Subjetividade a favor do corpo e da poesia
Celso Gutfreind
“O escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe.”
Roland Barthes
O tema da apresentação consiste no cruzamento do corpo e da
subjetividade, neste momento histórico de pane dos dois, especialmente no
movimento do primeiro para a segunda.
Exageramos com o corpo, carecemos da subjetividade. Exagerar, aqui,
significa utilizar muito com pouco afeto, mais afeito a cabeça, como D.H.
Lawrence descreveu, em sua prosa, com muita poesia: “Quando nos
penetramos, fazemos nascer uma chama. Até as flores são criadas pela cópula
do sol com a terra.”.
Ora, a saúde mental é também a possibilidade de construir sentidos,
fomentar mentalização, trocas interpessoais; enfim, encontro. Crescer é fazer
laços, vínculos. E acrescentamos: laços e vínculos são subjetivos.
Vivemos tempos narcisistas, auto-centrados, virtuais, adjetivados como
esta descrição, fechados e pouco substantivos. Resultado: muito corpo refeito,
sarado, suado, musculoso, recauchutado. E pouca subjetividade.
O vazio de tanta patologia do vazio (mais que as sexuais, mais que as
histerias) pode vir desta luta contra o tempo; é preciso tempo para que a
subjetividade encontre o seu espaço. Adentremos a Arte de Amar, do poeta
Manuel Bandeira:
“Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.”
Bandeira não está só nesta dissociação. Acompanham-no Descartes,
vinte e um séculos de civilização judaico-cristã. E Heine:
“Quero-te em carne e osso;
Da alma não necessito,
Podem jogar no fosso,
Pois não me falta espírito.”
Sim, é preciso que os corpos se entendam para que venha o amor (a
subjetividade da alma). Pode estar ali o maior entrave desta época de muito
corpo conversando consigo mesmo. Sem tempo para olhar o outro (e mesmo o
corpo do outro) nos olhos, nos gestos, nos toques, na empatia, na boa perda
de tempo.
Mas por que os corpos são necessários?
Como sempre, os poetas responderam melhor do que os filósofos. E do
que os psicanalistas. Os corpos se entendem, mas as almas não, disse o
poeta. Ou: a nós gente só foi dada, maldita capacidade, transformar amor em
nada, como cantou outro (Paulo Leminski).
No começo da vida, as almas são esboços. Em nenhum outro momento
- a não ser no sexo, a não ser no amor-, estão tão intrincadas com o corpo e
são o que éramos antes de, ocidentais industriais, tornarmo-nos cartesianos,
separando-os para nos tornarmos inferiores a outros povos (primitivos?), que já
julgamos inferiores, como os índios, para quem corpo é alma, e alma é corpo.
Os estudiosos do mundo interpessoal dos bebês – Stern, Cramer,
Lebovici, Missionnier, Victor Guera, entre outros – são como os índios e, talvez
por isto, assustem aqueles que temem ver crianças no aqui e agora. Estes
preferem estudá-las, no adulto recomposto, para ganhar distância e, sobretudo,
um tempo. Compreende-se: subjetividade arde. Protocolos assopram.
Remédios, tempo, também.
No começo, os corpos são veículo.
No começo, o corpo é alma. É tudo.
O ego é corporal para Freud e Anzieu (ego pele).
A capacidade de fazer metáforas e criar (saúde mental) vem da empatia,
que vem do corpo (Lebovici).
A capacidade de falar (saúde mental, diferencial humano) vem das
interações precoces (Golse).
Não é difícil teorizar o corpo, muitos já o fizeram; todos, de certa forma.
É olhar a psicanálise. A psicologia do apego. A psicologia do desenvolvimento.
É pegar, hoje, onde todas elas se cruzam: o corpo segue sendo
protagonista.
Mas, agora, teorizar seria trair o tema. Nem a poesia de Bandeira ou
Leminski seria capaz de salvar-nos. Nem a de Drummond, que escreveu um
livro sobre o corpo, com uma subjetividade erótica, existencial:
Coxas bundas coxas
bundas coxas bundas
lábios línguas unhas
cheiros vulvas céus
terrestres
infernais
no espaço ardente de uma hora
intervalada em muitos meses
de abstinência e depressão.
O poeta deixou claro que o momento de encontro dos corpos é o
descanso da depressão. Trata-se da hora triste e alegre em que retomamos a
verdade primeva, erótica e olhada, desejada e molhada, acompanhada enfim.
Para Drummond e todos nós. Mas sinto agora que, para falar do corpo sem
mentir, é preciso acionar a poesia do próprio corpo. Falar com o corpo.
Por isto, aciono duas lembranças de quando trabalhei com o corpo e
sinto que ele salvou a pane de subjetividade, na co-construção de um
tratamento.
Na primeira, eu estava com Maria, menina de 9 anos, com uma história
de adoção, depois de uma semana de vida. A anamnese sugeria que os
entraves para o seu desenvolvimento contavam com nove meses de uma
gestação de que pouco sabíamos e uma semana de privação, de que
sabíamos um pouco melhor. O resto, ou seja, a vida com o pai e a mãe
adotivos, parecia razoável, suficiente.
Maria desafiava o setting. Estragou uma impressora, duas cortinas, um
tapete. Tive a sensibilidade de perceber que o ambiente não era adequado
para ela, mas não tive a de perceber que a minha relação com o meu corpo,
também não. Ela estava aprisionada pelo que, teoricamente, eu chamava de
barreira terapêutica, regras que tornavam meu corpo inviolável e que as outras
crianças conseguiam tolerar. Não Maria. Ela queria invadir o meu corpo, para
ela não era limite, e sim teatro vital. E já não adiantava ficar com cortinas ou
impressora, era preciso estar de corpo presente.
Estávamos neste impasse quando me dei conta de que ela buscava,
essencialmente, as minhas orelhas e, nelas, as extremidades, as suas partes
moles.
Foram meses de embate, ela pedindo para tocar na ponta das minhas
orelhas, eu pedindo para ela respeitar meu setting anti-corpo.
Um dia, corpo cansado, avaliando que orelha não é olho nem pescoço,
deixei. Não sei dizer de onde veio esta intuição, mas senti que era da alma do
corpo.
Ela teve um prazer enorme, expressado por um corpo que ria e se
sacudia, triste e feliz. Em seguida, vieram as palavras, que costumam chegar
depois de bons momentos com o corpo. Transcrevo-as:
- Espremi tuas orelhas e saiu leite.
Com este leite, encheu a mamadeira e alimentou um filhote de leão.
Com este leão, bem amamentado, brincou de verdade.
A vivência destrancou o tratamento de Maria. Poucos dias depois, ela
organizou um jogo, repleto de palavras e significados, sem meu corpo: a
pequena leoa sofria, pois passara um dia sem que ninguém a tocasse, a
olhasse, lhe desse leite. Depois, pediu para eu interpretar a leoa e o fiz,
novamente, com meu corpo, incorporando um bicho desesperado, porque não
era alimentado nem de olhar e nem de leite. Ela vibrou com aquela
compreensão.
Maria já tinha palavras e, nas minhas, estou convencido de que, se não
fosse o meu corpo (transferencial, arcaico) e, mais precisamente, a minha
orelha, aquele subjetividade não se criaria.
A outra lembrança vem de uns anos antes de Maria. Eu estava
realizando uma pesquisa de doutorado, junto a abrigos franceses. Havíamos
montado uma pequena equipe que oferecia terapia em grupo para crianças
separadas de seus pais. O mediador era o conto, e a hipótese principal sugeria
que encontros, em torno de narrativas, permitiriam que as crianças se
lançassem à subjetividade de suas próprias histórias.
Trabalhávamos dentro da instituição, com um setting mais flexível em
termos de espaço e de corpos. As crianças buscavam, antes das histórias, o
olhar e o toque. Assim avançávamos, convencidos de que o caminho era este,
do corpo à palavra, do olhar à história, do caos ao sentido.
Foi quando o pequeno François, de 6 anos, veio por trás de mim e me
deu um chupão no pescoço; um chupão erótico, de amante, que me deixou
muito incomodado e brabo a ponto de querer retirar François do grupo,
conforme era a nossa combinação em casos como este.
Felizmente, não o fiz; a alma do meu corpo, lá naquela hora, conduziume e levou-me a recordar de algumas brigas de quando eu era menino, em
especial uma em que fui imobilizado por um menino maior. Então, poderia ser
isto: o ato de François era um teatro presente, que propunha um cruzamento
de passados (subjetividade): o dia em que apanhei de um menino maior, mas
não o suficiente para imobilizar meu corpo que, agora, solto, compreendia o
teatro de François, um menino imobilizado pelo abuso sexual e para quem
chupões no pescoço não faziam o menor sentido.
A partir da compreensão que fiz com meu corpo (o abuso do meu
corpo), as sensações agora podiam fazer sentido. Ajudei-o, pensando e
sentindo mesmo. Função alfa e de reverie, de Bion? Talvez. Que feita com o
corpo, é certo.
O episódio mudou a minha relação com François e as demais crianças.
Passado o desejo de abandonar aquele trabalho, pleno de uma
contratransferência quase insuportável, veio de meu corpo a idéia de que
passado e presente não são a mesma coisa; é possível construir histórias,
historiar-se, montar subjetividades, que fazem laços, que dão gosto à aventura
humana. A nossa história, subjetiva, escreve-se a partir do corpo para que
possamos contá-la depois, ardidos de subjetividade.
São duas pequenas lembranças, talvez encobridoras. Porque me
parecem situações limites de corpos trabalhando para o surgimento da
subjetividade, na transferência. Não acho que os outros embates quotidianos
de um analista sejam diferentes. Podem ser mais sutis, disfarçados,
metaforizados. Mas é oferecer algum descanso para a palavra e perceber que,
por detrás dela, espreita-nos um olhar, um gesto, um corpo. É deles – do
corpo, portanto – que nascemos para o mergulho no mundo subjetivo, este que
vale a pena e que mais conta.
E, se iniciamos pela poesia, é hora de concluirmos com ela; desculpa,
Bandeira, por mexer em teu poema, mas quando os corpos se entendem, a
subjetividade nasce, e as almas se entendem também. Desculpa, Leminski,
transformei corpo em alma. Desculpa, Drummond, mas, quando os corpos se
entendem, não há abstinência nem depressão depois do sexo: há tristeza,
alegria, desejo de mais subjetividade. Há corpo e alma juntos, como contou
Heine:
“Corto minh´alma ao meio:
Assopro-te a metade,
Te abraço, então, seremos
Corpo e alma de verdade.”
Resumo:
Neste artigo, o autor, psicanalista e psicanalista da infância pela Sociedade
Brasileira de Psicanálise, de Porto Alegre, faz um estudo de caso de dois
atendimentos de criança em análise. A partir de exemplos poéticos, em
especial, poesia, reflete sobre a importância do corpo do analista, na sessão de
análise, como forma de incrementar a contratransferência, entrar em contato
com o paciente e fomentar a subjetividade. Reflexões sobre a comunicação
analógica da primeira infância e o seu papel na psicanálise da criança também
são realizadas.
Referências Bibliográficas:
.
ANDRADE, Carlos Drummond de (1984), Corpo, Rio de Janeiro, Record.
BANDEIRA, Manuel (1983), Estrela da Vida Inteira, Rio de Janeiro, José
Olympio.
BARTHES, Roland (2010), O Prazer do Texto, tradução de J. Guinsburg,
São Paulo, Perspectiva.
BION, WilFreud. R. (1963), Eléments de la psychanalyse, Paris, Puf,
1979.
GOLSE, Bernard (1999), Du corps à la pensée, Paris, Puf.
GOLSE, Bernard (2003), Sobre a Psicoterapia Pais-Bebê: narratividade,
filiação e transmissão, São Paulo, Casa do Psicólogo (Coleção Primeira
Infância).
HEINE, Heinrich (2011), heine hein?poeta dos contrários, tradução de
André Vallias, São Paulo, Editora Perspectiva.
LAWRENCE, David Herbert (2008), O amante de Lady Chatterley,
tradução de Rodrigo Richter, Rio de Janeiro, Edições BestBolso.
LEBOVICI, Serge (2002), Le Bébé, le Psychanalyste et la Métaphore,
organizado por B. Golse, Paris, Editions Odile Jacob.
LEMINSKI,
Brasiliense.
Paulo
(1989),
Distraídos
Venceremos,
São
Paulo,
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