CAP 21 – IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE O REFLEXO O conceito de estádio do espelho, foi desenvolvido pelo psicanalista francês Jacques Lacan em 1936, a partir da definição estabelecida pelo médico, psicólogo e filósofo francês Henri Wallon. Wallon havia mostrado que, no estádio do espelho, o ser humano passa do estágio especular para o imaginário e deste para o simbólico. Com esse processo, há a construção da consciência de si mesmo como ser em formação, cuja imagem visual estimula o desenvolvimento. Lacan elaborou o conceito proposto por Wallon observando o próprio filho de apenas 6 meses de idade, que foi colocado diante do espelho. A relação entre o “eu” e o “outro” destaca e organiza duas formas de existência. Tanto a individualidade quanto a coletividade prosseguirão durante toda a existência humana. A sensação de pertencimento faz com que nos sintamos parte de algo que se situa fora de nós. Isso é o que chamamos de identidade, ou seja, a possibilidade de vencer certas oposições que existem entre nosso mundo interior e o meio circundante, percebendo esse mundo como nosso prolongamento e a nós próprios como parte dele. Ainda que incapaz de sustentar o corpo, a criança reconheceu a própria imagem refletida e regozigou-se com ela. O ser humano tem a experiência simbólica do eu, base da sua individualidade. Trata-se de uma experiência de natureza simbólica, que faz emergir a capacidade humana de se relacionar com o mundo circundante e consigo mesmo por intermédio de signos. Permitirá também a identificação do outro e dos outros, que sempre constituirão para ele uma referência exterior e distinta de si mesmo. Esse (s) outro (s) estabelecerá (ão) com ele uma relação dialética (oposição e síntese) envolvendo o interno e externo ao indivíduo, os sujeitos e a sociedade. Integração à sociedade A relação entre a cultura e a estrutura da personalidade do indivíduo é estudada, entre outros, pelo psicanalista americano Abram Kardiner. Segundo ele, o caráter integrativo da mente humana é genético, ou seja, refere-se a capacidades inatas do indivíduo. Seus estudos, mostraram, todavia, que existem diferentes processos de adaptação em culturas diversas. Exemplo: o apetite faz parte de uma estrutura de personalidade básica, mas a maneira como o meio social atua para alimentar a criança tende a desenvolver diferentes atitudes do indivíduo diante do alimento. Sapo frito Balut - pato fertilizado ou ovo de galinha Churrasco brasileiro Culinária brasileira Assim, as pesquisas permitem observar que, para além da personalidade básica, é possível reconhecer aspectos individuais no interior de um grupo. Os sonhos e a cultura Diversos sociólogos desenvolveram estudos sobre as relações entre a psique, a personalidade e a sociedade. Entendimento dessa troca de influências. O sociólogo brasileiro Florestan Fernandes foi um dos que analisaram as condicionantes sociais da experiência onírica, partindo do princípio de que os sonhos só existem e são memorizados quando o sonhador está desperto e compartilha os sonhos em grupo. Segundo Florestan, a interpretação dos sonhos depende de outros elementos da cultura que expliquem a natureza da experiência onírica. De acordo com esses elementos, o sonho pode ser uma manifestação divina, uma premonição ou a manifestação de nossos desejos e angústias inconscientes, como explica a teoria freudiana. Roger Bastide, sociólogo e antropólogo francês que chegou ao Brasil em 1938 e permaneceu por muitos anos, foi um dos grandes estudiosos do trânsito entre a sociologia, a psicologia e a psicanálise. Explora as condicionantes sociais dos diferentes estados mentais, como os sonhos, os devaneios e as alucinações. Segundo o sociólogo, é pela memória individual que as imagens são feitas de acordo com o interesse que despertam no meio social do sonhador. Outro sociólogo a se dedicar ao estudo dos sonhos foi José de Souza Martins. Ele apresenta uma pesquisa realizada com a colaboração de seus alunos, em que foram coletados 180 sonhos de habitantes da cidade de São Paulo. A maioria dos sonhos diz respeito a sensações de insegurança, medo e mal-estar, refletindo a vida cotidiana do paulistano, marcada pela violência e insegurança urbana. Além das narrativas dos sonhos, os pesquisadores realizaram entrevistas para detectar ideias e visões de mundo com as quais os entrevistados interpretavam seus sonhos. Nessa pesquisa, observou-se que a maneira como o sonhador vê o sonho muda de acordo com suas crenças. Por exemplo, o sonhador que se considera religioso costuma entender os sonhos como parte de suas experiências sagradas ou transcendentais. Os sonhos tendem a reproduzir uma experiência polarizada: a casa sempre vivida como lugar seguro, enquanto a rua é espaço ameaçador. Como se pode perceber, os sonhos repercutem os conflitos e as contradições que o sonhador experimenta na vida cotidiana e no estado de vigília, podendo servir de elemento importante para a pesquisa das fronteiras entre a subjetividade e a vida social. Entretanto, são pouco comuns as investigações nessa área, em razão da objetividade sempre pretendida nos estudos sociológicos. A pesquisa sociológica dos sonhos, todavia, vem demonstrando que há uma relação importante entre a vida social e a psique, entre a sociedade e a mente dos indivíduos, nos mais diferentes estados mentais em que essa relação se manifesta. O eu e o outro Desde muito cedo uma criança, um bebê, mostra capacidade inata para buscar fora de si mesma, como em uma imagem refletida no espelho, sua completude. Na imagem ela encontra elementos simbólicos capazes de desenvolver esse sentimento tão peculiar, misto de reconhecimento e pertencimento. Consciência do outro. A criança quando se identifica com a imagem no espelho já realiza um recorte, ou seja, isola sua imagem e a diferencia do adulto que a sustenta. Nesse movimento de inclusão ou exclusão do qual depende a identidade individual está a raiz de uma relação permanente e indissolúvel entre o eu e o outro. O outro é a testemunha de nossa identidade. Diversos estudos sociológicos afirmam que a alteridade é o elemento principal na condição humana, ou seja, a relação do eu com o outro, em uma oposição dialética. Nas respostas do outro, interagindo conosco, encontramos a direção para as situações futuras. O outro é o espelho permanente no qual nos miramos e tomamos consciência de nossos acertos e erros. Caso de Kaspar Hauser Mostra a impossibilidade do pleno desenvolvimento da identidade e da individualidade em um ser privado do convívio com o outro. Hauser tinha 15 anos quando foi deixado, em 1828, numa praça da cidade de Nuremberg, na Alemanha. Segundo uma carta encontrada em seu poder, Hauser havia sido criado até então em completo isolamento e sem contato com outros seres humanos, razão pela qual não sabia falar nem tinha nenhum conhecimento de como se comportar em relação aos outros. Ele foi recebido na cidade, e paulatinamente as pessoas começaram sua socialização, ensinandoo a comer, beber, comunicar-se e expressar sentimentos. Hauser ficou conhecido na Europa da época, provocando sentimentos contraditórios de solidariedade e desprezo, terminando por ser assassinado. A relação com o outro, como Kaspar Hauser comprova, não é sempre amena ou harmoniosa. É uma relação dialética. Este é o desafio da vida social: estabelecer códigos minimamente válidos para a nossa existência e a dos outros. Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio? (Prólogo do Filme O Enigma de Kaspar Hauser de Herzog, 1974)