legislador.446 Entender em sentido contrário, além de ofender flagrantemente o princípio da capacidade contributiva, implica também defender que a Constituição é norma desprovida de conteúdo vinculante, sem possibilidade de obrigar o legislador, o que se revela inadmissível e despropositado absurdo jurídico. O sujeito passivo, portanto, já está na regra-matriz do tributo, conforme seu desenho constitucional, restando ao legislador somente a tarefa de declará-lo. Aqui não é necessário complementação da Constituição, muito menos é possível inovação jurídica. 444 445 Ibidem, 85-86. Substituição e responsabilidade tributária. Revista de Direito Tributário, n. 49, p. 73. 180 Conclui-se, portanto, que “[...] há exigência constitucional implícita, no sentido de que um imposto somente pode ser exigido daquela pessoa cuja capacidade contributiva seja revelada pelo acontecimento do fato imponível ou, nos casos de tributos vinculados, somente daquela pessoa a que a atuação estatal se refira de alguma maneira”.447 Diante do exposto, exsurge o problema da constitucionalidade do responsável tributário, sujeito passivo eleito pela lei que não é a pessoa que praticou o fato tributário exteriorizador da capacidade contributiva, mas que mantém vínculo indireto com o aludido fato, conforme deflui do artigo 121, § único, I, do Código Tributário Nacional. Em excelente estudo, J. A. LIMA GONÇALVES, amparado nas lições de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO sobre o Princípio da Igualdade, ensina o seguinte448: Destarte, a lei ordinária, desde que garanta a eficácia dos princípios constitucionais, pode eleger outra pessoa que não a indicada, implícita ou explicitamente, pela Constituição, para figurar no pólo passivo da relação jurídica tributária, aparecendo o fenômeno da substituição. O meio para assegurar o respeito à Constituição é a utilização de mecanismos legais que possibilitem garantir que o eleito para substituir o destinatário tributário por excelência possa não sofrer qualquer prejuízo em seu patrimônio (econômico ou jurídico).449 Na substituição tributária, mecanismo largamente utilizado para facilitar e agilizar a arrecadação tributária, o ônus econômico do tributo é suportado pelo chamado substituído tributário, mas quem, entretanto, figura na relação jurídica tributária como sujeito passivo é o substituto tributário; é dele somente o ônus jurídico do tributo. O substituto, portanto, é devedor de tributo que originalmente não lhe é próprio, ou, de outra forma, devedor de tributo cuja manifestação de capacidade contributiva pertence ao substituído, e não a si mesmo. A substituição tributária não é, em si mesma, inconstitucional, desde que observe os princípios constitucionais aplicáveis in casu. Preliminarmente, ressalte-se que o regime jurídico a ser aplicado em casos de substituição tributária obrigatoriamente deverá ser o do substituído, e não o regime do substituto. Isso é lógico quando lembramos que o substituto, por estar na condição de devedor de tributo alheio, deverá pagar exatamente o que deveria o substituído caso a 446 Ibidem, p. 74. Ibidem, p. 75. 448 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 2002. 449 GONÇALVES, J. A. Lima. Princípios informadores do “critério pessoal da regra-matriz de incidência tributária”. Revista de Direito Tributário, n. 23/24, p. 262. 447 181 relação de substituição não houvesse sido adotada pela lei, ou seja, o tributo é calculado nas condições pessoais do substituído. Assim, por exemplo, se o substituído tem direitos como imunidade, isenção, desconto, remissão, anistia etc., o substituto exercitará tais direitos na mesma medida.450 É imprescindível também que o nascimento da relação jurídica tributária na qual figura o substituto como sujeito passivo deverá ser regulada pela lei vigente à data da ocorrência dos fatos praticados pelo substituído, e não a lei da data em que se deflagra a substituição. Nesse sentido é, inclusive, a inteligência do artigo 144 do Código Tributário Nacional.451 Por fim, a norma que dispõe sobre a relação de substituição deve criar mecanismos que possibilitem o imediato ressarcimento do substituto, sob pena da substituição ser inconstitucional por violação, em especial, do Princípio da Isonomia e de seu corolário, a Capacidade Contributiva.452 Em preceito de proveitoso cunho didático, o artigo 128 do Código Tributário Nacional prestigia a Constituição Federal, dispondo que “[...] a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa”, mas desde que “vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação...”. O Professor ALCIDES JORGE COSTA, argumentando a respeito, assinala: “O princípio da capacidade contributiva não é incompatível com a atribuição, a terceiro, da responsabilidade pelo recolhimento do imposto, desde que este terceiro participe do fato gerador. É o que exige o artigo 128 do CTN”.453 A aptidão para ser sujeito passivo de obrigação tributária é denominada de capacidade tributária passiva. Há uma questão levantada, em razão da redação do artigo 126 do Código Tributário Nacional, que diz respeito à possibilidade de quem não possui personalidade jurídica, de acordo com as regras de direito civil, vir a ser o sujeito passivo, o que parece ter sido a intenção do legislador desse código quando prevê que a capacidade tributária passiva independe: I)“da capacidade civil das pessoas naturais”; II) “de achar-se a pessoa natural sujeita a medidas que importem privação ou limitação do exercício de atividades civis, comerciais ou profissionais, ou da administração direta de seus bens ou negócios”, e III) “de estar a pessoa jurídica 450 ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino. Substituição..., op. cit., p. 75. “Artigo 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”. 452 ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino, Substituição..., op. cit., p. 76. 453 Capacidade Contributiva. Revista de Direito Tributário, n. 55, p. 302. 451 182 regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional”. PAULO DE BARROS CARVALHO adverte, entretanto, que não se pode confundir capacidade para realizar o fato jurídico tributário, com capacidade para ocupar o pólo passivo de uma obrigação tributária, situações completamente diferentes, e que parecem ter sido reunidas como uma coisa só no artigo 126, acima transcrito. É certo que o legislador tributário, conforme a dicção do artigo 109 do Código Tributário Nacional, pode desconsiderar os institutos, conceitos e formas sobre fatos, bens ou pessoas, prescritas pelo direito privado, porém, essa faculdade é única e exclusivamente para lhes atribuir efeitos tributários. Outra coisa, totalmente diversa, seria dizer que o legislador tributário tem o poder de modificar as regras de direito civil, para dizer quem tem aptidão para integrar a relação jurídico-tributária. Caso isso seja possível, “[...] a pretensão tributária estará inibida, em função da inaplicabilidade de cadeias de dispositivos de direito processual, que dão significado e conteúdo de coatividade às aspirações fazendárias”. A razão desse entendimento está no fato de que a obrigação tributária é espécie de relação jurídica como qualquer outra, e, portanto, tem suas raízes na Teoria Geral do Direito.454 Vejamos, como exemplo, a sociedade cujos atos constitutivos ainda não foram averbados no registro competente. Nesses casos, devido à inexistência de personalidade jurídica, as eventuais dívidas tributárias deverão ser exigidas diretamente dos sócios que estavam à frente da gestão da sociedade, os quais figuram, portanto, como sujeitos passivos na condição de terceiros responsáveis. Conforme se depreende do artigo 128 do Código Tributário Nacional, a condição de responsável pela obrigação tributária somente poderá ser atribuída a um terceiro vinculado ao fato jurídico tributário, que pode ser qualquer pessoa, desde que não tenha relação pessoal e direta com esse mesmo fato, pois será chamado de contribuinte, conforme classificação do artigo 121, I e II, do mesmo diploma. A Constituição não dispõe expressamente sobre quem deva ser o sujeito passivo, somente se referindo a um evento ou a um bem, deixando a cargo do legislador ordinário, quando da construção da regra-matriz de incidência, definir quem será o devedor da prestação tributária, desde que, é lógico, obedeça aos desígnios constitucionais. De forma especial, a escolha do sujeito passivo deverá recair na pessoa 454 Curso..., op. cit., p. 305-313. 183 que implicitamente consta como realizadora das atividades inerentes às materialidades constantes dos dispositivos que outorgam as competências tributárias. Se o devedor participar diretamente do evento, será o sujeito passivo chamado de contribuinte. No entanto, se o legislador escolher outra pessoa, ligada ao fato jurídico tributário de forma indireta, e incluí-la na relação jurídica para responder pela dívida, essa pessoa será o autêntico sujeito passivo chamado de responsável. Mas é preciso alertar que, se a lei, originalmente, excluir o participante direto (o contribuinte), e eleger o terceiro como sujeito passivo, não há que se falar em responsável e “[...] impõe-se o abandono do nome de contribuinte para o ser excluído, uma vez que tudo isso se passou no momento pré-legislativo, inteiramente fora do território especulativo do Direito”.455 Quando o sujeito passivo escolhido é uma pessoa alheia ao fato tributado, a relação jurídica respectiva tem a natureza de sanção administrativa, como são exemplos as hipóteses de responsabilidade por sucessão previstas nos artigos 130 a 133 do Código Tributário Nacional, mas em especial na Seção III (Responsabilidade de Terceiros), onde no artigo 134, “[...] sob o manto jurídico da solidariedade, esconde-se a providência sancionatória, de maneira nítida e insofismável”.456 A expressão “[...] nos atos em que intervierem ou pelas omissões de forem responsáveis”, constante do precitado artigo 134, “(…) revela a existência de um indisfarçável ilícito e do ‘animus puniendi’ que inspirou o legislador”, ensina PAULO DE BARROS CARVALHO, acrescentando que, “Para evitar o comprometimento, as pessoas arroladas hão de intervir com zelo e não praticar omissões: tal é o dever que lhes compete. A inobservância acarreta a punição”. No parágrafo único do artigo 134, a assertiva do autor confirma-se, quando prescreve que, em relação às penalidades, a responsabilidade é somente quanto às de caráter moratório, que têm feição de sanção civil, posto que caso se estendesse às multas administrativas, “[...] haveria sobreposição de penalidades...”.457 3.4.3 Critério objetivo Após o estudo do critério subjetivo, envolvendo os sujeitos ativo e passivo, o conseqüente normativo exige ainda algumas considerações, ainda que breves, sobre o 455 Ibidem, p. 319. Idem. 457 Idem. 456 184 critério objetivo que, como a própria expressão denuncia, trata dos dados obtidos no mandamento da norma tributária que permitem identificar qual é o objeto da relação jurídica tributária. A obrigação tributária classifica-se como sendo de “dar”, pois a prestação tributária consubstancia-se na entrega, ao sujeito ativo, de uma quantia em dinheiro a título de tributo. 3.4.3.1 Base de cálculo A doutrina está de acordo quanto à importância da base de cálculo na estruturação do tributo, ainda que os que mais se debruçaram sobre o tema hajam discordado quanto à sua localização dentro da norma jurídica tributária. Foi devido a importância da base de cálculo, dentro da regra-matriz de incidência tributária, que ALFREDO AUGUSTO BECKER acabou por extremar a valorização dessa categoria jurídica, relegando a segundo plano os dados descritores da hipótese de incidência. Para o autor, a base de cálculo seria o núcleo da hipótese de incidência, conferindo o gênero jurídico ao tributo, e todos os demais elementos seriam adjetivos, e confeririam a espécie àquele gênero.458 O mesmo entendimento tem ANNA EMILIA CORDELLI ALVES, para quem, nas regras jurídicas de tributação, “[...] o núcleo da hipótese de incidência é sempre a base de cálculo”.459 Outro autor que defendeu a localização da base de cálculo na hipótese de incidência foi GERALDO ATALIBA, que preferia denominar de “base imponível”. É que para esse autor, “[...] a base imponível é uma perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência, que a lei qualifica, com a finalidade de fixar critério para a determinação, em cada obrigação tributária concreta, do quantum debetur”.460 Entende-se que o correto, como será demonstrado adiante, é situar a base de cálculo na conseqüência da norma tributária, pois é dado imprescindível à identificação da relação jurídica, que nascerá com o eventual acontecimento do fato tributário. Da verificação de ser a base de cálculo a medida econômica da hipótese de incidência, não decorre, necessariamente, que ela a integre. Apesar disso, ATALIBA afirma, corretamente, que a base de cálculo é, por exigência constitucional, atributo essencial, não podendo deixar de existir em nenhum caso. 458 459 Teoria..., op. cit., p. 339. A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 176. 185 Analisando o raciocínio desse autor, AIRES BARRETO entende controversa a afirmação de ser a base de cálculo uma perspectiva dimensível da hipótese de incidência, pois se a hipótese de incidência é a descrição abstrata de um fato suscetível de tributação, dizer que a base de cálculo é a perspectiva mensurável da hipótese significa afirmar ser aquela aparência o aspecto dimensível do abstrato, pelo que melhor seria conceituar a base de cálculo como o padrão, critério ou referência para medir um fato tributário. Conclui o autor ainda que “[...] sendo a hipótese de incidência tributária a descrição hipotética de um fato, a base de cálculo, como atributo seu, só poderá ter, igualmente, caráter normativo, tão hipotético quanto a própria hipótese de incidência em que se contém. Se o todo é hipotético, igual natureza terão os atributos respectivos”.461 Com exceção da parte em que esse autor, concordando com ATALIBA, insere a base de cálculo na hipótese de incidência, não há como discordar de sua posição, no que tange a ser a base de cálculo uma medida do fato tributário, e não da hipótese de incidência. A base de cálculo e a alíquota são os dados, obtidos pelo intérprete a partir dos textos legais, necessários a que se precise com segurança o quantum devido a título de tributo, os quais não têm sentido isolados um do outro. Dizendo de outra forma, base de cálculo é o elemento que, previsto em lei, quantifica, em conjunto com a alíquota, o valor da dívida tributária, através da mensuração do critério material da hipótese de incidência. O critério material, por sua vez, é identificado através da sua confirmação ou afirmação pela base de cálculo. Caso infirmado o critério material, o tributo é inconstitucional por falta de coerência interna na respectiva norma instituidora, pois é de rigor uma necessária correlação lógica entre hipótese de incidência e base de cálculo. Esse é o entendimento de PAULO DE BARROS CARVALHO 462 e ROQUE ANTONIO CARRAZZA463. De fato, como confirma MARÇAL JUSTEN FILHO, “[...] a escolha de uma determinada situação para integrar a materialidade da hipótese condiciona a eleição da base imponível”.464 Esse também é o pensamento de PAULO DE BARROS CARVALHO: “[...] a base de cálculo é a grandeza instituída na conseqüência da regra-matriz tributária, e 460 Hipótese..., op. cit., p. 108. Base de cálculo..., op. cit., p. 50-51. 462 Curso..., op. cit., p. 327-328. 463 Curso..., op. cit., p. 449-450. 464 ISS no tempo..., op. cit., p. 55. 461 186 que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária”.465 Acrescenta, ainda, que, paralelamente, a base de cálculo tem a virtude de confirmar, infirmar ou afirmar o critério material constante da hipótese tributária. O autor vê, especificamente, três funções para a base de cálculo: (a) medir as proporções reais do fato (função mensuradora): após o legislador descrever o fato que constituirá a hipótese tributária, deverá dispor sobre a fórmula numérica de estipulação do conteúdo econômico do dever jurídico a ser cumprido pelo sujeito passivo. Para tanto, deverá escolher, dentre os múltiplos atributos valorativos do fato, aquele ou aqueles que sejam idôneos para avaliar a grandeza efetiva do evento – exemplos: valor da operação, valor venal, valor presumido, peso, comprimento etc. – não podendo eleger qualidades que não lhe sejam inerentes; (b) compor a específica determinação da dívida (função objetiva): após a escolha de uma perspectiva dimensível, a essa deve ser indicado o fator que se lhe unirá, para o surgimento do quantum devido pelo sujeito passivo (função projectiva).466 É a função objetiva da base – compor a específica determinação da dívida tributária – pelo que, nessa função, não se lhe deve atribuir maior importância do que à alíquota, não representando mais que números justapostos que se preparam para um processo de cálculo matemático; (c) confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da hipótese tributária (função comparativa): diante das indevidas expressões, muitas vezes utilizadas pelo legislador, para construir a regra de incidência, descobriu a doutrina, na base de cálculo, um critério seguro para identificar o verdadeiro critério material da hipótese, com o que se pode confirmar, infirmar ou afirmar o enunciado da lei. É que a grandeza eleita pelo legislador, para servir de base de cálculo, deve, obrigatoriamente, ser uma característica peculiar ao fato tributário.467 Com efeito, se houver perfeita sintonia entre o padrão de medida e o núcleo do fato dimensionado, temos a função confirmar. Quando esses forem incompatíveis, temos a função infirmar. E por fim, caso a formulação legal seja obscura, temos a função afirmar, com o que prevalecerá, como critério material da hipótese, a ação-tipo 465 Curso..., op. cit., p. 327. Conforme esclarece PAULO DE BARROS CARVALHO, a expressão “função projectiva” é oriunda de autores espanhóis, “[...] porque se projeta para a frente, demarcando o conteúdo do objeto da relação obrigacional. Contrapõe-se, por esse prisma, à função retrospectiva, em que o aplicador da lei, olhando para trás, isto é, para o fato que já ocorreu, trata de medi-lo” – Curso..., op. cit., p. 330. 467 Ibidem, p. 327-332. 466 187 que está sendo avaliada. Portanto, havendo desencontro entre os termos do binômio – hipótese de incidência e base de cálculo – deverá prevalecer a base de cálculo. JOSÉ ROBERTO VIEIRA, na mesma esteira, assinala as funções da base de cálculo: determinar, com a alíquota, a dívida tributária (objetiva); dimensionar o fato tributário (mensuradora); e afirmar, confirmar ou infirmar o critério material da hipótese tributária (comparativa), compondo, esta última, o binômio identificador do tributo, junto com a hipótese tributária, do que resulta a sua imprescindibilidade constitucional.468 Analogamente à distinção conceitual entre hipótese de incidência e fato jurídico tributário, pode-se, de forma lógica, distinguir o que seja a base de cálculo normativa da base de cálculo fáctica. Em primeiro lugar, base de cálculo normativa (in abstrato) será a previsão hipotética da base de cálculo, é dizer, a grandeza escolhida pelo legislador para a mensuração da materialidade da hipótese de incidência. Não define, portanto, a base de cálculo normativa, valores líquidos, certos e individualizados, em relação a cada contribuinte, pela razão óbvia de que, nesse estágio, ainda não ocorreu nenhum fato tributário que possa ser mensurado “in concreto”. O que há são coordenadas, diretrizes, informações, fornecidas pelo mandamento da norma tributária, e que permitem, quando aplicadas a um caso específico, ocorrido no mundo fenomênico, obter a exata quantificação de um fato tributário já ocorrido. Por sua vez, essa última quantificação é denominada base de cálculo fática (in concreto).469 ALBERTO XAVIER foi um dos primeiros autores, no Brasil, a tratar de forma distinta as duas entidades, utilizando as expressões “definição” da base de cálculo, para referir-se à base de cálculo normativa, ou seja, é o legislador quem define o conceito de base de cálculo, e “determinação” da base de cálculo, para tratar da base de cálculo fática, posto ser por ato da administração que se determina o seu conteúdo.470 AIRES BARRETO, no mesmo sentido, também distingue a base de cálculo, situada no plano normativo (abstrato), da base calculada, existente no plano fático 468 A regra-matriz..., op. cit., p. 114-115. JUAN RAMALLO MASSANET, amparado em SÁINZ DE BUJANDA, afirma: “[...] normas que definen el hecho imponible y normas que definen las bases imponibles y para las que, en lógica consecuencia, reserva el nombre de bases imponibles normativas frente a las bases imponibles fácticas que non son más que el resultado cuantitativo a que se llega para un contribuyente concreto” - Hecho imponible..., op. cit., p. 23. 470 Imposto predial e territorial urbano: determinação da base de cálculo. Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 87. 469 188 (concreto). A grande distinção entre ambas está em que só a primeira está sob a “reserva absoluta” de lei formal, pois a segunda é apurável somente depois da criação da lei, por ocasião do ato administrativo do lançamento. A modificação da base de cálculo, conforme dispõe o artigo 97, § 1º, do Código Tributário Nacional, equipara-se à majoração de tributo, o que exige a observância do Princípio da Legalidade. Tal modificação, em um tributo, implica na alteração do conceito normativo da base de cálculo – se a lei, por exemplo, ao definir a base de cálculo do ISS, indicar que é o “preço do serviço”, no sentido de receita líquida a que este corresponde, somente a lei poderá alterar esse conceito para estabelecer que, preço, a partir de então, será a receita bruta.471 Por outro lado, a atualização do valor monetário da “base de cálculo” não indica majoração do tributo, conforme estabelece o § 2º do mesmo artigo 97, porque, na verdade, o que se atualiza monetariamente é a base calculada, tarefa que cabe ao Executivo.472 Secundando esses autores, PAULO DE BARROS CARVALHO posiciona-se no mesmo sentido, ao entender que, de maneira equivalente à distinção entre “hipótese de incidência” e “fato jurídico tributário”, no sentido de divisar o estudo do fato como “fórmula abstrata” e como “ocorrência efetiva no mundo físico”, está a distinção entre a “base de cálculo normativa”, também chamada de base de cálculo in abstracto, que nada mais é do que a descrição legislativa da grandeza eleita pelo legislador para dimensionar o fato tributário, e a “base de cálculo fáctica”, que surge “[...] com a norma individual do ato administrativo do lançamento (em) que o agente público, aplicando a lei ao caso concreto, individualiza o valor, chegando a uma quantia líquida e certa...”(esclarecemos, nos parênteses).473 O raciocínio também foi utilizado por ROQUE ANTONIO CARRAZZA, para distinguir a base de cálculo in abstracto, que é a descrição normativa da base de cálculo, e que, em razão do Princípio da Estrita Legalidade Tributária ou da Tipicidade Fechada, é matéria de competência privativa do Poder Legislativo, da base de cálculo in concreto, que se constitui na real apuração do valor indicado na base de cálculo in abstracto, sendo matéria de competência privativa do Poder Executivo, ou seja, o Fisco, quando lança o tributo, determina sua base de cálculo in concreto.474 471 ISS..., op. cit., p. 15-16. Base de cálculo..., op. cit., p. 127. 473 Curso..., op. cit., p. 332-333. 474 Curso..., op. cit., p. 449. 472 189 Concorda-se com PAULO DE BARROS CARVALHO, quando discorda do pensamento de GERALDO ATALIBA, pelo qual este autor não aceita a expressão base de cálculo, por defender a existência de tributos cuja determinação do quantum a pagar independe de cálculo, como os tributos fixos, onde a base existente, por essa razão, não seria de cálculo. Primeiro, porque tributo sem base de cálculo é inconstitucional, dentre outras razões, por não permitir verificar o respeito à capacidade contributiva. Em segundo, porque a falta do binômio hipótese de incidência/base de cálculo impediria divisar qual é a natureza jurídica específica do tributo. Em terceiro, porque, se os tributos fixos prescindem de cálculo, por certo aí também não haverá qualquer base.475 3.4.3.2 Alíquota Não basta, para a fixação do quantum debetur, já dizia GERALDO ATALIBA, a indicação legal da “base imponível”: “Só a base imponível não é suficiente para a determinação ‘in concretu’ do vulto do débito tributário, resultante de cada obrigação tributária. A lei deve estabelecer outro critério quantitativo que – combinado com a base imponível – permita a fixação do débito tributário, decorrente de cada fato imponível”.476 Esse autor conceitua a alíquota como o termo que se consubstancia na fixação de um critério indicativo de uma parte, fração – sob a forma de percentual, ou outra – da base imponível.477 Da mesma forma como distinguiu a base de cálculo da base calculada, AIRES BARRETO divisa os conceitos de alíquota “in abstrato” (plano normativo) e o de alíquota “in concretu” (plano de aplicação da lei): A alíquota in abstrato serve como indicador da proporção a ser tomada da base de cálculo e, enquanto não ocorrer o fato a ser mensurado, não se presta à obtenção do quantum devido a título de tributo. Exemplo: 5% do preço do serviço, 10% do valor da operação etc. A alíquota in concretu é o fator que, conjugado à base calculada, presta-se à obtenção do objeto da prestação tributária, já atuando, nessa fase, como um dos termos da multiplicação, cujo produto é, concretamente, o quantum debetur.478 475 Curso..., op. cit., p. 334. Hipótese..., op. cit., p. 115. 477 Na visão estrutural da norma tributária de ATALIBA, em decorrência de sua sobrevalorização da hipótese de incidência, a alíquota era o único elemento que restou para o mandamento da norma tributária. 478 Base de cálculo..., op. cit., p. 58-59. 476 190 A alíquota não é critério que permita encontrar a natureza jurídica de um tributo, sendo somente o elemento que, conjugado à base de cálculo, permite descobrir o quantum de tributo a pagar. “Etimologicamente, alíquota, vocábulo latino da primeira declinação, quer dizer parte, a parcela que se contém no todo um número exato de vezes”, possível razão pela qual a doutrina insiste em tê-la como quota, fração ou parte da base de cálculo. Apesar disso estar certo em grande parte dos casos, não é a regra geral, pois nada impede que, além da forma de percentagem, seja expressa em valores monetários. Ou seja, tanto a base de cálculo, como a alíquota, podem assumir caráter pecuniário, mas, se a base não for uma importância em dinheiro, a alíquota necessariamente o será.479 As alíquotas, conforme PAULO DE BARROS CARVALHO, podem expressar-se de duas formas: a) um valor monetário fixo, ou variável em função de escalas progressivas da base de cálculo; ou b) uma fração, percentual ou não, da base de cálculo, que nesse caso será representada por quantia monetária. Aparecendo em forma de fração (b), a alíquota pode ser proporcional invariável, por exemplo: 1/25 da base de cálculo, seja qual for seu valor monetário; proporcional progressiva – aumentando a base de cálculo, aumenta a proporção – ou proporcional regressiva – aumentando a base, diminui a proporção. Com efeito, é através dessas formas de alíquotas que o legislador busca a aplicação do Princípio da Igualdade Tributária e, quando a limita em certos níveis, tenta evitar que o tributo assuma feições confiscatórias. A alíquota é, também, instrumento de política extrafiscal. 480 ROQUE ANTONIO CARRAZZA também afirma não poder a alíquota imprimir ao tributo um caráter confiscatório, conforme inteligência do artigo 150, IV, da Constituição, violando assim o direito de propriedade (artigos 5º, XXII, e 170, II, da Constituição). É, ainda, o dado que permite a observância do Princípio da Capacidade Contributiva, previsto no § 1º do artigo 145 da Carta Constitucional, pelo qual “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]”, ou seja, contribuintes que manifestem distintas capacidades contributivas deverão sujeitar-se a alíquotas proporcionalmente diferentes, ou seja, a alíquota deverá ser progressiva à medida que a capacidade contributiva, concretizada na base de cálculo, aumente.481 479 Curso..., op. cit., p. 337-339. Ibidem, p. 339-340. 481 Curso..., op. cit., p. 449. 480 191 A alíquota, in abstrato, faz parte da estrutura da norma jurídica tributária, estando localizada no conseqüente tributário, juntamente com a base de cálculo, o local e o momento de pagamento. Diante disso, conclui-se não ter o Poder Executivo, por decreto, portaria, ou qualquer outra norma infralegal, legitimidade para alterar as alíquotas de qualquer tributo que seja. A Constituição estabelece as hipóteses em que a lei pode delegar, ao Poder Executivo, a faculdade de alterar as alíquotas, mas desde que “[...] atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei [...]”, conforme dispõe o artigo 153, § 1°, da Constituição. Ou seja, em tais casos, a lei já estipulou quais os limites em que a alíquota poderá variar, não havendo, portanto, senão “aparente exceção” ao Princípio da Legalidade. Portanto, se alguma lei omitir qual é a alíquota de determinado tributo, significa dizer que ele ainda não existe in abstracto, pois a norma jurídica tributária só pode surtir eficácia quando estiver completa, não podendo nascer in concreto, nem, por conseqüência, obrigar o contribuinte ao pagamento do tributo.482 A alíquota também pode ser seletiva, quando varia na razão inversa da essencialidade do produto, como, por exemplo, ocorre com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), imposto que grava com alíquotas maiores produtos como o álcool e o tabaco, e menores produtos como os da cesta básica. 483 Por fim, há a hipótese da alíquota zero, a qual corresponde à inexistência de tributação, por falta desse elemento quantitativo. Tem os efeitos semelhantes ao da isenção, mas dessa se diferencia porque, na isenção, há a suspensão de todos os aspectos da norma tributária, enquanto na alíquota zero só há a suspensão desse elemento do aspecto quantitativo. Aplica-se, por exemplo, em casos do IPI e do Imposto de Importação.484 3.4.3.3 Local e prazo de pagamento Partindo do pressuposto de que a Constituição deve ser interpretada tendo como base os princípios maiores que sustentam a estrutura do ordenamento jurídico, GERALDO ATALIBA e J. A. LIMA GONÇALVES defendem que “(…) o prazo de recolhimento do ‘quantum’ objeto da obrigação tributária integra o aspecto ou critério quantitativo da respectiva hipótese de incidência, possuindo a virtude de alterar-lhe a 482 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 449-450. BARRETO, Aires Fernandino. Base de cálculo..., op. cit., p. 69. 484 Ibidem, p. 76-79. 483 192 capacidade de afetar, mais ou menos gravosamente, a esfera patrimonial do cidadão”.485 Ocorrendo, portanto, no mundo fenomênico, qualquer ato que acarrete a alteração do quantum tributário, incide o mandamento constitucional que exige que esse ato seja fruto da manifestação da vontade legislativa, sob pena de inconstitucionalidade. Ou seja, para que seja exigido o respeito ao Princípio da Legalidade, basta que o ato possa alterar a quantificação do objeto da obrigação tributária. 486 Como justificativa, os autores lembram que, num clima inflacionário, o prazo de pagamento do tributo altera substancialmente o quantum e, portanto, passa a ser, juridicamente, tão relevante quanto a alíquota e a base de cálculo.487 MARÇAL JUSTEN FILHO também defende a existência de um “aspecto temporal” no mandamento da norma tributária: “Afirma-se, então, que a norma tributária refere-se ao ‘tempo’, no mínimo, sob dois ângulos distintos e inconfundíveis. [...] Assim como há um ‘quando’ para a ocorrência do fato imponível, também existe um momento para o pagamento da prestação tributária”.488 Concorda-se com o autor, portanto, quando defende caber à lei determinar quando será exigível o pagamento. OCTÁVIO CAMPOS FISCHER, concordando com os raciocínios de GERALDO ATALIBA e MARÇAL JUSTEN FILHO, também se posiciona no sentido de que, no critério objetivo, devem estar presentes o local e o prazo de recolhimento dos tributos, sob pena de ofensa ao Princípio da Legalidade.489 No entanto, devido ao fato de que a estipulação do local e do prazo de pagamento são temas mais afeitos às tecnicidades da administração tributária, entendese que mais consentâneo com a realidade tributária seria a lei prever limites, a serem observados pelos atos normativos regulamentares expedidos pelo Poder Executivo, à semelhança do que já prevê o § 1º do artigo 153 da Constituição, dispositivo que faculta ao Poder Executivo, “[...] atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei [...]”, alterar as alíquotas dos impostos sobre o comércio exterior – importação e exportação – do imposto sobre produtos industrializados e do imposto sobre operações financeiras. 485 Carga tributária..., op. cit., p. 25. Ibidem, p. 27. 487 Ibidem, p. 29. 488 ISS no tempo..., op. cit., p. 54. 489 A contribuição..., op. cit., p. 41. 486 193 Por outro lado, conforme ressalta MARCELO CARON BAPTISTA, ainda que essas informações sejam relevantes para a análise da relação jurídica tributária, são, todavia, prescindíveis para explicar o tributo no campo abstrato, havendo maior importância científica quando analisadas sob a perspectiva da norma tributária individual e concreta, o que ocorreria caso o presente estudo fosse dirigido especificamente à legislação do ISS de algum Município. Em virtude dessas razões, a estrutura da regra-matriz de incidência do ISS, examinada neste trabalho, não considerará o tema do prazo e local do pagamento desse imposto.490 490 ISS..., op. cit., p. 172-173. 194 4. A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO ISS 4.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Estabelecida a nossa perspectiva doutrinária ante a visão da estrutura da norma jurídica tributária, passa-se, deste ponto em diante, ao trabalho de sua aplicação especificamente ao ISS. Antes, porém, não há como deixar de mencionar o fato de que foi a obra de PAULO DE BARROS CARVALHO que abriu o caminho para que outros autores pudessem realizar o trabalho a que chamou de desformalização, pois nada mais seria do que substituir os elementos da fórmula da regra-matriz tributária pelos vocábulos e expressões constantes do texto normativo, labor predominantemente semântico, por buscar o significado dos vocábulos utilizados pelo legislador.491 Mas não se concorda em ver a desformalização como uma atividade puramente lógica, como se fosse o resultado de uma operação matemática, o que não se admite diante da certeza de que, desformalizar a regra-matriz de incidência é uma forma de expressar o labor hermenêutico do cientista do Direito. LOURIVAL VILANOVA, filósofo e teórico geral do Direito da Faculdade de Direito do Recife, ressalta essa necessidade ao afirmar que “[...] a interpretação e a aplicação jurisprudencial do Direito são complementos imprescindíveis para se ter o ‘Direito como experiência’ e, com base nessa experiência, obter-se o vínculo husserliano entre ‘juízo e experiência’, ou entre Lógica e realidade”.492 Mais adiante, adverte que “[...] sem isso, corre-se o risco de se fazer Lógica jurídica como admirável peripécia algorítmica, mas sem nenhuma repercussão na Ciência do Direito e sem maior fecundidade para a prática do Direito”.493 É, portanto, tarefa de interpretação jurídica e, para que seu resultado seja satisfatório, há que se pôr a tônica não no sujeito cognoscente ou no objeto cognoscível, mas na relação entre ambos, dentro da já mencionada “epistemologia dialética” na Ciência do Direito, como bem defende AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO494. JOSÉ ROBERTO VIEIRA, em agradável metáfora, após advertir, amparado em EDMUND HUSSERL, que “generalizar” e “formalizar” não têm o mesmo 491 Curso..., op. cit., p. 346. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 34. 493 Idem. 492 195 significado, assim como “especialização” não é o mesmo que “desformalização” ensina, acrescentando, que “[...] desformalizar é revestir as formas lógicas de conteúdo material, é pôr-lhes os trajes da aparência empírica. Desformalizar a Regra-Matriz de Incidência Tributária é recobrir o seu simbolismo estrutural com a capa da linguagem, tanto aquela encontrada na literalidade dos textos legais, quanto a obtida na ambiência sistemática dos contextos normativos”.495 Procurar-se-á, assim, expor a visão deste estudo sobre a regra-matriz de incidência do ISS, o que exigirá, por certo, um posicionamento quanto às possibilidades semânticas dos signos que compõem os textos normativos objeto de estudo, o que virá através das opções axiológica e ideológica aqui realizadas, dentro dos limites possíveis previstos no ordenamento jurídico. A doutrina, em geral, está de acordo quanto a ser a Constituição Federal o ponto de partida para a descoberta da regra-matriz não só do ISS, mas de todo e qualquer tributo. De forma mais específica, é nos dispositivos constitucionais que atribuem competência tributária às pessoas políticas, resultante do princípio federativo, que poderão ser encontrados os primeiros subsídios normativos hábeis à construção da norma-padrão dos tributos. Obviamente, isso não se dá somente com o recurso à específica norma constitucional atributiva da competência tributária. É que não é possível isolar as normas constitucionais, pois todas se inserem em um todo harmônico, completo e rígido, do que resulta a inolvidável conclusão de que “[...] o sentido aparentemente extraível da norma, enquanto objeto isolado de estudo, é incorreto tal como as aparentes omissões ou imperfeições apressadamente localizadas não eram senão produto de imperfeição atribuível apenas ao estudioso”.496 Como já afirmado, as normas jurídicas que outorgam competências tributárias, porque destinadas aos respectivos legisladores – federal, estadual, municipal e distrital – estão entre as normas de estrutura/organização, e não entre as normas de conduta. 497 Entende-se, assim, que as normas constitucionais, tanto as que outorgam competências, como as que “limitam” o seu exercício, e as demais normas de estrutura que, complementando a Lei Maior, regulamentam a atividade legiferante na esfera tributária, 494 A Ciência do Direito..., op. cit. , p. 13-14. A regra-matriz..., op. cit., p. 71. 496 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 60. 497 Há também autores que utilizam as expressões norma de “segundo grau” e de “primeiro grau”, para se referir, respectivamente, às normas de estrutura e de conduta. Nesse sentido é o entendimento de MARÇAL JUSTEN FILHO. ibidem, p. 39. 495 196 indicam qual é a regra-matriz de incidência tributária possível, para que o legislador definitivamente crie o tributo dentro desses limites, tanto em relação à hipótese, como em relação à conseqüência. Não por outra razão que a doutrina e a jurisprudência falam em “regra-matriz” tributária, “norma-padrão de incidência”, ou ainda “arquétipo” de um tributo, expressão utilizada por ROQUE ANTONIO CARRAZZA.498 É que o tributo instituído pela lei da respectiva pessoa política deverá seguir o modelo idealizado pelo legislador constituinte. Ressalte-se, porém, que a criação dos tributos não ocorre somente com fundamento na regra-matriz prevista constitucionalmente. Por força da necessária interpretação sistemática do ordenamento jurídico, todas as outras normas jurídicas pertinentes, como são exemplos os princípios constitucionais tributários, ou ainda, as normas jurídicas infraconstitucionais de âmbito nacional, como é o caso de alguns dispositivos do Código Tributário Nacional, dentre outras, devem ser levadas em consideração, quando de sua interpretação/aplicação, não sendo correto conceber as normas de forma isolada uma das outras. É nesse sentido a advertência de MARÇAL JUSTEN FILHO: Daí por que o fato de a norma matriz fornecer apenas alguns aspectos da hipótese de incidência do tributo não autorizar o aplicador ou o intérprete a pretender liberdade quanto aos demais ou omissão constitucional relativamente a eles. A análise da Constituição como um todo e dos princípios por ela encampados sempre conduz à conclusão de que, perante a Constituição Brasileira, são inexistentes os casos em que resta liberdade para a pessoa política atuar a seu bel-prazer no campo tributário. Então, a norma matriz não é a única a dispor sobre a norma infraconstitucional que se disponha a criar um tributo específico.499 Defender que o legislador está vinculado somente às disposições constitucionais específicas de cada tributo, é admitir a satisfação, tão-somente, com a primeira etapa do labor hermenêutico, a interpretação literal/gramatical, desprezando os demais métodos interpretativos que sempre devem ter como desfecho a interpretação sistemática, pois além de considerar todos os demais – teleológico, histórico etc. – leva em conta todo o restante do sistema jurídico, privilegiando sempre as normas que revelam os magnos princípios constitucionais. É praticamente pacífica na doutrina e na jurisprudência a idéia de que a Constituição não cria tributos, mas que tão-somente atribui competência às pessoas 498 499 Curso..., op. cit., p. 448. O imposto..., op. cit., p. 40. 197 políticas para que o façam, mediante suas respectivas leis. Nesse tema, destaca-se o pensamento divergente de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, para quem a posição doutrinária que defende ser o tributo criado somente pela respectiva lei da pessoa política “[...] envolve uma cisão, lógica e cronológica, no iter jurídico, ou seja, no processo de estruturação do tributo, entre o momento da outorga constitucional da competência tributária e o da criação do tributo pela lei tributária material da pessoa política competente”.500 No raciocínio desse autor, esse entendimento seria equivocado por basear-se em uma visão estática da criação do tributo, fenômeno que é essencialmente dinâmico. Ou seja, a lei que exercita a competência tributária, criando em definitivo o tributo, não iniciou o processo de criação, mas tão-somente o continuou, de forma integrativa. Toda norma jurídica em um sistema representa, a um só tempo, ato de criação e de aplicação do direito, pois cada norma é criada de acordo com o que prescreve outra. Quando uma norma cria direito, está inovando no ordenamento jurídico.501 No sistema tributário brasileiro, a dinâmica jurídica – processo técnico de criação do direito – consiste na criação e aplicação de normas, sendo que a inferior aplica a superior. Disposições de caráter geral, como o artigo 146, III, da Constituição, informam outras normas de caráter também geral, como as normas gerais de Direito Tributário, ou ainda o Código Tributário Nacional502. A partir dessa fase, esse procedimento prossegue a partir do geral para o particular – como a norma jurídica municipal sobre o ISS, por exemplo – e, por fim, do particular para o individual, quando do exercício da pretensão fiscal individualizada.503 Quando a Constituição, através das normas atributivas de competência, dispõe sobre a hipótese de incidência e base de cálculo de impostos, taxas e contribuição de melhoria, não está outorgando às pessoas políticas uma simples autorização, desprovida de elementos substanciais. Raciocínio diverso implicaria a flexibilização do subsistema constitucional tributário, contrariando a extrema rigidez que o peculiariza. Significaria “[...] abandonar o modelo dogmático-normativista de análise do sistema tributário”.504 500 Teoria geral..., op. cit., 171-172. Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 6-7. 502 Obviamente apenas em relação aos seus dispositivos que possuem compatibilidade com a noção de normas gerais de Direito Tributário. 503 BORGES, José Souto Maior. Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 7. 504 BORGES, José Souto Maior. Teoria geral..., op. cit., p. 172-173. 501 198 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES não está afirmando que a Constituição cria definitivamente o tributo, mas sim que: o complexo processo de sua criação se inicia, numa consideração dinâmica, com a outorga constitucional de competência tributária [...]. Uma visão dinâmica, e não estática, do sistema constitucional tributário porá a descoberto que o processo de instituição (criação) do tributo, iniciado com a outorga constitucional da competência tributária, se integra, observadas as respectivas competências, com a superveniência das leis complementares, ordinárias e eventualmente outros atos normativos. O insuficiente não é, em tal caso, equiparável ao inexistente. O tributo parcialmente estruturado na Constituição é algo já existente (conjunto de normas constitucionais válidas), embora a sua estruturação postule a superveniência de lei integrativa.505 Acrescenta ainda o autor que a visão isolada da criação do tributo tão-somente pela lei da pessoa política infirma o caráter sistemático do Direito, pois acaba por conferir relevância às normas infraconstitucionais, em desprestígio à função criadora das normas constitucionais. Uma prova irrefutável está em que a Constituição apresenta normas, como as que veiculam imunidades – artigos 150 a 152 – cuja eficácia já é plena e imediata, prescindindo para tanto de posterior legislação integrativa. 506 Em sentido contrário é o pensamento de ROQUE ANTONIO CARRAZZA, para quem as normas jurídicas de competência previstas na Constituição não criam, propriamente, tributos, mas, antes, conferem aptidão para que o legislador, em um momento lógico-jurídico posterior, possa criá-lo (instituí-lo) através de uma decisão política. Competência tributária, nas palavras do autor, “[...] é a aptidão para criar, in abstracto, tributos”.507 Mais adiante, complementa: A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo, a regra-matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma-padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição.508 Esse posicionamento tem por essência o entendimento de que somente com a lei editada pela pessoa de direito público interno é que poderá existir fato jurídico tributário, cuja ocorrência, por se subsumir à hipótese de incidência, deflagrará o 505 Ibidem, p. 173. Ibidem, p. 174-175. 507 Curso..., op. cit., p. 437. 508 Ibidem, p. 448. 506 199 nascimento da relação jurídica tributária. Apenas a previsão constitucional de um tributo, sem a lei posterior, não criaria tributo algum e, como conseqüência lógica, também não autorizaria o respectivo ente a exigir o pagamento, posto não haver ainda como surgir obrigação tributária. Outro argumento é o de que, sem lei criadora, não há ainda a alíquota, fator que, conjugado à base de cálculo, é imprescindível ao cálculo do quantum devido a título de tributo. Apesar dos bons argumentos invocados por ROQUE ANTONIO CARRAZZA, e que refletem, de uma forma geral, o posicionamento dominante, entende-se que melhor razão assiste ao raciocínio lógico de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, acima exposto. Em primeiro lugar, a própria afirmação de ROQUE ANTONIO CARRAZZA, acima transcrita, de que a criação do tributo ocorreria por decisão política do legislador infraconstitucional, já denuncia que o raciocínio utilizado pela corrente dominante parte de uma perspectiva pré-jurídica, da qual, como conseqüência lógica inafastável, somente se poderia chegar a uma conclusão falsa, quando utilizado para uma interpretação do ordenamento jurídico. Nesse sentido, verifica-se que a validade da tese de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES deve-se ao fato de que parte de uma premissa válida, pois exclusivamente jurídica, calcada no fenômeno da criação e aplicação do Direito, no qual, desde a Constituição, até a aplicação individualizada de uma norma, ocorre o fenômeno que se convencionou designar de processo de concreção normativa. Por outro lado, esse pensamento ratifica e fortalece o caráter sistemático e coerente do ordenamento jurídico, assim como se constitui em mais um forte fundamento obstaculizador das teses que pretendem conceder à lei complementar de normas gerais de Direito Tributário uma discricionariedade que ela definitivamente não possui.509 PAULO DE BARROS CARVALHO tentou refutar a tese de SOUTO, alegando que também a validade de uma sentença judicial ou de um ato administrativo específico depende de sua conformidade com a Constituição, donde não se poderia inferir que o legislador constitucional cria a sentença ou o ato administrativo, nem que começa a fazê-lo.510 JOSÉ ROBERTO VIEIRA, apesar de em um primeiro momento ter concordado com esse autor, passou a adotar a tese de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, afirmando que a investigação tão-somente constitucional de um tributo, “[...] conquanto 509 Diante desse posicionamento, a menção à expressão “criação” ou “instituição” do tributo, no decorrer desse trabalho, considera esse ponto de vista. 200 não suficiente, já nos revela ‘o tributo mínimo’, que, em sua substancialidade nuclear, foi objeto de criação no seio da própria Lei Magna!” (grifos do autor).511 Como já esclarecemos na introdução, este trabalho não se propõe a analisar nenhuma regra-matriz específica, que integra as regras de conduta, ou seja, não trataremos de nenhuma lei municipal sobre o ISS. O nosso estudo dirige-se às normas jurídicas que prescrevem qual é, dentro da regra-matriz de incidência do ISS, o critério espacial possível a ser observado pelos legislativos municipais, assim como questões conexas relativas à sujeição passiva tributária. Trata-se, portanto, de uma análise de regras de estrutura. A intenção (pretensão) é, portanto, o estudo das normas jurídicas constitucionais, tanto a que dispõe sobre a competência municipal para a criação do ISS (objetivo específico), como as que revelam, explícita ou implicitamente, os princípios constitucionais tributários que informam a interpretação e aplicação daquela primeira. Mas diante da extrema relevância da delegação constitucional ao legislador complementar no campo tributário, o qual, dentre outras atribuições, tem a competência para definir, em caráter nacional, o “fato gerador”, a base de cálculo e os contribuintes dos impostos, inafastável, também, é a análise do Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968 e da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. O Decreto-lei nº 406/68, editado ainda sob a égide da Constituição de 1967, “Estabelece normas gerais de direito financeiro, aplicáveis aos impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre serviços de qualquer natureza, e dá outras providências”. A Constituição de 1967 inaugurou a exigência de que as normas gerais de direito tributário fossem veiculadas pela forma da lei complementar, o que foi mantido na Emenda nº 1 de 1969 e na Constituição Federal de 1988. Dessa verificação, resultou a discussão da legitimidade do Decreto-lei nº 406/68 ter status de lei complementar, haja vista dispor sobre normas gerais acerca do então ICM e do ISS. LUIZ RAFAEL MAYER, em parecer da Consultoria-Geral da República, teve, para nós, um dos melhores entendimentos sobre a questão: A edição dessas normas, em forma de decreto-lei, não refuta, no caso, a exigência constitucional de lei complementar. É que, como neles se indica expressamente, esses diplomas legais foram expedidos com fundamento no § 1º do artigo 2º do Ato Institucional n° 5, que atribui ao Poder Executivo, 510 Apud E, afinal, a Constituição cria tributos! In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Teoria Geral da Obrigação Tributária: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges, p. 631. 511 Ibidem, p. 640. 201 durante o recesso parlamentar, autorização para ‘legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios’. Desse modo, os decretos-leis em causa, quer por sua matéria específica, quer pela abrangente competência legislativa de que emanam, têm a função e a categoria previstas na Constituição para a lei complementar, e poderiam ter-se denominado decretos-leis complementares [...]. Logo, as medidas que visem a alterar as normas consubstanciadas no Decreto-Lei n° 406, de 1968, ou a dispor, de qualquer modo, em relação a imposto sobre serviços, devem ser procedidas por via de lei complementar.512 Entretanto, a conclusão pela possibilidade de as normas gerais serem editadas através de Decreto-lei, no chamado período de exceção, não implica automaticamente a questão da obrigatoriedade das disposições do Decreto-lei nº 406/68 para os Municípios, pois como adverte MARÇAL JUSTEN FILHO, “[...] suas previsões somente seriam reconhecidas como obrigatórias para aquelas pessoas políticas à medida que se reconhecesse ser caso, constitucionalmente previsto, de lei complementar. Assim, vencido o tema da fonte formal da norma complementar, resta imprescindível determinar se era dado veicular norma complementar dispondo sobre a questão”.513 Dessa forma, é irrelevante o fato de o Decreto-lei nº 406/68 ter se intitulado veiculador de normas gerais de Direito Tributário, pois o fundamental é saber se as normas que editou se subsumem ao comando do artigo 146 da Constituição Federal de 1988 e, com isso, obrigam os Municípios. Em resumo, o Decreto-lei nº 406/68 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, mas tão-somente naquilo que é materialmente compatível com a Lei Maior, no que possui, portanto, eficácia de lei complementar.514 Ressalte-se que através do § 5º, do art. 34, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Carta de 1988 consagrou expressamente o Princípio da Recepção da legislação tributária anterior, no que lhe for compatível.515 A Lei Complementar nº 116/2003, criada especialmente com o objetivo de (tentar) solucionar os conflitos entre os Municípios no que toca à definição do local de ocorrência do “fato gerador” – critério espacial da hipótese de incidência – “Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências”. Como ainda restam divergências sobre quais dispositivos da norma anterior teriam sido revogados pela novel legislação, ambos 512 Imposto sobre serviços. Revista de Direito Público, n. 31, p. 43. O imposto..., op. cit., p. 67-68. 514 Esse é o entendimento, também, de MARCELO CARON BAPTISTA, em ISS..., op. cit., p. 225-226. 515 “§ 5º - Vigente o novo sistema tributário nacional, fica assegurada a aplicação da legislação anterior, no que não seja incompatível com ele e com a legislação referida nos §3º e § 4º.” 513 202 os textos normativos, naquilo que interessa ao tema, serão objeto de estudo neste trabalho. Por fim, e antes de adentrar efetivamente no tema, cite-se o raciocínio lúcido de GERALDO ATALIBA, sobre o contexto do ISS no ordenamento jurídico: O regime jurídico da tributação de serviço não é um amontoado ilógico e díspar de mandamentos desconexos e independentes reciprocamente. Por instância própria da dogmática jurídica e exigência universal e primeira da ciência do Direito, é um conjunto uno, coeso e harmônico de disposições normativas, hierarquicamente dispostas, sistematicamente organizadas, de forma a erigir uma unidade estruturada em torno de alguns princípios básicos, informadas por uma coerência interna que coordena e solidariza cada qual de suas partes, entre si relacionadas, pelos traços comuns de vinculação formal ao mesmo sistema e fidelidade e subordinação aos princípios informativos do todo em que se inserem, cujas matrizes estão na Constituição e na lei.516 4.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ISS O ISS é tributo de competência municipal, tendo origem em ordenamento jurídico anterior, mais precisamente no artigo 15 da Emenda Constitucional nº 18, de 1º de dezembro de 1965, emenda essa que introduziu a Reforma Tributária na Constituição de 1946, substituindo outros impostos existentes no sistema de então – Imposto sobre transações e o imposto sobre diversões públicas – em especial o “Imposto de Indústria e Profissões”, conforme lembra RUBENS GOMES DE SOUSA.517 Dentre as principais razões para a substituição do imposto anterior pelo ISS destacou-se, conforme esse renomado autor, a fragilidade com que ocorria a invasão de competências tributárias entre diferentes pessoas políticas, pela falta de uma definição precisa do campo de incidência e, como conseqüência, de qual seria a base de cálculo concreta em cada caso. 516 517 Imposto Sobre Serviços..., op. cit., p. 69. O imposto sobre serviços e as sociedades prestadoras de serviços técnicos profissionais, Revista de Direito Público, n. 20, p. 354-355. Nesse artigo, RUBENS GOMES DE SOUSA afirma que a comissão da reforma tributária promulgada pela Emenda n 18/65 à Constituição Federal de 1946, e complementada pelo Código Tributário Nacional (Lei n 5.172/66), da qual foi relator, “[...] consignou expressamente que o ISS destinava-se a substituir o antigo imposto de indústria e profissões, que, pela imprecisão constitucional de sua incidência e conseqüente indefinição de sua base de cálculo, se havia convertido no exemplo mais flagrante da inadequação da discriminação de rendas então vigente, por permitir a interpenetração das competências tributárias privativas de governos diferentes. Com efeito, os dois aspectos referidos permitiam que o imposto de indústria e profissões viesse sobrepor-se a tributos reservados a outros poderes que não o Município, notadamente, no campo das atividades comerciais, ao IVC; e nesse campo e também no das atividades profissionais de prestação de serviços, calculado como era, via de regra, sobre o chamado 203 Em um primeiro momento, foi o Código Tributário Nacional – Lei nº 5.172, de 25 out. 1966 – a legislação que conferiu a primeira complementação normativa em relação ao ISS, conforme se infere do caput do artigo 71, pelo qual “O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço que não configure, por si só, fato gerador de imposto de competência da União ou dos Estados”. No artigo 72, ficou estabelecido que “A base de cálculo de imposto é o preço do serviço”. As Constituições de 1967 e 1969 – esta última representada formalmente pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 out. 1969 – mantiveram a competência municipal para a instituição do ISS. Nesse intermédio, o Decreto-lei nº 406/68, com as modificações introduzidas logo após pelo Decreto-lei nº 834, de 08 set. 1969, por meio de seus artigos 8º a 13, disciplinou o ISS em nível infraconstitucional nacional, revogando, assim, os dispositivos acima citados do Código Tributário Nacional, além do seu artigo 73, que prescrevia que o “Contribuinte do imposto é o prestador do serviço”. Posteriormente, o Decreto-lei nº 406/68 sofreu as seguintes alterações: a Lei Complementar nº 22, de 11 dez. 1974 estabeleceu isenção de ISS para serviços de engenharia contratados com a União, Estados, Distrito Federal, Municípios, Autarquias e empresas concessionárias de serviços públicos; a Lei Complementar nº 56, de 15 dez. 1987 incluiu novos serviços na lista prestados por sociedades enquadráveis no regime de alíquota fixa; e a Lei Complementar nº 100, de 22 dez. 1999 incluiu na lista anexa o serviço de exploração de rodovia por agentes privados, assim como fixou critérios para determinação da base de cálculo do imposto em relação a esse serviço. 4.3 A HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ISS 4.3.1 O critério material O Sistema Tributário Nacional peculiariza-se pelo rigor com que o legislador constituinte tratou do tema da tributação, do que resulta ser inevitável ter, como ponto ‘movimento econômico’ – equivalente à receita bruta – confundir-se com o imposto federal sobre a renda e proventos de qualquer natureza” [sic]. 204 de partida para a pesquisa da regra-matriz do ISS, o que dispõe a Constituição Federal. É imperioso reconhecer que a análise científica não só do ISS, mas de todo e qualquer tributo, só pode ser levada a bom termo se condicionada à sua estrutura constitucional, como defende MARÇAL JUSTEN FILHO, ao ensinar que “[...] é na Constituição Federal que encontramos todas as peculiaridades de cada tributo – em última análise, a amplitude de sua hipótese de incidência e a delimitação de sua conseqüência”.518 Como já demonstrado anteriormente, é praticamente unânime, na doutrina, a tese de que os tributos ainda não estão criados (instituídos) na Constituição, o que ocorreria, efetivamente, somente com a lei aprovada pela pessoa política respectiva, dentro de sua esfera de competência, conforme a repartição feita na Lei Maior. Diante da consistência da tese contrária, defendida por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, pela qual, em síntese, o processo de criação do tributo já inicia com as normas constitucionais atributivas de competência, entendemos que seu raciocínio é o único compatível com o sistema jurídico.519 Disso decorre não estar o legislador ordinário autorizado a ultrapassar, restringir ou modificar o que dispõe a Constituição Federal sobre o assunto, pois ela reduz ou até mesmo neutraliza a sua margem de liberdade quando do exercício da competência, pois o respectivo poder legislativo está vinculado às rigorosas e exaustivas previsões constitucionais acerca da matéria. Não haverá, assim, validade científica em discussões doutrinárias que, a pretexto de solucionar eventuais questões sobre o tema, recorram às normas infraconstitucionais.520 É de rigor, portanto, iniciar a presente análise pelo contexto constitucional. Preliminarmente, estabelece o artigo 156, da Carta Maior, que trata da outorga de competência tributária aos Municípios, e seu inciso III, que dispõe especificamente sobre o ISS, que “Compete aos Municípios instituir impostos sobre: [...] III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar”.521 Antes de analisar o texto constitucional, é importante fazer uma necessária advertência quanto ao recurso ao Direito Comparado, freqüentemente invocado nas teorias sobre o imposto sobre o valor agregado (IVA) europeu. Não discorda a doutrina 518 O imposto..., op. cit., 59. Vide supra, subitem 4.1. 520 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 59-60. 521 O artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988, teve sua redação dada pelo artigo 1º, da Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993. 519 205 quanto à sua imprestabilidade para a busca de subsídios normativos, posto que “[...] só depois de fixadas certas linhas mestras – captáveis diretamente da observação do texto da Constituição – será útil qualquer consideração desse tipo, para sublinhar as peculiaridades do nosso sistema, a fim de melhor compreendê-lo”.522 É que a interpretação sistemática, como a própria expressão está a indicar, tem por limite o sistema jurídico de um determinado país, ou dizendo de outro modo, está limitada a uma certa ordem jurídica, não devendo, portanto, considerar normas jurídicas alienígenas. Apesar de o Direito Comparado, cujo objeto nada mais é do que “[...] estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças entre ordens jurídicas”, ser extremamente útil naquilo a que acusa sua própria denominação – comparar ordens jurídicas (macrocomparação) ou institutos jurídicos afins em ordens jurídicas diferentes (microcomparação) – será inútil ou até mesmo inconveniente sua utilização para a análise da regra-matriz de algum tributo existente no sistema tributário nacional, como é o caso do ISS.523 O raciocínio é confirmado por HERON ARZUA: A Grande Lei, num desdobramento lógico dos princípios da Federação e da autonomia municipal, fatiou o poder tributário do Estado Brasileiro entre os três entes engendrados, a União, Estados e Municípios. E só existe discriminação de rendas porque o Brasil organizou-se em forma federativa e elevou o Município à categoria de pessoa política. [...] Conseqüência importante dessas peculiaridades do Texto Superior é a pouca ou quase nenhuma utilidade do recurso às doutrinas estrangeiras para a solução dos problemas de funcionamento de nosso sistema. A admoestação tem cabida para evitar o vezo comum de que se querer interpretar as normas dos impostos brasileiros, em particular do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços nominados (ICMS) e do imposto sobre serviços (ISS), a partir do imposto sobre o valor agregado (IVA) europeu.524 Como fica claro de uma primeira leitura do texto constitucional, o critério material da hipótese de incidência, a ser observado pela legislação infraconstitucional, refere-se a imposto sobre serviços de qualquer natureza. Com efeito, nos moldes do que dispõe a repartição e discriminação constitucional de competências tributárias, os Municípios, com base no inciso III do artigo 156, só podem instituir o ISS sobre fatos que estejam inseridos no conceito constitucional de serviço. Como conseqüência dessa rígida e exaustiva outorga de competência, pela qual cada pessoa política recebe sua respectiva parcela de modo privativo, depreende-se que qualquer fato que não possa ser identificado como serviço está imune à incidência desse imposto municipal. Esse 522 BARRETO, Aires Fernandino. ISS..., op. cit., p. 27. ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao direito comparado, p. 7-9. 524 O imposto sobre serviços e o princípio da territorialidade..., op. cit., p. 142-143. 523 206 pensamento é corroborado pelo professor AIRES BARRETO: “[...] examinando-se o contexto sistemático da Constituição chegar-se-á a um conceito de serviço que não é rigorosamente igual ao conceito vulgar. Em outras palavras: o conceito constitucional de serviço não coincide com o emergente da acepção comum, ordinária, desse vocábulo”.525 O legislador municipal, assim, não pode ir além dos marcos do conceito de serviço encampado pelo contexto constitucional para definir sua esfera de competência, ainda que sob o pretexto de estar amparado por qualquer outro conceito extrajurídico de serviço, como o econômico, por exemplo, que é o conceito adotado pela CEE – Comunidade Econômica Européia, para a incidência do imposto sobre o valor acrescido (IVA) pelos países participantes. Entretanto, doutrina e jurisprudência já defenderam, em nosso país, o entendimento de que o “serviço” tributável pelo ISS tem o seu respectivo conceito extraído não do Direito, mas da Ciência Econômica. Entre as obras que defendem esse posicionamento, destaca-se a clássica “Doutrina e prática do imposto sobre serviços”, de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, autor que parece ter indevidamente importado para o ISS o conceito de “serviço” válido para o Imposto sobre o Valor Acrescido (IVA) europeu, o qual sempre foi definido por exclusão ao de transferência de bens materiais. A conclusão desse autor é a de que o ISS, por equiparação, também onera as atividades econômicas de transferências de bens imateriais: “Conforme se verifica, adotou-se o conceito econômico de serviço, assim entendido o bem econômico (meio idôneo para satisfazer uma necessidade) que não seja bem material, isto é, que não seja de extensão corpórea ou de permanência no espaço. Serviço, no sentido econômico, é sinônimo de bem imaterial, fruto do esforço humano aplicado à produção”. 526 Mais adiante, esse autor adverte que o conceito econômico de “prestação de serviços” não se confunde com o conceito de “prestação de serviços” do direito civil, o qual define como sendo o fornecimento de trabalho a terceiros mediante remuneração, pois abrange também outras atividades como, v.g., locação de bens móveis, transporte, publicidade, hospedagem, diversões públicas, cessão de direitos, depósito, execução de obrigações de não fazer etc.527 525 ISS..., op. cit., p. 291. Doutrina e prática do imposto sobre serviços, p. 40. 527 Ibidem, p. 41-43. 526 207 O referido autor, entretanto, interpretou a norma tributária do ISS com base em raciocínio aplicável somente aos países integrantes da Comunidade Econômica Européia, como foi dito acima. Como resultado, passou a defender que o ISS não recai somente sobre a prestação de serviços, mas, sim, sobre “a venda de” serviços de qualquer natureza, pois que a norma constitucional teria outorgado competência aos municípios para onerar o serviço, cujo conceito, amplo, encontra-se radicado na economia, e não só sobre a sua prestação, que é conceito restrito ao âmbito jurídico, oriundo do Direito Civil.528 Tal entendimento seria confirmado pela existência, no Decreto-lei nº 406/68, de uma série de atividades admitidas como “serviços”, mas que não se subsumem ao conceito (civilista) de “prestação de serviços”, como é o caso da locação de bens móveis, publicidade, hospedagem, diversões públicas etc. 529 Com a devida vênia, não há como adotar esse raciocínio. Em primeiro lugar, porque recepcionou norma oriunda do Direito Comparado, como se fosse integrante de nosso sistema jurídico, o que, como já se demonstrou acima, não se admite, já que a própria denominação acusa servir o direito alienígena tão-somente para fins de comparação com o sistema pátrio. Em segundo lugar, deflui desse entendimento que o método hermenêutico utilizado pelo autor foi o da interpretação literal que, como se sabe, é insuficiente, servindo apenas como método inicial, nunca, porém, definitivo. E, por fim, o mais grave equívoco repousa na afirmação de que o ISS incidiria não sobre o fato da prestação de serviços, mas sobre o negócio jurídico do qual ela decorre – “venda de serviços”. Como veremos adiante, ainda que a análise do contrato que subjaz à prestação do serviço seja necessária para uma devida compreensão do fato tributário do ISS, isso não autoriza concluir seja o próprio negócio jurídico a materialidade da hipótese de incidência do ISS.530 Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal chegou a chancelar esse entendimento, tendo se posicionado no sentido de que o ISS poderia incidir sobre qualquer atividade economicamente enquadrada no conceito de serviço, entendimento esse que perdurou praticamente até entrar em vigor a atual Constituição, conforme ilustram os Recursos Extraordinários ns 112.947-6/SP (2a Turma, Rel. Min. Carlos 528 Tanto o artigo 1.216 do antigo Código Civil, como o artigo 594 do atual código, prevêem que “Toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição”. 529 Doutrina..., op. cit., p. 81-85. 530 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 84-85. 208 Madeira, julgado em 19/06/1987)531 e 115.103-0/SP (1a Turma, Rel. Min. Oscar Corrêa, julgado em 22/03/1988).532 Como temos defendido, a única interpretação legítima e segura é a que desemboca no contexto sistemático do ordenamento jurídico. BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, entretanto, interpretou a Constituição conforme uma norma infraconstitucional, no caso, o Decreto-lei nº 406/68, quando o correto, entendemos, teria sido interpretar esse texto normativo em conformidade com o contexto constitucional. Nesse sentido, FERNANDO OSÓRIO DE ALMEIDA JÚNIOR conceitua a interpretação conforme a Constituição como sendo “[...] aquela que, entre outras possíveis interpretações, se impõe sobre as demais, em razão de revelar na lei a sua validade em face da Constituição”.533 Por outro lado, lembre-se que o Decreto-lei nº 406/68 é “maculado” pelo fato de ser instrumento normativo editado pelo Poder Executivo durante regime de exceção e, à semelhança das atuais Medidas Provisórias, também foi objeto de abusos por parte dos chefes do Executivo, em flagrante prejuízo ao primado da democracia representativa. Respeitados tais limites, os quais incluem a ressalva dos serviços de transporte transmunicipal e de comunicação, reservados pela Constituição (artigo 155, II) aos Estados e Distrito Federal, para serem tributados pelo ICMS, todos os demais serviços – e daí advém a razão da expressão serviços de qualquer natureza – podem ser gravados pelos Municípios e pelo Distrito Federal, pela via do ISS. Disso resulta, ainda, a ilegitimidade da interpretação que confere caráter de taxatividade à lista de serviços prevista na legislação infraconstitucional, atualmente anexa à Lei Complementar nº 116/2003. A inteligência constitucional não admite, portanto, outros limites ao legislador tributário municipal senão os existentes como resultado do que prevê o inciso 531 “Tributário. ISS na locação de bens móveis. O que se destaca, 'utilitatis causa’, na locação de bens móveis, não é apenas o uso e gozo da coisa, mas sua utilização na prestação de um serviço. Leva-se em conta a realidade econômica, que é a atividade que se presta com o bem móvel, e não a mera obrigação de dar, que caracteriza o contrato de locação, segundo o artigo 1188 do Código Civil. Na locação de guindastes, o que tem relevo é a atividade com eles desenvolvida, que adquire consistência econômica, de modo a tornar-se um índice de capacidade contributiva do imposto sobre serviços. Recurso não conhecido.” – Disponível em http://www.stf.gov.br. Acesso em: 05 fev. 2007. 532 “ISS - Locação de bens móveis, expressamente incluída no item 52 da lista de incidência. Inexistência de inconstitucionalidade. Conceito de serviços. Artigo 24, II, da Constituição Federal não violado. Textos não prequestionados. Cabimento pela alínea 'c' indemonstrado. Recurso extraordinário não conhecido.” - Disponível em http://www.stf.gov.br. Acesso em: 05 fev. 2007. 533 Interpretação conforme a Constituição e Direito Tributário, p. 16. 209 II do artigo 155 da Constituição, em que pese, infelizmente, a remansosa jurisprudência em sentido contrário. Da análise da materialidade da hipótese de incidência do ISS surge a questão de saber quais serviços podem ter a respectiva prestação gravada pela via desse imposto municipal. Conforme já denuncia o grifo, o critério material, apesar do que diz literalmente a Constituição, não é e nem pode ser somente “serviços”. Conforme já analisamos, o critério material da hipótese de incidência, de acordo com o ensinamento de PAULO DE BARROS CARVALHO, é a descrição de um fato ou de um estado de fato, também denominado de núcleo da hipótese, o que já remete à conclusão de que com a hipótese não se confunde, sendo antes uma parte do antecedente. Esse núcleo obrigatoriamente será formado por um verbo – alusivo a um comportamento humano – o qual deve ser sempre pessoal e de predicação incompleta, o que exige a presença de um complemento.534 Aplicando esse raciocínio ao ISS, conclui-se que o vocábulo “serviços”, se não é um verbo, logicamente é o complemento de que fala PAULO DE BARROS CARVALHO. E o verbo que mais se coaduna com esse complemento não é outro senão “prestar”. O prestador do serviço é o único destinatário constitucional da obrigação tributária do ISS.535 Como resultado, tem-se que o critério material do ISS é prestar serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar. É que “[...] não se tributa o serviço em si mesmo, mas a atividade humana da qual ele decorre”.536 Dizendo de outro modo, seria ilógico considerar que o ISS tivesse sua incidência reduzida somente à figura do “serviço”, como uma atividade já realizada, posto que é somente na “prestação do serviço” que estão reunidas as figuras do prestador e do tomador, que são os elementos necessários à instauração de uma relação jurídica de direito privado, apta a irradiar os efeitos tributários pertinentes. 537 Apesar de o artigo 156, III, da Constituição Federal, dispor, literalmente, que o imposto é sobre “serviços de qualquer natureza”, o próprio texto constitucional, em outras ocasiões, encarrega-se de esclarecer o lapso gramatical. Esse mesmo dispositivo – inciso III do artigo 156 – adverte que os serviços tributáveis pelo ISS são aqueles “[...] não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar”, dispositivo 534 Vide supra, subitem 3.3.2. JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 80. 536 Ibidem, p. 78. 535 210 que trata da competência dos Estados federados para instituir o ICMS, imposto que, além de incidir sobre as operações relativas à circulação de mercadorias, também grava as “[...] prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação [...]”. Ou seja, de forma implícita, depreende-se que as prestações de serviço, de uma forma geral, são tributáveis pelos municípios através do ISS, com exceção dos serviços cuja prestação é materialidade reservada à competência estadual. A legislação infraconstitucional confirma o entendimento, não havendo oposição nesse sentido, como ilustra o antigo artigo 8º do Decreto-lei nº 406/68: “O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação [...] de serviço constante da lista anexa”. Também o artigo 1º da atual Lei Complementar nº 116/2003 dispõe de forma semelhante, acrescentando, porém, que o imposto incide “[...] ainda que esses (os serviços) não se constituam como atividade preponderante do prestador” (esclarecemos, nos parênteses). Outra particularidade, no que pertine à repartição de competências quanto aos impostos, está no fato de que todas as materialidades passíveis de serem tributadas pela via dos impostos estão expressamente previstas na Constituição Federal, seja tal previsão explícita ou implícita. Não há, portanto, qualquer fato, desde que revelador de capacidade contributiva – artigo 145, § 1º da Constituição Federal – que não possa, pelo intérprete, ser remetido à competência privativa de uma das pessoas políticas. Mas, nesse ponto, reside substancial diferença quanto à competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à competência da União Federal. É que a outorga de competência aos Estados e aos Municípios foi feita, pelo legislador constituinte, de forma explícita, querendo isso significar que a competência tributária estadual e municipal quanto aos impostos é somente aquela prevista, respectivamente, nos incisos I ao III do artigo 155, e nos incisos I a III do artigo 156, ambos da Lei Maior. Noutro giro, a competência da União Federal, além da prevista de forma explícita nos incisos I ao VII do artigo 153 da Constituição, abrangerá também os demais fatos signo-presuntivos de riqueza que, eventualmente, venham a ser “descobertos” pelo legislador federal, por não terem sido positivados na Constituição quando de sua promulgação. 537 MELO, José Eduardo Soares de. ISS – aspectos teóricos e práticos, p. 34. 211 Conforme estabelece o artigo 154, I da Constituição, “A União poderá instituir: I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”. Trata-se da denominada competência residual da União Federal, pois abrange os fatos que “restaram”, após os previstos nos artigos 153, 155 e 156, competência essa a ser exercida, por exigência expressa, somente através de lei complementar, assim como é imperativo que o tributo criado seja não-cumulativo – ou seja, a lei em questão deve instituir mecanismo econômicofinanceiro que impeça a incidência do imposto, em uma das fases da cadeia produtiva, sobre o próprio imposto incidido na etapa ou nas etapas anteriores – e que, ainda, “[...] não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”. Como conseqüência inafastável, será inconstitucional, por invasão de competência ou por ofensa à limitação constitucional ao poder de tributar, toda e qualquer lei municipal que estabeleça a incidência de ISS sobre fato que extrapole o conceito de serviço encampado pelo inciso III do artigo 156 da Constituição Federal, seja por tal lei prever incidência sobre fatos de competência dos Estados e/ou da União Federal, seja por instituir imposto sobre fato imune ao ISS, como é o caso dos serviços públicos, por exemplo.538 As ilações até aqui expendidas permitem inferir que, não obstante o estudo do artigo 156, III, do Texto Constitucional, ser essencial à análise da competência municipal para a criação do ISS, também é de rigor, partindo sempre de uma necessária interpretação sistemática, não descuidar das demais normas constitucionais que, de alguma forma, influenciam o delineamento desse imposto, sejam elas os princípios constitucionais, sejam as disposições que, ao atribuir as competências tributárias das outras pessoas políticas, tratam de hipóteses semelhantes que, por essa razão, são potencialmente a causa dos chamados conflitos de competência, tidos pela doutrina – com acerto – como aparentes, já que resultam sempre de erro na conceituação dos fatos pelo intérprete, nunca de antinomia constitucional propriamente dita. Como exemplo, pode-se citar os casos de operações jurídicas em que há dificuldade em definir se o que houve foi prestação de serviços tributáveis pelos Municípios ou pelos Estados, como é o atual caso dos serviços de provedores de 538 BARRETO, Aires Fernandino. ISS..., op. cit., p. 27. 212 internet, ou ainda os casos de serviços abrangendo a “obrigação de dar” algo, em que pode haver aproximação com os conceitos de comercialização e/ou industrialização, operações destinadas respectivamente às competências estadual e federal. Voltando à questão conceitual, verifica-se que a Constituição se limita a fazer referência ao vocábulo “serviços”, não definindo, de forma expressa, qual seja o seu conceito, para efeitos tributários, o que remete ao intérprete, portanto, a tarefa de fazêlo. Esse, contudo, conforme já se frisou, está jungido ao contexto constitucional nesse mister, em especial pelo sentido sistemático dos seus princípios maiores. Nesse sentido, AIRES BARRETO ensina que, por falta de um conceito constitucional, é de rigor adotar, para a interpretação do inciso III do artigo 156 do Texto Constitucional, o conceito comum e corrente, apartando-o, entretanto, do conceito de serviço público – o qual será tratado adiante – e de fatos que possam estar compreendidos em hipóteses de incidência outorgadas constitucionalmente a outras pessoas políticas. Advirta-se, porém, de que não se trata de uma competência residual, ou seja, de que os serviços tributáveis pelos municípios, por exclusão, são todos aqueles que não estejam compreendidos na competência de outras pessoas políticas, pois mesmo após essa triagem há serviços que não são graváveis pelo ISS.539 Portanto, ainda mesmo depois de excetuar as prestações de serviços reservadas aos estados, não são todas as demais prestações de serviços que poderão ser tributadas pelo ISS. É necessário, então, delimitar quais espécies de prestação de serviço serão passíveis de sofrer a incidência da norma jurídica municipal, já que há aquelas consideradas irrelevantes perante a tributação, devido ao seu conceito não se identificar com a materialidade constante do arquétipo constitucional do ISS. Preliminarmente, inafastável é a conclusão de que a definição de serviço deve ser jurídica. “O simples serviço não está (nem pode estar) na materialidade da hipótese de incidência tributária”.540 Com isso, queremos demonstrar que a prestação de serviço passível de tributação pela via do ISS somente pode ser aquela que se constitui em objeto de uma relação jurídica, celebrada entre os respectivos tomador/contratante e prestador/contratado. Por outro lado, a afirmação também é útil para afastar a errônea idéia de que o conceito de serviço possa ser econômico, posto que tal entendimento 539 540 Ibidem, p. 27-28. JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 84. 213 parte do pressuposto equivocado de que ele (o conceito) possa ser obtido fora do sistema jurídico, o que não se admite. Para o Direito, prestar serviço implica uma atividade em proveito alheio, e admitir o contrário seria aceitar o absurdo de a Constituição utilizar um vocábulo técnico em sentido não-técnico, havendo presunção de que isso não ocorre. E, ainda que se argumentasse em contrário, haveria o óbice de que os serviços prestados em benefício próprio não exteriorizam sinais de riqueza e, portanto, não haveria aí manifestação de capacidade contributiva, conforme exigência do artigo 145, § 1º da Lei Maior, assim como – e também por conseqüência – eventual imposição tributária sobre tal atividade resultaria em verdadeiro confisco, também vedado pela Constituição Federal, conforme acusa o seu artigo 150, IV. Juridicamente, portanto, tais serviços são irrelevantes, pelo menos no âmbito tributário do ISS. MARÇAL JUSTEN FILHO adverte que o núcleo da hipótese de incidência do ISS está na atividade de prestar serviço, e não no negócio jurídico do qual decorre tal prestação, o que justificaria ter a Constituição utilizado a expressão “serviço”, pondo destaque na respectiva atividade material, e não na sua causa jurídica.541 O Princípio Constitucional da Isonomia tem, como critério de discrímen no âmbito dos impostos, a capacidade contributiva. Conforme ALFREDO AUGUSTO BECKER, o Princípio da Capacidade Contributiva exige que o legislador ordinário, simultaneamente, escolha fatos signo-presuntivos de riqueza – que revelem capacidade contributiva – e que também varie, em relação a uma determinada hipótese de incidência tributária, a alíquota e o ritmo de sua progressividade, segundo a maior ou menor riqueza presumível do contribuinte.542 Diante disso, já é possível inferir que não é qualquer serviço que se subsume ao que dispõe o inciso III do artigo 156 da Constituição Federal, posto não ter todo serviço expressão econômica. No escólio de MARÇAL JUSTEN FILHO, “[...] a capacidade contributiva é revelada pelo fato concreto da prestação de serviços – não pela realização de negócio jurídico do qual decorra essa prestação”.543 Entretanto, não há como se certificar de que ocorreu a prestação de um serviço tributável pelo ISS sem o exame do respectivo negócio jurídico. 541 Ibidem, p. 85. Teoria..., op. cit., p. 454-456. 543 O imposto..., op. cit., p. 85. 542 214 A título de ilustração, citem-se, como exemplo, as pessoas jurídicas que são constituídas por membros de uma mesma família, tendo como objeto social a prestação de serviços de “administração de bens próprios”, cujo capital social é em sua maior parte integralizado pelos sócios com seus bens móveis ou imóveis, assim como a receita da futura sociedade resulta da gestão (prestação de serviço) desse patrimônio. Nessa hipótese, por força de lógica, não poderá haver tributação pela via do ISS, pois além de as figuras do tomador e do prestador se confundirem na mesma pessoa, falta o imprescindível conteúdo econômico. O raciocínio é confirmado por HERON ARZUA: “Em face do princípio da capacidade contributiva (artigo 145, §1), esse esforço humano há de ser adjetivado pelo conteúdo econômico, com o que se exclui o serviço em beneficio próprio (até por outra razão o trabalho a si próprio não daria lugar à tributação: é que aí não haveria relação jurídica.)”.544 O mesmo raciocínio cabe aos serviços prestados por motivações afetivas, altruísticas, de cordialidade, a título desinteressado, aos desenvolvidos por diletantismo, caridade, os quais não revelam conteúdo econômico algum, critério essencial à caracterização não só do ISS, mas também de todos os demais impostos, a teor do que dispõe o artigo 145, § 1º, da Constituição Federal.545 ALFREDO AUGUSTO BECKER ensina que a hipótese de incidência tributária pode referir-se tanto a um fato que recebe sua primeira juridicização, quando de sua inserção na hipótese tributária, o que poderia ser designado de fato “puro”, como a um fato jurídico, que por sua vez, já havia sido juridicizado por outra norma, do que decorre implicitamente a remissão da norma tributária a essa outra norma.546 A prestação de serviço tributável pelo ISS, a que alude a Constituição, não se constitui em um simples fato, mas em um fato jurídico, pois é materialidade já juridicizada pelo ordenamento. Não é o mero fato do serviço, em si mesmo, que se constitui na materialidade da hipótese tributária, pois somente a prestação de serviço como adimplemento de uma obrigação é tributável pela via do ISS.547 Como a Constituição foi silente em relação ao conceito de serviço por ela encampado, concluise que a norma tributária do ISS deverá respeitar a qualificação efetuada pelo Direito Privado – Direito Civil e Comercial – onde tem origem o regime jurídico da atividade econômica da prestação de serviços. 544 O imposto..., op. cit., p. 148. BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 30. 546 Teoria..., op. cit., p. 293-297 545 215 A afirmação de ser necessária a análise do contrato de prestação de serviços, para reconhecer a existência do fato tributário do ISS, não implica admitir estar ele, o fato tributário, entre aqueles de “formação continuada”, em oposição aos chamados “fatos geradores instantâneos”, pois todo fato tributário sempre ocorre em um exato momento do tempo, sendo juridicamente irrelevantes os eventos ocorridos anteriormente, ainda que tenham contribuído para a consumação do fato jurídico. Essa classificação, como bem adverte MARÇAL JUSTEN FILHO, não é senão resultado de uma “[...] lamentável confusão entre o mundo do Direito e o mundo dos fatos”.548 Os argumentos até aqui consignados já permitem concluir que os serviços gratuitos, ou seja, aqueles onde não há preço, não são alcançados pela incidência desse imposto. Apesar de o artigo 156, III, literalmente, não dispor nada nesse sentido, a conclusão é resultado da interpretação sistemática da Constituição, pois o artigo 145, § 1º, da Constituição, dispõe que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]”, com o que se constitucionalizou o Princípio da Capacidade Contributiva, critério que, no âmbito do Direito Tributário, permite efetivar outro princípio, o da Isonomia Tributária – artigo 150, II, da Constituição. Ou seja, são iguais, perante a tributação, os que, juridicamente, têm a mesma capacidade econômica; e, da mesma forma, são desiguais os que a possuem em intensidade diversa. ROQUE ANTONIO CARRAZZA, com propriedade, afirma que “O princípio da capacidade contributiva tem por destinatário imediato o legislador ordinário das pessoas políticas”, e que “[...] a hipótese de incidência dos impostos deve descrever fatos que façam presumir que quem os pratica, ou por eles é alcançado, possui capacidade econômica, ou seja, os meios financeiros capazes de absorver o impacto deste tipo de tributo”. Mais adiante complementa: “Assim, o legislador tem o dever, enquanto descreve a hipótese de incidência e a base de cálculo dos impostos, de escolher fatos que exibam conteúdo econômico”.549 Com entendimento semelhante, MARCELO CARON BAPTISTA defende a impossibilidade da tributação dos serviços gratuitos pelo ISS.550 Embora concorde com a conclusão da intributabilidade dos serviços gratuitos por “ausência de conteúdo econômico”, MARÇAL JUSTEN FILHO prefere 547 O imposto..., op. cit., p. 86. Ibidem, p. 87. 549 Curso..., op. cit., p. 82-83. 548 216 estabelecer um fundamento jurídico para tanto. As fontes das obrigações no Direito Privado são o contrato, a declaração unilateral de vontade e o ato ilícito. A prestação de serviço tributável pelo ISS só é aquela correspondente a execução de obrigação de fazer com origem em contrato, ficando de fora os serviços prestados por força de obrigação derivada de declaração unilateral de vontade e de ato ilícito, posto que em nenhuma dessas hipóteses existe manifestação de riqueza tributável pelo Estado.551 Entretanto, tais argumentos ainda não bastam, pois existem contratos gratuitos e unilaterais, onde somente uma das partes assume um dever jurídico. Se esse dever envolve obrigação de fazer, consubstanciada na prestação de serviço, ela não será tributável pelo ISS. “Somente quando a conduta do indivíduo é qualificável como adimplemento de obrigação de fazer originada de contrato bilateral é que nos deparamos com o fato relevante para o ISS. Nesses casos é que há serviço economicamente relevante. Essa relevância econômica decorre de a prestação de serviço representar uma movimentação de riqueza, exteriorizando riqueza apropriável pelo Fisco”. A prestação de serviço “gratuito”, por ter origem em obrigação unilateral, não corresponde a nenhuma contraprestação para o prestador, pelo que não se subsume à hipótese de incidência do ISS. 552 Sob outra perspectiva, não havendo valor recebido pela prestação, não há base de cálculo que possa sofrer a incidência da alíquota, e qualquer tributação que incidisse representaria ou confisco, que é vedado pelo artigo 150, IV, da Constituição, ou, ainda, exercício indevido de competência, já que o que se estaria tributando seria outro fato, não identificável como “serviço”. Não é dado confundir, entretanto, a inexistência de preço, com as situações em que, não obstante existente, o direito ao recebimento do valor representado pelo preço não é exercido – seja por lapso ou voluntariamente – ou, embora existente a pretensão ao recebimento, advenha a inadimplência do tomador. No primeiro caso, AIRES BARRETO exemplifica com o prestador que deixa de cobrar o preço a um certo tomador, com vistas a conquistá-lo como cliente, hipótese na qual não há senão serviço aparentemente gracioso, pois o serviço apresenta conteúdo econômico, ocorrendo tão-somente escamoteamento do preço. Esclarece o autor que 550 ISS..., op. cit., p. 259-260. O imposto..., op. cit., p. 96. 552 O imposto..., op. cit., p. 96. 551 217 “[...] o pagamento não compõe a regra-matriz de incidência, que se esgota na existência da efetiva prestação de serviços”.553 Entretanto, importante é atentar que, do fato de exigir-se conteúdo econômico na conceituação de serviço tributável pelo ISS, disso não decorre que seja necessário tenha o prestador lucro efetivo na negociação, pois o ISS não incide sobre o lucro que, aliás, é materialidade alcançada somente pelo imposto de renda.554 O que concretiza a materialidade do ISS é a verificação de que houve prestação de serviço economicamente relevante, sendo irrelevante tenha havido lucro na operação.555 A questão da lucratividade resultou, em grande parte, de uma equivocada interpretação do artigo 8 do Decreto-lei n 406/68, dispositivo que, pretendendo definir o fato tributário do ISS, estabeleceu que o imposto apenas incidiria sobre “[...] a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa”. A partir do momento em que vinculou a incidência do ISS à existência de empresa ou profissional autônomo, teria o legislador, de forma implícita, condicionado a tributação à existência de uma finalidade lucrativa. As decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários ns 78.369/CE556, em 04 jun. 1974, e 87.890-4/SP557, em 24 ago. 1979, seguiram esse posicionamento, entendendo pela inconstitucionalidade da exigência do ISS sobre serviços prestados por associações civis sem fins lucrativos aos seus associados, mediante remuneração, sob o fundamento de que o precitado artigo 8, ao utilizar a cláusula “[...] por empresa ou profissional autônomo”, afastou, da incidência do ISS, os serviços prestados por sociedades sem objetivo econômico.558 Na doutrina, entre os defensores da necessidade de lucro na configuração do fato tributário do ISS está o pensamento de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, 553 ISS na Constituição..., op. cit., p. 299. JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 97. 555 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 297-298. 556 Ementa: “Imposto sobre serviços de qualquer natureza. Não incide sobre associações civis que não exploram diversões públicas, com fins lucrativos. Recurso não conhecido.” – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 557 Ementa: “Tributário. Imposto sobre serviços. Estacionamento pago de veículos mantido por sociedade civil para uso de associados, na própria sede social e em local próximo. Inexistência do intuito econômico, implícito na cláusula 'por empresa ou profissional autônomo', lida tanto no art. 71 do código tributário nacional quanto no art. 8. Do decreto-lei n. 406, de 31.12.68, normas gerais de direito financeiro sobre a matéria. Tributo indevido”. – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 558 BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações sobre os aspectos gerais da incidência do ISS (acepção do termo serviços, serviços gratuitos e serviços prestados sem margem de lucro) e sobre o 554 218 autor que defende, baseado em entendimento isolado do Decreto-lei n 406/68, que a existência, em si mesma considerada, de empresa ou profissional autônomo, seria suficiente para caracterizar uma finalidade lucrativa. Como conseqüência, o ISS incidiria até mesmo sobre os serviços gratuitos (sem preço), desde que prestados por empresa ou profissional autônomo, por serem agentes econômicos, com finalidade lucrativa. Defende, ainda, que os serviços, quando prestados por tais pessoas, sempre têm um valor ou preço, ainda quando sejam graciosos, sendo os preços obtidos, nesse último caso, por meio de estimativa ou arbitramento.559 Esse entendimento revela-se equivocado, quando se considera que a materialidade do ISS exige incondicionalmente a presença efetiva e concreta – e nunca estimada, arbitrada ou presumida – do preço do serviço, entidade que não se confunde com o elemento “valor”, presente em qualquer serviço, assim como ocorre com todas as coisas existentes no mundo, sejam elas bens materiais ou imateriais, bens móveis ou imóveis, as quais podem apresentar valor intrínseco, real ou de custo.560 Preço, no entanto, somente o possuem as coisas qualificadas como objeto de um negócio jurídico entre adquirente e cedente ou, em nosso caso, entre tomador e prestador de um serviço. Ou seja, preço é a retribuição paga a alguém pela entrega a outrem de alguma coisa, ou pela prestação de um determinado serviço previamente contratado. Como nos serviços gratuitos a falta de retribuição (contraprestação) é patente, resta induvidoso que aí não há que se falar em incidência do ISS, mesmo porque não há base de cálculo para aplicar-se a alíquota. O conceito de empresa não vincula necessariamente a finalidade lucrativa, ensina MARÇAL JUSTEN FILHO. O autor dá como exemplo as empresas estatais – empresas públicas e sociedades de economia mista – onde embora a atividade seja desempenhada com caráter nitidamente empresarial – mediante a organização dos fatores econômicos para a produção ou circulação de bens ou serviços – não atuam, nem podem atuar, com intenção lucrativa, pois visam o interesse público. A Constituição não distinguiu a prestação de serviços tributável pelo ISS com base na existência ou não de finalidade lucrativa, ou na existência efetiva de lucro na prestação. 561 local de pagamento do imposto. In: COSTA, Alcides Jorge; SCHOUERI, Luís Eduardo; BONILHA, Paulo Celso Bergstrom (coord.). Direito Tributário Atual, n. 18, p. 194. 559 Doutrina..., op. cit., p. 121-123. 560 BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 195. 561 Imposto..., op. cit., p. 130. 219 O que importa é a existência de uma prestação de serviço como execução de uma obrigação de fazer, onde há como contrapartida contratual uma remuneração, a qual sofrerá a incidência do ISS tenha ou não o prestador finalidade lucrativa. O mesmo raciocínio vale para os serviços gratuitos, os quais não são tributáveis pelo ISS, tenha ou não o prestador finalidade lucrativa. Disso decorre que os serviços prestados pelas cooperativas são tributáveis pelo ISS, desde que remunerados, sendo irrelevante consubstanciarem-se em atos legitimamente cooperativos.562 Tanto na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – conforme ilustra o Recurso Extraordinário n 112.923-9/SP563 – assim como na do Superior Tribunal de Justiça – como demonstra o Recurso Especial n 234.498/RJ564 – foi encampado o entendimento da impossibilidade de incidência do ISS sobre serviços gratuitos. No caso do Superior Tribunal de Justiça, os dois acórdãos estabeleceram um precedente pelo qual o serviço, ainda que gratuito, poderia ser tributado pelo ISS quando tomador e prestador forem empresas de um mesmo grupo. As decisões fundam-se na premissa de um indevido planejamento tributário, onde por meio do aumento dos lucros distribuídos pela empresa controlada (tomadora do serviço) à empresa controladora (prestadora), devido à redução dos custos incorridos por aquela em suas próprias atividades, haveria uma espécie de “contraprestação” ou “remuneração” pelos serviços prestados.565 Quer parecer que essas decisões se basearam na teoria da “interpretação econômica do fato gerador”, método que não encontra guarida em nosso ordenamento jurídico, haja vista ser incompatível com o Princípio da Estrita Legalidade Tributária, assim como não observa seu principal corolário, a tipicidade fechada da norma tributária. O Código Tributário Nacional, em seu artigo 108, § 1, estabelece, de forma didática, que não poderá resultar tributo devido por meio de analogia, em preceito consagrador da Estrita Legalidade em nível infraconstitucional. 562 Idem. Ementa: “Imposto sobre serviços, exigido em relação a ingressos gratuitos ('permanentes'), fornecidos por exibidores de espetáculos cinematográficos. Cobrança indevida, por falta de base de cálculo, capaz de configurar a hipótese legal de incidência (artigo 9° do Código Tributário Nacional). Recurso extraordinário de que não se conhece”. – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 564 Ementa: “TRIBUTÁRIO. ISS. INCIDÊNCIA. ARBITRAMENTO. SERVIÇO GRATUITO. 1 - O ISS só não incide nos serviços prestados gratuitamente pelas empresas sem qualquer vinculação com a formação de um contrato bilateral. 2 - Serviços de intermediação de propaganda, objetivo principal da empresa, devem ser tributados pelo ISS. 3 - Alegação de gratuidade não reconhecida. 4 Arbitramento adotado pelo Fisco. Regularidade. 5 - Recurso improvido.” – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 565 BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 197. 563 220 Ora, a analogia, em Direito Tributário, somente ocorre pela equiparação econômica de fatos juridicamente distintos. Defende-se peremptoriamente que, se os efeitos jurídicos da operação negocial foram válidos perante o respectivo regime jurídico de origem, esses efeitos deverão ser considerados no âmbito do Direito Tributário, ainda que se subsumam à hipótese de regra imunizante, isentiva, ou de incidência menos onerosa que outra economicamente igual ou semelhante. Entende-se, contudo, que as decisões do Superior Tribunal de Justiça seriam procedentes se a conduta das empresas envolvidas estivesse maculada por algum ato ilícito, como é o caso, por exemplo, do abuso de direito ou da fraude à lei´, previstos, respectivamente, nos artigos 187 e 166, VI, ambos do Código Civil. AIRES BARRETO defende que “serviço” é espécie do gênero “trabalho”, o qual corresponde a todo esforço humano, considerado de forma ampla e genérica. Serviço é, no entanto, a espécie de trabalho (fazer) desenvolvido sempre em proveito de outrem, nunca em favor do próprio prestador. Com efeito, ainda que seja possível dizerse que se fez um trabalho para si mesmo, não é possível afirmar-se que se prestou um serviço a si próprio. Dizendo de outra forma, “[...] pode haver trabalho, sem que haja relação jurídica, mas só haverá serviço no bojo de uma relação jurídica”.566 Somente existirá prestação de serviços, passível de incidência do ISS quando houver um negócio jurídico mediante o qual uma parte (prestador) obriga-se a fazer algo em face de outra (tomador), o qual, por sua vez, assumirá a obrigação de pagar determinada retribuição (preço).567 Faz-se necessário, portanto, que haja as figuras do tomador e do prestador, ambos vinculados por uma relação jurídica de direito privado, onde a atividade humana de prestar o serviço é o objeto do negócio realizado entre as partes. A doutrina não discorda a esse respeito. JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, nesse caminho, esclarece que “O cerne da materialidade da hipótese de incidência do imposto em comento não se circunscreve a ‘serviço’, mas a uma ‘prestação de serviço’, compreendendo um negócio (jurídico) pertinente a uma obrigação de ‘fazer’, de conformidade com os postulados e diretrizes do direito privado”.568 A menção da doutrina à obrigação de “fazer”, apesar de em um primeiro momento parecer de fácil compreensão, já que quem presta um serviço está “fazendo 566 ISS na Constituição..., op. cit., p. 29. BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 194. 568 ISS..., op. cit., p. 33. 567 221 algo”, revela-se de extrema importância quando a prestação do serviço envolver também um “dar”, o que pode dificultar o enquadramento em uma ou outra espécie obrigacional, com reflexos no que tange à competência tributária. As modalidades – dar, fazer e não-fazer – serão tratadas no subitem seguinte, como instrumental a definir os limites em que um contrato pode ter sua respectiva obrigação considerada como de “fazer”, o que insere esse fato jurídico na competência tributária municipal, através da incidência ISS. Ainda que a Constituição não preveja explicitamente a expressão “prestar serviços”, resulta de seu contexto que só é tributável a prestação de um serviço, e não o seu consumo, fruição, ou utilização, o que cabe ao tomador do serviço. Quando a Constituição, ao distribuir as competências tributárias, descreve uma materialidade, está referindo-se à pessoa produtora do fato. AIRES BARRETO adverte que “[...] caso se pretenda entender como tributável a fruição do serviço então, como visto, o sujeito já será outro e a própria figura já deixará de ser aquela constitucionalmente contemplada. O consumidor é o tomador do serviço; nem sempre, nem necessariamente revela – recebendo-o, fruindo-o ou o consumindo – qualquer capacidade contributiva. É o caso da pessoa que tem que recorrer, entre tantos outros, a um barbeiro, a um advogado, a um médico”.569 Inegável que, do ponto de vista econômico e político, a Constituição, visando melhor implementar o cânone da Capacidade Contributiva, mereceria reforma nesse sentido. Como lembra MARCO AURÉLIO GRECO, a noção de serviço foi formulada devido à colocação da tônica impositiva na atividade realizada, ou seja, no esforço humano exercido por alguém. “A idéia de atividade é tão nítida a ponto de vivermos, no âmbito tributário, sob um regime de lista de atividades (‘serviços’)...”.570 Adverte o autor, entretanto, que o mundo moderno tem mostrado que a atividade não é mais o único elemento relevante para definir os valores das negociações realizadas, pois se a análise do prisma do produtor resultou na verificação da atividade exercida como elemento relevante para fins tributários, a análise feita do ângulo do cliente leva ao surgimento de uma outra figura, a utilidade. Justifica o autor: “Muito freqüentemente, as pessoas dispõem-se a pagar determinada remuneração não pela natureza ou dimensão da atividade exercida pela outra pessoa, mas, principalmente, 569 570 ISS na Constituição..., op. cit., p. 32. GRECO, Marco Aurélio. Internet e direito, p. 96. 222 pela utilidade que vão obter. O valor não está mais apenas na atividade do prestador, mas também na utilidade obtida pelo cliente”.571 Com base nesse entendimento, concorda-se, sob uma perspectiva pré-jurídica, com a tese de MARCO AURÉLIO GRECO572; pela qual “[...] utilizar o conceito de serviço (como expressivo de uma atividade) para fins de qualificação da matéria tributável é também deixar à margem da tributação significativa parcela da atividade econômica exercida no mercado e que é formada pelo fornecimento de utilidades, no mais das vezes imateriais e que resultam de atividades novas, não alcançadas pelo conceito tradicionalmente utilizado”.573 O exemplo dado pelo autor é o do home banking, onde todos os custos – equipamentos de acesso, ligações telefônicas etc. – e atividades – como a de digitação – são por conta do usuário, o qual ainda paga para utilizar o “banco em casa”. Verifica-se que a relevância nesse caso não está na atividade exercida, nem em seu custo, mas a utilidade obtida, consistente em poder realizar operações bancárias sem precisar deslocar-se até uma agência. Por outro giro, esse raciocínio é relevante como fundamento para responder às questões relacionadas com o problema da definição do critério espacial do ISS, como sublinha o próprio autor: “[...] cumpre ter presente que o serviço pode ser visto sob a ótica da atividade ou da utilidade o que traz profundos reflexos na identificação do local da respectiva prestação” [sic];574 o que será analisado posteriormente.575 Da interpretação sistemática da Constituição também resulta serem intributáveis pelo ISS os serviços públicos. Segundo MARÇAL JUSTEN FILHO, os serviços juridicamente relevantes estão divididos em dois grandes grupos: os regidos pelo Direito Público e os regidos pelo Direito Privado. No primeiro grupo estão os serviços públicos, prestados pelo Estado à comunidade – ou por agentes privados em seu nome, o que não lhes retira a natureza pública – e aqueles prestados por funcionários públicos ao Estado. 571 Ibidem, p. 96. São relevantes neste aspecto os argumentos defendidos por MARCO AURÉLIO GRECO: “As novas realidades apontadas no texto sugerem um ajustamento da definição constitucional de competências em razão dos avanços trazidos pela tecnologia e pela complexidade do mundo moderno, a fim de atender aos ditames da justiça fiscal pois, se os conceitos constitucionais utilizados para fins de tributação não acompanharem a dinâmica do surgimento de novas realidades, significativas manifestações de capacidade contributiva deixarão de ser alcançadas” – Ibidem, p. 97. 573 Ibidem, p. 96. 574 Ibidem, p. 96-97. 575 Vide infra, subitem 4.3.3. 572 223 Como a espécie imposto, na classificação dos tributos defendida por GERALDO ATALIBA, está entre os tributos não-vinculados a uma atuação estatal referida ao contribuinte, a prestação de serviço público não pode estar no aspecto material do ISS, devendo ser tributado através de taxa, que é tributo vinculado.576 Além disso, caso fosse possível tributar o serviço público, ocorreria o absurdo de um município tributar um serviço prestado por ele próprio – confusão na relação jurídica. E se o serviço fosse prestado por outra pessoa política, incidiria a imunidade do artigo 150, VI, “a”, da Constituição Federal de 1988. Caso o sujeito passivo seja o beneficiário do serviço, incidiria, portanto, o óbice que exige a tributação desse fato somente através de taxa.577 Ressalte-se que o regime jurídico aplicável a um serviço nada tem a ver com a natureza da pessoa que o executa. É indiferente, assim, seja o serviço prestado pelo Poder Público ou por particulares em seu nome para que um serviço seja qualificado como público e, como resultado, seja considerado imune ao ISS. A titularidade do serviço, em tais casos, continua sendo do Estado, assim como o poder de disciplinar as condições em que serão prestados. “O concessionário atua perante terceiros como se fosse o próprio Estado”.578 É que a imunidade recíproca, quanto aos serviços públicos, não tem por fim proteger o ente público, mas o próprio cidadão, posto o artigo 150, VI, “a”, da Constituição ser claro ao dispor que “[...] imune é o serviço do ente público e não o serviço prestado pelo ente público”, como bem sintetiza OCTÁVIO CAMPOS FISCHER579. Esse também o entendimento de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELLO.580 O raciocínio oposto também é válido, pois se um ente estatal vier a prestar um serviço regido pelo Direito Privado – regido, portanto, pela igualdade das partes contratantes e pela autonomia de suas vontades – iniludivelmente essa atividade sofrerá a incidência automática da norma tributante municipal. Lembre-se ainda, que, ontologicamente, serviço público pressupõe a existência de um interesse público primário, a ser satisfeito por ele (serviço), interesse esse que é considerado igual ou até mesmo superior ao interesse secundário do Estado na tributação. Os argumentos são os 576 Hipótese..., op. cit., p. 130-131. JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 79-80. 578 JUSTEN FILHO, Marçal. Concessão de serviços públicos, p. 66. 579 A tributação dos serviços..., op. cit., p. 470-471. 580 Inconstitucionalidades da LC n. 116/2003. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 308-309. 577 224 mesmos também com relação aos serviços públicos prestados por particulares, mediante concessão ou permissão, pois nesses casos os serviços continuam sendo públicos, já que o que se concede ou permite é a execução do serviço, e não o próprio serviço. Não restam dúvidas, portanto, de que os serviços públicos – desde que específicos e divisíveis – serão sempre remunerados através da espécie tributária taxa, quer sejam prestados diretamente pelo próprio Estado, quer sejam prestados, mediante concessão ou permissão, por particulares, conforme ratifica, inclusive, o artigo 145, II, da Constituição, pelo qual “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir: [...] taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”.581 JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELLO582 e ROQUE ANTONIO CARRAZZA583 possuem o mesmo entendimento. Não procede, dessa forma, o pensamento daqueles que vêem a tarifa, também chamada impropriamente de “preço público”, como contrapartida na remuneração dos serviços públicos. É que o vocábulo “preço” indica a contrapartida de uma obrigação voluntária, regida pelo Direito Privado, em especial pelo princípio da autonomia da vontade. A expressão “preço público”, portanto, indica uma “contradictio in terminis”, pois se é preço, não pode estar sujeito ao regime jurídico público, e se o serviço é público, não pode ser remunerado por preço. Os serviços públicos, portanto, somente ensejam a cobrança de taxa, nunca de preço, sejam os de utilização compulsória, cuja simples disponibilidade enseja a cobrança de taxa, sejam os de utilização facultativa, em que somente os efetivos usuários poderão ser considerados sujeitos passivos dessa espécie tributária, pois, em qualquer caso, os destinatários do serviço não têm liberdade para discutir as regras aplicáveis na respectiva prestação. O serviço público é, com efeito, res extra commercium. MARÇAL JUSTEN FILHO defende, com propriedade, que, por ser o prestador o destinatário constitucional tributário, somente ele pode ser o sujeito passivo, sob pena de ofensa à Constituição, do que decorre que, tributar a prestação de serviço por funcionário público, seria tributar a própria atividade do Estado, pois a 581 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 53-54. Inconstitucionalidades..., op. cit., p. 307. 583 Inconstitucionalidades dos itens 21 e 21.1, da lista de serviços anexa à LC n. 116/2003. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 363. 582 225 atividade do funcionário é do Estado, e não prestada ao Estado. Com efeito, conclui que o serviço a que alude a Constituição para fins de ISS “[...] deve ser entendido como prestação de utilidade de qualquer natureza, efetuada sob regime de Direito Privado”.584 Esse também é o entendimento de AIRES BARRETO, para quem o conceito de serviço tributável, para fins de ISS, é um conceito de Direito Privado.585 Como a competência tributária é outorgada de forma originária, completa e rígida pela Constituição Federal, é de rigor concluir que os conceitos jurídicos, por ela utilizados, para definir as respectivas faixas de competência, não podem ser alterados pelo legislador infraconstitucional, seja o complementar ou o ordinário. Do contrário, restariam destruídas a rigidez, a privatividade e a exaustividade da discriminação das competências, marcas características de nosso sistema constitucional tributário, pela simples alteração, pelo legislador infraconstitucional, da definição, conteúdo ou alcance dos conceitos de Direito Privado, utilizados, expressa ou implicitamente pela Constituição, para definir as competências tributárias.586 Apesar desse entendimento defluir naturalmente do próprio texto constitucional, o artigo 110 do Código Tributário Nacional estabelece que “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Embora esse dispositivo seja, em rigor, tecnicamente desnecessário, a importância do seu conteúdo torna relevante a lembrança, levada a cabo em disposição de bom cunho didático. AIRES BARRETO, após partir de uma divisão – existente de forma abstrata na própria Constituição – dos fatos jurídicos tributários em fatos puros, ou “fatos em si mesmo”, e fatos decorrentes de atos jurídicos, distinguindo-se ambos pela verificação da existência direta de uma relação obrigacional nos segundos – como é o caso dos fatos tributários do imposto de circulação de mercadorias, imposto de importação, exportação etc. – e inexistência dela entre os primeiros – como ocorre com o imposto de renda, sobre a propriedade etc. – conclui que, entre os segundos, a obrigação que envolve o fato será inevitavelmente ou de “dar” ou de “fazer”. 584 O imposto..., op. cit., p. 80. ISS na Constituição..., op. cit., p. 33. 586 Idem. 585 226 Entre as obrigações positivas, a respectiva prestação pode ser de coisas, entrega de um bem, ou de fatos, atividade do devedor. O autor usa esse raciocínio como premissa para demonstrar que o contrato de locação, por exemplo, por ter como objeto da respectiva obrigação, para o locador, uma prestação de coisa, qual seja a de ceder, mediante a contrapartida da remuneração paga pelo locatário, o direito de uso do bem móvel ou imóvel, durante o prazo previamente estipulado, não se confunde em nada com prestação de fato – inerente às obrigações de fazer – já que não se vislumbra no caso qualquer atividade, esforço pessoal, do próprio locador.587 Serão inconstitucionais, portanto, as leis municipais que, ampliando o conceito constitucional de “serviços”, pretenderem tributar, pela via do ISS, a locação, seja de que espécie de bem for, móvel ou imóvel, pois resta claro que tal materialidade não está prevista no rol exaustivo das passíveis de serem tributadas pelos municípios e pelo Distrito Federal por aquele imposto, ainda que a legislação municipal esteja lastreada em lei complementar editada com suporte no inciso III do artigo 156 da Constituição, quando então a lei complementar é que estará contaminada pelo vício da inconstitucionalidade.588 Como conseqüência, também há a violação do já citado artigo 110 do Código Tributário Nacional, acima transcrito. Como a cessão onerosa do uso e gozo de alguma coisa não fungível também não está prevista na competência tributária dos Estados, conclui-se ser a locação uma materialidade incluída na esfera da competência residual da União Federal, conforme estabelece o artigo 154, I, da Constituição Federal. 589 AIRES BARRETO defende, ainda, alternativamente, que, devido à remuneração da locação ser definida como “aluguel” ou “renda”, a tributação desse fato pelos municípios implicaria também invadir a competência da União Federal em relação ao imposto sobre a renda, prevista no artigo 153, III, da Carta Constitucional.590 Discorda-se, contudo, desse segundo 587 Ibidem, p. 157-158. Foi o que ocorreu com a inclusão do item nº 3 e de seus subitens 3.01, 3.03, 3.04 e 3.05, na lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003: “3 – Serviços prestados mediante locação, cessão de direito de uso e congêneres. 3.01 – (VETADO). 3.02 – Cessão de direito de uso de marcas e de sinais de propaganda. 3.03 – Exploração de salões de festas, centro de convenções, escritórios virtuais, stands, quadras esportivas, estádios, ginásios, auditórios, casas de espetáculos, parques de diversões, canchas e congêneres, para realização de eventos ou negócios de qualquer natureza. 3.04 – Locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza. 3.05 – Cessão de andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas de uso temporário”. 589 O artigo 565 do Código Civil dispõe que “na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição”. 590 ISS na Constituição..., op. cit., p. 159. 588 227 ponto de vista, uma vez que o argumento somente procede do aspecto econômicofinanceiro, já que, do ponto de vista jurídico, as atividades de “locar coisa” e “auferir renda” são distintas. Ilegítima, com efeito, é a pretensão de entender válidas as leis complementares federais ou as leis municipais que, em desrespeito à Constituição, defendem a possibilidade de tributar os chamados “serviços por definição legal”, como se o legislador gozasse de alguma discricionariedade em construir os conceitos das materialidades, já definidas de forma definitiva no texto, e no contexto, constitucionais. AIRES BARRETO lembra que, em muitos casos, esse equívoco também teria tido origem na circunstância de o Código Civil anterior ter disciplinado a locação de coisas (artigo 1.188) no mesmo capítulo que a locação de serviços (artigo 1.216), gerando o erro de tributar, pelo mesmo imposto, toda e qualquer locação.591 Posteriormente à entrada em vigor da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal, influenciado pela doutrina que defendia o conceito jurídico de serviço como o único válido, voltou a apreciar a questão, tendo decidido, no Recurso Extraordinário 116.121-3/SP, julgamento em sessão plenária de 01 out. 2000, pela inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a “locação de bens móveis”, atividade que constava como serviço na lista anexa ao Decreto-lei n 406/68. O fundamento da decisão baseou-se no entendimento de que o “serviço” passível de sofrer a incidência do ISS só pode ser aquele entendido em sua acepção jurídica, ou seja, como um negócio jurídico, pelo qual se obriga a fazer algo tendo como contrapartida o direito ao recebimento de uma determinada retribuição.592 Esse posicionamento teve o efeito de consolidar o entendimento do Supremo Tribunal Federal nesse assunto, como se pode ver na decisão proferida no Agravo de Instrumento n 485.707/DF, onde o Ministro Carlos Velloso, vencido no julgamento do referido recurso, reconhece o atual posicionamento do Tribunal e conclui ser impossível contrariar a decisão cristalizada pelo Pleno.593 A nova trilha seguida pelo Supremo 591 Ibidem, p. 160. Ementa: “TRIBUTO - FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS - CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável - artigo 110 do Código Tributário Nacional” – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 593 DJ de 10 dez. 2004 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 592 228 Tribunal Federal acabou por influenciar o Presidente da República, que, ao sancionar a Lei Complementar n 116/2003, vetou o item n 3.01 da nova lista de serviços – “locação de bens móveis” – com o que foi prestigiada a jurisprudência dominante na Excelsa Corte, conforme se vê em suas razões de veto, constantes da Mensagem n° 362, de 31 jul. 2003.594 Em que pese a iniciativa do Presidente da República, entende-se que mais louvável seria o veto ter sido estendido a todos os serviços constantes nos subitens do item 3 da lista, pois todos são inconstitucionais quando confrontados com os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal, ou seja, todos configuram execução de uma obrigação de dar, e não de fazer. É que, infelizmente, e em razão dos limites decisórios do respectivo recurso extraordinário, a decisão da Suprema Corte limitou-se à declaração de inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a locação de bens móveis. Também entendendo pela inconstitucionalidade de todos os subitens do item 3 da lista, estão CLÉLIO CHIESA595, GABRIEL LACERDA TROIANELLI e JULIANA GUEIROS596, HUMBERTO ÁVILA597, e HUGO DE BRITO 594 “Verifica-se que alguns itens da relação de serviços sujeitos à incidência do imposto merecem reparo, tendo em vista decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. São eles: O STF concluiu julgamento de recurso extraordinário interposto por empresa de locação de guindastes, em que se discutia a constitucionalidade da cobrança do ISS sobre a locação de bens móveis, decidindo que a expressão ‘locação de bens móveis’ constante do item 79 da lista de serviços a que se refere o Decreto-Lei no 406, de 31 de dezembro de 1968, com a redação da Lei Complementar no 56, de 15 de dezembro de 1987, é inconstitucional (noticiado no Informativo do STF no 207). O Recurso Extraordinário 116.121/SP, votado unanimemente pelo Tribunal Pleno, em 11 de outubro de 2000, contém linha interpretativa no mesmo sentido, pois a ‘terminologia constitucional do imposto sobre serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo a contrato de locação de bem móvel. Em direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprios, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável.’ Em assim sendo, o item 3.01 da Lista de serviços anexa ao projeto de lei complementar ora analisado, fica prejudicado, pois veicula indevida (porque inconstitucional) incidência do imposto sob locação de bens móveis. O item 13.01 da mesma Lista de serviços mencionada no item anterior coloca no campo de incidência do imposto gravação e distribuição de filmes. Ocorre que o STF, no julgamento dos RREE 179.560-SP, 194.705-SP e 196.856-SP, cujo relator foi o Ministro Ilmar Galvão, decidiu que é legítima a incidência do ICMS sobre comercialização de filmes para videocassete, porquanto, nessa hipótese, a operação se qualifica como de circulação de mercadoria. Como conseqüência dessa decisão foram reformados acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que consideraram a operação de gravação de videoteipes como sujeita tão-somente ao ISS. Deve-se esclarecer que, na espécie, tratava-se de empresas que se dedicam à comercialização de fitas por elas próprias gravadas, com a finalidade de entrega ao comércio em geral, operação que se distingue da hipótese de prestação individualizada do serviço de gravação de filmes com o fornecimento de mercadorias, isto é, quando feita por solicitação de outrem ou por encomenda, prevalecendo, nesse caso a incidência do ISS (retirado do Informativo do STF no 144). Assim, pelas razões expostas, entendemos indevida a inclusão destes itens na Lista de serviços.” 595 O imposto sobre serviços de qualquer natureza e aspectos relevantes da lei complementar nº 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 71. 596 O ISS e a lei complementar nº 116/03: aspectos polêmicos da lista de serviços, in ibidem, p. 116-117. 229 MACHADO598, acrescendo, este último autor, com razão, que, pelas mesmas razões também se afigura inconstitucional o item 15.03 da lista.599 Conforme ensina ORLANDO GOMES, todos os contratos que têm por objeto uma prestação de trabalho também estão compreendidos entre as obrigações de fazer, sendo a expressão “trabalho” aqui utilizada em sentido lato, abrangendo tanto o contrato de prestação de serviços propriamente dito, como o contrato regido pela legislação trabalhista, o qual se destacou do Direito Civil, passando a ser regulado pelo Direito do Trabalho. Aplicam-se as regras da locação de serviços às formas de prestação de serviço que não mais se identificam com o conceito legal de contrato de trabalho, seja pela ausência de subordinação, seja pela de continuidade, ou ainda pelo fim da atividade do trabalhador. Entretanto, por entender que a denominação “locação de serviços” é inconveniente e imprópria, defende que “[...] todos os contratos não subordinados à legislação do trabalho podem ser enfeixados na rubrica comum de contratos de prestação de serviços”.600 MARÇAL JUSTEN FILHO também prestigia essa importante distinção, ensinando que os serviços regidos pelo Direito Privado abrangem duas grandes categorias: a dos serviços sujeitos ao regime trabalhista e dos serviços não sujeitos a ele: “A sujeição ao regime trabalhista apura-se através dos critérios fornecidos pelo artigo 3º da CLT – ou seja, prestação de serviços de natureza não-eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário. É o serviço do ‘empregado’, do ‘trabalhador’”, excluído da incidência do ISS pela maioria da doutrina, o que é aceito por esse autor, não pelo argumento da invocação do artigo 10, parágrafo único do Decreto-lei n° 406/68, que dispõe não serem contribuintes os trabalhadores que prestam serviço sob relação de emprego, mas sim pela invocação à terminologia técnica. 601 É que, “[...] ainda que se tome a expressão prestação de serviço em acepção ampla, opõe-se ela à prestação de trabalho debaixo de vínculo empregatício”, ou seja, “[...] juridicamente a alusão a serviço não abrange emprego”.602 597 O imposto sobre serviços e a lei complementar nº 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 171-172. 598 O ISS e a locação ou cessão de direito de uso. In ibidem, p. 134-136. 599 “Locação e manutenção de cofres particulares, de terminais eletrônicos, de terminais de atendimento e de bens e equipamentos em geral.” 600 Contratos, p. 322-323. 601 O imposto..., op. cit., p. 81. 602 Idem. 230 Cientificamente, a questão relaciona-se com a materialidade da hipótese de incidência, e não com a qualificação do contribuinte, além de ser grave equívoco interpretar a Constituição conforme a lei complementar. Cabe aqui o argumento relativo ao serviço do funcionário público, apesar de as situações não serem idênticas, ou seja, empregado não desempenha atividade de órgão do empregador. Externamente, a atividade do empregado é atividade do empregador, pois não tem autonomia. Outro argumento relevante está em que, na prestação de serviço mediante vínculo de emprego, o conteúdo econômico da relação do empregador com o seu empregado tem inequívoca essência alimentar, assim como essa relação é marcada pela subordinação. A Constituição é clara ao distinguir a prestação de trabalho, regulada em nível infraconstitucional pela Consolidação das Leis do Trabalho, da prestação de serviço de que trata o inciso III do artigo 156 da Constituição, disciplinada pelo Direito Civil.603 Após considerar vários aspectos, AIRES BARRETO conceitua o serviço tributável pelos Municípios como sendo “[...] o desempenho de atividade economicamente apreciável, sem subordinação, produtiva de utilidade para outrem, sob regime de direito privado, com fito de remuneração, não compreendido na competência de outra esfera de governo”.604 Decompondo as partes desse conceito, esclarece o autor que (a) “desempenho de atividade” significa tratar-se de um comportamento humano; (b) “economicamente apreciável”, que deve ter conteúdo econômico; (c) “produtiva de utilidade”, que o resultado deva ser útil, ou seja, desejável pelo tomador; (d) “para outrem”, que deve haver a figura do tomador do serviço ao lado do prestador, completando uma relação jurídica, como essência de um contrato de prestação de serviços; (e) “sem subordinação”, pois caso contrário o que haverá é uma relação de emprego, dentro de um contrato de trabalho, ou uma relação institucional de serviço público (estatutário); (f) “sob regime de.direito privado”, pois se o regime for de direito público, o serviço também passará a ser público, o que atrai a imunidade relativa a impostos. Deve prevalecer a autonomia da vontade (contratual), inexistente no serviço público; (g) “com fito de remuneração”, já que o serviço tributável somente é aquele prestado tendo uma remuneração como contrapartida; (h) “não compreendido na competência de outra 603 604 BARRETO, Aires Fernandino. O ISS na Constituição..., op. cit., p. 60. Ibidem, p. 35. 231 esfera de governo”, o que se conclui tão-somente pela rígida demarcação constitucional que atribui certos serviços também aos Estados e ao Distrito Federal. 605 Entende-se também que, por força da materialidade do ISS consistir em “prestação de serviços”, disso decorre que não basta a existência isolada de um contrato, estabelecendo a obrigatoriedade da prestação, para que se tenha por concretizada a hipótese de incidência desse imposto. Quer se afirmar que não é possível considerar como critério material do ISS a mera prestação potencial de serviço, pois nenhum serviço, nesses casos, terá sido prestado. O mesmo diga-se dos serviços de competência dos estados e do Distrito Federal. O ISS e o ICMS, portanto, não são impostos que incidem sobre atos jurídicos isolados, mas sim sobre fatos jurídicos que se subsumem às hipóteses de incidência criadas dentro dos ditames constitucionais. Não obstante ser a relação jurídica negocial essencial à configuração do fato jurídico tanto do ISS, como do ICMS, ela não é o próprio fato jurídico tributário, mas tão-somente aspecto que lhe é integrante. Aqui, cabe a advertência, feita com propriedade, por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES: Como a CF autoriza sejam gravadas as prestações de serviços concretamente ocorridas, ou – o que é o mesmo – os serviços efetivamente prestados – as prestações potenciais de serviços não compõem o âmbito material de validade da lei municipal instituidora do ISS. [...] Se a exigência decorre reversamente de aplicação da lei municipal em sede administrativa, a inconstitucionalidade estaria a fortiori caracterizada. Porque nesses termos inconstitucional seria a aplicação de lei constitucional. É dizer: viciado por inconstitucionalidade mostrar-se-ia o ato de aplicação da lei tributária material ao caso concreto.606 Por fim, com relação ao ISS ser, ou não, um imposto cumulativo, entende-se, com fundamento no raciocínio de ELIZABETH NAZAR CARRAZZA que, pela certeza de o ISS incidir sobre o fato material da prestação de serviços, e não sobre a relação jurídica a ele relativa, não há que se falar em incidência múltipla. Também não resulta conclusão em contrário do fato de ser possível a prestação de um serviço em etapas e, como tal, passível de desdobramento, para efeito de tributação. Caso se defenda o contrário, o que se estaria tributando seria a relação jurídica subjacente à prestação do serviço, e não o fato da prestação do serviço, em si mesmo considerado, conforme revela a materialidade prevista constitucionalmente. É de notar- 605 606 Ibidem, p. 35-36. Inconstitucionalidade e ilegalidade da cobrança do ISS sobre contratos de assistência médicohospitalar. Revista de Direito Tributário, n. 38, p. 170. 232 se, inclusive, que, se assim fosse, em muitos casos onde a prestação não chega a concretizar-se, haveria a incidência sobre o negócio jurídico já entabulado.607 4.3.1.1 Natureza jurídica da obrigação Como a prestação de serviços que interessa para o ISS é aquela realizada mediante um negócio jurídico, no âmbito do direito privado, é imprescindível trazer os conceitos alusivos às espécies de obrigações. A importância também se justifica pelo fato de o Direito Tributário ser considerado um “direito de superposição”, pois as hipóteses de incidência dos tributos, de uma forma geral, são construídas sobre conceitos originários de outros ramos do direito, como o Civil, o Comercial, o Trabalhista etc. O conceito das espécies de obrigações – “dar”, “fazer” e “não fazer” – é dado pela Teoria Geral das Obrigações, no âmbito do direito privado. A doutrina está de acordo em consistir a prestação, como objeto de uma obrigação jurídica, em um dar – coisa certa ou incerta – fazer ou não fazer alguma coisa – dare, facere e non facere. As duas primeiras, dar e fazer, constituem prestações positivas – ações, atos comissivos – enquanto que a última – não fazer – implica prestações negativas – abstenções, atos omissivos. Desde já é imperioso consignar que, na análise da hipótese do ISS, estão de fora as obrigações de não-fazer (prestações negativas), pois se a prestação de serviço se consubstancia em um esforço físico ou intelectual, produtor de uma utilidade em proveito alheio, um “não-fazer” nunca poderá enquadrar-se como serviço, ainda que produza proveito econômico em benefício do credor.608 A análise dessa questão, portanto, revela-se de grande importância nesse estudo, com destaque para a definição dos limites em que incide o ISS, separando-os das fronteiras da incidência do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados – e do ICMS – Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre prestações de Serviços de Transporte interestadual e intermunicipal e de Comunicação. SILVIO RODRIGUES ensina que “[...] a obrigação de dar consiste na entrega de alguma coisa, ou seja, na tradição de uma coisa pelo devedor ao credor”, e desdobra-se em obrigação de dar coisa certa ou incerta, ou ainda, sob um segundo 607 608 Natureza “Não Cumulativa” do ISS. Revista de Direito Tributário, n. 19/20, p. 256-257. JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 90. 233 critério, em obrigação de dar, propriamente dita, e obrigação de restituir. 609 Esta última, como o próprio nome indica, é identificada pela existência de uma devolução, como ocorre com a obrigação do comodatário ou depositário. Na obrigação de “dar coisa certa”, o devedor compromete-se a entregar um objeto perfeitamente determinado em sua individualidade, como um quadro famoso, por exemplo. Por outro lado, na obrigação de “dar coisa incerta”, o objeto é a entrega de coisa não individualizada, mas, considerada no gênero a que pertence, como, por exemplo, a “obrigação de entregar quinhentas sacas de café”.610 No mesmo sentido, o pensamento de ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO611 e WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO612. O objeto das obrigações também pode ser classificado em prestações de coisas, que abrange as obrigações “de dar”, “de entregar” e “de restituir”, ou prestações de fatos, as quais englobam tanto os fatos “positivos” como os “negativos”. As prestações de fatos consistem em atividade pessoal do devedor, como é exemplo o contrato de prestação de serviços, que produz obrigação “de fazer”.613 No entanto, ocorre que nem sempre as obrigações são exclusivamente “de dar” ou “de fazer”, pois é comum haver a reunião, em uma mesma obrigação, de prestações de coisas e de fatos, como ensina ORLANDO GOMES. Nesses casos, o autor esclarece que a classificação em uma ou outra espécie obrigacional ocorrerá pela predominância de uma sobre a outra, e exemplifica com o contrato de empreitada, onde a atividade pessoal do empreiteiro pode ser mais ou menos relevante do que o fornecimento de materiais. No primeiro caso, restará configurada uma empreitada de lavor, pela predominância da prestação de fatos; na segunda hipótese, predomina a prestação de coisas, equiparando-se, por essa razão, até mesmo à compra e venda.614 A distinção entre as obrigações “de dar” e “de fazer”, para o referido autor, deve ser feita com base no interesse do credor, posto que as prestações de coisas pressupõem uma determinada atividade pessoal do devedor, e muitas prestações de fatos exigem uma dação: “Nas obrigações de dar, o que interessa ao credor é a coisa que lhe deve ser entregue, pouco lhe importando a atividade do devedor para realizar a 609 Direito civil: parte geral das obrigações, p. 19. Ibidem, p. 19-20. 611 Teoria geral das obrigações, p. 55-56. 612 Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações, v. 4, 1ª parte, p. 55-56. 613 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, p. 83-84. 614 Obrigações, p. 46. 610 234 entrega. Nas obrigações de fazer, ao contrário, o fim é o aproveitamento do serviço contratado. Se assim não fosse, toda obrigação de dar seria de fazer, e vice-versa”.615 WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, sob uma outra perspectiva, baseada na relação de causa e efeito, também explica a diferença entre uma e outra: “O substractum da diferenciação está em verificar se o dar ou o entregar é ou não conseqüência do fazer. Assim, se o devedor tem de dar ou de entregar alguma coisa, não tendo, porém, de fazê-la previamente, a obrigação é de dar; todavia, se, primeiramente, tem ele de confeccionar a coisa para depois entregá-la, se tem ele de realizar algum ato, do qual será mero corolário o de dar, tecnicamente a obrigação é de fazer”.616 Sob a mesma óptica é o entendimento de CARLYLE POPP, o qual é claro ao afirmar que as obrigações de fazer “[...] constituem-se na prestação de atos de natureza física ou intelectual, fática ou jurídica”, sendo tal espécie de obrigação “[...] calcada naqueles negócios preparatórios, dependentes de uma manifestação de vontade (fazer) futura”. Adverte, porém, o autor, que nem sempre é fácil estabelecer uma devida distinção entre as obrigações de dar e as de fazer, devendo o critério de eleição ser o da causa e efeito: “Se o dar é conseqüência de um fazer, então deste tipo é o vínculo obrigacional. Se, todavia, não é assim, trata-se de um dar”. 617 ORLANDO GOMES esclarece, ainda, quanto à existência de situações em que o “fazer” está vinculado a uma obrigação de meio, e aquelas em que é objeto de uma obrigação de resultado. Dentre as últimas, há as que configuram empreitada, que, em princípio, são aquelas nas quais a atividade consiste na realização de uma obra material, propriamente dita. A título de ilustração, não há como incluir, entre obras materiais, a resposta a uma consulta, emitida, por exemplo, por um médico ou advogado. É que o resultado esperado em casos como tais é imprevisível, inseguro, não sendo possível saber, a priori, se será eficaz, e a remuneração será devida em qualquer caso, donde a invocação à expressão “obrigação de meio”.618 A esta última espécie contratual, o autor denomina de contrato de prestação de serviços “stricto sensu”, ao qual designa como o “[...] contrato mediante o qual uma pessoa se obriga a prestar um serviço a outra, eventualmente, em troca de determinada remuneração, executando-os com independência técnica e sem subordinação 615 Idem. Curso..., op. cit., 87. 617 Execução de obrigação de fazer, p. 87. 616 235 hierárquica”.619 Com efeito, o prestador, nessa qualidade, não executa o serviço contratado sob a direção do tomador, assim como é ele quem define, com liberdade, quais os métodos e qual a técnica a ser utilizada. Verifica-se que essa independência técnica, em muitos casos, é resultado da independência econômica do prestador. A remuneração a que tem direito é, em geral, definida como honorários. A análise até aqui realizada, acerca das espécies de obrigações jurídicas, extraída da doutrina civilista, tem, por objetivo, servir de auxílio ao correto delineamento da tributação que incidirá sobre as operações jurídicas que envolvam a prestação de serviços abrangidos na competência dos municípios, para apartá-las de outras operações jurídicas, destinadas à competência tributária das demais pessoas políticas – Estados e União Federal – como as que exigem, por exemplo, a circulação de mercadorias ou a operação com produtos industrializados. Identificando com precisão esta questão, AIRES BARRETO lembra que os particulares, usando de sua liberdade negocial, podem produzir fatos complexos, celebrando negócios que, em um só instrumento, podem abranger prestação de serviços e venda de mercadorias, pois é possível, juridicamente, distinguir os dois objetos, ainda que o interesse das partes seja global e uno. É imperioso estremar os dois objetos, “[...] a fim de sujeitá-los a um e outro ou a um ou outro, na exata medida das respectivas competências privativas”, pelo que o caminho a ser trilhado exige digressão em torno das obrigações de dar e de fazer, único compatível com o sistema constitucional de divisão de competências. Lembra o autor, no entanto, que há casos previstos pela doutrina, em que o dar e o fazer praticamente se confundem, tornando difícil a análise da efetiva natureza do vínculo obrigacional.620 Não basta a este estudo, entretanto, concluir que a prestação de serviços, a ser erigida em núcleo da hipótese de incidência do ISS, será sempre aquela cujo contrato envolver, de forma predominante, uma obrigação de fazer. Existem espécies de obrigação de fazer que não envolvem prestação de serviço, por não resultar a produção de uma utilidade mediante o esforço pessoal do obrigado, como é o exemplo da obrigação de prestar uma fiança. Com esse raciocínio, MARÇAL JUSTEN FILHO classifica as obrigações de fazer em dois grandes grupos, conforme a natureza da prestação e do resultado por ela produzido. No primeiro grupo, estariam as obrigações 618 Obrigações..., op. cit., 324-325. Ibidem, p. 325. 620 ISS na Constituição..., op. cit., 42-44. 619 236 de fazer cuja prestação consiste na realização de um novo negócio jurídico, pelo que seriam consideradas obrigações (de fazer) meio. No segundo grupo, onde estariam inseridas as relativas ao ISS, estariam as obrigações de fazer cuja prestação consiste numa atividade que, em si mesma, satisfaz ambas as partes, qualificáveis como obrigações (de fazer) fim. Nesse sentido, obrigação de fazer “[...] é aquela que envolve uma prestação onde o fundamental é uma atividade do devedor não consistente na entrega de um bem...”.621 4.3.1.2 Relações com o ICMS e o IPI A materialidade do ISS propicia grande possibilidade de conflitos de competência. Esses conflitos podem surgir com os próprios municípios entre si, quando então o atrito surgirá não por divergência de conceituação do fato tributário, mas, devido à falta de uma norma que possibilite, com razoável margem de segurança, definir qual de dois municípios é o competente para tributar um mesmo fato. Por outro lado, a atividade de prestar serviços pode suscitar conflitos com materialidades reservadas à competência tributária de outras pessoas políticas, ou seja, com os estados e/ou com a União Federal.622 Como o assunto deste subitem trata das relações do ISS com o ICMS e com o IPI, é essa última forma de conflito que será analisada neste momento. Os possíveis conflitos entre os municípios serão tratados no item seguinte. Nenhum outro imposto em nosso sistema jurídico, mesmo desde a vigência da Constituição anterior, tem possibilitado a existência de tantos conflitos como o ISS. Com exceção das situações em que é possível conceituar um serviço como “puro”, o que o inseriria dentro da chamada “zona de luminosidade” do conceito, muitas são as “zonas cinzentas” e áreas comuns, em razão de um número elevado de serviços que exigem a participação de materiais, insumos, como também não são raras transações com produtos industrializados ou com mercadorias em que o fornecedor (comerciante/industrial) tem, como pressuposto de sua obrigação de dar, um “fazer”, que lhe é anterior. 621 622 O imposto..., op. cit., p. 90-91. A União Federal é competente para tributar os serviços correspondentes às operações financeiras, mediante o imposto sobre “operações financeiras”, previsto no artigo 153, V, da Constituição. Devido à reduzida possibilidade de conflitos com o ISS, neste item somente serão analisados os conflitos com o ICMS e o IPI. 237 É nesse sentido que GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO ensinam que “[...] salvo o núcleo essencial do conceito de serviço, constitucionalmente referido, toda a sua periferia apresenta pontos de contato com a materialidade de impostos de competência dos Estados ou da União, de pontos que se tangenciam”.623 Embora essa afirmativa tenha sido feita na vigência da Constituição pretérita, continua perfeitamente válida, uma vez que nesse contexto já estavam inseridos tanto o IPI e o antigo ICM, existentes também no sistema tributário anterior. É exatamente onde estão situadas as denominadas “zonas cinzentas” do conceito do fato jurídico, passíveis de ensejar superposição do exercício de competências tributárias, a cujo respeito a lei complementar, de que trata o artigo 146, I, da Carta Magna, está legitimada a dispor sobre eventuais conflitos entre as pessoas políticas. AIRES BARRETO demonstra que a legislação complementar existente sobre prevenção de conflitos entre ICMS e ISS “[...] fixou, em área onde não há conflito, critérios que partem do erro palmar de não distinguir mercadorias e materiais”, conforme ilustram, por exemplo, o artigo 1º, § 3º, III, do Decreto-lei nº 406/68, com a redação dada pelo Decreto-lei nº 834/69, pelo qual não incide ICMS sobre mercadorias a serem utilizadas na prestação dos serviços ali indicados, ou que o tenham sido. Embora admita que, muitas vezes, é difícil discernir se, em um negócio, o preço do material está embutido no preço do serviço, não se admite, com razão, que essa dificuldade possa autorizar uma solução que resulte da equiparação jurídica dos vocábulos “material” e “mercadoria”.624 A lei complementar não está, portanto, autorizada a impor aos materiais e insumos, o regime tributário aplicável às mercadorias, assim como não lhe cabe estabelecer qual serviço poderá ser tributado pelos Estados, com exceção, logicamente, dos que lhes estão reservados explicitamente no artigo 155, II, da Constituição. É inafastável que a definição de um bem, como mercadoria, não resulta de suas características intrínsecas, mas no seu destino, pelo que só pode ser mercadoria o bem que é objeto de um ato mercantil, nunca aquele cuja finalidade é a de possibilitar uma prestação de serviço. 623 624 ISS – conflitos de competência..., op. cit., p. 54. ISS na Constituição..., op. cit., p. 234. 238 Destaca-se, na doutrina nacional, a classificação dos serviços, quanto à sua forma de prestação, levada a cabo por GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO, a qual pode ser resumida da seguinte forma: 625 a) serviços simples: o “fazer” é exclusivo ou dominante, não sendo possível, diante disso, qualquer conflito com o ICMS. Subdividem-se em: (a.1) serviços puros: consistem exclusivamente num esforço humano – intelectual e/ou físico – prescindindo do emprego de qualquer instrumental, como são exemplos a consulta médica, que prescinda também da utilização de qualquer material, ou a jurídica, em que seja desnecessária qualquer pesquisa ou escrito; e (a.2) serviços menos puros: são assim considerados por conjugarem o trabalho com o emprego de capital, como aparelhos, máquinas, equipamentos, instrumentos ou veículos, sem os quais os serviços não se realizam; b) serviços que envolvem a aplicação de materiais, em conjunto ou não com a utilização do instrumental a que se referem os serviços da letra “a” acima: tais materiais são indissociáveis ao próprio serviço, integrando-o, porém, na condição de meros ingredientes, insumos, componentes, o que os afasta de serem considerados mercadorias, porque não são, como essas, bens móveis destinados ao comércio. É o caso de um parecer jurídico, prestado mediante a utilização de papel e tinta para impressão; c) serviços associados ao fornecimento de materiais: ainda que a prestação do serviço e o fornecimento dos materiais formem uma unidade, essa não é incindível, podendo-se, no plano fático, distinguir uma e outra coisa, o que traz relevantes efeitos jurídicos. A dificuldade, portanto, está na identificação do predomínio do “dar” ou do “fazer”, onde a conseqüência, no primeiro caso, será a incidência de impostos como o ICMS estadual e/ou o IPI federal e, na segunda hipótese, a incidência do ISS. 626 Existe uma grande quantidade de serviços cuja execução exige o emprego de materiais, como elementos integrantes da própria prestação, ou ainda como condição 625 626 A classificação de GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO, porque realizada em 1978, exemplificava com o antigo “ICM”, como imposto a incidir no caso de predominar o “dar” na obrigação, pelo que adaptamos para o atual “ICMS”, advindo com a Constituição Federal de 1988, como também é nossa a inclusão do IPI neste item. ISS – conflitos de competência..., op. cit., p. 57-58. Essa classificação também foi exposta em outro artigo dos mesmos autores: ISS e ICM – conflitos. Revista de Direito Tributário, n. 11/12, p. 169171. 239 inafastável de seu desempenho. Nessas condições, o prestador do serviço não efetua a venda destes materiais, “[...] mas seu emprego ou aplicação como requisito necessário à prestação do serviço”, como elemento acessório, ensinam os autores. Esses materiais dissolvem-se na própria atividade, com ela confundindo-se, não havendo, por conseqüência, compra e venda de mercadorias. O efeito tributário, portanto, é o de que tal operação mantém-se no campo dos serviços tributáveis pelo ISS, salvo os serviços reservados aos Estados, no inciso II do artigo 155 da Constituição, não se configurando como circulação de mercadorias, cuja incidência cabe ao ICMS. 627 Daí a necessidade de distinção entre materiais – aplicados ou empregados na prestação de serviços – e mercadorias. Não há razão para discussões em torno do conceito jurídico de “mercadoria”, pois a melhor doutrina é unânime a esse respeito, só havendo a incidência de ICMS na hipótese de haver operação regulada pelo Direito Mercantil, tendo mercadoria por objeto, o que não é o caso dos materiais aplicados, usados ou empregados pelo prestador do serviço.628 ROQUE ANTONIO CARRAZZA ensina que, para o Direito, mercadoria (espécie) é o bem móvel (gênero) objeto de atividade mercantil – sujeito à mercancia – obedecendo, por força disso, ao regime jurídico comercial. Será mercadoria, portanto, o bem móvel da empresa integrado ao estoque e que seja destinado, conforme o caso, à venda ou à revenda, com intuito de lucro. É propriedade extrínseca do bem móvel a sua destinação ao comércio.629 Dizendo de outra forma, as operações mercantis – que têm as mercadorias por objeto – estão reservadas pela Constituição à competência dos Estados, e as operações de prestação de serviços couberam aos Municípios, salvo, é óbvio, quanto aos serviços expressamente atribuídos à competência estadual. O Distrito Federal, de acordo com os artigos 147 e 155, cumula as competências municipal e estadual. É importante ressaltar que essa repartição de competências é feita pela Constituição de modo rígido, não podendo ser modificada, seja por lei complementar ou por qualquer outra norma editada a esse título. É imperiosa, portanto, a distinção entre o fornecimento de coisa qualificável como mercadoria e a prestação de serviço que inclui material, do que resulta a classificação das coisas como meio e como fim, conforme ensina AIRES BARRETO: 627 ISS – conflitos de competência..., op. cit., p. 58. Ibidem, p. 59. 629 ICMS, p. 38-39. 628 240 Diante de operação mercantil a coisa é o objeto do contrato; sua entrega é a própria finalidade da operação. No caso de prestação de serviço a coisa é simples meio para a realização de um fim. A finalidade não é mais o fornecer ou entregar uma coisa, mas, diversamente, prestar um serviço, para o qual o emprego ou aplicação de coisas (materiais) é mero meio. [...] Verificável o primeiro objeto, só pode incidir ICMS. Diante do segundo, só cabe ISS.630 Entretanto, da necessidade de distinguir materiais de mercadorias, não cabe, necessariamente, concluir pela incidência de ISS sobre os gastos efetuados com materiais e que representam despesas de titularidade do tomador dos serviços, como parece ser o entendimento do referido autor. Como será melhor analisado no subitem dedicado à base de cálculo do ISS, o preço do serviço, como seu indicativo, somente pode ser entendido como a efetiva remuneração percebida como retribuição pelo serviço prestado, sob pena de ofensa à matriz constitucional do imposto municipal. A não identificação, como mercadorias, dos materiais empregados na prestação dos serviços, tem por objetivo afastar a incidência do ICMS sobre tais valores, mas não autoriza a concluir pela incidência do ISS sobre os mesmos. O ICMS, aliás, já incide economicamente quando o prestador adquire os materiais, não podendo esse se creditar do mesmo, nem transferi-lo para a próxima etapa da atividade econômica. A incidência do ICMS sobre o valor dos materiais, portanto, resulta em dupla tributação do mesmo fato, com violação de competência alheia. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema, conforme revela o teor da Súmula nº 274, editada em 12 fev. 2003 – relatora Ministra Eliana Calmon – segundo a qual “O ISS incide sobre o valor dos serviços de assistência médica, incluindo-se nelas as refeições, os medicamentos e as diárias hospitalares”. Entretanto, verifica-se que o posicionamento dessa Corte ampliou sensivelmente a materialidade do ISS, em ofensa à Constituição Federal, seja em relação ao inciso III do artigo 156, que prevê a incidência desse imposto somente sobre a prestação de serviços, como também violou o princípio que veda a utilização de tributo com efeito de confisco. Com base nesses argumentos, BETINA TREIGER GRUPENMACHER afirma que os valores que as instituições de saúde cobram de seus pacientes, a título de refeições, medicamentos e materiais hospitalares, são meros insumos utilizados na prestação de serviços, ou seja, o meio necessário para sua realização, pelo que sua cobrança qualifica-se como ressarcimento de custos. Caso o fornecimento de 241 medicamentos, por exemplo, fosse efetuado por drogarias, seria devido o ICMS, mas pela razão especial de que a obrigação, nesse caso, é de “dar”, enquanto que, nos hospitais, a obrigação é de “fazer”.631 Essa preocupação já foi objeto de vários estudos de autores ligados à área tributária, sendo majoritária a opinião de que tanto as operações com circulação de mercadorias, tributáveis pelos estados, através do ICMS, como as operações com produtos industrializados, graváveis pela União Federal, via IPI, representam verdadeiras obrigações de dar, enquanto que as operações com prestação de serviços, são cumpridoras das obrigações de fazer. Em hipóteses de operações mistas, nas quais coexistem tanto uma obrigação de dar, como uma de fazer, há que se analisar, no caso específico, qual das duas é predominante, não no sentido físico – econômico, quantitativo, temporal – mas exclusivamente em seu sentido jurídico. Entretanto, hipótese diversa ocorre quando coexistem dois negócios jurídicos distintos – podendo ou não estarem reunidos em um só instrumento contratual – um envolvendo prestação de serviço, e outro tratando de venda de mercadorias, produzindose ato jurídico complexo, não havendo, entre ambos, relação entre atividade-meio e atividade-fim. Em tais casos, deve-se tomar o cuidado para bem discernir os dois objetos e, se for o caso, concluir pela tributação aplicável a cada um deles. Ou seja, apesar de haver um só instrumento, o documento, nesse exemplo, abrange dois contratos, duas relações jurídicas. Um deles terá como objeto um fato subsumível ao ISS, enquanto que o objeto do outro terá a incidência do ICMS e/ou do IPI, conforme a operação envolver, ou não, produto industrializado. Exemplo típico dessa situação ocorre quando uma loja de equipamentos de informática vende um computador por um determinado preço e, simultaneamente, celebra contrato obrigando-se, mediante determinada remuneração, a prestar o serviço de instalação. O fato de a remuneração do serviço de instalação não estar embutida no preço da mercadoria demonstra que o cliente contratou, mediante o instrumento de compra e venda, apenas e tão-somente a aquisição do computador, na forma como ele se encontrava na loja. A instalação do computador foi objeto de outro contrato, não mais mercantil, mas de prestação do serviço. 630 631 ISS na Constituição..., op. cit., p. 235-236. A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 204-205. 242 É importante ter em mente que o fato de existirem dois contratos, ou seja, duas relações jurídicas, não impede que ambos estejam reunidos em um só instrumento. Um instrumento – aspecto formal – pode abranger vários contratos e, portanto, várias relações jurídicas. Caso a opção contratual fosse outra, no sentido de que a obrigação pela tradição da mercadoria somente estaria cumprida com a instalação do computador, estaríamos então diante de um contrato de compra e venda tão-somente, pois o serviço de instalação demonstrou ter relevância jurídica significativamente inferior à compra e venda. O que se contratou, nesse caso, foi a compra e venda do computador. A instalação foi somente um “plus’, um detalhe, ainda que contido em cláusula contratual específica. Outro, porém, é o caso que ocorre quando o contribuinte, em seu estabelecimento, desenvolve duas atividades distintas, que não se confundem – presta serviços e efetua operações relativas à circulação de mercadorias. Em tais casos, não se trata de prestação de serviço com mercadoria, mas de situação em que a mesma pessoa explora duas atividades econômicas diversas, como ocorre se alguém, possuindo empresa comercial – cujo objetivo operacional é a venda de mercadorias – diversificar suas operações e passar a explorar, também, o ramo de prestação de serviços. Há, aqui, a ocorrência de duas situações, cada uma configurando hipótese de incidência de imposto diverso: a) ICMS, para as operações relativas à circulação de mercadorias e b) ISS, para a prestação de serviços.632 Aplicando-se conjuntamente o pensamento de ORLANDO GOMES 633 – o qual defende a relevância decisória do interesse do credor da prestação, assim como o de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO634 – que entende ser a espécie de obrigação dada em razão de uma relação de causa e conseqüência – entende-se que, em situações de difícil identificação da espécie obrigacional, há que se analisar, em um primeiro momento, qual é a essência do objeto desejado pelo tomador a ser satisfeito quando do cumprimento da prestação, para então conferir relevo jurídico ou à atividade pessoal do prestador, ou aos bens móveis e corpóreos por ele necessariamente utilizados na execução da tarefa. Mediante essa análise, será possível inferir, dentre os elementos da operação jurídica – atividade (fazer) e bens materiais utilizados (dar) – a respectiva posição em uma relação de causa e efeito (conseqüência). 632 ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino. ISS e ICM..., op. cit., p. 172. Obrigações..., op. cit., p. 46. 634 Curso..., op. cit., p. 87. 633 243 No primeiro caso, o interesse contratual predomina nas características pessoais, intrínsecas, do prestador, elementos esses que deverão individualizar o resultado final do serviço, para distinguí-lo daqueles que teriam sido prestados por outros profissionais, independente de a qualidade ser superior ou inferior. Como a obrigação, nesse caso, seria de fazer, essa operação é tributável pelo ISS. Na segunda hipótese, o interesse está, em sua maior parte, no bem móvel e corpóreo a ser entregue ao final, o que o atrairá a tributação do ICMS, se tal bem for uma mercadoria, e também do IPI, se o bem for um produto industrializado. Conclusões semelhantes foram firmadas em Congresso de Direito Tributário realizado em 1981, em São Paulo, sobre os distintos campos de incidência do ISS e do ICMS: a) a prestação de serviços consiste numa obrigação tendo por objeto um fazer, a obrigação mercantil consubstancia um dar; b) o fato de a prestação de serviços requerer emprego de materiais, e/ou equipamentos, não descaracteriza a obrigação de fazer; esta obrigação é unidade incindível, não decomponível em serviço (puro) e materiais ou aparelhos; c) as obrigações de fazer cujo conteúdo é a prestação de serviços, portanto, são tributáveis exclusivamente pelo ISS, e não o podem ser pelo ICM.635 Depreende-se que, devido ao fato de encontrar-se, no critério material da hipótese de incidência do ISS, a “prestação de uma utilidade a título de execução de uma obrigação de fazer”, não há como, juridicamente, confundir-se o ISS com o ICMS estadual, pelo menos na parcela da materialidade que trata da circulação de mercadorias, posto que aí a operação jurídica envolve necessariamente uma obrigação de dar, cujo conteúdo é a transferência do domínio ou da posse de uma mercadoria – bem material móvel – e que é conceito dado pelo Direito Comercial, não pela sua natureza intrínseca, mas pela sua destinação específica: a mercancia. Por outro lado, “[...] quando a transferência do domínio ou da posse de um bem é condição do fazer (pois a prestação que o obrigado deve cumprir exige, para aperfeiçoar-se, a utilização de bem do domínio do obrigado) ou quando a transferência da posse ou do domínio tem por objeto um bem jurídico produzido ou acrescido, estruturalmente, pela atividade do devedor, há obrigação de fazer”, tributável, portanto, pela via do ISS.636 635 636 Apud MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática, p. 61 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 108. 244 Entretanto, “[...] quando a conduta in obligationem inacrescenta atributo algum ao objeto a ser transferido ao credor e a esse só é relevante o próprio objeto, está-se diante do campo de funcionamento das obrigações de dar” [sic].637 Assim, se a prestação, do objeto da obrigação de dar, for a entrega de uma mercadoria, então se está diante de fato tributável pelo ICMS. MARIA JULIANA DE ALMEIDA FONSECA, tendo como premissa o artigo 966 do atual Código Civil – o qual prevê: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” – defende estar superada a tese pela qual as hipóteses de incidência do ICMS e do ISS envolvem, respectivamente, uma obrigação de dar e de fazer. Seu raciocínio tem origem no atual regime aplicável ao empresário, que tanto pode praticar os antigos atos de comércio, como pode, também, prestar serviços, a depender da respectiva atividade ser exercida de forma empresarial, e não de forma simples, como estabelecido, por exclusão, no parágrafo único do precitado artigo 966: “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.638 Disso decorreria uma “aproximação”, pelo Código Civil, dos conceitos de “mercadoria” e “serviço”, afirmando a autora, inclusive, que o serviço passou a ser uma espécie do gênero mercadoria, sendo irrelevante a distinção ter como fundamento a materialidade ou imaterialidade do bem. Cita, como exemplos, decisões do Superior Tribunal de Justiça, que equipararam os imóveis a mercadoria, para fins de incidência da Cofins – como exemplo, o RESP nº 210.335/PR, DJ 06/09/1999 – e as decisões que entenderam pela incidência do ICMS, e não do ISS, sobre os softwares de prateleira – RESP nº 123.022/RS, DJ 27/10/97. Esclarece a autora, por fim, que isso não implica tributar os serviços pelo ICMS, “[...] pois há que se observar, sempre, o núcleo preponderante da atividade desenvolvida para se identificar a hipótese de incidência prevista na lei tributária”, ou seja, o gênero “mercadoria” envolveria as espécies “serviços”, sujeitos ao ISS, e as “mercadorias stricto sensu”, sujeitas ao ICMS.639 Apesar de criticar a utilização da classificação das obrigações de “dar” e de “fazer” para fins de divisar a incidência do ICMS e do ISS, pensamos que seu 637 638 Idem. Conflito de Competência Tributária – ICMS e ISSQN: Os novos conceitos de mercadoria e serviço, p. 88-89. 245 entendimento não a desmente. Sua classificação baseia-se em uma nova perspectiva de análise do tema, mas que poderia, pensamos, ser resolvida com base no critério do exame da maior preponderância existente nas relações obrigacionais, ou seja, ainda que uma relação envolva simultaneamente um dar e um fazer, caso prevaleça a obrigação de “dar”, estar-se-á diante de hipótese de incidência do ICMS. Ao contrário, prevalecendo a obrigação de fazer, a incidência é do ISS. Tratando do tema do campo de aplicação da lei complementar reservada a dispor sobre conflitos de competência entre o ISS e o ICMS, AIRES BARRETO ressalta que: apenas nos casos excepcionalíssimos nos quais, em tese, a unidade ontológica do fato seja insuperavelmente composta é que, para afastar conflito, está a lei complementar autorizada a fixar critério que exclua a pretensão do Estado ou do Município. Só na impossibilidade irremovível de distinção entre serviço e operação mercantil é que se reconhece essa possibilidade. E, assim mesmo, essa faculdade não pode ser arbitrária. O critério deverá ser aquele que melhor realize os vetores constitucionais.640 Como resultado, se a lei complementar em questão não respeitar os desígnios constitucionais precitados, o seu destinatário direto, ou seja, o legislador, ao exercer a competência tributária que lhe é privativa, não está obrigado a observá-la, como bem adverte o referido autor, para quem a Lei Complementar nº 116/2003, repetindo invalidades dos diplomas anteriores – Decreto-lei nº 406/68, com a redação dada pelo Decreto-lei nº 834/69, assim como as alterações promovidas pela Lei Complementar nº 56/87 – criou inequívocas limitações não consentidas pela Constituição, sendo nesses casos norma inválida.641 Como exemplo, o autor critica o já revogado artigo 8º, § 1º, do Decreto-lei nº 406/68, o qual dispõe que “[...] os serviços incluídos na lista ficam sujeitos apenas ao ISS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadoria”. É que se a única atividade existente é a prestação de serviço, não há que se falar em fornecimento de mercadoria, pois ou há uma, ou há outra. A recíproca também é verdadeira: onde houver fornecimento de mercadorias, não poderá haver prestação de serviços. 642 De forma semelhante prevê o artigo 1º, § 2º da Lei Complementar nº 116/2003. 639 Ibidem, p. 90-93. ISS na Constituição..., op. cit., p. 236. 641 Ibidem, p. 237. 642 Ibidem, p. 237-238. 640 246 O que pode ocorrer, conforme já se demonstrou acima, é a prestação de serviços com simultâneo fornecimento de mercadorias, onde se vislumbram dois negócios jurídicos distintos, o que é diferente, pois nesse caso cada um dos negócios estará sujeito a regime tributário diverso: a prestação de serviço será tributada pelos municípios, através do ISS, e o fornecimento de mercadoria pelos estados, através do ICMS. PAULO DE BARROS CARVALHO, tratando da materialidade do antigo ICM, traça os elementos indispensáveis à sua configuração: a circulação de mercadorias, desde que promovida por força de negócio jurídico, de que título for, estará sujeita à incidência do ICM. Esta a importância capital da palavra ‘operações’, inserta no Texto Supremo e lamentavelmente esquecida no nível da aplicação efetiva e prática do tributo. Inexistindo título jurídico para que a mercadoria circule, não haverá falar-se de acontecimento fático que se possa frisar com a previsão normativa.643 Como se pode depreender da aplicação do raciocínio desse autor ao tema que se examina, quando se está diante de prestação de serviços, a eventual entrega e/ou aplicação de materiais e insumos: (a) não é objeto de operação jurídica – a operação jurídica existente tem por objeto a prestação do serviço, e não a entrega de qualquer material ou insumo; (b) não corresponde a nenhuma circulação - pois não há título específico para os materiais, sendo, o título jurídico, para a prestação do serviço; e (c) até como conseqüência das letras anteriores, não há nenhuma mercadoria, sendo inexistente qualquer negócio jurídico mercantil. Problema semelhante surge por força de uma interpretação descabida, baseada em considerações pré-jurídicas, do artigo 155, § 2º, IX, “b”, da Constituição, o qual prescreve que o ICMS incidirá também “sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios”. Parte considerável da doutrina tributária, partindo de premissas somente econômicas, em detrimento de uma devida análise jurídica, vê nesse dispositivo uma autorização implícita para que os Estados possam também exigir imposto sobre outros serviços, além dos que já lhes foram taxativamente outorgados no inciso II desse mesmo artigo 155, ou seja, sobre os serviços de transportes intermunicipal e interestadual e de comunicação. AIRES BARRETO, com propriedade, esclarece que, diante do inafastável Princípio da Autonomia Municipal, os estados não podem tributar outros serviços que 247 não os já previstos de forma exaustiva no inciso II do artigo 155 da Lei Maior. Como agravante, quem defende tal posicionamento acaba também por entender que a lei complementar está autorizada a resolver problemas desse jaez, inclusive invadindo campo reservado à Constituição, restringindo ou ampliando competências das pessoas políticas de modo discricionário. Conclui que, ao adotar esse entendimento, acaba-se por defender a inexistência de rigidez e privatividade na distribuição de competências tributárias pela Constituição, a qual poderia ser flexibilizada por mera lei complementar.644 O artigo 155, § 2º, IX, “b”, da Constituição, deve, por exigência de uma devida interpretação sistemática, ser entendido em harmonia com o disposto no inciso II do mesmo artigo 155, do que resulta ser aquela alínea um desdobramento deste dispositivo. Ora, se os serviços não compreendidos na competência tributária dos municípios somente são os de transporte intermunicipal e interestadual e os de comunicação, a inteligência dessa alínea está em que, se mercadorias forem fornecidas concomitantemente com tais serviços, o ICMS incidirá sobre o valor total da operação. Ou seja, o regime jurídico será o aplicável para as operações mercantis, conforme escólio de AIRES BARRETO, o qual acresce que: Com isso, busca a Constituição impedir que, mesmo diante de fixação de alíquotas (e/ou bases de cálculo, regimes de crédito, momentos de ocorrência do fato imponível etc.) diferentes para operações relativas à circulação de mercadorias e para os serviços referidos, se possa considerá-los de per si (como, por exemplo, aplicar uma alíquota, (ou base), para a operação mercantil e outra para a prestação dos serviços de transporte transmunicipal ou para os de comunicação).645 Com relação aos serviços de competência privativa dos estados e do Distrito Federal, passíveis de serem tributados pelo ICMS, a possibilidade de surgirem conflitos com os municípios, apesar de existente, é menor, haja vista a Constituição Federal ter deixado bem explícito, no artigo 155, II, que os serviços passíveis de tributação por esse imposto são os de “[...] transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”. Nunca é demais repisar que tais conflitos existem única e exclusivamente no plano pré-jurídico, onde os fatos ainda não estão juridicizados. 643 Hipótese..., op. cit., p. 255. ISS na Constituição..., op. cit., p. 38-39. 645 Ibidem, p. 50. 644 248 Após se tornarem fatos jurídicos, os serviços ou são de transporte transmunicipal e de comunicação e, portanto, de competência dos estados e do Distrito Federal, ou são, de forma residual, de competência dos municípios. Se, depois de juridicamente qualificados, ainda restarem “conflitos”, esses são aparentes, e decorrem sempre de má interpretação da Constituição, onde as competências foram delimitadas de forma rigorosa e exaustiva, sem que haja confusão conceitual entre as diversas materialidades entregues à competência tributária das pessoas políticas. Quanto aos serviços de transporte, somente estarão na competência municipal do ISS aqueles que se realizarem dentro dos limites territoriais do próprio município, ou seja, os serviços de transporte intramunicipal, onde o início (origem) e o fim (destino) da prestação do serviço ocorrem no mesmo município. Entretanto, decorre do contexto constitucional que a prestação de serviço de transporte aéreo, seja a de cunho estritamente municipal, seja a que tenha origem e destino em municípios e/ou estados diferentes, é serviço intributável, não se subsumindo nem à materialidade do ISS, nem tampouco à do ICMS, em virtude de caracterizar-se como serviço público, ex vi do artigo 21, XII, “c” da Constituição Federal, como ensina AIRES BARRETO.646 Os serviços de transporte internacional, por força não só de impossibilidade física, como lógica, não se compreendem na competência dos estados e do Distrito Federal, pois a redação do inciso II do artigo 155 é clara ao limitar a competência dessas pessoas políticas aos serviços de transporte intermunicipal e interestadual, opções onde resta impossível identificar qualquer espécie de transporte efetuado no exterior do país. E não se diga que a parte final do inciso II, do artigo 155, a qual prevê que o ICMS incide “[...] ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”, assim como a expressão constante do inciso IX, “a”, do § 2º do mesmo artigo 155, pela qual o ICMS incidirá também “[...] sobre o serviço prestado no exterior [...]”, poderiam amparar pretensão em sentido contrário. É que resulta inequívoco que essas prestações de serviço, a que se refere o texto constitucional, só podem ser as de comunicação, espécie de serviço tributável pelo ICMS que não sofreu nenhuma restrição espacial, como ocorreu, ao inverso, com os serviços de transporte, onde é inafastável que devem ser ou intermunicipais, ou interestaduais, dentre os quais é impossível inserir os de transporte internacional, espécie de serviço não compreendida em nenhuma previsão constitucional de outorga de competência tributária. Será, com 646 Ibidem, p. 65. 249 efeito, inconstitucional eventual lei complementar que preveja essa espécie de serviço de transporte como sendo tributável pelos estados e Distrito Federal pela via do ICMS, por flagrante extrapolação da competência atribuída a esses entes políticos pela Constituição.647 Em relação aos serviços de comunicação, não obstante estarem compreendidos na competência dos estados e do Distrito Federal, a Constituição outorgou à União Federal a competência para sua exploração, direta ou indiretamente, conforme estabelece o artigo 21, XI e XII, da Constituição, e também para sua regulamentação, nos termos do artigo 22, IV, da Constituição. Portanto, “[...] existindo lei federal definidora do que sejam os serviços de comunicação, materialmente considerados – e, sob esse aspecto, não havendo, no conceito da lei federal, nenhum desbordamento do conceito constitucional desses serviços, para fins de tributação – não se pode, em princípio, desconsiderar os termos de suas definições”.648 Tal regulamentação, para AIRES BARRETO, estaria prevista na Lei federal nº 9.472, de 16 jul. 1997, a qual dispõe sobre telecomunicações e define, em seu artigo 60, que “serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação”, acrescendo, em seu § 1º, que telecomunicação “é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza”. Com base no conceito legal, o autor defende que “[...] estão submetidos à incidência do ICMS os serviços de comunicação, isto é, a utilidade material, onerosamente prestada, que, concretamente, implique o tráfego de informações, sinais e mensagens de qualquer natureza ou conteúdo, por quaisquer dos meios tecnológicos para tanto aptos”.649 Em decorrência do § 1º do artigo 61 da Lei nº 9.472/97, o qual dispõe que o “serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações”, surgiu recentemente a polêmica com a prestação de serviços de provedor de Internet, em que o Poder Judiciário foi instado a manifestar-se sobre qual das pessoas políticas – se estados ou municípios – seria competente para tributar tais prestações de serviço. A discussão, portanto, baseia-se no fato de serem ou não tais serviços de comunicação, 647 Ibidem, p. 68-69. Idem. 649 Idem. 648 250 conforme prevê o § 1º do artigo 60 da Lei nº 9.472/97, ou se é hipótese de serviço de valor adicionado, na esteira do que dispõe o § 1º do artigo 61 da mesma lei. Diante do entendimento de que os provedores de internet não chegam a prestar serviço de comunicação, posto não intermediarem a comunicação entre duas ou mais pessoas, mas tão-somente disponibilizando meio eletrônico para que se possa acessar a “rede”, alguns autores defendem tratar-se de mero serviço de valor adicionado ao já prestado pelas empresas de telefonia, essas, sim, efetivamente, prestadoras de serviços de comunicação, os quais já são tributados pelo ICMS. Diante disso, os serviços prestados pelos provedores de internet, quando onerosos, estariam compreendidos na competência tributária dos municípios, ainda que inexistente sua previsão na lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003, com a devida ressalva à existência de jurisprudência entendendo pela taxatividade da mesma. Nesse sentido é o entendimento, por exemplo, de AIRES BARRETO650 e de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO651. Registre-se, em sentido contrário, a opinião de MARCO AURÉLIO GRECO, para quem, “[...] embora não seja um serviço de ‘telecomunicação’ por definição legal, trata-se de um serviço de ‘comunicação’, pois disponibiliza para o usuário um meio distinto de transmissão de mensagens comparativamente com o clássico serviço de telefonia”, além de refutar a aplicação da Lei Geral de Telecomunicações, pois o artigo 155, II, da Constituição contempla o conceito de “comunicação” e não de “tele”comunicação, o que leva o autor a concluir estar o serviço de provedor de internet sujeito ao ICMS, de competência estadual.652 Admitindo que essa posição é mais onerosa para o contribuinte, lembra o autor que, apesar disso, por ser um serviço de comunicação, o serviço de provedor está abrangido pela previsão do inciso XII, do artigo 5, da Constituição Federal de 1988, dispositivo que resguarda o sigilo de dados e das comunicações telefônicas. Caso contrário, se a atividade não for de comunicação, a natureza do sigilo do provedor, perante terceiros, seria tão-somente comercial, o que não é oponível ao Fisco, a teor do que dispõe o artigo 97, VII, do Código Tributário Nacional.653 650 Ibidem, p. 239-242. ICMS..., op. cit., p. 57-58. 652 Internet..., op. cit., p. 109-110. 653 “Artigo 197. Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros: [...] VII - quaisquer outras entidades ou pessoas que a lei designe, em razão de seu cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão”. 651 251 O autor lembra que o próprio Supremo Tribunal Federal, em duas oportunidades, entendeu, ainda que em pronunciamento cautelar, que o conceito de “comunicação” acolhido pelo artigo 155, II, da Constituição, é muito abrangente, a ponto de alcançar até mesmo rádio e televisão – Medida Cautelar nas Adins n 1467, DJ de 14 mar. 1997, e n 930, DJ de 31 out. 1997.654 Entretanto, quer parecer estar a razão com aqueles que defendem ser o serviço de provedor de Internet um serviço de valor adicionado, não se subsumindo, portanto, ao conceito de comunicação, tributável pelo ICMS, de competência estadual, ex vi do artigo 155, II, da Constituição Federal. Nesse sentido, entende-se que o provimento de acesso à internet deve ser considerado, na definição dada por JÚLIO MARIA DE OLIVEIRA, como uma “[...] prestação de serviço que utiliza necessariamente uma base de comunicação preexistente e que viabiliza o acesso aos serviços prestados na rede mundial, por meio de sistemas específicos de tratamento de informações”.655 Diante dessa definição, o autor esclarece que o referido provimento de acesso não pode ser enquadrado como um serviço de comunicação: pois não atende aos requisitos mínimos que, técnica e legalmente, são exigidos para tanto, ou seja, o serviço de conexão à Internet não pode executar as atividades necessárias e suficientes para resultarem na emissão, na transmissão, ou na recepção de valor adicionado, pois aproveita de uma rede de comunicação em funcionamento e agrega mecanismos adequados ao trato do armazenamento, movimentação e recuperação de informações.656 Lembra ainda o autor que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Adin n 1.491-9, entendeu que os serviços de valor adicionado, cujo conceito legal era então dado pelo artigo 10, da Lei n 9.295, de 19 jul. 1996 – revogado pela Lei n 9.472/97657, não são serviços de comunicação, mas sim serviços agregados aos serviços de comunicação. Seguindo o entendimento desse autor, PAULO DE BARROS CARVALHO também concluiu que o serviço prestado pelo provedor não é de 654 Internet..., op. cit., p. 132. Internet e competência tributária, p. 123. 656 Idem. 657 “Artigo 10. É assegurada a qualquer interessado na prestação de Serviço de Valor Adicionado a utilização da rede pública de telecomunicações. Parágrafo único. Serviço de Valor Adicionado é a atividade caracterizada pelo acréscimo de recursos a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, criando novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação e recuperação de informações, não caracterizando exploração de serviço de telecomunicações”. 655 252 comunicação.658 No Superior Tribunal de Justiça, devido à existência de divergência entre os entendimentos da 1ª e da 2ª Turmas, a questão foi apreciada pela 1ª Seção, a qual entendeu pela não incidência do ICMS sobre os serviços prestados pelos provedores de acesso à internet, conforme ficou expresso na Súmula nº 334, de 13 dez. 2006.659 Quanto às relações do ISS com o IPI, há um tênue limite entre as respectivas competências, do que resultam alguns conflitos. O pressuposto, para a solução, deverá ser buscado nos respectivos critérios materiais das hipóteses de incidência, direto da Constituição: enquanto o do IPI é realizar operações jurídicas com produtos industrializados, consubstanciando uma obrigação de dar, o critério material do ISS é prestar serviços, consistindo portanto em uma obrigação de fazer. Somente após esse exame é que será legítimo o recurso à Lei Complementar que disponha sobre conflitos de competência (artigos 146, I e 156, III, da Constituição). Há atividades, porém, que, do ponto de vista estritamente econômico, podem ser consideradas tanto como prestação de serviço, como industrialização. São exemplos freqüentes as atividades de recondicionamento, recuperação, restauração, recauchutagem etc. Em casos como tais, só é possível classificar a atividade como serviço ou industrialização, após a análise, de forma conjugada: (a) das condições de seu desempenho; e (b) da espécie de relação jurídica travada entre as partes envolvidas. Dizendo de outra forma, tem-se que a mesma atividade – por exemplo, de recondicionamento de um motor usado – pode ser validamente enquadrada como prestação de serviço, o que ocorrerá na hipótese de o negócio jurídico entabulado pelas partes consistir na obrigação específica de o contratado recondicionar (fazer) um determinado motor; ou como industrialização, caso o negócio jurídico tenha por essência a obrigação de entregar (dar), após o pagamento do preço, o motor recondicionado. Nesta última hipótese, atente-se que, ainda que o contrato preveja a obrigação de o contratado instalar (fazer) o motor, prevalece no negócio a obrigação de dar, pois é a que revela a essência do negócio. JOSÉ ROBERTO VIEIRA, analisando as diferenças entre as espécies de obrigações, para exame das relações do IPI com o ISS – as quais não considera tão pacíficas e amigáveis quanto as relações do IPI com o ICMS – assevera que, apesar das 658 Não-incidência do ICMS na atividade dos provedores de acesso à internet. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 73, p. 104. 659 “O ICMS não incide no serviço dos provedores de acesso à Internet.” 253 obrigações “de dar” estarem compreendidas nas “de fazer”, cada qual obedece a regime jurídico próprio. Enquanto as primeiras têm por objeto prestações de coisas, as segundas têm prestações de fatos – atividade pessoal do devedor – conforme, aliás, entende não só a Ciência do Direito, mas prescreve o próprio Código Civil. O “fazer” em comento é representado, no âmbito do ISS, pela idéia de serviço – prestações de “fato”, enquanto que, no âmbito do IPI, o que interessa é a entrega de um produto industrializado – prestações de “coisa”.660 O que se deve ter como premissa, na verdade, é a distinção entre “produto resultante de uma atividade industrial” e “bens resultantes de uma atividade de serviços”, conforme ensinam CÉLIO DE FREITAS BATALHA661 e CLÉBER GIARDINO, sendo desse último o seguinte raciocínio: Ora, juridicamente (e num conceito simplificado), produto industrializado é o que se produz para vender. Vale dizer: não é a atividade produtiva que se ‘vende’ porém apenas o seu resultado (e por isso, no caso, se envolve um dar e não um fazer). A seu lado, as simples coisas que decorrem de atividade de serviços, enquanto tais, não são objeto de tráfico negocial, não são ‘vendidas’, mesmo porque já estão absorvidas pela precedente alienação do próprio processo de elaboração do qual resultam, este sim ‘vendido’ (por isso, nessas hipóteses, existe um fazer e nunca um dar).662 A materialidade constante na hipótese de incidência do IPI, portanto, consiste em um dar. Poderá o industrial, eventualmente, obrigar-se a uma futura industrialização, seguida da transferência da propriedade, como sói ocorrer nas hipóteses de industrialização por encomenda, tributadas pelo IPI. Devido existir aqui, além do “dar”, um “fazer” anterior, nasce uma possível área de atrito entre o IPI e o ISS, com relação aos serviços associados ao fornecimento de materiais. E é na zona cinzenta entre essas duas figuras que ganha relevo a análise do contrato de empreitada, que é aquele pelo qual o empreiteiro se obriga a executar determinada obra, com material próprio ou o que lhe é posto à disposição, mediante remuneração do comitente. Quando a empreitada não envolve fornecimento de materiais, diz-se somente de lavor. Do contrário, será empreitada de materiais ou mista. É o que dispõe o artigo 610 do Código Civil em vigor, à semelhança do que já dispunha o artigo 1.237 do Código Civil anterior: “o empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu 660 A regra-matriz..., op. cit., p. 83-84. Conflitos de competência (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e imposto sobre serviços). Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 169. 662 Conflitos entre imposto sobre produtos industrializados e imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias. Revista de Direito Tributário, n. 13/14, p. 138-139. 661 254 trabalho ou com ele e os materiais”. É nesse contexto que surgem as possibilidades de conflito entre o ISS e o IPI JOSÉ ROBERTO VIEIRA demonstra a existência de três linhas de interpretação na doutrina civilista.663 A primeira tendência interpretativa vê, na empreitada de materiais, uma compra e venda de coisa futura, dando ênfase, portanto, à obrigação de dar. O autor descarta essa corrente, por entender que só será compra e venda de coisas futuras caso essas sejam genéricas e fungíveis, traço inexistente na empreitada, onde sobrelevam as peculiaridades da obra a ser feita sob encomenda. 664 Uma segunda corrente vê, na empreitada de materiais, a convivência autônoma do dar e do fazer, o que não pode ser aceito, por desvirtuar esse tipo de contrato, além de criar figura não existente no mundo jurídico.665 E por fim, uma terceira corrente, acatada pelo autor, enfatiza na empreitada de materiais, a atividade de realização da obra, ou seja, a obrigação de fazer, em detrimento do fornecimento de materiais – obrigação de dar – com o que tal fato só pode ser jurídico tributário em relação ao ISS.666 Esse último entendimento foi, inclusive, encampado pelo parágrafo 1º do artigo 8º do Decreto-Lei nº 406/68: “Os serviços incluídos na lista ficam sujeitos apenas ao imposto previsto neste artigo, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadoria”. A ressalva ao legislador deve-se unicamente ao fato de ter restringido o critério apenas aos serviços constantes da lista, prestigiando a lei complementar em detrimento da Constituição. Não há como não aceitar os argumentos desta última posição, pois têm efeito sobre os institutos de direito privado utilizados, de forma implícita, pela Constituição, na repartição das competências tributárias entre as pessoas políticas, e que por essa razão devem ser protegidas de eventuais invasões do legislador ordinário, conforme prescreve o artigo 110 do Código Tributário Nacional: “A lei tributária não pode 663 A regra-matriz..., op. cit., p. 86-88. Conforme o autor, esta é a óptica de TROPLONG e LAURENT, ENNECERUS, KIPP, WOLFF, PLANIOL, RIPERT, BOULANGER, TRABUCCHI, THIRY, COLMET DE SANTERRE, e entre nós, de BENTO DE FARIA, JOÃO LUIZ ALVES e MANUEL INÁCIO CARVALHO DE MENDONÇA. 665 Defendida, conforme o autor, por AUBRY ET RAU, e aqui, por J. M. CARVALHO SANTOS e WALDEMAR FERREIRA, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ARNOLDO WALD, e MARIA HELENA DINIZ. 666 Encampada, entre os civilistas, por CLÓVIS BEVILÁQUA, PONTES DE MIRANDA e CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, e entre os que analisaram a questão sob a óptica tributária, por ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA, VICTOR NUNES LEAL, ROBERTO DE SIQUEIRA CAMPOS e JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO. 664 255 alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Na análise, portanto, do que dispõe o artigo 610 do Código Civil, pelo qual “o empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais”, é inequívoca a intenção do legislador de relevar a obrigação de fazer como essência do contrato de empreitada, seja a de lavor, seja a mista, o que, de resto, não é infirmado por qualquer outra norma extraída do ordenamento jurídico. Dessa forma, não se pode chegar a outra conclusão senão a de que, diante de um contrato de empreitada de materiais, prevalece a obrigação de fazer, pelo que esse negócio somente se subsume à hipótese de incidência do ISS, nunca do IPI.667 4.3.1.3 A Lei Complementar de que trata o inciso III do artigo 156 ALFREDO AUGUSTO BECKER já advertia da necessidade de não se confundir regra jurídica com lei. Assim como uma única regra jurídica pode ser o resultado de diversas leis ou artigos de leis, uma mesma fórmula literal legislativa pode veicular duas ou mais regras jurídicas diversas. A regra jurídica “[...] é uma resultante da totalidade do sistema jurídico formado pelas leis”.668 A Constituição Federal, em seu artigo 156, III, prevê dispositivo nesse sentido, ao estatuir que “Compete aos Municípios instituir impostos sobre [...] serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar”.669 Com base nesse ensinamento, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES adverte que, embora a formulação unitária, o dispositivo pode ser decomposto em duas normas distintas, ambas atributivas de competência, porém com destinatários distintos. A primeira parte outorga competência aos Municípios para instituir o imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência dos Estados, e, a segunda parte, atribui competência à União Federal para, mediante lei complementar, definir quais são esses serviços.670 667 A regra-matriz..., op. cit., p. 88-89. Teoria geral..., op. cit., p. 270. 669 Redação dada pelo artigo 1º da Emenda Constitucional nº 3, de 17 mar. 1993. 670 Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 17-18 668 256 Em um primeiro momento, poder-se-ia inferir que reside na parte final do inciso III uma demonstração de supremacia da competência federal, a ser exercida mediante a utilização da lei complementar, podendo com isso definir quais serviços seriam passíveis de ser tributados pelos Municípios. O referido autor, comentando o dispositivo da Carta Constitucional anterior que concedia aos Municípios a competência para instituir o ISS, esclarece que tal raciocínio não é correto, posto que não há que se falar em supremacia quando o assunto é competência. “Esta, pura e simplesmente, existe ou não existe, não comportando quantificação”.671 A competência tributária, no sistema tributário brasileiro, é exercida, via de regra, pela lei ordinária da respectiva pessoa política, com obediência aos limites e marcos estabelecidos rigorosa e exaustivamente na própria Constituição, não cabendo à lei complementar exercer esse papel. Em outras palavras, a descrição legislativa da regra-matriz de incidência, com suas respectivas hipótese de incidência e conseqüência tributária, somente pode ser realizada pela pessoa de direito público interno que detém a competência em cada caso, conforme a repartição traçada constitucionalmente. À lei complementar, por outro lado, está reservada outra função, que, em linhas gerais pode ser definida como sendo a de dispor sobre normas gerais de direito tributário. As poucas exceções constitucionais tratam da exigência dessa espécie normativa qualificada para a instituição de determinados tributos federais, como os empréstimos compulsórios (artigo 148), o imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, VII), os impostos da competência residual da União (artigo 154, I), e as contribuições sociais sobre outras fontes além das previstas (artigo 195, § 4º). Não cabe à lei complementar, portanto, definir os limites da competência tributária dos municípios, sob pena de converter-se uma Constituição rígida, quanto à atribuição de competência tributária, em Constituição flexível, o que ocorreria pela delegação à União Federal da possibilidade de delimitar a materialidade objeto da competência municipal, o que resultaria em descaracterização da peculiar função da lei complementar.672 Conclui-se, então, que a delimitação da competência tributária municipal, no que diz respeito ao ISS, é obtida mediante exclusão, pois os municípios podem tributar todos os serviços que não estejam na competência dos estados, que, nesse caso, são previstos de forma taxativa. O mandamento constitucional em tela dirige-se não só ao 671 Lei complementar..., op. cit., p. 185. 257 legislador municipal, como também ao complementar, pois do contrário a dicção do dispositivo “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II”, seria desprovida de sentido, o que não se pode admitir. Mas disso não resulta a conclusão de que o município só tributa serviços remanescentes dos serviços tributáveis pelos estados-membros, pois tal afirmação tem por base elementos substanciais dos serviços. Ou seja, há o serviço visto sob uma perspectiva jurídico-tributária, assim como há os serviços que substancialmente ocorrem no mundo dos fatos. Juridicamente, portanto, afirmar que os serviços tributáveis pelos municípios são os remanescentes dos tributáveis pelos estados-membros é o mesmo que afirmar que os estados-membros só tributam os serviços remanescentes dos municípios. “Serviços ontologicamente considerados não se confundem com serviços deontologicamente normatizados”.673 Como conseqüência do que até aqui foi dito, a lei complementar, ao definir os serviços tributáveis pelos municípios, não tem por função limitar a competência tributária municipal, que é plena e sem espaços a serem preenchidos pela lei complementar que, ao definir os serviços passíveis de tributação pelos municípios, estabelece normas sobre tributação e não normas tributárias, porque esses serviços são definidos em regras materiais sobre competência, as quais exercitam, nessa seara, a competência na sua integridade original, conforme os ditames constitucionais e, por essa razão, não limitável mediante lei complementar.674 Como bem resume GERALDO ATALIBA, já há mais de vinte anos, é em virtude de “[...] uma infeliz interpretação literal”, e, o mais grave, um evidente “[...] menoscabo pela autonomia municipal”, que vem prevalecendo na doutrina certa corrente que entende que os municípios só podem tributar os serviços previstos em lei complementar da União. 675 Noutro giro, a insistência de parte da doutrina em aceitar a possibilidade de a lei complementar, de que trata o inciso III do artigo 156 da Constituição, definir, de forma discricionária, quais são os serviços tributáveis pelos municípios, tem também parte de sua origem na indevida recepção de teorias sobre o “Imposto sobre o Valor Agregado”, o “IVA”, oriundas de países europeus integrantes, à época, do “Mercado Comum Europeu”, onde o trabalho final elaborado pelas comissões criadas pelos países integrantes dessa comunidade européia resultou em uma lista dos bens tributáveis. 672 Ibidem, p. 186. BORGES, José Souto Maior. Aspectos fundamentais..., op. cit., p. 10 674 BORGES, José Souto Maior. Lei complementar..., op. cit., p. 187. 673 258 A doutrina produzida nesses países europeus sobre o tema, nos âmbitos econômico e financeiro, foi de extrema qualidade científica, o que acabou por impressionar de forma relevante também a doutrina brasileira, em especial os juristas GILBERTO DE ULHÔA CANTO e RUBENS GOMES DE SOUSA, que participaram da elaboração da Emenda Constitucional nº 18/65, que inseriu o ISS e o ICM – hoje ICMS, após a Constituição Federal de 1988 – no texto constitucional. No Congresso Nacional, o então deputado federal e jurista ALIOMAR BALEEIRO esteve à frente dos trabalhos para a aprovação da Emenda nº 18/65. Também foram influenciados pela doutrina estrangeira sobre o IVA os economistas MÁRIO HENRIQUE SIMONSEN e o então Ministro da Fazenda OCTÁVIO GOUVÊA DE BULHÕES. Após a emenda entrar em vigor, os legisladores municipais passaram a efetivamente instituir esses impostos, mas, empolgados com o sistema desenvolvido de forma peculiar para os países do Mercado Comum Europeu, acabaram por não dar a devida atenção à própria Constituição.676 A principal razão para o erro de aplicar as noções do Direito Comparado, nesse caso, resultou do fato de os países integrantes da comunidade européia, com exceção da Alemanha, serem estados unitários, não havendo, portanto, dispositivo que preveja a autonomia municipal em seus respectivos sistemas jurídicos da forma como esse princípio é estruturado em nossa Constituição. Quanto à Alemanha, apesar desse país constituir uma federação, ela é substancialmente diferente do modelo federativo existente no Brasil, onde, dentre outras coisas, o exercício de certa competência pelo governo central tem o condão de “cortar” a competência municipal. Em nosso sistema, ao contrário, a autonomia municipal é princípio de elevado valor jurídico, o que se verifica pela sanção de intervenção federal, aplicável no caso de sua inobservância pelos estados, conforme estatui o artigo 34, VII, “c”, da Constituição Federal. Dessarte, como a autonomia municipal não sobrevive sem o livre exercício da competência tributária outorgada pela Carta Constitucional, dessume-se ser absurdo lógico-jurídico entender pela legitimidade de mera lei complementar que pretender restringir o alcance da expressão “serviços de qualquer natureza”, constante na Constituição em seu artigo 156, III.677 675 Imposto Sobre Serviços..., op. cit., p. 68-69. BARRETO, Aires Fernandino. ISS na constituição..., op. cit., p. 103-104. 677 Ibidem, p. 105-106. 676 259 A lei complementar, por ser norma editada pelo legislativo da União Federal – pessoa de direito público interno situada no mesmo nível hierárquico dos Estados, Distrito Federal e Municípios – busca, como as leis dos demais entes políticos, o seu fundamento de validade, formal e material, diretamente na Constituição, e não em si própria, do que resultará inconstitucional toda e qualquer lei complementar que, a pretexto de cumprir o desiderato previsto na parte final do inciso III do artigo 156, definir quais são os serviços tributáveis pelos municípios, mas impedindo, simultaneamente, que eles elejam como materialidade do ISS outros serviços não compreendidos nessa lei, salvo, é óbvio, os serviços tributáveis pelos estados e Distrito Federal através do ICMS. Como já se afirmou acima, os limites de aplicação da legislação complementar devem ser visualizados sob o prisma do Princípio da Autonomia Municipal, norma obtida pela inteligência dos seguintes dispositivos constitucionais: artigo 18, caput; artigo 30, incisos I a IX; artigo 34, VII, “c”. Esse pensamento foi defendido, com propriedade, por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, ainda sob a égide do ordenamento jurídico anterior, o que não retira a sua consistência, pois os fundamentos jurídicos, na atual Constituição, são equivalentes. Esse jurista defende que a competência exclusiva dos Municípios para instituir o ISS está compreendida no dispositivo constitucional do “[...] peculiar interesse municipal” – artigo 15, II, da Constituição Federal de 1969, e no artigo 30, inciso I, da Constituição Federal de 1988 – “[...] que é afinal um prérequisito para a efetivação da autonomia do Município na gestão dos seus próprios negócios e interesses”, pois não há autonomia política e administrativa sem autonomia financeira.678 Como conseqüência, se os Municípios são autônomos para legislar sobre os tributos de sua competência privativa, tendo como fundamento de validade para tanto única e exclusivamente o que dispõe a própria Constituição, poder-se-ia concluir como de caráter excepcional, no sistema, um dispositivo constitucional que confere à União Federal competência para, por meio de lei complementar, definir quais são os serviços tributáveis pelos Municípios. O autor citado demonstra que esse argumento toma como ponto de partida uma falsa premissa, pois uma regra como essa representa somente uma espécie do gênero “normas gerais de direito tributário”, devendo ser interpretada em harmonia com os 678 Lei complementar..., op. cit., p. 187-188. 260 demais princípios constitucionais, inclusive com o cânone da autonomia municipal, que se constitui em “[...] direito público subjetivo dos Municípios, oponível à União e aos Estados”.679 Assim, uma leitura apressada da segunda parte do inciso III do artigo 156 poderia levar a crer que a competência da União para, mediante lei complementar, definir os serviços tributáveis pelos Municípios, importaria em derrogação da privatividade na repartição constitucional de competências tributárias, como se esse dispositivo veiculasse regra de caráter excepcional no sistema, contrário ainda ao Princípio da Autonomia Municipal. Contudo, “[...] o argumento envolve mais que uma petição de princípio, porque toma como ponto de partida uma premissa falsa”, pois “[...] o artigo 156, III, in fine, nada tem de excepcional no sistema da Constituição, porque contempla apenas uma hipótese específica do cabimento de norma geral de direito tributário, genericamente prevista no artigo 146, III. A relação que este guarda com o artigo 156, III, in fine, é simplesmente relação de gênero para com espécie...”.680 Disso decorre que a lei complementar do artigo 156, III, não está submetida a regime jurídico diverso do previsto para qualquer outra norma geral de Direito Tributário, editada com base no artigo 146 da Constituição, assim como a União não estaria impedida de estabelecer norma geral de Direito Tributário dessa espécie, caso inexistisse a previsão da lei complementar no artigo 156, III.681 Ora, se não constitui regra de caráter excepcional, deve o dispositivo em análise ser interpretado em harmonia com o contexto constitucional, onde o Princípio da Autonomia Municipal, por se erigir em direito público subjetivo dos municípios alçado à categoria de verdadeiro e legítimo princípio constitucional, será a norma superior a informar o sentido e a inteligência da simples regra prevista no artigo 156, III, da Constituição. Somente após esse labor hermenêutico é que se poderá concluir de que forma os Municípios estão sujeitos à observância dos serviços definidos em lei complementar, “[...] não por uma eficácia superior dessa, mas por efeito da sistemática adotada na própria Constituição”.682 Da mesma forma, à lei complementar está vedado legislar sobre tributo que esteja reservado ao campo exclusivo da lei municipal, pois, do contrário, restaria 679 Ibidem, p. 188-189. BORGES, José Souto Maior. Aspectos Fundamentais ..., op. cit., p. 10. 681 Ibidem, p. 25. 682 Ibidem, p. 14. 680 261 violada a distribuição constitucional das competências tributárias. A competência da União, assim, está adstrita à expedição de normas gerais de direito tributário, definidoras dos serviços tributáveis pelos municípios, sem que tal lei complementar possa limitar o que já dispõe a Constituição Federal sobre o assunto, pois o conteúdo da lei tributária municipal tem como fundamento de validade a Constituição Federal, nunca a lei complementar.683 Disso resulta que a função dessa lei complementar é somente a de definir os serviços tributáveis pelos municípios, mas, advirta-se que, definir serviços não pode ser entendido como definir a hipótese de incidência, posto que essa função foi reservada pela Constituição expressamente à lei tributária material aprovada pelo legislativo municipal, o que inclusive é ratificado pelo artigo 97, III, do Código Tributário Nacional, recepcionado pelo atual ordenamento jurídico. Entretanto, a vedação de definir a hipótese de incidência por lei complementar não decorre da proibição constitucional que impede que o tributo seja criado por essa espécie normativa, pois a definição do suposto, tão-somente, não é bastante para tanto, sendo necessário que, além disso, sejam positivados os elementos hábeis a identificar a relação jurídica tributária. 684 Quando o artigo 156, III, da Constituição, estabelece que os serviços passíveis de tributação pelos municípios, através do ISS, serão aqueles “definidos em lei complementar”, está prescrevendo que essa lei complementar tem por objeto identificar os ditos serviços, nunca, no entanto, criá-los de forma inovadora, original, porque os limites dirigidos ao legislador municipal já se encontram previstos de forma suficiente na própria Constituição, quando afirma, no mesmo inciso III do artigo 156, que os serviços serão aqueles “[...] não compreendidos no artigo 155, II”, ou seja, os municípios poderão instituir o ISS sobre quaisquer serviços, com exceção dos afeitos à competência dos Estados, quais sejam os serviços de transporte intermunicipal e de comunicação. Com efeito, da mesma forma que a Constituição limita o âmbito material da lei complementar, também o faz em relação à lei ordinária municipal. 685 Noutro giro, tem-se que o inciso III do artigo 156 da Constituição, na ausência da lei complementar de que trata esse artigo, é auto-aplicável, pois a competência dos municípios não pode ficar, nessa hipótese, condicionada á existência da referida norma. Entretanto, com a superveniência da lei complementar definidora dos serviços, a 683 BORGES, José Souto Maior. Lei complementar..., op. cit., p. 190. Ibidem, p. 195. 685 Ibidem, p. 195-196. 684 262 legislação municipal, na parte que com ela conflitar, perderá sua eficácia, não em razão de uma pretensa superioridade hierárquica ou eficacial, mas tão-somente pela privatividade da competência da União para definir tais serviços, em uma específica manifestação da legitimidade da União para editar normas gerais de direito tributário.686 Uma das principais conseqüências de considerar a lei complementar do artigo 156, III, da Constituição como sendo “norma geral de direito tributário”, está em que, na sua ausência, a eficácia da lei municipal sobre o ISS não é passível de nenhuma limitação, ainda que ensejadora de eventuais conflitos de competência tributária. Com isso, conclui-se pela inconsistência da tese daqueles que defendem ser o inciso III do artigo 156 uma norma constitucional de eficácia limitada, pois caso assim fosse, no silêncio da União em editar a referida lei complementar, estariam os municípios impossibilitados de exercer sua competência no que toca à prestação de serviços, o que se revela como absurdo jurídico, em face do condicionamento da eficácia de um princípio constitucional – Autonomia Municipal – à discricionária edição de uma norma pela União Federal. Na análise da Constituição anterior, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES via o artigo 24, II, como um dispositivo constitucional de eficácia contida, conforme a classificação de JOSÉ AFONSO DA SILVA687; pois a competência a ser então exercida pelos municípios era passível tão-somente de contenção pela eventual superveniência de lei complementar que venha a definir os serviços tributáveis pela via do ISS.688 Atualmente, partindo da premissa de que o artigo 156, III, da Constituição encerra duas normas distintas, conclui o autor que cada uma delas possui eficácia distinta. A primeira, que outorga competência aos municípios para instituir o imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência dos estados, seria norma de eficácia plena, imediatamente executável, prescindindo da superveniência de lei complementar. A segunda, que atribui competência à União Federal para, mediante lei complementar, definir quais são esses serviços, assim como ocorre com qualquer outra norma geral de Direito Tributário, é norma de eficácia limitada, cabendo à lei complementar integrar a eficácia do preceito.689 686 BORGES, José Souto Maior. Aspectos Fundamentais ..., op. cit., p. 21-22. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 81-87. 688 Lei complementar..., op. cit., p. 201-202. 689 Aspectos Fundamentais ..., op. cit., p. 28-29. 687 263 Conforme já foi explicitado no item alusivo às normas gerais de Direito Tributário, as leis complementares que tenham como destinatários todas as pessoas políticas, ou mesmo toda uma classe de pessoas políticas, como é o caso dos municípios, será inequivocamente uma norma geral em matéria tributária, esteja ou não tal previsão inserida no inciso III do artigo 146 da Constituição, único que, literalmente, dispõe sobre tais hipóteses. Com efeito, a lei complementar a que se refere o inciso III do artigo 156 da Constituição, por ter seu âmbito de eficácia dirigido a todos os municípios, e também aos estados-membros e à União Federal – para que respeitem o campo de tributação municipal – identifica-se plenamente como sendo norma geral de Direito Tributário, da espécie subsumível ao inciso I do artigo 146 da Constituição, o qual estabelece caber à lei complementar “dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”. O que se quer defender é que a lei complementar em apreço, que venha a definir os serviços tributáveis pelos Municípios, somente pode ter como objetivo, constitucionalmente delineado, o de dispor sobre eventuais conflitos que possam surgir com outras pessoas políticas, em virtude de um eventual erro sobre a conceituação de um determinado fato, deslocando-o indevidamente para a esfera tributária de ente político incompetente. Enfatiza-se o vocábulo “dispor”, pois o mesmo não significa “solucionar”, “dirimir”, “resolver”, tarefas que cabem ao Poder Judiciário, quando provocado. Esse é o entendimento de GERALDO ATALIBA, para quem “[...] só nestes casos tem cabimento a lei complementar”, do que resulta a conclusão lógica de que ela não é sempre necessária, tendo função excepcional. Fora desses casos, os municípios são livres para criar e disciplinar o ISS apenas com os limites constitucionais.690 Por exemplo, caso uma prestação de serviço fosse incorretamente conceituada como operação de industrialização por lei ordinária da União Federal, caracterizando-a como hipótese de incidência do IPI e não do ISS. Nesse caso, a lei complementar teria lugar, dispondo que a operação em si não configura industrialização, mas sim prestação de serviço, predominando a obrigação de fazer, ao invés da obrigação de dar. Como exemplo, pode-se citar o item 14.04 da lista anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 jul. 2003, que define a operação de “recauchutagem ou regeneração de pneus” como 690 Imposto Sobre Serviços..., op. cit., p. 78. 264 sendo serviço tributável pela via do ISS, o que retira a competência da União Federal em pretender tributar tal fato pelo IPI, como se de operação de industrialização se tratasse. É óbvio que, por força maior da autonomia das pessoas políticas, seja decorrente do Princípio Federativo, seja do primado da Autonomia Municipal, essa lei complementar não pode ser, como de fato não o é, o fundamento de validade da lei ordinária oriunda de cada pessoa política, que efetivamente vem a criar o tributo, pois elas buscam sua legitimidade diretamente da Constituição. Com efeito, na hipótese de a lei complementar em comento dispor de forma incorreta, contrariando a inteligência constitucional, força é concluir que não poderá obrigar nenhuma das pessoas políticas destinatárias, e com muito mais razão não poderá vincular o Poder Judiciário, que é a esfera estatal a quem compete, em definitivo, compor os conflitos, aí incluídos os de competência tributária. Portanto, ainda que de uma interpretação rasa do artigo 146 e seus incisos I, II e III, da Constituição Federal, possa resultar a precipitada conclusão de que lei complementar veiculadora de normas gerais de Direito Tributário somente é a de que trata o seu inciso III, estamos certos de que qualquer lei complementar de que fala o caput desse artigo, que vier a ser editada, somente poderá dispor sobre normas gerais em matéria de legislação tributária, as quais ou disporão sobre conflitos de competência em matéria tributária, ou regularão as limitações constitucionais ao poder de tributar. 691 Esse é o pensamento de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, para quem “[...] só na área de atritos eventuais entre o imposto de serviços e impostos de competência alheia [...], ou seja, no âmbito material sujeito a conflitos de competência tributária, é que caberá a definição pela União dos serviços submetidos ao imposto municipal”, âmbito esse chamado de zona cinzenta, interpenetrável por mais de um tributo. E complementa o autor: “Só nessa hipótese é constitucionalmente autorizada a edição de lei complementar a qual terá por função ‘definir’ ou regular uma limitação constitucional ao poder de tributar (vale o mesmo que dizer: ‘completar’ a Constituição)”.692 Mais recentemente, o autor, defendendo uma proposta unificadora das chamadas teorias dicotômica e tricotômica, passou a afirmar que é uma só a função da norma geral de Direito Tributário: “[...] regular a legalidade, a norma geral, e a sobrenorma disporá sobre a legalidade tributária. [...] Não sobre a legalidade 691 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso..., op. cit., p. 805. 265 tributária toda, porque a norma geral deve conviver com as normas tributárias editadas pelas pessoas constitucionais”.693 AIRES BARRETO defende posição interessante sobre o alcance da lei complementar de que trata o inciso III do artigo 156 da Constituição. Partindo da premissa de que a regra para tributar serviços está na competência municipal, pois compreende “serviços de qualquer natureza”, e de que a exceção se encontra na competência estadual – serviços de transporte intermunicipal, interestadual e de comunicação – conclui que a lógica constitucional está em que o papel da lei complementar em comento não pode ser outro senão o de definir a exceção, ou seja, definir quais os serviços não são tributáveis pelos Municípios. Nesse sentido, tal lei definiria, além dos dois serviços de competência estadual, aquelas operações que, não obstante parecerem serviços – pelo menos na visão dos leigos – constituem, na verdade, operações mercantis, ou também, as industriais. Argumenta o autor que a “definição”, por lei complementar, de serviços tributáveis pelos Municípios, viola o Princípio da Autonomia Municipal, pois, na sua ausência, os municípios ficariam inibidos de instituir e arrecadar os tributos de sua competência, o que, de resto, é garantido pelo artigo 30 da Carta Constitucional.694 Concorda-se, em parte, com as argumentações expendidas por esse autor, no sentido de que mais eficaz e simples é a conclusão que vê na lei complementar em comento a tarefa de definir, em relação aos serviços, quais são as exceções, ou seja, quais são as materialidades não passíveis de tributação pelo ISS municipal. Mas, por outro lado, entende-se ser possível que a lei complementar defina os serviços tributáveis pelos municípios e ainda assim respeite os ditames constitucionais, desde que, por exemplo, a clássica lista tenha conteúdo não restritivo do conceito constitucional de serviço tributável pelo ISS, criada, inclusive, visando implementar outros vetores previstos na Lei Maior, o que pode ser feito, por exemplo, com uma coerente distribuição dos serviços em itens graduados conforme a capacidade contributiva de cada um. É que, ao lado da inequívoca redação do inciso III do artigo 156, entende-se que a competência para a lei complementar definir os serviços tributáveis pelos 692 Lei Complementar..., op. cit., p. 203. Normas Gerais do Direito Tributário, Inovações no seu Regime na Constituição de 1988. Revista de Direito Tributário, n. 87, p. 70. 694 ISS na Constituição..., op. cit., p. 40-41. 693 266 municípios não é necessariamente excludente da eficácia do Princípio da Autonomia Municipal, desde que, advirta-se, tal definição tenha conteúdo meramente declaratório da essência constitucional, sendo tal lei editada única e exclusivamente com vistas a facilitar, e não condicionar a aplicação do dispositivo constitucional outorgador da competência municipal, mesmo porque, como já se defendeu alhures, esse dispositivo é, na ausência de lei complementar, de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Existindo a lei complementar definidora dos serviços, esse dispositivo será de eficácia contida, desde que, esta lei complementar, na qualidade de norma geral de Direito Tributário criada para dispor sobre conflitos de competência, não preveja outra coisa senão a realização plena do dispositivo constitucional que outorga a competência tributária aos municípios. Não se pode negar, entretanto, que muito mais lógico e eficaz seria definir as exceções dos serviços não tributáveis pelos municípios. A exigência da interpretação sistemática, como já foi dito, está em aplicar qualquer dispositivo jurídico, inclusive os previstos na própria Constituição, levando-se em consideração todo o restante do ordenamento jurídico, mas sempre conferindo relevância hermenêutica às normas jurídicas que, por protegerem os mais altos valores consagrados pela Constituição, revelam verdadeiros princípios. O texto constitucional não abrange, ipso facto, normas de idêntica hierarquia, devendo, as normas de hierarquia inferior, ser interpretadas conforme as diretrizes axiológicas e ideológicas positivadas nas normas de hierarquia superior. Aplicando-se esse raciocínio ao caso em tela, conclui-se que a prescrição existente no inciso III do artigo 156, da Constituição, não possui uma carga axiológica suficiente em si mesma, mas tal norma é antes “imantada” pelas exigências do cânone da Autonomia Municipal, norma de maior valor de onde retira a sua juridicidade e, como conseqüência, a sua finalidade no contexto constitucional. Verifique-se, ainda, que a expressão “definidos em lei complementar” nem mesmo possui, ao menos de forma expressa, qualquer sanção pela sua inobservância. Ou seja, não estão os Municípios impossibilitados de exercer a sua competência na ausência de lei complementar definidora dos serviços tributáveis. AIRES BARRETO tem entendimento pelo qual a maior eficácia da lei complementar, no sentido de proporcionar uma redução na margem de equívoco interpretativo quanto aos artigos que discriminam as competências tributárias dos estados, Distrito Federal e municípios, seria obtida caso ela tivesse por conteúdo a definição dos serviços não tributáveis pelos municípios, sejam os de competência dos 267 estados e Distrito Federal pela via do ICMS, sejam os demais serviços não subentendidos no conceito constitucional, como é o caso, por exemplo, dos serviços públicos, dos serviços prestados mediante relação de emprego etc.695 Após a análise da doutrina sobre o tema, entende-se, por fim, que a única interpretação possível para a lei complementar de que trata do inciso III do artigo 156 da Lei Maior, é a que a considera como uma norma geral de Direito Tributário aquela que, no contexto do artigo 146, também da Constituição, somente pode ter por objetivos “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar” ou “dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária”, conforme defende MARCELO CARON BAPTISTA.696 4.3.1.4 A Lista de serviços Conforme foi visto no item anterior, dispõe o artigo 156, III, da Constituição Federal, que lei complementar definirá os serviços tributáveis pelo ISS, o que se convencionou positivar através da conhecida “lista de serviços”. Essa lista, que adveio originalmente com o Decreto-lei nº 406/68, e atualmente é definida pela Lei Complementar n° 116, de 31 jul. 2003, passou a ser defendida por muitos autores como sendo taxativa, fora da qual os municípios não poderiam tributar outros serviços, ainda que não estivessem na competência das outras pessoas políticas. Nessa linha destaca-se o entendimento de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, para quem a lista de serviços baixada por lei complementar, por imperativo de ordem constitucional, é taxativa, tendo, com efeito, função limitativa, restritiva, contendo as únicas atividades sujeitas ao ISS.697 Em obra editada ainda sob a égide da Constituição anterior, MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES defende que a razão de a lista ser taxativa ou exaustiva está no fato de o legislador do Decreto-lei nº 406/68 ter se preocupado, na definição do “fato gerador” do ISS, em disciplinar o conceito de serviços. 698 Com a devida vênia, quer parecer que a definição do conceito constitucional de serviço tributável pelo ISS não tem por pressuposto lógico a existência de uma lista, criada com a pretensão de exaurir as espécies de serviços que se subsumam àquele conceito. 695 Ibidem, p. 41. ISS..., op. cit., p. 236. 697 Doutrina..., op. cit., p. 108. 696 268 Uma coisa é definir o conceito de serviço, labor legitimamente complementar da Constituição, outra é identificar atividades cuja essência jurídica coincida com aquele conceito, tarefa que somente pode ser realizada pelo legislador municipal, sob pena de violação ao Princípio da Autonomia Municipal. Para ALIOMAR BALEEIRO, em entendimento híbrido, apesar de ter defendido ser a lista taxativa, esta comportaria interpretação analógica, o que estenderia a competência municipal aos serviços assemelhados aos constantes da lista.699 A jurisprudência inclinou-se no sentido de ser a lista numerus clausus, variando apenas o entendimento sobre a possibilidade dos seus itens comportarem interpretação ampla, extensiva ou analógica. O primeiro raciocínio a combater a taxatividade da lista, da forma como vinha sendo defendida, deve-se ao então procurador do município de São Paulo, ARTHUR CARLOS A. PEREIRA GOMES, o qual defendeu que a taxatividade somente alcançaria a chamada zona cinzenta, na qual estariam compreendidas as chamadas “atividades-mistas”, campo onde os atritos entre o então ICM e o ISS seriam mais freqüentes. Dessa forma, permaneceriam no campo do ISS os serviços “puros”, que não constituíssem hipótese de incidência de imposto federal ou estadual. 700 Esse entendimento representou valiosa contribuição, por ter sido precursor em ver na lista de serviços a função mais compatível aos desígnios constitucionais, ou seja, a de “dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária”, o que, em última análise, nada mais é do que regular uma limitação constitucional ao “poder de tributar”, pois a competência de um ente político tem a competência alheia como limite constitucional inviolável. AIRES BARRETO lembra que a interpretação que conclui pela taxatividade da lista, veiculada por lei complementar, tem inibido em muito a competência municipal em matéria de ISS, levando os municípios a não tributarem uma série de serviços passíveis de serem gravados por esse imposto: “De fato, os Municípios não estão gravando uma vasta gama de atividades que configuram serviço e que a Constituição colocou sob o seu manto”. Essa situação decorre de duas possíveis razões. A primeira refere-se aos casos de leis municipais, instituidoras do ISS, que se autolimitaram mediante a cópia da lista estabelecida pela lei complementar. A segunda diz respeito às hipóteses de leis municipais que, apesar de conterem um item genérico, pelo qual são 698 699 Imposto sobre serviços..., op. cit., p. 43. Direito Tributário..., op. cit., p. 500-501. 269 tributáveis “quaisquer outros serviços, não compreendidos nos itens anteriores”, não executam esse dispositivo em face do atual posicionamento do Poder Judiciário que, na esmagadora maioria dos casos, entende pela taxatividade da lista. 701 GERALDO ATALIBA, partindo do pressuposto de que a lei complementar em comento só pode atuar de modo excepcional nos casos em que seja necessário regular limitações constitucionais ao “poder de tributar” ou dispor sobre conflitos de competência, conclui que a lista, caso existente, nem mesmo pode ser tida como exemplificativa, podendo servir tão-somente como sugestão, onde e quando os seus itens não tenham pertinência com o campo de conflito, a chamada área cinzenta.702 Esse também é o entendimento de HERON ARZUA que, após definir os estreitos limites em que pode atuar a lei complementar em matéria tributária, pondera que, tendo em vista a fixação de serviços que dispõe o artigo 156, III, da Constituição, e em especial “[...] o asserto que a legislatura, subserviente ao princípio da autonomia municipal, não pode amputar a competência atribuída pela Constituição, a nossa compreensão é a de que, se a definição vier consubstanciada em lista, como sói ocorrer atualmente, ela só pode ser meramente sugestiva”.703 Uma das melhores análises sobre o tema coube a JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES. Partindo de uma interpretação sistemática, seu entendimento teve como fundamento os seguintes princípios: (a) rigidez da discriminação constitucional de competências tributárias, do qual resulta que a materialidade do ISS deve ser buscada na própria Constituição e não pode ser reduzida por lei de hierarquia inferior, haja vista ser a regra da competência uma norma jurídica plenamente aplicável e auto-executável, e não uma norma de eficácia limitada; e (b) autonomia municipal, pois dela resulta que nenhuma pessoa política, nem mesmo a União – ainda que por lei complementar – pode interferir nos assuntos de interesse exclusivo dos municípios. Prova disso está em que, caso a União não aprovasse essa lei complementar, é pressuposto lógico-jurídico que os Municípios não ficariam tolhidos quanto à instituição do ISS.704 MARÇAL JUSTEN FILHO prestigiou incondicionalmente o raciocínio do jurista recifense, acrescendo que a apontada lei complementar se trata de norma geral de 700 Imposto municipal sobre serviços: taxatividade parcial da lista. Revista de Direito Público, n. 20, p. 338. 701 ISS na Constituição..., op. cit., p. 114-115. 702 Imposto sobre serviços..., op. cit., p. 88. 703 O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 150. 704 Lei Complementar..., op. cit., p. 185-206. 270 Direito Tributário, editável pela União ainda que inexistisse a previsão específica do artigo 24, II, da Constituição Federal de 1967, vigente à época, prevista de forma equivalente, na atual Constituição, no inciso III do artigo 156, dispositivo que veicula norma constitucional de eficácia contida – “redutível”, na expressão do autor – “[...] pois norma geral de Direito Tributário não se destina a ampliar a eficácia ou a dar eficácia a normas constitucionais – antes, a reduzir a eficácia delas”. Como conclusão, defende que a definição de serviços pela União somente tem cabida na chamada zona cinzenta, interpenetrável por tributos diversos. Fora da zona cinzenta, a lei complementar não poderia ser taxativa nem exemplificativa, pois nessa área não cabe a ela dispor de nenhuma forma.705 Em estudo realizado já sob a égide da atual Constituição, MARÇAL JUSTEN FILHO esclarece que a nova ordem constitucional exige nova interpretação para o tema, haja vista a interpretação que prevaleceu na jurisprudência se ter alicerçado em alguns pressupostos que perderam assento na Constituição de 1988. A atual Carta Constitucional, ao determinar que a República Federativa do Brasil é “[...] formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal” (artigo 1º); e que “[...] a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” (artigo 18); extinguiu qualquer possibilidade de invocar um papel menor para os municípios, como era conclusão corrente quando do ordenamento jurídico anterior, o que se ilustra com a extinção da anterior possibilidade – artigo 19, § 2º da Constituição Federal de 1969 – de a União instituir as chamadas “isenções heterônomas”.706 O artigo 151, III, da Constituição de 1988, inclusive, reiterou essa impossibilidade, ao prescrever que “É vedado à União [...] instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”. Equivale a dizer que a União Federal, a partir da Constituição de 1988, não está mais autorizada a reduzir a amplitude da competência tributária municipal, a qual já é estabelecida em nível constitucional. A dicção do inciso III, a, do artigo 146 da Constituição, também não autoriza a concluir pela possibilidade de a União, através de lei complementar, definir os “fatos geradores” dos impostos de forma genérica e 705 706 O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 99-100. O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-Lei nº 406. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 3, p. 67-68. 271 absoluta, pois o exercício da competência em relação às normas gerais só é legítimo quando não se afigura possível extrair uma solução segura diretamente da Constituição. Com exclusão desses casos, a lei complementar será inócua e ofensiva ao pacto federativo e à Autonomia Municipal. Em estudo mais recente, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, partindo da premissa de que a lei definidora dos serviços constitui-se em norma geral de Direito Tributário, conclui que essa lei complementar não poderá ter outro conteúdo senão o de regular limitação constitucional ao “poder de tributar”, mediante a definição dos serviços situados na chamada zona cinzenta, interpenetrável por tributos diversos. Noutro giro, conclui que o entendimento pela taxatividade da lista resulta de uma indevida utilização do argumento “a contrario sensu”, que parte da literalidade do preceito “[...] o ISS tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa”, o que resulta na intributabilidade dos serviços não constantes da lista, interpretando restritivamente não só os casos previstos, como os não listados. Ora, os serviços não listados, à luz do contexto constitucional, constituem apenas e tão-só hipóteses imprevistas, casos não regulados, em sede de normas gerais, com o que “[...] a doutrina transformou a imprevisão legal numa previsão ficta pela via interpretativa”. Com efeito, o argumento a contrario somente seria legítimo se a fórmula legal tivesse o seguinte teor: “o ISS tem como fato gerador somente a prestação de serviços constantes da lista anexa”, ou seja, quando a norma, expressa ou implicitamente, limita a aplicabilidade de sua disposição a determinada classe de pessoas ou do estado de fato, o que se obteve com o acréscimo do advérbio “somente” no texto legal hipotético. A formulação “se A então C”, não autoriza o intérprete a concluir que “se não-A, então não-C”. Caso a fórmula fosse “Se somente A, então C”, aí sim seria válida a interpretação de que “se não-A, então não-C”.707 Amparado em CARLOS MAXIMILIANO, o referido autor sustenta que o argumento “a contrario”, baseado, entre outras, na regra “inclusio unius fit exclusio alterius”, ou seja, a inclusão de uma categoria implica na exclusão de quaisquer outras, apesar de já muito prestigiado em outros tempos, hoje é malvisto pela doutrina e pouco utilizado pela jurisprudência, cabendo, em seu lugar, a parêmia oposta “positio unius non est exclusio alterius”, pela qual a especificação de uma hipótese não redunda em exclusão das demais. O campo de aplicação do argumento “a contrario”, ensina o 707 Aspectos Fundamentais..., op. cit., p. 32. 272 autor, é o direito excepcional, o que não é o caso das normas gerais de Direito Tributário, dentre as quais se insere a lei complementar de que trata o artigo 156, III, da Constituição.708 Ainda o mesmo autor, no que foi secundado por MARÇAL JUSTEN FILHO, demonstra a contento que, a priori, não podem ser descartadas as alternativas opostas da exemplificatividade ou da taxatividade da lista de serviços, porque nenhuma das duas soluções técnicas seria conflitante com a sistemática constitucional. 709 A questão, defende o autor, deve ser analisada à luz do direito positivo, o que implica concluir que a solução somente poderá advir da consulta à lei complementar efetivamente positivada. Ou seja, a taxatividade da lista será legítima se e somente quando a respectiva lei complementar tiver sido editada em respeito aos ditames constitucionais. Por outro lado, caso essa lei possibilite interpretações distorcidas quanto aos limites da competência municipal, há que se concluir pelo seu mero caráter exemplificativo.710 Em outra oportunidade mais recente, esclareceu o autor que a lista não poderia jamais ser exaustiva em relação à competência municipal para a instituição do ISS. No entanto, caso analisada sob o ângulo específico e exclusivo dos conflitos entre ISS e ICMS, as listas previstas nos textos legais, desde o Decreto-lei 406/68 até a Lei Complementar 116/2003, tiveram caráter exaustivo, “[...] porque não deixaram juridicamente margem para o surgimento a posteriori de conflitos residuais entre esses tributos”, ou seja, juridicamente, os conflitos entre ISS e ICMS tiveram sua forma de composição exaustivamente prevista nos mencionados diplomas legais. A lista poderia, também, ser tida como exemplificativa, desde que visualizada sob o ângulo da competência tributária municipal, a qual não pode sofrer limites, ainda que parciais, em nível infraconstitucional. Conclui o autor: “[...] inclusio unius (serviço constante na lista), non fit exclusio alterius (serviço não constante na lista)”.711 Ainda que de acordo com os fundamentos desse autor, ousa-se discordar parcialmente de algumas de suas conclusões. É que o eventual entendimento pela taxatividade da lista, ainda que somente no campo dos conflitos entre ICMS e ISS, tendo por fundamento uma questionável garantia de que em dado momento ela se ajusta aos ditames constitucionais, é no mínimo temerária, pois, como se sabe, a evolução e a dinâmica das atividades econômicas tem a capacidade de criar novas formas de 708 Ibidem, p. 33-35. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 100. 710 Lei Complementar..., op. cit., p. 204. 709 273 prestação de serviços em um curto espaço de tempo, como ocorre, por exemplo, com as atividades ligadas à informática e à cibernética. Por outro lado, a exemplificatividade da lista parece ser solução ainda menos feliz, pois do seu rol constam atividades econômicas que, como já demonstrado anteriormente, não se subsumem ao conceito constitucional de serviços tributáveis pela via do ISS, como é o caso do arrendamento mercantil (leasing), previsto no item 15.09 da lista anexa à Lei Complementar n° 116/2003.712 Para ROQUE ANTONIO CARRAZZA, o melhor raciocínio parece ser o que defende ser a lista de serviços meramente sugestiva. Defende o autor que a lei complementar de que trata o artigo 156, III, da Constituição, só pode veicular normas gerais em matéria de legislação tributária, ou seja, “[...] só poderá dispor sobre possíveis conflitos de competência entre o ISS e outros tributos – federais, estaduais ou municipais – ou apontar as limitações constitucionais ao exercício da competência para tributar por via de ISS”, fora desse campo não há espaço para a lei complementar.713 Conclui, assim, em relação à lista, que “[...] ela contém sugestões que poderão ou não ser seguidas pelo legislador municipal enquanto cria o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza”.714 No mesmo sentido é o pensamento de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO: como não se pode ignorar que a norma prevendo lei complementar para ‘definir os serviços de qualquer natureza’, tributáveis pelo ISS, deve possuir um mínimo de eficácia; pode ser entendido que – sem prejudicar a competência municipal – a ‘definição’ teria por escopo explicitar os serviços a fim de evitar eventuais conflitos de competência em razão de materialidades assemelhadas, afetas à União, Estados e Distrito Federal”. 715 Embora hajam fortes argumentos doutrinários para defender a não taxatividade da lista, infelizmente o Poder Judiciário tem consagrado ser numerus clausus o rol dos serviços constantes na lei complementar, certamente como resultado de uma equívoca consolidação doutrinário-jurisprudencial, firmada após o advento da Emenda Constitucional 18/65. Quando muito, as decisões admitem uma interpretação ampla ou extensiva da lista, com vistas a abranger serviços idênticos aos expressamente previstos, 711 Aspectos Fundamentais..., op. cit., p. 36-37. Vide supra, subitem 4.3.1. 713 Imposto sobre serviços. Revista de Direito Tributário, n. 48, p. 209-210. 714 Ibidem, p. 210. 715 ISS: aspectos teóricos e práticos, p. 52. 712 274 mas com denominação diversa, como ilustra este acórdão da 2ª Turma do STJ, da lavra da Ministra ELIANA CALMON: TRIBUTÁRIO – ISS – LISTA DE SERVIÇOS – A jurisprudência sedimentada é no sentido de entender como taxativa a enumeração da lista de serviços que acompanha a LEI COMPLEMENTAR 56/87. 2. Embora taxativa, admite a lista interpretação extensiva para abrigar serviços idênticos aos expressamente previstos, mas com diferente nomenclatura. 3. Tarifas em cobrança, que se incluem na expressão "serviços prestados pela atividade bancária" (item 95 da lista). 4. Recurso Especial improvido.716 JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, cujo trabalho sobre a lei complementar de que trata o artigo 156, III, da Constituição, é dos mais consistentes, afirma que a posição que defende serem intributáveis os serviços não listados, além de aplicar o argumento “a contrario” em hipótese que nada tem de excepcional no sistema – normas gerais de Direito Tributário – incorre ainda em uma petição de princípio ao defender como óbvia ou comprovada uma premissa não demonstrada: a “taxatividade” da lista. Como uma terceira crítica, ainda que essa tomada de posição não se apóie, em rigor, “[...] na autoridade do argumento, senão no argumento da autoridade”, como é exemplo o raciocínio de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, para quem a lista é taxativa “[...] por imperativo de ordem constitucional”, e que a “maioria esmagadora dos autores agasalham o mesmo ponto-de-vista”, sem, entretanto, ter esse autor consignado qualquer fundamentação consistente para sua afirmação. 717 Recentemente, o comentário sobre a lista de serviços feita por MARCELO CARON BAPTISTA parece ter sido o mais coerente com o papel da lei complementar, no contexto da Constituição Federal de 1988. Defende o autor que a lista de serviços não é taxativa, exaustiva, exemplificativa ou sugestiva, bem como descabe falar em sua interpretação analógica, restritiva, limitativa, ampliativa ou extensiva. Afirma ainda que a solução dos eventuais conflitos deve partir da própria Constituição, e não da lei complementar, razão pela qual a lista não tem utilidade prática. 718 Acrescenta o autor: A lista, portanto, é de observância obrigatória apenas naquilo que estiver em sintonia com a Constituição Federal, servindo de instrumento para a superação de supostos ‘conflitos de competência’ ou regulando ‘limitações constitucionais ao poder de tributar’, o que em muito difere de entendê-la como taxativa ou exaustiva. Por outro lado, não se lhe atribui qualquer natureza exemplificativa ou sugestiva, porque não é tarefa do legislador 716 STJ – RESP 567592 – PR – 2ª T. – Relª Min. Eliana Calmon – DJU 15.12.2003 – p. 00300 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 717 MORAES, Bernard Ribeiro de. Doutrina..., op. cit., p. 108-109; BORGES, José Souto Maior. Aspectos Fundamentais..., op. cit., p. 36. 718 ISS..., op. cit., p. 235-236. 275 complementar dar exemplos ou sugerir algo a quem quer que seja. Ele deve agir, apenas e tão-somente, no campo que lhe foi reservado pela Constituição, quando o seu lavor, a norma jurídica, será obrigatória e, em determinados casos, vinculará as pessoas políticas.719 A lista de serviços prevista no Decreto-lei n° 406/68 sofreu alterações com o Decreto-lei n° 834/69, com a Lei Complementar n° 56/87, e por fim, com a Lei Complementar n° 100, de 22 dez. 1999. Pelas alterações, não só eram incluídos novos itens, como também acabava sendo editada uma nova lista, porém sempre no âmbito do Decreto-lei n° 406/68. A exceção foi a Lei Complementar n° 100/99, que incluiu no rol apenas o serviço de exploração de rodovias pelas empresas concessionárias. Ainda que a ordem na numeração da lista tenha sofrido alterações, o formato permanecia sempre o mesmo, no sentido da enumeração apenas em itens, com exceção do serviço de diversões públicas, onde além do item com essa designação (gênero), o Decreto-lei n° 406/68, assim como todos os dispositivos legais posteriores que o alteraram, detalharam esta atividade em subitens (espécies), como cinemas, teatros, bailes etc. Com o advento da Lei Complementar n° 116/2003, a nova lista anexa discrimina todos os serviços em itens e subitens, a exemplo do que ocorre, na esfera federal, com a tabela do IPI – TIPI – anexa ao Decreto n° 6.006, de 28 dez. 2006. O novo formato tem suscitado interpretações divergentes por parte da doutrina, havendo os que defendem serem os itens genéricos meros indexadores dos subitens, assim como há entendimento no sentido de os itens possuírem plena força normativa. Ou seja, no primeiro caso, não sofreria a incidência do ISS um serviço que, não obstante plenamente compatível com a descrição de um dado item, não esteja listado entre os subitens. Já na segunda hipótese, ocorreria exatamente o oposto, tendo os subitens, portanto, caráter meramente exemplificativo, sendo tão-só exigida a subsunção ao gênero previsto no item. Defendendo a primeira hipótese, GABRIEL LACERDA TROIANELLI e JULIANA GUEIROS entendem que os itens da lista anexa funcionam como índice da lista, não tendo força normativa suficiente para atrair a incidência tributária. A taxatividade, portanto, concentrar-se-ia apenas nos subitens. Apontam duas razões para tanto: a primeira tem como premissa a regra hermenêutica pela qual não haveria na lei elementos inúteis; e a segunda dever-se-ia ao próprio formato da lista, onde há itens que possuem apenas um subitem, o qual apenas repete a descrição do serviço listado no 719 Ibidem, p, 239. 276 item. Ou seja, não haveria razão para reproduzir um serviço em um subitem se o respectivo item possuísse plena força normativa.720 Por outro lado, defendem que as expressões “e congêneres” e “de qualquer natureza” possuem funções diferentes, a depender de sua previsão em um item ou em um subitem. Nos itens, o efeito dessas expressões resumir-se-ia a alargar a abrangência do índice, com vistas a possibilitar a eventual inclusão de novos subitens posteriormente. Já nos subitens, defendem que as expressões são inócuas, por serem incompatíveis com a taxatividade, ainda que ela seja interpretada de forma ampla e analógica.721 AIRES BARRETO, após ressalvar seu entendimento pela inconstitucionalidade da taxatividade da lista de serviços, e com base em argumentos semelhantes, tem entendimento no sentido de que somente são tributáveis os serviços descritos nos subitens da lista, assertiva que, esclarece o autor, somente é feita tendo em vista a consolidação jurisprudencial sobre o tema. Esse parece ser o melhor raciocínio, em que pese, como adverte o próprio autor, a taxatividade da lista ser inconstitucional, seja em relação aos itens ou aos subitens, pois resulta em flagrante ofensa ao primado da Autonomia Municipal. Com o advento da Lei Complementar n° 116/2003, surge um novo argumento para modificar o entendimento da taxatividade da lista, hoje infelizmente predominante na jurisprudência, em que pese a doutrina, em sua grande maioria, defender com vigor exatamente o contrário. O § 4º do seu artigo 1º, ao estabelecer que “a incidência do imposto não depende da denominação dada ao serviço prestado”, veicula dispositivo que pode perfeitamente servir de fundamento para encorajar o Poder Judiciário a rever o seu indefensável e acientífico posicionamento. O autor, nesse sentido, sublinha que o novo dispositivo é de extrema utilidade, pois evita a glorificação da tese da taxatividade da lista de serviços, com o que se está de pleno acordo. 722 Registre-se, por fim, que a expressão “serviços de qualquer natureza”, constante do artigo 156, III, da Constituição é, em rigor, contraditória com a outra expressão, constante do final desse mesmo dispositivo, pelo qual aqueles serviços serão “[...] definidos em lei complementar”, pois “Se são de qualquer natureza, prescindem de definição; se são definidos, não serão jamais os de qualquer natureza, mas sim, os 720 O ISS e a Lei Complementar..., op. cit., p. 111-114. Ibidem, p. 114-115. 722 ISS na Constituição..., op. cit., p. 116-120. 721 277 definidos”, como bem adverte AIRES BARRETO.723 Esse raciocínio foi prestigiado por JOSÉ ROBERTO VIEIRA, para quem a questão soluciona-se juridicamente bem, “[...] lembrando que essa lei complementar aí referida guarda uma relação de espécie para com o gênero da lei complementar do artigo 146, destinando-se apenas a dispor sobre conflitos de competência ou regular limitações da competência tributária, no caso, predominantemente, volta-se para os eventuais conflitos [...]”.724 Com efeito, e com a ressalva da importância prática contida no exame da taxatividade da lista de serviços – em virtude da equivocada orientação jurisprudencial – esse raciocínio é o que melhor atende à supremacia constitucional. 4.3.2 O critério temporal O ISS identifica-se, na classificação constante do artigo 116 do Código Tributário Nacional, entre os tributos que incidem sobre uma “situação de fato”, mais precisamente o fato de “prestar serviço”. Incorreto, portanto, é pretender onerar pelo ISS o negócio jurídico do qual decorre a prestação, conforme já demonstrado nos comentários alusivos ao critério material desse imposto. Essa afirmação não conflita com a necessidade de as prestações de serviço tributáveis pelo ISS serem somente aquelas objeto de uma relação contratual. Ou seja, embora “prestar serviço” seja um fato jurídico (tributário), deve ser subjacente a tal fato um negócio jurídico. No entanto, e ao contrário do que ocorre com o ICMS, o negócio jurídico não é o núcleo da hipótese de incidência. O critério temporal, assim como o pessoal e o espacial, pode ser descoberto a partir da análise da materialidade da hipótese de incidência, e, no caso do ISS, ensina MARÇAL JUSTEN FILHO que “[...] só pode ser o momento em que se configura a prestação de uma utilidade, prestação essa reconhecida como execução de obrigação de fazer”, posto que a materialidade do ISS deve descrever um ato jurídico. O critério temporal do ISS, portanto, ocorre “[...] quando é cumprida a prestação a que o sujeito está obrigado, quando ele executa o dever jurídico (consistente em um fazer) e dele se libera, adimplindo a obrigação extratributária que lhe incumbia”.725 723 Ibidem, p. 107-108. Prefácio. A Dupla Personalidade do ISS: Dr. Jekyll e Sr. Hyde! In: BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS: do texto à norma, p. 20. 725 O imposto..., op. cit., p. 134-135. 724 278 Há, porém, situações peculiares perante o Direito Privado. Existem obrigações de fazer que se caracterizam pelo seu cumprimento prolongar-se no tempo, como é o caso das obrigações de execução continuada e as de trato sucessivo: “As primeiras são aquelas onde as partes convencionam incumbir a uma delas a realização de prestações definidas, sendo desde logo definida a extensão de seus deveres e a época do adimplemento como também a contraprestação devida”. É o caso do contrato de assistência técnica, por exemplo. Nesse caso, a lei pode, à semelhança do que ocorre em relação ao IPTU, reputar que o fato tributário se considera ocorrido em um dado momento no transcurso do período de execução do contrato, mediante um fracionamento com efeitos somente no campo tributário. Ou seja, ainda que perante o Direito das Obrigações a prestação não esteja cumprida totalmente, para o Direito Tributário haverá execução de obrigação de fazer. As obrigações de trato sucessivo “[...] caracterizam-se por um acordo inicial de vontades para regular a conduta futura das partes, mas ficando para ulterior definição, durante a vigência do contrato, a exata extensão das prestações que incumbirão às partes”. São obrigações que envolvem os chamados “contratos normativos”, pois o acordo fornece regras gerais para situações futuras específicas, quando então será necessária nova manifestação de vontade. Aqui há uma relativa individualidade em cada prestação, as quais serão, por essa razão, autônomas para fins tributários, aplicando-se, a cada uma, a regra geral para o critério temporal da hipótese de incidência do ISS.726 Com raciocínio semelhante, AIRES BARRETO defende que a determinação exata do momento em que se considera ocorrido o fato tributário do ISS exige que se verifique se o serviço em questão é de natureza fracionável ou não. Caso o seja, a prestação do serviço estará concluída no preciso momento em que se ultime cada uma das frações em que a prestação se dividir, como ocorre, por exemplo, com as medições de obras realizadas na construção civil. Caso contrário, o serviço somente poderá ser considerado prestado no momento de sua conclusão definitiva.727 MARCELO CARON BAPTISTA tece relevantes argumentos sobre o momento da prestação do serviço, para fins de incidência do ISS. O autor, seguindo o melhor raciocínio, entende deva o critério temporal corresponder ao momento em que 726 727 Ibidem, p. 135-136. ISS: serviços de despachos aduaneiros – Momento de ocorrência do fato imponível – Local da prestação – Base de cálculo – Arbitramento. Revista de Direito Tributário, n. 66, p. 116. 279 “[...] a ação humana tenha o efeito de adimplemento integral de uma determinada prestação-fim de fazer contratualmente estabelecida, incumbida ao prestador”, ou seja, “[...] o fato jurídico tributário ocorre no instante em que o tomador recebe o resultado do esforço do prestador”. Acrescenta ainda que: “Enquanto a prestação-fim não for realizada pelo devedor, todo e qualquer esforço voltado ao tomador não passará de uma prestação-meio, incapaz de realizar o comportamento tributável”.728 O autor também se filia às acertadas críticas feitas por PAULO DE BARROS CARVALHO ao artigo 116, caput, do Código Tributário Nacional, acrescentando, especificamente ao ISS, que a eventual indicação do critério temporal em momento posterior à concreção, no mundo real, da materialidade da respectiva hipótese de incidência, pode resultar em risco de violação ao Princípio da Segurança Jurídica. 729 O comentário restringe-se a uma eventual eleição de momento “posterior”, em virtude da única possibilidade interpretativa resultante da expressão “salvo disposição de lei em contrário”, ressalva contida no precitado artigo 116, caput, posto que, permitir ao legislador eleger o critério temporal em momento anterior à efetiva ocorrência do fato tributário, resulta, em qualquer caso, em inevitável inconstitucionalidade, por violação direta do primado da Segurança Jurídica, o que já ocorreu, inclusive, com a inserção do § 7º no artigo 150 da Constituição, pela Emenda Constitucional nº 3/93.730 Conclui-se, enfim, que, se o critério material da hipótese de incidência do ISS é a prestação do serviço, o critério temporal só pode ser o exato momento em que essa prestação se concretiza no mundo fenomênico. Caso a norma preveja um critério temporal não coincidente com o momento de ultimação do critério material, o tributo não mais incidiria sobre a prestação de serviço, mas sobre a materialidade verificável no momento a que alude o critério temporal. É o caso, por exemplo, da tributação fixa das sociedades uniprofissionais, em que o critério temporal da norma do ISS é o momento da inscrição no cadastro municipal. Nessa hipótese, a tributação deixa de incidir sobre a prestação do serviço para onerar a inscrição profissional.731 Como será exposto no subitem seguinte, a correta identificação do critério temporal do ISS é imprescindível no exame do critério espacial, pois, por um raciocínio 728 ISS..., op. cit., p. 494-495. Ibidem, p. 497-498. 730 “§7.º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.” 731 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 138. 729 280 lógico, se o fato jurídico tributário desse tributo se considera ocorrido no momento em que o prestador se desincumbir de seu vínculo com o tomador, a lei do município em cujo território ocorrer a extinção desse liame jurídico será a única a incidir sobre o fato, assim como, em conseqüência, esse mesmo município é que será qualificado como sujeito ativo para exigir o recolhimento do imposto. 4.3.3 O critério espacial Importante relembrar, nessa fase do estudo, que a identificação dos critérios da regra-matriz de incidência do ISS, seja da hipótese de incidência, seja da conseqüência, deve ocorrer tendo por premissa inicial a análise da Constituição. O recurso à legislação infraconstitucional será secundário nesse labor, servindo, quando muito, para confirmar o que já dispõe o texto constitucional, quando então será o dispositivo inócuo ou redundante, ou para infirmação do seu conteúdo, por incompatibilidade e desrespeito à Lei Maior. Ainda que a Constituição não preveja, de forma expressa, o critério espacial das hipóteses tributárias, é possível, em alguns casos – dentre os quais se insere o ISS – retirar de seu contexto elementos indicadores do espaço em que o fato descrito na hipótese de incidência será reputado ocorrido.732 Pelo que já foi até aqui analisado, já se pode concluir que o critério espacial do ISS não pode ser outro senão aquele exato local em que se verifica a prestação de serviço tributável pelo ISS, entendida como a execução de uma obrigação de fazer, quando o prestador do serviço libera-se do dever jurídico que lhe incumbia frente ao tomador do serviço. Dizendo de outra forma, o critério espacial será o local em que se extingue o dever jurídico do prestador para com o tomador. O fato “imponível” do ISS ocorre no local onde ocorre a execução da obrigação de fazer, confirma MARÇAL JUSTEN FILHO, complementando o autor que “[...] há de reputar-se ocorrido o fato imponível no território do Município onde se configuram realizados os aspectos material e temporal da hipótese de incidência”.733 732 733 COSTA, Simone Rodrigues Duarte. ISS - a LC 116/03 e a incidência na importação, p. 115. Ibidem, p. 139. 281 Esse também é, dentre outros, o raciocínio de AIRES BARRETO734, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELLO735 e RUBENS MIRANDA DE CARVALHO736. Se a materialidade da hipótese de incidência do ISS se constitui no fato “prestação de serviço”, e não no negócio jurídico que lhe deu causa, como já foi demonstrado anteriormente, é irrelevante o local onde o negócio jurídico é celebrado, onde surge o vínculo (relação jurídica) entre tomador e prestador. A única e fundamental relevância diz respeito, na verdade, ao local de ocorrência da execução do contrato. O argumento será o mesmo, ainda que ambos os locais, surgimento e execução do contrato, coincidam, o que por óbvio não ocorre necessariamente. O local previsto no contrato como sendo o obrigatório para a execução da prestação não tem relevância direta na fixação do local de ocorrência do fato tributário do ISS e, por conseqüência, do município competente para a respectiva tributação. Se a parte contratada, sponte propria, presta o serviço em local diverso do estipulado contratualmente, surge para o contratante, de acordo com a legislação civil, a faculdade de recusar a prestação, o que, se verificado, desqualifica o esforço realizado como execução da obrigação de fazer, não ocorrendo a subsunção do fato à hipótese de incidência do ISS. Caso, entretanto, o tomador aceite a execução da obrigação em local diverso do contratado, ocorre fato tributário do ISS, tendo por critério espacial o local onde se deu a execução.737 Questão relevante também é a que diz respeito ao local em que está o prestador no momento do adimplemento da obrigação jurídica. Não é necessária a presença física do prestador do serviço nesse momento, ou seja, o local da ocorrência do fato tributário do ISS continuará sendo aquele da execução da obrigação de fazer ainda que, no momento da extinção do vínculo, lá não esteja presente o prestador. Em exemplo esclarecedor, MARÇAL JUSTEN FILHO cria duas hipóteses envolvendo o serviço de um protético. Imagine-se que, em um primeiro caso, um cliente contrata a elaboração de uma peça para que seja implantada no próprio consultório. Nesse caso, a execução da obrigação de fazer ocorreu no domicílio do profissional, sendo o ISS devido no município onde está localizado o consultório. Em uma segunda hipótese, o protético é contratado por um colega situado em outro município, obrigando-se a entregar a peça no consultório do outro profissional. 734 ISS na Constituição..., op. cit., p. 314. ISS..., op. cit., p. 146. 736 ISS: a Lei Complementar nº 116/2003 e a nova lista de serviços, p. 101. 735 282 Nesse caso, é óbvio que a execução da obrigação de fazer somente se ultimou no exato momento da entrega da peça ao destinatário, do que resulta ter o fato tributário ocorrido no município onde o destinatário está situado, sendo aí devido o ISS. Antes da entrega da peça, não houve nenhuma prestação de serviço tributável pelo imposto municipal, mas mera atividade juridicamente irrelevante, pois o protético ainda não havia cumprido seu dever jurídico.738 Uma outra perspectiva no estudo do critério espacial do fato tributário do ISS tem por premissa a verificação de que a regra-matriz desse imposto, conforme sua feição constitucional, conferiu privilégio à atividade exercida pelo prestador, e não à utilidade desejada e obtida pelo tomador, em raciocínio defendido por MARCO AURÉLIO GRECO, autor que, em síntese, vê nessa “utilidade” um critério muito mais consentâneo com a nova realidade dos negócios no mundo moderno, conforme já analisado anteriormente.739 O autor confirma: “[...] cumpre ter presente que o serviço pode ser visto sob a ótica da atividade ou da utilidade o que traz profundos reflexos na identificação do local da respectiva prestação” [sic].740 Pode-se, com efeito, concluir que, se a essência da materialidade do ISS ou, dizendo de outro modo, a sua perspectiva econômica, está estruturada sob o prisma da atividade, e não da utilidade, tem-se que esse critério conduz necessariamente a tributação ao local onde o serviço é prestado, onde a atividade é realizada, o que impede, por força da lógica, seja o critério espacial definido em locais como o estabelecimento ou domicílio do prestador, como fez o artigo 12 do Decreto-lei n 406/68.741 O raciocínio parece óbvio quando se imagina a prestação de serviços tradicionais, onde habitualmente o prestador está situado no mesmo local onde o serviço é consumado. Mas no caso de serviços prestados virtualmente, mediante a utilização de recursos como a internet ou satélites, a questão ganha nítida relevância. Supondo, por exemplo, uma prestação de serviço envolvendo três pessoas situadas em locais distintos: 737 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 140. Ibidem, p. 140. 739 Vide supra, item 4.3.1. 740 Internet..., op. cit., 96-97. 741 É preciso, no entanto, distinguir o estabelecimento prestador, que é aquele local – permanente, temporário ou mesmo virtual – onde o serviço é efetivamente prestado, do estabelecimento do prestador, que pode ser qualquer outro local onde o prestador tenha uma unidade econômica estruturada, mas que não é o local onde é prestado o serviço específico de que se cogita em um caso particular. A referência diz respeito à segunda hipótese. 738 283 (a) estabelecimento prestador; (b) provedor que hospeda site na internet; e (c) usuário do serviço. Na hipótese de o critério para definir o serviço ser o da atividade exercida, o fato tributário do ISS ocorrerá onde está o estabelecimento prestador, pois é aí que a atividade é exercida in concretu. Mas se o serviço for prestado através do “site” da empresa na internet, torna-se relevante o local do provedor onde esse “site” está hospedado. Contudo, o local do provedor somente terá relevância jurídica caso o “site” tenha sido efetivamente o meio físico utilizado na prestação dos serviços e na celebração dos respectivos contratos, ainda que sem a participação direta das partes. Enquanto a página na internet somente servir como meio de divulgação dos serviços prestados, ou seja, onde ocorre a oferta, ela será considerada uma simples vitrine, sem qualquer autonomia ou qualificação jurídica própria.742 Ressalte-se que MARCO AURÉLIO GRECO teceu esse raciocínio no ano de 2000, quando ainda estava em vigor o Decreto-lei n 406/68, o qual somente dispunha, em seu artigo 12, letra “a”, que o local de ocorrência do “fato gerador” do ISS era, regra geral, o estabelecimento prestador, não estabelecendo nada acerca da distinção entre estabelecimento permanente ou temporário. Visando adaptar a incidência do ISS às novas realidades, o artigo 4 da Lei Complementar n 116/2003 passou a prescrever: “Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas”. Percebe-se que a Lei Complementar n 116/2003 prestigiou, para a expressão “estabelecimento prestador”, o critério da atividade, reputando válidos tanto o estabelecimento “permanente” como o “temporário”, assim como aquele que configure uma unidade “econômica” ou “profissional”, conferindo ao conceito de estabelecimento prestador um sentido amplo, apto a colher toda e qualquer prestação de serviço passível de tributação pela via do ISS. A única alternativa interpretativa consentânea com o contexto constitucional é a que considera o fato tributário do ISS ocorrido no local, município, onde a prestação 742 Ibidem, p. 98-99. 284 do serviço se ultimou. Para isso, irrelevante será o fato de que as fases intermediárias à consumação da prestação, entendida esta como o adimplemento efetivo de uma obrigação contratual de direito privado, tenham ocorrido em município(s) diverso(s). É que nesse caso, os fatos ocorridos antes da conclusão do serviço tributável pelo ISS não são jurídicos, pelo menos não jurídico-tributários. Registre-se o entendimento de MARCELO CARON BAPTISTA sobre o tema, em raciocínio construído sobre a inafastável premissa da supremacia constitucional, na análise desse tema: Aferir se a prestação de serviço importante para o ISS ocorreu requer uma incursão nas linguagens que constituem os dois mundos referidos; na jurídica, em especial na seara do Direito das Obrigações, para verificar se o esforço atingiu a prestação-fim pactuada; e na do mundo “real”, na parte em que é objeto da Física, para identificar os correspondentes materiais, temporais e espaciais do fato. Sendo essa uma imposição do próprio Direito ela deve ser respeitada até as suas últimas conseqüências. Não há como dissociar a materialidade daquele exato local em que o serviço foi prestado, ou seja, do local em que o esforço do prestador fez desaparecer o dever jurídico contratual.743 Com base nesse raciocínio, ao qual nos filiamos incondicionalmente, o autor adverte que ao legislador infraconstitucional é vedado, por força do próprio sistema jurídico, considerar que o fato ocorreu em local diverso daquele em que se verificou a sua materialidade, pois a desvinculação do critério espacial dos critérios material e temporal destrói a estrutura da hipótese normativa.744 É essa perspectiva jurídica que deve orientar, em qualquer caso, todas as conclusões sobre o tema do critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, independente de qualquer dificuldade prática pertinente à fiscalização e cobrança do ISS. 4.3.4 A questão da incidência condicionada ao pagamento do serviço Ainda que seja pacífico não incidir o ISS sobre o rendimento ou a renda obtidos pelo prestador, também é certo que os serviços gratuitos não são tributáveis, pois só há incidência do imposto municipal sobre o serviço que revele capacidade contributiva, ou seja, aquele que se constitui em fato signo-presuntivo de riqueza. A prestação do serviço, portanto, sobre ser necessária, não é suficiente em si mesma, sendo imprescindível a existência de remuneração, sob pena do imposto incidir tão só 743 744 ISS..., op. cit., p. 516. Idem. 285 sobre a capacitação pessoal para a prestação do serviço, o que transmudaria a materialidade desse tributo em imposto outro que não o ISS. Com base nesse entendimento, MARÇAL JUSTEN FILHO lembra que ignorar a remuneração transformaria o ISS no revogado imposto sobre indústria e profissões, o qual incidia mais sobre a atividade potencial do que sobre a atividade efetiva.745 Entretanto, o referido autor entende ainda ser inconstitucional a exigência do pagamento do ISS antes de ocorrido o efetivo recebimento da remuneração pelo prestador do serviço. Além de a remuneração ser contratualmente necessária, também entende ser imprescindível seu efetivo recebimento. O autor fundamenta seu posicionamento com base na defesa de que a previsão da incidência sobre a aquisição tanto da disponibilidade econômica como sobre a disponibilidade jurídica só ocorre em relação ao imposto sobre a renda, não havendo nada na regra-matriz do ISS que permita concluir pela possibilidade de incidência nos casos onde há ainda somente o direito à remuneração ou, o que é menor, expectativa desse direito.746 Discordamos desse entendimento, pois o não pagamento da remuneração pelos serviços prestados é fato a ser discutido somente no âmbito civil, não podendo surtir efeitos tributários. Entende-se que, de acordo com o que dispõe o inciso II do artigo 116 do Código Tributário Nacional, pelo qual, salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido e existentes os efeitos do “fato gerador” que se constitui em “situação jurídica” desde o momento da sua constituição definitiva, nos termos de direito aplicável. Ora, a prestação de serviço, antes de ser encampada pela Constituição como materialidade do ISS, já era fato jurídico regido pelo Direito Civil, onde corresponde à execução de uma obrigação de fazer. Após o cumprimento dessa obrigação, o fato tributário do ISS está concretizado, sendo o pagamento da remuneração, na verdade, a execução de uma obrigação (de dar) a cargo da outra parte no contrato. Na verdade, o próprio autor, ao que nos parece, fornece as premissas para entendimento contrário, pois defende que “[...] a execução da obrigação de fazer é o exato momento do aperfeiçoamento do fato imponível, do nascimento da obrigação tributária”.747 Ora, dessa afirmação, que temos como exata, dessume-se ser irrelevante 745 ISS no Tempo e no Espaço..., op. cit., 59. Idem. 747 Ibidem, p. 135. 746 286 para o fato tributário do ISS todo e qualquer evento que venha a ocorrer após sua consumação, como é o caso do pagamento. Portanto, condicionar a incidência do ISS ao efetivo pagamento da retribuição pela prestação dos serviços equivale a exigir, de forma cumulada, a execução das obrigações devidas tanto pelo prestador como pelo tomador dos serviços, o que não se coaduna com a materialidade constitucional do ISS. Como ilustração, o artigo 597 do Código Civil dispõe que “a retribuição pagar-se-á depois de prestado o serviço...”. AIRES BARRETO, no mesmo sentido, defende que o pagamento “[...] não compõe a regra-matriz de incidência, que se esgota na existência da efetiva prestação de serviços”.748 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no mesmo sentido: ISS: EXIGIBILIDADE – A exigibilidade do ISS, uma vez ocorrido o fato gerador – Que é a prestação do serviço -, não está condicionada ao adimplemento da obrigação de pagar-lhe o preço, assumida pelo tomador dele: a conformidade da legislação tributária com os princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva não pode depender do prazo de pagamento concedido pelo contribuinte a sua clientela.749 Por outro lado, é inconstitucional a exigência antecipada de ISS, ou seja, antes de ocorrido o fato tributário, pois se ainda não há fato jurídico, não há obrigação e, por conseqüência, não há também crédito tributário a ser exigido. A questão, entretanto, perdeu fôlego com a inclusão do § 7º ao artigo 150, da Constituição, pela Emenda Constitucional nº 3, de 17 mar. 1993, o qual autoriza a lei a “[...] atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de impostos ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”. A doutrina majoritária, com base no mesmo raciocínio acima, defendeu a inconstitucionalidade desse dispositivo. Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn nº 1.851/AL, em decisão de inegável e ilegítimo cunho político, entendeu pela sua constitucionalidade e, como se não bastasse, interpretou o direito à restituição somente nos casos em que não ocorrer o “fato gerador presumido”, e não 748 749 ISS na Constituição..., op. cit., p. 299. STF – AGRAG 228337 – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 18.02.2000 – p. 58 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 287 naqueles em que, não obstante ter ocorrido, o valor real da operação foi inferior ao valor presumido pelo Fisco.750 4.4 A CONSEQÜÊNCIA TRIBUTÁRIA DO ISS 4.4.1 O critério subjetivo 4.4.1.1 Sujeito ativo MARÇAL JUSTEN FILHO ensina que a determinação do sujeito ativo é livre pelo titular da competência de instituir o ISS, o qual pode atribuir a capacidade tributária ativa a si próprio, quando então é desnecessária a menção, por implícita, ou então pode delegá-la de modo expresso a pessoa diversa. Nesta segunda hipótese, a pessoa arrecadadora – que pode ser de Direito Público ou Privado – pode ser um mero agente arrecadador, ou então pode inclusive ficar para si com o produto da arrecadação 750 “TRIBUTÁRIO – ICMS – SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA – CLÁUSULA SEGUNDA DO CONVÊNIO 13/97 E §§ 6º E 7º DO ARTIGO 498 DO DECRETO Nº 35.245/91 (REDAÇÃO DO ARTIGO 1º DO DECRETO Nº 37.406/98), DO ESTADO DE ALAGOAS – ALEGADA OFENSA AO § 7º DO ARTIGO 150 DA CF (REDAÇÃO DA EC 3/93) E AO DIREITO DE PETIÇÃO E DE ACESSO AO JUDICIÁRIO – Convênio que objetivou prevenir guerra fiscal resultante de eventual concessão do benefício tributário representado pela restituição do ICMS cobrado a maior quando a operação final for de valor inferior ao do fato gerador presumido. Irrelevante que não tenha sido subscrito por todos os Estados, se não se cuida de concessão de benefício (LC 24/75, artigo 2º, INC. 2º). Impossibilidade de exame, nesta ação, do Decreto, que tem natureza regulamentar. A EC nº 03/93, ao introduzir no artigo 150 da CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 o § 7º, aperfeiçoou o instituto, já previsto em nosso sistema jurídico-tributário, ao delinear a figura do fato gerador presumido e ao estabelecer a garantia de reembolso preferencial e imediato do tributo pago quando não verificado o mesmo fato a final. A circunstância de ser presumido o fato gerador não constitui óbice à exigência antecipada do tributo, dado tratar-se de sistema instituído pela própria Constituição, encontrando-se regulamentado por Lei Complementar que, para definir-lhe a base de cálculo, se valeu de critério de estimativa que a aproxima o mais possível da realidade. A Lei Complementar, por igual, definiu o aspecto temporal do fato gerador presumido como sendo a saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte substituto, não deixando margem para cogitar-se de momento diverso, no futuro, na conformidade, aliás, do previsto no artigo 114 do CTN, que tem o fato gerador da obrigação principal como a situação definida em Lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final. Admitir o contrário valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação. Ação conhecida apenas em parte e, nessa parte, julgada improcedente. (STF – ADI 1851 – AL – TP – Rel. Min. Ilmar Galvão – DJU 22.11.2002 – p. 00055)” [sic] – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 288 para a consecução de seus fins, com o que surge a figura da parafiscalidade.751 Em relação ao ISS, é usual os municípios exercerem tanto a competência tributária, através do Poder Legislativo, como também a capacidade tributária ativa, por meio do Poder Executivo. A atribuição de competências tributárias, corolário do Federalismo e da Autonomia Municipal, envolve, simultaneamente, uma autorização e uma limitação. A autorização diz respeito à materialidade tributária atribuída a determinado ente político, enquanto que a limitação estabelece os limites territoriais em que essa competência pode ser exercida. Ou seja, em princípio, o titular da competência tributária só tem aptidão constitucional para criar tributos sobre as materialidades que recebeu diretamente da Constituição, assim como é imperativo constitucional que suas leis tenham eficácia somente em relação aos fatos ocorridos exclusivamente dentro dos limites de seu território. Dizemos “em princípio” devido haver hipóteses em que se afigura válida a extraterritorialidade da lei tributária, nos termos do disposto no artigo 102 do Código Tributário Nacional.752 Entretanto, a definição de extraterritorialidade através de lei de normas gerais, editada pela União, tem por limites a regra-matriz dos tributos conforme extraível diretamente da Constituição. Portanto, e com exceção das hipóteses de parafiscalidade – delegação da capacidade tributária ativa – o sujeito ativo da relação jurídica tributária será a pessoa política em cujo território consumou-se o fato tributário. No caso do ISS, a regra é a de que o sujeito ativo será o município (ou o Distrito Federal) em cujo território os serviços são prestados. Quanto à parafiscalidade, não se conhece casos de municípios em que tenha ocorrido tal delegação. Como ensina AIRES BARRETO, “O Município ou o Distrito Federal são, a um só tempo, os titulares da competência; como, além disso, exercitam a capacidade tributária ativa não há necessidade de expressa menção, na lei, ao sujeito ativo da obrigação tributária”.753 JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, em comentário sobre o sujeito ativo do ISS, também defende o mesmo entendimento: “Os Municípios são dotados de competência para instituir o ISS, dentro do âmbito territorial de validade, circunscrito 751 O Imposto..., op. cit., p. 151-154. “A legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País, fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta ou outras leis de normas gerais expedidas pela União”. 753 ISS na Constituição..., op. cit., p. 345. 752 289 aos respectivos limites geográficos, como o local da específica realização do fato gerador”.754 4.4.1.2 Sujeito passivo O sujeito passivo do ISS, à vista do que já se depreendeu acerca da hipótese de incidência desse imposto, em especial quanto ao seu critério material, somente pode ser o prestador do serviço, pois somente essa pessoa se identifica com o destinatário constitucional tributário, no feliz ensinamento de MARÇAL JUSTEN FILHO, em adaptação da clássica expressão “destinatário legal tributário”, de HECTOR VILLEGAS.755 O sujeito passivo, previsto no mandamento da norma tributária, deve estar vinculado à materialidade descrita na hipótese de incidência, sob pena de desnaturamento do tributo, ensina MARÇAL JUSTEN FILHO. Disso resulta que a determinação subjetiva está vinculada ao aspecto pessoal da hipótese de incidência. Na verdade, o autor vê esse critério subjetivo, dentro da hipótese de incidência, como o sujeito que hipoteticamente pratica o fato descrito abstratamente no critério material.756 Apesar de, à primeira vista, esse raciocínio parecer divergir da estrutura da norma de PAULO DE BARROS CARVALHO, em substância não há diferença, posto que, para esse último autor, o critério pessoal, apesar de integrar somente o mandamento, aí tem uma outra função¸ que é a de revelar quem integra a relação jurídica tributária. No caso do ISS, MARÇAL JUSTEN FILHO lembra que “[...] o critério pessoal da hipótese refere-se aos sujeitos de uma prestação de serviço (prestador e beneficiário)”, mas em seguida esclarece que, mesmo dentre as pessoas envolvidas na situação prevista na materialidade da hipótese de incidência, não há liberdade para o legislador municipal escolher o sujeito passivo da obrigação tributária, pois o destinatário constitucional tributário só pode ser o prestador dos serviços, já que é somente esse que preenche a exigência constitucional de que a tributação pela via dos impostos incida sobre os fatos signo-presuntivos de riqueza. É que o conteúdo econômico não reside na prestação do serviço em si mesma, mas na remuneração, existente como retribuição. O tomador dos serviços não revela nenhuma riqueza, mas 754 755 Impostos Federais, Estaduais e Municipais, p. 266-267. JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição passiva..., op. cit., p. 262; VILLEGAS, Hector. Destinatário..., op. cit., p. 241-242. 290 sim uma necessidade da utilidade decorrente de determinado serviço.757 No mesmo sentido, AIRES BARRETO: A dicção constitucional considerada (artigo 156, III) não só requer o fato serviço como necessário, mas, igualmente – embora implicitamente – seu produtor: não supõe o fato com abstração de quem lhe dá origem. Pelo contrário, visa a indicar, claramente, ao legislador ordinário o sujeito passivo do tributo (que só pode ser quem desempenha o esforço em que ele consiste). Evidentemente, a prestação do serviço só é tributável porque o conteúdo econômico indica o prestador como o verdadeiro beneficiário da retribuição que, de alguma maneira, é o modo objetivo de mensuração desse mesmo conteúdo econômico.758 JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO confirma o raciocínio: Numa esfera pré-jurídica, o legislador colhe a pessoa intimamente vinculada à realização da materialidade, que deve traduzir-se no mero índice de capacidade contributiva. A íntima conexão da pessoa com a materialidade é que tem a virtude de revelar a figura do contribuinte, porque, ao realizar o fato gerador, terá que recolher aos cofres públicos uma parte da respectiva grandeza econômica, qualificada como tributo. É fácil inferir tal assertiva no ISS, uma vez que o contribuinte só poderá ser a pessoa (jurídica ou natural) que presta serviços de qualquer natureza [...] [sic]. 759 Nesse caminho, o artigo 5º da Lei Complementar nº 116/2003, ao estabelecer que “contribuinte é o prestador do serviço”, nada mais fez do que confirmar o que já dispõe a Constituição. A opção pela expressão “contribuinte”, em vez de “sujeito passivo”, tem origem na circunstância de que o sujeito passivo não será o prestador do serviço nas hipóteses de “responsabilidade tributária”, mas alguém somente “vinculado ao fato gerador”, na dicção do artigo 128 do Código Tributário Nacional. Felizmente, a Lei Complementar nº 116/2003 não repetiu os graves erros terminológicos existentes no artigo 8º do Decreto-lei n° 406/68, onde se diz que o ISS tem como “fato gerador” a prestação, “[...] por empresa ou profissional autônomo [...]”. A atribuição de competência pela Constituição é feita de forma ampla, sendo que, em relação à definição do sujeito passivo, as únicas limitações são as constantes das normas veiculadoras de imunidades subjetivas, como as que instituem imunidade aos templos de qualquer culto, partidos políticos, instituições de ensino sem fins lucrativos etc. 756 O imposto..., op. cit., p. 155. Ibidem, p. 155-158. 758 ISS: Serviços de Despachos..., op. cit., p. 116. 759 ISS..., op. cit., p. 11. 757 291 Portanto, com exceção das hipóteses imunizantes, todas as pessoas que praticarem fatos que correspondam integralmente à hipótese de incidência, com a subsunção exata de seus critérios material, espacial e temporal, serão automaticamente tidos como sujeitos passivos da respectiva relação jurídica tributária. Não há, portanto, margem de liberdade para o legislador infraconstitucional, nesse campo senão a possibilidade de confirmar o que já estabelece a Constituição. Com efeito, a restrição do contribuinte a “empresa ou profissional autônomo”, feita pelo Decreto-lei nº 406/68 foi, durante o período de sua vigência, flagrantemente inconstitucional.760 Por outro lado, percebe-se que o vocábulo “empresa” foi utilizado pelo legislador de forma extremamente equivocada. Dispõe o Código Civil, em seu artigo 966: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. No parágrafo único do mesmo artigo está previsto que “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. Como é cediço, essa redação teve influência direta do Código Civil italiano de 1942. Da mesma forma que no direito italiano, o novo diploma civil brasileiro unificou as atividades civis, prestação de serviços, e mercantis, indústria e comércio, resultando em nova classificação das atividades, sob o novo discrímen da forma, empresarial ou não, com que as atividades, civis ou mercantis, sejam exercidas. As sociedades não empresárias passam a ser designadas de sociedades “simples”. Ora, mesmo à época do Decreto-lei nº 406/68, o conceito de “empresa” já era pacífico no sentido de ser não o sujeito de direito, mas a atividade em si mesma. Ou seja, o correto é “exercer”, “desenvolver”, “desempenhar”, “encerrar” uma empresa, e não “abrir” ou “fechar” uma empresa, o que implica confusão entre a atividade e a pessoa jurídica. Aplicando-se de empréstimo o raciocínio de MARÇAL JUSTEN FILHO, não se pode também pretender que a expressão “empresa” tenha sido utilizada como sinônimo de “empresário”, pois profissional autônomo também pode ser empresário, o que resta incompatível com a disjunção “por empresa ou profissional autônomo...”, constante no precitado decreto-lei. Mas, caso se admita – como argumento – essa interpretação, chegaríamos a um resultado também inconstitucional, pois o sujeito 760 JUSTEN FILHO, Marçal. O Imposto..., op. cit., p. 126-127. 292 passivo do ISS restringir-se-ia somente às pessoas, físicas ou jurídicas, empresárias e pessoas físicas não-empresárias, excluindo do aspecto pessoal da hipótese de incidência as pessoas jurídicas não empresárias, ou seja, as sociedades simples, o que violaria o Princípio da Isonomia Tributária. Esse último entendimento é inaceitável, quando lembramos que o campo de atuação das sociedades não empresárias (simples) é basicamente o da prestação de serviços. Já a atividade de produção e circulação de bens se afigura inviável sem a organização em forma empresarial. A única conclusão a que se chega, portanto, é que a palavra “empresa” foi utilizada, no Decreto-Lei n° 406/68, com a acepção vulgar e não jurídica de “pessoa jurídica”.761 As regras que limitam as possibilidades de eleger o tomador como sujeito passivo, na condição de responsável tributário, estão implicitamente previstas na própria Constituição, pois decorrem do núcleo constitucional da regra-matriz de incidência do tributo. No problema proposto acima, é o sujeito ativo constitucionalmente implícito na norma-padrão do ISS que impede a eleição do tomador como substituto tributário, pois o sujeito ativo legítimo, por ser município diverso, não teria como exigir o recolhimento do ISS retido por esse tomador, em virtude dos limites territoriais da eficácia da lei municipal. Portanto, a disposição do artigo 128 do Código Tributário Nacional, norma geral que permite à lei atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, mas desde que “[...] vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação”, é meramente didática, pois não representou inovação jurídica. Sendo, portanto, a responsabilidade tributária, matéria pertinente ao sujeito passivo, cada pessoa política pode, em princípio, regulamentá-la como melhor entender, desde que por meio de lei e sem ultrapassar os limites da competência que recebeu da Constituição. A eleição do tomador como sujeito passivo na condição de responsável tributário, somente poderá ser matéria da lei complementar de que trata o artigo 146 da Constituição na hipótese dessa lei ter sido editada com vista a prevenir conflitos de competência em matéria tributária. Fora dessa hipótese, a lei complementar de normas gerais não é necessária como requisito à eleição do tomador como substituto tributário. A Lei Complementar nº 116/2003, em seu artigo 3º, estabeleceu para o local de incidência do ISS três critérios: a) como regra geral, o local onde está o estabelecimento prestador; b) na falta do estabelecimento – como regra subsidiária, portanto – o local 761 Ibidem, p. 128-129. 293 passa a ser o domicílio do prestador; e c) como exceções a ambas as regras, essa lei prevê várias hipóteses, onde o ISS incide no local onde os serviços são prestados. Como conseqüência, a nova lei estabelece casos onde o tomador é eleito sujeito passivo por responsabilidade tributária, mediante a retenção do valor do tributo quando do pagamento do preço ao prestador. A técnica, portanto, é a da substituição tributária, já que o tomador estará obrigado, como substituto tributário, a recolher o valor retido aos cofres de seu município. O objetivo específico da norma é atingir aqueles serviços onde o ISS é devido no local, município, em que se dá a respectiva prestação e não onde está situado o estabelecimento prestador, já que não há outra forma de operacionalizar a cobrança do ISS nos casos em que o prestador, estabelecido em um município, não possua inscrição municipal nos outros municípios em que venha a prestar seus serviços. A previsão de responsabilidade tributária, em relação ao ISS, é, em alguns casos, mera sugestão ao legislador municipal, e, em relação a determinados serviços, a regra é obrigatória, conforme os termos seguintes: Artigo 6º. Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais. § 1o Os responsáveis a que se refere este artigo estão obrigados ao recolhimento integral do imposto devido, multa e acréscimos legais, independentemente de ter sido efetuada sua retenção na fonte. § 2o Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, são responsáveis: I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País; II – a pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária dos serviços descritos nos subitens 3.05, 7.02, 7.04, 7.05, 7.09, 7.10, 7.12, 7.14, 7.15, 7.16, 7.17, 7.19, 11.02, 17.05 e 17.10 da lista anexa. Com efeito, ainda que a Lei Complementar nº 116/2003 estabeleça ser o prestador do serviço o contribuinte (artigo 5º), facultou, em seu artigo 6º, a possibilidade de os municípios instituírem a sistemática da retenção do ISS na fonte pelos tomadores dos serviços, em previsão idêntica à do artigo 128 do Código Tributário Nacional. Sem prejuízo dessa faculdade, o § 2º do mesmo artigo 6º, estabelece, de forma obrigatória, a sujeição passiva pelo pagamento do tributo, também na modalidade da retenção na fonte, ao tomador ou intermediário dos serviços 294 importados (inciso I) e à pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária de determinados serviços constantes da lista anexa à mesma lei (inciso II). A Lei Complementar nº 116/2003, portanto, somente é sugestiva no tocante à responsabilidade tributária de que trata o caput do seu artigo 6º, o mesmo não ocorrendo com o disposto nos incisos I e II do § 2º, onde a regra é obrigatória. Não se pode concordar, portanto, com aqueles que defendem ser todo o artigo 6º regra meramente sugestiva, como é, por exemplo, o entendimento de DALTON LUIZ DALLAZEM, pois é inequívoco que a regra do artigo 6º, § 2º, foi veiculada com o objetivo de prevenir os conflitos de competência entre os Municípios.762 No § 1º do artigo 6º, a Lei Complementar nº 116/2003 estabelece que os responsáveis estão obrigados ao recolhimento integral do ISS, acrescido de eventual multa e acréscimos legais, independentemente de ter sido efetuada sua retenção na fonte. Portanto, caso o tomador do serviço, no momento do pagamento ao prestador, não efetue a retenção do valor devido a título de ISS, ainda assim permanecerá obrigado pelo imposto junto ao Fisco Municipal. Em casos como esse, o substituto tributário terá o direito de regresso contra o contribuinte, com fundamento tanto no Princípio da Capacidade Contributiva, como na vedação de enriquecimento sem causa. Outra hipótese de extensão do dever tributário ocorre quando o fisco municipal atribui ao contribuinte – substituído tributário – a condição de sujeito passivo da obrigação tributária do ISS, em razão de inadimplência do substituto tributário. Isso será válido desde que, obviamente, o substituto não tenha exercido a possibilidade de reembolso e haja previsão expressa nesse sentido na lei municipal. Sobre esse tema ensina MARÇAL JUSTEN FILHO: instituída a substituição, ter-se-á um sujeito passivo tributário distinto do destinatário legal tributário. Em princípio, não recairá a sujeição passiva tributária sobre o último, mas exclusivamente sobre o primeiro. Pode-se supor, contudo, a hipótese de insolvência do substituto ou, por outros caminhos, ausência de satisfação do crédito tributário relativamente ao patrimônio do substituto. Em princípio, seria incogitável o Estado pretender exigir o pagamento do destinatário legal tributário, transformando-o em contribuinte. Mas não necessariamente. [...] Assim, verificado que o substituto não tem condições de satisfazer a pretensão creditícia do Estado, poderia ele dirigir-se contra o destinatário legal tributário (transformado, então, em contribuinte), desde que, evidentemente, não tivesse sido exercido o poder de reembolso.763 762 A responsabilidade tributária e o ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 166. 763 Sujeição..., op. cit., p. 286. 295 Portanto, desde que reste demonstrado não ter havido o exercício da possibilidade de reembolso pelo substituto, o fisco poderá estender a condição de sujeito passivo ao contribuinte. O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, tem entendimento de que a obrigação tributária é exclusiva do substituto em tais casos, ainda que não tenha ocorrido a retenção na fonte (reembolso).764 Conforme visto acima, a Lei Complementar nº 116/2003, em seu artigo 3º, prevê, quanto ao critério espacial da hipótese de incidência do ISS, três possibilidades distintas. Como regra geral, o critério espacial será o local onde está situado o estabelecimento prestador. Na falta de estabelecimento prestador, o critério espacial, como regra supletiva, será o local do domicílio do prestador. E, nos incisos I ao XXII do mesmo artigo 3º, considera como critério espacial, na maior parte dos casos, o local onde o serviço é efetivamente prestado. Para esses últimos, os municípios em cujo respectivo território sejam prestados tais serviços terão maiores dificuldades na arrecadação e fiscalização do ISS quando o tomador for pessoa física, já que, nesses casos, normalmente, não há a obrigatoriedade de manter uma escrituração contábil ou fiscal ou mesmo a inscrição em cadastro municipal, o que poderá tornar ineficaz a eleição do tomador pessoa física como sujeito passivo, na condição de substituto tributário. Como resultado, aquele que prestar o serviço não estará obrigado a recolher o ISS para o município onde está estabelecido, assim como poderá facilmente fugir à tributação no município onde o serviço for prestado. Noutro giro, saliente-se que a sistemática da retenção do ISS na fonte poderá ser atribuída tão-somente em dois casos: (a) quando o tomador estiver situado no mesmo município em que se verifique o critério espacial para aquele serviço específico, pois caso contrário o tomador estará retendo o ISS, e recolhendo-o, aos cofres de município não competente para exigir o imposto incidente sobre aquela prestação; e (b) quando, obviamente, o serviço seja prestado em município onde estejam situados tomador e prestador. Fora dessas duas hipóteses, a instituição do tomador como substituto tributário será violadora tanto da Constituição, como do Código Tributário Nacional, pois tais sujeitos passivos não estarão vinculados ao mesmo critério espacial a que estão submetidos os contribuintes. Embora as regras para instituir a retenção na fonte sejam claras, o histórico de abusos por parte dos municípios, em especial os de grande porte, cria uma legítima 764 Como exemplos: REsp n° 153.664 – DJ de 11 set. 2000 – e REsp n° 411.428 – DJ de 21 out. 2002 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 296 expectativa de que haverá toda a sorte de ofensas à Constituição, quando da implantação da técnica da substituição tributária. Ou seja, municípios em que esteja situado o estabelecimento prestador exigirão o recolhimento do ISS incidente sobre fatos para os quais a Lei Complementar n° 116/2003 prevê, como critério espacial, o local onde os serviços foram prestados, conforme a maioria dos incisos do artigo 3º, invocando para tanto a regra geral. Por sua vez, o município onde os serviços forem prestados elegerá, de forma legítima, o tomador como responsável tributário por substituição. O contribuinte, premido no meio dessa disputa insana, será obrigado, para poder receber o preço, a sujeitar-se à retenção prevista na lei municipal. Os conflitos certamente recrudescerão, e, mais uma vez, o Judiciário será chamado para se manifestar sobre o assunto. 4.4.2 O critério objetivo Analisado o critério subjetivo da regra-matriz do ISS, com o que se tentou demonstrar os critérios hábeis a identificar os sujeitos ativo e passivo, no conseqüente normativo, neste item, serão tecidos breves comentários sobre o critério objetivo do arquétipo do imposto municipal. Ou seja, tratar-se-á dos dados obtidos no mandamento da norma tributária que permitem identificar qual é o objeto da prestação que, por sua vez, é o objeto da relação jurídica tributária no caso do ISS. 4.4.2.1 Base de cálculo A materialidade do ISS, conforme a dicção constitucional prevista no artigo 156, III, consiste na prestação de serviços de qualquer natureza “definidos em lei complementar”, com exceção dos tributáveis pelos estados-membros e pelo Distrito Federal, pela via do ICMS. Verifica-se que não há, na Constituição Federal, nenhum dispositivo expresso que disponha qual seja a base de cálculo do ISS. Entretanto, decorre implicitamente da regra-matriz constitucional desse imposto a noção de que a sua base de cálculo somente pode ser o preço do serviço prestado. De uma forma geral, a doutrina está de acordo nesse aspecto. ANNA EMILIA CORDELLI ALVES afirma que, quanto à base de cálculo do ISS, deflui da própria matriz constitucional a noção de preço efetivo do serviço 297 prestado.765 A legislação infraconstitucional tem seguido esse entendimento. O caput do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, já revogado, assim como, de forma idêntica, o artigo 7º da Lei Complementar n° 116/2003, também em seu caput, prevêem que “A base de cálculo do imposto é o preço do serviço”. Em decorrência da necessidade de harmonia interna na norma do ISS, MARÇAL JUSTEN FILHO ressalta que o único critério apto a quantificar o critério material da hipótese de incidência e, por conseqüência, identificar a base de cálculo desse tributo, é a remuneração do serviço, pois é o único fato que preenche a exigência de ser signo-presuntivo de riqueza, “[...] a permitir uma apropriação parcial pelo Estado”, já que a prestação de serviço, em si mesma considerada, não revela riqueza alguma. O autor entende que, em relação ao antigo imposto sobre indústria e profissões, cuja materialidade era (inclusive) somente a profissionalidade – não um fato, mas um estado de fato – era possível, por essa razão, a adoção de um tributo com valor “fixo”, sendo irrelevante o dado da remuneração.766 Mas, para o ISS, que não incide sobre uma potencialidade de prestação de serviços, mas sobre a sua efetiva prestação, aquele dado, além de imprescindível, é o único a servir de critério mensurador da materialidade da hipótese de incidência.767 Para ratificar os argumentos, tenha-se que, caso não se adote a remuneração como base de cálculo, restam duas soluções, ambas, porém inconstitucionais. “Ou a lei remeteria ao arbítrio (não à discrição) do fisco a determinação do valor da prestação tributária (o que é absolutamente inadmissível, por viger o princípio da estrita legalidade), ou preveria uma tributação fixa, invariável e predeterminada para os serviços...”, conforme vem sendo adotado para os serviços de profissionais liberais na maioria das legislações municipais.768 Para MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES, salvo as exceções legais – como é o caso, por exemplo, das sociedades uniprofissionais com recolhimento de valores fixos – a base de cálculo do ISS “[...] é o valor do próprio bem vendido, isto é, o preço do serviço”, assim entendida a “[...] receita bruta decorrente da prestação 765 A base de cálculo..., op. cit., p. 178. Entendemos, com o devido respeito à opinião contrária desse ilustre autor, que a tributação fixa também era inconstitucional em relação ao antigo imposto sobre indústria e profissões, já que todo e qualquer imposto deve obediência aos princípios da Isonomia Tributária e da Capacidade Contributiva. 767 O Imposto..., op. cit., p. 161-163. 768 Ibidem, p. 163. 766 298 de serviços, sem dedução de nenhuma parcela componente, nem despesas, custos ou material empregado na prestação de serviços”.769 AIRES BARRETO, em sentido semelhante, afirma que a base de cálculo do ISS é o preço do serviço, que a seu turno, é a receita bruta a ele correspondente. A base de cálculo do ISS – perspectiva dimensível do “aspecto material” da sua hipótese de incidência – não é o volume de recursos financeiros que ingressa no caixa das empresas, mas, tão-somente aquela espécie de ingressos que, proveniente da prestação dos serviços, pode ser classificada como receita do prestador. 770 Ousamos discordar do raciocínio desse mestre, pois o preço do serviço nem sempre é compatível com a receita bruta auferida pelo prestador do serviço. Quando um empreiteiro, por exemplo, é contratado para executar determinada obra, ele estipula um preço que corresponde à remuneração que deseja receber pelo serviço a ser prestado. Quando da emissão da nota fiscal, o seu valor total, receita bruta, certamente abrangerá valores relativos a materiais e insumos necessariamente aplicados na obra, que não fazem parte da retribuição acordada anteriormente. Noutro giro, os materiais que adquiriu para aplicar na obra já foram onerados pelo ICMS, e, caso integrem a base de cálculo do ISS, haverá dupla incidência tributária sobre um mesmo produto, vedada constitucionalmente por invasão de competência tributária. Como o prestador dos serviços não é comerciante, não terá como se creditar do respectivo valor, nem poderá repassá-lo adiante. Assim, a única base de cálculo compatível com o preceito constitucional que atribuiu competência aos municípios para instituir o ISS é o valor da remuneração “pura e simplesmente”, dele excluídas todas as verbas cobradas pelo prestador a título de ressarcimento por despesas. O prestador, ao empregar insumos necessários ao desempenho de sua atividade, não os está comercializando, posto que essa não é sua atividade preponderante. A utilização de materiais é o meio necessário para a realização de alguns tipos de prestação de serviços. A discriminação de materiais e despesas operacionais no documento fiscal realiza-se com o objetivo de que possam ser objeto de ressarcimento, sem, no entanto, integrar a base de cálculo do ISS.771 Equívocos como esse decorrem muitas vezes da confusão entre ingressos e receitas. Ingresso é gênero, do qual a receita é uma de suas espécies. Assim, é possível 769 770 Imposto..., op. cit., p. 47-48. ISS: serviços de despachos..., op. cit., p. 119. 299 a existência de meros ingressos no caixa de uma empresa, que não configurem, juridicamente, receita. Receita, por sua vez, é apenas o ingresso que provoca mutação patrimonial na pessoa que a aufere, aumentando seu ativo e/ou reduzindo seu passivo, como elemento novo e positivo, na expressão utilizada por ALIOMAR BALEEIRO. 772 Meros ingressos financeiros, não qualificáveis como receita, são valores cuja titularidade patrimonial pertence a terceiros e que estão temporariamente transitando pelo ativo da empresa, para serem posteriormente devolvidos, razão pela qual sempre possuem uma contrapartida no passivo patrimonial. Os valores recebidos como retribuição pela prestação de um serviço, portanto, são considerados contabilmente como receitas, já que, ao seu ingresso no caixa ou banco da empresa, não há um lançamento no passivo, sob a rubrica, por exemplo, de “obrigações a pagar”. Por outro lado, podem ser exemplificados como meros ingressos as entradas no ativo – caixa ou bancos – originadas pela contratação de uma operação de crédito – financiamento, empréstimo, desconto de títulos etc.. Quanto às despesas, AIRES BARRETO assinala que elas são inconfundíveis com valores pertencentes a terceiros. Despesas são gastos do prestador do serviço, a serem deduzidos da sua respectiva receita, para efeito de apuração do resultado. Somente nesse caso o seu reembolso configurará também receita, afetando o resultado econômico de atividade, ou seja, afetando positivamente o patrimônio da empresa. A contraposição é entre despesas e receitas e não despesas com ingressos financeiros. As despesas são gastos com a própria atividade, realizados para que ela possa gerar receitas, sendo realizadas somente em favor de quem as efetua. Só tais gastos são considerados como verdadeiras despesas, reembolsáveis ou não. E as despesas reembolsáveis, obviamente, não podem ser deduzidas, sob pena de o preço do serviço deixar de ser a receita a ele correspondente. No entanto, não são considerados como despesas reembolsáveis os valores recebidos de outrem para adimplir obrigações de terceiro, cujo negócio é administrado pelo prestador.773 Perceba-se que o próprio AIRES BARRETO admite que só são despesas os gastos efetuados em benefício próprio. Ora, os gastos com aquisição de materiais a serem aplicados em obras não são efetuados em benefício próprio, mas em proveito do tomador. Não são, portanto, registrados na contabilidade do prestador como despesas, 771 GRUPENMACHER, Betina Treiger. A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 199. 772 Uma Introdução à Ciência das Finanças, p. 116. 300 pois não haverá mutação patrimonial. Somente ocorrerá uma alternância de valores entre contas do ativo, mediante a saída de recursos financeiros do caixa ou banco, com o ingresso do valor equivalente em outra conta do próprio ativo representado pelos produtos adquiridos. É, portanto, pressuposto para o estudo da base de cálculo do ISS, a definição do que seja o núcleo da regra-matriz de incidência desse imposto, a qual pode ser resumida como “prestar serviço”, o que vem a ser o efetivo objeto da tributação. Nas palavras de MARCO AURÉLIO GRECO: “Identificar o núcleo da tributação é tarefa essencial pois, a partir dele, será possível reconhecer a base de cálculo adequada para fins de previsão na lei instituidora do imposto. Com efeito, é curial que a base de cálculo dimensiona o fato gerador devendo ser-lhe compatível, sob pena de múltiplas distorções” [sic].774 Conforme já foi estudado, a análise desse núcleo pode ocorrer tanto sob a perspectiva da atividade como da utilidade. Ou seja, se for visto sob a óptica do prestador, o serviço será tido como uma atividade. Caso o seja da ótica do tomador, o serviço será visto como uma utilidade. Como a óptica constitucional é do ponto de vista do prestador, o que se põe em relevo é a atividade desempenhada, e não a utilidade obtida, ainda que em elucubrações pré-jurídicas seja possível defender que, do ponto de vista da manifestação de capacidade contributiva, o oposto teria mais eficácia. A base de cálculo, portanto, deverá sempre dimensionar a atividade realizada.775 Nessa perspectiva, a distinção entre “atividades-meio” e “atividade-fim” é essencial para aferir a composição da base de cálculo do ISS. 776 É que o núcleo da prestação de serviços contratada somente se identifica com a atividade-fim. Com efeito, o preço do serviço, conforme é a expressão legal da base de cálculo, deve refletir a remuneração devida pela “atividade-fim” contemplada no objeto do objeto da relação obrigacional. Os demais valores pagos pelo tomador dos serviços e que se identifiquem com as “atividades-meio”, não são hábeis a compor a base de cálculo, pois representam meros ingressos financeiros não registráveis como receita tributável para fins do ISS. 777 773 ISS: Serviços de Despachos..., op. cit., p. 120. ISS – Construção Civil – Base de Cálculo – Exclusão dos Materiais Fornecidos pelo Prestador – Inconstitucionalidade. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 72, p. 159-160. 775 Vide supra, item 4.3.1. 776 BARRETO, Aires Fernandino. ISS – Atividade-Meio e Serviço-Fim, Revista Dialética de Direito Tributário, n. 5, p. 83. 777 HOFFMANN, Susy Gomes. A base de cálculo do ISS. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 226. 774 301 Com base nesse raciocínio, a indicação de valores outros que não aqueles relativos à prestação de serviços, no critério da “atividade-fim” contratada pelo tomador dos serviços, violaria a Constituição sob no mínimo dois aspectos. O primeiro, porque o ISS incidiria sobre uma hipótese mais ampla do que aquela prevista constitucionalmente. O segundo aspecto é que a composição da base de cálculo com valores distintos daqueles relativos à prestação de serviços violaria o Princípio da Capacidade Contributiva, posto que a exteriorização da riqueza somente ocorre quanto ao valor referente à prestação de serviços, e não quanto a outros valores relacionados indiretamente à prestação dos serviços.778 Analisando o artigo 9, § 2, do Decreto-lei n 406/68, artigo que autoriza a exclusão da base de cálculo do ISS do valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços de construção civil, verifica-se que o legislador observou a Constituição nesse dispositivo, pois a remuneração corresponde à produção da obra, não computada a parcela relativa aos materiais fornecidos pelo prestador do serviço. Na Lei Complementar n 116/2003, o inciso I, do § 2, do artigo 7, dispõe em sentido equivalente. Nessas hipóteses (itens 7.02 e 7.05 da lista), a lei complementar determina que, na apuração da base de cálculo, sejam desconsiderados os valores relativos ao “fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS”. Entender em sentido contrário violaria o Princípio da Isonomia Tributária, uma vez que sujeitaria obras com a mesma relevância econômica a distintas cargas tributárias, em razão da opção contratual adotada pelas partes – empreitada de lavor ou mista.779 Por essas razões, essa deveria ser a regra geral, posto ser a única que se compatibiliza com a matriz constitucional do imposto municipal. Nesse exato sentido é o entendimento de BETINA TREIGER GRUPENMACHER.780 O Superior Tribunal de Justiça, infelizmente, possui posicionamentos divergentes sobre o tema, o que tem contribuído para o aumento da insegurança jurídica entre os contribuintes.781 778 Ibidem, p. 227. GRECO, Marco Aurélio. ISS – Construção Civil..., op. cit., p, 162. 780 A base de cálculo..., op. cit., p. 207. 781 Exemplos de acórdãos nos quais se entendeu que a base de cálculo do ISS somente contempla os valores relativos à efetiva prestação de serviços: REsp n. 132.435/CE (DJ de 17/11/1997, Relator Ministro JOSÉ DELGADO); REsp n. 224.813 (DJ de 28/02/2000, Relator Ministro JOSÉ DELGADO); REsp n. 259.339/SP (DJ de 02/10/2000, Relator Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS); REsp n. 411.580/SP (DJ de 16/12/2002, Relator Ministro LUIZ FUX). Em sentido contrário, exemplos de acórdãos nos quais se entendeu que a base de cálculo do ISS é o valor total recebido pelo prestador dos serviços, sem exclusão de nenhum valor: EDREsp n. 123.528 (DJ de 779 302 Na hipótese de o prestador de serviços auferir várias receitas, a única, dentre todas, cujo valor pode ser erigido como base de cálculo para o ISS é aquela que corresponde à remuneração recebida pela prestação do serviço. Para identificar com precisão qual é a base de cálculo em tais casos, imprescindível é a análise do contrato de prestação de serviços, pois os serviços tributáveis pelo ISS necessariamente têm como pressuposto um negócio jurídico bilateral e oneroso, entre o tomador e o prestador. Esse raciocínio é relevante quando se está diante de casos como o das subempreitadas de obras civis, já tributadas pelo ISS, como era previsto no artigo 9º, § 2º, “b”, do Decretolei n° 406/68, pois a análise dos contratos demonstra que a empreitada e a subempreitada são dois negócios jurídicos distintos, não se fundindo em um único contrato. O empreiteiro é parte contratante nos dois contratos, mas só terá essa qualificação, de empreiteiro, no contrato de empreitada, pois no outro contrato, com o subempreiteiro, passa a ser qualificado como comitente. No contrato de subempreitada, o tomador dos serviços é o empreiteiro do outro contrato, o original, e a base de cálculo do ISS devido pelo subempreiteiro será o preço desse serviço. Com base nesse raciocínio, ANNA EMILIA CORDELLI ALVES entende não ser possível adotar a receita do contrato de subempreitada para compor a base de cálculo do ISS, devido em razão do serviço prestado por força do primeiro contrato, pois nesse caso a base de cálculo não estaria mais medindo o fato tributário ao qual está vinculada, e, como conseqüência, seria irreal.782 Entendemos, todavia, que, a afirmação é apenas parcialmente verdadeira, em especial quanto ao raciocínio sobre a independência dos contratos. Ocorre que, por força de sua matriz constitucional, para fins de apuração da base de cálculo do ISS, o valor do “preço do serviço” de que fala a lei deve ser entendido como o valor da efetiva remuneração percebida pelo prestador, o que não se compatibiliza com outros valores recebidos pelo prestador e que não dizem respeito à exata retribuição devida pela atividade desenvolvida. Ora, considerar como base de cálculo o valor total recebido implicaria tributar, além da remuneração da empreiteira, a remuneração da subempreiteira, a qual já sofreu a incidência devida. Não se pode perder de vista que o único raciocínio coerente com a supremacia constitucional é no sentido de que, por corresponderem a valores de 16/03/1998, Relator Ministro JOSÉ DELGADO); REsp n. 226.747/SP (DJ de 13/04/2000, Relator Ministro JOSÉ DELGADO); REsp n. 254.863/SP (DJ de 18/02/2002, Relatora Ministra ELIANA CALMON) – Disponível em <http:www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 303 terceiros, estes não equivalem à remuneração de serviço próprio, como adverte HUMBERTO ÁVILA, que acrescenta: “A previsão de dedução seria inócua, pois implicaria o direito de retirar da base de cálculo um valor que não a integra”.783 Esse pensamento também foi adotado por MARCELO CARON BAPTISTA e JOSÉ ROBERTO VIEIRA.784 O Projeto de Lei Complementar n° 1/91, que deu origem à Lei Complementar n° 116/2003, previa, em seu texto original, dispositivo semelhante em relação às subempreitadas no inciso II do § 2º do artigo 7º, o qual dispunha que “Não se incluem na base de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza o valor de subempreitadas sujeitas ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza”. Esse dispositivo foi vetado quando da sanção pelo Presidente da República sob dois argumentos: a) a nova norma implicaria perda significativa de base tributável, uma vez que a regra anterior, veiculada pelo artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68, somente permitia a dedução para as subempreitadas de obras civis; b) a redação da nova norma seria imperfeita, pois enquanto a norma anterior somente permitia a dedução de subempreitadas já tributadas pelo ISS, a nova fala em subempreitadas sujeitas ao ISS, não exigindo que haja o efetivo pagamento do imposto pela subempreiteira, bastando que o referido serviço esteja sujeito ao ISS, o que contraria, na dicção do veto, o interesse público. Diante do aludido veto, surgiu a indagação da subsistência da norma anterior, uma vez que a cláusula revogadora presente no artigo 10, da Lei Complementar n° 116/2003, revogou expressamente todos os artigos relativos ao ISS do Decreto-lei n° 406/68, com exceção justamente do artigo 9º, onde está situada a referida regra em seu § 2º, “b”, e, assim o fazendo, renunciou o legislador à possibilidade de utilizar a revogação global das normas anteriores, conforme inteligência conjunta dos §§ 1º e 2º do artigo 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil e do artigo 9º da Lei Complementar n° 95/98.785 Conclui-se, portanto, que o veto presidencial não teve nenhum efeito 782 A base de cálculo..., op. cit., p. 182-184. O Imposto Sobre Serviços e a Lei Complementar nº 116/2003. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 182. 784 BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 617; VIEIRA, José Roberto. Prefácio. A Dupla Personalidade do ISS..., op. cit., p. 25. 785 “§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”; “Artigo 9o A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas.” (Redação dada pela Lei Complementar nº 107, de 26 abr. 2001) 783 304 restritivo na vigência e na eficácia do artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68, permanecendo assim a possibilidade de excluir da base de cálculo do ISS os valores das subempreitadas já tributadas pelo ISS. O mesmo posicionamento é defendido por GABRIEL LACERDA TROIANELLI e JULIANA GUEIROS.786 Ainda subsiste o argumento de que o artigo 9º, § 2º, “b”, teria sido revogado indiretamente, por força da revogação do inciso IV, do artigo 3º, do Decreto-lei nº 834/69, pelo artigo 10, da Lei Complementar n° 116/2003. Esse raciocínio, apesar de aparentemente consistente, sucumbe quando confrontado com a Teoria Geral do Direito. A eficácia jurídica do inciso IV, do Decreto-lei n° 834/69, consubstanciou-se na nova redação do artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68. É princípio geral de direito que a revogação de uma norma não lhe atinge a eficácia já produzida, mas, tão-somente, extingue a validade da norma jurídica. Com efeito, a revogação do inciso IV, do Decreto-lei n° 834/69, em nada afeta o artigo 9º, § 2º, “b”, do Decreto-lei n° 406/68, tendo sido regra criada para surtir apenas aquela eficácia específica, não deflagrando, após esse momento, mais nenhum efeito jurídico – o mesmo raciocínio é aplicável ao artigo 9º, § 3º, do Decreto-lei n° 406/68, conforme será analisado a seguir). Registre-se a posição contrária de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, entendendo pela extinção da possibilidade de dedução das subempreitadas já tributadas pelo ISS, pela revogação expressa do inciso IV, do Decreto-lei n° 834/69.787 Outro tema polêmico é o que trata da tributação fixa das sociedades profissionais. O artigo 9º, § 1º, do Decreto-lei n° 406/68, estabelece que, para os serviços prestados sob a forma de trabalho pessoal do contribuinte, o ISS é calculado por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho. Por sua vez, o § 3º do mesmo artigo 9, estendeu esse sistema de tributação às sociedades profissionais que prestem determinados serviços constantes da lista anexa.788 A Lei Complementar n° 116/2003, em seu artigo 10, revogou de forma expressa os artigos 8º, 10, 11 e 12 do Decreto-lei n° 406/68, não fazendo menção ao precitado artigo 9º. Entretanto, a Lei Complementar n° 116/2003, no mesmo artigo 10, 786 787 O ISS e a Lei Complementar..., op. cit., p. 123-124. ISS…, op. cit., p. 131. 305 revogou o inciso V do artigo 3º do Decreto-lei n° 834/69, dispositivo que deu a segunda redação ao § 3º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, e também revogou integralmente a Lei Complementar n° 56/87, que, em seu artigo 2º, deu a terceira e última redação ao citado § 3º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68. Como visto, a forma confusa como foi redigida a revogação dos dispositivos do Decreto-lei n° 406/68, pelo artigo 10 da Lei Complementar n° 116/2003, aliada à omissão dessa lei em relação ao regime jurídico tributário do ISS aplicável aos profissionais autônomos e às sociedades uniprofissionais, fomentou os debates sobre se teriam ou não sido revogados os referidos dispositivos da legislação anterior. Pugnando pela subsistência do regime de tributação fixa, ALBERTO XAVIER e ROBERTO DUQUE ESTRADA consignam argumentos relevantes para fundamentar esse posicionamento.789 Em primeiro lugar, a intenção da Lei Complementar n° 116/2003 teria sido clara em não revogar o artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, pois salvo esse artigo, todos os demais que versavam sobre o ISS foram expressamente revogados – artigos 8º, 10, 11 e 12 – raciocínio que vem ao encontro da Lei Complementar n° 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, que, em seu artigo 9º, dispõe que “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”. Em segundo lugar, defendem os citados autores que a revogação integral da Lei Complementar n° 56/87 não afetou a vigência do citado artigo 9º, § 3º, do Decretolei n° 406/68. A razão estaria na circunstância de que a Lei Complementar n° 56/87, assim como o Decreto-lei n° 834/69, não teriam alterado a substância do regime jurídico previsto na redação original do artigo 9º, § 3º, do Decreto-lei n° 406/68, pois não teriam retirado ou acrescentado condições para a aplicação do regime de tributação fixa aos profissionais autônomos e às sociedades profissionais, que continuou a exigir, em síntese, a responsabilidade pessoal do profissional prevista em lei. As adaptações ter-seiam restringido tão-somente a adaptar os itens da lista de serviços, não havendo inovação jurídica em relação ao comando normativo, pelo que tal dispositivo não constitui, formalmente, preceito autônomo, mas sim preceito que se incorporou à lei original da qual passa a fazer parte integrante, o que impediria a revogação indireta da legislação anterior. 788 Os itens são os seguintes: 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92, de acordo com a redação dada ao § 3º do artigo 9º do Decreto-lei n. 406/68 pela Lei Complementar n. 56/87. 306 Por fim, defendem os autores que os §§ 1º e 3º do artigo 9º, do Decreto-lei n° 406/68, por veicularem inequívocas normas de caráter especial, não teriam sido revogadas pela Lei Complementar n° 116/2003, devido ao seu nítido caráter de norma geral, ex vi dos §§ 1º e 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei n° 4.657, de 04 set. 1942), os quais prescrevem, respectivamente, que “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”, e que “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”. Raciocínio semelhante encontra-se nos artigos de CONDORCET REZENDE, GUSTAVO BRIGAGÃO e ALISSON CARVALHO DE SOUZA790, e de MARIA DO ROSÁRIO ESTEVES791. O Superior Tribunal de Justiça já possui decisões sobre o tema, como ilustra a transcrita abaixo, a que entendeu pela não revogação do artigo 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei n. 406/68, pelo artigo 10 da Lei Complementar nº 116/2003. Obviamente, a questão da constitucionalidade da tributação fixa não é apreciada, por força da função desse tribunal estar limitada ao exame de questões infraconstitucionais: TRIBUTÁRIO. PROCESSO CIVIL. ISS. REVOGAÇÃO. ART. 9º, §§ 1º E 3º, DO DECRETO-LEI N. 406/68. REVOGAÇÃO. ART. 10 DA LEI N. 116/2003. NÃO-OCORRÊNCIA. 1. O art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei n. 406/68, que dispõe acerca da incidência de ISS sobre as sociedades civis uniprofissionais, não foi revogado pelo art. 10 da Lei n. 116/2003. 2. Recurso especial improvido.792 BETINA TREIGER GRUPENMACHER, com sólidos argumentos científicos, defende entendimento diverso. Para a jurista paranaense, não há como negar ter a Lei Complementar n° 56/87 modificado o § 3º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, mantendo em preceito novo e autônomo o regime da tributação fixa às sociedades profissionais, o que equivaleria a tê-lo revogado parcialmente (derrogação), atraindo, com efeito, o caput do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, o qual dispõe que “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. Nesse ponto de vista, a revogação da Lei Complementar n° 56/87 pela Lei 789 O ISS das Sociedades de Serviços Profissionais e a Lei Complementar nº 116/2003. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 9-18. 790 A base de cálculo do ISS devido pelas sociedades profissionais. In ibidem, p. 407-409. 791 O ISS das sociedades de profissionais: análise da LC n. 116/2003, in ibidem, p. 443-449. 792 REsp 713.752/PB, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 23.05.2006, DJ 18.08.2006 p. 371 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 307 Complementar n° 116/2003 teria excluído do sistema jurídico o benefício antes aplicável às sociedades profissionais. Por outro lado, em face da vedação de repristinação constante do § 3º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, essa revogação não teria o poder de ressuscitar o artigo 9º, § 3º do Decreto-lei n° 406/68. No entanto, devido à pacífica não revogação do regime de tributação fixa para os profissionais autônomos, a autora defende que, por força do Princípio da Isonomia Tributária, tal regime deve ser estendido às sociedades profissionais, posto que a distinção entre ambos os contribuintes – trabalho pessoal ou mediante a reunião em sociedade não empresarial – não autoriza a instituir tratamento tributário desigual, pelo que conclui que as sociedades profissionais ainda fazem jus ao regime de tributação fixa.793 JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, não obstante em um primeiro momento ter afirmado que o artigo 10 da Lei Complementar n° 116/2003 revogou expressamente o preceito legal que dispunha sobre a diferenciada tributação das sociedades uniprofissionais – inciso IV do Decreto-lei n° 834/69 – chegando mesmo a afirmar que a partir de janeiro de 2004 “[...] os Municípios deverão cobrar o ISS das sociedades uniprofissionais, com a estipulação de alíquotas com limites específicos (mínima de 2%,e máxima de 5%)”, logo após assinala que “[...] esta situação não é tranqüila sob a assertiva de que o artigo 10 da Lei Complementar n° 116/03 não revogou expressamente o artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, mas distintos preceitos (arts. 8º, 10, 11 e 12)”, assim como, por força da Lei de Introdução ao Código Civil, não vislumbra o autor incompatibilidade entre a lei nova e o dispositivo anterior, nem regulação integral na norma posterior.794 Quer parecer, entretanto, que melhor razão assiste ao entendimento pela subsistência do regime de tributação fixa às sociedades profissionais. Em excelente artigo, EDUARDO FORTUNATO BIM reúne argumentos que entendemos como os únicos válidos na solução da questão.795 Em primeiro lugar, o deslinde da questão exige consignar a distinção conceitual entre “validade” e “eficácia”, atributos da norma jurídica que não se confundem. Conforme ALFREDO AUGUSTO BECKER, a validade da regra jurídica decorre da natureza do órgão que a criou e está condicionada 793 Sociedades de profissionais e tributação fixa frente à Lei Complementar nº 116/2003. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 36-51. 794 ISS..., op. cit., p. 134-135. 308 à harmonia, não contrariedade, com a totalidade do sistema jurídico do qual passa a fazer parte. A eficácia jurídica refere-se aos efeitos jurídicos prescritos pela regra jurídica.796 Uma conseqüência relevante dessa distinção resulta em que a revogação de uma norma não lhe atinge a eficácia já produzida e que continua protegida pelo Direito, mas tão-somente a sua validade. Conforme ensina TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, a eficácia não se revoga, anula-se.797 A anulação da eficácia jurídica ocorre, por exemplo, com a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que tal decisão, que torna a norma inválida, tenha somente efeitos “ex nunc”, mantendo sua eficácia no mundo jurídico por razões de segurança jurídica, excepcional interesse social – artigo 27 da Lei n° 9.868, de 10 nov. 1999 – ou ainda outro valor que a Suprema Corte entenda relevante, em um juízo de proporcionalidade.798 Com efeito, as redações posteriores do Decreto-lei n° 406/68 são resultado da eficácia, primeiro do Decreto-lei n° 834/69, e depois, da Lei Complementar n° 56/87. Com a revogação, não anulação, dessas duas normas pela Lei Complementar n° 116/2003, não houve revogação do Decreto-lei n° 406/68 com sua nova redação, pois é produto da eficácia, e não da validade, da legislação revogada, passando, portanto, a ter existência autônoma. Disso decorre ainda outra conclusão importante: a revogação verificada não resulta na “repristinação” da redação original do Decreto-lei n° 406/68, pois isso somente ocorreria na hipótese de que a legislação que o alterou fosse declarada inválida (inconstitucional) pelo Supremo Tribunal Federal, mediante o controle concentrado de constitucionalidade.799 Não ocorreu, ainda, a revogação tácita, pois não há incompatibilidade entre o artigo 7º da Lei Complementar n° 116/2003 – único artigo que trata sobre a base de cálculo – e a norma anterior, ainda vigente; e, por outro lado, a Lei Complementar n° 116/2003 não regulou inteiramente a matéria, mas, tão-somente, limitou-se a reproduzir o caput do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68 e regulamentar os serviços dos itens 3.04, 7.02 e 7.05, os quais em nada dizem respeito ao regime de tributação fixa. Fica afastada, portanto, a aplicação do § 1º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, pelo 795 A subsistência do ISS fixo para as sociedades uniprofissionais em face da Lei Complementar 116/03: a plena vigência do § 3º do artigo 9º do DL 406/68. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS..., op. cit., p. 85-98. 796 Teoria..., op. cit., p. 79-80. 797 Introdução ao Estudo do Direito, p. 202. 798 BIM, Eduardo Fortunato. A Subsistência do ISS..., op. cit., p. 89-90. 799 Ibidem, p. 91-92. 309 qual “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.800 Também se poderia argumentar que o caput do artigo 7º da Lei Complementar n° 116/2003, quando dispõe que a base de cálculo é o preço do serviço, teria revogado, com base no critério cronológico –“lex posterior derogat priori” – a norma que prevê o regime de tributação fixa. Ocorre que essa norma é de caráter inequivocamente especial em relação àquela, porque trata de uma situação “sui generis”, ou seja, da definição da base de cálculo das sociedades profissionais, a qual é diferente em relação ao regime geral. Diante do critério da especialidade – “lex specialis derogat generalis” – não houve, assim, a revogação alegada. De acordo com a doutrina, no problema da antinomia entre o critério da especialidade e o cronológico prevalece o primeiro, conforme a dicção do brocardo “lex posterior generalis non derrogat priori specialis”. A Lei Complementar n° 116/2003 (artigo 7º), lei posterior e geral, não revogou o Decreto-lei n° 406/68 (artigo 9, § 3º), lei anterior e especial, em observância ao § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, pelo qual “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.801 Por fim, a posterior supressão do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, no artigo 10 da Lei Complementar n° 116/2003, o qual constava na redação original do Projeto de Lei Complementar nº 01/91 da Câmara dos Deputados, demonstra que sua ausência não representa uma lacuna, um simples esquecimento do legislador, pois ele tinha plena ciência da exclusão do artigo 9º do artigo revogador, o que evidencia a intenção de manter o regime de tributação fixa para as sociedades profissionais. EDUARDO FORTUNATO BIM designa essa atitude de “silêncio eloqüente do legislador”, propositado e relevante para o Direito, por representar uma manifestação de vontade do legislador que está presente no contexto, mas não no texto normativo. O silêncio do legislador ultrapassou a “mens legis” ou a “mens legislatoris”, passando a integrar a norma jurídica.802 Registre-se, no entanto, que a importância do exame da tributação fixa é de aspecto prático, do qual não podemos nos furtar, e decorre apenas da equivocada 800 Ibidem, p. 92-93. Ibidem, p. 93-95. 802 Ibidem, p. 96-97. 801 310 orientação jurisprudencial, a qual entendeu, ao longo dos anos, pela sua constitucionalidade. Entretanto, a discussão juridicamente mais relevante reside no teste de sua constitucionalidade. O tema dos tributos fixos foi estudado de forma acentuada na doutrina estrangeira, tendo, a maior parte dos países, aceito essa sistemática como válida. O Direito Comparado, infelizmente, influenciou desmedidamente a doutrina do Direito Tributário em nosso país. JUAN RAMALLO MASSANET, por exemplo, distingue os tributos fixos dos tributos “variáveis”, estando o discrímen, em síntese, na prévia atribuição, quanto aos primeiros, do valor da prestação pela norma jurídica, e na identificação desse valor, quanto aos segundos, apenas com a ocorrência do fato tributário, o que por si só já revela, entendemos, a potencial violação do Princípio da Isonomia Tributária: Por cuota fija o tributo fijo podemos entender aquel en que la norma jurídica prevé el montante o cuantia de la prestación. Junto al presupuesto de hecho hipotético, y para cada uno de ellos, se establece, como consecuencia jurídica, el pago de una concreta cantidad de dinero. Por cuota variable o tributo variable, por el contrario, se entiende aquel en que la norma jurídica no suele establecer un mandato o consecuencia concretamente cuantificada, sino los elementos para llegar a ella, y, en el supuesto en que la prestación se halle cuantificada, no se hace de modo individual para cada hecho imponible, sino que a un hecho imponible le siguen varias consecuencias jurídicas hipotéticas y alternativa, que dependerán o variarán según alguna circunstancia del citado hecho.803 Interpretando os §§ 1º e 2º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, RUBENS GOMES DE SOUSA, em parecer específico sobre o tema, entende, em síntese, que, da norma geral (nacional) em comento não se extrai a autorização para que o município possa restringir o regime de tributação fixa apenas e tão-somente às sociedades cujos sócios sejam todos integrantes de uma mesma categoria profissional legalmente regulamentada, desde que o objeto da sociedade abranja o exercício de todas elas.804 Em outro ângulo da questão, entende o autor que tal norma não ofende o Princípio da Isonomia, uma vez que, pelo fato de todas as sociedades prestadoras de serviços profissionais constituírem uma só categoria jurídica, todas devem ser tratadas de igual forma, seja para fins tributários ou outros quaisquer. Para o autor, o discrímen dessa categoria jurídica específica deve-se ao regime jurídico federal a que estão submetidas as sociedades cujos sócios exerçam profissões 803 804 Hecho Imponible..., op. cit., p. 11 O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 355-356. 311 legalmente regulamentadas, cujo ponto comum, pode-se destacar, é a presença da responsabilidade pessoal de cada sócio pelos serviços individualmente prestados, irrelevante, para esse fim, o fato de integrar uma sociedade (pessoa jurídica). Como tais sócios, ainda que pertencentes ao quadro societário de uma pessoa jurídica, exercem sua atividade de forma pessoal, ela não teria caráter empresarial, donde se conclui que a manifestação da capacidade contributiva teria a mesma intensidade caso o sócio prestasse os mesmos serviços como profissional autônomo, onde a tributação, conforme prevê o § 1 do mesmo artigo 9, é calculada com base no mesmo regime fixo. MARÇAL JUSTEN FILHO, apesar de concordar ser inconstitucional exigir ISS de quem não prestou nenhum serviço, a causa da inconstitucionalidade não é diretamente a ofensa da isonomia, mas a inocorrência de fato “imponível” desse tributo, do que resulta o legislador municipal estar agindo sem competência. A ofensa à isonomia caracterizar-se-ia, efetivamente, com a adoção da predeterminação da prestação tributária em relação aos que prestem serviços. 805 Amparado na célebre obra de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO sobre o Princípio da Igualdade 806, o autor entende haver ofensa à isonomia positivada constitucionalmente “[...] quando a lei trata igualmente situações e se verifica: a) um traço diferencial entre elas, residente nas pessoas, coisas ou situações identificadas; b) esse traço diferencial conduziria, logicamente, à necessidade de um tratamento jurídico diverso e inconfundível; e isto porque; c) os interesses constitucionalmente tutelados exigem a diversidade de tratamento”. Em especial no campo tributário, o interesse jurídico fundamental é o de que a carga tributária seja distribuída em equilíbrio com a riqueza existente, para que onde haja maior riqueza, maior seja o valor da prestação tributária e vice-versa. Com efeito, será inválida norma que dê tratamento idêntico a situações díspares, ou que, ao contrário, dê tratamento diverso a situações idênticas.807 Adverte ainda o autor que com a defesa da capacidade contributiva relativa, acabaríamos por ingressar no questionamento da justiça ou injustiça do valor da prestação tributária, perquirindo, em cada caso, qual a riqueza que cada contribuinte possui e a proporcionalidade da carga tributária a ele imposta, tema puramente político 805 O imposto..., op. cit., p. 165-166. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO analisou a isonomia somente do ponto de vista do tratamento desigual adotado pela lei, mas não se deteve no outro ângulo da isonomia, que veda tratamento igual para os desiguais. É nesse sentido que MARÇAL JUSTEN FILHO expõe seu entendimento em relação ao ISS. 807 O imposto..., op. cit., p. 166-167. 806 312 e, portanto, refutado pelo autor. Quando a lei estabelece, portanto, uma quantia fixa e invariável a título de ISS para uma categoria de serviços, acaba por tratar de forma idêntica diferentes situações jurídicas. Vejamos seu entendimento: Se o núcleo da hipótese de incidência é dado pelo conceito de “prestação de serviço”, não há como negar que a prestação tributária há de ser condicionada pelo caráter e pela intensidade da atividade de “prestação de serviço”. Logo, não há fundamento jurídico para atribuir idêntico tratamento a quem desempenhe inúmeras prestações de serviço, altamente relevantes, e a quem desempenhe umas poucas prestações de serviço, economicamente irrelevantes.808 O jurista paranaense vê ainda outro fundamento para a inconstitucionalidade da sistemática de tributação fixa. É que, pela Constituição, o critério material do ISS, que é o núcleo da hipótese de incidência, é a “prestação de serviço”, pelo que a prestação tributária deve obrigatoriamente quantificar essa materialidade. E isso não ocorre quando se tributa com valores fixos, pois nesses casos deixa-se de tributar a prestação de serviços para se tributar a “habilitação para a prestação de serviços” ou o “exercício de profissão”, desnaturando o formato original do ISS previsto na Constituição. A materialidade do ISS é um fato (ato) jurídico, e não um estado, de fato ou de direito. “O ISS não incide sobre uma seqüência de situações homogêneas verificadas durante um espaço de tempo – sua incidência recai sobre cada ato jurídico qualificável como execução de obrigação de fazer”.809 Com relação aos serviços gratuitos, ou seja, aqueles que não têm a remuneração – benefício economicamente avaliável – como contraprestação direta e objetiva da prestação do serviço, entendemos pela não incidência do ISS sobre os mesmos. Não se entenda remuneração como valor em dinheiro, muito menos aquele recebido com intuito de lucro. O ISS, portanto, só incide sobre serviço qualificável juridicamente como execução de obrigação de fazer decorrente de contrato bilateral. Perceba-se que, caso o tributo incidisse, a obrigação tributária nem poderia nascer, pois não há como fixar a prestação devida, já que a base de cálculo teria valor zero. Qualquer valor exigido representaria confisco estatal de bens privados, pela inexistência de fato signo-presuntivo de riqueza. O mesmo não ocorre no caso de a remuneração ser mínima, para fins, por exemplo, de compensação de despesas do prestador, posto que a incidência do ISS não está condicionada à existência de lucro – 808 809 Ibidem, p. 168-170. Ibidem, p. 170-171. 313 aumento patrimonial, renda líquida. E se tal condição fosse possível, seu critério material confundir-se-ia com o do imposto de renda.810 O § 1º, do artigo 7º, da Lei Complementar n° 116/2003, dispõe que para os serviços de “Locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza”, quando prestados no território de mais de um município, “[...] a base de cálculo será proporcional, conforme o caso, à extensão da ferrovia, rodovia, dutos e condutos de qualquer natureza, cabos de qualquer natureza, ou ao número de postes, existentes em cada Município”. Em uma primeira leitura já se verifica a inconstitucionalidade do preceito, pois trata, como prestação de serviço, o que na verdade é cessão de direito, o que impede a incidência de ISS. Por outro lado, quando vincula a base de cálculo, de forma proporcional, “[...] à extensão da ferrovia, rodovia, dutos e condutos de qualquer natureza, cabos de qualquer natureza, ou ao número de postes, existentes em cada Município”, o dispositivo legal acaba por admitir a própria inconstitucionalidade, pois é cristalino que a maior ou menor extensão de uma ferrovia, por exemplo, não é critério que possa mensurar qualquer execução de obrigação de fazer. 4.4.2.2 Alíquota Com o advento do Ato Complementar nº 34, de 30 jan. 1967 – baixado, portanto, no intermédio entre a promulgação da Constituição de 24 jan. 1967 e a data de sua vigência, em 15 mar. 1967 – através de seu artigo 9º, foram estabelecidas alíquotas máximas para a tributação do ISS, visando acabar com os abusos cometidos por algumas municipalidades811, em que pese a competência tributária para a instituição do ISS tenha sido outorgada originalmente aos municípios sem limite algum, quando da aprovação da Emenda Constitucional nº 18/65. Ou seja, ressalvados os Princípios da Capacidade Contributiva e da Vedação de Tributo com efeito de Confisco, o formato original do ISS conferia, ao legislador municipal, total discricionariedade na fixação de suas alíquotas, o que torna discutível o teor do referido ato complementar. 810 811 Ibidem, p. 171-172. “Artigo 9º Ficam estabelecidas as seguintes alíquotas máximas para a cobrança do imposto municipal sobre serviços: I – execução de obras hidráulicas ou de construção civil, até 2%; II – jogos e diversões públicas, até 10%; III – demais serviços, até 5%.” 314 A Constituição de 1967 também não trouxe nenhuma limitação máxima para as alíquotas do ISS e, por ter entrado em vigor após o Ato Complementar nº 34/67, não recepcionou seu conteúdo, com o que se conclui pela sua revogação. Vindo à luz o Decreto-lei nº 406/68, cujo teor compreendeu a regulação total do ISS em nível infraconstitucional, ratificou-se mais uma vez a inexistência de limites máximos às alíquotas desse imposto, desde que não havia, nessa lei, nenhum dispositivo nesse sentido. A Emenda Constitucional nº 01/69, embora também não tenha trazido, de forma direta, qualquer limitação quanto às alíquotas do ISS, autorizou, em seu artigo 24, § 4º, o legislador complementar, a estabelecer as alíquotas máxima desse imposto. Esse quadro levou BERNARDO RIBEIRO DE MORAES a concluir pela inexistência, em 1975, de quaisquer limites máximos para a determinação da alíquota do ISS pelos municípios812; posição que, inclusive, foi encampada à época pelo Supremo Tribunal Federal – RE nº 81.222-SP, Acórdão de 15/09/76, Tribunal Pleno, Relator Ministro Xavier de Albuquerque – conforme anota MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES.813 A Constituição Federal em vigor, em seu artigo 156, § 3º, I, na antiga redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 17 mar. 1993, já previa caber à lei complementar fixar as alíquotas máximas para o ISS. Até o advento da Lei Complementar nº 100, de 22 dez. 1999, não havia limitação alguma para os municípios nesse sentido, salvo na hipótese de configurar efeitos confiscatórios. Com essa lei, ficou estabelecido o percentual de cinco por cento como alíquota máxima do ISS. Interpretando o dispositivo, AIRES BARRETO advoga a inconstitucionalidade das leis municipais que estabeleçam, para qualquer espécie de serviço, percentual superior a cinco por cento.814 Sob a égide da Lei Complementar nº 116/2003, a alíquota máxima continua sendo de cinco por cento. O inciso I do artigo 8º, que previa alíquota máxima de dez por cento para alguns serviços de diversão pública, foi vetado quando submetido à sanção pelo Presidente da República. Com o objetivo de evitar a guerra fiscal entre os municípios, a Emenda Constitucional nº 37, de 12 jun. 2002, deu nova redação ao inciso I do § 3º do artigo 156, da Constituição, o qual, a partir de então, passou a atribuir à lei complementar a 812 Doutrina..., op. cit., p. 554-556. Imposto sobre serviços..., op. cit., p. 51. 814 ISS na Constituição..., op. cit., p. 146. 813 315 competência para fixar, ao lado da alíquota máxima, também as alíquotas mínimas do ISS. Também estabeleceu, mediante o acréscimo do inciso III, ao § 3º do mesmo artigo 156, caber à lei complementar regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, a Emenda nº 37/2002 ainda incluiu o artigo 88, dispondo que, enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e III, do § 3º, do artigo 156, da Constituição Federal, o ISS: (I) terá alíquota mínima de 2% (dois por cento), exceto para os serviços a que se referem os itens 32 a 34 da lista anexa ao Decreto-lei nº 406/68 – redação dada pela Lei Complementar nº 56/87; e (II) não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resultem, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima precitada. As exceções à alíquota mínima referem-se a serviços de construção civil, onde o ISS, no Decreto-lei nº 406/68, era excepcionalmente devido ao município onde se localizam as obras, do que resultava desnecessária a definição de alíquotas mínimas por impossibilidade de guerra fiscal entre os municípios para essa receita específica. A fixação de alíquota mínima visa alcançar aqueles serviços em que o ISS, conforme prescreve o artigo 12, “a”, do Decreto-lei nº 406/68, é devido ao município onde está situado o estabelecimento prestador, por serem tais serviços os que ensejam a “guerra fiscal” entre os municípios, pois era comum o contribuinte que tinha seu estabelecimento prestador em município, onde a alíquota do ISS era ínfima, mas que prestava serviços em outro município, onde a carga tributária era maior. 815 Quer parecer que a Emenda nº 37/2002, quando remete à lei complementar a fixação de alíquotas mínimas para o ISS e a regulação da forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados, assim como quando fixa a alíquota mínima em dois por cento, enquanto aquela lei complementar não for editada, além de não se compatibilizar com nenhuma das funções constitucionalmente previstas para edição de normas gerais de Direito Tributário, é inequivocamente violadora do Princípio da Autonomia Municipal, pelo que pode e deve ser declarada inconstitucional. DALTON LUIZ DALLAZEM tem o mesmo entendimento, acrescendo que não vislumbra nenhum conflito de competências tributárias entre municípios em matéria de isenções, incentivos e benefícios fiscais que 815 ALVES, Anna Emília Cordelli. A base de cálculo..., op. cit., p. 178. 316 pudesse ser resolvido pela lei complementar da União, hipótese que legitimaria sua edição.816 Não resta a menor dúvida de que o disposto no artigo 156, § 3º, I, da Constituição de 1988, encerra uma “limitação constitucional ao poder de tributar”. A lei complementar de que trata esse artigo, portanto, tem a configuração de norma geral de Direito Tributário, editável nos moldes do artigo 146, II, da Constituição, o qual dispõe caber à lei complementar “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar”. Mas, advirta-se, não é a própria lei complementar que limita a competência municipal, posto que todas as “limitações ao poder de tributar”, ou, dizendo de outra forma, o desenho já “acabado” das normas atributivas de competência, já se encontra previsto na própria Constituição. A lei complementar em comento tem, tão-somente, a competência de regular, e não criar ela própria qualquer limitação nesse sentido. Partindo dessa premissa, JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES – analisando o artigo 24, § 4º, da Constituição Federal de 1969, equivalente ao inciso III do § 3º do artigo 156, em sua redação dada pela Emenda Constitucional nº 3/93 – esclarece a contento que, à União cabe, apenas, fixar as alíquotas máximas para o ISS, não estando previsto na Constituição competência para a União fixar as alíquotas do ISS, apesar de a literalidade do inciso III, do § 3º, do artigo 156, poder conduzir a esse entendimento equivocado. É que a lei complementar, ora tratada, é lei sobre leis de tributação, do que resulta não estabelecer, de imediato, a alíquota desse imposto, mas apenas fixa os tetos que não poderão ser ultrapassados pelas leis municipais. Com acerto, o autor critica a doutrina que entende ter a lei complementar o poder de, sponte sua, estabelecer limitações à competência tributária dos municípios, o que acabaria por conferir uma supremacia jurídica e política da União Federal sobre os municípios, o que não se compadece com a igualdade hierárquica destas pessoas políticas, assim como ofende frontalmente o Princípio da Autonomia Municipal. Dessume-se do exposto que, mesmo após o advento das alíquotas máximas para o ISS, será imprescindível a existência de lei municipal cuja eficácia de suas prescrições seja compatível com a disciplina da lei complementar.817 Em sentido contrário é o pensamento de MARÇAL JUSTEN FILHO, em comentário ainda sobre a Constituição anterior, pelo qual a reserva de lei complementar para fixação dos limites máximos das alíquotas do ISS, como defende JOSÉ SOUTO 816 A responsabilidade tributária..., op. cit., p. 163-164. 317 MAIOR BORGES, não tem natureza jurídica de uma “limitação constitucional ao poder de tributar”, pois “[...] o Município não está sujeito a qualquer limitação constitucional, no que tange à fixação de alíquotas. Apenas se o legislador complementar nacional decidir-se a entra em atividade e impor limites é que eles surgirão”. Acrescenta o autor que: Somente haverá campo para a lei complementar dispor no que extravasar o próprio interesse peculiar do Município, para configurar-se como interesse maior, nacional. Ou seja, o interesse nacional é o de que a alíquota do ISS, estabelecida pelos Municípios, não prejudique o interesse nacional; consiste em que a atuação fiscal do Estado não destrua a iniciativa econômica nem caracterize uma atividade competitiva destrutiva entre os variados Municípios.818 Em que pesem os bons argumentos desse autor, entende-se que melhor razão assiste ao pensamento de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, assim como pela certeza de que toda lei complementar tributária de âmbito nacional veicula normas gerais, dispondo ou sobre conflitos de competência, ou sobre as “limitações constitucionais ao poder de tributar”. Em comentário sobre o artigo 24, § 4º, da Constituição de 1969, que, como já se disse, equivale à redação dada pela Emenda nº 3/93 ao inciso III do § 3º do artigo 156 da Constituição de 1988, esse autor ressalta que, em face da atribuição de competência à lei complementar para fixação das alíquotas máxima para o ISS, três alternativas podem efetivamente vir a ocorrer: (I) a alíquota da lei municipal anterior pode ser superior ao teto previsto na lei complementar; (II) pode a lei municipal ter fixado alíquota inferior à autorizada na lei complementar; e por fim (III) pode a lei municipal ter isentado, total ou parcialmente, a prestação de serviços cujo teto venha a ser fixado em lei complementar.819 Como a Constituição de 1969 não previa a competência para fixação de alíquotas mínimas, como fez a Emenda nº 37/2002, ao dar a nova redação ao inciso I, do § 3º, do artigo 156, da Constituição, a análise desse autor restringiu-se, obviamente, à questão da fixação de alíquotas máximas, o que requer sejam seus comentários adaptados ao novo contexto constitucional. Para a hipótese (I), o autor adverte para o problema de saber se é suficiente a lei complementar reduzindo a alíquota do imposto, para dar continuidade à sua cobrança, observados os limites da redução heterônoma, ou se é necessária a edição de lei municipal fixando alíquota compatível com a lei 817 Lei Complementar..., op. cit., p. 208-209. O imposto..., op. cit., p. 172-175. 819 Lei Complementar..., op. cit., p. 209-210. 818 318 complementar. O autor propõe a seguinte solução, com as quais filiamo-nos incondicionalmente: Ora, a lei complementar superveniente não revogará a lei municipal, mas apenas lhe suspenderá a eficácia no tocante à parte que exceder ao teto fixado para a tributação. A lei municipal preexistente à lei complementar regulatória da limitação constitucional já preenche, por si só, as exigências do princípio da legalidade. Logo, não é necessária a edição de lei municipal posterior reduzindo a alíquota do tributo, para fins de cobrança. [...] A legislação municipal antecedente, que excede o teto da lei complementar posteriormente editada, perde a sua eficácia, na parte excedente. Não é necessário, para a continuidade da cobrança do tributo, a superveniência de lei municipal ajustando as vigentes alíquotas do imposto às alíquotas-teto autorizadas em lei complementar.820 Como à época ainda não havia previsão equivalente sobre qual seria a alíquota mínima, o autor entendia, então, que nas hipóteses (II) e (III) “[...] não se oferece maior problema, porque a conseqüência da lei complementar superveniente consistirá apenas em condicionar o exercício da atividade legislativa futura no âmbito municipal, se entender o Município de elevar a alíquota do imposto (II) ou tributar atividade até então isenta (III)”.821 Aplicando-se analogicamente o raciocínio expendido por esse autor à situação originada após o advento da EC 37/2002, tem-se que, nos casos de (II) a alíquota prevista em lei municipal ser inferior ao piso estabelecido na lei complementar; ou ainda, (III) existir na legislação municipal concessão parcial ou total de isenção de ISS para hipóteses para as quais também exista lei complementar prevendo o referido piso; a lei complementar posterior também não revogará a lei municipal, a qual, na verdade, terá sua eficácia alterada de forma a compatibilizar-se com os ditames da lei complementar. Não pode a União, entretanto, a pretexto de aplicação do artigo 156, III, § 3º, da Constituição, inibir a competência tributária municipal, mediante a “[...] fixação de alíquotas máximas de tal modo insuficientes para as necessidades públicas no âmbito municipal que a autonomia do Município, cuja preservação deve ser por mandamento constitucional assegurada, venha a tornar-se praticamente coartada pela legislação complementar”.822 Há casos de isenção, no entanto, que merecem tratamento diferenciado, em razão da existência de direito adquirido por parte do beneficiário, nos moldes do que 820 821 Ibidem, p. 210 Idem. 319 dispõe o artigo 178 do Código Tributário Nacional, pelo qual “A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo”, observado o Princípio da Anterioridade. PAULO DE BARROS CARVALHO tece crítica à letra desse artigo, argumentando que, em decorrência do princípio implícito da supremacia do interesse público sobre o dos particulares, também as isenções concedidas por prazo certo e mediante condições podem ser ab-rogadas – revogadas totalmente – ou derrogadas – revogação parcial – desde que, no entanto, haja justa indenização advinda dos prejuízos do inadimplemento contratual.823 LUCIANO AMARO concorda com o entendimento de PAULO DE BARROS CARVALHO de que o artigo 178 do Código Tributário Nacional não pode ser um obstáculo à revogação da norma legal definidora da hipótese de isenção, mas, amparado em FLÁVIO BAUER NOVELLI, acresce que, diante da inequívoca existência de direito adquirido à eficácia da isenção, os seus efeitos devem permanecer incólumes para o destinatário que cumpriu as condições, até que ocorra seu termo pelo decurso do prazo fixado. Por óbvio que, ainda que não revogada a lei, os efeitos da isenção cessarão quando esgotado o prazo de sua aplicação.824 Não se pode recusar, contudo, os argumentos de PAULO DE BARROS CARVALHO, pois é a própria “sobrevivência” da eficácia da isenção, após a revogação da respectiva norma, que confere o direito à indenização pelo beneficiário, na hipótese dessa eficácia ser cassada. 822 Ibidem, p. 211. Curso..., op. cit., p. 495. 824 Direito Tributário Brasileiro, p. 277-278. 823 320 5. CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE MUNICÍPIOS 5.1 CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS A análise dos conflitos de competência existentes pode ser resumida a duas espécies. A primeira espécie abrange os conflitos envolvendo a chamada competência heterogênea, também chamados de conflitos materiais, pois o problema decorre da dificuldade, no plano pré-jurídico, de subsunção de um determinado fato a mais de uma hipótese tributária, de pessoas políticas diversas, como, por exemplo, conflitos entre estados e municípios (ICMS e ISS), ou entre a União e os municípios (IPI e ISS). A segunda espécie trata dos conflitos acerca da chamada competência homogênea, onde não há dúvida quanto ao tributo incidente sobre determinado fato ocorrido, mas sim sobre a titularidade da competência para a tributação, envolvendo, portanto, duas ou mais pessoas políticas da mesma órbita, como, por exemplo, conflito entre municípios, com ambos exigindo o ISS sobre o mesmo fato. 825 O objeto de nosso estudo versa a segunda hipótese. Ainda que de modo breve, os conflitos de competência heterogênea já foram analisados no item destinado ao exame das relações do ISS com o ICMS e o IPI. 826 Há muitos anos, a doutrina e a jurisprudência têm-se deparado com o problema da existência de conflitos envolvendo municípios, mais especificamente sobre a pretensão tributária de mais de um município sobre a ocorrência de apenas um fato tributário do ISS, ou seja, sobre uma única prestação de serviço. Ou seja, dois municípios, simultaneamente, defendem ser a lei, aprovada pelos seus respectivos poderes legislativos, a competente para regular o mesmo fato ocorrido. Tais conflitos são qualificados como espaciais, pois dizem respeito à vigência da lei no espaço. Os conflitos, assim, somente surgem quando a prestação de um serviço envolve mais de um município, pois se tanto as “atividades-meio”, como o serviço-fim, fossem sempre desenvolvidos em um único município, não haveria diferença em a lei dispor que o local em que o imposto é devido é o município onde está o estabelecimento prestador ou que o tributo é devido no local da efetiva prestação. 827 Muitas vezes, o conflito entre municípios ocorre não em razão de saber se existe ou não um 825 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 71. Vide supra, subitem 4.3.1.2. 827 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 318. 826 321 estabelecimento prestador neste ou naquele município, mas, sim, do equívoco em considerar a prestação de serviço como ocorrida em local onde somente se verificou o desempenho de meras “atividades-meio”. Ainda que o custo dessas ações intermediárias seja direta ou indiretamente agregado ao preço do serviço, isso não autoriza possam elas ser consideradas de forma isolada, como se cada uma fosse uma atividade autônoma em relação à atividade-fim, esta sim a única que se concretiza como efetiva prestação de serviço.828 Nesse sentido é o teor do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 97.804-SP.829 GERALDO ATALIBA e AIRES BARRETO confirmam a efetiva existência desse problema, advertindo, no entanto, que a solução não pode ser transferida aos próprios municípios interessados, tampouco ser relegada a decisões episódicas e variadas a serem dadas pelos tribunais. O que se faz necessário, bem defendem esses autores, é a existência de normas que previnam esses atritos, mediante a fixação de critérios objetivos hábeis a evitar os conflitos, sendo que é imprescindível que a idoneidade desses critérios possa ser aferida pela compatibilidade material com as normas constitucionais pertinentes.830 Os conflitos sobre o local de incidência do ISS, quando resultam em dois ou mais municípios tributando a mesma prestação de serviço, violam não só os limites territoriais das leis tributárias, como também afrontam os princípios da Capacidade Contributiva e da Vedação de Tributo com Efeito de Confisco, pois haverá casos em que o prestador dos serviços, para poder receber o preço, terá que se sujeitar à retenção na fonte efetivada pelo tomador, o qual estará obrigado a tanto pela legislação de seu município, o que implica subtrair, do contribuinte, uma parcela da riqueza por ele gerada, em montante bem superior àquele ao qual estaria submetido caso a tributação ocorresse nos moldes constitucionalmente previstos. De fato, a solução para qualquer conflito de competência em matéria tributária não é aleatória, não podendo a escolha do respectivo critério ser arbitrária ou ilógica, pois a Constituição prevê, para cada tributo, um arquétipo único, que permite repartir 828 Ibidem, p. 335. “TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS. ATIVIDADES BANCÁRIAS. CUSTÓDIA DE TÍTULOS, ELABORAÇÃO DE CADASTRO, EXPEDIENTE. SERVIÇOS SEM AUTONOMIA PRÓPRIA, INSEPARÁVEIS DA ATIVIDADE FINANCEIRA, QUE NÃO SUSCITAM O IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE SERVIÇOS. EXCEÇÃO CONSIGNADA NA PRÓRIA LEI MUNICIPAL PARA AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS.” – DJ 31 ago. 1984. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 830 ISS – Conflitos..., op. cit., p. 53. 829 322 com precisão a competência de cada pessoa política. Disso decorre ser “[...] condição lógico-jurídica da própria existência do sistema que uma situação fática determinada corresponda à descrição de apenas uma categoria de hipótese de incidência tributária”, pois, do contrário, “[...] desapareceria a sistematicidade do subsistema constitucional tributário, indo por terra o princípio da rígida discriminação constitucional de competências tributárias”.831 Uma simples análise da materialidade do ISS – a prestação de serviços – já revela a facilidade com que se torna possível a existência de atritos entre municípios, haja vista existirem, espalhados pelo país, numerosos prestadores de serviço que, domiciliados em um município, prestam serviços em outro, resultando, portanto, no problema de definir qual dos entes municipais tem a competência para tributar tais prestações: ou o município onde a empresa está sediada, ou onde o serviço é efetivamente prestado. Ao contrário do que ocorre com o ICMS, onde são apenas duas as hipóteses de serviços tributáveis – transporte transmunicipal e de comunicação – a tributação dos serviços pelo ISS é complexa pela própria natureza do fato tributado, em sua maior parte imaterial, o que torna difícil encontrar todos os elementos necessários para a identificação de um serviço, os quais podem estar reunidos em um mesmo local, ou em locais distintos, o que vale tanto para a sua produção como para o seu consumo. Por outro lado, a possibilidade de conflitos para o ICMS se resume a vinte e sete estados, enquanto que a tributação dos serviços pelo ISS alcança mais de cinco mil municípios.832 Os conflitos surgem devido a uma aparente similitude da hipótese de incidência de normas tributárias diversas, de forma que, um fato, embora se subsuma perfeitamente a só uma das normas, apresenta aspectos que se encaixam em alguns dos critérios da outra norma. Em casos como esses, deve-se realizar um cotejo analítico de cada um dos aspectos da situação fática com os equivalentes critérios constantes das normas tributárias, o que certamente resultará na conclusão de que o fato se subsume completamente a uma das hipóteses e apenas parcialmente em relação à outra. “À medida que se sabe que a hipótese de incidência é um complexo indivisível (dissecável 831 832 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 72. BRAZUNA, José Luís Ribeiro. Breves considerações..., op. cit., p. 203. 323 apenas para efeito de análise teórica), compreender-se-á que essa desconformidade parcial é suficiente para afirmarmos que o fato não corresponde à hipótese”.833 A solução dos conflitos envolvendo competência homogênea, em matéria de impostos, é obtida pela utilização do critério espaço-temporal. Em primeiro lugar, verifica-se onde se ultimou a situação fática que corresponde à materialidade da hipótese de incidência, sendo esse local o competente para determinar a pessoa política competente para exigir o tributo, ou seja, aquela pessoa a que se submete a circunscrição territorial em que ocorreu o fato tributário. Para conhecer esse local, no entanto, é imprescindível a análise do critério temporal, pois somente sabendo quando um fato ocorreu é que resulta possível saber onde ele se concretizou. Noutro giro, a verificabilidade do critério temporal está condicionada ao conhecimento do critério material, ou seja, deve-se conhece a natureza da materialidade para poder saber quando ocorre o fato tributário.834 Uma das características inerentes ao mundo jurídico é a possibilidade de o Direito criar a sua própria realidade, independente dela corresponder à realidade do mundo dos fatos, do mundo fenomênico. O Direito pode conferir aos fatos do mundo relevância (eficácia) que não possuem na realidade fática. Dizendo de outra forma, os efeitos inerentes aos fatos do mundo podem ou não ser juridicamente relevantes, tudo a depender da opção do legislador. Ele pode, ao escolher os fatos do mundo mediante a sua descrição abstrata, imputar as conseqüências que entender pertinentes, devendo contudo obedecer aos limites maiores impostos pelo sistema jurídico, em especial aos princípios constitucionais. Sob os mesmos fundamentos, o Direito pode considerar como juridicamente existentes fatos que não ocorreram no mundo fenomênico, e da mesma forma, considerar juridicamente inexistentes fatos que efetivamente ocorreram, criando o que se chama de “ficção” jurídica. Quem oferece uma valiosa distinção entre presunção jurídica e ficção jurídica é DIOGO MARÍN-BARNUEVO FABO, cientista da Universidade Carlos III de Madri. Para o autor, “[...] presunción es el instituto probatorio que permite al operador jurídico considerar cierta la realización de un hecho mediante la prueba de otro hecho distinto al presupuesto fáctico de la norma cuyos efectos se pretenden, debido a la existencia de un nexo que vincula ambos hechos o al mandato contenido en una norma”; e ficção jurídica, por sua vez, é uma “[...] disposición normativa que simula la 833 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 72. 324 identidad de dos hechos que se sabe diferentes, con la finalidad de atribuir al segundo de ellos el mismo régimen jurídico que ya había sido descrito para el primero”.835 Por outro lado, é pacífico que a presunção legal é dispositivo de direito processual que cria regra de prova, enquanto que a ficção legal é regra de direito material, substantivo.836 Na verdade, a expressão “ficção jurídica” não é correta, pois o raciocínio que a formula parte da perspectiva do mundo dos fatos, e não do mundo jurídico. Resulta de confusão entre o mundo do “ser” e o mundo do “dever-ser”. Uma vez criada a regra jurídica, seja de ficção legal ou de presunção legal, ambas não se distinguem, pois tanta uma como outra entram no mundo jurídico como “verdades jurídicas”.837 Amparados nesses fundamentos, alguns defendem que o legislador infraconstitucional teria liberdade para definir, como critério espacial da hipótese de incidência, um local que não coincidisse com aquele onde a materialidade realmente se concretiza, ou, o que é mais grave, em local situado fora do âmbito espacial de competência da pessoa política. Ora, ainda que nos estados soberanos haja essa possibilidade, o mesmo não ocorre em relação às normas veiculadas por entes de uma federação, como é o Estado Federal brasileiro, pois a ausência de soberania impede que esses entes legislem, extrapolando o espaço geográfico permitido pela Constituição, havendo norma constitucional impeditiva nesse sentido. Frise-se, portanto, que a possibilidade de criar as chamadas “ficções jurídicas”, ainda que existente, não é ilimitada, encontrando na Constituição Federal, e em especial nos princípios constitucionais, os contornos que dimensionam o seu legítimo exercício. MARÇAL JUSTEN FILHO ratifica nosso posicionamento: é possível o legislador estabelecer ficções, mesmo no campo da construção da hipótese de incidência. Isso não se nega. Entretanto, há um limite à instituição de ficções – o limite está na Constituição. Se a ficção concretiza ofensa à norma expressa ou a princípio constitucional, será ela inválida. Isso é tanto mais relevante em nosso ordenamento, que se peculiariza por uma rígida e exaustiva regulação do sistema tributário, restando margem diminuta de liberdade para a legislação infraconstitucional.838 Em resumo, depreende-se que o exame da constitucionalidade da ficção em matéria tributária não deve partir da ficção em si mesma, mas do exame de 834 Ibidem, p. 73. Notas, in apud VIEIRA, José Roberto. Imposto Sobre Produtos..., op. cit., p. 187. 836 SCHOUERI, Luís Eduardo. Distribuição disfarçada de lucros, p. 121. 837 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral..., op. cit., p. 464. 835 325 compatibilidade da própria hipótese ficta com o desenho constitucional do campo de competência tributária.839 Também nos parece correto o ponto de vista de JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, o qual ensina que “[...] dentre a gama de elementos pertinentes ao aspecto espacial tributário – tais como domicílio, estabelecimento, fonte, território, origem ou destinação de bens, e negócios envolvendo as partes da relação jurídica implicadora do tributo – hão de ser perquiridas as diretrizes plasmadas na Constituição Federal, consoante competências tributárias”.840 Dizendo de outra forma, o legislador, quando da efetiva criação do tributo, pode eleger, como critério espacial da sua hipótese de incidência, elementos como domicílio, estabelecimento, origem ou destino etc., mas desde que tal escolha seja compatível cumulativamente com as coordenadas de tempo e de espaço previstas, implícita ou explicitamente, na Constituição, sob pena de se estar criando uma ficção sem respaldo na Lei Maior. Outra premissa inafastável, no estudo dos conflitos de competência espacial, é a unidade lógica da norma tributária. Assim como ocorre com qualquer outro tributo, os critérios da hipótese de incidência do ISS não podem ser interpretados abstraindo-se uns dos outros. A unidade lógica e indecomponível da regra-matriz tributária não o permite. Quando dissecamos uma das partes da norma tributária, como estamos fazendo com o critério espacial, a divisão é realizada somente no plano ideal, e tão-somente para fins de análise isolada de cada um dos critérios, permitindo, assim, o aprofundamento da investigação. Mas como todos os conceitos são indecomponíveis, o resultado da análise de cada um dos critérios está umbilicalmente vinculado à coerência com o sentido revelado pelos demais. Disso dessume-se que a eleição do critério espacial do ISS, pelo legislador complementar, assim como de qualquer outro tributo, somente será constitucional caso seja compatível com os demais critérios da hipótese de incidência, ou seja, com os critérios material e temporal. Caso contrário, grandes serão os riscos de o legislador criar nova figura tributária sem autorização constitucional ou, o que é mais grave, legislar sobre tributo de competência de outra pessoa política. É que o fato jurídico tributário somente ocorre no momento e no local onde se reúnem, de forma rigorosamente integral, no mundo fenomênico, todos os elementos previstos abstratamente no antecedente normativo. Da análise da norma tributária do ISS pode-se concluir que, integrando a prestação de serviços o seu núcleo, o critério 838 839 O imposto..., op. cit., p. 149. SCHOUERI, Luís Eduardo. Distribuição..., op. cit., p. 130. 326 temporal só pode ser o exato momento em que se consuma a referida prestação, ou seja, aquele átimo de tempo em que se dá por executada voluntariamente a obrigação de fazer, ou, dizendo de outro modo, o momento em que é dado ao tomador o objeto da prestação dessa obrigação. Ressalte-se que essa execução da obrigação de fazer deve ser analisada única e exclusivamente sob o prisma jurídico, pois inútil para tanto serão os critérios extraídos do exame dos fatos enquanto tais.841 Os critérios da hipótese de incidência – material, espacial e temporal – não obstante poderem ser analisados de forma individualizada, com abstração dos demais, no plano da Ciência do Direito, são inseparáveis no plano fático, o que implica a impossibilidade lógica de dissociação desses critérios em relação ao fato tributário. Com base nesse raciocínio, MARÇAL JUSTEN FILHO adverte que, se a norma jurídica elege, para aspecto temporal ou espacial, um momento ou local dissociado da efetiva ocorrência daquela situação base constante da materialidade, surge um fenômeno teratológico. A norma estará determinando que o mandamento somente incidirá quando e onde verificado determinado evento. Porém, e simultaneamente, determinará que o evento se considerará ocorrido em momento e local diverso daquele em que efetivamente ocorreu. Diz o autor: “A materialidade será desnaturada sempre que a incidência normativa for condicionada a um evento distinto daquele formalmente constante da lei. Portanto, a desnaturação pode produzir-se também quando o legislador eleger, ao construir a hipótese, aspecto temporal, espacial ou pessoal incompatíveis com a materialidade”.842 Nesses casos, a norma tributária estará prescrevendo que a situação descrita na materialidade reputar-se-á ocorrida, não naquele momento ou local em que faticamente ocorrer, mas, quando e onde se verificar outro evento ocorrido no mundo fático. MARÇAL JUSTEN FILHO adverte que “[...] os efeitos jurídicos de uma construção dessa ordem são graves”, pois existe o grave risco de “[...] produzir-se uma oculta modificação da materialidade da hipótese de incidência”. Portanto, quando uma norma elege como critério temporal ou espacial um momento ou local que não coincide com o da ocorrência da materialidade da hipótese, inevitavelmente a ocorrência do fato tributário estará vinculada a uma outra materialidade, a uma materialidade falsa, com grandes chances de pertencer à competência de outra pessoa política. A criação de uma 840 Incidência do ISS no local do estabelecimento prestador. O conceito de estabelecimento. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 217. 841 ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 151. 327 “materialidade aparente”, diz o autor, “[...] reduz a segurança e incrementa disputas de natureza hermenêutica”.843 Em especial quanto ao critério espacial, diante da materialidade da hipótese de incidência do ISS, a única possibilidade é o local da efetiva prestação dos serviços. Como o tributo não incide sobre a prestação potencial dos serviços, nem sobre a inscrição cadastral, vincular a exigência fiscal a um evento dessa espécie resultaria em desnaturação da incidência.844 O critério material da hipótese de incidência do ISS, portanto, traz implicações sobre todos os demais critérios do antecedente normativo, conforme é o ensinamento de HUMBERTO ÁVILA: Se o aspecto material do imposto é a prestação de serviços, todos os demais aspectos deverão refletir essa materialidade: o fato gerador deverá ser considerado como ocorrido no momento em que se consuma a prestação do serviço ou de uma fração autônoma sua, caso seja divisível (aspecto temporal); o fato gerador deverá ser considerado praticado no local em que ele for prestado (aspecto espacial); o imposto deverá ser pago pelo sujeito que presta o serviço ou, se razões houver para isso, por aquele que, sem prestar o serviço, mantém relação com quem o faz (aspecto pessoal); o imposto deverá incidir sobre o montante que corresponder à remuneração paga pela prestação do serviço (aspecto quantitativo). Qualquer afastamento desse aspecto material da hipótese de incidência, mesmo que pela definição dos seus outros aspectos, implica violação da regra constitucional de competência para instituir o imposto sobre serviços.845 Impende ainda observar que os conflitos de competência tributária entre os municípios surgem não só em decorrência da atual disciplina legislativa, mas também como resultado da autonomia de que desfrutam os particulares prestadores de serviço, efetivada por meio de planejamento tributário que pode ou não ser lícito, tudo a depender do exame em cada caso. 5.2 PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA A territorialidade é tema afeito diretamente ao âmbito espacial de vigência das normas jurídicas e indiretamente ao critério espacial da hipótese de incidência. Entretanto, ainda que indiretamente, sua devida interpretação é imprescindível na fixação da competência tributária dos municípios para a instituição do ISS, tendo como 842 ISS no tempo..., op. cit., p. 55-56. Ibidem, p. 56-57. 844 Ibidem, p. 63. 845 O imposto sobre serviços..., op. cit.,p. 169. 843 328 base o local de ocorrência do fato tributário. O critério espacial da hipótese de incidência fornece as coordenadas de local onde se considera ocorrido determinado fato, produzindo-se os efeitos previstos no conseqüente da norma. Por sua vez, o âmbito espacial de vigência indica a extensão territorial sobre a qual a norma jurídica possui eficácia, tendo por limites os do território sobre o qual a pessoa que editou a norma possui competência. Ao âmbito de validade espacial da norma jurídica é que se denomina de princípio da territorialidade, ou de critério territorial (ratione loci). É nesse sentido a advertência de PAULO DE BARROS CARVALHO, quando afirma que o critério espacial da hipótese e o campo de eficácia da lei tributária são entidades ontologicamente distintas.846 A necessidade de conhecimento do critério territorial das normas internas de um ordenamento jurídico é peculiaridade dos estados estruturados em uma federação, como é o caso do Brasil. É da essência da federação a existência de um estado – ordem jurídica global – em cujo território convivem ordens jurídicas parciais, dotadas de autonomia política, administrativa e financeira, mas desprovidas de soberania. Como já foi visto no início deste trabalho, a federação brasileira compreende a ordem jurídica global (Estado Federal), ordem jurídica parcial central (União Federal), ordens jurídicas parciais periféricas (estados-membros), e os municípios, como ordens jurídicas parciais locais.847 Dessume-se, portanto, que, no que respeita aos limites eficaciais das leis no espaço, é imprescindível a existência de um critério rígido para que os entes frutos da divisão possam conviver de forma harmônica. A rigidez constitucional do critério territorial tem, por fundamento primeiro, ser um princípio corolário do Princípio Federativo, elevado à condição de cláusula pétrea pelo artigo 60, § 4º, I, da Carta Constitucional. Como decorrência disso, também é informado pela rígida repartição constitucional de competências tributárias. A Constituição adotou, como premissa inafastável para formular o regime jurídico tributário, os critérios de natureza material e geográfica. A Lei Maior, portanto, enumerou as materialidades que podem ser utilizadas pelos entes federativos e pelos municípios, para a demarcação de suas competências tributárias, assim como definiu o território de cada uma das pessoas políticas como o âmbito de validade da respectiva lei tributária. Por outro lado, a lei de cada um dos entes tributantes tem eficácia jurídica somente até os seus respectivos limites geográficos. 846 Curso..., op. cit., p. 258. 329 A atribuição, à competência tributária de uma pessoa política, da tributação de um fato cuja concretização se completou no território de outra é incompatível com o sistema jurídico, já que é da essência do Sistema Tributário Nacional que cada pessoa política exerça sua competência sobre os fatos e as pessoas localizadas na circunscrição territorial correspondente. Disso resulta ser incabível alterar a competência fixada constitucionalmente mediante o uso ilegítimo da legislação infraconstitucional, ainda que por meio de lei complementar.848 Pode-se até mesmo afirmar, sem receio de equívoco, que o Sistema Tributário Nacional impõe que a competência tributária municipal, no que se refere ao ISS, seja em primeiro lugar qualificada pelo critério territorial e, só depois, pelo critério ratione materiae (serviços), como ensina HERON ARZUA.849 Sublinhe-se que a discriminação constitucional de rendas, além de rígida e exaustiva, opera-se de modo exclusivo, de forma que, pela regra geral, o fato tributável por um dos estados ou municípios não é, em princípio e simultaneamente, tributável por outro, salvo as exceções que sempre vêm expressas no texto constitucional.850 Dessarte, a vigência espacial das normas jurídicas, como ensina o autor, abrange normalmente o âmbito territorial dominado pelo detentor de cada ordenamento jurídico: A lei tributária vige dentro do território do respectivo poder tributante, como delineado pela Constituição. [...] A essa realidade se convencionou denominar ‘princípio da territorialidade da lei tributária’, que se encontra implícito na própria Constituição e procede diretamente da soberania e da forma de organização do Estado Brasileiro. [...] A extraterritorialidade só pode decorrer de convênios de que estas entidades participem.851 JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO também acompanha esse entendimento: “A territorialidade tributária significa a privatividade do direito de ser exercida a competência no âmbito exclusivo dos territórios das específicas pessoas políticas, segundo a rígida partilha constitucional e o respectivo âmbito material, amoldado pelas situações contempladas nos tratados internacionais”.852 Sublinha MARÇAL JUSTEN FILHO que o aspecto espacial da hipótese de incidência fornece o critério para a localização de um fato, cuja ocorrência, no mundo físico, produzirá os efeitos prescritos na conseqüência da norma. Já o âmbito espacial de 847 Vide supra, subitem 2.2.1. JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 73-74. 849 Consórcios e ISS (local da prestação de serviços). Revista de Direito Tributário, n. 45, p. 254. 850 ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços e o princípio..., op. cit., p. 143. 851 Ibidem, p. 144. 848 330 validade (vigência territorial) designa os limites territoriais sobre os quais uma norma tem eficácia, e “[...] coincide com o território sobre o qual a entidade que edita a norma exerce poder jurídico”. Esse entendimento é relevante quando transplantado para o federalismo brasileiro, onde, além da União, cuja competência se identifica com os limites do Estado brasileiro, e dos estados-membros, cuja competência tem por limite os respectivos territórios, existem também os municípios, os quais possuem autonomia política, financeira e administrativa nos limites de seus territórios. 853 Com efeito, dentro dos respectivos territórios e da área de competência que detêm, os estados-membros e municípios estão vinculados, única e tão-somente, às normas por eles mesmos editadas. Por decorrência, as pessoas que ali se encontrem também se sujeitam a essas normas com exclusividade. Diante disso, “[...] é usual a hipótese de incidência, no que toca ao aspecto espacial, compreender a descrição de situações fáticas exclusivamente verificadas no território sobre o qual o ente político que legisla detenha competência”. No entanto, isso não é regra obrigatória em um Estado federativo, a menos que a Constituição (rígida) exclua essa possibilidade. 854 BERNARDO RIBEIRO DE MORAES defende que “[...] a prática de atos que concretiza a prestação de serviços deve ser exercida dentro do território do poder tributante. Aqui deve o contribuinte ter seu ponto ou se estabelecer, ou mesmo exercer a prestação de serviços. O Município, titular do Imposto Sobre Serviços, somente pode legislar para o respectivo território”.855 O mesmo autor, em outra ocasião, admite, em um primeiro momento, a possibilidade de lei complementar dispor em sentido contrário, para que a lei de um município possa atingir fatos ocorridos em outro e, em um segundo momento, afirma que, para fins de fixar o local de incidência do ISS, o mais acertado seria o local de ocorrência do seu “fato gerador”.856 Ainda que em certas ocasiões o raciocínio desse autor seja compatível com a Constituição, suas contradições levaram-no a sustentar a legitimidade do que estabelece o artigo 12, “a”, do Decreto-lei nº 406/68. Esse posicionamento foi criticado com propriedade por MARÇAL JUSTEN FILHO, sob o correto argumento de que o único critério espacial válido perante a Constituição é o do local de ocorrência do fato 852 Local ..., op. cit., p. 338. O imposto..., op. cit., p. 141-142. 854 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 142. 855 Imposto municipal sobre serviços. Revista de Direito Público, n. 1, p. 183. 856 Doutrina..., op. cit., p. 484. 853 331 tributário, seja de que tributo for.857 De fato, a Constituição, nessa questão, estabeleceu limites rigorosamente definidos, pelos quais a descrição legal das hipóteses de incidência dos tributos conferidos às pessoas políticas só encontra fundamento de validade nos exatos limites territoriais dessas mesmas entidades. Nesse caminho são os ensinamentos de AIRES BARRETO: “Fatos ocorridos além desses perímetros não podem ser, a nenhum pretexto, por ela alcançados. [...] À míngua de exceção admitida pelo Excelso Texto, tem-se que a lei, complementar ou ordinária, que não observe esse limite territorial, será inconstitucional, seja por usurpação, seja por invasão de competência alheia”.858 CLÉBER GIARDINO lembra, com propriedade, não ser correta a afirmação de que, no sistema tributário brasileiro, haja “o” imposto sobre serviços ou “um” imposto sobre serviços. Há no Brasil, na verdade, tantos impostos sobre serviços quantas forem as distintas leis ordinárias municipais que tenham exercido concretamente idêntica competência nos termos do texto constitucional.859 A identidade entre tais leis repousa, obviamente, no aspecto material, que é o mesmo em todas elas, ou seja, todas têm como hipótese de incidência o fato de alguém prestar serviços de qualquer natureza, não compreendidos dentre os reservados à competência dos estados-membros e do Distrito Federal para tributação pelo ICMS – referidos no artigo 155, II, da Constituição. Nesse exato sentido é o entendimento de HERON ARZUA.860 ROQUE ANTONIO CARRAZZA, na esteira dos ensinamentos de CLÉBER GIARDINO, lembra que há, no Brasil, tantos impostos estaduais, municipais e distritais quantas são as pessoas políticas autorizadas pela Constituição Federal a instituí-los, querendo com isso demonstrar que o critério para a repartição constitucional de competências foi, além do material, também o territorial. “É que os Estados, os Municípios e o Distrito Federal têm competências impositivas materialmente concorrentes. Em razão disso, para evitar conflitos entre eles, nosso Estatuto Magno adotou, também, um critério territorial de repartição das competências impositivas”.861 Com base nesse raciocínio, CARRAZZA defende a aplicação desse postulado também para o ISS, pois, de acordo com o critério territorial de repartição das 857 O imposto..., op. cit., p. 75. ISS – Conflitos de Competência. Tributação de Serviços e as Decisões do STJ. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 60, p. 10. 859 ISS – Competência..., op. cit., p. 218. 860 Consórcios e ISS..., op. cit., p. 254. 861 Curso..., op. cit., p. 571. 858 332 competências impositivas – princípio constitucional que exige que a única lei tributária aplicável seja a da pessoa política em cujo território o “fato imponível” ocorreu – esse imposto só pode alcançar os serviços de qualquer natureza – salvo os de competência estadual – prestados no território do município tributante. Será, portanto, inconstitucional a lei complementar nacional que vier a ofender essa diretriz, ainda que sob o pretexto de evitar conflitos de competência entre municípios.862 Em que pese, no entanto, o elevado grau de indeterminação na normatização do critério espacial da hipótese de incidência, certo é que sempre será possível encontrar, também alocados na mesma hipótese de incidência, outros critérios para identificar o local exato em que se concretiza, no mundo fenomênico, aquela hipótese. Tais são, logicamente, os critérios material e temporal, os quais devem ser analisados, para essa finalidade, sempre em conjunto com o critério espacial. Noutro giro, no plano fático será igualmente imprescindível saber, em primeiro lugar, se o fato é efetivamente tributário e, ato contínuo, conhecer o momento e o local exato de sua ocorrência. Sublinha HERON ARZUA que, por mais complexo e prolongado que seja o fato jurídico, existe um momento em que ele se aperfeiçoa e um determinado local em que ele ocorre. É dizer: o imposto será sempre devido no território em que houve a concretização do fato tributário, posto que o único critério constitucional possível é o da verificação onde o fato tributário ocorreu. Em princípio não pode a lei tributária, diante desse raciocínio, aplicar-se a fatos ocorridos além de seu território. A ausência de conexão entre a coordenada espacial e o critério material do antecedente pode, na falta de legítima norma autorizativa de superior hierarquia, implicar desrespeito ao próprio fato tributário descrito na hipótese de incidência e que constitui o pressuposto da obrigação tributária.863 É juridicamente falsa a afirmação de que a situação fática correspondente à hipótese de incidência prolonga-se no tempo, havendo um local geográfico determinado onde ocorre o aperfeiçoamento do fato tributário.864 O exercício da competência e da capacidade tributárias em relação ao ISS é informado pelo critério do situs, o qual exige a aplicação da lei vigente sobre a base física (território do município), dentro do qual ocorre o fato jurídico tributário (ratione loci). Desse modo, a Constituição determina que cada município tem aptidão para colher os fatos ocorridos em seu território, do que resulta ser o critério espacial, para o 862 Ibidem, p. 855-856. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 147. 864 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 74. 863 333 ISS, coincidente com o âmbito de validade territorial da lei. Essa premissa impede a pluralidade de incidências, pois, apesar de todas as leis municipais possuírem um único e idêntico critério material em suas hipóteses de incidência (prestação de serviços), em cada lei municipal existirá um critério espacial diferente, em razão dos diferentes limites territoriais de vigência de cada lei. Ensina CLÉBER GIARDINO, amparado em PONTES DE MIRANDA, que esse critério do situs, de seleção e recíproca exclusão, determina que sobre cada um dos fatos ocorridos (prestações de serviços), uma e só única lei, dentre as milhares existentes pelo país, incide e irradia seus efeitos, ou seja, somente dessa lei poderá advir o nascimento de eficácia jurídica.865 Analisando o tema sobre outro ângulo, a violação do Princípio da Territorialidade da lei tributária, caso não contestada pela pessoa política ofendida, implica em violação da indelegabilidade da competência tributária, ocorrida nessa hipótese de forma passiva. ALFREDO AUGUSTO BECKER contesta a aceitação, por parte da doutrina tradicional, da tese da territorialidade da lei tributária, pela qual essa teria sua eficácia jurídica limitada a um determinado território, teoria classificada pelo autor como mais um dos fundamentos “óbvios”: “A evolução do Direito Tributário em todos os países; a criação dos mercados comuns e das zonas de livre comércio; a tributação de bens existentes no estrangeiro pelo imposto de transmissão ‘causa mortis’; os problemas, no plano internacional, da dupla imposição pelo imposto de renda, despertaram a atenção dos modernos doutrinadores para a falsa ‘obviedade’ do fundamento da territorialidade da lei tributária”.866 Para BECKER, portanto, “[...] a lei tributária, como qualquer outra lei, tem sempre eficácia jurídica territorial”. Em síntese, os argumentos desse autor têm por fundamento a premissa de que a territorialidade ou a extraterritorialidade da lei tributária é problema de política tributária – momento político – e não de fenomenologia jurídica – momento jurídico. Como conclusão, sustenta que, salvo quando a lei dispuser em sentido contrário – momento político – será perfeitamente válida a regra jurídica, independente da escolha, pela mesma, do lugar de realização da hipótese de incidência e da localização e nacionalidade dos sujeitos passivos.867 865 ISS – Competência Municipal..., op. cit., p. 219. Teoria..., op. cit., p. 255-256. 867 Ibidem, p. 256-257. 866 334 Ou seja, pelo raciocínio de BECKER, não havendo, no antecedente da norma jurídica tributária, previsão de critério espacial coincidente com os limites territoriais da respectiva pessoa política tributante, a regra jurídica terá incidência automática e infalível tão logo se concretize o fato previsto abstratamente na hipótese de incidência, onde quer que ele ocorra e independente da nacionalidade do sujeito passivo, assim como será conseqüência imediata e lógica dessa incidência, a irradiação da eficácia jurídica, ou seja, o nascimento da relação jurídica com seu conteúdo jurídico. Esse raciocínio, como se percebe, tem em vista a análise da territorialidade no âmbito do Direito Internacional. Nesse aspecto, pensa-se que seu entendimento é irretocável. Entretanto, o tema da territorialidade da lei tributária, como examinado neste trabalho, não corresponde à perspectiva vislumbrada pelo jurista gaúcho. Como fundamento para nossa afirmação, vem à baila o raciocínio lúcido de MARÇAL JUSTEN FILHO: “O Direito Tributário, como parte inserta e indestacável da Constituição Federal, não é uma emanação do Direito Internacional Privado. Não se trata de o legislador de cada Estado soberano optar por um regime jurídico qualquer para reger conflitos interespaciais de leis. O legislador complementar tributário não é soberano, não está dotado de competência para adotar o regime jurídico que bem entender”.868 É que os estados soberanos não estão submetidos a uma ordem jurídica comum, que pudesse exigir a aplicação do Princípio da Territorialidade, ou seja, com obediência de um âmbito de vigência espacial. A extraterritorialidade da lei tributária está regulada, em nível infraconstitucional, pelo artigo 102 do Código Tributário Nacional, pelo qual “A legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País, fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta ou outras leis de normas gerais expedidas pela União”. Ou seja, de acordo com esse dispositivo, além dos convênios de que eventualmente participem estados, Distrito Federal e municípios, a União poderia expedir normas gerais, estabelecendo a vigência de lei tributária de determinada pessoa política para além de seu respectivo território. Como já foi defendido, pode-se reduzir as funções da lei complementar de normas gerais a tão-somente uma: “regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar”, já que o tema dos conflitos de competência, referido no artigo 146, I, da 868 O imposto..., op. cit., p. 76. 335 Constituição, e os demais dispositivos constantes do inciso III do mesmo artigo 146, estão ali inseridos como espécies de um mesmo gênero. Ora, se a competência tributária de cada uma das pessoas políticas é atribuída com base não só no critério material, como também no territorial, é lógico que os lindes territoriais dos estados e municípios se constituem em inequívoca “limitação constitucional ao poder de tributar”. Portanto, a lei de normas gerais somente pode ter competência para regular o princípio da territorialidade da legislação tributária das pessoas políticas, e nunca violá-lo. Admitir o contrário implica admitir o absurdo jurídico de que a União estaria autorizada, mediante lei complementar, a regular uma violação a um princípio constitucional. A violação da Autonomia Municipal e do pacto federativo é flagrante. ROQUE ANTONIO CARRAZZA tem o mesmo raciocínio: o critério adotado pela Constituição na partilha das competências impositivas dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal foi, além do material, o territorial. Noutros termos, levou em conta, para a solução dos possíveis conflitos neste campo, o âmbito de aplicação territorial das leis que criam os impostos estaduais, municipais e distritais. Por conseguinte, as leis tributárias que instituem tais gravames apenas têm voga sobre os fatos verificados no território da ordem jurídica que as editou.869 Quem complementa é PAULO DE BARROS CARVALHO: “[...] a legislação produzida pelo ente político vigora no seu território e, fora dele, tão-somente nos estritos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem”.870 Forte em tais razões, não se pode concordar com raciocínios como o de MISABEL DERZI, que, com base no teor do artigo 102 do Código Tributário Nacional, defende que “[...] a lei de normas gerais, especialmente para cumprir os desígnios constitucionais – dirimir conflitos entre os Municípios – ou para outros fins, evitar a bitributação, a insegurança na arrecadação, combater a fraude ou a simulação, pode conferir efeitos extraterritoriais às normas municipais, sem com isso ofender à Constituição”.871 Em sentido oposto, e de forma coerente com o contexto constitucional, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO ensina que “[...] os Municípios são dotados de privatividade para criar o ISS, o que, por via oblíqua, implica a exclusividade e conseqüente proibição de seu exercício por quem não tenha sido consagrado com esse direito. Trata-se de matéria de ordem pública, eivando-se de 869 Curso..., op. cit., p. 571-572. Curso..., op. cit., p. 88. 871 O aspecto espacial..., op. cit., p. 70. 870 336 nulidade a instituição desse imposto por Município localizado em âmbito territorial distinto daquele em que ocorrera a efetiva prestação dos serviços”.872 Poder-se-ia defender a legitimidade da extraterritorialidade, caso essa decorra de convênios celebrados entre as pessoas políticas, porque nesse caso a vigência extraterritorial decorreria de acordo voluntário entre as partes interessadas, as quais estariam, portanto, escoradas na autonomia político-financeira de que gozam, conforme a Constituição, o que não ocorre no caso das normas gerais, onde a vontade política é apenas da União Federal. Entretanto, sendo a competência tributária indelegável e irrenunciável, não se admite que a extraterritorialidade da lei possa fazer com que a norma tributária municipal incida sobre prestações de serviços ocorridos em território de outro município, ainda que com a anuência deste.873 Diante do entendimento exposto, assim como pelo forte amparo doutrinário, conclui-se pela total impossibilidade de a lei complementar de normas gerais pretender estabelecer vigência extraterritorial para a legislação tributária dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Como conseqüência, a única interpretação possível para o artigo 102 do Código Tributário Nacional é que o mesmo, na parte acima atacada, não foi recepcionado pelo atual ordenamento jurídico, assim como já se revelava inválido em face da Constituição pretérita. A extraterritorialidade, em relação ao ISS, somente se admite como manifestação da soberania nacional, e nunca como decorrência da autonomia municipal. Soberania é, indiscutivelmente, mais do que autonomia, ensina BETINA TREIGER GRUPENMACHER, para quem a extraterritorialidade da lei tributária, ainda que admitida em relação a alguns tributos, não pode servir como fundamento de validade para que os municípios a utilizem para tributar fatos ocorridos fora de seu âmbito territorial de competência.874 5.3 ESTABELECIMENTO E ESTABELECIMENTO PRESTADOR Depreende-se, da interpretação conjunta dos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional, que a norma tributária – cuja conseqüência prescreve somente efeitos tributários – pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, 872 873 ISS – Aspectos..., op. cit., p. 9. BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 520. 337 conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos municípios, desde que tal alteração não tenha o efeito de definir ou “limitar” competências tributárias.875 A intenção do legislador do Código Tributário Nacional foi a de ratificar as escolhas das materialidades pelo legislador constituinte, cuja definição obedece aos respectivos regimes jurídicos de origem, ou seja, de onde os institutos, conceitos e formas se originam. Por exemplo, no silêncio de uma lei municipal instituidora do IPTU, o conceito de propriedade, presente em sua hipótese de incidência, deve ser exatamente o mesmo existente no Direito Civil. A lei municipal pode, no entanto, alterar essa definição de propriedade, mas desde que tal alteração tenha somente eficácia no campo tributário, assim como a alteração não poderá, em hipótese alguma, provocar invasão em competência reservada a outras pessoas políticas ou alterar o desenho do campo de incidência do próprio tributo. O mesmo raciocínio deverá ser utilizado na análise dos conceitos de “estabelecimento” e de “estabelecimento prestador”, os quais foram utilizados tanto pelo Decreto-lei nº 406/68 – artigos 8º e 12 – como pela Lei Complementar nº 116/2003 – artigos 3º e 4º. Da análise do artigo 8º do Decreto-lei 406/68876, MARÇAL JUSTEN FILHO ressalta que esse diploma não adotou o conceito de estabelecimento conforme sua origem no Direito Comercial, pois quando ali diz que a prestação do serviço ocorre “[...] com ou sem estabelecimento fixo”, depreende-se que o qualificativo “fixo” é incompatível com o conceito de Direito Comercial, pois esse ramo jurídico dá o conceito de estabelecimento como um “conjunto de bens materiais e imateriais”, o que não se coaduna com um estabelecimento “fixo”. Partindo desse posicionamento, o autor entende que, no contexto do referido artigo 8º, não há referência a um estabelecimento “inamovível”, mas a um estabelecimento vinculado a um local físico definido (imóvel). 874 ISS – Local em que é devido o tributo. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; MARTINS Ives Gandra da Silva (org.). ISS: Lei Complementar 116/2003, p. 76-77. 875 “Artigo 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários. Artigo 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.” 876 “Art 8º O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa” . 338 O “estabelecimento fixo”, na verdade, refere-se a um local imóvel onde os serviços seriam prestados.877 Por sua vez, no contexto do artigo 12, também do Decreto-lei nº 406/68, o vocábulo “estabelecimento”, junto com a locução “prestador”, resulta na expressão de novo conteúdo semântico “estabelecimento prestador”, cuja essência revela que o estabelecimento está subjetivado em relação ao prestador, como se fosse uma “extensão corporal” sua quando do desempenho da atividade. Diferente seria se a lei tivesse dito estabelecimento “do” prestador, não parecendo ser o caso de equívoco redacional, uma vez que, mais adiante utiliza a expressão “domicílio do prestador”. Já no artigo 8º, assim como na definição original de estabelecimento, a expressão tem inquestionável acepção objetiva, tratando-se de um conjunto de bens, não personificado, que pode inclusive configurar-se como objeto de direito.878 O inciso III, do artigo 126, do Código Tributário Nacional, dispõe de forma a ratificar esse entendimento. O preceito citado veicula norma pela qual “A capacidade tributária passiva independe [...] de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional”, o que levou vários diplomas tributários à personalização de cada estabelecimento, como se fosse uma pessoa jurídica diferente, como é o caso, por exemplo, da Lei Complementar nº 87, de 13 set. 1996, cujo artigo 11, § 3º, II, dispõe que, em relação ao ICMS, “[...] é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular”, dispositivo que se nos afigura flagrantemente inconstitucional, pela ausência de negócio jurídico mercantil. Da mesma forma o inciso II do artigo 127, também do Código Tributário Nacional, ao dispor que, na falta de eleição de domicílio tributário, pelas pessoas jurídicas de direito privado ou firmas individuais, será considerado, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento, reconhecendo, assim, a existência de domicílio do estabelecimento.879 877 ISS no tempo..., op. cit., p. 64. Ibidem, p. 65. 879 Pensamos, no entanto, que o artigo 127, II, do Código Tributário Nacional será inconstitucional apenas quando a materialidade do tributo envolvido impedir a utilização da criação jurídica da autonomia dos estabelecimentos, como é exemplo clássico o ICMS, em face da exigência de negócio jurídico mercantil e, como conseqüência, da existência de operação com fins lucrativos. Já em relação ao IPI, por exemplo, devido o núcleo de sua regra-matriz de incidência envolver apenas “operações com produtos industrializados”, entendemos ser válido o expediente criado pelo pré-citado artigo 127, II. A legislação do IPI, inclusive, prevê o Princípio da Autonomia dos estabelecimentos, tanto na regra da escrituração fiscal autônoma – prevista no artigo 57 da Lei nº 4.502, de 30 nov. 1964 – como na formulação explícita do artigo 51, § único, do Código Tributário Nacional, o que tem o aceite bem 878 339 MARÇAL JUSTEN FILHO ensina que, uma interpretação sistemática entre o artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68 e os artigos 126 e 127 do Código Tributário Nacional, resulta no entendimento de que “estabelecimento” indica a unidade – “[...] universalidade de fato, o conjunto de bens corpóreos e incorpóreos, organizados por um sujeito para a persecução de seu objeto” – por meio da qual se exerce uma atividade subsumível a uma hipótese tributária. Se, na prestação do serviço, foi utilizada uma unidade, conforme o sentido acima, o local do fato tributário do ISS será o local dessa unidade, pois o artigo 12, I, não remete à sede do prestador para fixação da competência, pois essa é o seu domicílio, o qual só terá relevância, conforme revela a parte final do inciso I, na ausência de estabelecimento. Conclui com propriedade o autor: “Não é relevante, então, a estrutura teórica da organização jurídica do prestador do serviço. Não se examina onde se localiza a ‘sede’ ou a ‘filial’ do prestador do serviço. Sequer se exige que o prestador do serviço indique formalmente à Junta Comercial (ou Registro Civil) a existência de uma unidade econômica em certo local”.880 O estabelecimento deve abranger todos os bens – como móveis, máquinas, equipamentos, veículos etc. – e pessoas imprescindíveis para possibilitar a prestação do serviço. Para que se caracterize um verdadeiro estabelecimento prestador de serviços, nos termos do Decreto-lei n° 406/68, faz-se necessária a efetiva existência desses elementos. Diante disso, o planejamento tributário de um contribuinte, no sentido de instalar sua sede e estabelecimento prestador em município que lhe seja mais favorável, encontra seu limite de validade jurídica na existência concreta, e não apenas formal, de um estabelecimento, como ensina JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO.881 Esse autor observa, no entanto, que o crescimento de serviços prestados mediante a utilização de recursos da informática, tornou difícil precisar o efetivo local de sua realização, posto que vários municípios podem estar envolvidos nessas atividades. Entende o autor ser coerente, em tais situações, a aplicação da figura do “estabelecimento permanente”, em transmissões que envolvam satélites. “A pluralidade de estabelecimentos que participam da prestação dos serviços, a diversidade de etapas fundamentado de JOSÉ ROBERTO VIEIRA – Imposto Sobre Produtos Industrializados..., op. cit., p. 186. 880 Ibidem, p. 65-66. 881 ISS – Aspectos..., op. cit., p. 149-150. 340 pertinentes a essas atividades, ou até mesmo a sua execução sem a participação de estabelecimento, é que torna difícil qualificar o sujeito ativo [...]”.882 A solução para as hipóteses em que a prestação de um serviço envolver várias atividades fracionadas – atividades-meio – cada uma acontecendo potencialmente em municípios diversos, somente ratifica a exigência de que o ISS incida única e exclusivamente quando ocorrer a consumação da prestação do serviço, ou seja, no local onde se der a execução da obrigação de fazer. É preciso admitir, no entanto, que os serviços prestados mediante a utilização de sítios na internet tornaram difícil identificar quais os locais onde ocorrem não só as etapas intermediárias, mas também o local onde ocorre a conclusão do serviço. MARCO AURÉLIO GRECO identificou nas operações vinculadas à internet quatro realidades distintas: (a) o site enquanto tal e os softwares que se encontram acessíveis através do site ou podem ser obtidos mediante download; (b) o computador que hospeda esse site; (c) a pessoa jurídica – por exemplo, provedor de hospedagem – que coloca ‘no ar’ o sítio, tornando-o acessível aos internautas; e (d) o conteúdo disponibilizado no sítio. O autor adverte que, na análise a ser empreendida, “[...] cumpre ter em conta estas quatro realidades, pois sua coexistência instaura múltiplas relações conforme o conjunto formado pela sua reunião ou pela maneira pela qual é definido o relacionamento destes diversos elementos”. Ou seja, as atividades possíveis em um site são variadas, podendo consistir num elemento de mera difusão de serviços e de bens, como também no recebimento de solicitações pelos possíveis clientes e, ainda, na efetiva aceitação do pedido, emissão de ordens de pagamento, e concretização dos negócios jurídicos, caso que ocorre no chamado sítio inteligente. 883 Com esse raciocínio, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO esclarece que “[...] a diversificada utilização e a flexibilidade do seu desempenho, por si só, não permitem caracterizar o site como um autêntico estabelecimento, para todos os efeitos tributários (lançamento de impostos, emissão de notas fiscais, escrituração de livros etc.), pois pode ser considerado como mero escritório administrativo, distinto do local da efetiva prestação de serviços”.884 Amparado em entendimento de EMERSON DRIGO DA SILVA, o autor entende ponderável o critério sugerido no sentido de determinar a vinculação entre o meio virtual (site ou e-mail) utilizado na prestação de 882 Ibidem, p. 150. Internet..., op. cit., p. 139-140. 884 ISS – Aspectos...,op. cit., p. 154-155. 883 341 serviços e o estabelecimento físico do prestador dos serviços, em um determinado município, através do número do Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas – CNPJ e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, o órgão responsável pela efetivação do registro como detentor do domínio do meio virtual.885 Para a fixação do município competente em relação ao ISS, não é relevante o cumprimento da exigência de inscrição em cadastro municipal. Como essa formalidade administrativa se constitui em dever instrumental – obrigação “acessória” – não tem o condão de influir na obrigação tributária “principal”. A inobservância dos deveres instrumentais resulta na imposição de sanção pecuniária, vinculada não à capacidade econômica do contribuinte, mas sim à reprovabilidade da infração. O local da efetiva prestação do serviço será o critério relevante sempre que o prestador utilizar um estabelecimento como instrumento para o exercício de sua atividade.886 No entanto, nada impede que um serviço seja prestado sem que seja necessário um estabelecimento como meio para tanto. Nessa hipótese, incluir-se-iam não só os serviços exclusivamente intelectuais, como também aqueles em que o concurso de bens materiais – insumos ou equipamentos – é irrelevante ou secundário. Exemplo clássico é o de um advogado domiciliado em um município, e que é contratado para apenas sustentar oralmente um recurso, em tribunal localizado em município diverso. É pacífico que o conceito de estabelecimento tem origem no Direito de Empresa, regulado no Brasil pelo Código Comercial e, após, pelo atual Código Civil – Lei nº 10.406, de 10 jan. 2002 – já que esse diploma instituiu nova classificação das sociedades em “simples” e “empresárias”, em substituição às antigas sociedades “civis” e “comerciais”. Em síntese, as atuais sociedades são classificadas não mais pelo exercício de atividade econômica civil ou mercantil, mas pelo modo – simples ou empresarial – de exercer a atividade, seja ela civil ou mercantil. Em que pese a nova formulação legal, não há alteração na análise dos conceitos de “estabelecimento” e de “estabelecimento prestador”. Tendo em vista, portanto, a nova realidade jurídica das sociedades no sistema jurídico pátrio, o conceito de “estabelecimento” é fornecido pelo atual Código Civil, cujo artigo 1.142 define como “[...] todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade 885 886 Ibidem, p. 155. JUSTEN FILHO, Marçal. ISS no tempo..., op. cit., p. 67. 342 empresária”. Como o dispositivo não fez restrição, o complexo de bens, a que se refere, abrange os materiais e os imateriais. Dessume-se que o estabelecimento é um instrumento, um meio, de que se vale a pessoa, física ou jurídica, para o exercício da atividade econômica, não se confundindo com o imóvel, nem exigindo a presença dele, assim como é irrelevante a integração no estabelecimento dos bens e direitos, conforme, aliás, já é pacífica a doutrina em relação ao estabelecimento mercantil.887 Poder-se-ia se indagar a razão de o diploma civil ter restringido o conceito de estabelecimento às sociedades empresárias, posto que se o § 1º do artigo 75 do próprio Código Civil estabelece que “Tendo a pessoa jurídica diversos estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados”, poderia disso resultar que, em razão desse artigo 75 estar inserido no “Título III - Do Domicílio”, e esse, por sua vez, integrar o “Livro I – Das Pessoas”, toda pessoa jurídica de direito privado – onde se incluem as sociedades simples e as empresárias – pode vir a ter estabelecimentos. Entretanto, essa interpretação parte de premissa falsa e, como conseqüência, chega a resultado igualmente falso. A razão está na insuficiente análise literal, isolada, do § 1º do artigo 75, sem levar em consideração o restante do ordenamento jurídico. O próprio Código Civil fornece subsídios para a solução do problema. No artigo 966, dispõe que “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, e, no seu parágrafo único, complementa a prescrição, esclarecendo que “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. Da análise desses dispositivos, depreende-se que a essência da diferença entre a atividade exercida de forma simples, e a desempenhada de forma empresária, está, em relação à última, na reunião dos fatores de produção, ou seja, capital e trabalho, para o exercício de uma atividade cujo resultado – bens e serviços produzidos, circulados e/ou prestados – não decorra somente da capacidade física ou intelectual do respectivo exercente. Ou seja, os bens e serviços produzidos ou circulados na atividade empresária dependem de outros fatores, além daqueles inerentes ao próprio exercente, como o trabalho e a tecnologia de terceiros, o financiamento de capital etc. Já em uma atividade 887 COELHO, Fábio Ulhôa, Manual de Direito Comercial, p. 57 et seq. 343 exercida de forma “simples”, o que será relevante, no seu resultado, são as características individuais e peculiares daquele que a desempenha. Exemplo clássico ocorre com as clínicas médicas. Enquanto a atividade médica for desempenhada exclusivamente pelos sócios médicos, assim como enquanto a clientela tenha em vista sempre o atendimento daquele profissional específico, a sociedade será considerada juridicamente simples, sendo irrelevante, nesse sentido, o fato de possuir uma grande estrutura, com vários atendentes, equipamentos modernos etc. Mas, se a mesma clínica, em razão de aumento da demanda, resolve ampliar seu quadro de médicos, contratando outros profissionais na qualidade de empregados ou terceirizados, desvinculando-se, da atividade, o nome da sociedade, antes desempenhada somente pelos sócios, com os clientes sendo atendidos não mais por esse ou aquele médico em especial, mas pela empresa de medicina, a partir desse momento, então, aquela sociedade deixou de ter natureza jurídica simples, passando a manifestar nítido caráter empresarial. Aplicando o raciocínio ao assunto que nos interessa, é inequívoco que uma sociedade que, além de sua sede – domicílio – possua estabelecimento(s), não pode ser qualificada como da espécie “simples”, pois a existência de estabelecimento produtor, circulador ou prestador de bens ou serviços configura a existência de atividade empresarial. Uma sociedade de advogados, por exemplo, cuja natureza jurídica é simples, possui somente uma sede, um domicílio. Se vier a prestar um serviço em município diverso de sua sede, não há, na dicção do artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68, nenhum “estabelecimento prestador”, ainda que leve junto consigo todos os sócios, munidos de laptops, cd-roms etc. Se, ao contrário, a mesma sociedade de advogados resolver abrir uma filial em outro município, onde trabalharão advogados não sócios, contratados, celetistas ou não, é óbvio que estaremos, neste caso, diante de uma filial que possui um estabelecimento, passando essa sociedade de advogados a ter natureza empresarial. Reforça essa idéia o artigo 1.143 do Código Civil, quando faculta ao estabelecimento “[...] ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza”. Na primeira hipótese, onde não há estabelecimento prestador, a dicção da parte final do inciso I do artigo 12 considera como local da prestação do serviço o do domicílio do prestador, o que constitui incontornável inconstitucionalidade, como será melhor examinado adiante. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é contrário a esse raciocínio, pois essa Corte defende como relevante, em qualquer caso, o local da efetiva prestação 344 do serviço, independente de onde esteja a sede ou o estabelecimento do prestador. Mas não se pode negar que o entendimento dessa Corte dificulta a exigência do ISS, por um município, em relação aos serviços exclusivamente intelectuais, ou daqueles prestados sem o concurso de um estabelecimento, quando os respectivos prestadores possuírem domicílio ou estabelecimento em outro município. A complexidade da questão levou MARÇAL JUSTEN FILHO a defender que: “Não há uma solução precisa e definida no tocante a serviços preponderantemente intelectuais, havendo forte apoio para solucionar a questão pelo critério do domicílio do prestador do serviço”.888 ROQUE ANTONIO CARRAZZA, em interpretação do artigo 12 do Decretolei nº 406/68, defende que é possível compatibilizá-lo com a Constituição, mas somente quando o serviço for prestado efetivamente no município onde estiver sediado o estabelecimento prestador. Caso contrário, o artigo 12 deveria ter sua aplicação negada.889 Somente com o objetivo de demonstrar a possibilidade de realização de um planejamento tributário inválido, o autor argumenta uma eventual validade do artigo 12 em quaisquer situações: Outra postura levar-nos-ia forçosamente à aceitação do juízo de que se o ‘contrato social’ de uma empresa prestadora de serviços dispõe que ela está sediada no Município ‘X’ (onde a tributação, por via do ISS, é menos gravosa) é lá que o ISS deve ser pago, ainda que: a) mantenha, no Município ‘X’, um simples quarto; b) possua, no Município ‘Y’, prédios, depósitos, escritórios etc.; e, c) venha, deveras, a prestar, no Município ‘Y’ (onde a tributação, por meio de ISS, é maior) serviços de qualquer natureza. Com a devida vênia, esse raciocínio revela-se nitidamente inconsistente. É que, aplicando o Decreto-lei nº 406/68 sobre a situação fática acima hipotetizada, o ISS será devido no município “Y”, pois se lá existem “prédios, depósitos, escritórios”, é inequívoca a presença de um legítimo estabelecimento, e com relação aos serviços prestados nesse município, essa estrutura configura verdadeiro estabelecimento prestador. Com efeito, o artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68 somente deslocaria o local de ocorrência do fato tributário do ISS para o município do domicílio (sede), caso não houvesse um estabelecimento prestador, o que não se verifica nessa hipótese. Disso resulta que o artigo 12 em comento, ainda que possa merecer críticas, essas não são tão merecidas como se tem propalado, pois a única situação que ainda apresenta problemas reside, como acima já se defendeu, nos casos de serviços exclusivamente intelectuais, 888 889 ISS no Tempo..., op. cit., p. 69. Breves considerações sobre o artigo 12 do Decreto-Lei n. 406/68. Revista de Direito Tributário, n. 6, p. 156. 345 ou daqueles prestados sem o concurso de um estabelecimento, quando os respectivos prestadores possuírem domicílio ou estabelecimento em outro município. A Lei Complementar n° 116/2003, em seu artigo 4º, definiu o “estabelecimento prestador”, como sendo “[...] o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas”. Para que o preceito se harmonize com a Constituição, há que se entender por “estabelecimento prestador” somente aquele onde efetivamente os serviços são prestados, e com isso atrair a aplicação da regra geral prevista no artigo 3º da mesma lei, onde se diz que “O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador [...]”. Se um serviço for prestado de forma desvinculada a determinado estabelecimento, ele deixará de ser “prestador”. AIRES BARRETO, na mesma trilha, em interpretação conforme à Constituição, sublinha que estabelecimento prestador é qualquer local em que, concretamente, der-se a prestação de serviços. O porte do estabelecimento e o modo pelo qual se desenvolve a prestação são fatores irrelevantes para caracterizar um estabelecimento como prestador. “Estabelecimento prestador é, pois, o local em que a atividade (facere) é efetivamente exercida, executada, culminando com a consumação dos serviços”.890 Um estabelecimento somente se caracterizará como prestador quando nele, e por meio dele, os serviços sejam consumados.891 Se os serviços forem prestados de forma independente, desvinculada de um estabelecimento, esse não será prestador, mas tão-somente um estabelecimento do prestador. É imprescindível que o estabelecimento seja um instrumento, um meio, através e mediante o qual se torna possível a execução dos serviços contratados. A circunstância de a legislação definir o que seja “estabelecimento prestador”, como fez o artigo 4º da Lei Complementar n° 116/2003, e como fazem muitas leis municipais, indicando elementos que, de forma conjugada, caracterizariam a sua existência, somente atribui a um estabelecimento a potencialidade de poder vir a ser 890 891 O ISS na Constituição..., op. cit., p. 316. Ibidem, p. 339. 346 prestador de serviços.892 Ainda que um estabelecimento, com essa qualificação, possa ser relevante, não comprova que os serviços foram, ali, efetivamente prestados. Com efeito, a discussão acerca do conceito de estabelecimento, para fins de incidência do ISS, resume-se na verificação de que só será estabelecimento prestador aquele onde se ultimar a prestação dos serviços.893 5.4 O ARTIGO 12 DO DECRETO-LEI N 406/68894 Após o surgimento do ISS, com a Emenda Constitucional nº 18/65, a Lei 5.172, de 25 out. 1966, Código Tributário Nacional, foi o diploma que conferiu a primeira complementação normativa em relação ao ISS, tendo sido, nessa ocasião, silente quanto à estipulação do local de ocorrência do fato tributário do ISS. 895 Implicitamente, portanto, adotou-se o princípio territorial da incidência tributária, ou seja, o ISS seria devido no local (município) onde se efetivou (consumou) a prestação do serviço, o que revelava grande aplicabilidade prática diante da qualidade e da pequena quantidade dos serviços considerados tributáveis.896 Posteriormente, o Ato Complementar nº 36, de 13 mar. 1967, em seu artigo 6º, definiu o critério legal para identificar o local da prestação, para efeito de incidência do ISS, dispondo que “No caso de empresas que realizem prestação de serviços em mais de um município, considera-se local de operação para efeito de ocorrência do fato gerador do imposto municipal correspondente: I – o local onde se efetuar a prestação do serviço: a) no caso de construção civil; b) quando o serviço for prestado, em caráter 892 Como, por exemplo: a) existência de pessoal, máquinas, móveis, equipamentos, necessários à execução dos serviços; b) estrutura gerencial, organizacional e administrativa compatível com a atividade desenvolvida; c) existência de inscrição no cadastro municipal e previdenciário; d) identificação do local como domicílio fiscal, para efeitos de outros tributos; e) divulgação do endereço do estabelecimento em nome do prestador. 893 BARRETO, Aires Fernandino. O ISS na Constituição..., op. cit., p. 320-321. 894 Ainda que o artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68 não esteja mais em vigor, entende-se necessária e relevante a pesquisa doutrinária e jurisprudencial acerca de seu conteúdo, como forma de estabelecer comparações e premissas com o atual regime inserido pela Lei Complementar nº 116/2003. Além disso, ainda existem situações fáticas reguladas por esse dispositivo e que inclusive estão sub judice. 895 Conforme se infere do caput do artigo 71, pelo qual “O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço que não configure, por si só, fato gerador de imposto de competência da União ou dos Estados”. No artigo 72, ficou estabelecido que “A base de cálculo de imposto é o preço do serviço” e, no artigo 73, que “Contribuinte do imposto é o prestador do serviço”. 896 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina..., op. cit., p. 486. 347 permanente, por estabelecimentos, sócios ou empregados da empresa, sediados ou residentes no município; II – o local da sede da empresa, nos demais casos”. BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, comentando esse dispositivo, afirma. em síntese, que ele acompanhou a regra geral do princípio territorial da incidência tributária (inciso I), tendo como única exceção, prevista no inciso II, a regra do local onde se situa a sede da empresa, para os casos de prestação de serviços em mais de um município, desde que tais serviços não sejam os previstos nas letras “a” e “b” do inciso I, acima transcritas.897 Essa legislação revelou-se insatisfatória para identificar, de forma precisa, onde um serviço era prestado, o que resultou no advento do artigo 12, no Decreto-lei nº 406/68, o qual revogou os dispositivos acima citados, relativos ao ISS, estabelecendo, nas letras “a” e “b”, a definição do local da prestação do serviço como sendo: “a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador; b) no caso de construção civil o local onde se efetuar a prestação”.898 A partir de então, a regra geral para o critério espacial do ISS passou a ser a de que o imposto seria devido no local onde está situado o estabelecimento prestador do serviço, conforme a letra “a”, primeira parte. Como regra supletiva, o ISS seria devido no domicílio do prestador, desde que inexistente o estabelecimento prestador, nos moldes da segunda parte da mesma letra “a”. Por fim, como regra excepcional, a letra “b”, desse artigo, previa que o ISS seria devido no local da prestação do serviço, no caso dos serviços de construção civil – município de localização da obra.899 Grande parte da doutrina entendeu que o Decreto-lei n° 406/68 simplificou o problema, então existente, acerca dos conflitos de competência, como é o caso de ALIOMAR BALEEIRO.900 Critica-se, contudo, tal posicionamento, uma vez que a praticidade da solução não pode ser justificativa para contrariar a regra-matriz do imposto, conforme delineada na Constituição. 897 Ibidem, p. 486-487. A Lei Complementar nº 100, de 22 dez. 1999, incluiu a alínea “c” no artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, a qual dispõe que se “Considera local da prestação do serviço: [...] no caso do serviço a que se refere o item 101 da Lista Anexa, o Município em cujo território haja parcela da estrada explorada”. O item 101 da lista, também incluído pela Lei Complementar nº 100/99, inclui o serviço de “exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais”. 899 A razão principal, para excepcionar os serviços de construção civil, deve-se à circunstância de que as respectivas obras devem ser autorizadas previamente pelo município, o que resolve o problema da fiscalização sobre o ISS em relação a esses serviços. 898 348 Na vigência do artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68, e com exceção dos serviços de construção civil, o que interessava aos fiscos municipais, na hipótese de serviços prestados em diversos locais, era a existência ou não de diversos “estabelecimentos prestadores”, pois em cada um deles haveria uma inscrição e uma incidência de ISS, sendo então irrelevante que os efetivos locais de prestação de serviços existissem em maior número. Ou seja, existindo um único estabelecimento prestador e diversas prestações de serviços, a incidência seria uma, para um único local. O Decreto-lei nº 406/68 teve parte de seus dispositivos revogados de forma expressa pelo artigo 10 da Lei Complementar nº 116/2003.901 Outros dispositivos foram revogados por incompatibilidade com a lei nova, nos termos do que prevê o § 1º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil – Decreto-lei nº 4.657, de 04 set. 1942 – o que, no entanto, não é o objeto de estudo neste item. Dentre os dispositivos expressamente revogados do Decreto-lei n° 406/68, está o artigo 12, o qual dispunha sobre o local onde se considerava prestado o serviço.902 A norma veiculada pelo Decreto-lei n° 406/68, portanto, teve vigência de 1º jan. 1969 até 31 jul. 2003 – durante mais de três décadas – pois, a partir do dia 1º ago. 2003 entrou em vigor a Lei Complementar nº 116/2003, cujo artigo 3º regulamenta de forma integral o tema do local de ocorrência do fato tributário do ISS. Nesse longo período, muitos foram os estudos dedicados a investigar a legitimidade do conteúdo do precitado artigo 12, quando em confronto tanto com a Constituição Federal de 1967, como diante da atual Constituição, já que se pacificou o entendimento, para nós equivocado, da recepção do Decreto-lei pela Emenda de 1969 e pela Constituição Federal de 1988, em seu aspecto material e não formal, já que passou a ser necessária, para essa matéria, a forma da lei complementar. O artigo 12, “a”, do Decreto-lei n 406/68, visando dirimir os conflitos de competência no âmbito do ISS, estabeleceu critério espacial com alto grau de objetividade, pois dissociou completamente o local de pagamento do ISS do local de efetiva ocorrência de seu fato tributário, ou seja, do local onde a prestação de serviço se 900 901 Direito Tributário..., op. cit., p. 508. “Artigo 10. Ficam revogados os arts. 8º, 10, 11 e 12 do Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968; os incisos III, IV, V e VII do artigo 3º do Decreto-Lei no 834, de 8 de setembro de 1969; a Lei Complementar nº 22, de 9 de dezembro de 1974; a Lei nº 7.192, de 5 de junho de 1984; a Lei Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987; e a Lei Complementar nº 100, de 22 de dezembro de 1999”. 349 considera consumada, ultimada. Parte da doutrina não se conformou com o disposto no artigo 12, em especial pela inexistência de liberdade do legislador complementar em definir qual seja o critério espacial do ISS, assim como não há liberdade em definir toda a regra-matriz de qualquer tributo. O que a lei complementar pode é proceder a um refinamento dos arquétipos dos tributos, já previamente existentes no texto constitucional. A eleição do estabelecimento prestador como o local hábil a definir o município competente para figurar como sujeito ativo da relação jurídica tributária, resultou em indevida alteração da regra-matriz do ISS nos moldes constitucionais, devido ao critério espacial ser local diverso daquele onde se dá a efetiva prestação do serviço, considerado esse local como aquele onde juridicamente o serviço se concretizou, ou seja, onde se considera adimplida a obrigação do prestador para com o tomador. Por óbvio que, quando da aplicação dessa lei, nos casos em que o estabelecimento prestador, ou, na sua falta, o domicílio tributário, estivessem situados no mesmo município onde se ultimou a prestação do serviço, a criação e a exigência do ISS davam-se pelo destinatário constitucional da competência tributária. Mas isso ocorria por mera coincidência no plano fático, permanecendo, essa lei, contaminada pelo vício da inconstitucionalidade. A Constituição, ao eleger a prestação de serviços como materialidade da hipótese de incidência do ISS, simultaneamente definiu, ainda que de forma implícita, o local e o momento em que essa prestação ocorre. A discussão, em rigor, nem mesmo teria razão de existir, pois, apesar da eleição dos critérios espacial e temporal não ter ocorrido de forma expressa, ocorreu de forma tácita, e o raciocínio lógico impede, com clareza, que sejam designados para tanto outros dados que não o exato local e o momento preciso em que se consuma o fato “prestação de serviços”, como fez o Decreto-lei n 406/68. Assim, o critério espacial do ISS, extraído da Constituição, não tem vínculo jurídico algum com a existência de um estabelecimento ou de um domicílio relacionado ao prestador. Comentando o teor do artigo 12, “a” e “b”, do Decreto-lei n° 406/68, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO assevera que, “[...] considerando o princípio da territorialidade – que deflui do texto constitucional em razão do tributo só poder ser 902 “Art 12. Considera-se local da prestação do serviço: a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador; b) no caso de construção civil o local onde se efetuar a prestação.” 350 exigido no espaço geográfico da geração da riqueza – não havia que se discutir a respeito da legitimidade da norma no que concerne aos serviços de construção civil”. Observa, no entanto, que a territorialidade não fora prestigiada para as todas as demais espécies de serviços. Conclui o autor que o comando inserto na alínea “a” se consubstancia em ficção jurídica, que padece de vício de inconstitucionalidade, pois restringe o exercício da competência pelos municípios, violando a Autonomia Municipal que lhes é conferida para legislar sobre assuntos de interesse local, o que abrange os tributos que lhes são exclusivos, conforme artigo 30, I e II, da Constituição.903 CLÉBER GIARDINO anota que, ao que lhe parece, “[...] a ubiquação do serviço ao estabelecimento prestador, e não ao local onde efetivamente desempenhado, decorre da aplicação de simples e singelos critérios de direito privado”. A opção pelo critério do domicílio do prestador, para o autor, deve-se apenas à razão de que, para efeitos privados, esse é em geral o local onde a prestação é exigível, onde se encontra o devedor e o seu patrimônio, assim como é o local onde é arquivada a escrituração contábil e seus respectivos documentos, tudo, enfim, conforme exige a legislação civil ou comercial. Embora seja de rigor interpretar o fato “prestação de serviço” com supedâneo no Direito Privado – seu regime jurídico original – isso não autoriza a recorrer a esse grande setor do Direito para tirar conclusões infundadas em torno do local de ocorrência do fato tributário.904 Não há, portanto, liberdade alguma para a lei complementar no momento da escolha do local de ocorrência do fato tributário do ISS, pois o único critério espacial consentâneo com o arquétipo constitucional do ISS será o local onde efetivamente ocorre a prestação do serviço.905 O mesmo raciocínio aplica-se quando a legislação complementar à Constituição elege o estabelecimento prestador como o local de ocorrência do fato tributário do ISS, pois não raro o serviço tem a sua prestação consumada em município diverso de onde está situado o referido estabelecimento. Vigorosa também é a crítica de MARÇAL JUSTEN FILHO: A Constituição, ao adotar a materialidade da hipótese de incidência do ISS, impôs a escolha de um critério espacial que em nada se relaciona com o tema do domicílio ou da sede do estabelecimento do prestador do serviço O critério espacial do ISS está vinculado não ao critério pessoal, mas ao critério 903 Incidência do ISS..., op. cit., p. 218-219. ISS – Competência..., op. cit., p. 221. 905 ARZUA, Heron. O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 147. 904 351 material da hipótese de incidência do mesmo tributo. O local da prestação não é aquele em que tem domicílio o prestador do serviço, eis que inexiste qualquer vínculo entre o local da prestação e o domicílio do prestador. Pelo menos, nenhum vínculo jurídico. A vinculação dá-se entre o local e a prestação (ou seja, é o local da prestação).906 Depreende-se que a eleição do estabelecimento prestador, como critério para definir o local de ocorrência do fato tributário do ISS, resultou em criação de ficção jurídica indevida, uma vez que, na instituição do tributo, o legislador não goza de nenhuma discricionariedade em relação ao núcleo da regra-matriz que já se encontra plasmada no contexto constitucional. Cabe a ele, tão-somente, declará-la conforme determina a Constituição. A lei complementar, em rigor, nada teria a acrescentar, sob pena de resultar inócua ou redundante. Porém, diante da expressa previsão contida no inciso III, “a”, do artigo 146 da Constituição, pelo qual cabe à lei complementar de normas gerais, dentre outras coisas, definir o “fato gerador” dos impostos, não resta outra alternativa senão render-se à verificação de que a lei complementar pode, no máximo, “reforçar”, “ratificar”, a “regra-matriz constitucional” dos impostos, tendo em vista uma harmonização nacional das leis tributárias municipais com o conteúdo constitucional. Registre-se, em contrário, o pensamento de BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, para quem a lei tributária pode ser aplicada a fatos ocorridos fora do território do município, desde que a matéria seja disciplinada por lei complementar, o que equivale a aceitar a ficção jurídica do estabelecimento prestador como local de ocorrência do “fato gerador” do ISS, transformando-o em verdade abstrata (jurídica).907 SÉRGIO PINTO MARTINS também entende que o artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68 não contraria a Constituição, pois a previsão constitucional, constante do inciso I do artigo 146, que remete à lei complementar dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária, legitimaria a regra constante do artigo 12, “a’, do Decreto-lei n° 406/68, como uma exceção ao Princípio da Territorialidade, tornando-a compatível com a Constituição.908 Não há como concordar com tal posicionamento, já que não se vislumbra qualquer liberalidade constitucional na criação de ficções jurídicas a esse respeito, assim como não se admite que um princípio constitucional possa sofrer uma exceção. 906 O imposto..., op. cit., p. 148. Doutrina..., op. cit., p. 484. 908 Manual do Imposto Sobre Serviços, p. 212-213. 907 352 JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, após definir ficção jurídica como a “[...] instrumentalização (criação legal) de uma situação inverídica (falsa), de forma a impor uma certeza jurídica, consagrando uma realidade (jurídica), ainda que não guarde consonância com a natureza das coisas, ou mesmo que altere títulos ou categorias de direito”; adverte que não há poderes absolutos no uso desse artificialismo jurídico, o qual “[...] não pode arranhar, comprometer, sequer tisnar os princípios e normas insculpidos na Constituição, de modo a alterar os elementos estruturadores da norma tributária, muito menos invalidar seu regime jurídico e os princípios esparramados ao longo de seu texto, inclusive, e especialmente, implicar invasão de competência tributária”.909 Infelizmente, renomados tributaristas têm defendido a validade da ficção jurídica criada pelo artigo 12, “a”, do Decreto-lei nº 406/68. Em praticamente todas essas manifestações, percebe-se a existência de basicamente três argumentos como defesa da validade da eleição do estabelecimento prestador como critério espacial da hipótese do ISS. Um primeiro argumento, pretensamente jurídico, está na sustentação de uma validade intrínseca na figura da própria ficção jurídica, como se esse fenômeno jurídico em si mesmo justificasse qualquer conteúdo material, ainda que manifestamente incompatível com o ordenamento jurídico. Admitir tal absurdo jurídico implicaria reduzir a pó a sólida dogmática construída pela Ciência do Direito, consistente na prevalência hierárquica dos princípios constitucionais. São os princípios que devem orientar a criação de ficções jurídicas, e não o inverso, sob pena de destruir a coerência e a harmonia do sistema jurídico. O segundo argumento pretende, ainda que às vezes de forma não declarada, justificar o critério escolhido pelo Decreto-lei nº 406/68, tendo por fundamento a normatização vigente para os países da União Européia, onde o IVA – Imposto sobre o Valor Agregado – incidente inclusive sobre a prestação de serviços, também considera como local de ocorrência do fato tributário o local onde o prestador tenha a sede da atividade econômica ou um estabelecimento estável a partir do qual os serviços são prestados.910 Trata-se, como já cediço, de indevida utilização do Direito Comparado, freqüentemente invocado nas teorias sobre o IVA europeu. Não discorda a doutrina quanto à pouca ou quase nenhuma validade do direito alienígena na busca de subsídios 909 910 Local da Incidência..., op. cit., p. 336. É o que dispõe atualmente o artigo 9º da 6ª Diretiva, válida para os países integrantes da União Européia. O assunto será analisado mais detidamente no subitem seguinte. 353 normativos quando da interpretação do sistema jurídico pátrio, posto que “[...] só depois de fixadas certas linhas mestras – captáveis diretamente da observação do texto da Constituição – será útil qualquer consideração desse tipo, para sublinhar as peculiaridades do nosso sistema, a fim de melhor compreendê-lo”.911 Ora, se a interpretação mais eficaz é aquela que termina no sentido sistemático do ordenamento jurídico, os limites interpretativos estão dentro do sistema jurídico de um determinado país. Apesar de o objetivo do Direito Comparado, que nada mais é do que “[...] estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças entre ordens jurídicas”912, ser extremamente útil naquilo que acusa sua própria denominação – comparar ordens jurídicas (macrocomparação) ou institutos jurídicos afins em ordens jurídicas diferentes (microcomparação)913 – será inútil ou até mesmo inconveniente sua utilização para a análise da regra-matriz de algum tributo existente no sistema tributário nacional, como é o caso do ISS. HERON ARZUA ensina que, como conseqüência da rígida repartição constitucional das competências tributárias, decorrente do pacto federativo e da Autonomia Municipal, pouca ou quase nenhuma utilidade terá o recurso às doutrinas estrangeiras para a solução dos problemas de funcionamento do nosso sistema, advertência útil para evitar o vezo comum de se querer interpretar as normas dos impostos brasileiros, em particular do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços nominados (ICMS) e do imposto sobre serviços (ISS), a partir do imposto sobre o valor agregado (IVA) europeu.914 O terceiro argumento é completamente ajurídico, e portanto, ainda mais criticável, consistindo na alegação da existência de problemas práticos de operacionalização na arrecadação do ISS, caso o critério espacial seja definido como o local da efetiva prestação dos serviços. Salta aos olhos que a mesma doutrina que se utiliza desses argumentos, simultaneamente admite a validade e supremacia do Princípio Territorial da lei tributária. É como se dissessem: “realmente, a Constituição impede que a lei municipal tenha eficácia além de seus limites territoriais, mas na ‘prática’ é mais ‘fácil’ considerar o serviço prestado no município onde tenha o contribuinte o seu estabelecimento prestador”. Nesse sentido é o posicionamento de 911 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 27. ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Direito Comparado, p. 7. 913 Ibidem, p. 7-9. 914 O imposto sobre serviços e o princípio..., op. cit., p. 142-143. 912 354 IVES GANDRA DA SILVA MARTINS915 e de HUGO DE BRITO MACHADO. É deste último autor o seguinte raciocínio: É razoável, portanto, dizer-se que os serviços prestados no território de um determinado Município são por este, e só por este, tributáveis. Por outro lado, adotado esse entendimento, tem-se na prática grande número de problemas. Um advogado, domiciliado e com escritório em São Paulo, que é contratado para fazer uma sustentação oral perante o STF, teria de pagar ISS no Distrito Federal. [...] Foi, certamente, em face de tais problemas práticos que o Decreto-lei n° 406/68 estabeleceu a norma segundo a qual considera-se local de prestação do serviço aquele em que é estabelecido, ou domiciliado, o seu prestador. Não se cuida de uma presunção legal, a comportar prova em sentido contrário. Nem mesmo de uma presunção legal absoluta. Cuida-se na verdade de uma ficção jurídica. [sic]916 Com o devido respeito ao autor, depreende-se de suas palavras acima que, em um primeiro momento, afirma o primado do Princípio da Territorialidade. Entretanto, ato contínuo, para tentar justificar o injustificável artigo 12, a, do Decreto-lei nº 406/68, invoca problemas “práticos”, como se eles, em si mesmos, pudessem legitimar a malsinada ficção legal veiculada por esse dispositivo. Em outra ocasião, o mesmo autor tece outros comentários: As ficções jurídicas – é bom ressaltar este aspecto – impõem a certeza jurídica da existência de um fato cuja ocorrência, no mundo fenomênico, não é certa. Uma vez criada a regra jurídica, porém, a ficção penetra na ordem jurídica como verdade. Descabe, portanto, aferir-se, no caso concreto, se o serviço foi – ou não – efetivamente realizado no local do estabelecimento prestador, pois o legislador serviu-se da ficção de que o serviço é prestado no local do estabelecimento prestador. É importante destacar que é ficto o local onde ocorreu a prestação, não o local onde estabelecido o prestador. Sobre este último cabe ampla discussão e dilação probatória. Onde for demonstrado e provado estar o estabelecimento prestador é que, por ficção, será considerada ocorrida a prestação do serviço.917 Na primeira afirmação, não há o que contestar, posto o renomado jurista ter fornecido definição exata da técnica da ficção legal. Em seguida, contudo, verifica-se que defende ser a ficção criada pelo Decreto-lei nº 406/68 válida, tão-só por ser ficção legal. Caso assim fosse possível, os entes políticos poderiam, através de suas respectivas leis, criar ficção jurídica para “desenhar” uma nova competência tributária, no formato que melhor lhes conviessem, com a conseqüência inevitável da invasão de competência alheia. Ou, o que é estatisticamente mais provável, a União, mediante o uso abusivo e ilegítimo da lei complementar de normas gerais, poderia criar “verdades jurídicas” com 915 O local da prestação..., op. cit., p. 91-93. Local da ocorrência do fato gerador do ISS. Repertório IOB de Jurisprudência, nº 1, p. 15. 917 O local da ocorrência do fato gerador do ISS. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 58, p. 48. 916 355 o propósito de aumentar o seu “poder” centralizador, e não se poderia confrontá-las com a Constituição tão-somente porque são ficções jurídicas! Quanto ao último raciocínio, sobre ser ficto o local onde ocorreu a prestação, e não o local onde é estabelecido o prestador, não há do que discordar, a não ser quanto à inconstitucionalidade da ficção legal criada. O dispositivo em comento, durante o período de sua vigência, também é inconstitucional pela ofensa ao Princípio da Territorialidade das leis tributárias – norma constitucional que, aplicada ao ISS, subordina a exigência desse imposto somente ao município onde são prestados os serviços – já que estabelece critério espacial que permite a invasão, por um município, de área de competência de outro município, onde os serviços são prestados. Entender em sentido contrário implica atribuir à lei municipal eficácia extraterritorial, admitindo que a lei de um município possa ser eficaz em outro, afastando a competência deste, onde foram prestados os serviços.918 Pode-se, sob outro ângulo, tentar extrair da letra “a” do artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68, uma interpretação que revele uma possível compatibilidade com a Constituição. Nesse sentido é o entendimento de ROQUE ANTONIO CARRAZZA, o qual defende que o supracitado dispositivo não seria inconstitucional quando o serviço for prestado efetivamente no município onde estiver sediado o estabelecimento prestador. Caso contrário, o artigo 12 deveria ter sua aplicação negada.919 No mesmo caminho, AIRES BARRETO defende que, antes de qualquer conclusão seria necessário buscar uma definição do gênero “estabelecimento” para, na seqüência, obter um conceito legítimo da espécie “estabelecimento prestador”. Mas advirta-se que o conceito isolado de estabelecimento, em si mesmo, é irrelevante para os efeitos de incidência do ISS, pois somente terá relevância para tanto o estabelecimento prestador, e não o estabelecimento “do prestador”. Após definir estabelecimento como todo complexo de bens utilizados no exercício de atividade econômica, sublinha o autor que “Estabelecimento prestador, por sua vez, é qualquer local em que, concretamente, se exercitem as funções de prestar serviços. O porte do estabelecimento, a dimensão dos poderes administrativos, a existência de subordinação, sendo elementos irrelevantes para a caracterização de estabelecimento, também o são para a tipificação de estabelecimento prestador”.920 918 BARRETO, Aires Fernandino. ISS – Conflitos..., op. cit., p. 11. Breves considerações..., op. cit., p. 156. 920 ISS: serviços de despachos..., op. cit., p. 117. 919 356 Acrescenta ainda o autor que o estabelecimento principal – sede ou matriz – difere-se dos demais – filiais, agências, sucursais – em razão dos últimos exercerem a atividade econômica de forma subordinada àquele primeiro. “A representação, com poderes gerais, amplos, só existe nas matrizes ou sedes. Exatamente o traço tipificador das filiais, agências, sucursais, é terem poderes parciais de representação. Basta o tenham. O grau, a intensidade são irrelevantes. Estabelecimento prestador é, pois, o local em que o serviço é prestado, independentemente do seu porte, grau de autonomia, ou qualificação específica”.921 Diante de tais premissas, assim como pelo entendimento de que o ISS sempre é devido no local, município, onde os serviços forem prestados, AIRES BARRETO conclui pela não validade do artigo 12, a, do Decreto-lei n° 406/68, “[...] salvo nos casos em que coincidem o local em que é prestado o serviço e o do estabelecimento prestador”, hipótese em que o preceito é inócuo ou, no mínimo, redundante. Nos demais casos, em que o estabelecimento prestador está situado em município diverso daquele onde o serviço foi prestado, o dispositivo é inconstitucional.922 Raciocínio relevante foi construído por MARÇAL JUSTEN FILHO, em resposta a duas indagações formuladas na mesa de debates sobre tributos municipais no IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário. A questão era no sentido de saber se é necessária a criação de uma filial para a prestação de um serviço em município diverso do da matriz, ao que o autor responde ser essa uma “[...] questão que não se subordina exatamente à disciplina da Lei Tributária, por ser matéria de Direito Comercial, e não há regra no Direito Comercial que obrigue a existência de uma filial no local da prestação de serviço. A filial é uma faculdade organizacional interna do comerciante, que cria ou não cria filiais, como melhor lhe aprouver”. A segunda indagação seria sobre a obrigatoriedade de inscrição no cadastro municipal de cada município onde houver prestação de serviço. O autor defende, quanto a essa questão, que cada prestador de serviço deverá se cadastrar não só no município onde tem sede, como também no local onde vier a prestar serviços. 923 Reconhecer competência para a tributação da prestação de serviços a um município, onde essa prestação não ocorre, repugna à estrutura do ordenamento jurídico. E isso se dá porque, em primeiro lugar, conduz a uma ampliação e conseqüente 921 922 Ibidem, p. 117-118. Ibidem, p. 124. 357 desnaturação do critério material da hipótese de incidência. A tributação não mais incidiria sobre a prestação do serviço, mas sobre o fato de manter-se um domicílio ou estabelecimento em dado município. Como resultado, violar-se-ia a repartição constitucional de competências, pois tributo com essa materialidade somente poderia estar compreendido na competência residual da União Federal, conforme inciso I do artigo 154 da Constituição.924 Em relação ao Decreto-lei nº 406/68, afirma MARÇAL JUSTEN FILHO que, ao pretender fixar critérios para solução de conflitos de competência tributária, o legislador infringiu, dentre outros, os princípios da Isonomia das Pessoas Políticas, o da Autonomia dos Municípios, e o da rígida discriminação de competências. Além disso, alterou, indiretamente, a própria materialidade do ISS, ao pretender vincular a competência tributária a evento incompatível com a materialidade da hipótese de incidência do ISS. “A lei complementar atuou como se outra fosse a estrutura do ordenamento. Influenciou-se pelo vezo de afirmar que o ISS nada mais seria do que o antigo imposto sobre indústrias e profissões, previsto na Carta de 1946 e extinto com a EC 18”.925 Em que pese a invalidade dos dispositivos que elegeram o estabelecimento prestador como local de ocorrência do fato tributário do ISS, é preciso, antes de afirmar peremptoriamente a inconstitucionalidade dos mesmos, verificar a possibilidade de alguma interpretação que os harmonize com o critério espacial da regra-matriz de incidência desse imposto, o que pode ser possível com a utilização, por exemplo, da interpretação conforme à Constituição, como será demonstrado nos subitens seguintes. O entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema teve, de certa forma, essa perspectiva, ainda que, em alguns aspectos, os argumentos utilizados possam merecer críticas. 5.5 A JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF A definição do critério espacial constante do artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68 teve o efeito nefasto de iniciar a guerra fiscal entre os municípios, os quais, buscando 923 IX Congresso Brasileiro de Direito Tributário: mesa de debates - tributos municipais. Revista de Direito Tributário, n. 67, p. 147. 924 JUSTEN FILHO, Marçal. O imposto..., op. cit., p. 148. 358 atrair para os seus territórios estabelecimentos prestadores de serviços tributáveis pelo ISS, passaram a fixar alíquotas reduzidas para esse imposto. Ocorre que não raro esses estabelecimentos não apresentavam vínculo fático algum com as atividades desempenhadas pelo prestador, revelando o propósito isolado de evasão tributária. O Superior Tribunal de Justiça, instado a manifestar-se sobre o tema, logo se dividiu em duas correntes, conforme a posição doutrinária adotada. Uma primeira corrente entendeu que o ISS incide e é devido no local, município, onde os serviços são prestados, afastando, portanto, o artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, com exceção das hipóteses em que o serviço é prestado no mesmo local onde está situado o estabelecimento prestador.926 A segunda corrente defendeu como válida a eleição, pelo artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, do estabelecimento prestador como local de incidência e arrecadação do ISS.927 Neste segundo posicionamento, parte das decisões defende a inaplicabilidade do Princípio da Territorialidade das leis, e a outra parte defende que esse princípio foi afastado de forma legítima pela norma nacional do ISS. A esse propósito, AIRES BARRETO demonstra a existência de equívoco em ambas as posições, porque, de um lado, não há como se possa afastar a aplicação de um princípio, e de outro, não se pode considerar válida norma infraconstitucional incompatível com uma norma constitucional.928 As decisões conflitantes continuaram por anos no Superior Tribunal de Justiça, o que contribuiu para aumentar a insegurança jurídica entre os contribuintes, assim como fomentou a guerra fiscal entre os municípios. Após várias decisões divergentes, aquela corte entendeu, em sede de Embargos de Divergência pela 1ª Seção – que reúne as 1ª e 2ª Turmas, especializadas em Direito Público – que o ISS é devido no local onde os serviços forem prestados, sendo irrelevante o local, município, em que estiver situado o estabelecimento prestador, conforme demonstra a seguinte ementa: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA – ISS – COMPETÊNCIA – LOCAL DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO – PRECEDENTES – I – Para fins de incidência do ISS – Imposto Sobre Serviços -, importa o local onde foi concretizado o fato gerador, como critério de fixação de competência do Município arrecadador e exigibilidade do crédito tributário, ainda que se 925 O imposto..., op. cit., p. 150. Recurso Especial nº 168.023/CE, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, DJ 03 ago. 1998, p. 137 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 927 Recurso Especial nº 16.033/SP, Rel. Ministro HÉLIO MOSIMANN, DJ 13 fev. 1995 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 928 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 326-327. 926 359 releve o teor do artigo 12, alínea "a" do Decreto-lei n° 406/68. II – Embargos rejeitados.929 Esse posicionamento consolidou a interpretação nacional sobre qual seja o critério espacial da hipótese tributária do ISS, assim como, por conseqüência, do sujeito ativo da relação jurídica tributária, o que inegavelmente conferiu aos contribuintes do ISS alguma previsibilidade na gestão de seus negócios, o que, de resto, é imprescindível para a conquista da tão almejada segurança jurídica. Houve entendimentos no sentido de que a decisão do STJ ter-se-ia se assentado somente nos casos em que, pela natureza dos serviços, é imprescindível a presença física do prestador no local onde os serviços são desempenhados, como é o caso dos serviços de limpeza ou vigilância, por exemplo. Esse posicionamento teria seguido, então, orientação equivalente firmada pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. Diante disso, parte da doutrina sustentou não ser possível afirmar que o Superior Tribunal de Justiça ainda adotaria o fundamento da territorialidade, para os serviços que não exigissem a presença física do prestador em município diverso daquele em que estivesse estabelecido. Parece ser improvável que o Superior Tribunal de Justiça adote duas interpretações totalmente distintas para o local da prestação dos serviços, com base em um único dispositivo, o artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68. AIRES BARRETO, da mesma forma, não vê como possa aquela corte admitir, com fulcro na referida letra “a”, que o ISS é devido no local da prestação dos serviços, mas que não o é, com base na mesma letra “a”, quando os serviços não exigirem a presença física de pessoas no município em que forem prestados. “É pouco crível que o STJ venha a adotar duas interpretações para a mesma norma”, conclui o autor.930 Há entendimento doutrinário que vê como altamente criticável a forma como foi afastada, pelo Superior Tribunal de Justiça, a aplicação do artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68.931 É que em vários acórdãos dessa Corte, sobre o local de ocorrência do fato tributário do ISS, consta o seguinte trecho: “Embora o artigo 12, letra a, considere como local da prestação de serviço o do estabelecimento prestador, pretende o legislador que o referido imposto pertença ao Município em cujo território 929 ERESP nº 130792/CE, Relª p/o Ac. Minª NANCY ANDRIGHI, DJ 12 jun. 2000, p. 66 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 930 ISS na Constituição..., op. cit., p. 334. 931 MARTINS, Ives Gandra da Silva. O local de prestação de serviços no DL n. 406/68 e na LC n. 116/2003. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 90-92. 360 se realizar o fato gerador” – como exemplo, o Recurso Especial nº 72.398/SP.932 A expressão “pretende o legislador” teria sido infeliz, pois assim como admite ter o texto normativo expressamente falado em “estabelecimento prestador”, afirma que essa expressão do legislador deve ser desconsiderada, pois na verdade ele “pretenderia” outra coisa. Os que criticam a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça argumentam que, ainda que se tenha em conta a necessidade de observância do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, pelo qual o intérprete não deve medir esforços para tentar compatibilizá-las com os ditames maiores contidos na Constituição, tal esforço, no caso do dispositivo mencionado, revelar-se-ia infrutífero, por duas razões: em primeiro lugar, porque (a) ou se considera o estabelecimento prestador, ou, na sua falta, o seu domicílio, como o local de ocorrência do fato tributário do ISS, violando-se, nessa hipótese, o Princípio da Territorialidade das leis tributárias; ou (b) defende-se que, não obstante a regra expressamente remeter ao local do estabelecimento prestador, o intérprete deve ignorar tal previsão e entender que, “na verdade”, o local é aquele onde o serviço é prestado, opção que implica interpretar a lei em total desacordo com o seu expresso teor, como se estivéssemos diante de atividade legislativa ilegítima. A única solução, para essa corrente, seria a declaração de inconstitucionalidade da letra “a”, do artigo 12, do Decreto-lei n° 406/68, tarefa que, todavia, compete, em última instância, exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal. Tal declaração só não ocorreu justamente porque o Superior Tribunal de Justiça não declarou a precitada norma inconstitucional, “[...] embora para não dizê-lo tenha trilhado caminho extremamente tortuoso”, nas palavras de AIRES BARRETO.933 Esse mesmo autor, no entanto, acabou por rever seu entendimento, e hoje entende que a posição do Superior Tribunal de Justiça é a mais acertada. Como fundamento para tanto, argumenta que é possível interpretar a expressão “local do estabelecimento prestador”, como sendo o local em que o serviço for prestado, sendo irrelevante, ainda, a circunstância de haver, ou não, a presença física do prestador.934 Esse também é o entendimento de BETINA TREIGER GRUPENMACHER.935 932 Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, DJ de 10 jun. 1996. Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 933 ISS – Conflitos..., op. cit., p. 16. 934 ISS na Constituição..., op. cit., p. 334. 935 ISS – Local…, op. cit.,p. 89. 361 MISABEL DERZI defende que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça negligenciou pontos essenciais da questão, sob o argumento de que o legislador complementar poderia eleger critério espacial diferente do local da execução do serviço, desde que se mantenha conexão com o território municipal, como, por exemplo, o local do estabelecimento prestador. Como resultado, entende que o Decreto-lei n° 406/68 não teria desnaturado a regra-matriz constitucional do ISS, nem violado o Princípio da Territorialidade. O seu único argumento, ao que parece, é a aceitação incondicional de que a ficção jurídica criada pelo citado diploma é válida.936 No mesmo caminho é o posicionamento de CRISTIANO ROSAS DE CARVALHO.937 Mas a autora não oferece nenhum argumento que demonstre a legitimidade irrestrita na criação de ficções jurídicas, ou ainda de presunções juris et de jure. Como já defendemos anteriormente, não há liberdade absoluta no uso desses expedientes legislativos, em especial no trato de matéria tributária prevista constitucionalmente, pois, do contrário, teríamos que admitir a flexibilização da Constituição justamente onde ela é mais rígida.938 A autora sustenta, ainda, que a norma geral criada pelo Superior Tribunal de Justiça também não resolve a questão da correta distribuição de receita entre os municípios envolvidos, pois “[...] nem sempre o lugar onde se prestou ou executou o serviço será o lugar onde deveria permanecer a receita do imposto”. Complementa: “Sendo o ISS um imposto sobre o consumo de serviços, em princípio o produto da arrecadação deveria pertencer ao Município em que foram adquiridos”, “[...] pois em geral são os seus beneficiários-adquirentes que acabam suportando o encargo do imposto, que lhes é transferido no mecanismo dos preços”. Em que pese a excelência das reflexões da renomada jurista, a sua conclusão acerca do município que se deve beneficiar da receita do ISS parte de uma perspectiva exclusivamente pré-jurídica, além do que incorre em manifesto equívoco ao defender ser o ISS um imposto que incide sobre o “consumo” de serviços, quando é pacífico que o contexto constitucional demonstra que o destinatário constitucional tributário do ISS não é outro senão o prestador do serviço. Em outro trecho do mesmo artigo a própria autora parece afirmar o oposto: “A Carta Magna preferiu considerar os serviços sob o 936 O aspecto espacial do imposto municipal sobre serviços de qualquer natureza. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 57-59. 937 Responsabilidade tributária do tomador do serviço. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). ISS: Lei Complementar 116/2003, p. 96-99. 938 Vide supra, item 5.1. 362 ângulo do prestador (não do usuário) no âmbito de incidência do ISS, fato igualmente indicativo de capacidade econômica”.939 Por outro lado, a autora invoca como premissa o argumento comprovadamente falível da repercussão econômica do ISS, critério baseado na classificação ajurídica dos impostos em diretos e indiretos, oriunda da Ciência das Finanças e que tem recebido justas e acirradas críticas por parte da doutrina. Dentre vários, podem-se citar os excelentes argumentos de FRANCISCO PINTO RABELLO FILHO: Pela característica legal desse imposto (ISS), as qualidades de sujeito passivo de fato e sujeito passivo de direito estão concentradas na mesma pessoa, o prestador do serviço (contribuinte). É consideração de matiz exclusivamente econômico, completamente irrelevante no campo da repetição do indébito, a que pretender argumentar com a circunstância de que de fato o prestador do serviço incorpora, no valor deste, o do imposto.940 HERON ARZUA entende que a única conclusão plausível é a de que o artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68 nem mesmo chegou a ser recepcionado pela Constituição Federal de 1988, seja por ter perdido a eficácia, seja por ter sido revogada, ou porque perdeu seu fundamento de validade.941 Para o autor, quando esse dispositivo elege, como regra geral, o local do estabelecimento prestador, e como regra subsidiária o local do domicílio do prestador, está a criar novo imposto, pois esse critério espacial implicitamente traz em seu seio materialidades diversas da prestação de serviços, com a qual somente se identifica no que tange à base de cálculo. Criar-se-ia uma teratologia tributária, pois o seu critério material e a sua base de cálculo revelam-se incompatíveis entre si. Com base nesse raciocínio, restaria inequívoco que a eleição, pela lei, do domicílio do prestador como apto a indicar o município legitimado para a imposição do ISS resulta em inobservância da norma constitucional que prevê o núcleo da regramatriz desse imposto. Ao invés de “prestação de serviços”, a lei complementar que assim dispuser estará definindo como materialidade a conduta de alguém manter um domicílio. Poder-se-ia ainda defender-se que as decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, sobre o artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, estariam em desacordo com o artigo 105, III, da Constituição, onde se prevê que a esta Corte cabe 939 O aspecto espacial..., op. cit., p. 76. Consideração do ISS como imposto direto ou indireto, para efeito de repetição do indébito tributário: breve revisitação do tema. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 55, p. 156-157. 941 O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 152. 940 363 tão-somente proferir decisões – pela via do Recurso Especial – que contrariem norma infraconstitucional. Assim, as únicas decisões compatíveis com a função constitucional dessa Corte seriam a de que determinada lei municipal observa ou não observa o Decreto-lei n° 406/68. Se a decisão recorrida ataca o Decreto-lei n° 406/68 porque entende ser ele inconstitucional, então o Superior Tribunal de Justiça não deveria conhecer do recurso, pois caberia ao Supremo Tribunal Federal decidir a questão, em sede de Recurso Extraordinário. Inconstitucionais, portanto, seriam as decisões como a que segue abaixo, onde a fundamentação foi o Princípio Constitucional da Territorialidade, implícito na repartição das competências tributárias: RECURSO ESPECIAL – TRIBUTÁRIO – ISS – COMPETÊNCIA – MUNICÍPIO DO LOCAL – Da prestação do serviço. Entendimento pacificado neste Superior Tribunal de Justiça. A egrégia primeira seção desta colenda corte superior de justiça pacificou o entendimento de que o município competente para realizar a cobrança do ISS é o do local da prestação dos serviços, onde se deu a ocorrência do fato gerador do imposto. ‘De acordo com a constituição, este imposto só pode alcançar os serviços de qualquer natureza (exceto os referidos no artigo 155, II, da Constituição) prestados no território do município tributante. Por quê? Porque nossa Carta Magna adotou um critério territorial de repartição das competências impositivas que exige que a única Lei Tributária aplicável seja a da pessoa política em cujo território o fato imponível ocorreu' (Roque Antonio Carrazza, in ‘Curso de Direito Constitucional Tributário’, 18ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, p. 844). Recurso Especial provido.942 Entende-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça adotou a chamada “interpretação conforme a Constituição”, a qual indica como vetor hermenêutico a necessidade de optar, dentre as possíveis interpretações em torno de um texto normativo, aquela que melhor se ajusta aos ditames constitucionais, dentro de um limite de razoabilidade. Somente depois de exauridas as tentativas nesse sentido é que será legítima a conclusão pela inconstitucionalidade insanável da norma. No caso em exame, quer-se dizer que, ainda que a dicção literal do artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, em um primeiro momento, remeta à conclusão da impossibilidade de interpretar a expressão “estabelecimento prestador” como tendo o sentido de “local onde os serviços são prestados”, a sua inserção no contexto constitucional poderia vir a autorizar esse entendimento. Nesse sentido, FERNANDO OSÓRIO DE ALMEIDA JÚNIOR conceitua a interpretação conforme a Constituição como sendo “[...] aquela que, entre outras possíveis interpretações, se impõe sobre as demais, em razão de revelar na lei a sua 364 validade em face da Constituição”. Complementa o autor nos termos seguintes: “[...] a interpretação conforme a Constituição aproxima-se dos métodos clássicos de solução de antinomias na medida em que busca a realização do princípio da unidade do ordenamento jurídico e da supremacia da Constituição, este último em comparação como método hierárquico”.943 O único método hermenêutico válido para compatibilizar a norma veiculada pelo artigo 12, “a”, do Decreto-lei n° 406/68, portanto, é a interpretação conforme a Constituição. Com efeito, dentre as várias interpretações possíveis acerca desse dispositivo, deve prevalecer aquela que manifesta compatibilidade com o contexto constitucional, o que exige concluir que a única interpretação possível será aquela que prestigie o critério espacial da hipótese de incidência do ISS, conforme a matriz constitucional desse imposto. Como já foi insistentemente defendido, o critério espacial, no caso do ISS, não é outro local senão aquele onde os serviços foram prestados de forma definitiva. Para tanto, interessa onde se ultimou a atividade-fim contratada entre tomador e prestador, sendo irrelevantes para tanto a eventual existência de outros locais, municípios, onde tenham ocorrido ações intermediárias (atividades-meio), ainda que necessárias à conclusão do serviço. O referido autor esclarece que a interpretação conforme a Constituição implica a “[...] derrogação de certos efeitos jurídicos da lei”, ou seja, resulta na “redução de seu conteúdo”. A lei, no entanto, é mantida tendo em vista a necessidade de que as demais situações ou pessoas, que não foram atingidas pela inconstitucionalidade da lei, permaneçam sujeitas a ela de forma válida.944 Depreende-se, assim, que a interpretação conforme a Constituição permite ao intérprete e aplicador da norma restringir a amplitude de um dispositivo de forma que ele se compatibilize com a Lei Maior. Essa técnica interpretativa, portanto, permite solucionar, de forma legítima, os problemas da dicção literal do artigo 12, a, do Decreto-lei n° 406/68, para concluir que o contexto constitucional exige redução semântica para a expressão “estabelecimento prestador”, a fim de que ela corresponda única e exclusivamente ao local em que os serviços são efetivamente prestados, consumados. Nesse sentido é o raciocínio defendido, com acerto, por BETINA 942 RESP nº 525067/ES, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO, DJ de 28 out. 2003 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 943 Interpretação conforme..., op. cit., p. 16-18. 944 Ibidem, p. 47. 365 TREIGER GRUPENMACHER, a respeito dos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n° 116/2003.945 Para a autora, a interpretação conforme a Constituição, nesse caso, não viola o Princípio da Legalidade Tributária, uma vez que ele somente se aplica caso a lei que cria ou aumenta o tributo seja constitucional. Por outro lado, o novo sentido do texto normativo decorreria também do primado da Segurança Jurídica sobre a Legalidade, por ser aquele princípio dotado de maior densidade semântica. Conclui que a jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça adotou essa técnica de interpretação, a fim de tornar o dispositivo compatível com a Constituição Federal.946 A ressalva que se entende necessária diz respeito à redação existente em diversos julgados, onde se diz que “embora o artigo 12, letra a, considere como local da prestação de serviço o do estabelecimento prestador, pretende o legislador que o referido imposto pertença ao Município em cujo território se realizar o fato gerador”.947 Não restam dúvidas de que a redação poderia ser melhor elaborada, em especial consignando a utilização da “interpretação conforme a Constituição”, técnica hermenêutica cujos limites de aplicação são definidos com precisão por KARL LARENS, cujo raciocínio é, em grande parte, amparado na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha: A interpretação conforme à Constituição, se quer continuar a ser interpretação, não pode ultrapassar os limites que resultam do sentido literal possível e do contexto significativo da lei. O Tribunal Constitucional Federal tem dito repetidamente que uma interpretação conforme à Constituição não é possível “em face do claro teor literal” da disposição. E tão-pouco deve a interpretação conforme à Constituição deixar de atender ao escopo da lei. Quando, no entanto, o legislador tenha intentado um efeito mais amplo do que o permitido nos termos da Constituição a, lei pode, no parecer do Tribunal Constitucional Federal, ser interpretada restritivamente “conforme à Constituição” [sic].948 O raciocínio sobre os limites “literal” e “teleológico”, contido na tese de LARENZ, foi adotado por FERNANDO OSÓRIO DE ALMEIDA JÚNIOR, para quem “[...] a aplicação da interpretação conforme resulta do reconhecimento pelo tribunal de que a aplicação da lei na forma pela qual foi posta pode implicar em vício de 945 ISS – Local..., op. cit., p. 84-85. Ibidem, p. 89. 947 REsp nº 72.398/SP, Rel. Ministro DEMÓCRITO REINALDO, DJ de 10 jun. 1996 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 948 Metodologia da Ciência do Direito, p. 480-481. 946 366 inconstitucionalidade”.949 Registre-se que o Supremo Tribunal Federal, na esteira do Tribunal Constitucional Federal alemão, tem reiteradamente aplicado a interpretação conforme a Constituição, com os limites acima identificados, como ilustra a seguinte decisão: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. SERVIDOR PÚBLICO. VENCIMENTOS. REAJUSTE. RESÍDUO DE 3,17%. PARCELAMENTO. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.225-45/2001. INTERPRETAÇÃO "CONFORME", SEM REDUÇÃO DE TEXTO. O Supremo Tribunal Federal declarou, por meio de interpretação "conforme", sem redução de texto, a inconstitucionalidade parcial do art. 11 da Medida Provisória nº 2.225-45/2001. Com isso, excluiu do alcance da MP as hipóteses em que o servidor se recusasse, explícita ou implicitamente, a aceitar o parcelamento previsto no dispositivo. Agravo regimental a que se nega provimento.950 Como era esperado, as decisões do Superior Tribunal de Justiça, já sob a égide da Lei Complementar nº 116/2003, permaneceram no mesmo sentido e com os mesmos argumentos, tendo-se mantido, inclusive, os precedentes criados com base no Decretolei nº 406/68. Os acórdãos a seguir ilustram esse posicionamento: PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ISS. COBRANÇA. LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. 1. ‘O Município competente para cobrar o ISS é o da ocorrência do fato gerador do tributo, ou seja, o local onde os serviços foram prestados’. Precedentes: EREsp 130.792/CE; Primeira Seção, Relator para acórdão Min. NANCY ANDRIGHI; DJ de 12/6/2000, p. 66; AgRg no AgRg no Ag 587.918/RJ; Primeira Turma, Relator Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI; DJ de 1°/7/2005, p. 373; AgRg no Ag 607.881/PE; Segunda Turma, Relator Min. FRANCIULLI NETTO; DJ de 20/6/2005, p. 209; AgRg no Ag 595.028/RJ; Primeira Turma, Relator Min. JOSÉ DELGADO; DJ de 29/11/2004, p. 239. 3. Agravo Regimental desprovido. 951 TRIBUTÁRIO. ISSQN. LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. ART. 12 DO DECRETO-LEI Nº 406/68. 1. Mesmo na vigência do art. 12 do Decreto-Lei nº 406/68, revogado pela Lei Complementar nº 116/03, a Municipalidade competente para realizar a cobrança do ISS é a do local da prestação dos serviços, onde efetivamente ocorre o fato gerador do imposto. 2. Recurso especial improvido.952 Não há decisões recentes no Supremo Tribunal Federal sobre o tema, que possam ser comparadas com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. A título de ilustração, seguem duas decisões sobre o tema: (a) no Recurso Extraordinário nº 71.307/PE, foi decidido que o ISS “(…) não pode ser exigido com base no valor de 949 Interpretação conforme..., op. cit., p. 42. RE-AgR 399249/DF, Rel. Ministro CARLOS BRITO, julgamento em 25 maio 2004 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 20 fev. 2007. 951 AgRg no Ag 747.266/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, DJ 19 jun. 2006 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 952 REsp 882.913/PE, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, DJ 12 dez. 2006 – Disponível em <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 950 367 transações efetuadas fora do município”.953 O recurso referia-se ao caso de listas telefônicas de outros municípios, cujas edições foram objeto de contratos realizados por vendedores da filial do Recife. Mas, como as listas foram produzidas e impressas pela matriz no Rio de Janeiro, a Suprema Corte decidiu que o ISS é devido nesse município; (b) no Recurso Extraordinário nº 82.997/GO, a discussão envolvia a incidência de ISS sobre a locação de máquinas copiadoras por uma filial situada em Goiânia, cuja matriz era localizada em Brasília, local onde eram tão-somente celebrados os contratos. Ficou decidido que Goiânia é o município competente para exigir o ISS.954 Ao que parece, as decisões do Supremo Tribunal Federal não tocaram especificamente no tema, da forma como fez o Superior Tribunal de Justiça. Dos acórdãos acima, pode-se tirar duas conclusões sobre o posicionamento do STF: a) é irrelevante o local onde se aperfeiçoa o contrato de prestação dos serviços; e b) o ISS será devido ao município onde o serviço for efetivamente prestado, caso a execução coincida com a existência de um estabelecimento prestador nesse local, sendo irrelevante que etapas iniciais tenham sido realizadas no município da sede do prestador. Não há, portanto, como antever qual será o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, caso seja provocado em relação aos serviços prestados fora de qualquer estabelecimento do prestador. 5.6 O CRITÉRIO ESPACIAL NA LEI COMPLEMENTAR N 116/2003 A Lei Complementar n° 116/2003 foi editada com a justificativa de “implementar a justiça tributária”, através da amenização da guerra fiscal entre os municípios, fenômeno que deu origem aos chamados “paraísos fiscais” para os prestadores de serviços.955 Em seu conteúdo, verifica-se que o legislador complementar não encampou, como regra geral, a orientação firmada pelo Superior Tribunal de 953 DJ 05/06/72 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. DJ 08/07/76 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007. 955 Anteriormente à edição dessa lei, a Emenda Constitucional n. 37, de 12 jun. 2002, visando minorar os efeitos desse planejamento tributário, muitas vezes ilegítimo, inseriu o artigo 88 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinando que o ISS, enquanto não adviesse lei complementar para disciplinar as suas alíquotas máximas e mínimas, assim como para regular a forma e as condições da concessão e revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais, teria (I) alíquota mínima de dois por cento, exceto para serviços de construção civil e demolição, e (II) não seria objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resultasse na redução da alíquota 954 368 Justiça, ainda que a tenha utilizado em um grande número de exceções. Como se verá, a complexidade da definição do critério espacial levada a efeito pelo novo diploma resultou no ressurgimento das disputas entre os municípios. O critério espacial, variável conforme a espécie do serviço, está definido no artigo 3º da nova lei, assim como em seus incisos e parágrafos: Artigo 3º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local: I – do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, na hipótese do § 1º do artigo 1º desta Lei Complementar; II – da instalação dos andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas, no caso dos serviços descritos no subitem 3.05 da lista anexa; III – da execução da obra, no caso dos serviços descritos no subitem 7.02 e 7.19 da lista anexa; IV – da demolição, no caso dos serviços descritos no subitem 7.04 da lista anexa; V – das edificações em geral, estradas, pontes, portos e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.05 da lista anexa; VI – da execução da varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer, no caso dos serviços descritos no subitem 7.09 da lista anexa; VII – da execução da limpeza, manutenção e conservação de vias e logradouros públicos, imóveis, chaminés, piscinas, parques, jardins e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.10 da lista anexa; VIII – da execução da decoração e jardinagem, do corte e poda de árvores, no caso dos serviços descritos no subitem 7.11 da lista anexa; IX – do controle e tratamento do efluente de qualquer natureza e de agentes físicos, químicos e biológicos, no caso dos serviços descritos no subitem 7.12 da lista anexa; X – (VETADO) XI – (VETADO) XII – do florestamento, reflorestamento, semeadura, adubação e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.16 da lista anexa; XIII – da execução dos serviços de escoramento, contenção de encostas e congêneres, no caso dos serviços descritos no subitem 7.17 da lista anexa; XIV – da limpeza e dragagem, no caso dos serviços descritos no subitem 7.18 da lista anexa; XV – onde o bem estiver guardado ou estacionado, no caso dos serviços descritos no subitem 11.01 da lista anexa; XVI – dos bens ou do domicílio das pessoas vigiados, segurados ou monitorados, no caso dos serviços descritos no subitem 11.02 da lista anexa; XVII – do armazenamento, depósito, carga, descarga, arrumação e guarda do bem, no caso dos serviços descritos no subitem 11.04 da lista anexa; XVIII – da execução dos serviços de diversão, lazer, entretenimento e congêneres, no caso dos serviços descritos nos subitens do item 12, exceto o 12.13, da lista anexa; XIX – do Município onde está sendo executado o transporte, no caso dos serviços descritos pelo subitem 16.01 da lista anexa; XX – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.05 da lista anexa; mínima precitada. A prática, no entanto, demonstrou não ter a referida emenda solucionado integralmente os conflitos entre os municípios. 369 XXI – da feira, exposição, congresso ou congênere a que se referir o planejamento, organização e administração, no caso dos serviços descritos pelo subitem 17.10 da lista anexa; XXII – do porto, aeroporto, ferroporto, terminal rodoviário, ferroviário ou metroviário, no caso dos serviços descritos pelo item 20 da lista anexa. § 1º No caso dos serviços a que se refere o subitem 3.04 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza, objetos de locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não. § 2º No caso dos serviços a que se refere o subitem 22.01 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de rodovia explorada. § 3º Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no local do estabelecimento prestador nos serviços executados em águas marítimas, excetuados os serviços descritos no subitem 20.01. Verifica-se que o artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003 é semelhante à norma válida para o IVA – Imposto sobre o Valor Agregado – nos países da União Européia, veiculada pelo artigo 9º da “6ª Diretiva”, que prevê um critério espacial como regra geral – “lugar onde o prestador dos mesmos tenha a sede da atividade econômica ou um estabelecimento estável a partir do qual os serviços são prestados” –, outro como regra supletiva – “na falta de sede ou de estabelecimento estável, o lugar do seu domicílio ou da sua residência habitual” –, mas estabelece várias exceções que consideram como critério espacial o local efetivo onde o serviço é prestado. 956 A nova legislação veicula norma onde existem três possibilidades distintas quanto ao critério espacial. Em primeiro lugar, como regra geral, o critério espacial será o local onde está situado o estabelecimento prestador. Em segundo, na falta de estabelecimento prestador, o critério espacial, como regra supletiva, será o local do domicílio do prestador, ou seja, o imposto municipal poderá ser exigido pelo município no qual o contribuinte possua seu domicílio tributário, cuja definição segue as regras gerais veiculadas pelo artigo 127 do Código Tributário Nacional. 957 É inequívoca a adoção, tanto na regra geral, como na supletiva, do princípio da origem, 956 957 DERZI, Mizabel de Abreu Machado. O aspecto espacial..., op. cit., p. 62. “Artigo 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal: I - quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade; II - quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento; III - quanto às pessoas jurídicas de direito público, qualquer de suas repartições no território da entidade tributante. § 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerarse-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação. § 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior.” 370 tido por alguns como economicamente mais adaptável aos mercados integrados, como é o caso do mercado interno brasileiro.958 A regra geral e a regra supletiva, portanto, são as mesmas antes existentes no artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, mas com a diferença da criação de um extenso rol de exceções, à semelhança do que dispõe a pré-citada “6ª Diretiva”, o que constitui a terceira possibilidade em relação ao critério espacial. Assim, da mesma forma como foi sustentado em relação ao Decreto-lei n° 406/68, o caput do artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003 mantém os mesmos vícios de inconstitucionalidade da regra anterior, já que estabelecimento prestador e domicílio do prestador não coincidem, necessariamente, com o local onde os serviços são concretizados. Ressalta-se, contudo, uma sensível evolução quanto aos serviços arrolados que consideram a incidência do ISS no local onde se dá a efetiva prestação dos serviços. O artigo 4º da mesma lei, por sua vez, define como estabelecimento prestador “[...] o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas”. Verifica-se a existência de dois requisitos cumulativos para que o estabelecimento seja considerado prestador e, com isso, tornar-se apto como local indicativo do critério espacial da hipótese de incidência do ISS, pois se trata de uma conjunção, operação lógica que articula dois enunciados simples mediante a utilização do conectivo “e”, resultando em um enunciado composto. Com efeito, o enunciado composto somente será verdadeiro caso os enunciados simples que o constituem também o sejam. Ou seja, o estabelecimento, para ser prestador, deve ser (a) “[...] o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário”; e simultaneamente, (b) “[...] que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizálo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas”. Em uma dada situação fática, caso não haja subsunção conjunta das condições previstas em “a” e “b”, não incide a regra jurídica que considera o local como estabelecimento prestador. Dessume-se que o critério adotado pelo artigo 4º da Lei 958 DERZI, Misabel de Abreu Machado. O aspecto espacial..., op. cit., p.65. 371 Complementar n° 116/2003, ao exigir o cumprimento da condição material da unidade econômica, acaba por não se harmonizar com o encampado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pois, nessa corte, o local da prestação identifica-se com aquele onde se dá a execução da obrigação de fazer. A amplitude semântica da expressão “unidade econômica ou profissional” abrangerá a grande maioria dos estabelecimentos que, de alguma forma, estejam vinculados à atividade desenvolvida pelo prestador de serviço. Dentre os autores que se debruçaram sobre a definição de estabelecimento prestador, constante do artigo 4º da Lei Complementar n° 116/2003, BETINA TREIGER GRUPENMACHER entende que a definição de institutos não é tarefa do legislador, mas da doutrina. Diante disso, e considerando a autorização do artigo 106, I, do Código Tributário Nacional, o dispositivo em comento seria meramente interpretativo.959 O raciocínio dessa autora parece restringir-se apenas à definição, pela lei tributária, do estabelecimento prestador, e não ao conceito de estabelecimento empresarial, dado pelo artigo 1.142 do Código Civil, pelo qual se considera “[...] estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. Com a devida vênia, entendemos que a definição de “estabelecimento prestador” constitui, na verdade, um exercício da faculdade do legislador tributário, fundamentada na exegese conjunta dos artigos 109 e 110 do Código Tributário Nacional. Nas eventuais e futuras decisões sobre o tema, já à luz da Lei Complementar nº 116/2003, caso o Superior Tribunal de Justiça entenda por manter o atual entendimento aplicável ao artigo 12, “a’, do Decreto-lei nº 406/68, deverá desconsiderar a exigência de unidade econômica ou profissional para definir quem seja o sujeito ativo, observando, apenas, o local onde é efetivamente prestado o serviço permanente ou temporário, o que é altamente criticável, pois para tanto será necessário, da mesma forma como já vinha fazendo nas decisões sobre o Decreto-lei n° 406/68, negar vigência e aplicação ao dispositivo, sem declarar-lhe a inconstitucionalidade, o que se afigura incompatível com as suas funções, conforme consta do artigo 105 da Constituição Federal. A única forma de decidir contrariamente à Lei Complementar nº 116/2003 é através de declaração de inconstitucionalidade, função que cabe precipuamente ao 959 “Artigo 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados”. GRUPENMACHER, Betina Treiger. ISS – Local..., op. cit., p. 85. 372 Supremo Tribunal Federal. Caso contrário, o Superior Tribunal de Justiça deverá rever radicalmente seu posicionamento. Com relação à regra geral, MISABEL DERZI defende que, por ser a hipótese de incidência do ISS prestar serviços – e não adquirir serviços – o contribuinte será o prestador de serviços, do que conclui não agredir a natureza do imposto municipal o fato de o legislador escolher como critério espacial da hipótese o local em que se situa o estabelecimento prestador.960 Com a devida vênia, a premissa utilizada, que é verdadeira, não permite, contudo, chegar a essa conclusão. Ora, se é verdade que o critério material da hipótese de incidência do ISS é prestar serviços, então a conclusão é a de que o critério espacial, que com aquele está umbilicalmente vinculado, somente pode ser o local onde esse serviço é prestado, pois a Constituição em nenhum momento, expressa ou implicitamente, dispôs em sentido diverso. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES também defendem a legitimidade da definição do critério espacial da hipótese de incidência do ISS como sendo o local do estabelecimento prestador, justificando, para tanto, que seria inviável conceder ao legislador municipal a liberdade de legislar sobre o tema, de acordo com suas conveniências e interesses, circunstância que seria agravada pela existência de mais de 5.500 municípios no Brasil. Diante disso, louvam a regra anterior veiculada pelo artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68.961 Quanto ao artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003, defendem, os citados autores, que, pela nova regra, restarão poucas hipóteses em que o ISS será devido no local do estabelecimento prestador dos serviços, pois embora essa tenha sido a regra geral, muitas são as exceções, constantes nos incisos I ao XXII do referido artigo, onde o critério espacial ou é o local onde os serviços são efetivamente prestados (maioria), ou onde está estabelecido o tomador dos serviços, o que seria agravado ainda pela técnica de retenção na fonte prevista no artigo 6º.962 Entende-se que, de fato, o número elevado de municípios exige uma lei de caráter nacional que harmonize as legislações municipais sobre o ISS. Isso, contudo, não autoriza o legislador complementar a estabelecer um critério espacial em ofensa ao núcleo da regra-matriz do ISS, constitucionalmente estabelecido. Por essa razão é que se 960 O aspecto espacial..., op. cit., p. 77. O ISS e a Lei Complementar n. 116/2003..., op. cit., p. 189. 962 Ibidem, p. 194. 961 373 defende que, quanto ao artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, somente a letra “b”, que define o critério espacial do ISS em relação aos serviços de construção civil, harmonizase com a Constituição Federal, pois define corretamente que esse será o local onde se efetuar a prestação. A maior parte da doutrina que se debruçou sobre o artigo 12, “a”, do Decretolei n° 406/68, teve posicionamento no sentido de ser devido o ISS no município em que está localizado o estabelecimento prestador, ainda que os serviços sejam prestados em outro município. Como bem salienta AIRES BARRETO, essa posição é respeitável porque, como se presume constitucional a lei, é necessário que o intérprete se esforce por compatibilizá-la com a Constituição. No caso do artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003, tal esforço, em princípio, parece resultar infrutífero, porque: ou a) considerase como local o do estabelecimento prestador – ou, na sua falta, o do domicílio do prestador – o que viola-se o Princípio da Territorialidade das leis tributárias; ou b) afirma-se que, não obstante a regra dispor que o local é do estabelecimento prestador, deve-se entender como sendo o local da efetiva prestação do serviço. Nessa hipótese, porém, ocorre uma interpretação em desarmonia com o texto normativo.963 Entretanto, da mesma forma como se defendeu, no item anterior, a chamada “interpretação conforme a Constituição” é o único método hermenêutico válido para compatibilizar a norma veiculada pelos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n° 116/2003 com o Texto Maior. Com efeito, dentre as várias interpretações possíveis acerca desses dispositivos, deve prevalecer aquela que manifesta compatibilidade com o contexto constitucional, o que exige concluir que a única interpretação possível será aquela que prestigie o critério espacial da hipótese de incidência do ISS, conforme a matriz constitucional desse imposto. O critério espacial da hipótese de incidência do ISS, portanto, não é outro local senão aquele onde foram os serviços prestados de forma definitiva. Para tanto, interessa onde o prestador consumou a atividade-fim, sendo irrelevante que as atividades-meio tenham ocorrido em outros municípios, ainda que necessárias à conclusão do serviço. A interpretação conforme a Constituição permite solucionar, de forma válida, os problemas da interpretação literal dos artigos 3º e 4º da Lei Complementar n° 116/2003, para concluir que o contexto constitucional exige redução semântica para a expressão “estabelecimento prestador”, a fim de que ela corresponda única e exclusivamente ao 963 ISS na Constituição..., op. cit., p. 318. 374 local em que os serviços são efetivamente prestados, consumados, conforme defende, com acerto, BETINA TREIGER GRUPENMACHER.964 Conforme se verifica do artigo 3º acima transcrito, os serviços excepcionados estão listados em rol exaustivo (numerus clausus), nos seus incisos I a XXII965, assim como nos parágrafos 1º ao 3º do mesmo artigo, para os quais a Lei Complementar n° 116/2003, fazendo remissão a itens da lista anexa à própria lei, prevê critérios espaciais específicos para cada uma das hipóteses ali mencionadas, o que exige, para uma correta interpretação, a análise individual de cada espécie de serviço. Em sua grande maioria, contudo, o critério espacial é o local da efetiva prestação dos serviços, com apenas duas hipóteses em que o serviço se considera prestado no local do estabelecimento do tomador da mão-de-obra ou, na sua falta, no local do seu domicílio. O inciso I, que trata do critério espacial do serviço prestado ou com prestação iniciada no exterior, será analisado após os demais. Nos serviços previstos nos incisos II966, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXII, por serem necessariamente prestados fora do estabelecimento prestador, o legislador entendeu por bem considerar o serviço prestado no local em que se deu a respectiva prestação, como é o caso, por exemplo, das obras de construção civil, serviços de demolição, limpeza, coleta de lixo etc. No caso do fornecimento de mão-de-obra, previsto no inciso XX, a lei considera o serviço prestado no estabelecimento do respectivo tomador, ou, na sua falta, no local de seu domicílio. A justificativa, quer parecer, deve-se ao fato de, que nesses casos, o trabalhador terceirizado presta serviço no local do estabelecimento do tomador. No entanto, tais razões são inconsistentes, pois o local da prestação de serviços da empresa – fornecimento da mão-de-obra – não se confunde com o local onde os trabalhadores desenvolverão suas atividades. O mesmo raciocínio aplica-se ao inciso XXI, que trata do serviço de “planejamento, organização e administração de feiras, exposições, 964 ISS – Local..., op. cit., p. 84-85. Os incisos X e XI do artigo 3º da Lei Complementar n. 116/2003, assim como os itens equivalentes 7.14 (saneamento ambiental, inclusive purificação, tratamento, esgotamento sanitário e congêneres) e 7.15 (tratamento e purificação de água) da lista anexa, foram vetados pelo Presidente da República quando submetidos à sua sanção. Conforme as razões do veto, a incidência do ISS sobre tais serviços não atende ao interesse público. 966 O serviços de que trata o inciso II são os descritos no subitem 3.05 da lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003: “Cessão de andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas de uso temporário”. Por se caracterizarem como atividades que se exercem mediante a cessão de direitos, configuram execução de obrigação “de dar”, e não “de fazer”, pelo que não sofrem a incidência do ISS. 965 375 congressos e congêneres”, listado no subitem 17.10, pois nem sempre o local da feira, exposição, congresso, será o mesmo local onde se dá a prestação desses serviços.967 O § 2º, do artigo 3º, da Lei Complementar n° 116/2003, à semelhança do que já previa o § 4º do artigo 9º do Decreto-lei n° 406/68, incluído pela Lei Complementar n° 100/99, estabelece que, nas concessões ao setor privado, do serviço de exploração de rodovias mediante a cobrança de pedágio dos usuários, o critério espacial do ISS, de forma equânime, é o território de cada município onde haja extensão de rodovia explorada. Os serviços executados em águas marítimas, conforme prevê o § 3º do artigo 3º, consideram-se ocorridos no local do estabelecimento prestador, excetuados os serviços descritos no subitem 20.01, os quais serão devidos no local onde os serviços foram prestados.968 No entanto, quando serviços forem prestados em área marítima, não haverá vinculação, nesse local, com nenhum município, não sendo, portanto, exigível nenhum imposto em tais hipóteses. Mas, em razão da grande abrangência das exceções previstas no subitem 20.01, pouco ou quase nada restará para a regra.969 Por outro lado, a Lei Complementar n° 116/2003, ainda que estabeleça ser o prestador do serviço o contribuinte (artigo 5º), em seu artigo 6º, facultou aos municípios a instituição da sistemática da retenção do ISS na fonte pelos tomadores dos serviços: Artigo 6º Os Municípios e o Distrito Federal, mediante lei, poderão atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação, inclusive no que se refere à multa e aos acréscimos legais. § 1o Os responsáveis a que se refere este artigo estão obrigados ao recolhimento integral do imposto devido, multa e acréscimos legais, independentemente de ter sido efetuada sua retenção na fonte. § 2o Sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, são responsáveis: I – o tomador ou intermediário de serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País; II – a pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária dos serviços descritos nos subitens 3.05, 7.02, 7.04, 7.05, 7.09, 7.10, 7.12, 7.14, 7.15, 7.16, 7.17, 7.19, 11.02, 17.05 e 17.10 da lista anexa. 967 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 319. “Serviços portuários, ferroportuários, utilização de porto, movimentação de passageiros, reboque de embarcações, rebocador escoteiro, atracação, desatracação, serviços de praticagem, capatazia, armazenagem de qualquer natureza, serviços acessórios, movimentação de mercadorias, serviços de apoio marítimo, de movimentação ao largo, serviços de armadores, estiva, conferência, logística e congêneres”. 969 BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição..., op. cit., p. 319. 968 376 Sem prejuízo da faculdade atribuída aos municípios de instituir a retenção na fonte a cargo do tomador, o § 2º do mesmo artigo 6º, como norma destinada aos legislativos municipais com o modal deôntico “obrigatório”, estende imperativamente a sujeição passiva pelo pagamento do tributo, também na modalidade da retenção na fonte, ao tomador ou intermediário dos serviços importados (inciso I) e à pessoa jurídica, ainda que imune ou isenta, tomadora ou intermediária de vários serviços (inciso II), cuja maioria coincide com os previstos nos incisos constantes do artigo 3º. No entanto, dentre os serviços constantes nos incisos do artigo 3º, e que, portanto, têm como critério espacial o local da efetiva prestação dos serviços, não estão sujeitos à retenção obrigatória na fonte os seguintes serviços: “decoração e jardinagem, inclusive corte e poda de árvores” (inciso VIII e item 7.11 da lista); “limpeza e dragagem de rios, portos, canais, baías, lagos, lagoas, represas, açudes e congêneres” (inciso XIV e item 7.18); “guarda e estacionamento de veículos terrestres automotores, de aeronaves e de embarcações” (inciso XV e item 11.01); “armazenamento, depósito, carga, descarga, arrumação e guarda de bens de qualquer espécie” (inciso XVII e item 11.04); “serviços de diversões, lazer, entretenimento e congêneres” (inciso XVIII e item 12, exceto o item 12.13); “serviços de transporte de natureza municipal” (inciso XIX e item 16.01) e “serviços portuários, aeroportuários, ferroportuários, de terminais rodoviários, ferroviários e metroviários” (inciso XXII e item 20). O serviço de “acompanhamento e fiscalização da execução de obras de engenharia, arquitetura e urbanismo” (item 7.19 da lista), não consta dentre as exceções do artigo 3º, mas está sujeito obrigatoriamente à retenção na fonte pelo seu respectivo tomador. Os municípios, em cujo respectivo território sejam prestados os serviços para os quais a Lei Complementar nº 116/2003 considera como critério espacial o local da efetiva prestação, terão dificuldades maiores quando houver obrigatoriedade de retenção pelo tomador e esse for pessoa física. É que nesses casos as leis municipais não obrigam à manutenção de escrituração contábil ou fiscal ou à inscrição em cadastro municipal. Caso não se adote uma solução eficaz, de nada adiantará nomear o tomador pessoa física como substituto tributário. Como resultado, um prestador de serviço não estará obrigado a recolher o ISS ao município onde está estabelecido, assim como poderá facilmente fugir à tributação no município onde o serviço seja prestado. É certo que a Lei Complementar nº 116/2003 trouxe avanços, em especial pelo vasto rol de exceções em que o critério espacial coincide com o implícito no núcleo da regra-matriz constitucional, tornando reduzida, na prática, a regra geral que considera o 377 estabelecimento prestador como o local da prestação dos serviços. Noutro giro, a sistemática da retenção na fonte certamente será objeto de abuso por algumas municipalidades, no sentido de atribuir-se a todo e qualquer tomador, estabelecido em seu território, a responsabilidade pela retenção do ISS, ainda que se trate de serviço cujo critério espacial é o local onde está o estabelecimento prestador. Nesses casos, a instituição do tomador como substituto tributário será inconstitucional, pois tais sujeitos passivos não estarão vinculados ao mesmo critério espacial a que estão submetidos os contribuintes. Essa exigência, que é ditada de forma implícita pela Constituição, está expressamente contida no artigo 128 do Código Tributário Nacional, norma geral que permite à lei atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, mas desde que “[...] vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação [...]”. Ora, se o critério espacial é da hipótese de incidência, então a atribuição de responsabilidade tributária, no caso do ISS, para os serviços prestados fora do município onde está o estabelecimento prestador, está sujeita a essa regra. Com efeito, as únicas hipóteses válidas de atribuição de responsabilidade ao tomador, por meio da retenção na fonte, serão: (a) quando o tomador estiver situado no mesmo município em que se verifique o critério espacial para aquele serviço específico; e (b) quando, obviamente, o serviço seja prestado em município onde estejam situados tomador e prestador. Com exceção desses dois casos, a figura do substituto tributário será violadora, tanto da Constituição, como do Código Tributário Nacional. Certamente haverá muitos casos de bitributação, fruto de uma indevida interpretação da nova norma, o que forçará os prejudicados a ingressarem em juízo para que o Poder Judiciário solucione a questão. Em relação aos serviços provenientes do exterior do País ou cuja prestação tenha iniciado no exterior do País, o inciso I do artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003, prevê que o local da prestação será o “[...] do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado [...]”. Complementando a regra, o artigo 6º, § 2º, I, da mesma lei, elege o tomador como sujeito passivo, na condição de responsável, ou seja, ao tomador residente foi atribuída a posição de substituto tributário. Como conseqüência, o prestador, residente ou nãoresidente, figura como substituído tributário, não participando, portanto, da relação jurídica tributária. 378 No entanto, a incidência do ISS sobre os serviços prestados ou com início de prestação no exterior têm suscitado forte polêmica. De um lado, parte da doutrina entende que o ISS sobre tais serviços é constitucional tendo em vista que a própria Constituição, no artigo 156, § 3º, II, teria encampado o princípio do destino, ao remeter à lei complementar a faculdade de excluir da incidência do ISS as exportações de serviços para o exterior. Nesse sentido é o entendimento de HELENO TAVEIRA TÔRRES, autor que destaca essa como uma das principais inovações jurídicas trazidas pela nova lei complementar. Com base nisso, defende que o dispositivo não é inconstitucional, tendo como único agravante o surgimento de mais um imposto a onerar os serviços prestados por não-residentes, além do Imposto sobre a Renda, PIS, COFINS e a CIDE-tecnologia.970 O autor adverte que os serviços prestados por não-residentes podem ser puros ou vir acompanhados de transferência de tecnologia, o que exige, em cada caso, tributação compatível com a natureza do serviço e com a espécie de contrato de propriedade industrial, conforme prevê a legislação e os tratados internacionais aplicáveis. Quer o autor consignar que a precisa definição da natureza dos contratos de serviços e da transferência de tecnologia é fundamental para identificar quando o fato tributário do ISS estará consumado.971 Acrescenta que não basta, tão-somente, a circunstância de o tomador estar estabelecido ou domiciliado no território do município, para que este tenha competência em relação a essa modalidade de incidência do ISS, elegendo aquele como sujeito passivo, na condição de responsável tributário. Diante do que prevê o artigo 5º da Lei Complementar n° 116/2003 – “Contribuinte é o prestador do serviço” – o sujeito passivo natural do ISS é o sujeito que realiza o ato pertinente ao fazer que se oferece à incidência material. A matriz constitucional do ISS somente autorizaria o exercício de competência pelo município caso o serviço prestado, por residente ou não-residente, possa ter a respectiva materialidade vinculada ao seu território.972 Assim, quando o serviço tivesse sua prestação iniciada no exterior, a incidência do ISS estaria condicionada à sua consumação no território da pessoa política 970 Prestações de serviços provenientes do exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 281. 971 Ibidem, p. 281-282. 972 Ibidem, p. 284. 379 tributante. O serviço prestado exclusivamente no exterior, ainda que por residentes, não se subsumiria à hipótese de incidência do ISS. Conclui que: o tomador de serviços (residente) somente pode ser definido como responsável pelo débito do imposto (artigo 6º, § 2º, I), mas exclusivamente quando, previamente, se tenha por aperfeiçoada a relação jurídica obrigacional, entre Município do local do domicílio do tomador e o sujeito não-residente, a partir do fato jurídico tributário consubstanciado num evento qualificado na lista de serviços, concluído pelo efetivo contribuinte no território nacional, ou melhor, no território do respectivo Município, mesmo que se tenha iniciado no exterior.973 O posicionamento de MISABEL DERZI também é pela legitimidade da nova exação, tendo o novo diploma aplicado o princípio do destino na importação de serviços, a exemplo da 6ª Diretiva na União Européia, norma que prevê várias exceções, em que a arrecadação do IVA cabe aos países onde o destinatário do serviço tenha a sede de sua atividade econômica ou um estabelecimento estável. Lembra a autora que, em recente consulta feita pela Comissão Européia às partes interessadas, aprovou-se a meta de abandonar o princípio da origem como regra geral – local do estabelecimento prestador – nas prestações de serviços envolvendo mais de um país, em favor do princípio do destino – local onde ocorre o efetivo consumo do serviço – que, na maior parte dos casos, coincide com o do estabelecimento tomador. O princípio do destino, para a autora, seria característico dos mercados não integrados, onde o usual é a desoneração das exportações e a incidência nas importações. O principal argumento é que, nas relações internacionais, seria mais coerente que o produto arrecadado com o imposto beneficie o país onde o serviço é prestado e, portanto, consumido, por ser ele que lhe suporta o ônus.974 Afirma ainda que a incidência do ISS nas importações não tem nenhum objetivo protecionista, mas visa assegurar a isonomia e a eqüidade entre os mercados não completamente integrados, assim como garantir que os produtos e serviços exportados cheguem ao país de destino desonerados da carga tributária.975 Em sentido contrário, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO sublinha que não há amparo constitucional para exigir o ISS relativamente a serviço proveniente do exterior ou em que ele tenha sido iniciado no exterior. Como fundamento, defende o autor que o ISS não está entre as hipóteses para as quais a Constituição prevê incidência 973 Ibidem, p. 284-285. O aspecto espacial..., op. cit., p. 65-66. 975 Ibidem, op. cit., p. 68. 974 380 tributária sobre fatos, estados, negócios e situações ocorridas no exterior, ou delas decorrentes, como é o caso do Imposto de Renda, ICMS e Imposto de Importação. 976 O raciocínio do autor foi acatado ainda por BETINA TREIGER GRUPENMACHER, porém somente no que tange aos serviços provenientes do exterior, ou seja, consumados fora do país. Quanto aos que tenham sido iniciados no exterior, mas ultimados em território nacional, o ISS será devido, para a autora, no município onde a prestação de serviço se concretizou.977 Semelhante é o posicionamento de AIRES BARRETO, o qual defende que somente a prestação de serviços integralmente proveniente do exterior se afigura inconstitucional, pois se o ISS incide no local da prestação, a incidência é impossível fora do território nacional. O mesmo não ocorreria, para o autor, no caso dos serviços iniciados no exterior e aqui consumados.978 Para CLÉLIO CHIESA, o legislador complementar ampliou a incidência do ISS para alcançar materialidade diversa daquela autorizada constitucionalmente. Ressalta que a materialidade possível do ISS é “prestar serviços” e não “tomar serviços”. Refuta a argumentação de que o evento submetido à tributação continua sendo a prestação de serviços, e que apenas estaria ocorrendo uma modificação do sujeito passivo. Com propriedade esclarece que, “[...] na substituição tributária, o regime jurídico que rege o dever do substituto em relação à obrigação do substituído é o desse e não o daquele” [sic]. A nova lei ignora o regime do prestador (substituído), atribuindo ao tomador a obrigação de reter o ISS quando do pagamento ao prestador, o que denunciaria que o evento tributado não é o ato de prestar serviços, mas o de tomar serviços provenientes do exterior.979 A nova legislação, para o autor, teria indevidamente autorizado a instituição de ISS sobre a importação de serviços, avançando os limites autorizados pela Constituição, por três razões: primeiro, porque teria autorizado a tributar fato que não se perfaz integralmente no território nacional. Segundo, porque a materialidade possível do ISS é “prestar serviços” e não “importar serviços”, sob pena de ofensa ao princípio da tipicidade. Terceiro, porque a importação de serviços é fato que se insere na competência residual da União, nos termos do artigo 154, I, da Constituição.980 976 Inconstitucionalidades..., op. cit., p. 303-305. ISS – Local..., op. cit., p. 75. 978 ISS na Constituição..., op. cit., p. 322. 979 Inconstitucionalidades da LC n. 116/2003. In: TÔRRES, Heleno Taveira (coord.). Imposto sobre serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/2003 e na Constituição, p. 333-334. 980 Ibidem, p. 334. 977 381 A inconstitucionalidade da incidência do ISS na importação de serviços afigura-se mais flagrante em razão da necessidade de que o regime jurídico a ser aplicado em casos de substituição tributária obrigatoriamente seja o do substituído, e não o regime do substituto. Isso é lógico, quando lembramos que o substituído, por estar na condição de devedor de tributo alheio, deverá pagar exatamente o que deveria o substituído caso a relação de substituição não houvesse sido adotada pela lei, ou seja, o tributo é calculado nas condições pessoais do substituído. Assim, por exemplo, se o substituído tem direitos como imunidade, isenção, desconto, remissão, anistia etc, o substituto exercitará tais direitos na mesma medida. 981 SIMONE RODRIGUES DUARTE COSTA também defende, com procedência, que a incidência do ISS na importação de serviços viola o Princípio da Territorialidade, pois o fato tributário, nessa hipótese, ocorre integralmente no exterior.982 A Lei Complementar n° 116/2003 também disciplinou, em relação ao ISS, o tema da exportação de serviços. Investigando o capítulo destinado ao Sistema Tributário Nacional, encontramos no inciso III do artigo 151 da Constituição, um dispositivo que veicula regra pela qual “É vedado à União [...] instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”, ou seja, a União Federal está impedida de instituir as chamadas isenções heterônomas. Mais adiante, o inciso II, § 3º, do artigo 156 da Lei Maior, na redação dada pela Emenda Constitucional n° 37, de 12 jun. 2002, dispõe que, em relação ao ISS, “cabe à lei complementar excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior”. Os dispositivos parecem inconciliáveis, tendo em vista o teor literal de um estar em sentido diametralmente oposto ao do outro. Enquanto o primeiro estabelece uma vedação expressa, tendo como destinatário a União Federal, o segundo outorga competência ao legislador complementar para desonerar as exportações de serviços para o exterior do ISS. A razão para a antinomia estaria em que ambas as regras teriam como destinatário o Congresso Nacional, órgão legislativo da União Federal, sendo que na primeira hipótese a vedação é em relação à lei ordinária, e na segunda, a competência facultativa deve ser exercida por lei complementar. Como já se demonstrou, quando da análise do princípio federativo, na federação brasileira convivem de forma harmônica a ordem jurídica global, inerente 981 ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires Fernandino. Substituição e Responsabilidade Tributária, Revista de Direito Tributário, n. 49, p. 75. 982 ISS..., op. cit., p. 146-147. 382 ao Estado Brasileiro, ou, de outra forma, à República Federativa do Brasil, e as ordens jurídicas parciais. As ordens jurídicas parciais subdividem-se em: uma ordem jurídica parcial central, resultante do vínculo de todas as ordens parciais, razão pela qual recebeu a denominação de União Federal – artigo 18 da Constituição Federal –, ordens jurídicas parciais periféricas, denominadas de estados-membros e ordens jurídicas parciais locais, representadas pelos municípios.983 O Estado brasileiro é pessoa de direito público internacional, resultado da soma das ordens jurídicas parciais, enquanto que a União é a pessoa de direito público interno, que se constitui do vínculo entre as ordens jurídicas parciais. Esse raciocínio, originado em KELSEN, é defendido, entre outros, por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES 984, ROQUE ANTONIO CARRAZZA985 e SACHA CALMON NAVARRO COELHO986. HELENO TAVEIRA TÔRRES também se posiciona no mesmo sentido, esclarecendo que a União, na qualidade de pessoa de direito público internacional, não sofre os limites do princípio federativo, tendo em vista que, nessa condição, está exercendo, com exclusividade, a soberania nacional, devendo, no entanto, obediência aos princípios constitucionais que informam sua atuação, como os que disciplinam os direitos humanos e as relações internacionais, por exemplo.987 Na verdade, é mais apropriado dizer que a pessoa de direito público externo é o Estado brasileiro, o qual é representado pela União Federal, posto que ela, em si mesma, é apenas a pessoa política interna, que coexiste com os demais entes federados em regime de igualdade. Dessarte, a União desempenha, no ordenamento jurídico, duas relevantes funções. Uma, quando atua em nome próprio – é a União propriamente dita – e outra quando representa a República Federativa do Brasil, “emprestando” a sua estrutura político-administrativa. O Congresso Nacional, portanto, edita tanto leis do Estado brasileiro como da própria União. No primeiro caso, a norma veiculada é de âmbito nacional, e no segundo, apenas federal. Conforme examinamos, as leis nacionais não se confundem com as leis complementares, assim como as leis federais não são necessariamente leis ordinárias.988 983 Vide supra, item 2.1.1. Lei Complementar..., op. cit., p. 64-66. 985 Curso..., op. cit., p. 126. 986 Curso..., op. cit., p. 96. 987 Prestações de serviços..., op. cit., p. 296. 988 Vide supra, item 2.2. 984 383 Apesar de as leis nacionais e federais possuírem o mesmo âmbito territorial de validade, seus destinatários não são os mesmos. As leis nacionais destinam-se a todas as pessoas políticas, inclusive à própria União, caracterizando-se, regra geral, como normas de estrutura, ou seja, “normas sobre normas”, porque destinadas aos legisladores da União, estados, Distrito Federal e municípios. As leis federais, que em geral são normas de conduta, vinculam somente a União Federal, assim como seus jurisdicionados. No âmbito tributário, os compromissos assumidos, no plano internacional, de forma soberana, pela União, na qualidade de representante do Estado brasileiro, suplantam as regras que repartem a competência tributária entre os entes políticos, desde que tal ocorra tendo em vista a proteção de interesses de cunho nacional, prestigiados constitucionalmente. Não há, nesses casos, conflito de competência, por força da soberania que pressupõe a edição dessas normas. O artigo 98 do Código Tributário Nacional, de forma didática, prevê que “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. É óbvio que não há aqui nenhuma inovação jurídica trazida pelo legislador infraconstitucional, pois, como se demonstrou acima, a supremacia do Estado brasileiro decorre diretamente da Lei Maior. Conclui-se, portanto, que não há incompatibilidade entre a regra do artigo 151, III, da Constituição Federal, com o dispositivo previsto no artigo 156, § 3º, II, também da Constituição, pois as pessoas jurídicas a que se destinam tais normas não são as mesmas. A vedação prevista na primeira regra tem a União Federal como destinatária, pessoa de direito público interno, e a autorização constante da segunda regra dirige-se ao Estado brasileiro. Quem ratifica nossas afirmações é CLÉLIO CHIESA, o qual acrescenta, com proveito, que a faculdade prevista no artigo 156, § 3º, II, da Constituição, é uma competência especial atribuída ao Estado brasileiro para conceder isenções, que objetivam proteger interesses nacionais relevantes, interesses que transcendem os das ordens jurídicas parciais, sem que disso possa resultar qualquer ofensa aos princípios do Federalismo e da Autonomia Municipal. Adverte o autor, no entanto, que, somente em casos excepcionais, está o Estado brasileiro autorizado a editar regras destinadas a proteger os interesses da ordem jurídica total, como se dá na hipótese de conflito entre os interesses nacionais e os interesses das ordens jurídicas parciais. Em verdade, nessas 384 circunstâncias, mais do que um poder, o Estado brasileiro tem o dever de editar as regras necessárias à preservação do ordenamento jurídico.989 A competência, atribuída ao Estado brasileiro, para instituir desonerações e normas gerais tributárias configura, lato sensu, uma exceção ao sistema de repartição de competências tributárias, e como tal, deve ser interpretada restritivamente, somente sendo legítimo o exercício dessa prerrogativa caso seja absolutamente necessário para proteger interesses nacionais relevantes, e desde que o exercício dessa competência respeite as demais diretrizes constitucionais.990 HELENO TAVEIRA TÔRRES, em relação ao ISS, defende que a interpretação que melhor se coaduna com a realidade normativa e constitucional brasileira é no sentido de que qualquer que seja a espécie de benefício fiscal – como isenção ou deduções, por exemplo – concedido por meio de convenção internacional, “[...] torna-se, tal norma, cogente e plenamente vinculante para o Município quanto ao reconhecimento da isenção, conforme pactuado”.991 Ou seja, esse autor parece defender que todo e qualquer benefício fiscal é válido, desde que concedido pelo Estado brasileiro. Em sentido contrário, CLÉLIO CHIESA, para quem a competência para desonerar não se estende a toda e qualquer prestação de serviço, mas somente àquelas que se destinem ao exterior, em razão de que tal técnica objetiva utilizar a tributação como controle das importações e exportações. A finalidade é, com efeito, eminentemente extrafiscal. O controle da tributação no comércio exterior, visando direcionar condutas, ou seja, variar a carga tributária para interferir nas exportações de serviços, não pode, diz o autor, ser transferida aos municípios, mas ao Estado brasileiro, posto os interesses envolvidos, de caráter nacional, suplantarem os interesses regionais. Esse parece ser o raciocínio mais coerente com o contexto constitucional, pois privilegia uma interpretação nitidamente sistemática da questão.992 Em nível infraconstitucional, o artigo 156, § 3º, II, da Constituição foi disciplinado pelo artigo 2º, I, da Lei Complementar n° 116/2003, o qual prevê que “O imposto não incide sobre [...] as exportações de serviços para o exterior do País” e o parágrafo único do mesmo artigo 2º estabelece que “Não se enquadram no disposto no 989 O imposto sobre serviços de qualquer natureza e aspectos relevantes da Lei Complementar nº 116/03. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 60-61. 990 Ibidem, p. 62-63. 991 Prestações de serviços..., op. cit., p. 297. 992 O imposto sobre serviços..., op. cit., p. 64. 385 inciso I os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior”. Da análise do dispositivo percebe-se facilmente que não houve nenhum condicionamento quanto à necessidade de assegurar valores nacionais por meio desse benefício fiscal. Entendemos que o Congresso Nacional somente poderia conceder isenções de ISS, nos serviços prestados para o exterior, nas hipóteses em que se caracterizasse a existência de relevante interesse nacional em incentivar o aumento das exportações, e desde que tal desoneração não viole a Autonomia Municipal, conforme bem defende CLÉLIO CHIESA, que, com base em tais relevantes argumentos, conclui não ter o artigo 2º, I, da Lei Complementar n° 116/2003, respeitado esses parâmetros, pois toda e qualquer prestação de serviço destinada ao exterior foi contemplada com a isenção. 993 Por outro lado, registre-se que a não-incidência veiculada pela Lei Complementar 116/2003, é exemplo inequívoco de isenção, e não imunidade, uma vez que a não-incidência de ISS para os serviços exportados para o exterior não está prevista na Constituição. A Lei Maior somente estabeleceu o aspecto formal a ser observado pela lei que efetivamente viesse a instituir a isenção. A norma constitucional não cria nenhuma desoneração tributária porque é regra constitucional de eficácia limitada. A opção em desonerar tais serviços somente se efetivou pela pessoa do legislador complementar. Enfim, a não-incidência do ISS em comento constitui-se em isenção, lastreada em dispositivo constitucional de eficácia limitada. Com base nesses argumentos, entendemos ser constitucional a restrição veiculada no parágrafo único do artigo 2º, não tendo a Lei Complementar 116/2003, nessa parte, extrapolado sua função de regulamentar a Constituição, pela razão de que, não instituindo a desoneração, a Constituição remeteu ao legislador complementar a competência para decidir pela estrutura da norma isentiva. Com efeito, a circunstância de a lei exigir que o resultado do serviço se concretize no exterior não padece de inconstitucionalidade, pois esse parece ser o entendimento que melhor se coaduna com o Princípio da Isonomia, pois confere igual tratamento para todos os prestadores cujos serviços sejam concretizados e utilizados em território nacional. Ao contrário, a isonomia seria violada se a não-incidência permanecesse no caso de serviços cuja vinculação com o exterior se restringisse, tão-somente, ao pagamento feito por residente no exterior. Por outro lado, a lei complementar é coerente 993 Ibidem, p. 64-65. 386 com a finalidade constitucional, pela qual só deve existir desoneração de ISS na efetiva exportação de serviços, tendo em vista as benesses maiores para a economia nacional. 994 5.7 A REGRA DO DOMICÍLIO DO PRESTADOR Nos casos onde o serviço é prestado através de um estabelecimento prestador, não há dificuldades em reconhecer o município competente para tributar a respectiva prestação, pois, nesses casos, mediante a utilização da interpretação conforme a Constituição, incidirá a regra geral prevista no artigo 3º da Lei Complementar n° 116/2003, o que resultará na devida observância do núcleo constitucional da regramatriz de incidência do ISS e, em conseqüência, de seu critério espacial. Entretanto, a situação de maior complexidade ocorre em casos nos quais, embora existente um estabelecimento potencialmente prestador – ou seja, o estabelecimento é do prestador, e não prestador – o mesmo não se constitui em instrumento para a prestação de certos serviços, os quais seriam consumados independentemente de sua existência e, cumulativamente, em município diverso do local onde está o mencionado estabelecimento, ou ainda o domicílio do prestador. O mesmo acontece nas hipóteses em que não há nenhum estabelecimento do prestador, mas apenas o seu domicílio tributário. É que nada impede que um serviço seja prestado sem que seja necessário um estabelecimento como meio para tanto. Nessa hipótese incluir-se-iam não só os serviços exclusivamente intelectuais, como também aqueles em que o concurso de bens materiais – insumos ou equipamentos – é irrelevante ou secundário.995 No problema proposto, a regra subsidiária para a falta de estabelecimento, tanto na legislação anterior como na atual, desloca a competência para o município onde está localizado o domicílio do prestador, sendo irrelevante o fato de o serviço ter sido prestado em município diverso. Diante do que temos defendido até aqui, a única conclusão válida parece ser a de que esse dispositivo está em flagrante contradição com a matriz constitucional do ISS, de onde se extrai que o critério espacial da hipótese de 994 MUSSOLINI JÚNIOR, Luiz Fernando. As exportações de serviços e o ISSQN. Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 56, p. 137-139. 995 JUSTEN FILHO, Marçal. ISS no tempo..., op. cit., p. 67. 387 incidência, por estar vinculado ao critério temporal, só poderia indicar o local em que se consumou a prestação do serviço. Como exemplo, pode-se citar um serviço prestado por um advogado estabelecido em Curitiba-PR, consubstanciado na obrigação de protocolar uma petição no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF, para um cliente domiciliado ou estabelecido em São Paulo-SP. Como se vê, o exemplo envolve três municípios diferentes. A definição do local onde deverá ser recolhido o ISS, nesse caso, terá como solução a percepção das diferenças entre as atividades-meio e a atividade-fim. Com efeito, é comum a confusão, pelos leigos, do exercício de atividades-meio com a efetiva prestação de serviço (atividade-fim), juridicamente considerada, devido à não distinção da consistência do esforço humano prestado a outrem, sob o regime de Direito Privado e com conteúdo econômico, das ações intermediárias que tornam possível o “fazer para terceiros”. No exemplo dado, caso a prestação contratual se esgote com a simples protocolização da peça processual no respectivo balcão do tribunal, sem a necessidade de sua comprovação junto ao cliente, não restam dúvidas de que o ISS deverá ser recolhido em Brasília-DF, pois é onde o serviço foi efetivamente consumado, ainda que etapas anteriores e necessárias à sua consumação tenham sido realizadas em local diverso. No entanto, caso o cumprimento do contrato exigisse, além do simples protocolo, a sua comprovação junto ao tomador, o município competente para exigir o recolhimento do ISS seria aquele onde ocorresse, efetivamente, esse fato, o que poderia ocorrer em Curitiba, no escritório do advogado, ou em São Paulo, onde está localizado o cliente/tomador, tudo a depender do local exigido pelo contrato para essa comprovação. É que a tributação atinge o esforço humano prestado a terceiros como fim ou objeto, e não as suas etapas intermediárias, necessárias à obtenção do fim. Essas, as etapas, são realizadas para o próprio prestador, e não para terceiros, os quais somente as aproveitam de forma indireta e mediata, por se beneficiarem das condições que tornaram possível o resultado final. Somente a atividade-fim tem relevância jurídica para o ISS, pois só ela é qualificável como serviço tributável.996 O fato de o cliente estar sediado no município de São Paulo é irrelevante, pois a materialidade do ISS é a prestação de serviços, e não a sua utilização pelo tomador. Como já demonstrado, ainda que a Constituição não preveja explicitamente a expressão 996 BARRETO, Aires Fernandino. ISS – Atividade-Meio..., op. cit.,p. 83. 388 “prestar serviços”, resulta de seu contexto que só é tributável a prestação de um serviço, e não o seu consumo, fruição, ou utilização, o que cabe ao tomador do serviço. 997 Quando a Constituição, ao distribuir as competências tributárias, descreve uma materialidade, está se referindo à pessoa produtora do fato, conforme adverte AIRES BARRETO, pois o consumidor, como tomador do serviço, nem sempre, nem necessariamente revela qualquer capacidade contributiva, como é o caso da pessoa que tem que recorrer, por exemplo, a um advogado ou a um médico.998 Como já vimos, anteriormente, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em qualquer caso, tem sido no sentido de considerar ocorrido o fato tributário do ISS no município em que o serviço foi efetivamente prestado. Um dos argumentos invocados contra esse posicionamento é o de que a arrecadação, em todo o território nacional, seria muito complexa, diante da existência de mais de 5.500 municípios.999 Nessa ocasião, AIRES BARRETO demonstra que essa alegação, sobre não ser jurídica, nem mesmo é verdadeira, pois nada impede que as leis municipais criem norma estabelecendo a responsabilidade solidária entre prestador e tomador dos serviços, ou seja, o tomador seria responsável de forma solidária pelo pagamento do imposto, sempre que não lograsse comprovar o recolhimento do tributo no município onde o serviço foi efetivamente prestado.1000 Defende, ainda, com acerto, que “[...] problemas de ordem prática não podem atropelar a Constituição”.1001 A complexidade da questão alusiva aos serviços intelectuais e/ou prestados sem a utilização de um estabelecimento prestador levou a melhor doutrina a sucumbir ao entendimento pela aplicação da regra do domicílio do prestador, servindo, como justificativa, a inviabilidade de fiscalização e cobrança do ISS no município onde o serviço tenha sido efetivamente prestado. MARÇAL JUSTEN FILHO, após concluir não haver uma solução precisa e definida no tocante a serviços preponderantemente intelectuais, afirma haver “[...] forte apoio para solucionar a questão pelo critério do domicílio do prestador do serviço”, apesar de não ter consignado qual seria a fundamentação científica para demonstrar o acerto de sua assertiva. 1002 Em sentido 997 Vide supra, subitem 4.3.1. ISS na Constituição..., op. cit., p. 32. 999 MARTINS, Ives Gandra da Silva; RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. O ISS e a Lei Complementar nº 116/2003 – Aspectos Relevantes. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). O ISS e a LC 116, p. 189-190. 1000 ISS – Conflitos..., op. cit., p. 13. 1001 ISS na Constituição..., op. cit., p. 334. 1002 ISS no tempo..., op. cit., p. 69. 998 389 semelhante, AIRES BARRETO, após defender que “[...] o equacionamento dessas questões deve dar-se também pelo exame do aspecto espacial da hipótese de incidência do ISS”, conclui que, seja considerando a regra do domicílio, seja entendendo que o ISS é devido no município em que os serviços forem prestados, “[...] o certo é que ambas as posições conduzirão à mesma conclusão: o imposto será devido no Município em que domiciliadas as pessoas prestadoras de serviço para o tomador, porque ali, a um só tempo, a) estará situado o domicílio do prestador e, b) concomitantemente, ali e só ali, serão prestados os serviços respectivos”.1003 Nesse trecho, quer parecer ter o autor afirmado que, em todos os casos em que não há um estabelecimento, o ISS incide no local do domicílio do prestador. Mais adiante, afirma que, “[...] inexistindo estabelecimento prestador, a regra é a de que o ISS será devido, no lugar (Município) em que essas pessoas estiverem domiciliadas, desde que ali prestem os serviços”. Já nesta parte, o autor excepciona de sua afirmação anterior os serviços que não forem prestados no mesmo município onde está situado o domicílio, o que parece encerrar, com a devida vênia, franca contradição, que se comprova em outra afirmação, consignada logo em seguida: Deveras, a efetiva prestação dos serviços dar-se-á nos Municípios em que ultimarem, concretizarem, o serviço. O que só ocorrerá no Município em que mantêm seus domicílios (ou o centro de suas atividades). [...] Em assim sendo, restará induvidoso que esse ‘fazer’ completar-se-á apenas no domicílio do prestador ou no centro de seus negócios. [...] Só aquele Município em que domiciliado o prestador inscrito será competente para exigir o ISS por ele devido, porque, a um só tempo, a) os serviços só nele serão prestados e b) nele também – e só nele – estará localizado o domicílio que realiza aquele ‘ato do devedor’ (no qual a prestação de serviço consiste). O ISS é devido no lugar (Município) em que a atividade (facere) é exercida, concretizada e concluída. Só não incidirá ISS no Município em que domiciliados os autônomos no caso de a prestação ultimar-se em Município diverso. [...] Não nos parece que o mecânico autônomo, que atua na própria casa e que é chamado para socorrer motorista cujo carro quebrou na rua qualquer de outro Município possa ser chamado a recolher o ISS no Município onde isso ocorreu, se diverso do seu domicílio.1004 Em que pese os argumentos desse renomado mestre, não se pode concordar com suas conclusões. No exemplo dado, caso o mecânico cumpra com sua obrigação no local onde está o carro, ou seja, em município diverso de onde está domiciliado, foi ali que a prestação de serviço se consumou. Com o devido respeito, não se vislumbra, também nesses argumentos, uma demonstração científica segura que possa sustentar o raciocínio expendido. 1003 ISS na Constituição..., op. cit., p. 341. 390 De tudo quanto até aqui foi exposto, não há como negar a existência de dificuldades na fiscalização e na cobrança do ISS, nas hipóteses de serviços meramente intelectuais, ou seja, prestados sem a intermediação de um estabelecimento prestador, assim como nos serviços onde seja difícil a identificação do local onde ocorre a atividade-fim. Entretanto, as premissas adotadas no presente estudo, em especial o firme e inalienável posicionamento em relação à supremacia constitucional, exigem nossa conclusão no sentido de que as questões administrativas e de política tributária – apesar de extremamente relevantes dos pontos de vista pré e pós-jurídico – não podem interferir no resultado da interpretação dos textos normativos e, portanto, não são passíveis de análise no presente estudo. Verifica-se, assim, que, ao contrário da regra geral do estabelecimento prestador, a qual é passível de uma interpretação conforme a Constituição, a regra prevista tanto no artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68, assim como no artigo 3º da Lei Complementar nº 116/2003, que desloca o local de ocorrência do fato tributário do ISS para o domicílio do prestador, em virtude da ausência do pré-citado estabelecimento, padece de incontornável inconstitucionalidade, pois não há nenhum elemento que vincule o local do referido domicílio à materialidade do ISS. São, nesse sentido, os argumentos precisos de BETINA TREIGER GRUPENMACHER: “Se é certo que a determinação legislativa para recolhimento do tributo no local do estabelecimento prestador comporta questionamentos, a regra que estabelece a alternativa do domicílio do prestador é absolutamente repudiável perante o ordenamento jurídico por estar em total desconformidade com os preceitos constitucionais”. A autora acrescenta, com propriedade, que “[...] ao estabelecer o domicílio do prestador como local em que é devido o ISS, nada mais fez o legislador complementar do que estabelecer uma ficção jurídica, e as ficções, embora haja respeitáveis posições em sentido contrário, são, segundo entende-se, proibidas no direito tributário”. A correção desse raciocínio repousa na certeza de que a ficção jurídica consubstanciada na regra do domicílio do prestador resulta em clara ofensa do princípio da legalidade tributária e, por conseqüência, também do princípio da segurança jurídica, “[...] pois, gerando imprevisibilidade no exercício do poder de 1004 Ibidem, p. 342-343. 391 tributar, levam à surpresa, a qual é, nesta hipótese, afrontosa ao Estado de Direito”. 1005 A prevalecer esse dispositivo, o critério material da hipótese de incidência do ISS seria o de “possuir domicílio do qual decorra prestação de serviço” ou, ainda, “prestar serviço no domicílio do prestador”, o que está em flagrante contradição com o fundamento constitucional do ISS.1006 5.8 A AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO 5.8.1 Características do direito processual tributário brasileiro Não há, no sistema processual brasileiro, regime jurídico próprio para a disciplina judicial das lides tributárias, havendo falta tanto de sistematização legal como doutrinária. O regime utilizado pelo processo judicial tributário é o do processo civil, cujo regime foi construído essencialmente para a disciplina da lide civil – entre particulares – e, portanto, nem sempre é eficaz para bem solucionar os conflitos entre a Fazenda Pública e o contribuinte, providência inafastável no atendimento das exigências constitucionais, nos âmbitos administrativo, processual e tributário. Entretanto, ainda que sob a perspectiva exclusivamente jurisdicional, as características próprias do fenômeno tributário peculiarizam o Direito Processual Tributário, pois, ao contrário do que ocorre com as lides civis, o contribuinte não busca a afirmação de um direito subjetivo a determinada prestação ou a um certo comportamento, mas um direito subjetivo a um certo comportamento do fisco, que, por estar estritamente vinculado à lei, em sua atividade exacional, faz com que os conflitos tributários se constituam, via de regra, na invocação de violação a normas constitucionais e infraconstitucionais pela Fazenda Pública, o que peculiariza o formato do pedido feito judicialmente. 1007 JAMES MARINS classifica as ações tributárias sob duas perspectivas. Uma primeira, leva em consideração a posição das partes na relação processual, ou seja, a posição ativa ou passiva dos sujeitos – fisco e contribuinte – nas ações tributárias, pelo 1005 ISS – Local..., op. cit., p. 79-81. BAPTISTA, Marcelo Caron. ISS..., op. cit., p. 527. 1007 MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro: (Administrativo e Judicial), p. 379-380. 1006 392 que classifica as ações em exacionais e antiexacionais. Serão exacionais as ações tributárias em que a Fazenda Pública – Federal, Estadual, Municipal e Distrital – esteja no pólo ativo da relação processual, e serão antiexacionais as ações tributárias em que o pólo ativo seja ocupado por contribuinte. Numa segunda, classifica as ações tributárias como próprias e impróprias, tendo como perspectiva a existência ou não de disciplina autônoma para determinada espécie de ação.1008 Quase todas as ações exacionais são próprias, com exceção daquelas de eficácia erga omnes – ADIN, ADC, Ação Popular – enquanto que são impróprias quase todas as ações antiexacionais, com a exceção dos embargos à execução fiscal, disciplinadas pela Lei de Execução Fiscal – Lei nº 6.830, de 22 set. 1980 – de onde se percebe a motivação política do legislador em conferir à Fazenda Pública instrumentos processuais mais eficazes, especiais em relação ao Código de Processo Civil, mais hábeis na cobrança dos tributos, ao passo que, aos contribuintes, restaram tão-somente os instrumentos processuais ordinários, com a exceção já citada dos embargos à execução fiscal.1009 Na hipótese de uma exigência tributária, a título de ISS, por pessoa política incompetente, tanto para legislar sobre o fato tributário praticado, como para conseqüentemente exigir o recolhimento do imposto, poderá o prestador de serviços alvo dessa incidência, por força do Princípio Constitucional da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional (direito de ação), previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição, buscar no Poder Judiciário a tutela de seu direito material.1010 E diante do notório caráter agressivo dos tributos, nas esferas da liberdade e da propriedade do cidadãocontribuinte, exige ainda a Constituição, agora no inciso LIV do mesmo artigo 5º, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, ou seja, o processo iniciado pelo contribuinte deve ter seu trâmite rigorosamente vinculado à legislação processual válida e vigente. Portanto, qualquer que seja o tipo de ação escolhido pelo contribuinte para a defesa de seu direito, o respectivo processo judicial deverá observar todos os princípios do processo civil, corolários do devido processo legal (due process), encampados pela Constituição Federal de 1988, que, na classificação de NELSON NERY JÚNIOR 1011 são os seguintes: a) Princípio da Isonomia; b) Princípios do Juiz e do Promotor Natural; 1008 Ibidem, p. 387-390. Ibidem, p. 390-391. 1010 “XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” 1009 393 c) Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional (princípio do direito de ação); d) Princípio do Contraditório; e) Princípio da Proibição de Prova Ilícita; f) Princípio da Duplicidade dos Atos Processuais; g) Princípio do Duplo Grau de Jurisdição; h) Princípio da Motivação das Decisões Judiciais. 5.8.2 Tutela do direito à observância da regra-matriz do ISS A tutela judicial do direito do contribuinte à observância, pelo legislador municipal, dos critérios da regra-matriz do ISS, conforme sua feição constitucional, pode efetivar-se de várias formas. Dizendo de outro modo, não há uma só espécie de ação antiexacional que permita ao prestador de serviços pleitear em juízo a proteção judicial ao seu direito subjetivo de somente integrar uma relação jurídica tributária que seja desenhada nos moldes rigorosamente constitucionais. Dentre tais ações, podem-se citar as principais, como, por exemplo: a) ação declaratória de inexistência de relação jurídica tributária: ação antiexacional imprópria, de rito ordinário, proposta com o objetivo de ver declarada a inexistência de vínculo entre o autor da ação e determinado ente tributante, por entender não ocorrido o fato tributário de sua competência; b) ação anulatória de lançamento tributário: ação antiexacional imprópria, de rito ordinário, de natureza constitutivo-negativa, que vise obter sentença que anule total ou parcialmente ato administrativo de exigência tributária (lançamento tributário) ou de aplicação de penalidades (auto de infração); c) ação de repetição do indébito: ação antiexacional imprópria, de rito ordinário e de natureza condenatória, proposta pelo contribuinte contra ente tributante que tenha recebido valores indevidos a título de tributos, visando condená-lo a devolver tais valores; d) ação de consignação em pagamento de crédito tributário: ação antiexacional imprópria, de rito especial, de natureza declaratória – pois declara que o depósito satisfaz os requisitos legais para substituir o pagamento como forma de liberação do devedor1012 – que visa o efeito 1011 1012 Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, p. 39 e ss. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil: Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, v. VIII, t. III: arts. 890 a 945, p. 44. 394 liberatório do contribuinte consignante, que tem fundadas dúvidas acerca de quem seja o sujeito ativo da relação jurídica tributária, através do depósito judicial do valor devido e da citação dos entes tributantes que se intitulam simultaneamente credores em relação ao mesmo fato tributário. Entendemos ser a ação consignatória a melhor alternativa, na hipótese de dois municípios exigirem o ISS sobre a mesma prestação de serviços. Como já dito acima, essa ação se identifica, na classificação de JAMES MARINS, dentre as antiexacionais impróprias, posto que, além de visar a liberação do contribuinte consignante da obrigação tributária, não possui regramento próprio, sendo disciplinada pelo Direito Processual Civil, aplicando-se, no que couber, os artigos 890 ao 900 do Código de Processo Civil. Regra geral, a administração tributária não costuma dificultar o pagamento do tributo pelos contribuintes, do que resulta ser inusual a utilização da consignação em pagamento como modalidade de extinção do crédito tributário. Entretanto, têm aumentado nos últimos anos os conflitos entre os entes tributantes, sobre a titularidade ativa para a cobrança de certos tributos, com destaque para as regiões de sobreposição espacial de competência entre municípios, em casos de IPTU e ISS e, mais recentemente, também os problemas de sobreposição material entre o ISS e o ICMS. 1013 Como bem observou PONTES DE MIRANDA, a norma que admite a consignatória abre exceção ao princípio da irrelevância do desconhecimento do Direito, já que autoriza o seu uso também ao devedor cuja dúvida sobre o credor é de caráter meramente subjetivo.1014 No entanto, no Direito Tributário, em face da regulação especial dada à matéria, conclui-se não ser cabível a ação consignatória na hipótese de dúvida subjetiva tão-só do devedor sobre quem seja o credor legítimo. A incerteza autorizativa da ação deve ser a resultante de exigências conflitantes de mais de um ente tributante sobre o mesmo fato tributário.1015 O Código Tributário Nacional, em seu artigo 156, VIII, arrola a consignação em pagamento como uma das modalidades de extinção do crédito tributário, e, no artigo 164, arrola algumas situações que autorizam a sua utilização: “I - de recusa de recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro tributo ou de penalidade, ou ao cumprimento de obrigação acessória; II - de subordinação do recebimento ao 1013 MARINS, James. Direito Processual..., op.cit., p. 430. Apud FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários..., op. cit., p. 60. 1015 Ibidem, p. 66-67. 1014 395 cumprimento de exigências administrativas sem fundamento legal; III - de exigência, por mais de uma pessoa jurídica de direito público, de tributo idêntico sobre um mesmo fato gerador”. Nas duas primeiras hipóteses, em que o contribuinte se vê diante de obstáculos à sua intenção de pagar o tributo, fica caracterizada a mora accipiendi, que é a mora imputável ao Fisco em exercer, sem obstáculos artificiais, o seu poder-dever de cobrar os créditos tributários. A terceira hipótese, ao contrário, trata da pluralidade ou concorrência de credores, que pode ser descrita como a “[...] disputa de titularidade ativa estabelecida entre dois entes tributantes que se apresentam, simultaneamente, como credores da obrigação tributária nascida de um único fato jurídico-tributário”. Isso tem ocorrido com freqüência com o IPTU, ISS e o ICMS e, quando passa a gerar incerteza subjetiva para o sujeito passivo quanto a quem seja o verdadeiro credor da obrigação tributária, autoriza a propositura da ação consignatória. 1016 Estabelece o § 2º do artigo 164 do Código Tributário Nacional que, “julgada procedente a consignação, o pagamento se reputa efetuado e a importância consignada é convertida em renda; julgada improcedente a consignação no todo ou em parte, cobra-se o crédito acrescido de juros de mora, sem prejuízo das penalidades cabíveis”. O contribuinte consignante deve realizar o depósito integral do crédito tributário para que tenha direito aos efeitos liberatórios da consignação, e, quando os entes tributantes divergirem quanto ao valor, o depósito deverá ser feito tendo por base o maior valor exigido. Caso o depósito não seja integral, o efeito liberatório será parcial, remanescendo a obrigação quanto à parcela não depositada, o que acarreta a incidência de multa e juros se não paga no vencimento. O regime processual da ação de consignação em pagamento é o do Código de Processo Civil, onde, nos artigos 890 e seguintes, figura como um procedimento especial de jurisdição contenciosa, e sua localização entre esses procedimentos especiais demonstra que não se trata de um procedimento ordinário ou de uma medida cautelar. Não há impedimentos para a utilização da consignatória nos casos de relação jurídicotributária continuativa, como ocorre com tributos como o ISS e o ICMS, pois o artigo 892 do Código de Processo Civil dispõe que “Tratando-se de prestações periódicas, uma vez consignada a primeira, pode o devedor continuar a consignar, no mesmo processo e sem mais formalidades, as que se forem vencendo [...]”, mas, como dispõe o 1016 MARINS, James. Direito Processual..., op.cit., p. 431. 396 mesmo artigo, “[...] desde que os depósitos sejam efetuados até 5 (cinco) dias, contados da data do vencimento”. Caso o depósito seja efetuado após o prazo de cinco dias estipulado no Código de Processo Civil, deverá abranger também os valores de mora, juros e multa. O Código Tributário Nacional, em seu artigo 164, III; o Código Civil em seu artigo 335, IV; e o Código de Processo Civil, no seu artigo 898, prevêem expressamente o direito de o devedor consignar judicialmente o débito na hipótese de haver incerteza subjetiva quanto ao credor, o que abrange a dúvida quanto ao sujeito ativo da obrigação tributária. Não se trata, nesses casos, de mora accipiendi, já que não há obstáculos ao pagamento, mas sim conflitos entre credores que se intitulam sujeitos ativos de uma mesma dívida. “Tal circunstância de fato justifica para o devedor a existência de incerteza subjetiva que implica o risco de pagar a quem não poderia receber e, desse modo, ver-se obrigado a pagar duas vezes. Logo, o interesse de agir na consignatória reside na existência da dúvida gerada pela disputa entre entes tributários, daí nascendo a necessidade de tutela judicial que operará sob rito especial”. 1017 Não basta a existência de mera suspeita, por parte do contribuinte, de que há disputa sobre o crédito tributário. Há a necessidade da existência de uma dúvida fundada, e que seja demonstrada de forma satisfatória pelo contribuinte em sua petição inicial. A existência de outros casos sobre a mesma questão pode ser invocada, pelo autor da consignatória, para que lhe seja dispensada a obrigação de fazer outro tipo de prova. O artigo 898 do Código de Processo Civil estabelece um rito especial para a consignatória proposta pela existência simultânea de dois pretendentes a um mesmo crédito tributário: “Quando a consignação se fundar em dúvida sobre quem deva legitimamente receber, não comparecendo nenhum pretendente, converter-se-á o depósito em arrecadação de bens de ausentes; comparecendo apenas um, o juiz decidirá de plano; comparecendo mais de um, o juiz declarará efetuado o depósito e extinta a obrigação, continuando o processo a correr unicamente entre os credores; caso em que se observará o procedimento ordinário”. A utilidade do procedimento do Código de Processo Civil está em que, além dos pesados ônus impostos aos entes tributantes que não integrarem a lide, possibilita ao contribuinte liberar-se da obrigação tributária, ficando o litígio com quem compareceu à relação processual, por lhe ter dado causa. “Isso significa que ao magistrado cumpre 1017 Ibidem, p. 436-437. 397 declarar a extinção da obrigação tão logo tenham comparecido ao processo os credores disputantes para formalizar sua pretensão sobre o crédito consignado, julgando extinto o processo unicamente com relação ao contribuinte, que desde logo se vê liberado da obrigação tributária” [sic]. 1018 A extinção do processo em relação ao contribuinte consignante somente se dará na hipótese de obrigação tributária instantânea, que prescinda da continuidade dos depósitos até o final do processo – relação continuativa – e também desde que os réus não tenham alegado a insuficiência da quantia consignada, caso em que o contribuinte deverá integrar a relação processual até o seu fim. Também poderá permanecer no processo para requerer seus direitos sobre os ônus da sucumbência, fixados quando da sentença, ou ainda para levantar eventual crédito remanescente em seu favor. Também há casos em que, mesmo após o depósito integral, o contribuinte mantém interesse jurídico na lide judicial que persiste entre os entes tributantes, como se dá no caso em que o regime tributário de um dos entes é mais vantajoso para o contribuinte – alíquota ou base de cálculo mais favorável. Em casos como tais, “[...] o contribuinte deverá permanecer no processo na condição de assistente litisconsorcial uma vez que a sentença final, em sua eficácia objetiva e subjetiva, haverá de declarar a existência ou inexistência de relações jurídicas que dizem respeito ao contribuinte consignatore” [sic].1019 Nessas hipóteses, é aplicável o artigo 54 do Código de Processo Civil, que trata da assistência litisconsorcial.1020 Como já demonstrado, ao longo deste trabalho, a divergência interpretativa sobre o antigo Decreto-lei nº 406/68, assim como em relação à atual Lei Complementar nº 116/2003, resultou em conflitos entre o município onde está situado o estabelecimento ou a sede do prestador dos serviços e aquele onde o serviço é efetivamente prestado, o que acarreta a sobreposição de incidências tributárias municipais sobre um mesmo fato tributário. Com isso, nasce para o contribuinte o interesse processual em propor a ação consignatória, em que, após o depósito do crédito tributário pelo contribuinte e o seu conseqüente efeito liberatório em relação à obrigação tributária, os municípios que disputam o crédito tributário serão citados para integrar a lide e litigar entre si, salvo no caso de o contribuinte manter interesse em continuar no processo até seus ulteriores termos, conforme já demonstrado. 1018 1019 Ibidem, p. 438. Ibidem, p. 439. 398 É certo que a Lei Complementar nº 116/2003 avançou na tentativa de evitar os conflitos entre os municípios, em especial porque considera a atual dinâmica dos novos serviços, surgidos com o desenvolvimento tecnológico, com destaque para os serviços na área da informática. Contudo, certamente ainda restarão hipóteses em que os conceitos utilizados por essa lei serão confrontados com o texto constitucional, sendo possível afirmar que os conflitos persistirão, ainda que, talvez, em menor escala. O uso da consignatória, portanto, continuará sendo a melhor opção para o contribuinte que vier a sofrer os efeitos dos conflitos entre municípios. 1020 “Artigo 54. Considera-se litisconsorte da parte principal o assistente, toda vez que a sentença houver de influir na relação jurídica entre ele e o adversário do assistido.” 399 CONCLUSÕES ESPECÍFICAS CAPÍTULO 1: 1. Como perspectiva científica, entendemos que o único método válido para o estudo da regra-matriz de incidência do ISS é aquele inerente à Ciência do Direito stricto sensu, ou seja, à Dogmática Jurídica, pois a interpretação do Direito Positivo só é válida na medida em que o objeto de análise tenha o sistema jurídico como limite de investigação. Isso implica a necessidade de prestígio, pelo hermeneuta, apenas e tãosomente da ideologia intranormativa, inserida no ordenamento jurídico. Como resultado, a interpretação sistemática, porque aliada à supremacia constitucional, é o único método interpretativo eficaz na busca de conclusões seguras. 2. A construção científica da norma jurídica exige a análise dos três níveis em que se estrutura a linguagem do ordenamento: o sintático, o semântico e o pragmático. Em que pese a relevância dos planos sintático e semântico, entendemos que merece destaque a interpretação da norma jurídica no plano pragmático, o que não significa o abandono da dogmática jurídica, que ocorreria apenas na hipótese de a relação de conhecimento ter, como perspectiva, tão-somente o sujeito cognoscente. Antes, resulta da utilização da chamada epistemologia dialética na Ciência do Direito, defendida por AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO, pela qual o importante – em vez de privilegiar-se um dos pólos da relação cognitiva – é a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento na construção científica.1021 3. A condição de sistema está presente tanto no Direito Positivo como na Ciência do Direito. No entanto, somente o sistema da Ciência do Direito exige a característica da coerência, em virtude da impossibilidade da existência de contradições em sua linguagem. Os elementos desse sistema responsáveis pela coerência são os princípios jurídicos e, dentre eles, destacam-se os princípios constitucionais, vetores interpretativos de todas as normas jurídicas. A maior eficácia e legitimidade na aplicação desses princípios resulta do preciso conhecimento dos limites existentes no nível pragmático da linguagem jurídica. 4. A transição do Estado de Direito para o Estado Democrático de Direito marcou o enriquecimento da carga valorativa existente na expressão “liberdades”, cuja 1021 A Ciência do Direito: conceito, objeto, método. 400 eficácia jurídica vem exigindo sua efetivação não só no aspecto negativo, correspondente à clássica noção do Princípio da Legalidade no âmbito privado, mas também e especialmente no aspecto positivo, pelo qual não basta que a atividade dos indivíduos não esteja vedada pela lei, sendo necessário que esteja de acordo com a proteção aos direitos sociais positivados constitucionalmente. 5. No Estado Democrático de Direito convivem, de forma harmônica, os ideais republicanos e democráticos, os quais ressaltam, no campo tributário, a representatividade popular na criação dos tributos. No contexto da análise da regramatriz de incidência do ISS, essa nova perspectiva implica a necessidade de uma nova consciência político-tributária, tanto para os representantes do povo – seja em âmbito nacional como nos Municípios – como para os contribuintes – neste caso, os prestadores de serviço. CAPÍTULO 2: 6. O Sistema Tributário Nacional constitui-se em subsistema, inserido no sistema geral do Direito Positivo. Disso decorre a exigência de que a aplicação de toda e qualquer norma tributária seja precedida da valoração dos princípios constitucionais que se revelem os mais adequados em cada caso concreto. 7. Os princípios Republicano, Federativo e da Autonomia Municipal são princípios gerais de Direito Público cuja aplicação, no Direito Tributário, é constitucionalmente inafastável, pois todos se constituem em instrumentos de realização dos objetivos do Estado Democrático de Direito. 8. No estudo da regra-matriz de incidência do ISS, ganha relevo o respeito ao Princípio da Autonomia Municipal, posto ser vetor constitucional que impede a criação, pela União Federal, de leis nacionais que invadam a competência tributária reservada aos municípios, contribuindo, assim, na viabilização das autonomias política, financeira e administrativa dessas pessoas políticas. Além disso, a Autonomia Municipal é viabilizadora do Princípio Republicano, servindo de instrumento eficaz na aproximação entre representantes e representados. 9. Dentre as “limitações constitucionais ao poder de tributar”, o Princípio da Legalidade Tributária é de fundamental importância, constituindo instrumento legítimo de auto-regulação social e, ao mesmo tempo, de protetor da liberdade do contribuinte de 401 planejar sua vida econômica, de modo a sofrer o menor ônus tributário possível, sempre dentro da licitude. 10. O novo contexto em que a Legalidade Tributária está situada resultou na possibilidade de o fisco desconsiderar planejamentos tributários não mais ficando restrito às tradicionais hipóteses do artigo 149, VII, do Código Tributário Nacional, ou seja, quando restarem demonstrados o dolo, a fraude ou a simulação. Com o advento do atual Código Civil, que positivou as figuras do abuso de direito – como ato ilícito – e da fraude à lei – como ato nulo –, ganhou força a tese de que o fisco passou a ter o poder-dever de lançar o tributo também nessas novas hipóteses. Isso implica uma nova definição dos limites em que o planejamento deixa de ser hipótese de elisão tributária (lícita) para tipificar caso de evasão tributária (ilícita). 11. O Princípio da Isonomia Tributária, em relação aos impostos, efetiva-se através da observância da Capacidade Contributiva objetiva – pela qual o legislador, ao escolher os fatos tributários para as hipóteses normativas, deve optar pelos que expressem signos de riqueza econômica – e da Capacidade Contributiva subjetiva, pela qual o legislador, ao distribuir a carga tributária, estabelece o grau de contribuição dos participantes de forma proporcional às dimensões de cada fato ocorrido. No que se refere ao critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, é nítida a violação à Isonomia Tributária e à Vedação de Tributo com Efeito de Confisco, quando os prestadores de serviço sofrem a cobrança desse imposto em duplicidade, em virtude da existência de conflitos entre municípios. 12. Com o advento do Estado Social e Democrático de Direito, a interpretação da relação jurídica tributária deve ser feita de forma contextualizada com o valor constitucional da solidariedade social. A efetivação desse valor constitucional tem na Capacidade Contributiva subjetiva – viabilizada especialmente pelos critérios da progressividade e da seletividade – um de seus instrumentos mais eficazes, o que implica uma evolução da tradicional concepção de Legalidade Tributária, onde esse princípio deixa de ser visto apenas como uma “limitação constitucional ao poder de tributar”, para passar a ser visualizado como a manifestação da consciência políticojurídica do cidadão como contribuinte. Entretanto, a solidariedade social, por si só, não autoriza a cobrança de tributos, em violação das regras constitucionais atributivas de competência tributária. 13. A solidariedade social também encontra uma aplicação importante no tema da “descentralização fiscal” própria do federalismo. O Princípio da Subsidiariedade, que 402 é inerente à essa descentralização, revela uma exigência democrática de eficiência e melhor governabilidade, pois “aproxima” o cidadão da entidade pública do governo, permitindo que com ele tenha um vínculo mais estreito, acentuando a relação entre tributação e serviços públicos, inclusive os que revelam, em seu conteúdo, um instrumento de busca da solidariedade social. No contexto específico do critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS – a solidariedade social/fiscal exige uma reiteração da supremacia constitucional, no que tange à observância da materialidade desse imposto, ou seja, do conceito de prestação de serviços encampado pela Constituição e, como conseqüência, do efetivo local em que os serviços são prestados, pois é a lei desse respectivo município que incidirá sobre os fatos ocorridos em seu território, assim como é esse município quem deterá a capacidade tributária de exigir o recolhimento do ISS. 14. Não há, em princípio, relação de hierarquia entre as leis nacionais e as leis editadas pelas pessoas políticas – federais, estaduais, distritais e municipais – pela razão de que todas buscam seu fundamento de validade na própria Constituição. Somente haverá relação de subordinação entre normas, quando uma se constituir em fundamento de validade da outra. A diferença entre a União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios não está, portanto, em um nível hierárquico, mas, nas competências distintas que receberam da própria Constituição. 15. As normas gerais a que alude o artigo 146 da Constituição Federal têm seu conteúdo limitado a “regular as limitações constitucionais ao poder de tributar” e, dentre elas, somente aquelas que requerem complementação, por não se constituírem em normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata. CAPÍTULO 3: 16. A norma jurídica é aquela que pertence ao ordenamento jurídico, e constitui-se em proposições prescritivas veiculadas mediante um juízo hipotético e condicional, expresso por uma relação de dever-ser. Sua estrutura lógica é representada pela ligação de uma hipótese de incidência a um conseqüente, em virtude da ocorrência de um fato previamente descrito. 17. Na estrutura da regra-matriz de incidência tributária, a hipótese representa a descrição de um fato lícito previsto em lei, e o conseqüente prescreve uma relação jurídica que tem por objeto uma prestação pecuniária e compulsória, consistente no 403 comportamento do sujeito passivo de entregar ao sujeito ativo uma determinada quantia de dinheiro. 18. A hipótese de incidência da regra-matriz de incidência tributária é formada por três critérios: o material, o temporal e o espacial. O critério material é o núcleo da hipótese, e representa uma ação humana expressa por um verbo pessoal e transitivo, que por essa razão sempre exige um complemento. Os critérios temporal e espacial, respectivamente, indicam o momento no tempo e o local no espaço em que o fato tributário se reputa ocorrido, como suficiente para deflagrar o nascimento da relação jurídica tributária. 19. A conseqüência da regra-matriz, por descrever a relação jurídica que nasce com a ocorrência do fato tributário, é formada pelo critério subjetivo – o qual indica quem são os sujeitos ativo e passivo daquela relação – e pelo critério objetivo – que além dos elementos necessários à apuração da quantia devida a título de tributo – base de cálculo e alíquota –, também contém a indicação dos dados necessários a informar o local onde a conduta exigida deverá ser satisfeita – onde pagar –, assim como o momento em que ela deverá ocorrer – quando pagar. CAPÍTULO 4: 20. O ISS tem seu fundamento específico no artigo 156, III, da Constituição de 1988. Portanto, o ponto de partida para análise da sua regra-matriz, como de qualquer tributo, deve ser a Constituição Federal. De forma especial, é nos dispositivos constitucionais que atribuem competência tributária às pessoas políticas, resultante do Princípio Federativo, que poderão ser encontrados os primeiros subsídios normativos hábeis à construção da norma-padrão dos tributos. Com efeito, entende-se que a criação do tributo tem início já no texto constitucional, sendo ultimada com a aprovação da lei da respectiva pessoa política. 21. O conceito de serviço tributável pelo ISS, portanto, é de natureza constitucional. A materialidade da hipótese de incidência desse imposto (núcleo) é representada pela expressão “prestar serviço”, como objeto de uma relação jurídica bilateral e onerosa, celebrada entre um tomador/contratante e um prestador/contratado, em regime de Direito Privado. A obrigação do prestador é qualificada como “de fazer”, e somente a atividade-fim contratada atrai a incidência da norma tributária do ISS. 404 22. Dos serviços passíveis de tributação, não são reservados aos municípios apenas os de transporte intermunicipal e de comunicação, os quais foram submetidos à incidência do ICMS estadual. As prestações de serviços tributáveis pelo ISS, por representarem o cumprimento de uma obrigação “de fazer”, distinguem-se das operações sujeitas ao ICMS e ao IPI, as quais indicam o atendimento de uma obrigação “de dar”. 23. Quando o artigo 156, III, da Constituição, estabelece que os serviços passíveis de tributação pelos municípios, através do ISS, serão aqueles “[...] definidos em lei complementar”, está prescrevendo que essa lei complementar tem por objeto identificar os ditos serviços, nunca, no entanto, criá-los, de forma inovadora, original, porque os limites dirigidos ao legislador municipal já se encontram previstos de forma suficiente na própria Constituição. A lei complementar em apreço – que venha a definir os serviços tributáveis pelos Municípios – somente pode ter como objetivo o de dispor sobre eventuais conflitos de competência, em virtude de um eventual erro sobre a conceituação de um determinado fato, deslocando-o indevidamente para a esfera tributária de ente político incompetente. É inconstitucional, portanto, a tese que defende a taxatividade da lista de serviços, posto ser violadora do Princípio da Autonomia Municipal. 24. Os critérios temporal e espacial da regra-matriz de incidência do ISS podem ser descobertos a partir da análise da materialidade da hipótese de incidência e indicam, respectivamente, o momento e o conseqüente local em que se verifica a prestação do serviço, representada pelo cumprimento da obrigação de fazer, onde e quando ocorre a extinção do liame jurídico que unia o tomador ao prestador. Disso resulta que, ao legislador infraconstitucional, é vedado, por força do próprio sistema jurídico, estabelecer que o fato ocorreu em local diverso daquele em que se verificou a sua materialidade, pois a desvinculação do critério espacial dos critérios material e temporal destrói a estrutura da hipótese normativa. 25. O sujeito ativo, no caso do ISS, será o município, ou o Distrito Federal, em cujo território os serviços são prestados. Ainda que juridicamente possível, não se conhece casos de municípios em que tenha ocorrido delegação da capacidade tributária ativa (parafiscalidade). 26. O contribuinte do ISS, em virtude de sua materialidade, somente pode ser o prestador do serviço, pois somente essa pessoa se identifica com o destinatário constitucional tributário. A eleição de um terceiro, como responsável tributário, 405 deve ser restrita à figura do tomador do serviço. A eleição do tomador como sujeito passivo, na condição de responsável tributário, somente poderá ser matéria da lei complementar de que trata o artigo 146 da Constituição na hipótese dessa lei ter sido editada com vistas a prevenir conflitos de competência em matéria tributária. 27. Decorre implicitamente da materialidade do ISS, conforme a dicção constitucional prevista no artigo 156, III – prestação de serviços de qualquer natureza definidos em lei complementar, com exceção dos tributáveis pelos Estados-membros e pelo Distrito Federal – a noção de que a sua base de cálculo somente pode ser o preço da prestação do serviço ou, em outras palavras, o valor definido como sendo a efetiva remuneração do prestador. 28. As alíquotas do ISS são definidas pela lei de cada município, sendo que à lei complementar nacional caberá fixar as alíquotas máximas. A Emenda Constitucional nº 37/2002 – ao remeter ao legislador complementar a função de dispor sobre a alíquota mínima para o ISS e fixar a alíquota mínima em 2%, enquanto tal lei não disciplinar a matéria – é inconstitucional, por ter violado a Autonomia Municipal. CAPÍTULO 5: 29. Os conflitos de competência existentes podem ser de duas espécies: (a) conflitos envolvendo a chamada competência heterogênea, também chamados de conflitos materiais, pois o problema decorre da dificuldade, no plano pré-jurídico, de subsunção de um determinado fato a mais de uma hipótese tributária, de pessoas políticas diversas, como, por exemplo, conflitos entre estados e municípios (ICMS e ISS), ou entre União e municípios (IPI e ISS); e (b) conflitos acerca da chamada competência homogênea, onde não há dúvida quanto ao tributo incidente sobre determinado fato ocorrido, mas sim sobre a titularidade da competência para a tributação, envolvendo, portanto, duas ou mais pessoas políticas da mesma órbita, como, por exemplo, conflito entre municípios, com ambos exigindo o ISS sobre o mesmo fato. 30. Os conflitos sobre o local de incidência do ISS, quando resultam em dois, ou mais, municípios tributando a mesma prestação de serviço, violam não só os limites territoriais das leis tributárias, como também afrontam os princípios da Capacidade Contributiva e da Vedação de Tributo com Efeito de Confisco. 406 31. O legislador infraconstitucional não possui liberdade para definir, como critério espacial da hipótese de incidência, um local que não coincida com aquele onde a materialidade realmente se concretiza, ou, o que é mais grave, em local situado fora do âmbito espacial de competência da pessoa política. O poder de criar as chamadas “ficções jurídicas”, ainda que existente, não é ilimitado, encontrando na Constituição Federal, e em especial nos princípios constitucionais, os contornos que dimensionam o seu legítimo exercício. A unidade lógica da norma tributária constitui-se em premissa inafastável no estudo dos conflitos de competência espacial. Assim como ocorre com qualquer outro tributo, os critérios da hipótese de incidência do ISS – material, temporal e espacial – não podem ser interpretados abstraindo-se uns dos outros. 32. Ao âmbito de validade espacial da norma jurídica é que se denomina de Princípio da Territorialidade, ou de critério territorial (ratione loci). A Constituição adotou os critérios de natureza material e geográfica, para formular o regime jurídico tributário, ou seja, a Lei Maior enumerou as materialidades que podem ser utilizadas pelos entes federativos e pelos municípios, para a demarcação de suas competências tributárias, assim como definiu o território de cada uma das pessoas políticas como o âmbito de validade da respectiva lei tributária. 33. A atribuição, à competência tributária de uma pessoa política, da tributação de um fato cuja concretização se completou no território de outra é incompatível com o sistema jurídico, já que é da essência do Sistema Tributário Nacional que cada pessoa política exerça sua competência sobre os fatos e as pessoas localizadas na circunscrição territorial correspondente. Disso resulta ser incabível alterar a competência fixada constitucionalmente mediante o uso ilegítimo da legislação infraconstitucional, ainda que por meio de lei complementar. 34. De acordo com o artigo 102 do Código Tributário Nacional – que regula a extraterritorialidade da lei tributária em nível infraconstitucional – além dos convênios que eventualmente participem estados, Distrito Federal e municípios, a União poderia expedir normas gerais, estabelecendo a vigência de lei tributária de determinada pessoa política para além de seu respectivo território. Como os limites territoriais dos estados e municípios se constituem em inequívoca “limitação constitucional ao poder de tributar”, a lei de normas gerais somente pode ter competência para regular o Princípio da Territorialidade da legislação tributária das pessoas políticas, e nunca violá-lo, o que torna esse dispositivo inconstitucional. 407 35. A extraterritorialidade decorrente de convênios celebrados entre as pessoas políticas, em que pese ser resultado de acordo voluntário entre as partes interessadas, também é inconstitucional, pois a competência tributária é indelegável e irrenunciável, não se admitindo que a extraterritorialidade da lei possa fazer com que a norma tributária municipal incida sobre prestações de serviços ocorridos em território de outro município, ainda que com a anuência deste. 36. A única interpretação possível para o artigo 102 do Código Tributário Nacional é que o mesmo não foi recepcionado pelo atual ordenamento jurídico, assim como já se revelava inválido em face da Constituição pretérita. A extraterritorialidade, em relação ao ISS, somente se admite como manifestação da soberania nacional, e nunca como decorrência da Autonomia Municipal. Soberania é, indiscutivelmente, mais do que autonomia. 37. O estabelecimento é um instrumento, um meio, de que se vale a pessoa, física ou jurídica, para o exercício da atividade econômica, não se confundindo com o imóvel, nem exigindo a presença dele, assim como é irrelevante a integração no estabelecimento dos bens e direitos. 38. O Superior Tribunal de Justiça defende como relevante, em qualquer caso, o local da efetiva prestação do serviço, independente de onde esteja a sede ou o estabelecimento do prestador. 39. Para que a expressão “estabelecimento prestador” se harmonize com a Constituição, há que se entendê-la somente em relação ao local onde efetivamente os serviços são prestados, sendo irrelevante, ainda, a circunstância de haver, ou não, a presença física do prestador. Se um serviço for prestado de forma desvinculada de determinado estabelecimento, ele deixará de ser “prestador”. 40. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça adotou a chamada “interpretação conforme a Constituição”, a qual indica como vetor hermenêutico a necessidade de optar, dentre as possíveis interpretações em torno de um texto normativo, por aquela que melhor se ajusta aos ditames constitucionais, dentro de um limite de razoabilidade. No caso em exame, quer se dizer que, ainda que a dicção literal do artigo 12 do Decreto-lei n° 406/68, em um primeiro momento, remeta à conclusão da impossibilidade de interpretar a expressão “estabelecimento prestador” como tendo o sentido de “local onde os serviços são prestados”, a sua inserção no contexto constitucional autoriza esse entendimento. 408 41. O critério espacial, no caso do ISS, não é outro local senão aquele onde os serviços foram prestados de forma definitiva. Para tanto, interessa onde se ultimou a atividade-fim contratada entre tomador e prestador, sendo irrelevantes para tanto a eventual existência de outros locais, municípios, onde tenham ocorrido ações intermediárias (atividades-meio), ainda que necessárias à conclusão do serviço. 42. As decisões do Superior Tribunal de Justiça, proferidas sob a égide da Lei Complementar nº 116/2003, mantiveram os mesmos argumentos utilizados nos precedentes criados com base no Decreto-lei nº 406/68. Não há decisões recentes no Supremo Tribunal Federal sobre o tema, que possam ser comparadas com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. 43. A Lei Complementar n° 116/2003, em seu artigo 3º, manteve a regra geral prevista no artigo 12 do Decreto-Lei nº 406/68, não encampando, assim, a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, ainda que a tenha utilizado em um grande número de exceções. A complexidade da definição do critério espacial levada a efeito pelo novo diploma resultou no ressurgimento das disputas entre os municípios. 44. O artigo 6º da Lei Complementar n° 116/2003 facultou aos municípios a instituição da sistemática da retenção do ISS na fonte pelos tomadores dos serviços. As únicas hipóteses válidas de atribuição de responsabilidade ao tomador, por meio da retenção na fonte, serão: (a) quando o tomador estiver situado no mesmo município em que se verifique o critério espacial para aquele serviço específico; e (b) quando, obviamente, o serviço seja prestado em município onde estejam situados tomador e prestador. Com exceção desses dois casos, a figura do substituto tributário será violadora, tanto da Constituição como do Código Tributário Nacional. 45. A incidência do ISS na importação de serviços afigura-se inconstitucional, em razão da necessidade de que o regime jurídico a ser aplicado em casos de substituição tributária obrigatoriamente seja o do substituído, e não o regime do substituto, assim como viola o Princípio da Territorialidade, nos casos em que o fato tributário ocorra integralmente no exterior. 46. É legítimo o dispositivo previsto no artigo 156, § 3º, II, da Constituição, por se tratar de uma competência especial atribuída ao Estado brasileiro para conceder isenções, que objetivam proteger interesses nacionais relevantes, interesses que transcendem aos das ordens jurídicas parciais, sem que disso possa resultar qualquer ofensa ao Princípio da Autonomia Municipal. 409 47. A regra subsidiária para a falta de estabelecimento – tanto na legislação anterior como na atual, que desloca a competência para o município onde está localizado o domicílio do prestador – está em flagrante contradição com a matriz constitucional do ISS, donde se extrai que o critério espacial da hipótese de incidência, por estar vinculado ao critério temporal, só poderia indicar o local em que se consumou a prestação do serviço. 48. As dificuldades na fiscalização e na cobrança do ISS, nas hipóteses de serviços meramente intelectuais – prestados sem a intermediação de um estabelecimento prestador – assim como nos serviços em que seja difícil a identificação do local onde ocorre a atividade-fim – apesar de extremamente relevantes dos pontos de vista pré e pós-jurídico – não podem interferir no resultado da interpretação dos textos normativos e, portanto, não são passíveis de análise no presente estudo. 49. Ao contrário da regra geral do estabelecimento prestador, a qual é passível de uma interpretação conforme a Constituição, a regra prevista tanto no artigo 12 do Decreto-lei nº 406/68 como no artigo 3º da Lei Complementar nº 116/2003, que desloca o local de ocorrência do fato tributá