AJURIS A R IO G R A EN REP U ND BL I C SE TE D E DE 18 35 20 SE M B RO PODER JUDICIÁRIO SENTENÇAS RIO GRANDE DO SUL 4 Porto Alegre – Dezembro de 2000 2 Sentenças : Rio Grande do Sul / [ publicada por ] Poder Judiciário e Ajuris. – v.1 (dez. 2000)- . – Porto Alegre: Departamento de Artes Gráficas, 2000Semestral. 1. Poder Judiciário-Rio Grande do Sul-Sentença-Periódico 2. Poder Judiciário-Rio Grande do Sul-Primeiro grau-Periódico I. Rio Grande do Sul. Poder Judiciário II. Ajuris. CDU 347.993(816.5)(05) Catalogação elaborada pela Biblioteca do TJ-RS CAPA: Abreudesign 3 SUMÁRIO Composição do Tribunal de Justiça ...................................................................... 5 Composição da Associação dos Juízes ................................................................. 6 Editorial ........................................................................................................................ 7 Sentenças Cíveis ........................................................................................................ 9 Sentenças Criminais ................................................................................................... 313 Índice ........................................................................................................................... 345 4 5 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Des. Des. Des. Des. Des. Des. Des. Des. Des. Bel. Luiz Felipe Vasques de Magalhães – Presidente Tael João Selistre – 1º Vice-Presidente Antonio Janyr Dall’Agnol Junior – 2º Vice-Presidente Délio Spalding de Almeida Wedy – 3º Vice-Presidente Antonio Guilherme Tanger Jardim – 4º Vice-Presidente Danúbio Edon Franco – Corregedor-Geral da Justiça Leo Lima – Vice-Corregedor-Geral da Justiça Donato João Sehnem – Diretor-Geral do Tribunal de Justiça Luiz Armando Bertanha de Souza Leal – Subdiretor-Geral Administrativo Luiz Fernando Morschbacher – Subdiretor-Geral Judiciário ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL BIÊNIO 2000-2001 CONSELHO EXECUTIVO Dr. Luiz Felipe Silveira Difini – Presidente Des. José Aquino Flôres de Camargo – Vice-Presidente Administrativo Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha – Vice-Presidente Social Dra. Vera Lúcia Deboni – Vice-Presidente Cultural Dr. João Ricardo dos Santos Costa – Vice-Presidente de Patrimônio e Finanças CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA SENTENÇAS Dr. Luciano André Losekann Dr. Jorge Luiz Lopes do Canto Dra. Adriana da Silva Ribeiro 6 7 EDITORIAL Com enorme satisfação, na qualidade de magistrado deste Estado, apresento à comunidade jurídica rio-grandense a Revista “Sentenças”, volume nº 4, trazendo a produção intelectual e qualificada dos Juízes de 1º grau, cuja atividade constitucional de decidir é exposta como garantia da constante distribuição da justiça e contínua construção do estado democrático de direito. Além do suporte imprescindível para o mister forense dos lidadores do Direito, objetiva a presente edição trazer ao leitor as mais diversas decisões a cerca de temas variados e complexos, refletindo, conseqüentemente, os posicionamentos jurídicos, econômicos e sociais de seus prolatores, com explícita demonstração da constante busca no aprimoramento e real efetivação dos direitos fundamentais e da cidadania daqueles que depositam neste Poder sua esperança de justiça. Mais um volume, agora o quarto, representa não apenas o sucesso da publicação, mas a exigência de seu constante aprimoramento, reflexos de um trabalho criterioso e científico de seus editores e, especialmente, conseqüência do estudo e dedicação de seus autores, responsáveis pela árdua e difícil missão de julgar. Desembargador Luiz Felipe Vasques de Magalhães Presidente 8 9 SENTENÇAS CÍVEIS 10 11 Processo nº 772 – Ação Civil Pública 2ª Vara Judicial de I. Autor: Ministério Público Réus: J. S. M. e A. C. L. B. Juiz prolator: Alan Tadeu Soares Delabary Júnior Improbidade administrativa decorrente de cargo público exercido de forma irregular. Ação civil pública julgada parcialmente procedente. Vistos, etc. O Ministério Público ingressou, neste juízo, com a presente ação civil pública contra J. S. M. e A. C. L. B. A inicial narra que o réu A. C. L. B. foi designado Secretário Municipal de Saúde e, através do Decreto nº 1.953/93, foi convocado para exercer as suas funções em regime de trabalho com dedicação integral. Asseverou o Parquet que o art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/90, com redação dada pela Lei Municipal nº 1.936/ 93, prevê uma gratificação especial para os detentores de Cargo em Comissão – CC ou Função Gratificada – FG, quando exercessem cargos de Secretário Municipal, Assessor Jurídico, Assessor Especial, Chefe de Gabinete e Assessor de Planejamento e Coordenação. Tal adicional possui o coeficiente de 1.8 sobre o respectivo Cargo em Comissão ou Função Gratificada. O Agente do Ministério Público informou que, por inúmeras vezes, o réu A. B. deixou a Secretaria de Saúde para realizar, durante o expediente, sua atividade como médico-anestesista. Tais informações foram obtidas junto à administração do Hospital S. P., onde o réu exerce suas atividades profissionais. Segundo o Parquet, o recebimento de gratificação para dedicação integral e a manutenção de atividade paralela, inclusive no horário de expediente na Prefeitura Municipal, caracterizaram ato de improbidade administrativa, praticada pelo réu A. B. Não é diferente a situação do co-réu J. S. M., que, como Prefeito Municipal, agiu com negligência, face ao pagamento das gratificações ao réu A. B. É obrigação de o Chefe do Executivo Municipal fiscalizar a correta aplicação da verba pública, sendo inadmissível que não tivesse conhecimento do fato e, mais, que não o tivesse impedido. Asseverou o Ministério Público que os réus praticaram os atos definidos como ímprobos e previstos nos arts. 9º, caput, 10, caput, e inc. XI, e 11, caput, e inc. I, da Lei nº 8.429/92. Pediu: a) que fosse declarado que os réus praticaram ato de improbidade administrativa; b) que fossem os réus condenados a ressarcirem, integralmente, os valores mensais pagos indevidamente a A. C. L. B., referente ao recebimento da gratificação prevista no art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/90; e c) que fossem os réus condenados à perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o Poder Público e receber benefícios ou incentivos fiscais. Pediu, ainda, o Agente Ministerial 12 a requisição de documentos junto ao Município de I. e ao Hospital S. P. Juntou documentos, às fls. 28-111. Em despacho das fls. 76-8, foi indeferida a requisição postulada, com fulcro no art. 129, II e VI, da CF/88, e assinado prazo de 30 dias para que fosse providenciada a juntada dos documentos. Os documentos foram juntados às fls. 80-9 e 91-111. Citados, os réus ofereceram contestação, sendo o Município de I., através de curador nomeado pelo juízo, à fl. 112. O réu J. S. M. (fls. 118-120) aduziu que não existe qualquer ato de improbidade na sua conduta. Asseverou que foi mais vantajoso economicamente para o Município a convocação do médico A. C. L. B. para o regime de dedicação integral, do que o pagamento de horas extras. A carga horária do Secretário da Saúde, cargo exercido por A. B., ultrapassa, e muito, o horário de expediente da Prefeitura Municipal. Narrou que o Município não possuía exclusividade nos préstimos profissionais do então Secretário da Saúde, que podia exercer a Medicina. Que profissionais conceituados não se sujeitariam a perceber somente a importância de R$ 1.338,16 mensais. Pediu a improcedência da ação. O co-réu A. C. L. B., por sua vez, alegou, em sua contestação (fls. 121-9), que: inexistia impedimento legal para que exercesse a Medicina cumulativamente ao exercício do cargo de Secretário da Saúde; sempre exerceu as suas funções além do horário de expediente; a ínfima remuneração recebida não caracterizou qualquer privilégio, pelo contrário, provocou desvantagem econômica ao réu; SENTENÇAS se não recebesse a gratificação, deveria perceber horas extras; existem no Município apenas dois médicos-anestesiologistas, logo, se não pudesse exercer sua atividade, haveria prejuízo para a população; o médico não pode deixar de atender a setores de urgência e que atua na comunidade há 19 anos, tendo sempre pautado sua conduta profissional em princípios morais, éticos e humanitários. Postulou a expedição de ofícios ao Hospital S. P. e à Prefeitura Municipal, solicitando informações sobre os horários das atividades do réu nestas instituições e, no mérito, a improcedência da ação. O curador nomeado ao Município manifestou-se pela procedência da ação (fls. 132-4), tendo em vista que desrespeitados os princípios da legalidade e moralidade, e que não pode aquele que exerce cargo público desconhecer as normas e obrigações que são implícitas às suas funções. O Ministério Público replicou, fls. 138-149. Em audiência de instrução, foi colhida a prova oral, com os depoimentos pessoais dos réus às fls. 162-4. A oitiva das testemunhas arroladas pelo réu A. B. foi dispensada, face à sua ausência e de seu procurador na audiência (fl. 167). Os debates orais foram substituídos por memoriais apresentados pelo Ministério Público (fls. 170-80), pelos réus (fls. 181-2 e 184-7) e pelo curador nomeado (fls. 188-9). É o relatório. DECIDO A Constituição Federal de 1988, no seu art. 37, consagrou como um dos princípios que deve reger a Administração Pública o da Legalidade. Reza o referido artigo: “A administração Pública SENTENÇAS direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte...” O princípio da legalidade – que resulta do Estado de Direito, art. 1º da CF/88 – pauta a conduta dos agentes públicos à lei. O agir do administrador público deve dar-se nos estritos termos da legislação. A sua liberdade de atuar (discricionariedade) encontra na lei o alicerce e, ao mesmo tempo, o limite. Como nos ensina o saudoso mestre Hely Lopes Meirelles: “A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito a mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso...” Continua o notável doutrinador: “... Na Administração Pública não há liberdade, nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública, só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’; para o administrador público significa A. C. L. B. ‘deve fazer assim’.” (In “Direito Administrativo Brasileiro”, 20ª ed., 1995, Editora Malheiros, p. 82). No presente caso, tem-se que o co-réu A. C. L. B. foi nomeado pelo Decreto nº 1.952/93 para exercer a Função Gratificada de Secretário Municipal de Saúde (fl. 29). Na mesma data (25-02-93), o citado réu foi convocado para traba- 13 lhar em regime de dedicação integral, pelo Decreto nº 1.953/93 (fl. 30). A convocação para o trabalho em regime integral deu ao réu A. o direito a perceber a gratificação de 1.8 sobre total da sua FG, nos termos do art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/90, modificado pela Lei Municipal nº 1.936/93. Tal adicional foi pago de março de 1993 até março de 1996, como se denota na documentação das fls. 84-8. Mesmo com a convocação para o regime integral, como Secretário da Saúde, e percebendo gratificação para tal, o réu A. B. não se afastou da sua atividade profissional de médico-anestesista. E mais, exerceu sua profissão no horário de expediente da Prefeitura Municipal (das 08h às 13h), como demonstram os documentos remetidos pelo Hospital S. P. (fls. 93-111) Tais fatos, aliás, são incontroversos, vez que ambos os réus não negam que foi paga a gratificação. Em seu depoimento pessoal, o réu A. B. aduz (fl. 163): “... quando convocado pelo Prefeito, Dr. J. M., para assumir o cargo de Secretário da Saúde, não deixaria de exercer a sua atividade de anestesista...” A gratificação paga era para dedicação integral. O réu A. deveria ter-se afastado do exercício da Medicina, ou, então, não ter assumido o cargo público. O fato de não ter ocorrido o afastamento das funções e ter percebido gratificação para dedicação exclusiva é inadmissível. Tal conduta feriu o princípio da legalidade e da moralidade. Se há um decreto municipal prevendo a dedicação exclusiva, deve o agente público segui-lo à risca, pois, como já foi referido, o administrador público está vinculado à lei, que limita o seu agir. 14 A dedicação integral, segundo ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, é o regime pelo qual “... o servidor só pode trabalhar no cargo ou na função que exerce para a Administração, sendo-lhe vedado o desempenho de qualquer outra atividade profissional pública ou particular...” (ob. cit., p. 411) Não merecem ser acolhidas, portanto, as alegações de que o então Secretário da Saúde, uma vez convocado para o regime de dedicação integral, poderia exercer sua atividade profissional. Se os vencimentos eram poucos para o exercício do cargo público, se na cidade havia somente outra anestesista, além do réu A. B., são circunstâncias que deveriam ter sido meditadas antes da assunção ao cargo. Ainda mais quando se trata de Secretário Municipal – cargo de confiança. Se, sopesados tais fatores, o réu decidiu não se afastar do exercício da Medicina, jamais deveria ter aceitado o cargo público. A conduta dolosa de A. B. enquadra-se no art. 9º, caput, da Lei nº 8.429/ 92. O referido réu recebeu indevidamente vantagem econômica (gratificação prevista no art. 32 da Lei nº 1.755/ 90, alterado pela Lei Municipal nº 1.936/ 93), vez que se deveria ter dedicado integralmente ao serviço público. O que comprovadamente não fez, exercendo sua profissão cumulativamente ao cargo público e no horário do expediente municipal. Os atos de improbidade imputadas ao réu A. B. e previstos nos arts. 10, caput, e inc. XI, 11, caput, inc. I, todos da Lei nº 8.429/92, entretanto, devem ser absorvidas pelo art. 9º, caput, da referida lei. A situação do réu J. M. não SENTENÇAS é diferente. Como, então, Chefe do Executivo Municipal, sob hipótese alguma poderia ter autorizado o pagamento da gratificação ao co-réu A. B., sabendo que este não se afastaria das suas funções. J. M. autorizou o pagamento da gratificação (Decreto Municipal nº 1.953/ 93), mesmo tendo ciência de que A. B. não deixaria a sua atividade profissional particular. Como se depreende no seu depoimento (fl. 163-v.): “... O depoente não chegou a tratar sobre as anestesias que o médico A. C. viesse a realizar durante o expediente da Secretaria da Saúde, por entender implícita tal situação, por se tratar ele de médico e pequena a cidade que tem apenas dois médicos-anestesistas...” O ex-Prefeito J. M., assim como o A. B., praticou ato caracterizado como de improbidade administrativa. Mais precisamente, no art. 10, caput, da Lei nº 8.429/92 (absorvidas as demais condutas a ele imputadas na inicial – arts. 9º, caput, 10, XI, e 11, caput, e inc. I, da referida Lei de Improbidade). A sua conduta causou lesão ao Erário Municipal, quando autorizou, dolosamente, o pagamento da gratificação prevista na Lei nº 1.936/93, ao então Secretário da Saúde. Mesmo sabedor que era de que A. B. não se dedicaria, integralmente, ao serviço público, o que de fato não fez. O estrito cumprimento da lei pelos agentes públicos – princípio da legalidade dos atos administrativos – foi desrespeitado pelos réus. E como afirma Fábio Medina Osório: “No Estado de Direito, quer-se o governo das leis, não SENTENÇAS dos homens, radicando o princípio da legalidade, especificamente, nos arts. 5º, II, 37, 84, IV, todos da Carta Constitucional vigente, significando que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina”. (in “Improbidade Administrativa”, 2ª ed., Editora Síntese, p. 127) As alegações de que a opção pelo pagamento de gratificação seria mais vantajoso ao Município do que o pagamento de horas extras não prospera. Primeiro, porque a gratificação era para o regime de dedicação integral, como já foi abordado. E, depois, porque o Município não está sujeito ao pagamento de horas extras aos Secretários Municipais. Como lembra o agente ministerial, os Secretários Municipais são agentes políticos (modalidade de agentes públicos), que não estão sujeitas às normas que regulamentam os servidores públicos. Nesse sentido, a lição de Hely Lopes Meirelles: “Agentes Políticos: ... Não são servidores públicos, nem se sujeitam ao regime jurídico único estabelecido pela Constituição de 1988. Têm normas específicas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhe são privativos...” (ob. cit., p. 72) Os agentes políticos não estão sujeitos à percepção de horas extras. Não só pela ausência de previsão legal, mas como também porque é inerente a tais cargos (autoridades públicas) o comprometimento com a sociedade, sem que seja exigida benefícios financeiros ao titular de tão nobre função. Como já foi frisado, se era desinteressante financei- 15 ramente ao réu A. B. o exercício exclusivo do cargo de Secretário da Saúde, não deveria ter ele o assumido. As penas previstas para aqueles que praticam atos de improbidade estão previstas no art. 12, I a III, da Lei nº 8.429/ 92. As cominações, além do ressarcimento do dano, abrangem a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, o pagamento de multa civil e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. As referidas cominações são de extrema gravidade, devendo ser usadas com comedimento. O princípio utilizado para a fixação das penas é o da proporcionalidade, que nada mais é do que a equivalência da pena à infração praticada. No dizer do já referido autor Fábio Medina Osório: “O princípio da proporcionalidade, de matriz constitucional, é de ser aplicado pelo Poder Judiciário na concretização da Lei nº 8.429/92, seja na própria tipificação do ato de improbidade, deixando de fora dos tipos legais comportamentos que não se mostrem materialmente lesivos aos valores tutelados pelo legislador e pelo constituinte de 1988, seja na adequação da resposta estatal, através das sanções, a ilícitos de menor gravidade”. (ob. cit., p. 271) Com base no princípio da proporcionalidade, passo a fixar as cominações a serem aplicadas aos réus. Ao réu A. C. L. B., pela prática art. 9º, caput, da Lei nº 8.429/92, devem ser aplicadas as seguintes penas (previstas no art. 12, I, da Lei de Improbidade Administrativa): 1. deverá ressarcir o dano causando ao Erário, com a devolução da gratificação de 1.8 sobre a FG que recebia, 16 prevista no art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/80, modificada pela Lei Municipal nº 1.936/93; 2. terá os seus direitos políticos suspensos pelo prazo de 08 anos, mínimo previsto; 3. pagará a título de multa civil, a ser revertida ao Município, o valor que recebeu indevidamente, através da gratificação para dedicação integral. Tal cominação, também, é a penalidade mínima prevista; e 4. estará proibido de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 10 anos; No que tange ao réu J. M., que cometeu o ato de improbidade previsto no art. 10, caput, da Lei nº 8.429/92, devem ser aplicadas as cominações descritas no art. 12, II, da Lei de Improbidade Administrativa: 1. terá os seus direitos políticos suspensos pelo prazo de 05 anos, mínimo previsto; 2. pagará a título de multa civil, revertida à Municipalidade, o valor recebido indevidamente pelo réu A. C. L. B. Referente à gratificação de 1.8 sobre a FG do cargo de Secretario da Saúde, prevista no art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/80, modificada pela Lei Municipal nº 1.936/93; e 3. estará proibido de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio-majoritário, pelo prazo de 05 anos. A sanção de perda da função pública está prejudicada, vez que os réus deixaram os cargos anteriormente ocupados, e não há notícia de que exerçam outros. Ademais, terão os direitos políticos suspensos. SENTENÇAS Isso posto, julgo parcialmente procedente os pedidos para: a) declarar que o réu A. C. L. B. praticou o ato de improbidade previsto no art. 9º, caput, da Lei nº 8.429/92; b) condenar o réu A. C. L. B. a ressarcir o dano causado ao Erário Municipal, com a devolução da gratificação de 1.8 sobre FG, prevista no art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/80, modificada pela Lei Municipal nº 1.936/ 93, forte nos arts. 9º, caput, e 12, I, da Lei nº 8.429/92, devidamente corrigida pelo IGP-M. Os valores serão apurados em liquidação de sentença; c) decretar a suspensão dos direitos políticos do réu A. C. L. B. pelo prazo de 08 anos, com base nos arts. 9º, caput, e 12, I, da Lei nº 8.429/92 c/c o art. 15, V, da CF/ 88; d) condenar o réu A. C. L. B. ao pagamento de multa civil, que deverá reverter ao Município, no valor que recebeu indevidamente, através da gratificação para dedicação integral, forte nos arts. 9º, caput, e 12, I, da Lei nº 8.429/92, devidamente corrigida pelo IGP-M, sendo os valores apurados em liquidação de sentença; e) proibir o réu A. C. L. B. de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 10 anos, com base nos arts. 9º, caput, e 12, I, da Lei nº 8.429/92; f) declarar que o réu J. S. M. praticou o ato de improbidade previsto no art. 10, caput, da Lei nº 8.429/ 92; g) decretar a suspensão dos direitos políticos do réu J. S. M., pelo prazo de 05 anos, na forma dos arts. 10, caput, e 12, II, da Lei nº 8.429/92, c/c o art. 15, V, da CF/88; h) condenar o réu J. S. M. ao pagamento de multa civil, que SENTENÇAS deverá ser revertida em prol do Município, no valor da gratificação recebida indevidamente pelo réu A. C. L. B., na forma dos arts. 10, caput, e 12, II, da Lei nº 8.429/92. Os valores serão devidamente corrigidos pelo IGP-M e apurados em liquidação de sentença; i) proibir o réu J. S. M. de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 05 anos, com base nos arts. 10, caput, e 12, II, da Lei nº 8.429/92; j) rejeitar o pedido de condenação do réu A. C. L. B., pela prática dos atos previstos nos arts. 10, caput, e inc. XI, e 11, caput, e inc. I, 17 da Lei nº 8.429/92; e l) rejeitar o pedido de condenação do réu J. S. M., da prática dos atos previstos nos arts. 9º, caput, 10, inc. XI, e 11, caput, e inc. I, da Lei nº 8.429/92. Sem condenação em custas, que não foram adiantadas, nem em honorários, que não são devidos ao Ministério Público (interpretação do art. 18 da Lei nº 7.347/85). Após o trânsito em julgado da sentença, oficie-se ao Colendo Tribunal Regional Eleitoral, comunicando a condenação. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Itaqui, 06 de julho de 1998. Alan Tadeu Soares Delabary Júnior, Juiz de Direito Substituto. 18 Processo nº 00103512985 (102167) 2ª Vara da Fazenda Pública – 2º Juizado Autoras: Magnólia de Aquino Primeira e outras Réus: Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – IPERGS e outro Juiz prolator: Almir Porto da Rocha Filho Aplicação, ou não, da Lei nº 7.672/82. Notificação do Instituto de Previdência do Estado – IPE de que os benefícios das pensões pagas às filhas solteiras seriam cancelados. Ilegalidade. Manutenção das pensões. Ação julgada procedente. Vistos, etc. Magnólia de Aquino Primeira, Enilda Mara Nunes Parada e Rosana Turski de Ávila, todas brasileiras, solteiras, pensionistas, residentes as duas primeiras em Pelotas e a última em Piratini, ajuizaram a presente ação ordinária de manutenção e revisão de pensões contra o Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – IPERGS –, autarquia estadual, com sede na Av. Borges de Medeiros nº 1.945, Porto Alegre, e Estado do Rio Grande do Sul, aduzindo serem filhas de servidores falecidos, que ingressaram no serviço público antes de 31-12-73. Recebem há anos como pensionistas da autarquia e necessitam dos valores para a sobrevivência. Foram notificadas, em jan./2000, de que o benefício seria cancelado. A Lei nº 7.672/82 determina que devem receber a pensão enquanto não forem casadas. O Estado, em razão da crise financeira que o atinge, fez interpretação equivocada da legislação. Trata-se de manobra política. É ilegal a supressão dos benefícios. Dizem ter direito adquirido, com amparo no art. 5º, XXVI, da CF. Afirmam que a prescrição atingiu o ato administrativo, consoante o disposto no art. 54 da Lei nº 9.784/99. Salientam o teor do enunciado nº 105 da Súmula do STJ. Caracteriza-se também a coisa julgada. Alegam perceber mensalmente uma cota familiar de 45%, acrescida de uma cota individual de 5% por dependente. Pretendem, ainda, receber o benefício no valor integral da remuneração dos servidores falecidos, como se vivos fossem, no período não-prescrito, incidindo sobre as diferenças juros de mora e correção monetária. Embasam suas pretensões nos arts. 40, § 5º, da CF, c/c o art. 41, § 3º, da CE, mencionando jurisprudência. Postularam antecipação de tutela. Acostaram documentos (fls. 22 à 52). Foi deferida em parte a antecipação de tutela pretendida, apenas para a manutenção do pensionamento (fls. 53/54). O agravo de instrumento interposto pelas autoras não obteve êxito (fls. 75/76). Foi comunicado pelo pólo ativo o cancelamento do benefício, apesar da medida concedida (fls. 78/79). O Estado, apesar de citado, não apresentou defesa. O IPERGS contestou, alegando que as autoras não possuíam 21 anos em 1º-01-74, como determina o art. 73 da Lei nº 7.672/82, apesar de os segurados terem ingressado anteriormente no ser- SENTENÇAS viço público. A expressão “conservam” pressupõe a existência do vínculo e do direito naquela norma previstos. Ademais, trata-se de regra excepcional, pois contida nas disposições transitórias da lei em tela. A interpretação há que ser restritiva. Para a manutenção do benefício devem comprovar invalidez. Pretende a improcedência do pedido. Anexou documentos (fls. 85 à 124). Em réplica, as autoras rebateram os argumentos contestacionais, reiterando os termos da exordial. Salientaram ter havido cerceamento de defesa no procedimento administrativo. O Ministério Público opinou pela improcedência da pretensão. Foi dado à causa o valor de alçada. É o relatório. DECIDO O pedido deve ser conhecido diretamente, na forma do art. 330, I, do CPC, por se tratar de questão exclusivamente de Direito. Inicialmente, excluo o Estado do Rio Grande do Sul da lide, pois não é parte legitima para figurar no pólo passivo da relação processual. Sua citação só ocorreu pela determinação contida no art. 26 da Lei nº 7.672/ 82. O dever de pensionamento é do Instituto, autarquia estadual, consoante tem decidido o Egrégio Tribunal de Justiça (Apelação Cível nº 594116485). Fundamento a questão relacionada ao cancelamento das pensões. É essencial a análise da legislação previdenciária através do tempo, uma vez que representou, a cada momento, a intenção do legislador, sempre voltado para os fatos da vida social. Sem dúvida, até a década de 80, e ainda hoje em algumas situações, as diferenças eram brutais entre as pessoas dos sexos masculino e feminino. E 19 não é preciso ir longe. Na Magistratura Rio-Grandense, sempre de ponta em nível nacional, a primeira mulher só ingressou na década de 70. A Constituição Federal de 1988, buscando amenizar tais fatos, em seu art. 5º, I, estipulou: “Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição...” Nesta fase da vida nacional, há quase 20 anos, quando ainda vigia a Carta Federal de 1967, com a Emenda nº 01 de 1969, foi editada a Lei nº 7.672, em 18-06-82. Os tempos eram outros, e as grandes modificações nacionais, felizmente, estavam por vir. Entretanto, naquele momento da história, ainda as mulheres recebiam, e em algumas situações realmente era necessário, os hoje chamados privilégios. Neste contexto, insere-se o art. 73 da referida Lei, ora em discussão, de seguinte teor: “Art. 73 – As filhas solteiras maiores de 21 anos, de segurados do Instituto, admitidos no serviço público estadual em data anterior a 1º-01-74, conservam a qualidade de dependentes, para os efeitos desta Lei”. O que o legislador teve por intenção, assim como já acontecera com a Lei nº 6.617/73, em seu art. 9º, § 5º, foi exatamente manter as filhas solteiras como dependentes, mesmo após completarem 21 anos, “desde que o servidor houvesse ingressado no serviço público anteriormente a 1974”. 20 Portanto, é uma situação em extinção, não fazendo jus ao benefício tão-somente aquelas filhas, cujo ingresso do associado deu-se após 1974 nos quadros do Estado. Transcrevo o referido dispositivo para melhor compreensão: “Art. 9º – Para os efeitos desta lei são considerados dependentes do associado: “... § 5º – É assegurado à filha solteira maior de 21 anos o direito a ser considerada dependente presumida de associado, desde que esteja vinculado ao serviço público estadual, anteriormente à vigência desta Lei”. Caso o legislador quisesse excluir, em ambas as leis, as filhas solteiras então menores de 21 anos, a redação deveria ter sido diferente, ou seja, deveria ter dito que restava assegurado o benefício àquelas que já houvessem completado 21 anos. Entretanto, sempre redigiu de forma a regrar as hipóteses das que já tivessem ou viessem a ter 21 anos. O limitador, para restringir as situações futuras, naquelas leis, não era a idade das filhas, mas, sim, a data de ingresso do associado no serviço público: anterior a 1974. Por este motivo, é que sempre foi concedida e mantida a pensão das referidas filhas solteiras até a notificação expedida pela atual direção do IPERGS. Não é crível que tantas Administrações houvessem conduzido erroneamente a situação, nos últimos 27 anos, se considerada a Lei de 1973, ou 18 anos, se computado a contar de 1982, especialmente considerando a alta qualidade intelectual e de saber jurídico de vários dos Procuradores-Gerais do Estado, que estiveram à testa daquele Órgão. A razão é simples: o art. 73 é claro e não me parece que deva ser interpre- SENTENÇAS tado de forma diferente da que vinha sendo. Os pareceres trazidos aos autos não analisaram a questão de modo global e, também, gramatical, mas apenas isoladamente e, mesmo assim, equivocadamente. Se averiguada a legislação federal contemporânea à estadual, constata-se que naquela esfera também as filhas solteiras maiores de 21 anos, que já percebiam pensionamento, tiveram mantidos os seus benefícios. Isto está estampado nas Leis nos 3.373/58, 3.765/60 e 4.069/62. Não há dúvidas de que, se houvesse irregularidade no ato administrativo, ele poderia ser alterado, desde que não concretizada a decadência ou a prescrição. De qualquer modo, na situação presente, ocorreu a prescrição administrativa, consoante previsão do Decreto nº 20.910/32, art. 1º, de seguinte teor: “Art. 1º – As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em 05 anos, contados da data do ato ou fato do qual se originaram”. Tratando sobre a prescrição administrativa grandes doutrinadores ensinam. Celso Antônio Bandeira de Mello: “É, outrossim, de 05 anos o prazo para a Administração, por si própria, anular seus atos inválidos, dos quais hajam decorrido efeitos favoráveis ao administrado, salvo comprovada má-fé, consoante a Lei nº 9.784, de 29-01-99, disciplinadora do processo administrativo. Também, aí, não se distingue entre atos nulos e anuláveis. “Vê-se, pois, que este prazo de 05 anos é uma constante nas disposições SENTENÇAS gerais estatuídas em regras de Direito Público, quer quando reportadas ao prazo para o administrado agir, quer quando reportadas ao prazo para a Administração fulminar seus próprios atos. Ademais, salvo disposição legal explícita, não haveria razão prestante para distinguir entre Administração e administrados, no que concerne ao prazo, ao cabo do qual faleceria o direito de reciprocamente se proporem ações. “Isso posto, estamos em que, faltando regra específica que disponha de modo diverso, o prazo para a Administração proceder judicialmente contra os administrados é, como regra, de 05 anos, quer se trate de atos nulos, quer se trate de atos anuláveis. Ressalte-se, todavia, que, por força do art. 37, § 5º, da Constituição, são imprescritíveis as ações de ressarcimento por ilícitos praticados por qualquer agente, servidor, ou não, que causem prejuízos ao erário”. (“Curso de Direito Administrativo”, 12ª ed., Malheiros, 2000, p. 124) Lúcia Valle Figueiredo: “Claro está que, se tiver ocorrido a prescrição – na verdade, preclusão administrativa –, a invalidação não poderá ocorrer, como também não poderá ocorrer anulação judicial, se houver ocorrido prescrição. O Direito repele, sem dúvida, situações pendentes. Deveras, o instituto da prescrição visa, exatamente, à estabilidade das situações constituídas pelo decurso do tempo. “Entendemos ser de 05 anos o prazo prescricional, ou, melhor dizendo, de preclusão, uma vez que este é o lapso de tempo normal para se atacar as relações travadas pela Administração Pública. Não endossamos, pois, com todo respeito pela opinião de outros concei- 21 tuados autores, o entendimento de que o prazo seria de 20 anos. “Temos afirmado que as situações jamais são de ‘mão única’. Assim como as ações contra a Administração Pública devem respeitar o prazo prescricional de 05 anos, também entendemos que a invalidação do ato não se possa dar em prazo maior”. (“Curso de Direito Administrativo”, 4ª ed., Malheiros, 2000, p. 227) Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Ficamos com a posição dos que, como Hely Lopes Meirelles (1996:589), entendem que, no silêncio da lei, a prescrição administrativa ocorre em 05 anos, nos termos do Decreto nº 20.910. Quando se trata de direito oponível à Administração, não se aplicam os prazos do Direito Comum, mas esse prazo específico aplicável à Fazenda Pública; apenas em se tratando de direitos de natureza real é que prevalecem os prazos previstos no Código Civil, conforme entendimento da jurisprudência. “Desse modo, prescrita a ação na esfera judicial, não pode mais a Administração rever os próprios atos, quer por iniciativa própria, quer mediante provocação, sob pena de infringência ao interesse público na estabilidade das relações jurídicas. Na esfera federal, a questão ficou pacificada com a Lei nº 9.784, cujo art. 54 veio estabelecer que ‘o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em 05 anos, contados da data em que foram praticados, salvo se comprovada má-fé’. Pela norma do § 1º do mesmo dispositivo, ‘no caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do 22 primeiro pagamento’.” (“Direito Administrativo”, 12ª ed., Atlas, 2000, pp. 586/ 587) Hely Lopes Meirelles: “A prescrição administrativa opera a preclusão da oportunidade de atuação do Poder Público sobre a matéria sujeita à sua apreciação. Não se confunde com a prescrição civil, nem estende seus efeitos às ações judiciais (v. adiante, item V), pois é restrita à atividade interna da Administração, acarretando a perda do direito de anular ato ou contrato administrativo, e se efetiva no prazo que a norma legal estabelecer. Mas, mesmo na falta de lei fixadora do prazo prescricional, não pode o servidor público ou o particular ficar perpetuamente sujeito à sanção administrativa por ato ou fato praticado há muito tempo. “A esse propósito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que ‘a regra é a prescritibilidade’. Entendemos que, quando a lei não fixa o prazo da prescrição administrativa, esta deve ocorrer em 05 anos, à semelhança da prescrição das ações pessoais contra a Fazenda Pública (Decreto nº 20.910/32), das punições dos profissionais liberais (Lei nº 6.838/ 80) e para cobrança do crédito tributário (CTN, art. 174). Para os servidores federais a prescrição é de 05 anos, 02 anos e 180 dias, conforme a gravidade da pena (Lei nº 81.112/90, art. 142). “... O instituto da prescrição administrativa encontra justificativa na necessidade de estabilização das relações entre o administrado e a Administração e entre esta e seus servidores, em obediência ao princípio da segurança jurídica, examinado no cap. II, item II. Transcorrido o prazo prescricional, fica a Administração, o administrado ou o servi- SENTENÇAS dor impedido de praticar o ato prescrito, sendo inoperante o extemporâneo”. (“Curso de Direito Administrativo Brasileiro”, 25ª ed., Malheiros, 2000, pp. 626/ 627) Essencial salientar que os atos de inclusões das autoras deram-se com os óbitos de seus pais, há mais de 05 anos. A jurisprudência toma o mesmo rumo. Conseqüentemente, a Administração tem contra si o prazo de 05 anos para revisar os seus atos, desde que praticados de boa-fé, como na situação dos autos. Transcorrido o qüinqüênio, faz-se coisa julgada administrativa, operando-se preclusão para alteração das situações por ela consolidadas. Traz a impossibilidade de modificar a relação dela decorrente entre a administração e o administrado. Mais uma vez, o Mestre Hely Lopes Meirelles esclarece: “Coisa julgada administrativa: a denominada coisa julgada administrativa que, na verdade, é apenas uma preclusão de efeitos internos, não tem o alcance da coisa julgada judicial, porque o ato jurisdicional da Administração não deixa de ser um simples ato administrativo decisório, sem a força conclusiva do ato jurisdicional do Poder Judiciário. Falta ao ato jurisdicional administrativo aquilo que os publicistas norte-americanos chamam the final enforcing power, e que se traduz livremente como o poder conclusivo da Justiça Comum. Esse poder, nos sistemas constitucionais que não adotam o contencioso administrativo, é privativo das decisões judiciais. “Sobre esse tema, observou, com justeza, Araújo Falcão que: ‘Mesmo aqueles que sustentam a teoria da chamada coisa julgada administrativa reconhecem que, efetivamente, não se trata, quer SENTENÇAS pela sua natureza, quer pela intensidade de seus efeitos, de res judicata propriamente dita, senão de um efeito semelhante ao da preclusão, e que se conceituaria quando ocorresse, sob o nome de irretratabilidade’. “Realmente, o que ocorre nas decisões administrativas finais é, apenas, preclusão administrativa, ou a irretratabilidade do ato perante a própria Administração. É sua imodificabilidade na via administrativa, para estabilidade das relações entre as partes. Por isso, não atinge, nem afeta situações ou direitos de terceiros, mas permanece imodificável entre a administração e o administrado destinatário da decisão interna do Poder Público...” (ob. cit., pp. 625/626). No mesmo sentido a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Portanto, a expressão coisa julgada, no Direito Administrativo, não tem o mesmo sentido que no Direito Judiciário. Ela significa apenas que a decisão se tornou irretratável pela própria administração. Embora se faça referência apenas à hipótese em que se exauriu a via administrativa, não cabendo mais qualquer recurso, existem outras possibilidades que abrangem os casos de irrevogabilidade dos atos administrativos. Aliás, a coisa julgada administrativa costuma ser tratada dentro do tema das limitações ao poder de revogar os atos da Administração. “No Capítulo 7, item 7.11.3, referente à revogação, foram apontadas essas limitações: não podem ser revogados os atos vinculados, os que exauriram os seus efeitos, os meros atos administrativos, os que geraram direitos subjetivos. Não podendo ser revogados, tornam-se irretratáveis pela própria Admi- 23 nistração, fazendo coisa julgada administrativa”. (ob. cit., p. 585) Não pode ser esquecido, por fim, o Enunciado nº 6 da Súmula do STF, que prevê a necessidade de retornar ao Tribunal de Contas para análise os atos anteriormente por ele aprovados, para revogação ou anulação, in verbis: “A revogação ou anulação, pelo Poder Executivo, de aposentadoria, ou qualquer outro ato aprovado pelo Tribunal de Contas, não produz efeitos antes de aprovada por aquele Tribunal, ressalvada a competência revisora do Judiciário”. Claro que esta exigência só seria cabível, no caso concreto, se não houvesse ocorrido a prescrição administrativa, nem estivessem as autoras com razão. Saliento que o reconhecimento do direito abrange apenas os fatos discutidos neste processo, e não situações peculiares de cada pensionista como, por exemplo, casamento, concubinato, exercício de serviço público remunerado. Em relação à integralidade da pensão, também o Direito ampara as requerentes: Neste tópico, inicialmente, saliento a prescrição das parcelas anteriores a 05 anos do ingresso da demanda. Não é atingido o fundo de direito, de acordo com o art. 1º do Decreto nº 20.910/32 e Enunciado nº 85 da Súmula do STJ, de seguinte teor: “Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do qüinqüênio anterior à propositura da ação”. A decisão da questão passa, necessariamente, pela análise da constitucionalidade de dispositivos da Legislação 24 Estadual, frente a artigos das Cartas Federal e Rio-Grandense, no tocante às pensões de servidores públicos. A Constituição Federal, em seu art. 40, §§ 4º e 5º, estabelecia (pela Emenda Constitucional nº 20/98, os artigos foram alterados) (§ 3º – Os proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão calculados com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria e, na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração; § 7º – Lei disporá sobre a concessão do benefício da pensão por morte, que será igual ao valor dos proventos do servidor falecido, ou ao valor dos proventos a que teria direito o servidor em atividade na data de seu falecimento, observado o disposto no § 3º): “Art. 40: O servidor será aposentado: ... § 4º – Os proventos da aposentadoria serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação de cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei. “§ 5º– O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, observado o disposto no parágrafo anterior”. A interpretação das normas retroelencadas leva à conclusão de que as únicas limitações possíveis são as decorrentes dos tetos remuneratórios de SENTENÇAS cada um dos Poderes, na forma do art. 37, XI, da Carta Magna (nova redação pela Emenda Constitucional nº 19/98) (XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da Administração direta, autárquica e fundacional, de membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente, ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal): “Art. 37 – ... XI – a lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos e no âmbito dos respectivos poderes, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal e seus correspondentes nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores percebidos, como remuneração, em espécie, pelo Prefeito”. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estipulou que a revisão dos proventos e pensões deveria ser ajustada em 180 dias, in verbis: “Art. 20 – Dentro de 180 dias, proceder-se-á à revisão dos direitos dos servidores públicos inativos e pensionistas e a atualização dos proventos e pensões a eles devidos, a fim de ajustá-los ao disposto na Constituição”. SENTENÇAS Necessário averiguar, assim, a eficácia das normas constitucionais atinentes à espécie. O Mestre Pontes de Miranda, em “Comentários ao Código de Processo Civil”, Ed. RT, I/126, leciona: “Quando uma regra se basta, por si mesma, para a sua incidência, diz-se bastante em si, self-executing, self-acting, self-enforcing. Quando, porém, precisam as regras jurídicas de regulamentação, porque, sem a criação de novas regras jurídicas que as completem ou suplementem, não poderiam incidir e, pois, ser aplicadas, dizem-se não bastantes em si”. O Professor Celso Ribeiro Bastos, ao tratar do assunto, em sua obra “Direito Constitucional”, Ed. Saraiva, 12ª ed., 1990, p. 109, ensina: “Em verdade, a maior ou menor aptidão para atuar, para incidir sobre os fatos abstratos descritos na hipótese da norma, depende do modo como a própria norma regula a matéria de que se nutre. E falar, a possibilidade de plena incidência da norma está sempre condicionada à forma de regulação da respectiva matéria. Se esta é descrita em todos os seus elementos, é plasmada por inteiro quanto aos mandamentos e às conseqüências que lhe correspondem, no interior da norma formalmente posta, não há necessidade de intermediária legislação, porque o comando constitucional é bastante em si. Tem autonomia operativa e idoneidade suficiente para deflagrar todos os efeitos a que se preordena. “De revés, se a matéria que se põe como conteúdo da norma é deficientemente plasmada, de modo a que tal defeito de conformação intercorra por qualquer um dos seus elementos lógi- 25 co-estruturais – que são hipótese, o mandamento e a conseqüência –, aí se torna necessária a expedição de um comando complementar da vontade constitucional. Dá-se, então, o reclamo da interposta lei, para suprir as insuficiências da norma, complementar as suas prescrições e tornar sua incidência possível, em termos de plenitude eficacial”. Assim, as normas constitucionais podem ser de eficácia plena (auto-aplicáveis), ou de eficácia contida (nãoauto-aplicáveis). In casu, os dispositivos que determinam o pagamento integral dos vencimentos ou proventos do servidor falecido são auto-aplicáveis, com eficácia desde a entrada em vigor da Carta Nacional. Deve ser salientado que a Constituição Estadual igualmente recepcionou as disposições federais, determinando que os pensionistas devem perceber o correspondente à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido: “Art. 41 – ... § 3º – O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, sendo revisto, na mesma proporção e na mesma data, sempre que ocorrerem modificações nos vencimentos dos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu o falecimento ou a aposentadoria, na forma da lei”. Não é o que vem acontecendo, todavia, nas pensões das requerentes, que não atingem a integralidade prevista. Configura-se clara afronta às disposições da Constituição Federal. Como se chegou a tal situação? Através de normas 26 da Legislação Estadual, que estão sendo seguidas pela autarquia-ré, em desconsideração à Lei Maior. Para melhor visualização e discussão da questão, reproduzo os dispositivos considerados inconstitucionais: “Art. 1º – O valor das pensões pagas pelo Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – IPERGS será atualizado de forma a resguardar suas correspondência à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido nesta lei, sendo revisto de conformidade com o que determina o § 3º do art. 41 da Constituição Estadual, c/c o parágrafo único do art. 12 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. “Parágrafo único – Os critérios para a fixação do valor das pensões, suas limitações e das parcelas que integram o salário de contribuição são os definidos no art. 18 e seus parágrafos e no art. 27 da Lei nº 7.672, de 18-06-82, com a redação da Lei nº 7.716, de 26-10-82”. (Lei nº 9.127/90) “Art. 27 – O valor da pensão por morte será constituído de uma quota familiar correspondente a 45% do salário-de-benefício, acrescida de tantas quotas individuais, correspondentes a 5% do salário-de-benefício, quantos forem os dependentes habilitados, até o máximo de 11 (Lei nº 7.672/82, com redação dada pela Lei nº 7.716/82)”. O art. 1º e seu parágrafo único da Lei nº 9.127/90 são flagrantemente incompatíveis com o disposto no art. 40, § 7º, da CF, que se estende às esferas estaduais e municipais. O Constituinte de 1988, quando estipulou a correspondência da pensão à integralidade dos proventos ou vencimentos, com certe- SENTENÇAS za, não pretendia incorporar, através de legislação infraconstitucional, qualquer espécie de limitação, a não ser aquelas previstas no art. 37, XI, da própria Carta Magna. Deste modo, o condicionamento previsto no art. 27 da Lei nº 7.672/ 82, por determinação do parágrafo único da Lei nº 9.127/90, vai de encontro à Constituição Federal, violando direito, no caso, das pensionistas. Neste sentido, já decidiu o Egrégio Supremo Tribunal Federal, ao conceder liminar na ADIn nº 1.137-5-RS, em 21-10-94, por unanimidade plenária, tendo como Relator o Min. Ilmar Galvão, nos seguintes termos: “Constitucional. Ação direta. Liminar. Pensão. Servidores públicos. Valor. Equivalência. Limitação. Lei gaúcha nº 9.127/90... Afigura-se relevante a tese de inconstitucionalidade da norma que condiciona ao número de dependentes a percepção, pelo pensionista, do valor integral dos vencimentos ou proventos do servidor público falecido, tendo em vista o § 5º do art. 40 da CF, que estabelece a correspondência entre os mencionados valores sem qualquer condicionamento, exceto no tocante às limitações decorrentes dos tetos remuneratórios no âmbito de cada um dos Poderes (art. 37, XI). Norma que, embora editada há certo tempo, restringe a percepção de verba alimentar a justificar a conveniência de sua suspensão cautelar até o julgamento definitivo da causa... “Acórdão – Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conhecer, em parte, a ação e, nesta parte, deferir, em SENTENÇAS parte, o pedido de medida liminar para suspender, até a decisão final da ação, a eficácia da expressão até o limite estabelecido nesta Lei, contida no caput do art. 1º da Lei nº 9.127, de 07-08-90, do Estado do Rio Grande do Sul, bem como das expressões e ‘e’ e no art. 27, contidas no parágrafo único do mesmo artigo (1º). Votou o presidente”. Vê-se, assim, que foram suspensas exatamente as expressões limitadoras da percepção da totalidade da pensão deixada pelo servidor falecido. O Pretório Excelso praticamente pacificou o assunto, havendo inúmeros arestos sobre a questão: “Pensão. Valor correspondente à totalidade dos vencimentos do servidor falecido. Auto-aplicabilidade do art. 40, § 5º, da CF. Esta Corte, desde o julgamento dos Mandados de Injunção nos 211 e 263, firmou o entendimento de que o § 5º do art. 40 da CF é auto-aplicável, sendo que a lei nele referida não pode ser outra senão aquela que fixa o limite da remuneração dos servidores em geral, na forma do art. 37, XI, da Carta Magna”. (RE nº 216.920-0-RS, Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 09-09-97) “Recurso extraordinário. Constitucional. Auto-aplicabilidade do art. 40, §§ 4º e 5º, da CF. Pensão por morte. Valor correspondente à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido. 1. As normas contidas nos §§ 4º e 5º do art. 40 da CF não dependem de legislação infraconstitucional, por serem auto-aplicáveis. A revisão dos proventos da aposentadoria será efetuada sempre que houver modificação da remuneração dos servidores em atividade, estendendo-se aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente 27 concedidos àqueles. 2. O valor da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, observado o teto inscrito no art. 37, XI, da CF. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE nº 225.916-2(275)-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 27-04-98) “Constitucional. 2. Pensão integral. 3. Art. 40, § 5º, da CF: Auto-aplicabilidade. 4. Precedentes : MI-211; ADIn nº 1.630-DF. 5. Recurso conhecido e provido.” (RE nº 222.870-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Nelson Jobim, julgado em 23-03-98, Celina Batista de Oliveira – recorrente, Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – recorrido) A orientação do Supremo Tribunal Federal, definitiva, deve ser seguida, por ser aquela Corte a guardiã da Constituição, especialmente pelo princípio da segurança jurídica, com igualdade entre todos os pensionistas. Trago, ainda, à colação, jurisprudência do TJRGS, assim ementada: “Pensão. IPERGS. Art. 40, § 5º, da CF/88. Orientação do Supremo Tribunal Federal. A pensão previdenciária, desde o advento da Carta Constitucional de 1988, é integral, superando norma expressa a outras determinações gerais da Lei Maior. Irrelevância do debate sobre teto remuneratório ou natureza das vantagens auferidas pelo extinto. Implantação de pagamento em folha, quanto às parcelas vincendas. Correção monetária das parcelas vencidas. Súmula nº 148 do STJ, e sua compreensão. Honorária que se reduz, ajustando-a à repetitividade e singeleza da causa”. Da análise atenta dos dispositivos da Carta Magna e da própria legislação federal, como no caso da Lei nº 8.112/90, 28 depreende-se que a intenção dos constituintes foi exatamente a de determinar a igualdade de proventos ou vencimentos, tanto na aposentadoria, quanto em benefício dos pensionistas, desimportando quantos dependentes haja em relação a cada servidor. A referida Lei nº 8.112/90, que trata do Regime Único dos Servidores Públicos Federais, ratificou os termos da Carta Magna, como se depreende de seu texto, que segue: “Art. 215 – Por morte do servidor, os dependentes fazem jus a uma pensão mensal de valor correspondente ao da respectiva remuneração ou provento, a partir da data do óbito, observado o limite estabelecido no art. 42”. Ressalto não haver violação ao art. 195, § 5º, da CF. O entendimento, inclusive da Corte Suprema, é no sentido de que não incide em benefício criado pela própria Carta Magna. As vantagens pessoais devem ser incluídas no cálculo. A expressão “vencimentos” foi utilizada, no art. 40, § 5º, no plural, exatamente com a finalidade de englobar todos os ganhos do servidor. Ademais, para fins de contribuição, é utilizada como base de cálculo a integralidade dos vencimentos, inclusive, vantagens pessoais. Esta a lição do Mestre Hely Lopes Meirelles: “Vencimento, em sentido estrito, é a retribuição pecuniária devida ao servidor pelo efetivo exercício do cargo, correspondente ao padrão fixado em lei; vencimento, em sentido amplo, é o padrão com as vantagens pecuniárias auferidas pelo servidor a título de adicional ou gratificação. Quando o legislador pretende restringir o conceito ao padrão do servidor emprega o vocá- SENTENÇAS bulo no singular – vencimento –, quando quer abranger, também, as vantagens conferidas ao servidor usa o termo no plural – vencimentos. “Essa técnica administrativa é encontradiça nos estatutos e foi utilizada no texto constitucional nas várias disposições em que o constituinte aludiu genericamente à retribuição dos agentes públicos – servidores e magistrados – estipendiados pela Administração, e não deixa qualquer dúvida quanto ao significado de vencimento, no singular”. (“Direito Administrativo Brasileiro”, 21ª ed., São Paulo, Malheiros, 1996, p. 403) O Tribunal de Justiça do Estado vem decidindo neste sentido: “Previdenciário. IPERGS. Pensão integral. O § 5º do art. 40 da Carta Magna, consoante exegese do Supremo Tribunal Federal e desse Tribunal, determina que as pensões devem ser pagas na totalidade dos vencimentos que o segurado perceberia, se vivo fosse. O indigitado dispositivo é auto-aplicável e de incidência imediata. O termo ‘vencimentos’ contido neste dispositivo abrange a retribuição pecuniária padrão e as vantagens. Negaram provimento, confirmando a sentença em reexame necessário”. (Apelação Cível nº 598447555, 21ª Câmara Cível, Rel. Des. Marco Aurélio Heinz, julgada em 02-12-98) Impõe-se o reconhecimento do direito das autoras, com o pensionamento em valor correspondente ao que perceberiam os servidores, caso estivessem vivos. No tocante às parcelas vencidas e vincendas, até a implementação do benefício, incidirá correção monetária, desde a data em que deveriam ter sido SENTENÇAS satisfeitas, pelo IGP-M, considerado o mais adequado dos índices para aferição da inflação, mormente atentando-se para o caráter alimentar da pensão. Ante o exposto, julgo procedente o pedido, excluindo o Estado da lide, sem ônus sucumbenciais, e condenando o Instituto-réu a manter os benefícios das pensões das autoras, ou restabelecê-los em caso de cancelamento pela interpretação que fez do art. 73 da Lei nº 7.672/ 82, ressalvadas outras hipóteses que não tenham sido objeto da presente ação. Ainda, deverá revisar as pensões das requerentes para os mesmos valores que perceberiam os segurados falecidos, caso estivessem vivos, bem como pagar-lhes as diferenças entre o quantum recebidoe o que teriam direito, desde 05 anos anteriores ao ajuizamento da ação, excepcionadas, portanto, as parcelas prescritas, acrescidas de correção monetária pelo IGP-M, contada das datas em que 29 deveriam ter sido satisfeitas e juros legais de 6% ao ano, a partir da citação, abatendo-se o imposto de renda incidente. O pagamento dar-se-á através de precatório, na forma legal. Arcará o requerido com o pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 5% do montante das parcelas vencidas, na forma do enunciado nº 111 da Súmula do STJ, considerando tratar-se de Fazenda Pública o valor da condenação e o trabalho realizado, a teor do art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC. Transcorrido o prazo recursal voluntário, remetam-se os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado para reexame necessário. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 30 de setembro de 2000. Almir Porto da Rocha Filho, Juiz de Direito. 30 Processo nº 20.695/100 – Ação Ordinária de Revogação de Doação 1ª Vara Judicial Autora: Balbina Maria Lima Macedo Réus: Adão Dorneles Rodrigues e outra Juiz prolator: André Guidi Colossi Revogação de doação por alegada ingratidão. Inocorrência. Improcedência do pedido. Vistos, etc. Balbina Maria Lima Macedo ajuizou ação ordinária de revogação de doação contra Adão Dorneles Rodrigues e Eleny Tunes Rodrigues, alegando, em síntese, a ingratidão destes, a ensejar o ato revocatório postulado. À inicial, sustenta a autora, após apresentar estudo sobre sua personalidade e negócios por ela realizados, a demonstrar a origem das quadras de campo de sua propriedade, que, por amizade, doou aos réus, no ano de 1986, de forma verbal, área separada de sua fazenda e denominada de “Bota”, haja vista semelhança desta com tal espécie de calçado. Alega a autora, justificando seu proceder, que o pai do primeiro réu, Sr. Adão Morocine Dorneles, foi empregado do seu pai durante anos, sendo pessoa de sua confiança e a quem conhecia pelo apelido carinhoso de “Morocho”. A isso somou-se o pedido do próprio réu Adão, no sentido de que na referida área poderia criar gado com um primo irmão, de nome Edegar Dorneles. Posteriormente, sustenta, assinou a escritura de doação da referida área, de aproximadamente 130ha, situada dentro da área maior de sua propriedade, sendo que já no ano de 1992, devido a negócio realizado com terceiro, assinou, juntamente com os réus, instrumento onde estes concordaram com a divisão da área (total), a eles cabendo a área doada: 130,68ha, perfeitamente localizados (a “Bota”). Todavia, argüi, no ano de 1994, através do seu arrendatário, Ernani Comis, veio a tomar conhecimento do proceder dos réus, que, mediante notificação e averbação em Registro de Imóveis, esta datada ainda de 1988, procuraram melhor localizar seu campo, de forma a ficar com a frente da fazenda e a sede desta, uma casa de alvenaria de 60m², assim como receber percentagem de arroz (preço pago pelo arrendatário) que não lhes pertencia. Dessa forma, sustenta a ingratidão dos réus, assim como que a doação feita não coincide com a escriturada, já que ao assinar a referida escritura pensava estar tão-somente a formalizar a doação de fato que havia feito de área de terra nua plenamente localizada. Requer, então, a procedência da ação, com a revogação da doação, que, alega, restou escriturada com erro de vontade. Juntou documentos. Citados, os réus ofereceram resposta tempestivamente, requerendo, em preliminar, a extinção do feito sem julgamento do mérito, por ser a autora carecedora da SENTENÇAS ação, e, no mérito, a improcedência do pedido, em argumentos que se iniciam com a prescrição, alcançando a nãotipificação da ingratidão no proceder dos réus, conforme legislação civil. Replicou a autora, a seguir abrindose às partes momento para especificação das provas pretendidas produzir. Silentes ficaram, vindo os autos conclusos. É o relatório. PASSO A DECIDIR Impõe-se o julgamento do mérito conforme o estado do processo, aplicando-se, conseqüentemente, o disposto no inc. I do art. 330 do CPC. A pretensão da autora não merece acolhimento. Como relatado, sustenta ter assinado escritura pública de doação que não representa sua vontade, tendo assim agido, justifica, “por erro, dolo, fraude e simulação por parte do donatário” (fl. 10). Em síntese, alega vício de vontade, já que “ao assinar a escritura de doação imaginava que apenas estava formalizando a doação de fato que já havia feito há 02 anos atrás, com área plenamente localizada” (fl. 10), qual seja: o local denominado de “Bota” e que possui exatamente 130,68ha de área de terra nua. Efetivamente, a desconstituição da doação pura e simples pode ser requerida tanto com fulcro nos motivos comuns à invalidação de quaisquer contratos (art. 1.181, 1ª parte, do CC), a exemplo dos vícios de vontade (consentimento e sociais), previstos no inc. II do art. 147 da Lei Civil, assim com base na ingratidão dos donatários (art. 1.181, 2ª parte, do CC). In casu, a autora, de forma um pouco confusa, suscita ambos os fundamen- 31 tos, em que pese saiba-se que não se confundem, já que aqueles pertinentes à invalidação, os vícios de vontade, devem ser concomitantes, contemporâneos ao ato de doar, enquanto a ingratidão, embasadora da revogação, deve ser posterior àquele momento. No primeiro caso tem-se anulação de negócio jurídico; no segundo, revogação. Da simples leitura da escritura pública de doação da fl. 13, constata-se que dela consta a efetiva vontade da autora ao tempo do fato, isto é, pelo referido instrumento restou doada aos réus “uma fração de campo, com área de 130ha e 68a, na Gleba A... dentro das seguintes confrontações ”(grifei); confrontações essas que – ressalte-se – confundem-se, à exatidão, com a descrição do imóvel objeto da Matrícula nº 6.471 (fls. 14/15), de propriedade de um condomínio, do qual condômina também é a autora. Ou seja, da referida escritura consta exatamente a área doada pela autora. Se não há menção à sua localização dentro da área maior, é porque a doadora, à ocasião condômina, juntamente com Eloá Maria Lima Macedo Brasil, Cesar de Azambuja Brasil e Juraci Lima Macedo, não poderia fazê-lo, já que impunha-se, para tal proceder, prévia partilha da coisa comum via acerto entre os co-proprietários ou ação de divisão (art. 629 do CC, c/c o inc. II do art. 946 do CPC). Do exame da matrícula das fls. 14/ 15, constata-se que ao tempo da doação, assim como do registro (R. nº 04) da escritura pública respectiva, era a autora proprietária de fração ideal do imóvel, representativa da maior parte dele. Desse modo, somente poderia doar 32 fração de campo, sem maiores especificações. Assim foi feito, inexistindo, dessa forma, vício na escritura, que, como visto, fixa com precisão a extensão – sem falar em localização – da área reconhecidamente doada pela autora. Se a autora assevera ter doado área localizada, denominada “Bota”, é porque, e isso constata-se dos autos, havia uma divisão fática do imóvel. Nesse sentido, tem-se, a título de indício, o incompleto documento da fl. 20. Desse modo, não persistindo o acordo aparentemente firmado entre os condôminos para registro da partilha, resta à autora a ação divisória, quando poderá comprovar com precisão suas alegações e formular pedido sobre a constituição dos quinhões (art. 970, última parte, do CPC). Claro está, portanto, que a escritura fustigada representou a real intenção da autora, não sendo, por conseqüência, passível de invalidação por qualquer vício de consentimento. Isso considerado, tem-se o pleito de revogação fundamentado na ingratidão dos donatários, decorrente de situações fáticas atribuídas aos réus, como segue: ocupação de área não doada, mais precisamente da área de frente da fazenda, onde está situada a sede desta, com averbação (A. nº 05) fraudulenta na matrícula do imóvel; e tentativa de recebimento de arroz devido à autora pelo arrendatário. Nesse sentido, dúvida não resta de que problema existe quanto à posse e propriedade da área comum e frutos a ela inerentes. A averbação de nº 05 na matrícula do imóvel demonstra a intenção do réu em localizar a área doada, de modo a que abranja um prédio de SENTENÇAS alvenaria (sede da fazenda), sem prévia partilha da coisa comum. Já a notificação da fl. 16, observada conjuntamente com o contrato das fls. 17/19, bem demonstra a controvérsia que envolve os frutos do referido imóvel. Tais atos, sem dúvida, são passíveis de questionamento pela autora, inclusive na via judicial, mas – é de indagar se – será que servem à caracterização de ingratidão por parte dos donatários? A defesa, nesse aspecto, o da inocorrência da ingratidão, tece argumentos precisos à ocasião em que sustenta, em contestação, a carência da ação pela impossibilidade jurídica do pedido, em preliminar que se confunde com o mérito. A doação é um ato de liberalidade do doador, que não pode ser revogado unilateralmente, no todo ou em parte, se já aceito pelos donatários, à exceção, v. g., dos casos de ingratidão destes. Esta, a ingratidão, na lição de Orlando Gomes, “não tem, em Direito, o significado da linguagem comum” (in “Contratos”, Ed. Forense, 14ª ed., p. 218). Para o saudoso civilista, a lei enumera taxativamente (art. 1.183 do CC), e não exemplificativamente, os fatos que configuram ingratidão, impondo-se, ainda, uma interpretação restritiva, de modo a que não haja aplicação analógica ou exegese liberal. Desse modo, o procedimento dos réus ao laborarem na averbação nº 05 e na notificação da fl. 16 demonstra conduta aparentemente ingrata no mundo dos fatos; para o Direito, todavia, inexistiu ingratidão com tal proceder, não se justificando, por tal razão, a revogação da doação, ato de liberalidade SENTENÇAS da autora. O agir dos réus não encontra tipificação nos incisos do art. 1.183 do CC, de forma que impõe-se a improcedência da ação. Por derradeiro, em que pese já definida a questão, cumpre seja analisada a questão da prescrição sustentada pelos réus em defesa. Trata-se, a toda a evidência, de prazo decadencial o disposto no inc. I do § 6º do art. 178 do Diploma Civil, porque potestativo da autora o direito à revogação da doação, que independe de prestação dos réus. E mais, tem-se em julgamento ação ordinária de revogação de doação, ou seja, constitutiva negativa, sendo que somente as ações condenatórias estão sujeitas à prescrição. Nesse sentido, temse lição de Agnelo Amorim Filho. Isso considerado, verifica-se que os próprios réus, em contestação (fl. 35), sustentam serem três os atos por eles praticados, e que teriam dado azo ao pedido de revogação por ingratidão. Ora, se a averbação noticiada, um desses atos, da qual decorre – por lei – uma ficção de conhecimento, datava de mais de ano ao tempo da proposi- 33 tura da ação, o mesmo não pode ser dito da notificação (fl. 16), outro dos atos reconhecidos pelos próprios réus. Inexistiu, portanto, prescrição, porque de prazo decadencial se trata; e a decadência do direito também não se caracterizou, já que não expirado o período de tempo fixado (art. 1.184) para um dos atos (notificação) apontados pela autora como caracterizador de ingratidão dos donatários. Ante o exposto, julgo improcedente a ação ordinária de revogação de doação ajuizada por Balbina Maria Lima Macedo contra Adão Dorneles Rodrigues e Eleny Tunes Rodrigues, que o faço com fulcro no inc. I (rejeitar o pedido) do art. 269 do CPC. Condeno a autora ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios do procurador da parte ex adversa, os quais fixo no equivalente a 05 salários mínimos, atento ao disposto no § 4º do art. 20 do CPC. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Itaqui, 10 de abril de 1995. André Guidi Colossi, Juiz de Direito Substituto. 34 Processo nº 01194073738 – Retificação de Registro de Nascimento Vara dos Registros Públicos Autor: M. A. S. Juiz prolator: Antônio Carlos Antunes do Nascimento e Silva Retificação do Registro de Nascimento por ter ocorrido cirurgia de mudança de sexo. Possibilidade jurídica do pedido. Sentença procedente. “Humanidade – É a virtude que conduz o magistrado a não se abstrair de sua condição de criatura compreensiva de seus semelhantes, renunciando a reclamar deles, em desatenção às conjunturas, aquilo que, em princípio, a lei não teria reclamado. A assimilação com a vida modela as inspirações e orienta as normas.” (Warlomont) Vistos, etc. M. A. S., qualificado na inicial, por procurador, formula o presente pedido de retificação de registro de nascimento, objetivando, após intervenção cirúrgica, a alteração do sexo masculino para o feminino e do nome para V. A. S. Refere, em síntese, ter sido, desde o nascimento, tratado como se fosse do sexo feminino. Vestia-se e era vestido como menina, brincava com bonecas e, já na adolescência, agia como se fosse mulher, o que se externava pelo uso de vestes femininas, com pinturas e com características perfeitas do sexo, sendo conhecido por todos, até hoje, como se mulher fosse. Submeteu-se a um processo de correção cirúrgica dos órgãos genitais, atendendo sua condição psicológica. É um transexual e assumiu psiquicamente a condição de mulher. Os sofrimentos e traumas psíquicos são incontáveis, em decorrência da rejeição social. Postula, então, a alteração do prenome e do sexo. Juntados documentos. Realizada perícia físico-psiquiátrica (laudos às fls. 84/89 e 117/119). Tomado o depoimento pessoal do requerente (fls. 95/115), que propugnou pela procedência do pedido (fls. 122/124), no que foi secundado, em parte, pelo Ministério Público, através de parecer da Dra. Ana Luiza Mércio Lartigau (fls. 136/140), que opinou pelo deferimento da alteração do nome do postulante, mas, quanto ao sexo, entendeu cabível somente a alteração de masculino para transexual feminino, com manutenção do princípio da publicidade dos registros. Relatei. DECIDO O laudo médico (fls. 117/119), após constatar que o requerente foi submetido à intervenção cirúrgica para extirpação da genitália masculina, verificou a ausência de grandes lábios (apenas a presença de duas pregas de pele, longitudinais, em relevo, proeminentes e com aspecto de grandes lábios), de pequenos lábios, de clitóris e de glândulas parauretrais (Skene) e glândulas e canais paravaginais ou vulvovaginais (Bartholin), bem assim que a vagina apresenta orifício circular neoformado e conclui (fl. 119): “Ao exame clínico, o periciado submeteu-se à cirurgia para retirada do pênis SENTENÇAS e dos testículos e neovaginoplastia. Apresenta evidentes caracteres femininos (contornos corpóreos, distribuição pilosa, distribuição adiposa, massa muscular e timbre de voz), porém, pode-se afirmar que os determinantes sexuais (sexo genético, gonodal, somático e de criação) se diferem adequadamente, não estamos, pois, frente a um caso de intersexualidade. O periciado é do sexo masculino. Cabe consignar que a transexualidade, em decorrência do histórico, não deve ser desconsiderada”. (sic) O laudo psiquiátrico (fls. 84/89), depois de analisar a história pessoal do requerente, registra que o mesmo não apresenta sinais ou sintomas suficientes para configurar um quadro de doença mental. O homossexualismo gera ansiedade, devido à constante luta por sua crônica crise de identidade. A troca de nome lhe aliviará neste estado interior de crise frente à sociedade, e faz o diagnóstico de transexualismo masculino primário (sic). Ainda, M. não apresenta patologia mental. Psicologicamente, pensa como mulher, veste-se e age como tal (fl. 88). A troca do nome masculino para o feminino lhe trará o benefício da sintonia de se sentir mulher e ser portadora de identidade feminina, terminando, em parte, a crônica crise de identidade (fl. 89). Sobre o tema, Roberto Barbarena Graña, referido por José Francisco Oliosi da Silveira (“O Transexualismo na Justiça”, Ed. Síntese, 1995, p. 09), citando H. Benjamin, afirma: “Benjamin descreve-os como pessoas de sexo masculino que, mesmo sabendo-se homens e biologicamente normais, encontram-se profundamente inconformados com seu sexo biológico e desejosos de modificá-lo”. 35 Matilde Josefina Sutter (“Determinação e Mudança de Sexo – Aspectos Médico-Legais”, RT, 1993, p. 105) menciona: “A incompatibilidade entre o sexo biológico e a identificação psicológica num mesmo indivíduo é chamada de transexualismo pela grande maioria dos estudiosos... Para Holmer Oliveira Menezes ‘transexualismo é a inadequação psicológica ao sexo somático, que é aquele denunciado pela genitália interna, pela genitália externa e pelos caracteres secundários; ou ainda, a não-harmonização entre o sexo somático e o sexo psicossocial, com alterações no comportamento sexual do indivíduo’ ”. Epps Quaglia, também aludido por Matilde Josefina Sutter (ob. cit., p. 106), na mesma linha de raciocínio, registra: “Transexualismo é entidade que se caracteriza basicamente pela profunda rejeição que o indivíduo afetado sente em relação ao sexo anatômico”. A literatura médica, assim, faz as seguintes conceituações: O homossexual tem preferência por pessoa do mesmo sexo; o bissexual apresenta indistinta satisfação com ambos os sexos; o transexual é o que não aceita sua conformação física, rejeita seu sexo biológico e, psicologicamente, identifica-se com o sexo oposto, mesmo não sendo portador de qualquer anomalia. Ainda, sobre o transexual, refere que o mesmo se sente alheio ao meio social, passa a assumir o sexo oposto e o seu organismo acompanha o desejo psicológico de se comportar com o sexo assumido. Não é outra a conclusão, a partir da tomada do depoimento pessoal do postulante (fls. 97/115). Apresentava ele, desde tenra idade, profunda inconformidade com seu sexo biológico masculino 36 e a sua identificação psicológica como mulher. Não havia, como referido por Holmer Oliveira Menezes, antes citado, harmonização entre o seu sexo somático e o seu sexo psicossocial, acarretando-lhe, via de conseqüência, profundas alterações em seu comportamento social. Refere, expressamente, em seu longo depoimento, todas as dificuldades pelas quais passou, todas as suas ansiedades, todas as suas aspirações, enfim, todo o desenrolar de seu processo psíquico, até culminar com a realização da intervenção cirúrgica, com objetivo de adaptar o sexo à sua condição psicológica. Evidenciada, portanto, na exata conceituação dos autores citados, à saciedade, sua condição de transexual. Mais ainda, transexual primário, porque a inconformidade com o sexo de nascimento e sua procura para o adaptar ao seu sexo psicológico advém da infância e juventude. Roberto Farina (“Transexualismo: Do Homem à Mulher Normal através dos Estados de Intersexualidade e das Parafílias”, São Paulo, Novular, 1982, p. 141) assim o define: “O transexual primário, verdadeiro ou essencial, é o protótipo da esquizossexualidade, onde a obsessão de mudança de sexo é compulsiva, precoce, imperativa e perene”. O que postula o requerente? Alteração do sexo masculino para o feminino! A legislação pátria, no entanto, ao contrário de alguns outros países, não contempla soluções autorizativas para a solução da quaestio enfocada nos presentes autos. Porém, por pouco tempo, talvez, posto que tramita na Câmara Federal o Projeto de Lei nº 70/95, de autoria do Deputado José Coimbra, que “dispõe sobre intervenções cirúrgicas que SENTENÇAS visem à alteração de sexo e dá outras providências”, já tendo, inclusive, recebido, na Comissão de Constituição e Justiça, parecer favorável do Deputado Régis Oliveira, magistrado aposentado, que, em certos pontos, registra (in verbis): “... O rigor do padrão moral de outrora cede espaço, hoje, a novas realidades, aos novos costumes, e a hipocrisia de então não mais encontra eco na vida e na ciência hodiernas... De outro, surge a grande realidade empírica. Os costumes alteram-se, os comportamentos mudam, as condutas ficam mais flexíveis, fruto das informações de massa. Em conseqüência, as regras jurídicas não podem imobilizar-se. Ao contrário, devem adaptar-se aos novos tempos. Os comandos normativos dirigem-se à determinada sociedade, à determinada comunidade. Não são conceitos desapegados de qualquer conteúdo, como se o mundo jurídico pudesse ser um mundo alheio ao que se passa na comunidade a que se dirige. Os comandos tendem a se alterar, na medida em que muda realidade”. A operação e a mudança de sexo, prossegue Régis Oliveira, mudam, efetivamente, o sexo da pessoa. Em conseqüência, torna-se indiscutível que o operado habilita-se a ter vida social normal, embora, em tese e por ora decorrente dos avanços da ciência, ainda possa procriar. Evidente, todavia, que poderá constituir família. Como já se observou: “la majorité de la doctrine n’admit que les trois cas suivant: défaut absolu de consentement, identité de sexe, défaut des formes et incompétence du célébrantx”. (Planiol & Ripert, “Traité Pratique de Droit Civil Français”, Paris, 1926, tomo 02, nº 252) SENTENÇAS Porém, enquanto legem non habemus, não pode o julgador se eximir de enfrentar e decidir a postulação inicial, inclusive para que, na expressão de Warlomont, ao início citada, “a assimilação com a vida modele as inspirações e oriente as normas”. M., pela intervenção cirúrgica a que foi submetido, não mais apresenta a constituição de pessoa do sexo masculino. Isso é irreversível, como também o é, como ensinam os doutos, sua condição de transexual primário. Então, por que não permitir que seja V. A. em seu assento de nascimento, já que V. A. nasceu, V. A. cresceu e V. A. que sofreu todas as vicissitudes da vida para conseguir adaptar o sexo de nascimento ao sexo que sente ter, à pessoa que sente ser? Que é o homem? Mais corpo ou mais alma? Ouso até responder a tal indagação de Ari Darcy Wachholz, magistrado deste Estado, em sentença proferida quando titular desta Vara dos Registros Públicos (citado por José Francisco Oliosi da Silveira, in “O Transexualismo na Justiça”, Ed. Síntese, 1995, p. 73): O ser humano é, sem dúvida, mais alma do que corpo! Logo, o seu sexo deve ser aquele que vem de seu íntimo, que vem de suas entranhas, que vem de sua alma, e, in casu, para M. outro não é que não o feminino, motivo pelo qual se impõe o deferimento da alteração postulada. Por outro lado, a Lei nº 6.015/73 estabelece, em seu art. 58, ser imutável o prenome, salvo nas situações reguladas no seu parágrafo único e no art. 55, parágrafo único. Entretanto, mesmo fora das exceções disciplinadas, não se pode aceitar de forma absoluta essa imutabili- 37 dade. Os tempos mudam, evoluem, estamos no limiar do século XXI e os direitos fundamentais da pessoa humana devem acompanhar essas mutações, criando, inclusive, novos fatos e situações jurídicas, passíveis de ingresso em novas normas legais. O que se entende geralmente por nome? Cícero já o elucidava em uma frase que De Cupis tomou para epígrafe de importante monografia: “Nomen est, quod uni cuique personae datur, quo suo quaeque proprio et certo vacabulo appellatur”. R. Limongi França (“Do Nome Civil das Pessoas Naturais”, RT, 3ª ed., p. 20) propõe para tal expressão a seguinte tradução: “Nome é o vocábulo que se dá a cada pessoa, e com o qual é chamada, por ser o seu designativo próprio e certo”. A identidade, que é um direito fundamental da pessoa humana, inaugura os direitos de cunho moral, exatamente por se constituir no elo de ligação entre o indivíduo e a sociedade em geral. O bem jurídico tutelado é a identidade, que se considera como atributo ínsito na personalidade humana (Carlos Alberto Bittar, “Os Direitos da Personalidade”, Forense Universitária, 1ª ed., pp. 120/121). O abalizado Prof. W. de Barros Monteiro, com referido por José Serpa de Santa Maria (“Direitos da Personalidade e a Sistemática Civil Geral”, Ed. Julex Livros, 1ª ed., 1987, p. 132), define o nome como o sinal exterior pelo qual se designa, se identifica e se reconhece a pessoa no seio da família e da comunidade. Carlos Fernández Sessarego (“El Cambio de Sexo y su Incidencia em las 38 Relaciones Familiares”, “Revista de Direito Civil” nº 56/07) preleciona: “El derecho a la identidad personal es uno de los derechos fundamentales de la persona humana. Esta especifica situación jurídica faculta al sujeto a ser socialmente reconocido tal como ‘el es’ y, correlativamente, a imputar a los demás el deber de no alterar la proyeccion comunitária de sua personalidad. La identidad personal es la ‘manera de ser’ como la persona se realiza en sociedad, con sus atributos y defectos, con sus caracteristicas y aspiraciones, con su bagage cultural e ideológico. Es ele derecho que tiene todo sujeito a “ser él mismo”. Então, por que não deixar, também, que M. adote, em seu assento de nascimento, o nome de V. A., já que pelo mesmo é reconhecido, caracteriza o seu elo de ligação com a sociedade e é atributo de sua personalidade? Impõe-se, de igual forma, o deferimento da alteração do prenome, para que M., na SENTENÇAS expressão de Sessarego, tenha o direito de “ser él mismo”. Isto posto, julgo procedente o pedido inicial, formulado por M. A. S., determinando que o seu nome seja alterado para A. V. S, bem como seja alterada a anotação referente ao sexo, de masculino para feminino. Mantenha-se segredo de justiça. A alteração deverá ser praticada pelo titular do Ofício ou por quem estiver em legal substituição. No fornecimento de certidões não se fará referência à situação anterior. O expediente (mandado e peças) deverá ser arquivado em caráter de segredo de justiça. Informação ou certidão não poderá ser dada a terceiro, salvo ao próprio interessado ou no atendimento de requisição judicial. Custas ex lege. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 16 de junho de 1997. Antônio Carlos Antunes do Nascimento e Silva, Juiz de Direito. 39 Processo nº 2.361/25 – Ação Ordinária de Nulidade de Escritura Pública, Cumulada com Reivindicação Autor: Espólio de F. R., representado pelo inventariante, F. R. N. Réus: O. M. L. e outros Juiz prolator: Antônio Carlos Ribeiro Ação de anulação de escrituras públicas. Ocorrência de prescrições aquisitiva e extintiva. Improcedência do pedido. Vistos, etc. F. R. N., inventariante dos bens de F. R., ajuizou a presente ação ordinária de nulidade de escrituras públicas, cumulada com reivindicação, contra O. M. L., A. L., N. L., D. P., S. B. M., M. S. B. M., V. B. S., menor, pai E. B. S., O. R., V. R., W. D. C., P. N., A. G., L. P., M. e C. O., A. G. O., J. C., F. I. S., V. J. S., R. R., J. C., A. R. P., A. G., L. W. N., J. W. N., V., V. e W. N., I. F. S., A. R., A. J. D., S. G., F. A. P., L. B., A. A. O., E. B. B. S., casada com J. M. B. S., Z. T. B. S., S. T. B. S., menor, seu pai E. B. S., N. B. S., menor, O. P., R. R. & Cia. Ltda., M. & Cia. Ltda., alegando, em suma, que A. P. extorquiu do casal C. R. uma procuração em causa própria e outorgou-a a A. B. para que este alienasse todos os bens do espólio de F. R., anteriormente a habilitação de mais três herdeiros que foram reconhecidos, – através de investigação de paternidade, cumulada com petição de herança. Neste processo, foi anulada a escritura de partilha amigável que atribuiu ao casal de C. R. o único bem do espólio, constituído de uma gleba de terras de campos e matos, denominada “P. R.”, situada neste Município, no lugar denomi- nado “Sesmaria dos Butiá”, com a extensão de 24.707.039 metros quadrados. Asseverou que, em conseqüência da nulidade, restaram nulas as escrituras subseqüentes, que deram origem aos registros relacionados na petição inicial, por força do art. 145, incs. IV e V, do CC. Salientou que o mesmo ocorreu com as vendas feitas por J. R., irmã do falecido, eis que excluída da vocação hereditária, em decorrência da existência de descendentes. Alegou, ainda, a existência de protesto judicial para afastar a boa-fé dos adquirentes e requereu a procedência total da ação. Com a inicial, vieram os documentos das fls. 44 à 121. Expedidos mandado e precatória citatória, veio aos autos mandado da fl. 128, onde não foram citados A. L., D. P., C. O. e E. B. S. Em decorrência, foram expedidas novas precatórias citatórias – (fls. 134 a 137). À fl. 134, consta a citação da Firma M. M. & Cia. ofereceu contestação (fls. 149 à 153), aduzindo, em preliminar, a impugnação ao valor da causa, afim de que seja fixado de acordo com o valor mínimo usado pelo avaliador na comarca para o alqueire; a absolvição de instância, por não constar documento indispensável da prova de ser o autor inventariante do espólio; falta de citação das esposas dos réus; por estar o autor promovendo execução do acórdão; e por 40 falta de diligência nos autos por mais de 30 dias. No mérito, alegou que a decisão judicial não atingiu os direitos reais de A. B. e seus sucessores singulares, por não terem sido partes do processo. De outra parte, a contestante já tem direito a propriedade pelo decurso do tempo necessário a usucapião, eis que sua posse, somada a de seus antecessores, data de 08-02-27. Requereu a improcedência da ação. Juntou os documentos das fls. 154 à 206. À fl. 211, consta a citação de C. O.; à fl. 217, a citação de A. L., ambas por precatória. À fl. 223, consta a citação de D. P. Veio aos autos manifestação de O. P. (fl. 225), alegando a falta de citação das esposas dos réus, não fluindo o prazo de contestação enquanto não suprida a irregularidade. Juntou procuração (fl. 226). Foi determinada a citação (fl. 227). O autor requereu a citação das esposas (fl. 228). Foram expedidos precatórias e mandados, constando as citações das fls. 235, 238 e 246. M. O., A. G., A. R. P., A. G., A. G. O., A. J. D., A. N. e L. P. ofereceram contestação (fl. 248), aduzindo, em preliminar, ser irrisório o valor da causa e não haver prova de ser o autor inventariante. No mérito, alegaram que possuem as terras como suas, por si e seus antecessores, há mais de 30 anos, de forma pacífica, mansa, ininterrupta, com justo título e boa-fé. Requereram a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 249 a 316. À fl. 318, manifestou-se E. B. B. S., alegando a falta de citação de seu esposo e nominando condôminos exis- SENTENÇAS tentes na área e que não foram citados. Juntou os documentos das fls. 319 à 332. Sobreveio a réplica às contestações até então oferecidas (fls. 336 à 338), onde o autor ataca as preliminares, trazendo prova de ser inventariante do espólio e, no mérito, ratificou os termos da inicial, fazendo juntada, entre outros documentos, do protesto judicial. Juntou os documentos das fls. 339 à 375. Às fls. 377 a 381, manifestou-se A. R., relacionando pessoas residentes na área litigiosa e ainda não citadas. J. M. B. S., E. B. B. S., A. R., I. A. S. R., S. G., O. R. G., W. R., A. R., A. S. B. M., C. B. M., W. B. S., E. M. S., J. C., V. T. C., O. R., L. R., A. O., A. N. O., M. S. B. M., I. G. M., A. A. O., T. C. O., W. B., H. I. B., N. B., A. B., N. L. C., N. S. C., R. G. D., M. D. G. D., O. M. L., D. B. L., N. L., C. R. L., A. P. B., G. P. B., A. B., M. G. B., E. B., E. M. B., J. C., U. L. C., F. I. S., S. B. S., Z. T. B. S. e Z. T. B. S. ofereceram contestação (fls. 382 à 406), alegando, em suma, preliminarmente, a não-fluência do prazo de contestação, por falta de citação de todos os condôminos, relacionando-os; a elevação do valor da causa, pois, o dado à causa impossibilita um recurso ao Supremo Tribunal Federal; e a absolvição de instância, por ter havido cessão dos quinhões dos herdeiros em 25-01-38 e por falta de citação de todos os condôminos. No mérito, alegaram a prescrição aquisitiva, eis que possuem as terras por tempo necessário para a usucapião, ainda com justo título e boa-fé. Requereram a improcedência da ação, com as cominações legais. SENTENÇAS P. N., H. B. N., V. N., L. D., V. N., M. L., L. V. N., assistido por seu pai P. N., ofereceram contestação (fls. 407/408), alegando, em preliminar, falta de citação de todos os litisconsortes e valor irrisório da causa. No mérito, alegaram a prescrição de qualquer direito dos autores sobre o imóvel, eis que possuem mansa, pacífica e ininterruptamente por mais de 20 anos. Requereram a improcedência da ação, com as cominações legais. À fl. 410, O. P. requer a juntada do instrumento procuratório e dos documentos das fls. 412 à 673. Às fls. 676 à 681, foi oferecida réplica às contestações, aduzindo a intempestividade destas e dos documentos juntados; que o valor da causa nada tem a ver com o recurso extraordinário; descabe aos contestantes requererem intervenção de terceiros e, no mérito, não há que se falar em usucapião em virtude do protesto judicial e decretação de nulidade da escritura que deu origem às demais. Às fls. 680/681, o feito foi saneado, oportunidade em que foi determinada a citação de todos os litisconsortes. Foi determinado o reajuste do valor da causa, bem como diligência do ofício de justiça sobre o número de famílias existente na gleba. À fl. 691, veio aos autos a informação do Oficial de Justiça, noticiando a existência de mais ou menos 384 famílias. À fl. 695, foi concedido o benefício da justiça gratuita ao inventariante F. R. N. Às fls. 706/797, 712 à 714 e 720 à 721, manifestou-se o autor quanto à falta de citação de eventuais moradores na área. Por determinação judicial, às fls. 723/ 724, o Escrivão relacionou todos os réus 41 que contestaram a ação; os que não contestaram; os que contestaram e não constam na inicial, os citados com as respectivas esposas; a falta de citação da mulher e os não-citados. Através do despacho da fl. 724, foram determinadas novas citações. À fl. 727, foi juntado mandado de citação. À fl. 740, foi juntado mandado de citação. A. M. C. ofereceu contestação (fl. 742), alegando que o feito se trata mais de uma execução de sentença, de um feito onde não foi parte. Invocou a prescrição aquisitiva por ser terceiro de boa-fé. Juntou os documentos das fls. 743 à 756. O autor replicou esta contestação, repisando os termos das manifestações anteriores (fls. 759/760). Às fls. 768/769, veio aos autos procuração outorgada pelo inventariante em nome do espólio de F. R. À fl. 772, veio aos autos o instrumento procuratório de O. C. C., esposa de A. M. C. Às fls. 784/ 785, foi requerida a averbação da citação no Registro de Imóveis, o que foi deferido, constando a cópia do mandado à fl. 792. Às fls. 793 a 798, manifestou-se o espólio autor, relacionando pessoas que ainda não foram citadas e requerendo a realização do ato. Acompanhou os documentos das fls. 799 à 807. À fl. 812, o espólio requereu a juntada de comprovante da substituição do inventariante, que passou a ser O. R. Às fls. 824 à 827, consta o mandado de citação e respectiva certidão. À fl. 834, o Ministério Público recebeu vista dos autos. Às fls. 848 à 850, foi requerida a citação, por edital, de todos os desconhecidos, invasores e interessados da área litigiosa, o que foi deferido. Consta 42 nos autos exemplar do Diário da Justiça com a publicação do edital (fls. 855/ 856). G. G. P., por si e representando a filha F. P., D. P. e O. C. P. ofereceram contestação (fls. 859/860), alegando, em preliminar, a prescrição intercorrente, eis que o feito ficou paralisado sem a iniciativa da parte; a ilegitimidade passiva, por serem terceiros de boa-fé, eis que a fraude hereditária ocorreu há mais de 50 anos. No mérito, aduziram que são terceiros de boa-fé, sendo que o espólio deve buscar perdas e danos contra os autores da fraude ou seus sucessores dentro do limite das heranças. Requereram a improcedência da ação. Juntaram os documentos das fls. 861 à 867. L. B. e C. L. B. ofereceram contestação (fls. 869/870), aduzindo, em preliminar, a nulidade da citação por edital, eis que pessoas conhecidas; a substituição das partes no pólo ativo, eis que o autor faleceu e não houve substituição pelo espólio, o que suspende o feito. No mérito, alegaram usucapião, eis que possuem justo título e boa-fé e suas posses somadas às de seus antecessores atinge mais de 60 anos. Requereram a improcedência da ação. Juntaram os documentos das fls. 871 à 874. A. B. C., E. O. C., A. P., J. S. P., A. G. Z., N. Z., C. J. G., E. M. G., F. P. M., N. P. T., I. M. G., M. T. B., I. M. G., B. J. G., J. G. N., M. G. O., R. P., M. C. P., A. B. C., S. P. O., V. P. e O. T. P. ofereceram contestação (fls. 875 à 901), alegando, em preliminar, a ilegitimidade ativa, eis que os herdeiros cederam seus direitos hereditários após o protesto judicial; falta de citação de todos os litisconsortes. No mérito, historiaram os fatos e alegaram em seu favor a pres- SENTENÇAS crição aquisitiva, eis que suas posses somadas aos antecessores totaliza mais de 100 anos, sendo sempre mansa, pacífica e ininterrupta, além de justo título e boa-fé. Requereram a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 902 à 997. A. F., I. G. F., A. D., S. D., A. M. O., A. A. O., A. J. D., B. R. K., L. L. K., C. C., L. C. C., H. V., N. C. V., J. A., D. B. A., L. E. C., R. M. C., L. O. P., R. M. P., R. P. F., A. P. F., S. B., A. D., V. H. D., Z. D. L., W. G., E. G., W. L. B. e F. F. B. ofereceram contestação (fls. 998 à 1.043), aduzindo, em preliminar, a carência de ação, eis que todos os herdeiros cederam seus direitos hereditários, em 25-01-38 e 14-12-37, após o protesto judicial; falta de citação de todos os litisconsortes necessários. No mérito, historiaram os fatos e alegaram em seu favor a prescrição aquisitiva, eis que a posse, por si e seus antecessores, atinge mais de 60 anos, sempre de forma mansa, pacífica, sem qualquer oposição, além de justo título e boa-fé. Requereram a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.044 à 1.180. M. & Cia. Ltda. ofereceu contestação (fls. 1.181 à 1.190), ratificando os termos da contestação já apresentada e aduzindo, em preliminar, ser irrisório o valor da causa; a absolvição de instância, por serem os autores carecedores de adição, eis que transferiram todos seus direitos hereditários a G. Z.; falta de comprovação de ser inventariante do espólio; falta de citação das esposas; nulidade da citação por edital, por serem réus conhecidos; falta de diligência do autor por mais de 30 dias. No mé- SENTENÇAS rito, alega que a decisão judicial que anulou a partilha amigável não atingiu os direitos reais de A. B. e sucessores, por não terem sido partes na anulação. Após historiados os fatos, a contestante alegou posse mansa, pacífica e ininterrupta que, somada a de seus antecessores, atinge mais de 100 anos. Alegou a prescrição de pretensão dos autores, requerendo a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntou os documentos das fls. 1.191 à 1.232. N. B. ofereceu contestação (fls. 1.233 e 1.234), aduzindo, em preliminar, a prescrição aquisitiva, tendo tempo hábil para usucapião. Alegou, ainda, que a decisão judicial não atinge os direitos reais de A. B. e seus sucessores. Caberia ação de perdas e danos contra os autores da fraude. Requereu a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntou os documentos das fls. 1.235 à 1.240. B. L., C. G., R. G. e J. J. O. ofereceram contestação (fls. 1.241/1.242), alegando, em preliminar, a prescrição aquisitiva, tendo tempo hábil para usucapião, salientando que adquiriram o imóvel de boa-fé. A decisão judicial não atingiu os direitos reais de A. B. e seus sucessores singulares. Caberia ação de perdas e danos contra os autores da fraude. Requereram a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.243 à 1.258. O. R., L. P. R., A. J. D., V. B., I. T. B., L. F., E. F., A. L., T. L., L. C. T., B. M. T., Z. A. B. M. L., O. M. L., A. B. M. L., E. M. L. e S. B. M. ofereceram contestação (fls. 1.259 à 1.272), aduzindo, em preliminar, a ilegitimidade ativa, os autores são carecedores de ação por terem transferido todos os seus direitos 43 hereditários para G. Z., em 25-01-38; falta da prova de ser inventariante – documento indispensável à propositura da ação, sendo os herdeiros hoje falecidos, não se sabendo quem são os autores da ação; inépcia da inicial –, não juntou documento comprobatório da propriedade do imóvel, relacionando apenas alguns dos réus, não fornecendo endereços; nulidade do feito por falta de citação inicial – quando todos os réus são conhecidos descabe a citação por edital, não havendo condições de prosseguir o feito sem completar os pólos da relação processual. Requereram a extinção do processo, sem julgamento do mérito. No mérito, após historiarem os fatos, alegaram a prescrição do direito dos autores, bem como a prescrição aquisitiva em decorrência da usucapião, eis que suas posses, somadas às de seus antecessores, atingem mais de 40 anos, além de possuírem justo título e boa-fé. Requereram a improcedência da demanda, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.273 à 1.355. G. L. O., M. L. O., J. V. N., H. F. N., L. W. N., M. N. N., S. M. N., V. N., T. L. N., J. H., E. T. H., L. A. D., M. C. D., D. P., E. P., L. B., M. M. B., M. J. R., M. T. R., M. C., G. C. C., O. P. e L. P. P. ofereceram contestação (fls. 1.356 à 1.372), aduzindo, preliminarmente, a carência de ação, por terem os autores transferido todos os seus direitos hereditários para G. Z. e A. B. No mérito, alegaram a prescrição da ação, por se tratar a petição de herança direito pessoal, já tendo decorrido mais de 20 anos quando do ingresso daquela ação. Salientam que a nulidade da escritura apontada pelos autores não atingiu os direitos 44 de G. e A., pois estes não foram partes naquele processo. Invocaram, ainda a prescrição aquisitiva, eis que suas posses somadas a de seus antecessores gera tempo hábil para usucapir, as quais sempre foram mansa, pacífica e com justo título. Requereram a extinção do processo, sem julgamento do mérito ou a sua improcedência, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.373 à 1.466. A. L. M., L. P. M., V. P. M., A. S., N. G. S., I. L. P., V. P. P., E. P. L., M. A. Q., Z. P. Q., A. G., R. N. G., J. G., A. O. G., A. G., M. N. G., W. B. S., E. M. S., A. J. G., A. A. O., T. C. O., W. O., E. T. O., N. B., T. O. B., C. O. P., A. P., A. O., T. E. O., D. B., C. G. B., J. R. W., G. P. W., M. F. P., W. P. P., E. P., E. P., I. P. e M. R. P. ofereceram contestação (fls. 1.467 à 1.480), aduzindo, preliminarmente, a inépcia da inicial por não ter sido formulado pedido, apenas o autor protestou pela nulidade de todas as escrituras públicas; a prescrição da ação, por se tratar de direito real que prescreve em 10 anos, entre presentes, e em 15 anos, entre ausentes; prescrição aquisitiva, por serem terceiros de boa-fé e terem tempo hábil para usucapir, mencionando a Súmula nº 237 do STF. No mérito, alegaram a posse mansa e pacífica, sem qualquer contrariedade; não serem os autores parte legitima por terem transferido todos os seus direitos hereditários, salientando que o protesto judicial perdeu seu efeito à ratificação posterior feita por C. R.; falta de citação de todos os litisconsortes necessários, requerendo a extinção do processo. Asseveraram, ainda, que os efeitos da nulidade da escritura invocada pelos autores não atingiu SENTENÇAS de A. B. e de seus sucessores singulares. Requereram a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.481 à 1.566. C. J. O., A. P. S., D. G., A. C. e J. B. F. ofereceram contestação (fls. 1.567/ 1.568), alegando, preliminarmente, estar prescrita a pretensão dos autores, pois os contestantes têm posse mansa, pacífica e ininterrupta há mais de 40 anos, argüindo, pois, a usucapião como defesa. No mérito, alegaram que a petição de herança não atinge os direitos de A. B. e seus sucessores singulares, por não ter sido parte. Requereram o acolhimento da preliminar e, no mérito, a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.569 à 1.601. A. B., M. C. C., W. C. O., A. O., A. P. T., I. A. S. R., A. V., A. J. D., A. L. P. G., J. P. O., S. G., H. C., A. J. L., J. A. M., C. R. M., D. J. M., R. M. M., W. A. L., N. P., F. O. P. S., V. N., T. F. O., W. O., J. J. O., A. P. O., E. N., J. N., M. G. R., A. F., D. L. C., J. D. S., J. R. S., E. J. S., B. A. S., J. M. C., J. P. T., A. T., T. L. F., N. F., M. T. T., J. L. T., E. J. N., I. R., M. D. N., E. A. L., G. P., N. L. K., L. K., S. K., G. C., A. G., A. G. O., L. C. O., W. O., L. M. O., A. T. P., D. P., A. Z. M., V. J. M., A. J. B., M. F., R. F., J. C. F., L. N., M. T. G., L. L. S., A. M. S., J. L. C., A. M. C., V. S., E. O., A. O., W. B., A. P. R., N. C., C. C. V., J. N., D. N. e L. C. ofereceram contestação (fls. 1.602 à 1.608), aduzindo, em preliminar, a prescrição da pretensão dos autores, eis que os requeridos estão na posse e domínio há mais de 40 anos, argüindo, ainda, a usucapião como matéria de defesa. No mérito, argumentam que a nulidade invocada pelos SENTENÇAS autores não atinge os direitos reais de A. B. e de seus sucessores singulares. Requereram a extinção do processo ou, no mérito, sua improcedência, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.609 à 1.947. J. M., E. T. B., I. P., C. B. M., L. M. N., E. I. G. ofereceram contestação (fls. 1.948/1.949), aduzindo, preliminarmente, estar prescrita a pretensão dos autores, eis que os requeridos detém a posse e domínio há mais de 40 anos, de forma mansa, pacífica e ininterrupta e de boa-fé, invocando a usucapião como matéria de defesa. No mérito, alegaram que a nulidade invocada na inicial não atingiu os direitos reais de A. B. e seus sucessores singulares. Requereram o acolhimento da preliminar ou, no mérito, a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.950 à 1.961. À fl. 1.963, foi juntado o exemplar do jornal com a publicação do edital de citação. Às fls. 1.969 à 1.983, o espólio autor replicou as contestações apresentadas, insurgindo-se contra todas as preliminares argüidas, requerendo a rejeição e, no mérito, citou doutrina e jurisprudência, repisando os termos da inicial e de suas manifestações anteriores, requerendo a procedência da ação. Com vista dos autos, o Ministério Público emitiu o parecer da fl. 1.987, onde requereu diligência ordenatória do feito, bem como a juntada de dois mapas da área pelo espólio autor. O autor foi intimado para atender a promoção, oportunidade em que requereu a reconsideração, por desnecessárias a diligência, ou o recebimento como agravo retido (fls. 1.989 à 1.991). Os autos vieram conclusos. É o relatório. 45 DECIDO A matéria versada nos presentes autos autoriza o julgamento antecipado, eis que a questão, embora de direito e de fato, não exige a produção de provas em audiência, ante a farta prova documental carreada aos autos, na forma do art. 330, inc. I, do CPC. Antes de entrar na análise das preliminares argüidas, necessário se faz que seja expressamente analisado o pedido de diligência formulado pelo Ministério Público (fl. 1987), onde requereu a juntada de plantas da área litigiosa. Rejeito o pedido. A área objeto da presente ação está perfeitamente descrita na petição inicial, constando sua metragem e confrontações, bem como veio aos autos certidão do Registro Imobiliário, requisitos essenciais para a promoção da reivindicatória. Não determina, portanto, a lei que o reivindicante apresente planta do imóvel. De outra parte, não foi objeto de nenhuma das contestações que não se tratasse da mesma área que deu origem aos seus registros de propriedade. Foram citados, por edital, todos os interessados e os ocupantes da área para promoverem suas defesas. Desse modo, tal diligência somente acarretaria maior demora na solução da lide e em nada contribuiria. Preliminares. Diante do grande número de contestações, passo a analisar as preliminares em conjunto, conforme a matéria argüida. Valor da causa. As impugnações feitas ao valor atribuído à causa foram formuladas no corpo das contestações. Não obstante, este juízo possibilitou o reajustamento (fls. 680/681), o que não foi atendido pelo espólio-autor. Entretanto, 46 rejeito a preliminar, porque não utilizado o devido incidente processual. Nesse sentido tem se posicionado a jurisprudência: “Não se conhece a impugnação ao valor da causa, formulada no corpo da contestação”. (STJ, 1ª Seção, AR nº 164-SP, Rel. Adhemar Maciel, julgado em 28-11-89, não conheceram, “DJU”, de 05-03-90, p. 1.395, 1ª col., em.; “RT” nos 98/108, 506/127, 574/171, 613/150, “Julgados do TARGS” nos 49/ 86, 105/394, in “Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor”, 1991, p. 173, Theotonio Negrão) Ilegitimidade ativa dos herdeiros. Pela documentação acostada, verifica-se que B. J. S., C. R., J. S. P., L. R., C. R., F. P. S. e F. R., em 25-01-38, cederam todos os seus direitos hereditários para G. Z. Consta, também, que C. R. tenha alienado seus bens para A. B. em 1927 e ratificado em 1937. Rejeito a preliminar. A ação é movida pelo espólio de F. R., embora, na inicial, tecnicamente possa causar confusão, levando a entender que o herdeiro individualmente seja o autor da demanda. Ora, com a nulidade da partilha amigável feita em favor de C. R., em tese, o espólio recebeu o bem novamente para o monte-mor. Então, embora o herdeiro ou eventuais herdeiros tenham cedido ou alienado seus direitos, o espólio, através de seu inventariante nomeado e compromissado (fl. 341), representando herdeiros ou cessionários, pode expor sua pretensão em juízo. Solucionada a petição de herança e na hipótese de reversão de bens ao espólio, só então viria à tona a discussão sobre o direito de cada herdeiro à herança, eis que reconhecida essa qualidade em sentença posterior. SENTENÇAS Substituição processual. Foi alegado, em preliminar, que com a morte do inventariante F. R. N. necessário seria a habilitação de seus sucessores no feito. Rejeito a preliminar. Ora, o falecido era apenas inventariante do Espólio de F. R. Com a sua morte, teria de vir aos autos o novo inventariante, comprovando a sua qualidade, o que foi feito (fl. 812), passando o Senhor O. R. a representar o espólio. Falta da prova de ser inventariante. Esta omissão restou suprida, eis que veio aos autos certidão comprobatória de ter F. R. N. prestado o compromisso legal de inventariante no inventário por morte de F. R. (fl. 341). Rejeito a preliminar. Extinção do feito por falta de iniciativa do autor. Alegaram que os autos ficaram parados por mais de 30 dias, por falta de iniciativa da parte autora, devendo, então, ser extinto o processo, sem julgamento do mérito. Rejeito a preliminar. Seria possível decretar a extinção do processo caso tivesse sido intimado pessoalmente o autor, na pessoa de seu representante, e mesmo assim nada tivesse sido feito no prazo estipulado em lei. Inépcia da inicial. Alegaram que o autor não juntou documento comprobatório de sua propriedade sobre o imóvel objeto da lide, relacionando apenas alguns dos réus e não fornecendo seus endereços. Foi alegada, ainda, a inexistência de pedido de nulidade, apenas protestou o autor. Primeiro, no que tange à falta de certidão do Registro de Imóveis, entendo não ser caso de acolher a preliminar, porque o autor acostou aos autos, inicialmente, a escritura de partilha amigável que foi anulada pela Egrégia Superior SENTENÇAS Instância, onde consta a descrição da área e o respectivo registro. Embora não esteja tecnicamente correto, vê-se que, em tese, teria se revertido ao patrimônio do espólio. A certidão veio aos autos à fl. 340, comprovando a propriedade do espólio-autor. Em segundo lugar, a falta de menção dos nomes de todos os réus deveuse à dificuldade encontrada pelo autor diante das centenas de pessoas que lá residiam e às constantes mudanças dos proprietários. Tal deficiência foi suprida com a publicação de edital. Quanto aos endereços, estava implícito na inicial que os requeridos residiam na área em litígio, até prova em contrário. Quanto à inexistência de pedido, também rejeito a preliminar. Embora não esteja a inicial tecnicamente perfeita, os fatos foram narrados com clareza, bem como dados os fundamentos do pedido, dentre eles foi citado o art. 145 do CC, que trata da nulidade dos atos jurídicos. Então, embora tenha o autor protestado, compreende-se o alcance da sua pretensão, ou seja, o requerimento de nulidade. “Não se considera pedido genérico o que, embora deficientemente formulado, permite correta compreensão do seu alcance.” (“RJTJSP” nº 95/277) Ilegitimidade passiva. Alegaram que os requeridos são parte ilegítima por serem terceiros de boa-fé, pois a dita fraude ocorreu há mais de 50 anos. Essa preliminar confunde-se com o próprio mérito da causa e com ele será decidida. Prescrição aquisitiva. Alegaram que detém a posse pacífica, mansa e ininterrupta pelo tempo hábil a gerar usucapião. Da mesma forma, confunde-se com o mérito da causa e com ele será analisada. 47 Falta de citação de todos os litisconsortes. Foi alegada a nulidade do feito por falta de citação de todos os litisconsortes necessários, inclusive as esposas dos réus. Rejeito a preliminar. A nulidade só é declarada se houver prejuízo para a parte. Entretanto, no caso dos autos, com a citação por edital, esse prejuízo eventual desapareceu. Os interessados e ocupantes da área foram, então, regularmente citados e exercitaram seus direitos, oferecendo contestações dentro do prazo legal. Nulidade da citação por edital. Os requeridos alegaram a nulidade da citação feita por edital, eis que pessoas conhecidas. Rejeito a preliminar. Ora, este processo está em tramitação desde 10-02-71. Até ocorrer a citação por edital, não se encontravam formas viáveis e eficazes para o chamado de todos os interessados a juízo. Vinham aos autos notícias de que centenas de famílias estavam ocupando a área, o que trazia grande dificuldade ao Oficial de Justiça executar a ordem judicial. Então, nesses casos necessário se faz a busca de soluções, a fim de evitar que as demandas se eternizem, sem chegar a lugar nenhum. Apropriada a jurisprudência citada pelo autor, às fls. 849/850, que muito bem se amoldou à dinâmica dos conflitos sociais, como se vê: “Válida é a citação por edital no caso de invasão de área de terras por favelados, dado o caráter coletivo dos interesses e para assegurar às partes o respeito aos princípios constitucionais do processo”. (acórdão unânime da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo) Desse modo, rejeitadas todas as preliminares, passo à análise e julgamento 48 do mérito. Trata-se de ação de nulidade de escrituras públicas, cumulada com reivindicação, movida pelo espólio de F. R., em virtude de decisão judicial que anulou escritura originária, em decorrência do reconhecimento da paternidade de outros três herdeiros e julgou procedente a petição de herança. Conforme consta dos autos, F. R. faleceu, em estado de solteiro, em 24-05-09, deixando bens a inventariar, ou seja, a fração de terras descrita na inicial, que recebera por morte de seus pais P. R. e C. R. Deixou uma única filha reconhecida, R. R., mãe de C. R., ao qual coube herança do avô, como herdeiro-neto, representando a mãe pré-morta. Antes, porém, de saber do reconhecimento de R., consta que havia um testamento nuncupativo, onde apareciam outros filhos naturais. Este testamento foi anulado por decisão judicial de 29-10-25, antes da partilha no inventário, quando, então, J. R. e outros irmãos do de cujus passaram a se comportarem como herdeiros e venderam seus direitos hereditários. Em 08-02-27, C. R., através de escritura pública, por seu bastante procurador, vendeu para A. B. a área de terras que lhe coube por herança do avô. C. ratificou a venda no ano de 1937. Em 08-04-27, ingressou em juízo – com a medida cautelar de protesto judicial contra M. Z., G. Z. e outros, alegando, entre outras coisas, ter sido coagido e induzido por A. P., que conseguiu uma procuração em causa própria, ocasionando a venda das terras que recebera por herança. Em 13-12-37, através de escritura pública de partilha amigável, o casal de SENTENÇAS C. R. recebeu a fração de campo ora em litígio, cuja partilha veio a ser anulada posteriormente. Em 25-01-38, B. J. S., C. R., J. S. P., L. R., C. R., F. P. S. e F. R. cederam todos os seus direitos hereditários referentes aos bens deixados por morte de F. R. Em 23-07-60, foi ajuizada ação de investigação de paternidade, cumulada com petição de herança e protesto, cuja citação inicial foi efetivada em 25-07-60. A final, esta ação foi julgada parcialmente procedente, sendo reconhecidos como filhos de F. R. as pessoas de C., L. e C. R. e anulada a escritura de partilha amigável feita ao casal de C. R. Estes, em suma, são os fatos versados nos presentes autos. No mérito, a ação improcede, eis que fulminada pela prescrição nas suas modalidades extintiva e aquisitiva. Com efeito, no que concerne à prescrição extintiva do direito à ação de petição de herança, por parte dos herdeiros que vieram a ser reconhecidos por sentença, não resta a menor sombra de dúvida de que está inquestionavelmente consumada. Ora, F. R. faleceu em 24-05-09. A partir do evento morte, passou o fluir o prazo prescricional para que os herdeiros ou sucessores, que tivessem reconhecida essa qualidade, reivindicassem os bens que se encontrassem indevidamente com qualquer pessoa. Na época, a prescrição ordinária operava-se em 30 anos, ou seja, por força do art. 177 do CC de 1916, cujo prazo posteriormente foi reduzido para 20 anos, por força da Lei nº 2.437, de 07-03-55. Saliente-se que os prazos prescricionais quanto a direitos reais ainda era e é menor. SENTENÇAS Desse modo, quando foi ajuizada a ação de investigação de paternidade, a petição de herança, com ela cumulada, já estava prescrita, eis que ajuizada somente no ano de 1960. A propósito, alegou o autor que o acórdão que deu pela nulidade da escritura de partilha amigável reformou a decisão de 1º grau, afastando a prescrição e fazendo coisa julgada. Tal afirmativa não é correta. Naquela ação, não houve argüição de prescrição em contestação. Logo, como se tratava de direito patrimonial, obviamente, não poderia ter sido reconhecida pelo julgador, por isso, afastada que foi pela Superior Instância. Desse modo, não houve decisão sobre o mérito neste particular. Por outro lado, a presente ação não se trata de execução do acórdão, como afirmado em contestação, pois, se assim fosse, estaria o autor reivindicando diretamente o imóvel. Entretanto, primeiro requer a anulação de todas as escrituras subseqüentes à anulada e, em conseqüência, reivindicar o imóvel que entende lhe pertencer. Quando da anulação do noticiado testamento, cabia aos então pretensos herdeiros ajuizar a competente ação para verem reconhecida a paternidade e o conseqüente direito à herança. Mas, ao contrário, passaram a fazer cessão de direitos hereditários, sem que ainda tivessem reconhecida a qualidade de herdeiros. Por isso, em tese, afastei a falta de interesse processual dos autores devido à falta de capacidade para ceder, no entanto, no mérito, seus direitos restaram prescritos até mesmo pela usucapião, conforme será analisado. Tem de ser salientada, contudo, a controvérsia existente sobre o tema, tanto 49 na doutrina como na jurisprudência. Há posições divergentes no que diz respeito se a petição de herança é uma ação de natureza real ou pessoal, o que implica na mudança do prazo prescricional, na forma do art. 177 do CC, e, até mesmo, se é prescritível, ou não. Alguns doutrinadores entendem que a petição de herança somente é atingida pela prescrição aquisitiva. Ora, neste caso, qualquer que seja a forma de prescrição, como passo a analisar, não resta dúvida de que atinge os direitos do autor. Com efeito, sumulou o Egrégio Superior Tribunal Federal a respeito da prescrição: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. (Súmula nº 149) “A Lei nº 2.437, de 07-03-55, que reduz prazo prescricional, é aplicável às prescrições em curso na data de sua vigência (1º-01-56), salvo quanto aos processos então pendentes.” (Súmula nº 445) Como se vê, com a aplicação desta última súmula citada, os três herdeiros reconhecidos judicialmente ainda tiveram reduzido o prazo para a petição de herança, eis que a vigência da Lei nº 2.437/55 foi anterior ao ajuizamento daquela ação. Saliente-se estou levando em conta o prazo da prescrição ordinária por ser mais favorável aos herdeiros. Miguel Maria Serpa Lopes, tratando sobre o tema, toma uma posição eclética em relação às correntes que procuram definir a natureza jurídica e a prescrição da ação. Diz ele: “... a ação de petição de herança é visceralmente real, por outro lado, o seu precípuo objetivo, condição sine qua non do seu efeito 50 reivindicatório, é o reconhecimento, principalmente se baseado no parentesco, possui uma eficácia ex tunc, jamais contestada. Ao se reconhecer que o autor, na ação de petição de herança, é, v. g., filho do de cujus, esse reconhecimento remonta à época do seu nascimento, do mesmo modo que, ao se reconhecer válido um testamento posteriormente descoberto, a qualidade de herdeiro necessariamente remonta ao momento da abertura da sucessão e não ex nunc. Ora, o disposto no art. 1.772, § 2º, é relativo a um estado de comunhão ainda subsistente; supõe uma partilha ainda não feita e refere-se expressamente ao fato de estar um ou mais herdeiros na posse de certos bens do espólio. “Enquanto perdurar a comunhão hereditária, a posse do herdeiro não é apta a produzir a prescrição extintiva, dada a sua qualidade de comunheiro. Por isso, não se aplica o art. 177, mas, sim, o preceito do § 2º do art. 1.772, que não é um lapso prescricional propriamente dito, mas uma situação que se identifica com o usucapião, pois, decorrido o lapso de 20 anos, consolidase a situação do herdeiro possuidor, que se transformou completamente. “O argumento de não ser o autor parte na comunhão hereditária e, por isso não haver fundamento para lhe estender o disposto no § 2º do art. 1.772, peca pela base, ante a força retrooperante da sentença, ao lhe reconhecer a qualidade de herdeiro, seja a partir da sucessão, se se tratar de um herdeiro testamentário, seja a partir do próprio nascimento, se aquela qualidade decorrer de outra – a do parentesco. SENTENÇAS Por outro lado, impõe-se considerar a estreita correlação entre a ação de petição de herança com a de partilha, podendo esta ser paralisada por efeito daquela, dado consistir o seu objetivo em tornar o réu evicto em relação aos herdeiros hereditários por ele detidos a título de herança”. (“Curso de Direito Civil”, vol. I, 7ª ed., p. 530/531) Antes de passar a analisar a prescrição aquisitiva, convém salientar também a posição do Prof. Wagner Barreira, em matéria referente a natureza, foro e prescrição da ação: “Haverá acerto em se afirmar ser a ação de petição de herança naturalmente prescritível? Parece que não. Na verdade, em relação a ela há uma imprescritibilidade natural, ou básica – apesar de se achar proclamado na Súmula nº 149 da jurisprudência do STF ser ‘imprescindível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança’. Pois ela, em rigor, também não prescreve. E assim sucede porque o que fundamenta é o domínio ou a propriedade que da herança tem o herdeiro no Direito brasileiro. A ele a herança cabe como direito seu, desde a abertura da sucessão. É o que se acha estabelecido no art. 1.572 do CC e está agora confirmado no inc. XXX do art. 5º da CF de 1988. “Ora, se da herança o herdeiro tem domínio, ou propriedade, sobre ela tem ele o direito de usar, gozar e dispor, irrestritamente, consoante indica o art. 524 do mesmo Código. E tendo, assim, tais direitos, por certo, também tem o de não dispor, não gozar ou não usar. E esses direitos o acompanham pela vida inteira, até que das coisas objeto da sucessão alguém adquira direito, por SENTENÇAS usucapião. Sobre tais coisas, portanto, até que se opere o usucapião, tem domínio o herdeiro desapossado. Isso deixa ver, no tocante à ação de petição de herança, que com ela não se dará prescrição extintiva enquanto outrem não adquirir por prescrição aquisitiva o todo ou parte dos bens que formam a herança”. (“RT” nº 659/28) Ora, mesmo que se acolhesse a posição dos doutrinadores que entendem imprescritível a ação, não há como deixar de ser reconhecida a prescrição aquisitiva em favor dos requeridos que, por conseqüência, atinge frontalmente a propriedade do autor. Pois, como já foi dito, a sucessão de F. R. foi aberta em 24-05-09, deixando uma única filha reconhecida, R., que por sua vez teve um filho, C. R., que recebeu toda a herança de seu avô. Portanto, a posse recebida por C. não estava maculada por qualquer vício. O protesto judicial realizado em 08-04-27 não tem o condão de interromper a prescrição ou tornar os adquirentes de má-fé, porque, em 1937, o próprio C. R. ratificou a escritura de venda realizada a A. B. no ano de 1927. A alegada extorsão feita por A. P. para obter a procuração restou inócua, em face da ratificação. De outra parte, C. R. acabou transferindo a A. B. e este a seus sucessores singulares a posse e propriedade que detinha como único herdeiro de F. R. Todos os adquirentes, por sua vez, entraram na posse da área, de forma mansa, pacífica e com justo título. Então, quando da anulação da escritura de partilha amigável decretada pelo Egrégio Tribunal de Justiça, em decorrência da ação ajuizada no ano de 1960, já 51 havia decorrido tempo hábil para gerar usucapião em favor dos adquirentes, mesmo levando em consideração o prazo de 30 anos previsto pelo art. 550 do CC, alterado pela Lei nº 2.437/55. Assim, desnecessária a perquirição da boa-fé, alegada pelo autor, quando se tem presente que a posse dos autores e seus antecessores soma mais de 30 anos, sempre com ânimo de donos e de forma ininterrupta. Tal situação faz com que o possuidor adquira o domínio, independente de título e boa-fé, que, nesta circunstância, se presume. Assim, decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação nº 67.993, Ac. 10-04-86: “Usucapião. Matéria de defesa. Ministério Público. Título aquisitivo nulo. Existência de transcrição no Registro Imobiliário. Intervenção do Ministério Público somente se torna obrigatória quando se cuida de ação de usucapião prevista no art. 944 do CPC, não se justificando quando o direito ao usucapião é simplesmente alegado como matéria de defesa. Não há que se falar em falsidade ou nulidade de título dominial quando já consumada a prescrição aquisitiva extraordinária (CC, art. 550), que prescinde de título e boa-fé. O usucapião existe em Direito não apenas para titular a propriedade de quem não dispõe de título algum, mas igualmente para sanar o título existente de qualquer dúvida ou discussão, mesmo quando o possuidor já conte com título dominial devidamente transcrito no Registro Imobiliário”. (in “Posse e Usucapião”, Humberto Theodoro Júnior, 1991, p. 427) É o que se vê no presente caso. Os proprietários estão de posse de títulos 52 devidamente registrados, no entanto, sobre eles paira dúvida ou discussão. Tal situação, porém, exige uma solução, como diz Caio Mário da Silva Pereira, que diante da necessidade de que todas as relações jurídicas gozem de tranqüilidade, em benefício da harmonia social, o legislador estabeleceu os prazos prescricionais (“Instituições de Direito Civil”, 7ª ed., p. 482). De fato, as relações jurídicas não podem ficar ameaçadas por tempo indeterminado. Nesse sentido, abordando o usucapião extraordinário, ensina o Prof. e Des. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento: “Desta forma, desnecessita o usucapiente, neste tipo de usucapião, possuir qualquer título; se possuir, é demasia que não prejudica. Essencial e sobranceiro é o fato da posse ligada à sua duração. Na primeira edição, afirmamos que, no usucapião extraordinário, ‘a posse pode se qualificar de má-fé, ou seja, aquela em que o possuidor não ignorava o vício ou o obstáculo impeditivo da aquisição do imóvel’. Nossa afirmativa não alcançou o pretendido. O que se sustenta é que, com sede nas regras do usucapião de longo tempo, não interessa e se afasta mesmo qualquer indagação sobre a ciência ou ignorância do possuidor de vício ou obstáculo impeditivo para adquirir o bem. Não cabe às partes nem ao Juiz o exame da SENTENÇAS fé, se boa ou má. É elemento dispensado e não examinado”. (“Usucapião, Comum e Especial”, 5ª ed., p. 111) Assim a posse e propriedade está consolidada nas pessoas dos contestantes, sendo irrelevante as alegações de ter J. R. efetuado venda, quando, em verdade, não era herdeira. Ora, o decurso do tempo se encarregou de sanar toda e qualquer irregularidade ou nulidade de títulos, em decorrência das prescrições extintivas ora reconhecidas em favor dos réus. Diante do exposto, julgo improcedente a presente ação ordinária de nulidade de escrituras públicas, cumulada com reivindicação, condenando o autor ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 20 % sobre o valor corrigido da causa, a ser dividido proporcionalmente entre os réus, diante da pluralidade de réus, trabalho exigido, eis que julgada antecipadamente a lide, bem como zelo dos profissionais, na forma do art. 20, § 3º, do CPC. Em virtude do benefício da assistência judiciária concedida ao autor, fica este isento do pagamento das custas e honorários, na forma da Lei nº 1.060/50. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Espumoso, 23 de outubro de 1991. Antônio Carlos Ribeiro, Juiz de Direito. 53 Processo nº 3.910 – Ação de Investigação de Paternidade Autores: C. W. S. e R. S. S. Réus: I. P. A. e A. R. R. A. Juiz prolator: Carlos Frederico Finger Paternidade e maternidade socioafetiva. Impossibilidade de ser investigada (vindicada) a paternidade e a maternidade biológica. Princípio da aplicação da proteção integral e melhor interesse da criança. Sentença de improcedência aos pais biológicos. Vistos, etc. C. W. S. e R. S. S. ajuizaram ação de investigação de paternidade (a demanda foi ajuizada originariamente sob nomen juris de “ação declaratória de nulidade de registro de nascimento cumulada com pedido de liminar de guarda de menor impúbere”.) contra I. P. A. e A. R. R. A., alegando que a autora R. deu à luz a uma criança do sexo feminino, em 26-08-96. Em razão de tratamento psiquiátrico a que estava sendo submetida a requerente antes mesmo do parto, a criança foi entregue pelo pai biológico a uma terceira pessoa chamada O. M., que por sua vez veio a entregá-la ao casal requerido. Restabelecida emocionalmente da moléstia a qual foi acometida, a requerente, juntamente com seu esposo, procurou localizar a criança, não logrando êxito junto a O. M., vindo a saber o seu paradeiro apenas certo tempo após. Em 18-06-97 foi ajuizada “ação de regularização de guarda de menor”, que foi extinta sem julgamento do mérito por impossibilidade jurídica do pedido (art. 267, VI, do CPC), decisão esta que transitou em julgado sem irresignação das partes. Quando receberam a posse da criança, de forma inadvertida, os requeridos providenciaram no registro da menor, em verdadeiro procedimento de “adoção à brasileira”, vedada pelo ordenamento jurídico vigente, mas permanecem na posse da criança até os dias de hoje. Por fim, requereram os autores o deferimento imediato da guarda da menor T., sua filha, e ao final a declaração de paternidade dos autores com relação à criança T., com a confecção de novo registro de nascimento, além do deferimento da guarda definitiva da menor. Juntaram documentos e requereram a concessão da assistência judiciária gratuita. Foi determinada a emenda da inicial, tendo os autores nominado a ação como investigação de paternidade, formulando os pedidos antes mencionados. O pedido de guarda provisória foi indeferido na fl. 94, tal como opinado pelo Ministério Público nas fls. 81/82. Citados, os requeridos contestaram reconhecendo terem procedido de forma irregular por ocasião da formalização do registro de nascimento de T. Salientaram, como restou demonstrado 54 no transcorrer da ação anterior de guarda, que só agiram dessa forma em razão das instruções dadas por C. e O. M. Pela prova testemunhal emprestada ficou claro que a requerente não queria a criança, tanto que tentou asfixiá-la, sem contar que antes mesmo do seu nascimento a rejeitava. Mencionaram que devem prevalecer os laços afetivos em detrimento do vínculo biológico, preservando-se o interesse da menor. Além disso, a requerente sofre de psicose afetiva, o que pode levá-la a cometer outros atos “fora da normalidade”. Irresignaram-se contra o pedido de guarda formulado na inicial e pediram a final improcedência da demanda. Manifestaram-se novamente os autores reiterando suas razões iniciais. Manifestaram-se os requeridos nas fls. 116/ 117 reconhecendo o pedido dos autores quanto à paternidade da criança, mas reiterando o requerimento de improcedência da ação e manutenção do seu vínculo sobre T. Instadas a se manifestar, as partes não requereram a produção de outras provas. O Ministério Público lançou parecer nas fls. 122/123 opinando pela procedência da investigação de paternidade com a conseqüente desconstituição do registro de nascimento irregular da menor e a lavratura de outro, porém com a manutenção da guarda de T. em poder dos requeridos, por ser medida que atenderá aos seus interesses. Os autos vieram conclusos. É o relatório. Passo a fundamentar. A situação posta em causa, deveras complexa em razão dos reflexos que serão gerados por esta decisão, propõe duas ordens de questões. SENTENÇAS A primeira delas diz respeito ao reconhecimento da paternidade (e maternidade) dos requerentes com relação à criança nascida em 26-08-96, chamada T. R. A. A segunda refere-se à situação fática criada pelos próprios autores, destaque-se, com a colocação da criança em poder dos requeridos. O ponto relativo à filiação biológica de T. reveste-se de simplicidade ímpar, na medida em que, nas fls. 116/117, os requeridos, por seu procurador, reconheceram expressamente serem os autores da demanda os pais biológicos de T. Este reconhecimento (de paternidade e maternidade), feito mediante provimento judicial declaratório, ensejaria como corolário a retificação do registro de nascimento da criança, devendo nele constar o nome dos verdadeiros pais e mais os dados da declaração de nascido vivo da fl. 14. Contudo, impossível o reconhecimento judicial do primeiro ponto indicado (declaração de paternidade e maternidade) sem a abordagem de um segundo problema, bem mais delicado e complexo. Com efeito, trata-se de definir a situação fática de T. R. A., que vive com o casal requerido desde tenra idade, fato incontroverso nos autos. Assim, necessárias algumas digressões de caráter doutrinário. Uma primeira observação possível é a de que, em processos de Direito de Família, nos quais a disputa se desenvolve em razão de um filho, ou, como no caso em tela, em torno do estabelecimento da filiação, o que trará como conseqüência a provável alteração da posse da criança, hodiernamente a visão do operador do direito deve ser SENTENÇAS substancialmente distinta daquela tradicionalmente adotada. Vale dizer, não obstante a demanda posta ao crivo judicial consagre, também, interesses e pretensões dos adultos que litigam, titulares de direitos respeitáveis e dignos de consideração, que não menos verdade sobreleva na hipótese o interesse da criança envolvida, sobretudo porque a decisão a ser tomada terá reflexos diretos sobre a sua situação fática, comprometendo, de uma forma mais ou menos intensa, a sua identidade. Por isso, necessário destacar que, entre nós, de acordo com o escólio de Heloísa Helena Barbosa (“Novas relações de filiação e paternidade”, in “Repensando o Direito de Família: anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família” (coord.: Rodrigo da Cunha Pereira); Del Rey, Belo Horizonte, 1999, pp. 138 e ss.), a Constituição Federal de 1988 representou importante marco na trajetória do Direito Civil pátrio, provocando um verdadeiro abalo estrutural do sistema jurídico, estabelecendo uma nova ordem, promovendo a determinada “constitucionalização do Direito Civil”, trazendo profundas mudanças em especial ao Direito de Família. Segundo a emérita professora, a CF/ 88 lançou dois princípios estruturais daquilo que denomina de “nova filiação”: o primeiro, da plena igualdade entre os filhos (insculpido no art. 227, § 6º); e o segundo – que é o que mais interessa no caso em comento – consiste na adoção pela Constituição Federal da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente (art. 227 da CF), os quais passaram a ter reconhecidos e garantidos direitos próprios a sua condição de pessoas em desenvolvimento. 55 Portanto, as relações envolvendo pais e filhos devem necessariamente respeitar tais direitos e premissas, não sendo possível que se faça qualquer leitura da filiação, maternidade ou paternidade, se não com as lentes da doutrina da proteção integral, tendo como objetivo único atender o melhor interesse da criança. Conseqüência imediata da plena adoção da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente é a admissão, em termos jurídicos, da denominada paternidade afetiva, que emerge da relação socioafetiva entre pais e filhos, quando ausente o vínculo biológico. A paternidade socioafetiva (aí incluída, evidentemente, a maternidade), decorre da velha noção de posse do estado de filho, que se caracteriza pela reunião de três elementos clássicos, a saber: a nominatio, que implica utilização pelo suposto filho de patronímico do pai; a troctatio, demonstrada no tratamento deferido ao pai pelo filho; e a reputatio, representada pela fama ou notoriedade social da reputação. A posse de estado de filho seria, assim, decisivo elemento para sobrepor-se ao sistema baseado na mentira jurídica de pura aplicação da presunção pater is est, consagrada pelo Código Civil de 1916 (art. 338, I e II), servindo como bússola na determinação da verdadeira paternidade, qual seja, a paternidade biológica num primeiro instante, e a paternidade socioafetiva, na atualidade. Há muito, a sabedoria popular já reconhecera tal vínculo: “pai é quem cria, dá o pão, amor e ensino”. O Direito, e em especial o de Família, obrigou-se a reconhecer tal fato social instalado, e esse acolhimento deu-se através da doutrina da proteção integral: o 56 melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo. Não existe, sempre, um instinto maternal que tudo explica. Cumpre sinalar, sob este aspecto, que o reconhecimento da paternidade afetiva acabou, nos tempos atuais, por consagrar uma verdadeira relação jurídica que tem por base o afeto, único em muitos casos, capaz de permitir a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana, em especial da criança. Maria Berenice Dias, em feliz síntese, destaca que “como cabe ao Direito regular a vida, e sendo essa uma eterna busca da felicidade, impossível que não se reconheça o afeto como um vínculo que não serve só para gerar a vida, eis que, conforme diz Sílvio Macedo, o amor é um valor jurídico.” (DIAS, Maria Berenice, “Efeitos Patrimoniais das Relações de Afeto”, in “Repensando o Direito de Família: anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família” (coord.: Rodrigo da Cunha Pereira); Del Rey, Belo Horizonte, 1999, p. 57). Considerados todos os aspectos doutrinários trazidos é que se passa a abordar a espécie posta em causa. No caso em tela, R. (mãe biológica) ainda durante a gravidez teve diagnosticada doença psíquica, identificada como sendo psicose afetiva. O quadro mórbido fez com que certas precauções fossem adotadas já ao início, tanto assim que mesmo antes do parto, R. já tinha o acompanhamento de sua sogra, conforme relatou a testemunha S. C. (fl. 66). Havia, já ao tempo da gestação, uma rejeição (decorrente da doença, frise- SENTENÇAS -se) de R. pela criança que estava para nascer, o que veio a se confirmar com o nascimento de T. Em vista dos problemas psíquicos da esposa, C. acabou entregando a filha aos cuidados de O. M. e sua mulher, seus vizinhos. Segundo informou O. à fl. 61, C. (pai biológico da infante), entregou-lhe a criança após a mesma ter passado, antes, por outras três famílias. Posteriormente, O., não tendo condições de criar a infante, entregou-a ao casal requerido, que a mantém sob a sua guarda até hoje. A criança nasceu em 26-08-96, e passado quase um ano é que seus pais biológicos se dispuseram a encontrá-la (junho de 1997), achando-a sob os cuidados e carinho dos demandados, com quem se encontra desde os 40 dias de idade, de acordo com o declarado por O. M. Hoje, como perceptível, a menina encontra-se com três anos e nove meses de idade, perfeitamente integrada à família A., reconhecendo, por certo, I. e A. como seus legítimos pais. Percebe-se, portanto, para o bem ou para o mal, que existe uma situação de fato consolidada e que não deve ser alterada em respeito ao interesse da criança T. Ela reconhece em I. e A. os seus pais, únicos que teve até o momento. Retirá-la do convívio dos demandados é contra-indicado, sob pena de esbulhar o seu interesse de pessoa em desenvolvimento. É arrebatar-lhe o único pai e a única mãe, o único carinho e afeto que teve até hoje. Temerário afigura-se o afastamento de uma menina de pouco mais de três anos do convívio dos seus pais afetivos, aqueles que a acolheram desde os SENTENÇAS quarenta dias de idade, mormente se considerarmos que não existe qualquer vínculo afetivo entre T. e os requerentes. Presumo que a menina sequer os conhece. Abordada a questão que efetivamente mereceu abordagem, qual seja a posse da criança T. e o reconhecimento dos seus pais verdadeiros, volta-se ao primeiro ponto desta fundamentação que se refere à questão registral de T., registro este falsamente levado a efeito pelos demandados. Diante das idiossincrasias do caso concreto, muito embora entenda que a forma dos atos jurídicos deva sempre ser considerada e atendida para que tenhamos a tão invocada segurança jurídica, também entendo que esta questão não se mostra tão relevante a ponto de desmerecer o superior interesse da criança disputada. É certo que os demandados efetuaram o falso registro. Sabiam não ser os pais biológicos da menor, mas assim agiram consagrando aquilo que a doutrina comumente tem chamado de “adoção à brasileira”, na crença de que a criança que lhes fora entregue por O. M. estava sendo rejeitada pelos pais biológicos. A conduta dos autores em “dar” a criança a terceiros é tão questionável quanto a dos requeridos. Se, como alegam, era tão forte a intenção de manter T., por que razão não a entregaram aos cuidados da avó paterna, que, segundo a testemunha S. C., auxiliou R. e C. nos cuidados com a menina nos primeiros dias de vida, sobretudo em função da rejeição da mãe pela filha? Por que não a deixaram sob os cuidados de qualquer outro parente próximo, ao invés de es- 57 tranhos? Esse aspecto da relação entre os autores e a filha não vem elucidado e desprestigia o pedido inicial. O próprio comportamento do autor C. parece não revelar todos os dados da realidade, na medida em que tratou de entregar a filha para estranhos pouco tempo após o nascimento, o que, convenhamos, refoge da normalidade; ou ao menos não é o comportamento que se espera de um pai que se disse zeloso e preocupado com a filha de tão tenra idade. Ao que tudo indica, C. nada fez para recupera a criança no meio tempo em que sua esposa estava com os sintomas da psicose afetiva. Conclusão que se extrai dos elementos constantes nos autos é a de que os autores entregaram a criança para que fosse “adotada” por qualquer daqueles que com ela permaneceram, de sorte que a infante acabou sendo acolhida no lar dos requeridos. Isso transparece nos depoimentos colhidos e trazidos aos autos como prova emprestada, sem irresignação das partes. Depreende-se dos fatos, também, que houve um arrependimento posterior dos autores que, ante o estabelecimento de fortes vínculos afetivos entre a criança e seus pais afetivos, não pode agora ser levado em conta e supervalorizado, prejudicando a pessoa que mais deve ser protegida neste complexo caso – T. Nem mesmo o fato de os autores serem os pais biológicos de T. suplanta a paternidade-maternidade afetiva dos requeridos, justamente porque adotar essa solução seria, como antes se referiu, destruir a sua identidade. Por este motivo, com a vênia Ministerial, impõe-se a 58 improcedência da demanda, inclusive com a manutenção do falso registro de nascimento levado a efeito pelos demandados (fl. 30). Em face do exposto, julgo improcedente a ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de guarda movido por C. W. S. e R. S. S. contra I. P. A. e A. R. R. A.. Condeno os requerentes no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios ao patrono dos de- SENTENÇAS mandados, os quais arbitro em 05 URHs, considerados os critérios do art. 20, § 4º, do CPC. A exigibilidade dos encargos sucumbenciais ficará suspensa já que vai deferida a gratuidade judicial aos autores (art. 12 da Lei nº 1.060/50). Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Santa Bárbara do Sul, 16 de maio de 2000. Carlos Frederico Finger, Juiz de Direito. 59 Processo nº 01296087388/11864 – Ação de Anulação de Casamento 8ª Vara de Família e Sucessões Autor: R. C. C. Ré: J. J. M. C. Juíza prolatora: Catarina Rita Krieger Martins Ação anulatória de casamento. Improcedência por não ter restado demonstrado erro essencial, já que houve prévia união estável. Vistos os autos. Alega o autor haver casado com a ré em 29-10-94; não tiveram filhos; afastou-se do lar conjugal através de cautelar de separação de corpos em 13-09-95; ingressou com ação de separação litigiosa, sendo proposta reconvenção pela ré, trazendo inverdades em diversos recursos utilizados, demonstrando a mentira compulsiva como um defeito de caráter; logo após o casamento, o autor contatou com a verdadeira personalidade da ré, contumaz na mentira, chegando a forjar documentos; defeito de caráter este anterior ao casamento, sendo que possuía diversos cartões de crédito, parecendo ter renda compatível com isso, dizendo-se ser fazendeira, possuir um imóvel, no entanto, declara nas fichas cadastrais das lojas empregos diversos e simultâneos que não exercera. Aduz restar caracterizada conduta imoral e desonrosa, pré-existente ao casamento e desconhecida pelo autor, que se o soubesse, não teria assumido tal compromisso. Fundamenta seu pedido nos arts. 218 e 219, I, do CC. Requer a procedência da ação com a anulação do casamento por erro essencial quanto à pessoa da ré. Juntou documentos. Extinta a ação, foi dado provimento à apelação, prosseguindo o feito. Citada, a ré contestou alegando serem inverídicas as afirmações do autor, eis que, conviveram em união estável por longo período antes do casamento, havendo pleno conhecimento de um sobre o outro: conheceram-se em 1983, eram colegas de estudo; iniciaram namoro e, após 03 anos de convívio diário, assumiram relacionamento mais sério, passando a residir juntos em diversos locais, junto a familiares; trabalhavam juntos em diversas atividades, daí a enumeração de atividades laborais diversificadas; os bens foram adquiridos com a colaboração de ambos; após quase 09 anos de união, solidificaram-na, casando em 1994, sob o regime de comunhão universal de bens; festejaram a formatura da contestante junto a familiares; foi surpreendida pelo alvará de separação de corpos obtido pelo autor, deixou-a sem atendimento material, obrigando-a ingressar com ação de alimentos. Juntou documentos. Apresentou peça reconvencional, alegando que, embora o casamento tenha perdurado por apenas 01 ano, viveram em união estável por período aproximado a 09 anos, não tiveram filhos, litigam através de várias ações, são inverídicos os fundamentos alegados pelo reconvindo, injúria à reconvinte. 60 Requer o divórcio do casal, sendo atribuída culpa ao reconvindo, a partilha equânime dos bens, alimentos de 03 salários mínimos até a efetivação da partilha dos bens, retorno ao uso do nome de solteira. O autor ofereceu réplica à contestação e contestou o conteúdo da peça reconvencional, alegando descaber partilha de bens se anulado o casamento e a impossibilidade de alimento, sem ter havido alteração quanto à possibilidade e necessidade dos mesmos, já decididos anteriormente, requer a improcedência da reconvenção. Manifestou-se a reconvinte. De acordo com parecer do Ministério Público, foi nomeada curadora ao vínculo a defensora pública, que se manifestou pela extinção do feito pela impossibilidade jurídica do pedido, considerando a fragilidade das alegações do autor, quanto ao erro da pessoa da ré. Manifestaram-se as partes e foi determinada a produção da prova pericial, vindo laudo das fls. 185/188, sobre o qual falaram as partes. Vieram novos documentos e prova testemunhal emprestada de outra ação que tramitou entre as partes. Encerrada a instrução, as partes apresentaram memoriais, reiterando as alegações. A ré postula a litigância de má-fé. Veio parecer do Ministério Público pela improcedência do pedido inicial e do pedido reconvencional. Relatei. DECIDO Versa o presente feito sobre pedido de anulação de casamento sob a alegação de erro essencial quanto à pessoa da ré. Atribuiu-lhe, o autor, conduta desajustada, voltada para a mentira, SENTENÇAS personalidade anti-social, afirmando que, se conhecesse a “reputação”, a índole e a “personalidade” da ré, jamais teria com ela convolado núpcias. Os documentos acostados (fls. 175/ 182), noticiam envolvimento afetivo do autor com pessoa do mesmo sexo, bem como ser o mesmo portador de HIV. O contrato de locação (fl. 220), tendo o autor como locatário, data de 11-11-93 e indica o mesmo endereço apontado na documentação (fl. 224), constante de notas fiscais de energia elétrica, esta em nome da ré e indicando o respectivo consumo nos períodos de 11-11-93 à 02-12-93 e de 02-12-93 à 06-01-94. Tais provas documentais demonstram o convívio do casal em período que precedeu as núpcias, eis que, tão logo o autor locou o apartamento, em novembro, a conta de energia elétrica já esteve em nome da ré, enquanto o casamento somente ocorreu em outubro de 1994. Demonstram não só que residiam juntos nesse período, como também, que a ré também respondia por despesas dessa moradia, isso já 01 ano antes do casamento. Ré esta que hoje recebe acusações sobre desordem financeira e fraudes, tudo com total desconhecimento pelo marido quando do casamento. Assim, mesmo que existentes os problemas de personalidade imputados à ré, estes não seriam desconhecido do autor, condição esta indispensável para a fundamentação legal que embasa o pedido. O restante da prova documental (declarações, cartões, fotos) e a prova oral trazida aos autos indicam um bom relacionamento do casal. No entanto, diante do fundamento fático apresentado pelo autor, a prova cabal vem a ser SENTENÇAS a pericial, eis que a acusação é de desajuste de personalidade, pré-existente ao casamento, que teria tornado a vida comum insuportável. Em sentido inverso ao pretendido pelo postulante, o laudo pericial, fls. 185/188, aponta não encontrar na ré “características de personalidade do tipo anti-social”. Aponta-lhe estrutura frágil e esforços defensivos não muito adaptados para sustentar uma precária auto-estima. E, conclui que, “a periciada apresenta alguns sintomas psíquicos e, também, algumas limitações adaptativas sem que se possa classificá-la numa categoria diagnóstica específica. Não só não apresenta uma estrutura anti-social de personalidade como evidencia lhe faltar alguns recursos básicos para tal funcionamento”. Dessa sorte, os desajustes atribuídos à ré não poderiam ser do conhecimento do autor, embora o convívio pré-existente às núpcias, pois, inexistentes. Frágil e inconsistente a prova apresentada pelo autor, não logrando, este, comprovar suas alegações. A despeito da fragilidade, melhor prova apresenta a parte adversa, quando junta registro de ocorrência no qual o autor é apontado como “namorado” de outro homem portador de HIV, fatos que indicam num mesmo sentido e contrário ao pretendido na peça inicial. Improcede, assim, a pretendida anulação de casamento, primeiro pelo convívio pré-existente às núpcias, no mínimo de 01 ano, que impede o desconhecimento quanto à outra pessoa, requisito fundamental para o alegado erro essencial; segundo, pela ausência dos desajustes atribuídos a ré, que tornassem a vida comum insuportável, conforme conclusão do laudo pericial. 61 Tramita entre as partes ação de separação litigiosa, que restou suspensa em razão da propositura da presente ação. Na reconvenção, pleiteia, a reconvinte, a decretação do divórcio com atribuição de culpa ao reconvindo, a partilha equânime dos bens, o pensionamento de três salários mínimos até o recebimento dos bens e o retorno ao uso do nome de solteira. O presente feito tramita desde 1996, enquanto o alvará de autorização para afastamento do varão do lar conjugal data de 13-11-95 (fl. 19), tendo tramitado outros feitos entre as partes, nesse período. Os litigantes manifestam a impossibilidade do retorno à vida em comum, isto também restando absolutamente incontroverso pelas diversas ações envolvendo-os, demonstrando a animosidade existente. Não tiveram filhos. A reconvinte não pretende alimentos além da data do recebimento dos bens, ademais, a fixação da pensão alimentícia deve atender antes ao binômio possibilidade–necessidade do que à culpa na separação. Não pretende, a reconvinte, permanecer com o nome de casada. Certa está a falência do casamento. No entanto, de nenhum efeito a análise da culpa do varão do lar conjugal, comprovado, sobejamente, o lapso temporal necessário à dissolução do vínculo matrimonial. Em sendo o regime de bens o da comunhão universal, a partilha abrangerá os bens adquiridos por ambos até a data da separação de corpos, em 50% para cada cônjuge, apurado através de liquidação de sentença, se houver necessidade. 62 Adequado que a reconvinte receba auxílio financeiro até a efetiva entrega dos bens, sendo este fixado como alimentos e no valor de dois salários mínimos mensais, valor que se apresenta razoável à sua situação financeira e à do reconvindo. A divorcianda retornará ao uso do nome de solteira. Cabível a aplicação, neste feito, da pleiteada litigância de má-fé, forte no art. 17, II, do CPC, pois o autor tanto alterou a verdade dos fatos como omitiu outros relevantes, principalmente em relação à convivência anterior ao casamento, em período superior ao comprovado nos autos e não contestado pelo autor, de modo que o fato constitutivo do direito pleiteado, erro essencial sobre a pessoa, fica fragilizado posto que contraditório à situação fática verificada, esta por laudo pericial, tendo, o autor, tempo suficiente antes do casamento para conhecer, se assim fosse, a conduta imoral e desonrosa que tentou atribuir à requerida. Pelo exposto, julgo procedente o pedido formulado por R. C. C. contra J. J. M. C. nesta ação de anulação de casamento. Pelo exposto, julgo procedente a reconvenção proposta por J. J. M. C. contra R. C. C. Decreto o divórcio entre R. C. C. e J. J. M. C. Declaro dissolvido o vínculo matrimonial existente entre ambos. SENTENÇAS Fixo os alimentos em favor da requerida no valor equivalente a 02 salários mínimos mensais, até a efetiva partilha dos bens, com depósito em conta bancária a ser informada nos autos, até o 5º dia útil do mês subseqüente ao vencido. Os alimentos retroagirão à data da intimação ao autor quanto à reconvenção. Condeno o autor ao pagamento das custas e honorários advocatícios, que fixo em 10 URHs, forte no art. 20, § 4º, do CPC, na ação de anulação de casamento. Condeno o reconvindo ao pagamento das custas e honorários advocatícios, que fixo em 10 URHs, forte no art. 20, § 4º, do CPC. Condeno o autor ao pagamento da pena por litigância de má-fé, fixando para tanto o percentual de 1% sobre o valor da causa, devidamente atualizado, conforme Lei nº 9.668, de 23-06-98. A requerida voltará a usar o nome de solteira. Com o trânsito em julgado, expeça-se mandado de inscrição ao Registro competente. Em razão do aqui decidido, certifique-se na Ação de Separação Judicial tombada sob o nº 01295080475, arquivada administrativamente. Oportunamente, arquive-se com baixa. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 14 de março de 2001. Catarina Rita Krieger Martins, Juíza de Direito. 63 Nº de Ordem 117/00 – Ação Ordinária de Deserdação 8ª Vara de Família e Sucessões Autores: I. P. e outros Rés: S. F. V. e outras Juíza prolatora: Catarina Rita Krieger Martins Deserdação. Ação declaratória julgada procedente porque provada a injúria, ofensa e humilhação à testadora. Vistos os autos. Os autores relatam que são irmãos e sobrinhos de O. P. F., a qual faleceu em 19-05-97 e deixou um testamento, confirmado em 11-12-97, no qual a de cujus deserdou, expressamente, sua filha S. e suas netas M. L. e E., ora rés, por motivo de ofensa moral, injúria e desamparo na velhice, instituindo como herdeiros os autores, estabelecendo a divisão de seu patrimônio entre os beneficiados, bem como indicou inventariante. Informam que a ré S., costumeiramente solicitava empréstimos financeiros ao seu pai, J. O. F., esposo da de cujus, conseguindo, dessa forma, juntamente com seu marido, constituir patrimônio imobiliário razoável. Tal situação era recriminada pela mãe de S., o que gerou desentendimento entre as duas. Com o passamento do progenitor, iniciou-se um litígio entre mãe e filha sobre os bens do espólio, em razão de a filha querer auferir vantagens. Pretendem provar, com a presente ação, que as rés agiram ou omitiram-se no seu dever de assistência e amparo em relação à de cujus, que acabou por ser tratada e amparada, até seus momentos finais, pelos irmãos e vizinhos. Após seu falecimento, as rés não compareceram sequer ao velório, nem ao sepultamento. Requerem a procedência da ação e demais ônus sucumbenciais. Juntaram documentos. Regularmente citadas, as rés, inclusive o marido de S., ofereceram peça contestacional, sustentando que jamais esta e seu marido J. tenham-se aproveitado financeiramente do falecido esposo da de cujus J., inclusive era comerciante e chegou a empregar o sogro, J. O fato de a sogra não ter afinidade com J. não pode ser motivo para a deserdação. Os empréstimos jamais existiram, pois o esposo de S. possuía economia própria, inclusive, alienou imóveis em outras cidades para construir o prédio da Rua F. A. O fato de a de cujus ter ciúmes da filha, ter-se isolado por conta própria, dado o seu temperamento, não significa que a culpa seja da filha. A narrativa da de cujus no seu “diário” não passa de fantasias ou inverdades para punir sua filha. Negam a ofensa moral e injúria imputadas pela testadora. Quanto ao abandono, embora as rés tentassem a aproximação, a ré dificultava o relacionamento. A própria testadora rejeitava qualquer ajuda sentimental ou financeira. Requerem a improcedência da ação. Juntaram documentos. Juntada petição pela companheira de I. P., informando seu falecimento e postulando vista dos autos (fl. 317). Veio 64 réplica, às fls. 318/319, reiterando que a discussão gira em torno das atitudes das rés, e não de seu patrimônio. Determinada a regularização processual das demais rés, veio instrumento de mandato à fl. 328. Os autores informam o falecimento de I. e I. P., postulando a habilitação de seus sucessores. Manifestou-se o Ministério Público pelo depoimento pessoal das partes. Realizada audiência de instrução e julgamento, foi colhido o depoimento pessoal da ré S. e homologada a desistência do depoimento das demais rés, bem como a dispensa do depoimento pessoal dos autores. Foram ouvidas as testemunhas arroladas. Encerrada a instrução, o debate foi substituído por memoriais. As partes apresentaram memoriais. Veio parecer ministerial, opinando pela procedência da demanda. É o relatório. DECIDO De menor relevância ao feito da forma de aquisição dos bens por parte do genro da de cujus, ainda mais quando as queixas apontadas por esta como início dos desentendimentos com a filha originam-se, exatamente, pela legalização dos bens adquiridos em conjunto com o sogro em nome apenas do genro. Considere-se, aqui, que S. era filha única, e todos os bens adquiridos por seus pais, em princípio, recairiam em seu patrimônio. Era questão de tempo, de paciência e, provavelmente, de um pouco de tolerância. O. P. F. faleceu em 20-05-97 (documento da fl. 27). Deixou testamento datado de 15-05-97, contendo este cláusula de deserdação de sua filha S. F. V. e suas netas, filhas desta, M. L. V. M. e SENTENÇAS E. F. V., fundamentada em ofensa moral, injúria e desamparo na sua velhice. Testamento devidamente registrado. Os herdeiros instituídos ingressaram com a presente ação, dentro do prazo legal. Consta dos autos ter havido acentuado conflito entre mãe e filha na partilha dos bens deixados, quando do falecimento do esposo e pai, respectivamente, tendo a partilha sido homologada em 27-11-89 (documento da fl. 221). A filha discutiu, inclusive, sobre bens móveis: uma velha máquina de lavar roupa, uma cama de casal, um roupeiro e três butijões de gás, ocasionando pedido de remoção da mãe como inventariante, sendo que esta, além de meeira, era herdeira testamentária de 25% da parte disponível (documento da fl. 229). Consta, também, que S. era filha única do casal. O falecimento de J. O. F. ocorreu em março de 1985 (documento da fl. 121). Dentre os escritos particulares de O., temos o da fl. 79, datado de abril de 1986, no qual ela dispõe sobre o local a ser enterrada, junto do já falecido marido, salientando da seguinte forma: “não coloquem mais ninguém nesta cova, lacrem bem”. Faz ela, também, queixas à neta M. (fls. 80/85), através de uma carta datada de 17-02-97. Nos demais, vê-se grande mágoa existente da mãe para com a filha, descrevendo diversos incidentes havidos como a retirada do telefone pela neta E., que teria cortado pessoalmente o respectivo fio com uma tesoura (fl. 90), e a sua transferência de residência em razão da insuportabilidade das situações criadas pela vizinhança com a filha, genro e essa neta. Em determinado momento (fl. 105), ela escreve: “Deus te perdoe S., porque SENTENÇAS eu já te perdoei, te desejo tudo de bom, muita saúde, muitas alegrias na vida e por mais que tu me odeias, eu não consigo te querer mal, tua mãe”. Os atos fúnebres de O. correram todos por iniciativa, custas e responsabilidade de outros parentes, que não as rés, inclusive a autorização para colocá-la no jazigo junto do falecido marido, que ficou sob a responsabilidade de seu irmão I. P., conforme documentos das fls. 117/129. A testemunha T. C. R. (fl. 376) relata haver encontrado O. “aos prantos”, em razão de a neta haver cortado os fios do telefone, retirando-o. Afirma que, depois do falecimento de J., a filha e as netas se afastaram de O., que sofria com isso. Afirma, também, que O. era muito amável e carinhosa e se dava “demais” com os parentes. As testemunhas ouvidas afirmam que O. sempre esteve em juízo perfeito e era uma pessoa querida, tendo bom relacionamento com os demais parentes. A testemunha T. M. Z. S. (fl. 378) declara que o relacionamento entre O., a filha e as netas fora interrompido por coisas que ocorreram pela vida inteira, mas que O. tinha vontade de se reaproximar, tendo contatado com a neta M. L., quando da mudança desta, pretendendo dar-lhe suas jóias, que não foram aceitas. Afirma que O. aguardou pela filha, durante todo o Dia das Mães, em maio de 1997, dizendo que a perdoaria se ela a visitasse, mas isso não ocorreu. O. já sabia de sua doença. Nunca viu as rés visitando O. no hospital, esta fora acompanhada dos irmãos e cunhada. Sabe que S. fora avisada quando da hospitalização da mãe e, novamente, quando 65 esta entrou em coma, tendo respondido “tomara que morra”. O. ficou hospitalizada por 08 dias. O testamento foi feito antes da última hospitalização. A testemunha O. G. S. (fl. 379) declara ter ouvido S. dizer que não tinha condições de perdoar a mãe. Salienta que O. derramou “muitas lágrimas no ombro” da depoente, quando morava no mesmo prédio de S. Ela sentia muita falta da família, não tendo conhecido os dois bisnetos. O. chorava na janela do apartamento, tentando ver a neta M. L. A ré S. (fls. 380/381) confirma a interrupção no relacionamento com a mãe, tanto pela depoente quanto pelas suas filhas, alegando ter isso ocorrido em razão de a mãe tentar vender o veículo de seu pai para um sobrinho. Não mais a visitaram depois da viuvez, tendo esta 70 e poucos anos de idade, nessa ocasião. Estiveram no hospital, mas sua mãe estava “completamente dopada”, não as tendo reconhecido, tendo sido chamada por assistente social do hospital. Retornou por mais duas vezes, e ela “continuava dopada”. Não compareceram no velório e enterro. Não ajudou financeiramente durante a doença da mãe, sequer soube da doença. Confirma o incidente do telefone havido com E., dizendo que a mãe tinha condições de aquisição e que havia sido emprestado durante a doença do pai. Pela prova carreada aos autos, resta certo que a única filha S. e as netas M. L. e E. interromperam o relacionamento com O. após o falecimento de J., esposo desta, que teria ocorrido em março de 1985, sendo que ela faleceu em maio de 1997, com 83 anos de idade. Portanto, O. viveu por 12 anos como viúva, a partir de seus 71 anos de idade, e sem 66 contato com suas descendentes. O intenso sofrimento dela com tal fato evidencia-se tanto pelos depoimentos das testemunhas como pelos relatos dos seus escritos particulares. Nem mesmo o passar do tempo e o acentuar da velhice da mãe atenuou as desavenças ou abrandou os corações da filha e netas. Nenhum gesto de aproximação tiveram. As dificuldades nas relações, até mesmo de boa vizinhança, foram tantas, que O. viu-se obrigada a mudar do apartamento próximo do apartamento em que residiam sua filha e neta. O fato de M. L., atualmente, residir distante não a exime dos fatos atribuídos, eis que, apesar das queixas feitas pela avó, nenhum movimento fez em direção a uma reaproximação. Ainda relatado na prova oral que a testadora não logrou conhecer os bisnetos, que, certamente, são filhos da neta que reside distante, guardando grande tristeza por isso. Impressiona, sobremodo, O. haver esperado durante todo o último Dia das Mães pela visita da filha, afirmando que ainda a perdoaria se tal ocorresse; a retirada do telefone pela neta E., cortando o fio com uma tesoura; a avó na janela de seu apartamento na esperança de avistar a neta M. L., que, posteriormente, mesmo ao transferir residência para Brasília, recusou a doação das jóias pela avó; a filha responder, diante do aviso da coma da mãe, “tomara que morra”; a ausência durante a hospitalização de O. e aos atos fúnebres, dificultando até a colocação de seus restos mortais junto dos do marido. Até mesmo a discussão no inventário do pai, sendo que S. afirma haver tido conhecimento dos termos das petições ofertadas, tornou-se ofensiva à SENTENÇAS mãe, incluindo bens móveis de baixo valor e de uso do casal. O sofrimento demonstrado por O. era imenso. Para isso, certamente, mais contribuía o fato de serem suas únicas descendentes. Nenhuma dúvida existe de que a atitude das rés era dolosa, era com a intenção de ofender, humilhar, achincalhar a testadora, no que lograram êxito. A enfermidade de O., já com 83 anos de idade, levou-a a diversas hospitalizações, e não logrou esta ver sua filha e netas a visitá-la. Sequer preocupam-se a filha e as netas com as despesas de tratamento médico-hospitalar e realização dos atos fúnebres da mesma. A testadora foi injuriada pelas rés e abandonada, totalmente desamparada, na sua viuvez, velhice e grave enfermidade. Cabível, assim, a deserdação das rés, justificada nas atitudes em relação à testadora, impondo-se seja mantido o desejo da de cujus, expresso no testamento. Pelo exposto, julgo procedente o pedido formulado por sucessores de I. P. e outros contra S. F. V., J. M., E. F. V. e M. L. V. M., na presente ação ordinária de deserdação. Declaro as rés S. F. V., E. F. V. e M. L. V. M. deserdadas dos bens deixados por O. P. F., forte no art. 1.745, incs. I e IV, do CC brasileiro. Condeno as rés ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 20% do valor da causa devidamente corrigido. Oportunamente, arquive-se com baixa. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 18 de dezembro de 2000. Catarina Rita Krieger Martins, Juíza de Direito. 67 Medida Cautelar Inominada 8ª Vara de Família e Sucessões Autora: C. P. M., representada por seus pais Juíza prolatora: Catarina Rita Krieger Martins Interrupção da gravidez negada, porque não-demonstrado o risco à saúde da mãe ou malformação do feto. Vistos os autos. C. P. M., representada por seus pais, ingressou com a presente medida cautelar inominada, pleiteando a interrupção da gestação. Alega haver sofrido acidente com traumatismo grave em membro inferior, no dia 05-01-00, ficando internada por 16 dias no Hospital M. D., quando foi submetida a 07 cirurgias, todas sob anestesia geral. Realizou diversos exames laboratoriais e foi submetida a tratamento com uso de diversa medicação, bem como o emprego de radiação ionizante para investigação diagnóstica. Passada a fase crítica, surgiram sintomas que resultaram no diagnóstico da gravidez. Os médicos externaram a preocupação e os riscos que adviriam desta gravidez por terem os tratamentos coincidido com o período entre a quarta e sétima semana, fase de desenvolvimento embrionário. Aduz que, pelo risco iminente, os médicos aconselharam a interrupção da gestação, eis que não podem prever como nascerá a criança, mas têm certeza quanto às seqüelas irreversíveis e deformações que advirão. Alega, ainda, a necessidade de preservar sua vida por estar-se recuperando de um quadro clí- nico gravíssimo. Essa interrupção deve ser feita imediatamente. Requer autorização para a interrupção da gestação, o que deve ser feito até o dia 15-04-00. Juntou documentos, fls. 08/109. Manifestou-se o Ministério Público pela realização de audiência. Consta o presente pedido de interrupção de gestação em razão de risco de deformação fetal pelo tratamento a que foi submetida a mãe durante as primeiras semanas da gestação, tendo sido vítima de acidente. O tratamento a que se submeteu a paciente resta comprovado pela farta documentação acostada aos autos. No entanto, de maior valia é o constante da avaliação médica feita, fls. 108/109, que, por se apresentar clara, torna desnecessária a oitiva dos subscritores. Tal documento descreve o tratamento aplicado na paciente C., e assim relata: “... Portanto, temos a considerar os riscos inerentes ao começo da gravidez (fase de desenvolvimento embrionário), coincidente com os tratamentos supramencionados... Há de ser considerado ainda o tempo total de exposição nas várias cirurgias corretivas (horas) ... A literatura médica não contempla caso semelhante quanto ao uso maciço de drogas as mais variadas, múltiplas vezes em curto espaço de tempo, em fase embrionária incipiente. Se considerarmos isoladamente algumas drogas como a heparina, paracetamol e penicilina, 68 podemos considerá-las seguras para o emprego na gestação. “... O grande risco temido diz respeito à embriopatia gestacional ou neonatal (malformações congênitas ou que possam surgir na infância), o que realmente não pode ser afastado completamente e com segurança”. Nos termos dessa avaliação médica, temos o grande risco de malformação do feto, no entanto, nenhum exame existe comprovando haver a malformação e a extensão desta. Há possibilidade dessa ocorrência. Bem salienta esse relatório que esse grande risco não pode ser afastado completamente e com segurança. É de perguntar-se: existe segurança e completo afastamento de possibilidade de riscos de malformação de fetos nas demais gestações que se desenvolvem? O pedido refere-se à autorização de interrupção de uma gestação pela ausência de garantia de estado normal do feto. A situação parece estar ao inverso. A interrupção poderia ser pela certeza de uma malformação irreversível e sem condições de vida. Não pelo risco. O risco é uma constante do próprio viver. Tirarmos a vida para evitar o risco? E com a chancela do Judiciário? Dessa sorte, poderíamos autorizar muitas mortes, tendo por objetivo evitar graves riscos? Observo que os próprios médicos referem que algumas das drogas utilizadas podem ser consideradas seguras para emprego na gestação. Os médicos não afirmam sobre a existência de malformação e nem quanto ao mencionado risco de vida da requerente, como referido no petitório inicial. Aos especialistas da saú- SENTENÇAS de é que cabe a análise da gravidade do caso apresentado, eis que o julgador há de decidir com base na prova técnica apresentada, por ser pessoa leiga na área da saúde, sendo sua formação profissional na área do Direito. Assim, não vindo prova da malformação e falta de condições de vida do feto, bem como de risco de vida da gestante, não há como se pensar em uma autorização judicial para o ato pretendido. A inconveniência de uma gestação na idade em que se encontra a gestante, bem como dada a sua situação atual de pessoa em recuperação de lesão, não autoriza, legalmente, o aborto, se para isso não deram certeza os especialistas da área que a tratam. Não há como o Judiciário avocar a si a atribuição de dizer sobre os riscos de vida de alguém ou a impossibilidade de condições de vida e certeza na malformação embrionária. Isso, se existente, seria de ser afirmado e comprovado através dos técnicos da área própria. Ademais, se estivesse caracterizado o risco à gestante, estaríamos diante de uma norma permissiva do Código Penal, mostrando-se desnecessária a autorização judicial para a prática do aborto. É que se a própria lei prevê como causa excludente de culpabilidade, entendo que o Poder Judiciário não necessita avocar para si, antecipadamente, o poder de autorizar a prática do aborto. Se presentes os permissivos legais, simplesmente o aborto poderia ser realizado, sem qualquer punição ao médico, ante a excludente de culpabilidade. Por outro lado, a forma inversa como se apresentam os fatos – possibilidade de risco ao SENTENÇAS feto – não está dentre as elencadas pelo legislador para eximir a culpa, podendo uns sustentarem que há lacuna penal e outros, o ato ilícito em si. No caso em tela, não se tem como certa a presença de acentuada anomalia. Não se trata, pois, de lacuna legal a ser preenchida, face à ausência do primeiro e maior requisito (presença de anomalia). A própria literatura médica não contempla este caso e talvez jamais irá contemplá-lo se, ao nos depararmos com tal situação, entendermos que devemos simplesmente autorizar o aborto, eximindo a responsabilidade por um ato ilegal e, quiçá, a culpa por uma gravidez indesejada, ou evitar o ônus de dedicar maior atenção a um ser humano que poderá, ou não, apresentar características especiais. Não se está a falar na possibilidade de utilizar tal situação como teste genético, pelo fato de que não está atestado quanto à efetiva anomalia do feto. Nem está a se questionar quanto à moralidade ou não do ato. Pelo contrário, estar-se-ia autorizando a prática de crime contra a vida, dado o avançado estágio embrionário e a inexistência de certeza quanto à má-formação aventada. Observe-se que o feto já conta 16 69 semanas de vida e nada se comprovou quanto a essa possível malformação. Carecem de avanço os estudos genéticos atuais por não demonstrarem o problema alegado? Ou será a inexistência do mesmo? A intenção do legislador ao vedar a prática do aborto, de forma generalizada, é justamente para assegurar o direito à vida, que é o bem jurídico de maior importância a ser tutelado. E está-se decidindo quanto à vida de um ser humano, que merece a devida proteção legal. A lei não está a autorizar o pedido, e a própria Medicina não nos dá a certeza de que o feto venha a apresentar anomalias, caso este em que o enfrentamento da questão poderia ser diverso. Pelo exposto, julgo improcedente o pedido formulado por C. P. M., representada por seus progenitores, nesta ação cautelar inominada, forte no art. 267, VI, do CPC. Declaro a autora carecedora de ação pela impossibilidade jurídica do pedido. Custas pelos requerentes. Oportunamente, arquive-se com baixa. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 14 de abril de 2000. Catarina Rita Krieger Martins, Juíza de Direito. 70 Processo nº 7.244/045/95 – Ação Declaratória 3ª Vara Autor: José dos Santos Réu: Banco do Brasil Juiz prolator: Clademir Missaggia Ação declaratória parcialmente procedente. Aplicação do art. 192, caput, da CF. Impossibilidade de cobrança de juros a maior do que o permissivo constitucional. Vistos os autos. I – Tratam os presentes autos de ação declaratória proposta por José dos Santos contra Banco do Brasil S. A., qualificados. Alega o autor que é sogro do Sr. Delmo Jacobsen, o qual mantém conta-corrente com o réu, cujo saldo devedor é de R$ 18.266,49, assinou contrato de abertura de crédito rotativo entre as partes na condição de testemunha, mas, mais tarde, constatou que foi enganado, pois percebeu que seu nome constava como avalista, e não como testemunha. Salientou, ainda, que o documento foi adulterado, invocou ainda a regra do art. 192, § 3º, da CF/88 e a Súmula nº 121 do STF, para limitação dos juros. Requereu a procedência da ação para declaração de ineficácia do aval ou sua limitação do valor contratado e a limitação dos juros. O réu apresentou contestação negando a adulteração e, no que concerne aos juros, disse que a regra invocada não é de eficácia plena, sendo que a Súmula nº 121 é inaplicável ao sistema financeiro. Veio a réplica. Relatei. DECIDO II – A ação procede em parte. Vejamos. Não procede a alegação de adulteração. O autor é sogro do contratante. No documento da fl. 13 consta, sem qualquer “rasura”, o compromisso do autor como avalista. Ademais, é relevante o fato de este documento ter sido emitido posteriormente a data do contrato (documento tido como adulterado). A má-fé do autor, aliás, é evidente, pois forneceu todos os dados para preenchimento de sua ficha cadastral, entregando ao réu toda a documentação necessária para tanto (fls. 40 à 45). Alterou, pois, dolosamente, a verdade dos fatos. Diante do documento da fl. 13, fica sem qualquer sentido pretender ficar vinculado ao valor original do contrato, pois assinou como avalista para garantir a renovação do contrato. No que concerne à limitação dos juros, entretanto, tem razão o autor. É sabido que o funcionamento de um novo sistema financeiro, moderno e competitivo em nosso País, é uma das condições fundamentais para que enfrentemos com sucesso os impasses sociais e econômicos. O sistema em vigor é totalmente contrário ao que se concebe por modernidade. Chamá-lo de arcaico é pouco. Segundo o IBGE, em 1960, o setor financeiro detinha 6,8% do PIB, SENTENÇAS enquanto o setor agropecuário (que juntamente com a mineração é a base da riqueza de qualquer nação) recebia 22,5% da produção gerada pelo trabalho de todos os brasileiros. Em 1988, o quadro se modifica radicalmente: os bancos apropriavam-se de 14,5% do PIB, enquanto o setor agrícola ficava com apenas 8,7%. Somando-se as perdas deste período, podemos ter uma idéia da brutal transferência de recursos para o setor financeiro. Assim, resta claro que esta estrutura oligopolista e cartorial do sistema financeiro tem de ser desmantelada, sob pena de ser obstaculizado perenemente nosso desenvolvimento social. Segundo Fernando Guasparini, autor da emenda que introduziu o art. 192, § 3º, que tinha a cobrança dos juros reais a taxa de 12% ao ano, é o Banco Mundial quem informa que as instituições financeiras no Brasil representam um verdadeiro e real oligopólio. Segundo os técnicos, a natureza oligopolista do setor bancário brasileiro explica-se pela política de fusões que foi favorecida pelo Banco Central no fim da década de 1960. As mesmas fontes apontam nosso sistema financeiro como pouco competitivo. Para se ter uma idéia, nos Estados Unidos há pelo menos 14 mil Bancos onde os cidadãos podem recorrer aos serviços. Conclui o relatório que em 1987 os Bancos apropriaram-se de 11 bilhões e 200 milhões de dólares. Para que se possa imaginar a gravidade do problema, a previsão orçamentária para 1990 previa um despêndido de 0,26% para a manutenção do Poder Legislativo e 0,77 para o fomento da agricultura, enquanto 64% dos recursos tributários destina- 71 vam-se ao pagamento de juros aos encargos financeiros da União. Eis as distorções que transformaram o Estado brasileiro em instrumento de drenagem de recursos do povo brasileiro para um reduzido grupo de entidades e para outros especuladores. Há estimativas de que nos anos 50, durante o governo Kubitschek, os salários constituíam cerca de 60% da renda nacional, sendo que hoje não ultrapassam de 37%. Assim, 23% da renda transferiram-se das mãos de quem realmente produz para outros setores da população. Não é só. Ostentamos o título de campeões mundiais na cobrança de juros reais a curto prazo. Em 1989, os juros reais no Brasil foram de 42,73%, enquanto em segundo lugar ficou a Indonésia com 14,36%, isto é, apenas 2% acima da taxa aceitável. A questão dos juros não é só econômica, mas, sobretudo, de ordem ética. De regra, despreza-se a ética nos debates econômicos. Mas, é preciso assentar que sem ela, atividade econômica perde sua eficiência. Ética não é mera atitude individual na escolha do bem, mas um instrumento que torna mais produtivas as relações sociais do trabalho. Diz-se que os juros devem ser cobrados, sob pena do capital permanecer nas arcas, para a inútil sensação de posse e poder de seu dono, mas sempre nos limites da ética e da razoabilidade. Ao ser colocado em circulação o dinheiro se reproduz em bens, cria empregos, gera recursos tributários que, por sua vez, promovem e aperfeiçoam o homem na educação, na saúde e na cultura. Não resta dúvida que com os juros menores será possível pagar 72 melhores salários, liquidar a inflação e eliminar, de uma vez por todas, o déficit estrutural do orçamento da União. O argumento, várias vezes repetido, de que a limitação de juros reais em 12% ao ano retira das autoridades monetárias um importante instrumento de política monetária, segundo Gasparini, não é verdadeiro. Disse que, para desaquecer a demanda e impedir a formação de estoques especulativos, pode o governo aumentar a taxa de imposto sobre operações financeiras, por exemplo, que onerando os custos financeiros tem efeito monetário idêntico ao aumento das taxas de juros, sem ter a desvantagem de transferir recursos para o setor financeiro, mantendo sua ineficiência e sua alta taxa de lucratividade, e, conseqüente, concentração de renda. Alegava-se que a fixação da taxa de juros em 12% poderia trazer graves conseqüências, tais como o desvio de capitais para black e o ouro. Todavia, penso que não devemos ceder a tais argumentos “terroristas” e permitir esta usura desenfreada, que enriqueceu os banqueiros, grandes empresários de outros setores e os especuladores, em detrimento, inclusive, dos trabalhadores e pequenos e médios agricultores e empresários, estes em situação pré-falimentar. “Se for o caso, cabe ao Estado impor uma política para evitar os efeitos patológicos da limitação dos juros”. Não cabe ao Juiz negar vigência a norma constitucional oriunda de Poder Constituinte originário. São conhecidos casos de empresários e agricultores que são levados ao suicídio em decorrência desta política suicida. Segundo Luiz Bresser Pereira, SENTENÇAS “essa tendência para se elevar injustificadamente as taxas de juros na economia brasileira faz parte da luta entre o capital bancário e o capital rentista contra o capital industrial e comercial. Quanto maiores forem as taxas de juros, maior será a participação na renda das instituições financeiras e dos rentistas, em prejuízo, naturalmente, das atividades produtivas”. A questão posta no “plano jurídico” é de simples solução, sendo a autoaplicabilidade de clareza solar. Há duas espécies de juros. Os moratórios, devidos em decorrência do atraso na devolução do capital, e os compensatórios, que representam o fruto do capital mutuado incidente desde o momento de sua entrega ao mutuário. Antes de uma avaliação sobre a norma constitucional é preciso fazer uma recapitulação do ponto de vista histórico. Diz o art. 1.062 do CC, que entrou em vigor em 1º-01-17, que: “A taxa de juros moratórios, quando não-convencionada, será de 6% ao ano”. Reza o art. 1.063 que: “Serão também de 6% ao ano os juros devidos por força de lei, ou quando as partes os convencionarem sem taxa estipulada”. Preceitua o art. 1.262 do CC que: “É permitido, mas só por cláusula expressa, fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. Esses juros podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal, com ou sem capitalização”. Assim, como se percebe facilmente, é facultada a fixação acima ou abaixo da taxa legal, ou seja, do patamar de 6% ao ano. Todavia, em conseqüência da grande quebra de 1929, os cafeicultores brasileiros, e, com eles, todos os SENTENÇAS empreendedores, se viram diante de brutal recessão, acompanhada de deflação, e os possuidores de capital partiram para agiotagem pura e simples, o Governo Provisório adotou providência saneadora. Veio a famosa “Lei de Usura”, Decreto nº 22.626, de 07-04-33, que proibiu estipular, em quaisquer contratos, taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal, ou seja, estabeleceu-se o limite em 12% ao ano. Ainda, esta lei proibia a capitalização, salvo anualmente. Em 31-12-64 veio a Lei nº 4.595, que regulamentou o sistema financeiro. Diz o art. 4º, IX, desta lei que: “Ao Conselho Monetário Nacional compete limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de operações e serviços bancários...” Devido a tal dispositivo, adveio a discussão sobre a vigência ou da Lei de Usura quanto às instituições que integram o sistema financeiro. A matéria restou pacificada com a Súmula nº 596 do STF, a saber: “As disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional”. Simplificando: os comerciantes, os industriais, e etc. estariam ainda sujeitos a Lei da Usura, e os bancos poderiam cobrar os juros que bem entendessem. Como se vê, para os comerciantes e industriais sequer interessa se a Constituição é ou não auto-aplicavél no que concerne à taxação dos juros, uma vez que ainda vige a “Lei de Usura”. Como é sabido, esta não foi a única vez que 73 o Supremo Tribunal Federal cedeu aos interesses dos banqueiros. Para pôr fim a qualquer dúvida a Assembléia Nacional Constituinte, no 1º turno, em 12-05-88 aprovou a Emenda nº 1.948, que resultou no atual art. 192, § 3º, por 314 votos a favor e 112 contra, sendo que 34 se abstiveram. Para o 2º turno houve uma série de tentativas de supressão de tal emenda, tudo sendo comandado pelo lobby das instituições financeiras. Sendo derrotados, restava a última esperança que era a emenda Luís Roberto Ponte, Deputado do PMDB-RS, que remetia a questão para a lei complementar, o que significaria a postergação indefinida da vigência do limite de 12%. Foram derrotados. A emenda Ponte também foi rejeitada, isto é, não foi conseguido 236 votos favoráveis, pois deveria ser aprovada com no mínimo 50% dos votos, já que se tratava do 2º turno. Quando parecia certo que a usura iria começar a acabar neste País, os banqueiros contavam ainda com Saulo Ramos, que em 06-10-98, um dia após a promulgação da Constituição Federal, emitiu Parecer de nº SR-70, que homologado pelo Presidente Sarney foi publicado no Diário Oficial do mesmo dia e passou a sobrepor-se sobre a norma constitucional. No mesmo dia, o Banco Central do Brasil, através da Circular nº 1.365, notificou as instituições financeiras. Para tentar conter tal absurdo, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 12-10-88, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade do ato normativo perante o Supremo Tribunal Federal, que negou a liminar. O resultado desta ação todos sabem: improcedente por 06 a 04. Estranho, entretanto, que aquele 74 Tribunal tenha levado mais de 02 anos para julgar a ação. Há dois argumentos principais, a nível jurídico, contra a auto-aplicabilidade do dispositivo em questão a saber: a) a nebulosidade do conceito de juros reais; e b) que, do ponto de vista técnico, o parágrafo deve ligar-se ao caput do artigo e, neste caso, o caput remete a lei complementar a regulamentação do sistema financeiro e, assim, a questão da definição do que seja juro real. Vejamos a regra, in verbis: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações, direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a 12% a. a. A cobrança desse limite será conceituada como crime de usura, punido em todas suas modalidades nos termos que a lei determinar”. A norma em questão possui todos os requisitos para ser aplicada de imediato, ou seja, contém o suficiente para sua aplicação imediata. Em primeiro lugar, o preceito em questão não remete ao legislador ordinário sua complementação, usando as fórmulas conhecidas como “nos termos da lei”, “a lei disporá”, “será regulamentado em lei complementar”, etc. Ademais, como assentou o Ministro Paulo Brossard, ao proferir o voto na ADIn nº 4-7/600: “Por isto, o fato de uma norma constitucional ser declaradamente não bastante em si, não importa em dizer que ela não produza nenhum efeito até ser vivificada pela lei ordinária...” Ora, se a Constituição veda a cobrança de juros a taxa superior a 12% ao ano, é obvio que lei inferior não SENTENÇAS poderá dizer diferente. Segue, o eminente Ministro: “Mas vamos supor que tecnicamente o parágrafo devesse ser artigo e que sob o ponto de vista de técnica legislativa ele seja censurável. O intérprete deve guiar-se pelo enunciado da norma ou a ele sobrepor esta ou aquela regra da arte de bem redigir leis? Parece-me que, seja qual for a mácula que tecnicamente a norma possa apresentar, o exegeta deve dar à norma constitucional a sua medida e dela extrair o resultado inequivocamente desejado”. Ou ainda, “nesse particular configura-se como de extrema artificialidade o argumento de ser regra ainda depende de lei não seria regra jurídica constitucional bastante em si. Tem sido escrito (em pareceres encomendados por associações bancárias) que o caput do art. 191 fala de sistema financeiro a ser regulado em lei complementar de tal jeito que, quando no § 3º se escreveu que as taxas de juros reais não poderão ser superiores a 12% ao ano, terá ficado claro que também essa primeira parte do § 3º depende de lei complementar. “Como se vê, mero artifício retórico, que o papel aceita sempre. Num mesmo artigo de lei ou da Constituição, podemos ter várias regras, independentes uma das outras. O que o parágrafo tem de comum com o caput é que, por força de alguma lógica formal de organização extrínseca dos assuntos, os tópicos do caput (matéria geral nele tratada) é, também, matéria dos artigos. Isso nem sempre, aliás, acontece. Depende da maior ou menor organização mental do Redator, ou Redatores da norma. Muito contingentemente: no momento da redação. SENTENÇAS “Vamos a um exemplo: na CF/88 o art. 212, caput, trata de percentuais da receita dos impostos para a aplicação no ensino, entretanto, o 4º muda de assunto – fala de programas suplementares de alimentação e assistência à saúde, previstos no art. 208, VII, com financiamento proveniente de outros recursos. Mas, mesmo que a lógica do Redator, ou Redatores, seja mais perfeita, nada impede que a regra do parágrafo seja restrita do que consta no caput. (“RT” nos 649/108 e 109). “Outra objeção argüida é quanto à nebulosidade do conceito do juro real. Ora, juro real é remuneração do capital. Não se deve confundir juro com correção monetária. Segundo José Afonso da Silva (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, 5ª ed., 1989, p. 693), juros reais são aqueles que constituem valores efetivos e se constituem sobre toda desvalorização da moeda; é o ganho efetivo, não apenas o modo de corrigir a desvalorização da moeda. Enfim, juro real é a parcela de taxa de juros que excede a taxa de inflação do período em questão”. Ainda, aduz-se que face à inexistência de índice oficial que meça a inflação, a norma não é de eficácia plena. O Sr. Ministro com maestria rebate tal argumentação: “Ora, na ausência de índice oficial existente índices razoavelmente idôneos, como o INPC (ou IPC) do IBGE e o IGP e o IGPM da Fundação Getúlio Vargas. Mas quando nenhum desses critérios servisse, há outro, ainda que este talvez não fosse do agrado das instituições financeiras – a correção monetária ou o seguro contra a inflação ou que tenha, aplicável à poupança popular”. 75 Como se vê, questão dos juros provou mais uma vez que não basta o povo inscrever os direitos nas leis é preciso, ainda, uma mobilização política para sua efetivação prática. Conforme Millôr Fernandes: “Para este País sair do buraco tem que começar pela ética. A limitação dos juros em 12% a. a. pode ser o começo”. O réu invoca a lição de Araken de Assis sustentando que as decisões do Supremo Tribunal Federal são vinculativas. Ora, pelo nosso ordenamento jurídico o Juiz está vinculado à lei e não a decisões, seja de que corte for. Sustentar tal tese, é desconsiderar o princípio da separações dos poderes. É inadmissível, que órgão jurisdicional possa editar norma de caráter geral e vinculante. Tal exegese afronta um dos princípios básicos do estado democrático de direito. Não poderia passar despercebida a invocação da análise de Maria Berenice Dias, em artigo publicado no Jornal do Comércio sobre a questão, pois parte de premissa equivocada e de uma visão maniqueísta, data venia, pois adota tese de que, ao salientar que os devedores são homens “desonestos” já que “maus pagadores”. Esquece-se que em épocas de crise econômica milhares de cidadãos ficam desempregados e com as falências e concordatas milhares de pessoas tornam-se devedores sem querer sê-lo, não por “desonestidade”, mas devidos a fatos que ocorrem independentemente do querer individual. Esta visão “maniqueísta” deixa certo que o credor é necessariamente correto. A contraposição credor/devedor = honesto/desonesto deita raízes nas concepções que Gramsci chama de 76 senso comum, que é irmã gêmea de outras concepções do senso comum, as quais dita e repetida abundantemente chega adquirir status de científica e de verdade absoluta e intocável no imaginário popular. Dentre estas, destaco as seguintes: “pobre é pobre porque é vagabundo”/“o rico é rico porque poupou”/“quem não trabalha é porque é vagabundo, pois serviço existe”. Há algum tempo atrás dizia-se: “Os empregados não tinham necessidade de sobremesa nem folga aos domingos, porque não estando acostumados a isso, não sentiam falta”. O problema não é, necessariamente, a adesão a tais valores, mas sua consideração como “critério decisório”. Mais ainda: é “devastador” quando assim se procede para, invocando tais valores e os “costumes” impostos pela realidade SENTENÇAS da conjuntura econômica, revogar norma constitucional oriunda de Poder Constituinte originário. A capitalização também é vedada e isto decorre da interpretação lógica da norma constitucional. III- Isso posto, julgo parcialmente procedente a presente ação para declarar nulas as cláusulas que admitem a cobrança de juros acima de 12% ao ano e sua capitalização, inclusive anual, com base no art. 192, caput, da CF/88. Condeno o autor ao pagamento de 70% das custas e o réu aos 30% restantes. O autor pagará a quantia de R$ 1.000,00, a título de honorários advocatícios, e o réu a quantia de R$ 300,00. Condeno o autor ao pagamento de R$ 2.000,00 pela litigância de má-fé. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Alvorada, 31 de agosto de 1995. Clademir Missaggia, Juiz de Direito. 77 Processo nº 00103695988 – Ação Declaratória 1ª Vara da Fazenda Pública – 2º Juizado Impetrante: Maria de Lourdes Olsefer Autoridade: Estado do Rio Grande do Sul Juiz prolator: Cláudio Luís Martinewski A Emenda Constitucional nº 20 não impõe alteração no status dos Notários e Registradores, inclusive no tocante à aposentadoria compulsória, pois, do contrário, seriam – também – vitalícios, hipótese recusada pelo sistema constitucional vigente. Sentença de improcedência. RELATÓRIO Maria de Lourdes Olsefer, qualificada na inicial, ingressou com a presente demanda declaratória contra o Estado do Rio Grande do Sul, visando à expedição de ordem impeditiva da expedição de ato de aposentadoria da autora e, ao final, declaração do direito de permanecer no exercício de suas funções delegadas de Oficial do Registro de Imóveis da Comarca de Encantado. Em síntese, alega que, por estar na iminência de completar 70 anos de idade, será aposentada compulsoriamente, o que contraria o sistema normativo constitucional e infraconstitucional, porquanto não é servidora pública, mas, sim, detentora de delegação vitalícia na forma do art. 236 da CF e da Lei nº 8.935/94. Colaciona doutrina, jurisprudência e atos administrativos no sentido do sustentando. Deferida a antecipação de tutela (fls. 284/286), foi citada a parte-ré, que contestou, afirmando que o entendimento esposado na inicial não encontra guarida no Supremo Tribunal Federal, no Superior Tribunal de Justiça e no próprio Tribunal de Justiça do Estado, consoante precedentes que cita. Após a réplica, opinou o Ministério Público pela improcedência do pedido. MOTIVAÇÃO O feito merece julgamento antecipado, posto que a questão de mérito prescinde de dilação probatória. A controvérsia objeto da demanda, que é a de se definir se juridicamente os Notários e Oficiais de Registro estão sujeitos à aposentadoria compulsória, como decorre dos próprios termos da inicial e da contestação, não se revela de simples desate. Contudo, tendo-se presente que o Direito é uma integração normativa de fatos segundo valores, na síntese realeana, onde os três elementos não apenas se correlacionam, mas se dialetizam, penso que a abordagem do intérprete deve necessariamente incursionar sobre “todos” os elementos que o compõem, dentro de uma visão do ordenamento jurídico enquanto sistema, onde toda e qualquer norma jurídica só encontra seu sentido e validez quando interpretada como parte de um todo, o ordenamento jurídico. Ressalte-se, no entanto, que por norma jurídica deve-se entender não propriamente a lei, que é apenas um dos veículos normativos, nem com os artigos, parágrafos, alíneas da lei, nem 78 mesmo com os enunciados dos artigos, parágrafos e alíneas da lei, mas, sim, a significação construída a partir dos referidos enunciados prescritivos, que se encontram dispersos em todas as unidades normativas do sistema, compondo os critérios dispostos na hipótese descritiva com o conseqüente da norma, sem perder a unicidade própria do sistema. Pois bem, diante de tais premissas, verifico que nem a inicial, nem os trabalhos doutrinários, atos administrativos e precedentes jurisprudenciais citados, que embasam a pretensão inicial, enfrentam uma questão que, a meu sentir, na referida formação da norma jurídica individual e concreta, se impõe, que é a retratada no enunciado do art. 25 da Lei nº 8.935/95, cuja verba é a seguinte: “Art. 25 – O exercício da atividade notarial e de registro é incompatível com o da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer cargo, emprego ou função públicos, ainda que em comissão”. Diante de tal mensagem legislada, impõe-se uma indagação: se os Notários e Registradores não são funcionários públicos, mas, sim, profissionais públicos do Direito, agentes particulares em colaboração com o Poder Público, porque o próprio subsistema normativo invocado e que pretendeu normatizar a atividade impôs a incompatibilidade com cargos, emprego ou função públicos, ainda que em comissão? A meu sentir, a referida unidade normativa encerra e, conseqüentemente, dialetiza uma forte intenção de valor, estabelecendo um critério axiológico, que necessariamente deve compor a SENTENÇAS norma individual e concreta. E tal valor se traduz em que, por intermédio de uma restrição, não à atividade, mas ao sujeito a quem se atribui a titularidade da atividade, procura-se preservar a função ou atividade de tudo aquilo que, em determinadas circunstâncias, possa vir em prejuízo da função ou ofício público delegado. Esse mesmo valor, esse mesmo conteúdo axiológico coincidentemente é o que se verifica na questão da idadelimite para o exercício do cargo ou função pública (CF, art. 40, II). Embora esta seja uma regra que se encontre inserta em enunciado que se dirige aos servidores titulares de cargos efetivos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, aparentando ser uma questão restrita ao servidor público, na verdade, é uma regra de administração pública, que visa a preservar a atividade pública, que, no caso, tem seu exercício delegado à atividade privada, mas que, nem por isso, perde sua característica essencial. O fato, outrossim, de não constar do ordenamento jurídico regulamentar, expressamente, a hipótese de aposentadoria compulsória, como forma de extinção da atividade, e até mesmo ter sido rejeitada emenda que tencionava a inclusão expressa de tal hipótese, não são elementos jurídicos suficientes a ensejar as conseqüências pretendidas, posto que, como se referiu, a norma jurídica é construída a partir dos critérios dispersos em várias unidades normativas vigentes no sistema, seja de forma expressa ou implícita, não pelo que se deixou de inserir ou o que virá a sê-lo. SENTENÇAS Nesse sentido, já era há muito a preleção da doutrina, na pena de Carlos Maximiliano: “Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o seu autor. Consideram-na como ‘disposição mais ou menos imperativa, materializada num texto, a fim de realizar sob um ângulo determinado a harmonia social, objeto supremo do Direito’. Logo, ao intérprete incumbe apenas determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva”. (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Rio de Janeiro, 1984, pp. 30-1) De outro lado, um sistema normativo, quando regula toda uma atividade, sobretudo complexa, como é o caso concreto, necessita enfeixar um sem-número de normas, regrando, um a um, todos os fatos decorrentes da referida atividade, definindo natureza, fins, competência, atribuições, responsabilidade, forma de ingresso, exercício, deveres, direitos, enfim, como se afirmou, todos os fatos que são passíveis de interferência em relações intersubjetivas que deles decorrerão. Tarefa que é dificultada quando se mesclam atividades ou funções públicas com privadas, pretendendo-se inaugurar um novo sistema, como é o caso concreto, fazendo nascer naturalmente o dissenso, sobretudo porque, no mais das vezes, opera-se com conceitos 79 estratificados em um e em outro âmbito, aspirando-se, a partir de determinados elementos que são realçados, a fazer prevalecer a definição ou idéia de que a atividade, a partir desta ou daquelas características, se situa num ou noutro âmbito, para daí extrair-se as conseqüências pretendidas. Ocorre que, se efetivamente se ostenta de certa importância a definição jurídica da atividade notarial e registral, para o caso versado, não é a natureza da atividade elemento que baste para definir a questão da aposentadoria compulsória do sujeito delegado, posto que esta se refere não diretamente à atividade em si, mas ao sujeito titular da atividade delegada, sendo apenas um dos tantos feixes normativos referidos, ressaltando daí a questão da incompatibilidade aludida, que também se refere ao sujeito titular da atividade delegada. As restrições e incompatibilidades, portanto, embora atinjam os sujeitos titulares do exercício da atividade delegada, que se faz de forma privada (CF, art. 236), não transmudam ou afetam a natureza da atividade em si, que permanece pública. Possuem elas, portanto, finalidades diversas, voltadas à função estatal ou pública delegada. Esses elementos são indissociáveis, pois, como bem refere Celso Antônio Bandeira de Mello: “Delegação é a outorga, a transferência, a outrem, do exercício de atribuições que, não fora por isto, caberiam ao delegante. Ou seja: os ‘serviços’ notariais e os de registro (que melhor se diriam ‘funções’ ou ‘ofícios’, como em seguida se aclarará) correspondem, em si mesmos, a uma atividade estatal, pública. A circunstância de 80 deverem, por imperativo constitucional, ser desempenhados por terceiros, longe de destituir-lhes tal qualidade, pelo contrário, confirma-lhes dita natureza, pois: Nemo transferre potest plus quam habet”. (“RDI” nº 47/198) Outrossim, importante salientar, ainda, sobre o tópico, que, em se tratando de situação fático-jurídica estratificada anteriormente à Constituição vigente, como é o caso dos autos, o sistema fez um recorte normativo específico, cujo plano expressional está no enunciado do art. 51 do ordenamento tratado, in verbis: “Art. 51 – Aos atuais Notários e Oficiais de Registro, quando da aposentadoria, fica assegurado o direito de percepção de proventos de acordo com a legislação que anteriormente os regia, desde que tenham mantido as contribuições nela estipuladas até a data do deferimento do pedido ou de sua concessão”. Assim, aos efeitos de se resguardar um sistema harmônico e coerente, nada mais razoável que, se asseguradas as vantagens relativamente a determinado sistema de proventos regidos por legislação anterior, que esta também seja a referência normativa para as demais conseqüências decorrentes. Não é permitido, nem mesmo ao legislador ordinário, obrar contra princípios que levem a uma interpretação irrazoável e desproporcional do sistema, que conceda as vantagens, mas suprima os demais vínculos normativos implicados, devendo, portanto, ao menos em relação aos delegados investidos anteriormente à atual Constituição, prevalecer o entendimento segundo o qual lhes é aplicável a aposentadoria compulsória. SENTENÇAS Reafirma a dualidade de ordenamentos jurídicos o enunciado do art. 50 do diploma legal em tela, quando, em relação às serventias estatizadas, as mantém nas mesmas condições até a vacância. É nesse sentido que vislumbro o precedente colacionado em sede de contestação, cuja ementa bem sintetiza o julgado: “Serviço notarial e registral. Aposentadoria compulsória do titular por implemento de idade. 1. A falta de comunicação da interposição do agravo ao juízo a quo, prevista pelo art. 526 do CPC, constitui mera irregularidade, pois prejudica apenas a própria parte-recorrente, que perde a oportunidade de obtenção da decisão pretendida através de juízo de retratação. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Preliminar de não-conhecimento do recurso afastada. “2. Os Notários e Registradores enquadram-se no conceito de servidores públicos em sentido amplo, inclusive para efeito de aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade, pois exercem atividade pública por delegação, os ofícios são criados por lei, ingressam por concurso público, os emolumentos cobrados são fixados por lei e estão submetidos a fiscalização do Poder Judiciário (art. 226 e parágrafos da CF). Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. “3. A nova redação conferida ao art. 40 da CF pela Emenda Constitucional nº 20/98 não alterou a questão, especialmente em relação aos antigos Notários e Registradores, cuja delegação ocorreu antes da Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 8.935/94, recebendo, além de emolumentos, as vantagens pessoais de SENTENÇAS tempo de serviço e submetidos a regime especial de aposentadoria pela previdência pública estadual (art. 51 da Lei nº 8.935/94). Decisão do primeiro grau reformada. Agravo provido”. (AI nº 599430212, TJRGS, 1ª Câmara de Férias Cível, Rel. Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, julgado em 13-09-99) No mesmo sentido, têm sido igualmente os vários julgados do Superior Tribunal de Justiça, desde 1995 até o ano próximo passado, incluindo julgado sob a égide da Emenda Constitucional nº 20 (AGMC nº 2.445, ROMS nos 7.859, 7.865, 8.057 e 5.286, AGRMC nos 992 e 658), tendo o primeiro precedente citado, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 14-03-00, assentado que: “Agravo regimental. Constitucional. Administrativo. Cartório. Oficial Registrador. Compulsória. Emenda Constitucional nº 20. 1. A Emenda nº 20 não impõe alteração no status dos Notários e Registradores que, por força do art. 236 da CF, exercem atividade de caráter privado, por delegação do Poder Público, sujeitos – evidentemente – ao regime de previdência de caráter contributivo e à aposentadoria nos termos estabelecidos legalmente, inclusive no tocante à compulsória, pois, do contrário, seriam – também – vitalícios, hipótese recusa- 81 da pelo sistema constitucional vigente. Ocupam cargos efetivos. “2. A despeito da alteração introduzida pela Emenda Constitucional nº 20, os agentes Notariais e Oficiais Registradores são (1) servidores públicos lato sensu, (2) submetidos às regras administrativo-constitucionais quanto ao provimento do cargo e, portanto, (3) sujeitos, também, às normas de caráter geral da função pública, exercida por delegação, inclusive no tocante à aposentadoria, pois filiados ao regime de previdência de caráter contributivo, a teor do disposto nos arts. 236 e seus parágrafos e 40 e seus parágrafos da CF. 3. Agravo regimental improvido”. DECISÃO Julgo improcedente o pedido contido na inicial, revogando a antecipação de tutela deferida e decretando a extinção do processo, forte no art. 269, I, do CPC. Condeno a parte-autora nos ônus da sucumbência, em custas e honorários, estes arbitrados em 10 URHs, com base no art. 20, § 4º, do CPC. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 29 de dezembro de 2000. Cláudio Luís Martinewski, Juiz de Direito. 82 Processo nº 00104981874 – Mandado de Segurança 1ª Vara da Fazenda Pública – 2º Juizado Autora: Lojas Renner S. A. Réu: Diretor do Departamento da Receita Pública Estadual Juiz prolator: Cláudio Luís Martinewski Mandado de Segurança. Direito a crédito relativo ao ICMS em operações destinadas ao ativo permanente, consumo, entrada de energia elétrica e serviços de comunicação. Segurança parcialmente concedida. RELATÓRIO Lojas Renner S. A., qualificado na inicial, propôs a presente demanda de segurança em face ao Diretor do Departamento da Receita Pública Estadual, visando à suspensão da exigibilidade do crédito tributário, nos termos do art. 151, IV, do CTN, e seja garantido à impetrante, nos termos dos arts. 155, § 2º, I (princípio da não-cumulatividade); 155, § 2º, a contrario sensu (direito aos créditos de ICMS em quaisquer hipóteses que não as de isenção e não-incidência) e 150, II (princípio da isonomia), da CF, o exercício do direito líquido e certo aos créditos de ICMS, relativos a quaisquer operações de entrada de bens destinados ao ativo permanente e ao consumo; de entrada de energia elétrica; e de recebimentos de serviços de comunicação efetuadas pelas filiais localizadas neste Estado, postulando, alternativamente, em face ao art. 150, III, b, da CF (princípio da anterioridade) e art. 97, II, do CTN (princípio da legalidade), pelo menos até 31-12-00 ou edição de lei ordinária estadual. Pede ainda a abstenção de atos pela autoridade coatora e o depósito judicial da quantia objeto da discussão. Em síntese, refere que é empresa que realiza operações de entrada de bens ao ativo fixo, de energia elétrica, serviços de comunicação e de uso e consumo, geradores de crédito, que, pelo advento da Lei Complementar nº 102/ 2000 e Decreto Estadual nº 40.217/2000, vieram a ser restringidos, ferindo os princípios da não-cumulatividade, isonomia, anterioridade e legalidade. Deferida a liminar, foram prestadas as informações, advindo parecer ministerial pela denegação da segurança. MOTIVAÇÃO Versa sobre mandado de segurança, visando ao reconhecimento do direito a crédito relativo ao ICMS nas operações de entrada de bens destinados ao ativo permanente e ao consumo, entrada de energia elétrica e recebimento de serviços de comunicação, pretéritas e vindouras, efetuadas pelas filiais da empresa-impetrante localizadas neste Estado, ou, alternativamente, o exercício de tais créditos até 31-12-00, ou ainda até a edição de lei ordinária estadual, e, conseqüentemente, a suspensão da exigibilidade dos créditos respectivos a tais operações, nos termos do art. 151, IV, do CTN. Pede, também, a abstenção da SENTENÇAS autoridade coatora da prática de atos relativamente ao objeto desta demanda. Sustenta, em síntese, que as modificações introduzidas pela Lei Complementar nº 102/2000, ao estabelecer diferimento e restrição de créditos, para as operações acima referidas, restaram por violar o princípio da não-cumulatividade (CF, art. 155, § 2º, I), o princípio da isonomia (CF, art. 150, II), o princípio da anterioridade (CF, art. 150, III, b) e da legalidade tributária (CF, art. 97, II). A autoridade apontada como coatora, a sua vez, em judiciosas informações, afirma, preliminarmente, descabimento do mandado de segurança, por ausência de ato coator, carência de ação em relação à parcela do pedido por impossibilidade jurídica do pedido, em relação à parcela do pedido por ausência de interesse processual e decadência do direito de ação em relação à parcela do pedido. No mérito, após referir o âmbito de incidência da lei complementar, entende não violados os princípios alegados na inicial, manifestando-se pela denegação da ordem, o que contou com a aquiescência do Ministério Público. Estes, pois, os lineamentos da questão controvertida. Pois bem. Inicialmente, às preliminares. Segundo a autoridade apontada como coatora, o mandado de segurança seria incabível, porque há ausência de ato coator, o que leva à configuração de que o objeto da demanda é lei em tese, o que é vedado, bem ainda porque a pretensão é meramente declaratória, pretendendo-se um alvará genérico, e há a necessidade de dilação probatória, em relação aos pretensos créditos, de forma a evidenciar a utilização 83 dos bens na atividade-fim da empresa. Tal preliminar, no entanto, não se sustenta. Conforme decorre do exposto na inicial, o objeto imediato da demanda visa à expedição de ordem para que seja garantido à impetrante o exercício dos créditos ICMS, relativos a operações de entrada que elenca, em suas filiais, de forma irrestrita, ou, pelo menos, alternativamente, até 31-12-00 ou até a edição de lei estadual disciplinadora da matéria, bem ainda que a autoridade coatora se abstenha da prática de qualquer ato, atacando o objeto da demanda. Nada há de abstrato e genérico no pedido, nem ataca a lei em tese, antes revela pedido de criação de normas individuais e concretas, “por inconstitucionalidade material incidental da normas gerais e abstratas introduzidas pela Lei Complementar nº 102/2000”. Nesse sentido, veja-se que o referido pedido determina especificadamente o critério: (I) pessoal; (II) espacial dos sujeitos pretensores dos créditos, ou seja, as filiais elencadas na inicial, com as respectivas inscrições estaduais; (III) o critério material: entradas de bens destinados ao ativo permanente e ao consumo, de energia elétrica e recebimento de serviços de telecomunicações nos referidos estabelecimentos, e o critério; (IV) quantitativo; e (V) temporal: valor correspondente ao crédito mensal nas referidas entradas. Desta forma, ao contrário do afirmado pela digna autoridade coatora, trata-se de valor preciso e especificado, que, nem por isso, como é próprio da sistemática de apuração dos créditos relativos ao impostos não-cumulativos, afasta 84 a possibilidade de que os desbordamentos das normas individuais e concretas introduzidas pela demanda judicial possam ser, como todo e qualquer crédito que não é objeto de demanda, devidamente fiscalizados e, até, eventualmente, não homologados pela autoridade fiscal. Inexigível, outrossim, pretender-se o exercício “prévio” do contraditório acerca dos créditos em sede de qualquer demanda, seja a mandamental, seja nas de cognição ampla, posto que se está em face à relação jurídica continuativa, cujos efeitos – creditamentos – decorrem da própria dinâmica da técnica de compensação em decorrência da nãocumulatividade (CF, art. 155, § 2º, I). Impor-se o contraditório, nesse lineamento, seria inócuo, posto que ou se reduziria qualquer demanda a uma ínfima parcela dos créditos, tornando estático o que é dinâmico, ou ensejaria que se eternizassem as demandas, o que é inconcebível. Daí que o que se opera jurisdicionalmente, em tal peculiar relação, é o efeito declaratório, visando a dirimir a controvérsia acerca de incerteza em torno do conceito normativo incidente sobre a relação jurídica material, no caso, a possibilidade de creditamento relativo a determinadas operações, o que, em absoluto, é vedado em sede de mandado de segurança, posto que o efeito declaratório é efeito presente em toda e qualquer demanda (“Toda e qualquer ação e, pois, todas as sentenças proferidas em processo contencioso, ou em procedimento de jurisdição voluntária, contém eficácia declaratória, em grau de intensidade mais ou menos acentuado. O Juiz, enquanto tal, ao proferir SENTENÇAS sua sentença, terá de aplicar, no caso concreto, algum preceito normativo e portanto genérico...” in “Curso de Processo Civil”, Ovídio A. Baptista da Silva, Sérgio Fabris, 1991, Porto Alegre, I/123) A ordem in natura, própria da demanda mandamental, embora seja eficácia preponderante, não é única e é dependente da declaratória. Ademais, a meu sentir, soa a ilogismo que, se no âmbito da norma primária dispositiva o próprio contribuinte pode criar o ato-norma de formalização instrumental, que ocorre no “lançamento por homologação”, se exigisse que na norma secundária ou norma de atuação judiciária outra fosse a exigência. Outrossim, não há que se falar em ato da autoridade coatora, posto que se está, como titula a inicial, em face a mandado de segurança preventivo, cuja tônica não é ato concretizado, mas, sim, a ameaça, também, tutelada pela ação constitucional (CF, art. 5º, XXXV e LXIX). E tal ameaça, no caso concreto, é evidente, posto que, se de um lado, sendo o regime de creditamento do ICMS mensal, operado escrituralmente pelo próprio contribuinte, que deduz os créditos que entende cabíveis, criando a norma individual e concreta perante a autoridade tributante, e, de outro lado, existindo o Decreto Estadual nº 40.217, de 28-07-00, veiculador de enunciados e normas contrárias à norma creditícia pretendida pela parte-impetrante, em o contribuinte efetivando a criação, a norma individual e concreta, segundo seu entendimento, deverá a autoridade fiscal, por força do referido decreto e do enunciado constante do art. 142, parágrafo único, do CTN, proceder o ato-norma administrativo de lançamento e SENTENÇAS ato-norma administrativo sancionatório, o que, por si só, é suficiente para ensejar o manejo da demanda preventiva. Nesse sentido são os arestos colacionados na inicial, aos quais agrego à presente motivação (REsp n os 188.308-MG, 90.089-SP e 40.055-SP, STJ, e MAS nº 1998.04.01.027955-9-RS, TRF 4ª-Região). Quanto à carência de ação, por impossibilidade jurídica do pedido de abstenção de prática de ato de ofício, igualmente, não se sustenta a posição da digna autoridade coatora. Em sendo juridicamente possível o pedido de ordem in natura, nos termos postulados, de criação de norma individual e concreta, isenta de incertezas quanto aos creditamentos possíveis, decorrência natural é a de que, nessa perspectiva, não possa ser a empresa-impetrante autuada. Nesse sentido, se a ordem postulada, como é o caso concreto, “cinge-se a abstenção de autuação acerca do objeto da demanda mandamental, veículo criador da norma individual e concreta”, inexiste a possibilidade de autuação para quem age ao amparo da referida ordem e, por conseguinte, não há impossibilidade jurídica do pedido. No tocante à preliminar de carência de ação por falta de interesse processual, igualmente, é de se afastar a pretensão. Com efeito, inquestionável que a autoridade apontada como coatora, como explicitam os próprios termos das suas informações, entende como inviável o modo pelo qual pretende a parte-impetrante creditar-se em relação a créditos do ICMS sobre bens destinados ao seu ativo fixo. Desse modo, relativamente a este cúmulo da demanda, não é, em princí- 85 pio, a divergência acerca do crédito em si que se encontra instalada, mas, sim, o próprio modo de realização de crédito. De um lado, o creditamento único e integral, e de outro, o creditamento parcelado, o que basta para o reconhecimento da existência de litígio ou lide a ser dirimida judicialmente. Não bastasse tal aspecto – daí a ressalva acima de “em princípio” –, “há ainda aspecto não enfocado nas informações”, relativo ao que se enuncia como sendo “cancelamento” de saldo de crédito remanescente, constante da alteração do art. 20, § 5º, inc. VII (“VII – ao final do 48º mês contado da data da entrada do bem no estabelecimento, o saldo remanescente do crédito será cancelado”), que por certo conflita com o teor do invocado em tal tópico, ensejando plenamente o interesse de agir em juízo. Por fim, quanto à alegada decadência em relação à parcela do pedido, relativamente ao bem de uso e consumo, descabe. Se é certo que entre a data da vigência da Lei Complementar nº 99/99, que deu nova redação à Lei Complementar nº 87/96, no tocante a tal tópico, e a data da impetração da presente demanda foram ultrapassados os 120 dias previstos no art. 18 da Lei 1.533/ 51, não é menos certo, como já se referiu, que se está em face a demanda de segurança preventiva, cujos fatos decorrem de relação jurídica tributária continuativa, onde a ameaça de lesão se renova e se faz presente a todo instante, obstando a consumação do referido prazo. Nesse sentido, precedente do Superior Tribunal de Justiça: “Não se opera a decadência em writ preventivo, pois 86 que a lesão temida está sempre presente, em um renovar constante”. (REsp nº 46.174-0-RS, 1ª Turma, Rel. Min. César Rocha, julgado em 23-05-94, “DJU”, de 20-06-94, p. 16.062) No mérito, tenho que o cerne da questão situa-se em se saber: (I) se o conceito de princípio ou regra da não-cumulatividade é constitucional; (II) se a despeito de ser constitucional, qual o âmbito normativo conferido à lei complementar previsto no art. 155, § 2º, XII, c, da CF; e (III) qual a estrutura, função e conteúdo do princípio ou regra da não-cumulatividade. O ICM(s) foi instituído no sistema tributário brasileiro com a Emenda Constitucional nº 18, de 1º-12-65, que, quanto ao princípio ou regra em discussão, em seu art. 12, § 2º, dispôs que a não-cumulatividade se daria pelo abatimento, em cada operação, “nos termos do disposto na lei complementar”, do montante cobrado nas operações anteriores. Do mesmo modo, previu a Constituição de 1967, ao enunciar a unidade normativa, no art. 24, § 5º, remetendo o abatimento aos termos do disposto em lei, o que também sucedeu com o enunciado do art. 23, II, da Emenda nº 1 à Constituição de 1967, que voltou a qualificar o veículo legal de lei complementar. Em síntese, o princípio ou regra nasceu constitucional, mas o próprio sistema, de forma expressa, tratou de delegar materialmente, sem limitações, os termos do abatimento ou da compensação à complementaridade. Havia, pois, uma conformação hierárquica fundante de validade conferida ao veículo normativo inferior, sem delimitações, o que, no entanto, é diverso do que ocor- SENTENÇAS re no sistema inaugurado pela Constituição vigente, cujo enunciado não fez incluir a delegação que, até então, ornava os enunciados constitucionais, a saber: “Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir: I – Imposto sobre: a) Omissis; “b) operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...) § 2º – O imposto previsto no inc. II atenderá ao seguinte (redação dada pela EC nº 03/93): I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;” Veja-se que as únicas hipóteses de afastamento da regra ou princípio, ao contrário do até então sistematizado, a própria Constituição veicula em seu inc. II, daí a doutrina afirmar que “o primado da não-cumulatividade é uma determinação constitucional que deve ser cumprida, assim por aqueles que dela se beneficiam, como pelos próprios agentes da Administração Pública” (grifei) (Paulo de Barros Carvalho, “A Regra-Matriz do ICM”, tese de livre-docência, apresentada na Faculdade de Direito da PUC-SP, 1981, apud “ICMS”, Roque Carraza, Malheiros, 1999, p. 197), sendo no mesmo sentido a preleção de Roque Antônio Carraza: “Na apuração do total do ICMS a recolher, compensa-se ‘o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou SENTENÇAS por outro Estado, ou pelo Distrito Federal’ – CF, art. 155, § 2º, I. É evidente que esta regra só encontra limitações na própria Constituição. Melhor dizendo, não pode ser restringida nem por lei complementar, nem por lei ordinária, nem por convênio, nem, muito menos, por ato administrativo. As restrições à não-cumulatividade do ICMS estão contidas no art. 155, § 2º, II, a e b da CF...” (grifos meus) (“Curso de Direito Constitucional Tributário”, Malheiros, 1999, nota 31, p. 539). Sacha Calmon Navarro Coêlho: “A Constituição de 1988 inovou em relação à de 1967... Na Constituição de 1988 houve mutação profunda, equiparável à do ISS, que veremos em seguida, quando estudarmos os impostos municipais. A Constituição não delegou à lei complementar estatuir o perfil da nãocumulatividade; a ela apenas conferiu o disciplinamento adjetivo do regime de compensação do ICMS” (grifos meus) (“Comentários à Constituição de 1988”, Forense, 1999, p. 405). Misabel Abreu Machado Derzi: “Diferentemente do que acontece nos países em geral da Comunidade Européia, onde o princípio da não-cumulatividade não vem consagrado em norma da Constituição, no Brasil, as normas fixadas pela referida Lei Complementar são formais, visando a disciplinar o regime de compensação do imposto, jamais podendo configurar redução e amesquinhamento daquele mesmo princípio” (“Distorções do Princípio da Não-Cumulatividade no ICMS – Comparação com o IVA Europeu”, in “Temas de Direito Tributário”, Belo Horizonte, 1998, p. 144). Ives Granda da Silva Martins: “À evidência, no caso das normas constitu- 87 cionais, supratranscritas, salta aos olhos de qualquer intérprete de mediana cultura jurídica que o princípio da não-cumulatividade opera-se por mecanismos de compensação que, em suas linhas-mestras, estão no próprio texto supremo. Diz, claramente, a Carta Magna que o que for devido se compensará com o montante cobrado nas operações anteriores. Tal enunciado não necessita de explicitação” (grifos meus) (“O Princípio da Não-Cumulatividade para Bens do Ativo Permanente em Face da Lei Complementar nº 102/2000”, in “O ICMS e a Lei Complementar nº 102”, Dialética, p. 109). Daí a crítica veemente de Sacha Calmon e Eduardo Maneira, em comento específico, no sentido de que “a recente Lei Complementar nº 102, de 11-07-00, que alterou dispositivos da Lei Complementar nº 87, de 13-09-96, representa uma violação à consciência nacional, na medida em que põe e dispõe em matéria de não-cumulatividade do ICMS ‘desconstitucionalizando’ o princípio, cuja raiz é eminentemente constitucional” (“Os Retrocessos da Lei Complementar nº 102, de 11-07-00”, in “O ICMS e a Lei Complementar nº 102”). Outrossim, o fato de que, no mesmo conjunto de enunciados, logo a seguir, a mesma Constituição confira à lei complementar, dentre outros, o disciplinamento do regime de compensação do ICMS, o que representaria apenas um deslocamento tópico, sem alteração do sistema até então vigente, não merece prosperar. Em que pese o âmbito normativo ou função atribuída pelo sistema constitucional tributário às leis complementares seja complexo, situando-se dentre os 88 temas que ainda hoje suscita acirrado debate teórico, envolvendo vários questionamentos, dentre os quais a própria extensão da normatividade das referidas leis – acerca da qual duas correntes disputam a prevalência de seus postulados: a dicotômica (Geraldo Ataliba, “Normas Gerais de Direito Financeiro”, “RDP” nº 10/45; Paulo de Barros Carvalho, “O Campo Restrito das Normas Gerais de Direito Tributário”, “RT” nº 433/ 297; Roque Antônio Carraza, “Curso de Direito Constitucional Tributário”, Malheiros, 1998, p. 513) e a tricotômica (Hamilton Dias de Souza, “Normas Gerais de Direito Tributário”, e José Bushatsky, “Direito Tributário”, p. 27) –, bem como que, a par de tal âmbito, o sistema constitucional tributário utilize o mesmo veículo normativo para outras hipóteses que seriam tópicas (Sacha Calmon Navarro Coêlho, “Comentários à Constituição de 1988”, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 64) e que nada tem a ver com a complementação da Constituição, como é o caso da instituição de tributos (CF, arts. 148 e 154, I), uma realidade é inafastável: “No sistema constitucional brasileiro, a lei complementar tem limites de fundo e limites de forma, como já sustentara Pontes de Miranda, com relação ao regime instituído pela emenda parlamentarista” (José Souto Maior Borges, “Lei Complementar Tributária”, São Paulo, RT, 1975, p. 54). Tal preleção, embora escrita no sistema constitucional anterior, continua plenamente válida. Decorrendo, como decorrem, no plano vertical, do exercício da atividade legislativa plenamente vinculada a rígidos critérios constitucionais de repartição de competências legislativas, não se SENTENÇAS pode olvidar que essas leis são puramente complementares das normas constitucionais. Não podem, portanto, distorcer o sentido do preceito complementado, mudando o sentido da Constituição, posto que isso desbordaria de sua competência e implicaria verdadeira mutação constitucional por via indireta (José Afonso Silva, apud nota 7, p. 55, in “Lei Complementar Tributária). De outra vertente, como já afirmado pelo Min. Moreira Alves: “Constituição não se interpreta por lei infraconstitucional, mas a lei infraconstitucional é que se interpreta pela Constituição”, donde se conclui, com base no mesmo autor, que quem vai dizer o conteúdo e extensão da compensação, enquanto desdobramento do princípio ou regra da não-cumulatividade, é a interpretação da própria Constituição, e não a lei infraconstitucional. Daí que o conteúdo material-ontológico conferido ao disciplinamento da compensação é, no dizer de Sacha Calmon, “adjetivo”, situando-se, exemplificativamente, quanto à definição de períodos de apuração, definição de créditos excluídos, por não estarem afetados às atividades específicas do sujeito passivo, etc. (“Comentários...”, p. 406). Nada além. Colocadas tais premissas, conclui-se que o conceito normativo do princípio ou regra da não-cumulatividade, cujos efeitos jurídicos se encontram na técnica de compensação, é constitucional, não podendo, sobre ele, dispor a regra infraconstitucional, cujos limites devem-se circunscrever à forma de compensação, incluindo-se aí as questões de fiscalização e arrecadação tendentes a evitar dupla dedução, coibição de eva- SENTENÇAS são, etc. (“constitui, assim, grave equívoco supor que a Constituição Federal autorize o legislador infraconstitucional ou administrador, conforme as conveniências e os interesses arrecadatórios do Fisco, a estornar, reduzir, amputar ou reduzir créditos relativos a operações anteriores tributadas. O estorno restringe-se aos créditos relativos a operações de circulação de mercadorias – não-prestação de serviço –, na hipótese de isenção ou de não-incidência. ‘Inexiste qualquer exceção na Constituição para as operações normais, que não gozam de incentivo’ ”) (Misabel Derzi, op. cit., p. 146). Em assim sendo, o que cumpre então definir é – como acima assinalado –, o conceito constitucional do princípio ou regra da não-cumulatividade e sua respectiva técnica, a compensação, definindo estrutura, conteúdo e função. Nesse sentido, vê-se que a análise do discurso constitucional, a partir da definição do critério material que qualifica a repartição de competência – em que pese parte da doutrina ainda vincada em preconceito advindo de quadra anterior ao atual texto constitucional –, expressa a classificação segundo a qual os tributos são diretos ou indiretos, classificação que o sistema normativo positivo antes de rejeitar, acolhe, como decorre, em nível normativo infraconstitucional, do enunciado do art. 166 do CTN. Nessa senda é que, igualmente, em nível constitucional, vislumbro o referido princípio ou regra, que é reconhecido, em outras palavras, pela doutrina: “A não-cumulatividade, por sua vez, pressupõe uma ‘repercussão jurídica do tributo’, por meio da qual o imposto não deve ser suportado pelo contribuin- 89 te (apenas pelo consumidor)” (Misabel Derzi, op. cit., p. 109), daí se lhe atribuindo o epíteto de “imposto de mercado”, com característica de “neutralidade” que não deve distorcer a formação dos preços nem a livre concorrência. Tal princípio ou regra – prossegue a mesma doutrina – não autoriza que o ICMS onere o contribuinte de iure. Ao contrário, por meio do princípio da não-cumulatividade, garante-se que o contribuinte, nas operações de venda que promova, “transfira” ao adquirente o ônus do imposto que adiantará ao Estado e, ao mesmo tempo, possa ele “creditar-se” do imposto que suportou nas operações anteriores. Nesse lineamento, se de um lado ressalta que se o contribuinte (comerciante, industrial e produtor) não deve suportar qualquer parcela do ICMS relativo às operações anteriores, para que os produtos cheguem ao seus destinatários – os consumidores – de forma “neutra”, de outro, resulta que os referidos contribuintes, em determinadas hipóteses, como é o caso de operações de aquisição de bens de uso e consumo, não agem como elos da cadeia plurifásica, mas, sim, como consumidores finais, devendo, portanto, suportar os ônus econômicos do imposto. E tal assertiva não resguarda qualquer resquício de divisão de crédito em financeiro ou físico. Apenas afirma que o imposto relativo a tais operações não geram créditos compensáveis. Ponto. Não há razoabilidade alguma em que a sociedade, como um todo, na face reversa do princípio da indisponibilidade dos bens públicos, arque com ônus, como por exemplo, de café e medicamentos – que foram listados pela 90 parte-impetrante (fl. 11) – que não guardam qualquer relação com a atividade-fim da empresa. Nesse caso, há relação de consumo tanto quanto as demais. E ainda que possa a mesma empresa restar por embutir no preço dos seus produtos, enquanto custo operacional, o crédito não-admitido, tal possibilidade não altera, nem contorna o princípio ou regra, posto que tal repercussão econômica não estará inserida a título de tributação, o que poderá ser plenamente identificado na medida do cumprimento do princípio da transparência da tributação disposto no enunciado constante do art. 150, § 5º, da CF. Desse modo, concluo que, em relação a tais créditos, decorrentes de aquisição de bens e consumo, a única inconstitucionalidade existente é que os admite, a contar de 1º-01-03, devendo, portanto, nesse aspecto, ser denegada a segurança. Vale notar que, em relação a tal natureza de bens, sequer é alcançado pelo princípio da anterioridade, dado que resulta de alteração efetivada pela Lei Complementar nº 99/99, de 21-12-99, como bem lembrado pela digna autoridade coatora. No que se refere aos bens do ativo permanente, à exceção da previsão de cancelamento do crédito, ao final do 48º mês, previsto no art. 20, § 5º, inc. VII, da Lei Complementar nº 102/2000, a única inconstitucionalidade existente é a da exigência sem submissão do princípio da anterioridade. Com efeito, em face ao princípio ou regra da não-cumulatividade, a amortização não elimina a existência do crédito, apenas parcela a dedução possível quanto ao ICMS devido no período. Por SENTENÇAS tal técnica de fracionamento acumula-se o crédito, sem negá-lo, adequando-se um crédito, que, na verdade, é diferenciado, erigindo-se à estrutural – que decorre de investimentos em aquisição e modernização dos ativos – e que se refletirá, economicamente, ao longo de determinado período, até que se refaça o investimento, de sorte que o crédito é incorporado na cadeia plurifásica ao longo de determinado período de tempo, que, desde que não negue qualquer parcela do crédito, é possível de ser adotado como formalização da compensação. Nesse sentido, a lei complementar está atuando ontologicamente no âmbito que lhe é conferido pelo sistema constitucional, disciplinando, pois, a forma de operacionalização da compensação, e o fez com razoabilidade, não descaraterizando os créditos em período que os tornassem virtuais, à exceção, como se disse, da parte final, que se refere ao cancelamento de saldo, este, sim, inconstitucional, pois obrando materialmente fora do âmbito de sua competência. De outro lado, não vinga a pretensão da inobservância do princípio da legalidade tributária, pois que careceria a lei complementar de eficácia decorrente da ausência de lei ordinária estadual. Nessa seara, clássica a lição de José Souto Maior Borges que divisou, quanto à eficácia das leis complementares, dois grupos básicos: (I) as que fundamentam a validade de atos normativos (leis ordinárias, decretos legislativos, convênios); e (II) as que não fundamentam a validade de outros atos normativos, preleção que, a despeito de ter sido efetivada sob a égide da Constituição SENTENÇAS anterior, permanece, em suas linhas gerais, plenamente válida (“Lei Complementar Tributária”, pp. 52 e ss). Nesse esteio, somente as primeiras careceriam da referida integração. Interessante notar, nesse sentido, que o referido autor incluía a questão da realização da regra da não-cumulatividade, pela técnica da compensação ou abatimento, dentre o primeiro grupo, consoante se vê nas fls. 85/86 da sua obra, o que, no entanto, pelas mesmas lições, não pode ser mantida no atual sistema. Com efeito, em linha de coerência com o sustentado para efeitos do reconhecimento do conceito constitucional da não-cumulatividade, vê-se que, ao contrário dos sistemas constitucionais anteriores, o atual, ao dispor sobre o âmbito de competência da lei complementar acerca do ICMS, não delegou, antes demarcou materialmente, ontologicamente, em vários itens, um a um, o que deveria ser disciplinado em termos de normas gerais, conferindo-lhe um dos critérios de identificação da condição de lei nacional, que refuta dupla regulação. Sendo, ademais, concorrente a competência legislativa da União, enquanto ente legislativo nacional, e dos Estados, relativamente a Direito Tributário (CF, art. 24, I), inexiste hierarquia entre as esferas de competência, de molde que a produção normativa dos Estados não se subordina à da União, cujo único efeito será o de suspender a eficácia de lei estadual, no que for contrário (CF, art. 24, §§ 2º e 4º). Por fim, no tocante aos créditos decorrentes de entrada de energia elétrica e utilização de serviços de telecomunicações, penso, no entanto, que a 91 Lei Complementar nº 102/2000, ao restringir o crédito em seu critério temporal, para 2003, em relação aos contribuintes fora das exceções que traça, viola os princípios da não-cumulatividade e o da anterioridade. Tirando raríssimas exceções, que apenas confirmam a regra, a energia elétrica e o serviço de telecomunicações representam, sem qualquer resquício de dúvida, elementos essenciais à atividade industrial, comercial ou produtiva, no que representa na cadeia plurifásica já referida, cujo único limite possível só poderá decorrer de eventual afastamento que, “faticamente”, se faça de tal cadeia, como por exemplo, “o uso privado”, em desvio às finalidades próprias do contribuinte. Fora tal perspectiva, o ICMS pago na operação anterior, se não gerar crédito ao industrial, comerciante e produtor, por certo representará acréscimo ou aumento de preço, quebrando a neutralidade que lhe é própria, com todas as conseqüências de distorção na formação dos preços, livre concorrência, etc., que o princípio ou regra da não-cumulatividade visa a evitar. Outrossim, decorrendo, como de fato decorre, aumento da carga tributária, em face à não-possibilidade de creditamento, vigente no mesmo ano da sua restrição, viola tal norma o princípio da anterioridade (CF, art. 150, III, b), que, ao contrário do sustentado pela digna autoridade coatora, não se restringe a elementos do critério quantitativo (base de cálculo e alíquota), mas abrange o sistema de compensação, posto que o princípio não se limita aos aspectos da estrutura lógico-formal do imposto, mas, sim, encerra um valor, próprio dos princípios, e que, no caso em tela, enfatiza 92 a proteção do contribuinte contra a “surpresa” de alterações tributárias ao longo do exercício e que resta por afetar o planejamento das atividades empresariais (Luciano Amaro, “Direito Tributário Brasileiro”, São Paulo, 1999, p. 120). Este, pois, o conteúdo axiológico do princípio, inserido dentre o rol das garantias dos contribuintes, que não pode, como acima já se alinhou, ser interpretado a partir do ângulo de visão do CTN, norma infraconstitucional que é, como proposto. Desta forma, o “paralelo do parafuso” não se ajusta, posto que o sistema normativo não prevê um princípio que limite a eficácia legal da supressão das isenções, exemplo ademais, que antes confirma o que aqui se aduz, posto que a isenção, como sabido, pode operar em qualquer dos critérios lógico-formais da regra-matriz dos tributos, e não apenas base de cálculo ou alíquota (Paulo de Barros Carvalho, “Curso de Direito Tributário”, São Paulo, 1999, pp. 446 e ss.). Sob a mesma ótica, calha notar que referido princípio, no âmbito tributário, segundo sinto, expressa o que parte da doutrina alça a “sobre princípio” no sentido de que rege toda e qualquer porção da ordem jurídica, que é o “princípio da certeza jurídica”, na conotação de “previsibilidade” de tal modo que os destinatários dos comandos jurídicos hão de poder organizar suas condutas na conformidade dos teores normativos existentes, que, inclusive, interpenetra não menor princípio, que é o da “segurança SENTENÇAS jurídica” (op. cit., pp. 145/146), ainda que restrito ao ano de vigência da instituição do aumento da carga tributária. DECISÃO Concedo, parcialmente, a ordem para reconhecer à parte-impetrante o direito de: (I) crédito de ICMS relativamente às operações de entrada de energia elétrica e de serviços de comunicação, efetuadas pelas filiais da mesma elencadas na inicial; (II) de crédito relativamente a eventual saldo de crédito existente ao final do 48º mês de entrada de bens destinados ao ativo permanente das filiais da empresa-impetrante, elencadas na inicial; (III) suspender a exigibilidade de crédito tributário relativamente ao creditamento decorrente da entrada de bens para o ativo fixo das filiais da empresa-autora, até 31-12-00; e conseqüentemente (IV) determinar a abstenção da autoridade-coatora de praticar atos contrários à presente norma individual e concreta, objeto da presente decisão. Revogo, parcialmente, a liminar, relativamente aos créditos decorrentes das entradas de bens de uso e consumo. Decorrido o prazo recursal, sem apresentação de recurso voluntário, remetam-se os presentes autos ao Egrégio Tribunal de Justiça aos efeitos do art. 475, II, do CPC. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 22 de novembro de 2000. Cláudio Luís Martinewski, Juiz de Direito. 93 Processo nº 103683026/33872 Autora: B. S. P. Réu: G. C. P. Juiz prolator: Diógenes V. Hassan Ribeiro Separação e culpa. O exame da culpa, ou do responsável pela separação, deve ser perquirido somente em situações verdadeiramente excepcionais, cabendo, em regra, não ser questionado nas ações de separação. O princípio da ruptura substitui o princípio da culpa. O exame da necessidade é que importa para o fito de haver condenação, entre os separandos, a alimentos. Vistos, etc. Trata-se de ação de separação judicial cumulada com guarda de filhos e alimentos entre as partes acima nominadas, qualificadas nos autos. Sustentou a autora ser casada com o réu desde 04-12-82, pelo regime da comunhão universal de bens, tendo nascido três filhos, A., em 1984, A., em 1985, e G., em 1987. Narrou que o casal conviveu em harmonia por quase 16 anos, mas, a partir de 1998, tendo o réu se encantado por outra mulher, iniciando um relacionamento extraconjugal com uma ex-colega de trabalho, C. D. A., deu motivo a uma série de desentendimentos até culminar com o seu afastamento do lar. Assim, por infração ao dever de fidelidade e de coabitação, violou os deveres do casamento, tornando insuportável a vida em comum. Os filhos encontram-se com a autora, desde a separação, devendo ficar sob a sua guarda. Requereu a regulamentação da visita. Mencionou dispensar alimentos a si própria, temporariamente, diante de auferir renda bruta de R$ 1.600,00. O réu, recebendo entre R$ 4.000,00 e R$ 5.000,00 brutos, deveria pagar alimentos da ordem de doze salários mínimos, pois já vinha contribuindo com a quantia mensal de R$ 1.300,00. Relacionou as despesas dos filhos, que atingiam a cifra de R$ 1.798,50, mencionando a existência de outras despesas. Dizendo que havia bens a serem partilhados oportunamente, postulou a procedência da ação, com a decretação da separação, a fixação dos alimentos, da guarda e das visitas. Juntou documentos. Fixados alimentos provisórios em 30% da remuneração líquida do réu (fl. 79), foi designada audiência de tentativa conciliatória, sem êxito, ocasião em que a autora juntou outros documentos. Em contestação, admitiu estarem corretos os fatos elencados nos itens 1 a 4. Os demais fatos, entretanto, não corresponderiam à realidade. Disse ter-se afastado da residência do casal em novembro de 1998, diante da deterioração do relacionamento, em razão das viagens profissionais que realizava. Evitando que os filhos presenciassem discussões, optou por retirar-se do lar, mas sempre manteve todo o apoio moral e financeiro aos filhos. O seu relacionamento com C. D. A. é posterior à separação. 94 Não se opõe ao pedido de guarda dos filhos pela autora. Concordou, ainda, com a proposta de visitação da inicial. Insurge-se, contudo, com relação ao pensionamento postulado, pois a residência do casal permaneceu com a autora e os filhos e ele, réu, teve de alugar apartamento para residir, pagando, de aluguel e de condomínio, o valor de R$ 670,00, possuindo outras despesas. Impugnou o pedido do item 28 da inicial. Pediu a manutenção do pensionamento provisório fixado, de 30%, e concordou com a partilha posterior. Juntou documentos. Houve réplica. Realizada a instrução, o debate foi convertido em memoriais escritos. No parecer ministerial, o Dr. Promotor de Justiça opinou pela procedência da ação, com a consideração de ser o réu o culpado pela separação, assim como a fixação de pensão em 40% da renda do réu. É o relatório. Estão incontroversos os aspectos da guarda dos filhos, pedida pela mãe, com a qual concordou o pai, da visitação, pois a proposta feita na inicial foi aceita na contestação, da existência de bens do casal, que serão partilhados oportunamente, bem assim da própria separação, pois há consenso de ambas as partes com relação à dissolução da sociedade conjugal. A controvérsia está no que concerne à culpa pela separação e no valor dos alimentos. A autora imputou a culpa pelo término do casamento à conduta infiel do réu e ao fato de ele ter abandonado o lar. Postulou, outrossim, alimentos, para os filhos, dispensando para si, temporariamente, da ordem de doze salários mínimos, enquanto que o réu SENTENÇAS concordou em pagar alimentos no valor equivalente a 30% da sua renda líquida, excluindo-se a incidência da pensão sobre a parcela do FGTS, eis indenizatória em caso de rescisão do contrato de trabalho. O exame da culpa. Discutir a culpa, na separação, é um tema que deve ser abandonado. Já existem inúmeros textos de doutrina que preconizam a dispensa desse exame. Perquirir da culpa significa buscar saber mais do que simplesmente verificar o que está aparente no casamento. Existem razões psicológicas, inconscientes, que decretam a falência do casamento, antes de os cônjuges perceberem esse fato. Examinar a culpa na separação é algo abominável, verdadeiramente absurdo, somente existente em legislações ultrapassadas, que por isso mesmo não acompanham a evolução da sociedade. Ora, se dois seres se unem porque têm vontade de conviverem, seja pelo casamento formal, seja pela união estável, apenas têm em conta nesse momento a disposição afetiva e o intento de construção da realidade conforme os sonhos, quiçá arquitetados desde a infância: realizar-se na vida, tendo uma família. Esses os pressupostos do casamento, a vontade e o afeto. A abominação da culpa, como regra, revela-se no ponto de que é instituto que tem a finalidade de impor uma vindita, uma pena, ao outro. Mostra-se, assim, a fragilidade dessa instituição “culpa” na separação. Se um casamento durou dois meses, um ano, cinco anos, dez anos, ou vinte anos, certamente esse tempo não foi de tristezas, mas, sim, em sua maior parte, SENTENÇAS de alegrias e de satisfações. Os filhos, o patrimônio, o tempo convivido, as viagens, o lazer, as brincadeiras, o prazer, tudo isso e mais são esquecidos. O que importa é a satisfação da vingança. Dessa forma, embora superado o casamento, o litígio descamba para muita mágoa e, então, os ex-cônjuges não são felizes, nem para si próprios, nem para os outros. Não são felizes com os filhos, nem com os outros seus. Apenas guardam mágoas, ressentimentos, porque aquele contrato do casamento foi, aparentemente, violado pelo outro. E o cônjuge que procura no outro o culpado pela derrocada do casamento envelhece, frustrado, odiando, quiçá doente, senão nos seus órgãos, ao menos da alma. Não conseguirá ser feliz com outro ser, porque está amargurado. Para saber quem é o cônjuge culpado impor-se-ia o exame da consciência e, especialmente, o exame da inconsciência, o que somente poderia ser realizado com uma prova pericial, cansativa e demorada, na área da psicanálise e na área da psicologia. Fosse esse o caso, até haveria algum proveito, pois os separandos aproveitariam e fariam, quem sabe, uma terapia e, talvez, até não se separassem. Nesses termos coloca o tema da culpa a eminente Desembargadora Maria Berenice Dias: “Vincular a separação ao rígido pressuposto da identificação de um responsável da identificação de um responsável justificava-se no sistema originário do Código Civil, que consagrava a insolubilidade do vínculo matrimonial, que sequer o desquite desfazia, e mesmo assim só era admitido ante a comprovação de causas taxativamente previstas na lei. 95 Após a consagração do divórcio, é de se reconhecer a dispensabilidade da imputação de culpa pelo rompimento do vínculo afetivo. Mas cada vez mais vêm a doutrina e a jurisprudência – atentando na realidade social e muito à frente da estática legislação – desprezando a perquirição da culpa para chancelar o pedido de separação, como já tive a oportunidade de sustentar em sede doutrinária e em vários julgamentos, no sentido de que basta um dos cônjuges ter por insuportável a vida em comum para dar ensejo ao rompimento do casamento, sendo despicienda a comprovação da culpa de qualquer deles pelo fim do vínculo afetivo. Essa postura acabou prevalecendo ao menos no Tribunal gaúcho, que abandonou a vã tentativa de punir alguém, passando a considerar dispensável a perquirição da culpa, sempre de difícil comprovação, uma vez que a separação de fato já revela a falência da arquitetura conjugal, não sendo preciso avançar em outra motivação, pois traduz a ruptura do afeto e do amor. Como assevera Luiz Edson Fachin, ‘não tem mais sentido averiguar a culpa como motivação de ordem íntima, psíquica. Objetivamente é possível inferir certas condutas, não raro atribuídas, de modo preconceituoso, mais à mulher que ao homem. A conduta, porém, pode ser apenas sintoma do fim’’. “Basta a simples manifestação de vontade de um para ensejar o término do casamento, sem a necessidade de imputar ao outro a responsabilidade pelo fim do amor, e nem mesmo para fins alimentares se mantém a necessidade de perquirição da culpa. Não é pressuposto 96 para sua concessão a ‘inocência’ do par, bastando comprovar a necessidade de um de perceber e a possibilidade do outro de alcançar-lhe alimentos, como forma de preservação da dignidade da pessoa humana, mesmo que esta pessoa não tenha sido digna na sua relação interpessoal” (Maria Berenice Dias, “Casamento: Nem Direitos nem Deveres, só Afeto”, Porto Alegre: “Revista da AJURIS”, 2000, nº 80/207-208) (grifos da autora). A mesma linha de raciocínio é desenvolvida pelo eminente Desembargador, aposentado, Breno Moreira Mussi: “A dinâmica da vida pode reservar a frustração do empreendimento. Muitas vezes, a realização pretendida passa a ser angústia, infelicidade, sofrimento. O amor involui, em face das mais variadas circunstâncias. Destrói os sonhos. “O amor transforma-se em desamor, sem apego a qualquer regra. Raramente de apenas um golpe. O mais comum é o somatório de pequenos detalhes, isoladamento incapazes de representar algo. “Em outros tempos, era comum a manutenção de casamentos e uniões falidos, íntegros na fachada, mas vazios de conteúdo. Mantinha-se o inexistente... Ainda hoje acontece. “A lei ajuda tal procedimento, ao insistir no princípio da culpa, pelo qual são infligidas sanções ao descumpridor da obrigação, onde o aspecto subjetivo tem especial relevo, em face da volição que motivou a falta de atendimento aos deveres” (Breno Moreira Mussi, “Destruindo aquele que se Ama – Nova Realidade do Direito de Família”, org. SENTENÇAS por Sergio Couto, Rio de Janeiro: COAD: SC Editoria Jurídica, 1998, p. 24). É do mesmo entendimento Rodrigo da Cunha Pereira, nesses termos: “Os ordenamentos jurídicos contemporâneos apresentam uma tendência de substituição do princípio da culpa pelo princípio da ruptura, embora em grande parte dos países do sistema romano-germânico coexistam ainda esses dois princípios. “Com a evolução do conhecimento, as transformações da família, e a revelação por Freud da existência do sujeito inconsciente, as motivações do desenlace conjugal não podem mais ser consideradas apenas na objetividade enumerada pelos textos normativos. “Assim, não podemos ficar estacionados nas concepções dos ordenamentos jurídicos germano-românicos, cuja codificação é tradução de concepções filosóficas e m o r a i s j á u l t r a p a s s a d a s . E s ã o e x a t a mente essas concepções que autorizam a permanência desses princípios. “Para que nos aproximemos do ideal de Justiça, de liberdade e libertação dos sujeitos, acertando o passo com a contemporaneidade, faz-se mister repensar e redirecionar o estigmatizante princípio da culpa em nosso ordenamento jurídico, para estancá-lo como já o fez a Alemanha” (Rodrigo da Cunha Pereira, “A culpa no Desenlace Conjugal”, “Direito de Família – Aspectos Constitucionais, Civis e Processuais”, 1999, Coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier e Eduardo de Oliveira Leite, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, 4/338). Dessarte, a correta e atual interpretação do art. 19 da Lei do Divórcio, é SENTENÇAS de que somente cabe o exame em circunstâncias excepcionais, pois os alimentos somente são devidos pelo dito “cônjuge responsável” se o outro cônjuge deles necessitar. No caso dos autos, não há necessidade de alimentos pela autora, que tem uma renda líquida entre R$ 1.500,00 e R$ 1.600,00, razão pela qual descabe examinar a culpa. Não bastasse isso, a autora não conseguiu trazer aos autos elementos probatórios convincentes de que a responsabilidade pela ruptura é do réu. Veja-se, a respeito, o significativo depoimento pessoal dele: “Desgaste é quando termina o amor, acaba o encantamento com a pessoa. Nesse casamento, eu nunca fui olhado como uma pessoa boa, eu nunca fui admirado por ninguém. Esse sentimento, a minha ex-esposa conseguiu passar para os meus filhos. Hoje eu tenho problemas graves de relacionamento com os meus filhos, porque eles têm a mesma idéia que a mãe tinha de mim... Nada do que eu queria fazer, se fazia. Só tinha uma maneira de eu não me incomodar: fazer as coisas que ela gostava que eu fizesse, aí eu não me incomodava. Cada vez que eu tinha que contrapor alguma coisa, eu sempre era tido como uma pessoa que não sabia de nada, nunca sabe nada... Exacerbou depois. Antes eu tinha problema com o meu filho mais velho, muita disputa pelo poder da casa, com as meninas eu tinha um relacionamento melhor” (fls. 245-246). Então, a par de a autora não ter conseguido demonstrar o alegado adultério, pois a respeito não há qualquer elemento nos autos, além das suas alegações, há essa versão do réu, que 97 parece estar mais em acordo com a verdade, porque é o que normalmente ocorre no seio de uma família, em que um cônjuge desfruta de uma posição superior em relação ao outro. Como o réu viajava muito, em razão das suas atividades profissionais, representante comercial da área de medicamentos, a autora passou a desfrutar de uma posição privilegiada no comando da casa. Outrossim, também em razão dos afastamentos profissionais do réu, o filho mais velho passou a disputar com o pai a hegemonia sobre a residência. Assim, sem que as partes percebessem, nem os filhos, porque não racionalizaram as dificuldades vividas, no sentido de poderem resolvê-las sem maiores conseqüências, o casamento descambou para a insatisfação diária e, daí, para a sua falência, tudo é uma questão de tempo. Dessarte, desnecessário revela-se buscar saber qual é o cônjuge responsável pela separação, no caso dos autos. Mas, feito tal exame, com base nas provas produzidas, não há elementos nos autos que indiquem qual dos cônjuges deve ser considerado o culpado. Portanto, ocorrendo a ruptura do casamento, com o afastamento da residência do casal pelo réu, não se podendo, só por isso, atribuir a ele a responsabilidade pela separação, pois o afastamento se deveu ao fato de ele querer evitar os desgastes decorrentes, especialmente aos filhos, de acolher a separação tendo em conta simples ruptura do casamento, pelo afastamento dos cônjuges, especialmente tendo em conta ser do interesse de ambos a separação. 98 O exame dos alimentos. Os alimentos aos filhos estão bem postos, pois fixados em 30% da renda líquida do réu, para os três filhos, notando-se que a autora e os filhos prosseguiram residindo na residência do casal, enquanto que o réu teve de mudar-se e paga aluguéis. Assim, além do percentual fixado de pensão, há pensão dita in natura pelo fato de a autora e os filhos residirem no imóvel do casal, sendo que, 50% dele pertence ao réu. Não se pode, então, aumentar o pensionamento para percentual superior, pois o fato de o réu ter saído da residência do casal representou uma redução das despesas domésticas, mas acrescentou a ele outras despesas com a busca de um novo local para residir, além das outras despesas normais. Desse modo, até a concretização da partilha, ulterior como querem as partes, de considerar-se que a ocupação da residência do casal com exclusividade pela autora e pelos filhos é pensão in natura. Todavia, com relação à exclusão do FGTS da incidência do percentual alimentar, é de deferir-se, pois se trata de verba indenizatória trabalhista, sobre a qual não cabe a incidência de pensão. Tocante aos ônus sucumbenciais, a iniciativa da ação foi da autora, era imprescindível e houve a procedência do pedido de alimentos e do pedido de separação. Por tais razões, deve ser SENTENÇAS suportada com exclusividade pelo réu, independentemente, repito, do exame de culpa ou de responsabilidade pela separação. Isso posto, julgo procedente a ação ajuizada e decreto a separação das partes e dissolvo a sociedade conjugal, pela ruptura do casamento. Condeno o réu a pagar alimentos aos filhos no valor equivalente a 30% sobre o total da remuneração líquida do requerido, considerados como descontos apenas os obrigatórios de imposto de renda e previdência oficial, incidente sobre o 13º, gratificação de férias e eventuais verbas rescisórias, excluído o FGTS, que deverão continuar sendo descontados em folha de pagamento e creditados na conta da autora. A visitação aos filhos fica como exposto na inicial e na contestação. Condeno o réu nas custas processuais e nos honorários advocatícios dos patronos da autora, estes no equivalente a oito URHs (OAB/RS), atento ao trabalho desenvolvido, inclusive considerando que houve audiência de instrução, com coleta de prova oral. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Transitada em julgado, expeça-se mandado e baixem-se, nada sendo requerido. Porto Alegre, 05 de junho de 2001. Diógenes V. Hassan Ribeiro, Juiz de Direito. 99 Ação Socioeducativa nº 1.382 – Juizado Regional da Infância e da Juventude da Comarca de Osório Autor: Ministério Público Réu: Adolescente S. R. B. Juiz prolator: Gilberto Pinto Fontoura Medida socioeducativa descumprida. Aplicação de outra medida, de grau mais elevado, obedecendo ao princípio de ressocialização. Vistos, etc. O Ministério Público ofereceu representação contra o adolescente S. R. B., de 17 anos de idade, brasileiro, solteiro, filho de M. D. B. e de S. R. B., residente e domiciliado na Rua M. J. M., nesta cidade de Osório, pelo ato infracional de desobediência (art. 330 do CP), por deixar de cumprir medida protetiva consistente em obrigatoriedade de freqüência escolar. Destaca a representação que, em razão da prática de ato infracional, obteve remissão mediante condição de medida socioeducativa de advertência e protetiva de obrigatoriedade de freqüentar a escola, devidamente aceita e homologada pelo juízo, deixando, no entanto, de freqüentar as aulas, daí a figura típica do ato infracional de desobediência. Recebida a representação, foi ouvido, ocasião em que admitiu ter cursado até a 5ª série do ensino fundamental, iniciado a 6ª série mas interrompido os estudos em 1999, pois precisava trabalhar. Referiu que não estava trabalhando e pretendia cursar o supletivo (fl. 51). Designado o Defensor Público, aportou a defesa prévia (fl. 53). Com regular instrução, ouviu-se as testemu- nhas arroladas (fls. 56/57 e 64). O debate da prova se deu através de alegações escritas, tendo o Ministério Público postulado a procedência da representação com a conseqüente aplicação de medida socioeducativa de liberdade assistida. Por seu turno, o Defensor posicionou-se pela improcedência, por não ter o adolescente se negado a estudar, tanto que demonstrou intenção de cursar o supletivo e que precisava trabalhar para sobreviver. Relatei. DECIDO Enquadrar a conduta (omissão) do adolescente como ato infracional de desobediência pelo descumprimento de medida protetiva consistente em obrigatoriedade de freqüência escolar é questão muito controvertida. No caso em exame, a aplicação da medida protetiva decorreu de prática de outro ato infracional que resultou em remissão concedida pelo Ministério Público, com apoio no art. 126 do ECA, aceita pelo adolescente e devidamente homologada pelo Judiciário na forma do art. 181 do mesmo Estatuto, conforme se vê pelos documentos das fls. 05 e 22. Note-se que, em fase de controle do cumprimento da medida protetiva, tendo aportado notícia do descumprimento (fl. 27), foi advertido para as conseqüências, quando comprometeu-se, novamente, retornar para a escola (fl. 31). 100 Em que pese o comprometimento de S., evadiu-se da escola (fls. 43 e 45), resultando, então, na representação pela desobediência. Ressaltei que a questão é controvertida, pois, de regra, a medida protetiva decorre de situação de risco (art. 98 do ECA), que independe de ato infracional, e, nesse caso, seria demasiado entender que o não-atendimento da proteção – por quem já está em situação periclitante – poderia acarretar-lhe imposição, agora, de medida socioeducativa – já que esta sim pressupõe ato infracional. Mesmo assim, na hipótese em julgamento, é necessário compreender que o ato infracional imputado a S. decorreu de sua relutância em cumprir a ordem legalmente emanada – qual seja, a de voltar aos bancos escolares. Gize-se que a Doutrina da Proteção Integral, que estabeleceu prioridade absoluta para as crianças e adolescentes, assegurando direitos, mas também por evidente, impôs obrigações, dentre outras, tem o Estado/Sociedade de prover meios à educação (arts. 4º, 53 e 54 do ECA). Por sua vez, os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos na rede regular de ensino, com o que forçoso concluir não estar ao livre-arbítrio do adolescente e da família, pelo menos no que concerne ao ensino fundamental, estudar ou não. É obrigação. O ensino fundamental é obrigatório, nos termos da CF, art. 208, e para que tal seja possível, isto é, para que não se alegue falta de recursos financeiros, a mesma Carta Política obrigou aplicação de significativa parcela do orçamento na educação (art. 212). SENTENÇAS No mesmo rumo vai toda política de educação, disciplinada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, que traça como princípios o dever da família e do Estado para o preparo e exercício da cidadania e sua qualificação ao trabalho (art. 2º). A mesma Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em seus arts. 5º e 6º, bem aponta para a obrigatoriedade de freqüência escolar, in verbis: “Art. 5º – O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo”. “Art. 6º – É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos 07 anos de idade, no ensino fundamental.” Indiscutível, pois, se é dever do Poder Público oferecer condições para educação do povo, por certo decorre a obrigação da criança até adolescente freqüentar a escola. Desse modo, a partir dos 07 anos, e enquanto adolescente, 18 anos, certa a obrigação de freqüência escolar no ensino fundamental. Por tudo, merece ser julgada procedente a representação. Face ao exposto, julgo procedente a representação, para aplicar a S. R. B. a medida socioeducativa de liberdade assistida, por ter infringido o art. 330 do CP, de modo que nesse programa possa repensar sua conduta e portar-se em conformidade com o Direito. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Osório, 19 de abril de 2001. Gilberto Pinto Fontoura, Juiz de Direito. 101 Processo nº 29149 – Ação Ordinária de Indenização 1ª Vara Cível Autora: Derotilda Maria Vasconcellos Ribeiro Réu: Município de Guaíba Juiz prolator: Gilberto Schäfer Responsabilidade civil do Município por “valeta” aberta em via pública. Sentença procedente. Vistos. Derotilda Maria Vasconcellos Ribeiro move ação ordinária de indenização contra Município de Guaíba. Informa a autora que no dia 11-12-94 faleceu seu filho João Batista Vasconcellos Ribeiro em decorrência de uma pneumonia lombar com insuficiência respiratória resultante de um acidente. Relata que no dia 03-12-94 a vítima pilotava sua motocicleta pela Av. Lupicínio Rodrigues em direção à Av. Recife, por volta da 01h, quando projetou-se para dentro de uma valeta destinada ao escoamento de esgoto pluvial. Ressalta a inexistência, na época, de iluminação pública adequada e sinalizadores no término da avenida, bem como da existência da referida vala, caracterizando o descaso da Administração Direta. Informa, ainda, já ter ocorrido outros acidentes no local. A vítima conforme inicial e documentos juntados recebia R$ 200,00 mensais além de R$ 150,00 relativos a “bicos” que executava, dos quais ajudava nas despesas do lar, bem como na assistência à autora, que é pessoa idosa e com problemas de saúde. Com seu falecimento, ficou a mesma desamparada. Requer a procedência da ação com conseqüente reconhecimento da responsabilidade da requerida com ressarcimento dos gastos hospitalares e funerário e condenação ao pagamento de danos morais orçados em R$ 250.000,00, prestação alimentícia no valor de 03 salários mínimos, além de honorários advocatícios em razão de 20%. Pediu assistência judiciária gratuita. Junta procuração (fl. 08), documentos (fls. 09/13 e 17/26) e fotografias (fls. 14/16). Citada, a parte requerida contestou, alegando que a vítima obrou com imperícia e imprudência aliada a alta velocidade desenvolvida. Aduz que não houve comprovação da habilitação do condutor e que a passagem existe há mais de 25 anos e que é bem iluminada e sinalizada. Impugna os documentos juntados e os valores requeridos a título de pensão alimentícia e dano moral, bem como o pedido de ressarcimento das despesas hospitalares por falta de comprovação no feito. Junta procuração à fl. 34 e comunicação de ocorrência (fl. 35). Houve réplica (fls. 45/45) e juntada da habilitação do condutor à fl. 46. Com vista o Ministério Público opinou pela não-intervenção (fls. 48/49). Designada audiência de conciliação, resultou inexitosa. Naquela ocasião, foi deferida a perícia no local do fato. Juntados os quesitos, foi designada audiência para 102 oitiva da requerente. Apresentado o laudo pericial, concluiu como causa a falha humana. Na audiência de instrução, houve inspeção judicial e colheita da prova oral. Declarada encerrada a instrução. Formatados os debates. Vieram conclusos. Relatei. DECIDO Responsabilidade objetiva. Antes de mais nada, cumpre salientar que é caso de aplicação da responsabilidade objetiva, na forma do disposto no art. 37, § 6º, da CF/88: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. “O dano sofrido pelo indivíduo, a responsabilidade objetiva, deve ser visualizado como conseqüência do funcionamento do serviço público, não importando se esse funcionamento foi bom ou mau. Importa, sim, a relação de causalidade entre o dano e o ato do agente público” (Carlos Mário da Silva Velloso, “Responsabilidade Civil do Estado”, “Revista Jurídica” nº 161, 1991, p. 132). Georges Vedel, ensina que o dano causado pela administração ao particular “é uma espécie de encargo público que não deve recair sobre um só pessoa, mas que deve ser repartido por todos, o que se faz pela indenização da vítima, cujo ônus definitivo, por via do imposto, cabe aos contribuintes” (Georges Vedel e Pierre Devolvé, “Droit SENTENÇAS Administratif”, p. 502, apud Carlos Mário da Silva Velloso, “Responsabilidade Civil do Estado”, “Revista Jurídica” nº 161, 1991, p. 135). Por isso o dispositivo constitucional manteve a responsabilidade objetiva da Administração, sob a modalidade do risco administrativo, não chegando, porém, aos extremos do risco integral (STF, RE nº 35.136-SP, “RTJ” nº 08/146; “RDA” nos 55/261 e 97/177; TFR, “RTFR” nº 36/163; “RDA” nos 42/253 e 58/319; “RT” nos 193/ 514 e 220/502, entre outros). Para Almiro do Couto e Silva (pp. 05 e ss.), a noção de responsabilidade objetiva, como foi posta na Constituição brasileira vigente, tem dupla vantagem. Para o professor, por um lado, ela dá tratamento unitário à responsabilidade extracontratual do Estado, eliminando a distinção tradicional entre responsabilidade por atos lícitos e ilícitos. Por outro lado, supera as diferentes espécies de responsabilidade conhecidas, como culpa individual, por falha ou culpa do serviço, por risco, pela distribuição desigual dos encargos públicos. Na realidade, busca-se uma conceito mais lato, mais amplo, para a proteção do cidadão. Verificado o dano, a vítima terá apenas de demonstrar que é indenizável (que não é, por exemplo, incerto ou eventual) e a existência de nexo de causalidade. É dispensável, pois que comprove ou alegue, por exemplo, a culpa do agente do Poder Público. O Estado é que, para eximir-se da responsabilidade ou atenuá-la, terá de provar a culpa exclusiva ou concorrente da vítima ou de terceiro, ou a ocorrência exclusiva ou concorrente de força maior, SENTENÇAS conforme o caso. A culpa só teria pertinência na ação de regresso, ou na denunciação da lide, segundo algumas correntes doutrinárias. A responsabilidade assumiu, assim, um conceito diferente da responsabilidade civil do direito privado, apesar de inúmeros pontos de contato. Mesmo após a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, a idéia de culpa continua sendo o elemento determinador da responsabilidade civil, consistindo no seu elemento central. Na responsabilidade extracontratual do Estado só excepcionalmente é levada em consideração, pois a regra é a responsabilidade objetiva. Por isso, no caso em tela, trataremos não da culpa, mas do nexo de causalidade. Nexo de causalidade. A causa do dano coloca-se como pressuposto necessário da responsabilidade do Estado, devendo ser demonstrada a causalidade entre o serviço público e o dano sofrido pelo autor. Entre o evento e o resultado deve haver uma relação de causa e efeito (relação de causalidade real). Mas o que podemos entender por causa? O Supremo Tribunal Federal parece preferir a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal, conforme acórdão paradigmático (STF, 1ª Turma, 12-05-92, Rel. Moreira Alves, “RTJ” nº 143/270, “RT” nº 688/230). O fato que deu origem a esse processo de reparação de danos foi um assalto provocado por um bando de marginais, integrado por dois evadidos de prisões estaduais, que penetrou na residência de uma conhecida família curitibana, dominando-a completamen- 103 te e conduzindo a esposa até o estabelecimento comercial, de onde se apossou de jóias, levando terror àquelas pessoas, agredindo o varão e causando elevado prejuízo. O acórdão recorrido, quanto à existência do nexo de causalidade, declarou: “No que concerne ao nexo de causalidade, verifica-se que um dos componentes do bando – Nicolau Verenicz – na qualidade de preso condenado, fugiu, em 13-09-83, do Hospital de Guarapuava, para onde fora provisoriamente removido para suposto tratamento de saúde, tendo, cerca de 21 meses depois, em 21-06-85, participado da referida atividade criminosa. “Sua fuga ocorreu, como é bem de ver, de defeito do sistema penitenciário estadual, configurada pela conduta negligente dos respectivos funcionários encarregados da guarda do preso. O fato de este encontrar-se recolhido temporariamente a uma casa de saúde não importava na redução da vigilância, sabido que se tratava de preso perigoso. “O prejuízo sofrido pelos lesados apresenta conseqüência direta da conduta desses funcionários que, ao se descuidarem do seu dever de vigilância, deram causa a que o preso, tempos depois da fuga, se associasse a outros elementos igualmente perigosos e, na qualidade de mentor, líder ou chefe do bando, organizasse o roubo, fato este referido na denúncia criminal e confirmado na instrução. Estabelecido tal vínculo de causalidade entre a conduta do Poder Público e o dano, a conseqüência é o dever de indenizar”. A essa noção de nexo de causalidade, responde o Sr. Rel. Min. Moreira 104 Alves para quem “em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no art. 1.060 do CC, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito à impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada (cfe. Wilson de Melo da Silva, “Responsabilidade sem Culpa”, nos 78 e 79, pp. 128 e ss., Ed. Saraiva, São Paulo, 1974). “Essa teoria, como bem demonstra Agostinho Alvim (“Da Inexecução das Obrigações”, 5ª ed., nº 226, p. 370, Ed. Saraiva, São Paulo, 1980), só admite o nexo de causalidade quando o dano é efeito necessário de uma causa, o que abarca o dano direto e imediato sempre e, por vezes, o dano indireto e remoto, quando, para a produção deste, não haja concausa sucessiva. “Daí dizer Agostinho Alvim (1.c): ‘Os danos indiretos ou remotos não se excluem, só por isso; em regra, não são indenizáveis, porque deixam de ser efeito necessário, pelo aparecimento de concausas. Suposto não existam estas, aqueles danos são indenizáveis’. “No caso, em face dos fatos tidos como certos pelo acórdão recorrido e com base nos quais reconheceu ele o nexo de causalidade, indispensável para o reconhecimento da responsabilidade objetiva constitucional, é inequívoco que o nexo de causalidade inexiste, e, por- SENTENÇAS tanto, não pode haver a incidência da responsabilidade prevista no art. 107 da Emenda Constitucional nº 1/69, a que corresponde o § 6º do art. 37 da atual Constituição. “Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão, não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública, que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação de quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de 21 meses após a evasão.” (“RTJ” nº 143, p. 283). Conforme o Prof. Roberto Brebbia (“Hechos y Actos Jurídicos”, tomo nº 1/ 88-103, §§ 7º, 16) tanto a doutrina da causa próxima e direta, como a da causa eficiente tratam de selecionar, entre todas as condições de um resultado, uma de particular relevância que consideram causa. É importante destacar que a doutrina busca selecionar uma idéia de causa que permita o surgimento da idéia de “concausa”. “Como importante conotação da tese da causalidade adequada em seu aspecto doutrinário, deve destacar-se que, para que a conexão seja adequada entre o fato e o resultado, é necessário que exista essa mesma relação entre os distintos elos (eslabones) da cadeia causal, quando o evento não se encontra vinculado imediatamente à ação, isto é, não basta que a ação seja idônea para produzir um resultado, senão que é necessário, ademais, que essa regularidade exista em cada etapa da série causal (Antolisei, Orgaz, Larenz). “Não haveria tal adequação entre as distintas etapas de um processo causal, por exemplo, no caso em que o agente SENTENÇAS fere a vítima, e esta falece posteriormente no hospital, em virtude de um erro médico; na hipótese, haveria relação adequada entre a agressão e a lesão, porém não entre aquela ação e a morte. “Estas circunstâncias anteriores, concomitantes ou posteriores à ação, que influem sobre o processo causal interrompendo-o ou simplesmente o desviando de seu curso normal, tomam o nome de concausas. Exatamente uma das mais importantes e proveitosas conseqüências da aplicação da teoria da causalidade adequada no campo da responsabilidade civil está em que fornece as pautas que permitem encontrar soluções coerentes em casos de distorção da relação causal. “O conhecimento ou a possibilidade de conhecimento que teve o agente dos fatores existentes no momento do ato, e a previsibilidade das circunstâncias anômolas produzidas por tais fatores devem ser imputadas à ação do sujeito. Não assim, porém, se as circunstâncias anteriores ou concomitantes que não poderiam ser conhecidas, e as supervenientes imprevisíveis que desviaram a série causal, já que estas não integraram a ação” (grifo nosso) (Yussef Cahali, “Responsabilidade Civil do Estado”, p. 99). Por isso é que se pode ter como rompido o nexo de causalidade entre antecedentes e conseqüentes no caso do presidiário que burla a guarda do hospital onde estava recolhido e vem a praticar, em liberdade, muitos meses após, novos delitos (o Professor Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, pp. 514 e ss., nos explica a opção do legislador civil português pela formulação da causalidade adequada, 105 onde o legislador faz apelo à idéia de probabilidade do dano. “Depois de se assinalar a obrigação de indenização, o escopo de reconstituir a situação em que o lesado se encontraria, se o facto constitutivo do direito não houvesse sido praticado – art. 562 –, põe-se o problema da distinção entre os danos que devem considerar-se conseqüência do facto lesivo e os que se teriam produzido independentemente da sua verificação – art. 563. Como se opera com uma situação hipotética do lesado.”) A culpa da vítima, a contribuição de terceiro e a força maior devem ser compreendidas a partir desta noção de causa, que sempre se permite utilizar para balancear a responsabilidade. No RE nº 68.107-SP, encontramos decisão nesse sentido, conforme se lê: “Responsabilidade civil. Ação contra a União Federal. Culpa parcial da vítima. Redução da indenização. II – A responsabilidade objetiva, insculpida no art. 194 e seu parágrafo da CF/46, cujo texto foi repetido pelas Cartas de 1967 e 1969, arts. 105-107, respectivamente, não importa no reconhecimento do risco integral, mas temperado. III – Invocada pela ré a culpa da vítima, e provado que contribuiu para o dano, autoriza seja mitigado o valor da reparação.” Do voto do Min. Thompson Flores se extrai: “Não obrigou, é certo, à vítima e aos seus beneficiários, em caso de morte, a prova da culpa ou dolo do funcionário, para alcançar indenização. Não privou, todavia, o Estado, do propósito de eximir-se da reparação, que o dano defluíra do comportamento doloso ou culposo da vítima. “A contrario sensu, seria admitir a teoria do risco integral, forma radical 106 que obrigaria a Administração a indenizar sempre, e que, pelo absurdo levaria Jean Defroidmont (‘La Science du Droit Positif’, nº 339) a cognominar de brutal (in “RTJ” nº 55/52-3). “Nenhuma dúvida há de que essa responsabilidade do Estado não se condiciona à culpa ou dolo do agente causador do dano. O dolo ou culpa deste só pode interessar nas relações entre o Estado e o funcionário, para a ação regressiva. Outra questão é a da existência de culpa da vítima, que pode ser exclusiva, ou não. “O acórdão recorrido considerou a culpa da vítima, para atenuar a responsabilidade do Estado. Certo, se houvesse culpa exclusiva da vítima, não responderia o Estado. Caracterizada a culpa parcial da vítima, a decisão admitiu a atenuação da responsabilidade do Estado. Essa interpretação do preceito constitucional não importou negativa de sua vigência” (in “RTJ” nº 55/53-4, voto do Sr. Min. Eloy da Rocha). Também outras decisões cujas ementas aqui reproduzimos: “4547 – Acidente de trânsito com morte da vítima. Atropelamento de particular por veículo oficial. Culpa da vítima. Art. 36, § 6º, da CF/88. 1. Comprovada a culpa exclusiva da vítima, pode o Estado eximir-se da obrigação de indenizar, pela teoria do risco administrativo.” (TRF-1ª Região, AC nº 90.01.14733-DF, 4ª Turma, Rel. Juiz Leite Soares, “DJU”, de 15-04-91) (“RJ”, “Responsabilidade Civil”, VI – II Ementário, p. 149) “4557 – Responsabilidade Civil do Estado. Descaracterização. Morte de suspeito por ocasião de diligências policiais. Fato decorrente de tiroteio iniciado pelo próprio procurado. Inde- SENTENÇAS nização não devida. Culpa exclusiva da vítima. Inaplicabilidade do art. 107 da CF/69. Declaração de voto” (TJSP, AC nº 121.141-1, 3ª Câmara, Rel. Des. Toledo César, julgada em 24-04-90) – (02 659/76) (“Revista Jurídica”, “Responsabilidade Civil”, VI – II Ementário, p. 151); (Nesse caso, parece se tratar de legítima defesa. A legítima defesa putativa não é excludente da responsabilidade estatal, pois nela não se detecta culpa exclusiva da vítima. Forma-se na mente do agente público, por erro de percepção dos fatos, uma agressão que, se fosse verdadeira, justificaria os atos praticados (art. 1.540 do CC). “4562 – Responsabilidade Civil do Estado, art. 107 da CF/69. Teoria do risco administrativo. 1. A CF/69, art. 107, adotou a teoria do risco administrativo, e não a teoria do risco integral. 2. O risco administrativo, ao contrário do integral, não induz a que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano sofrido pelo particular; significa, apenas, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, podendo esta, todavia, demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, com o que ficará eximida total ou parcialmente da responsabilidade de indenizar.” (TRF-1ª Região, REO nº 90.01-16485-4-BA, 4ª Turma, Rel. Juiz Nelson Gomes da Silva, “DJU”, de 02-04-91) (“Revista Jurídica”, “Responsabilidade Civil”, VI – II Ementário, p. 151) Dessa forma, admite-se a análise das causa e da concausa do dano. Da causalidade no caso concreto. Percebe-se no caso que temos duas causas que concorreram para o acidente. De um lado, o motoqueiro que agiu SENTENÇAS em excesso de velocidade, não tomou as cautelas exigidas, especialmente com um veículo perigoso como a moto (sobre o perigo do veículo, ver laudo). De outro lado, temos o Poder Público, que sinaliza mal uma rua, que forma abruptamente um “T”, onde se acumula areia. Esse “T” não pode ser visualizado adequadamente, em virtude da vegetação que o cobre e da pouca iluminação existente no local, com placas em postes à altura que dificultam a leitura. Como se pode constatar na inspeção realizada, e confortada pela prova testemunhal, é freqüente que caiam veículos no valão e sofram acidente sem o Município tomar a mínima providência, em total descaso com a vida das pessoas. Aliás, esse fato é amplamente demonstrado através de fotografias (fls. 14 e 17), tendo sido objeto de abaixo-assinado dos moradores daquele bairro para o órgão executivo do Município. O Município infringiu o dever jurídico de dar segurança no trânsito concorrendo para o evento. Não comungamos da idéia de que quando se trata de atos omissivos, a responsabilidade seria subjetiva como quer Bandeira de Mello, para quem haveria negligência, imperícia ou imprudência, embora possa tratar-se de culpa não-individualizável (faute du service). O ato omissivo para o professor paulista seria condição, e não causa: “Em casos que tais, o sinistro ou a violência lesiva são causados por um fator agente estranho ao Estado. A omissão do Estado em debelar o incêndio, em prevenir as enchentes, em conter a multidão, em obstar o comportamento injurídico de terceiro, terá sido condição da ocorrência do dano, mas é 107 certo que não o causou. Não se poderia dizer que a abstenção ou morosidade do Poder Público produziu o evento lesivo, mas tão-só que deu azo a que ocorresse. Então, a responsabilidade do Estado será subjetiva. Logo, só cabe se tiver havido descumprimento de um dever jurídico estatal. Por inércia, morosidade ou ineficiência, quando devia legalmente ser atuante, solerte, eficiente. “Daí que terá lugar quando o Poder Público for omisso ou ineficiente, inobstante a existência de um dever jurídico de atuação e segundo os limites de eficiência normais” (Celso Bandeira de Mello, “Responsabilidade Extracontratual do Estado por Comportamentos Administrativos”, “RT” nº 552/13 e 14, apud Yussef Cahali, “Responsabilidade Civil do Estado”, pp. 284-5). De outra banda, como já explicitado, não podemos cair no conceito naturalístico de causa, eis que o Direito, como ciência normativa, agrega a causa à idéia de dever jurídico. Assim, a omissão é causa, quando uma pessoa não faz o que deveria fazer. No presente caso, dadas as suas circunstâncias, não é difícil demonstrar o dever jurídico que o Município tinha em sinalizar adequadamente o local, iluminá-lo, capinar o acostamento, colocar redutores de velocidade e colocar uma placa “PARE”. Enfim, propiciar o máximo de informação às pessoas. Em visita ao local, pude comprovar isso. Por isso, não acolho integralmente o laudo pericial juntado aos autos, pois não confirmado pela prova testemunhal e pela inspeção de que “considerando que a avenida possui iluminação pública e sinalização necessária e adequada 108 às suas características técnicas e aos fluxos de tráfego existentes, podendo-se afirmar que as ações da Municipalidade satisfazem a legislação vigente à época do acidente. Portanto, não praticou nenhuma infração de trânsito”. (Código de Processo Civil: “Art. 131 – O Juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento; Art. 436 – O Juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos.”) Como consta no próprio laudo (fl. 105), o acúmulo de areia e sujeira no local também faz com que o Município deva realizar mais seguidamente manutenção e limpeza na avenida. O fato produz deveres tanto ao condutor como à Municipalidade. Como pude constatar, os meios-fios são deixados de pintar, por algumas vezes, com muita areia e vegetação os cobrindo (fl. 148). Ainda, pode-se observar que o fato de as placas de sinalização de velocidade se encontrarem nos postes de energia elétrica (fl. 105), portanto a uma altura razoável, faz com que o condutor tenha dificuldades em visualizá-la, concorrendo novamente para o fato em tela. Por outro lado, como constante no laudo pericial, na parte que acolho, a vítima desenvolvia excesso de velocidade e não utilizava capacete (fl. 106), o que acabou ocasionando graves problemas cranianos e contribuindo decisivamente para a ocorrência do fato letal. Assim, diante dos dados do feito, divido a causalidade do fato em tela em SENTENÇAS 30% para a o Município e 70% para a vítima, motorista da moto. Do quantum indenizatório. Danos morais. No dano moral, há que se atentar para as: a) condições das partes; b) a gravidade da lesão e sua repercussão; e c) as condições fáticas. Passo a analisar o caso concreto a partir desses elementos. O Município tem relativa disponibilidade financeira. Do evento resultou a morte de um filho querido. A jurisprudência tem buscado diversos parâmetros para fixar o dano moral no caso de morte. No caso concreto, adoto para a defunção o valor de 400 salários mínimos (Registro que estou revisando posição anterior, na qual fixava tal valor em no máximo 300 salários mínimos). O faço por entender que o sofrimento, a dor, o vazio, o desamparo e o luto resultantes da privação da companhia, do afeto e do amparo de um filho, subtraído tragicamente do convívio da mãe. A dor e o luto são presumidos. A morte deixa uma sensação de vazio e de insegurança, experimentada pela autora. Os danos morais têm também a função de que o requerido sinta as conseqüências de seu ato, de forma que não mais se repitam. Nesse sentido, em consonância com os elementos encontrados nos autos e o princípio da proporcionalidade, fixo a indenização por dano moral em 400 salários mínimos para a autora. Considerando que tenho que houve causas concorrentes para o dano, conforme a divisão acima, fixo os danos em 120 salários mínimos devidos para a autora. Esses valores serão liquidados SENTENÇAS ao tempo do fato, incidindo a partir daí juros de 6% ao ano e a correção monetária. Lucros cessantes. A autora pleiteou indenização pela contribuição do filho à casa. A matéria tem passado por uma modificação no entendimento jurisprudencial, a partir do decidido pela 4ª Turma do STJ, no REsp nº 68.512-RJ. Assim, entende-se que a morte de filho menor, que trabalhava e contribuía para o sustento da família, dá ensejo ao deferimento de pensão mensal, a título de indenização por dano material. Entende-se que, até os 25 anos, a prestação mensal normalmente deve corresponder a 2/3 da remuneração do falecido, pois 1/3 certamente despenderia ele com a sua própria mantença. Após os 25 anos, época em que a vítima provavelmente constituiria nova família, a pensão persiste, mas deve ser reduzida para um quantitativo que pode corresponder à metade da que até ali era devida, estendendo-se aos prováveis 65 anos de sobrevida da vítima, se até lá viverem os beneficiários da pensão. Nesse sentido, também: “Responsabilidade civil. Morte de filho. Indenização. É devida a indenização pelo dano material decorrente da morte de filho menor, com 16 anos, que já trabalhava e contribuía para o sustento da família, além da reparação do dano moral. Pensão mensal fixada em 1/2 do salário mínimo, para o tempo que transcorreu desde a data do fato até quando o menor teria completado a idade de 25 anos, e reduzida essa parcela para 1/4 do salário mínimo, a partir de então, até quando atingiria a idade de 65 anos, tempo provável de sobrevida da vítima. Nova orientação da Turma, mantendo o limite 109 de indenização até os 65 anos de idade da vítima (se não utilizada a tabela de sobrevida adotada pela Previdência Social), mas reduzindo o valor da pensão mensal a partir da idade de 25 anos, quando provavelmente a vítima constituiria nova família e diminuiria a contribuição aos pais. Precedentes das 3ª e 4ª Turmas. Recurso conhecido e provido em parte” (REsp nº 172457-RJ, 4ª Turma do STJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 04-08-98, “DJU”, de 12-04-99, p. 160. Decisão: Por unanimidade, conhecer do recurso e lhe dar parcial provimento). No caso dos autos, tenho em levar em consideração unicamente o valor informado na Carteira de Trabalho, das fls. 24 e 25. Sobre esse valor, o Município deverá pagar 30% sobre 2/3 daquele valor, com atualização do mesmo pelo IGP-M, até a idade em que a vítima completaria 25 anos. Após essa idade, deverá pagar 30% de 1/4 do valor que a vítima receberia até a idade de 65 anos, ou falecimento da beneficiária antes deste termo. Despesas com funerais. São devidos os pagamentos com as despesas com funerais, devidamente comprovadas à fl. 26, nos termos do art. 1.537, inc. I, do CC brasileiro, no valor do percentual de concorrência para o evento. Despesas hospitalares. Não há comprovação nos autos de que a autora tenha arcado com despesas hospitalares da vítima, motivo pelo qual indefiro o pedido. Ex positis, julgo parcialmente procedente a presente ação para: A) Condenar o Município de Guaíba ao pagamento de 120 salários mínimos, a serem liquidados na época dos fatos, 110 com juros legais de 6% ao ano e correção monetária pelo IGP-M desde o evento danoso (Súmulas nºs 43 e 54 do STJ). B) Condenar o Município ao pagamento de 30% sobre 2/3 daquele valor, informado à fl. 24, atualização pelo IGPM, até a idade em que a vítima completaria 25 anos. Após essa idade, deverá pagar 30% de 1/4 do valor que a vítima receberia até a idade de 65 anos, ou até o falecimento da beneficiária antes deste termo. Sobre as parcelas vencidas, incidirão juros e correção monetária desde o vencimento de cada uma. Quanto ao valor por vencer, o mesmo será pago mês a mês, em folha de pagamento (dado o caráter alimentar dos mesmos). C) Condenar o Município ao pagamento de 30% das despesas, informadas à fl. 26 dos autos, com juros de 6% ao ano e correção monetária. D) Condenar ambas as partes a pagarem custas e honorários advocatícios em face da sucumbência recíproca. O Município-Réu arcará com 30% das custas processuais, e a autora com 70% das custas processuais. O Município pagará ao procurador da autora a quantia de 20 URHs a título de hono- SENTENÇAS rários advocatícios. A autora pagará a título de honorários ao patrono do Município a quantia de 25 URHs. Na fixação dos honorários, levo em conta o bom trabalho desenvolvido pelos procuradores, fundamentando suas teses, trazendo aos autos as provas e o ganho que tiveram. Esse arbitramento leva em consideração o disposto no art. 20, § 4º, do CPC, especialmente estar presente no pólo passivo a Fazenda Pública. Os honorários e as custas da autora, beneficiada com a assistência judiciária, ficam suspensos em conformidade com a Lei nº 1.060/50. Decorrido o prazo para recurso voluntário, em reexame necessário, proceda-se à remessa dos autos ao egrégio Tribunal de Justiça (art. 475, inc. II, do CPC) (art. 475 – Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo Tribunal a sentença: I – que anular o casamento; II – proferida contra a União, o Estado e o Município; e III – que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública – art. 585, VI). Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Guaíba, 23 de março de 2001. Gilberto Schäfer, Juiz de Direito. 111 Processo nº 2.317/360 – Ação de Nunciação de Obra Nova Vara Única Autor: Município de Palmares do Sul Réu: Cristiano Gonçalves Juíza prolatora: Inajá Martini Bigolin Nunciação de obra nova. Município. Competência para legislar e fiscalizar a utilização do solo urbano. Normas de ordem pública – restrição de direito. Terreno da Marinha. Perdas e danos. Procedência. Vistos, etc. O Município de Palmares do Sul ajuizou ação de nunciação de obra nova contra Cristiano Gonçalves, ambos qualificados na inicial, requerendo a concessão liminar de ratificação do embargo e a final procedência, com a condenação do requerido por perdas e danos e a retirada da construção irregular do local. Alegou que o réu está construindo em área da Marinha, sem licença do Município. Requereu a procedência. Acostou documentos (fls. 05/09). Foi concedida a liminar (fl. 02). Citouse o requerido, o qual contestou. Asseverou que o imóvel em questão foi construído em 1989, sendo a moradia sua e de seus familiares e apenas estava sendo reformado. Não há demarcação das áreas da Marinha e, ainda que houvesse, o réu teria direito de manterse no local por ser pescador. Requereu a improcedência. Anexou documentos (fls. 17/26). O Município manifestou-se, reiterando os termos da inicial, refutando a peça contestacional e juntando documentos (fls. 27/37). Realizou-se prova pericial, sendo juntado o laudo aos autos (fls. 49/74) Na instrução, foi colhido o depoimento pessoal do réu e ouvidas duas testemunhas (fls. 115 e 123/124). As partes foram intimadas para a apresentação de memoriais, tendo o réu apresentado (fls. 126/ 127) e o Município se mantido silente. O Ministério Público opinou pela procedência do pedido (fls. 129/133). É o relatório. PASSO A DECIDIR As provas documental, pericial e testemunhal produzidas nos autos, conduzem à procedência da ação. Resta incontroverso nos autos que o autor estava procedendo a uma reforma irregular, de grande porte, a qual foi embargada pelo Município. Ambas as testemunhas ouvidas, Reni Leal Cardoso e José Antônio Euzébio declararam que o réu estava realizando uma reforma (fls. 124 e 125). O próprio réu, em seu depoimento, narrou que: “Em 1996, quando teve o auto de infração e auto de embargo pararam com a reforma, não tendo procedido a nenhuma obra posteriormente (...) a casa do depoente fica a 100m da praia, estando em terreno da Marinha” (fl. 115). Destarte, a obra embargada é a reforma, a qual estava sendo executada em área da Marinha e sem a devida licença, além de estar sobre via pública. 112 O laudo pericial é conclusivo neste sentido (fl. 52): “Com os fatos apresentados, podemos concluir que: a casa é totalmente de alvenaria, está parcialmente construída sobre a Av. Atlântica, foi construída sobre uma reserva ecológica, patrimônio da União”. Ademais, o teor do ofício remetido pelo delegado da Secretaria do Patrimônio Público da União, acostado à fl. 33, corrobora os termos do laudo pericial, dispondo: “Entretanto, e face ao posicionamento da residência ali feito constar, verifica-se estar a mesma situada sobre área de logradouro público, de uso comum do povo, constituído por praia propriamente dita de domínio da União Federal, à vista do disposto no art. 20, inc. IV, da CF (praia marítima), sendo que compete aos Municípios o disciplinamento quanto ao ordenamento territorial mediante planejamento e controle de uso, de parcelamento e da ocupação do solo urbano, ex vi do contido no art. 30, inc. VIII, da CF”. Nesta seara, o Município, no exercício da sua inquestionável competência para legislar e fiscalizar a utilização do solo urbano, tem o poder e o dever de zelar para que ninguém construa ou execute obras no leito das vias públicas. Esta competência emana do texto constitucional em seu art. 31, inc. VIII. No caso em tela, segundo se depreende do auto de infração (fl. 06), auto de embargo (fl. 07), prova pericial (fl. 52) e ofício da Secretaria do Patrimônio (fl. 33), o réu estaria construindo sem a licença municipal e sobre o leito da via pública. Como é sabido as normas de ordem pública, leis e regulamentos, são editadas em benefício do bem estar social, SENTENÇAS sendo que as limitações administrativas visam proteger a coletividade. No curso dos autos, existem provas que o réu estava construindo em via pública, inobservando as limitações administrativas de proteção à funcionalidade urbana, prejudicando, dessa forma, não só o conjunto da cidade ou do bairro, como afetando patrimonialmente as propriedades vizinhas, desvalorizando-as com supressão das vantagens urbanísticas que resultam das imposições de zoneamento, recuo, afastamento, altura e natureza das edificações. Ressalte-se que as restrições de direito administrativo são de molde a criar obrigações no tocante ao direito de propriedade, com restrições e limitações a este direito. Comprovado que o réu estava construindo clandestinamente e com ofensa à legislação local, inclusive sobre espaço destinado às vias públicas, merece procedência a presente demanda. No tocante à legislação local, cumpre trazer à baila o Código de Obras Municipal, o qual em seu art. 29 prevê: “Art. 29 – Qualquer obra, seja de reparo, reconstrução, reforma ou construção nova, será embargada sem prejuízo das multas e outras peculiaridades quando: I – Estiver sendo executada sem a licença ou alvará da Prefeitura nos casos em que o mesmo for necessário; (...)” Portanto, a presente demanda possui total amparo legal, tanto perante à legislação local, quanto no pertinente à Constituição Federal e Código de Processo Civil (art. 934, inc. III, do CPC), bem como demais leis ordinárias. Com relação à pertinência da ação de nunciação de obra nova, manifesta-se a jurisprudência: “Nunciação de obra SENTENÇAS nova. Licenciamento para obra. Município. CPC, no seu art. 934, III, assegura ao Município o exercício do direito de ação de nunciação de obra nova, havendo lesividade da edificação e sendo a obra realizada em contravenção a um preceito legal ou regulamentar. Sentença de extinção reformada. Apelo provido” (AC nº 198037137, 5ª Câmara Cível do TARGS, Tramandaí, Rel. Rui Portanova, julgada em 30-04-98). “Nunciação de obra nova. Construção em via pública. Laudo pericial. Construção clandestina. Ofensa à legislação local. Recurso não-provido” (AC nº 98.035-9, 3ª Câmara Cível do TJMG, Comarca de Juiz de Fora, apelante, Paulo Roberto Cancela; apelado, Município de Juiz de Fora, Exmo. Sr. Des. Rel. Monteiro de Barros). “Nunciação de obra nova. Construção que invade o leito de via pública. Liminar de embargo da obra indeferido em 1º grau, porque o fato já fora objeto de ação perante o Juizado Especial Cível. Naquele feito um vizinho, propôs, sem êxito, ação reclamando estar sendo obstruída a via pública e, por conseqüência, a sua passagem. Constatada obra, sem licença municipal e que avença sobre o leito da via pública, pendente e razoável que a mesma seja embargada. Competência e dever do Município para legislar e fiscalizar a ocupação e utilização do solo urbano (CF, art. 31, VIII). Agravo provido” (Agravo de Instrumento nº 598285658, 19ª Câmara Cível do TJRGS, São José do Norte, Rel. Guinther Spode, agravante, Município de São José do Norte; agravados, Pedro do Amaral e Hermínia do Amaral, 24-11-98). No tocante à alegação do réu de que seria pescador e, portanto, teria 113 direito de residir em área da Marinha, cumpre ressaltar que não há nenhum amparo legal para sua postulação. Ademais, ainda que houvesse, não veio nenhuma prova aos autos de sua efetiva atividade de pescador. Além disso, conforme supra-referido, além de ser área da Marinha, a construção do réu invadiu área pública, sendo descabidas, portanto, suas alegações. Nos termos esposados em epígrafe, o embargo recaiu sobre a reforma que o requerido estava efetuando, a qual era de grande monta, o que se pode verificar pela comparação das fotografias acostadas pelo próprio requerido (fls. 23/25) e aquelas colacionadas pela perita (fls. 53/64). Portanto, despiciendas as alegações do réu, no sentido de que morava no local desde 1989, visto que a nunciação incidiu na reforma. Destarte, o demandado deverá efetuar a retirada da obra nunciada, retornando a sua moradia ao estado anterior. No tocante à postulação do Município pela condenação em perdas e danos, não vislumbro a sua configuração nos presentes autos, razão pela qual deixo de acolhê-la, entretanto, caso haja prova neste sentido, poderá o autor postular em ação própria. Isso posto, julgo parcialmente procedente a ação de nunciação de obra nova ajuizada pelo Município de Palmares do Sul contra Cristiano Gonçalves, tornando definitiva a liminar deferida, condenando o réu na retirada da construção nunciada, a fim de que sua residência retorne ao estado anterior. Comino a pena de multa diária de meio salário mínimo, para o caso de inobservância do preceito. 114 Condeno o réu no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que arbitro em 03URHs, atendendo ao preceituado no art. 20, § 4º, do CPC, cuja exigibilidade fica suspensa, face à concessão do benefício da assistência judiciária gratuita (art. 12 da Lei nº 1.060/50). Deixo de con- SENTENÇAS denar o Município nos ônus sucumbenciais, por decaído de parte mínima de seu pedido (art. 21, parágrafo único, do CPC). Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Palmares do Sul, 13 de junho de 2000. Inajá Martini Bigolin, Juíza de Direito. 115 Processo nº 3.691/911 – Ação Civil Pública Vara Única Autor: Ministério Público Réus: Município de Palmares do Sul e outros Juíza prolatora: Inajá Martini Bigolin Ação civil pública. Concessão de liminar possível juridicamente. Inviolabilidade do direito de opinião e voto dos Vereadores. Ato de improbidade administrativa consubstanciado em prejuízo ao Erário Público. Quebra do princípio da isonomia dos contribuintes. Privilegiamento de empresa privada em detrimento do Poder Público – vantagem imoral e ilegal. Procedência parcial. Vistos, etc. O Ministério Público, com base no Inquérito Civil nº 008/97, ajuizou ação civil pública contra o Município de Palmares do Sul, Ernesto Ortiz Romacho, Domingos Saraiva Azevedo, João Tadeu Vasconcellos da Silva, Eládio Faguaga Torres, Nivalcir Farias Rocha, Roberto Pinto Borges e Sociedade Nacional de Empreendimentos Imobiliários Ltda. – SNEI, todos qualificados na inicial. Os réus supramencionados, na qualidade de Prefeito e Vereadores editaram e aprovaram a Lei nº 503/97, concedendo benefícios à SNEI, em prejuízo ao Erário Público, sendo-lhe reduzido o valor da dívida de IPTU, na época, equivalente a R$ 1.756,456,21, pelo valor correspondente a um prédio pré-moldado de 277,22 m² e 30 lotes localizados em Quintão. A referida lei também concedeu isenção de IPTU à SNEI por 10 anos, a contar de 1994, cessando o benefício, quando os lotes fossem negociados. Requereu, liminarmente, a suspensão da Lei Municipal nº 053/94, podendo o Município lançar em dívida ativa e promover a execução fiscal dos créditos referentes à ré SNEI e a final procedência, bem como a condenação dos agentes públicos ao ressarcimento aos cofres públicos, de forma solidária. A liminar foi deferida (fls. 129/130). Citaram-se os réus, os quais contestaram. Os vereadores, preliminarmente, argüiram a inviolabilidade dos seu votos. No mérito, parte do loteamento não era passível de tributação. Não houve prejuízo efetivo, pois a SNEI até então não havia pago os impostos (fls. 135/142). A SNEI, preliminarmente, questionou a concessão da liminar. Meritoriamente, a área não era urbana e, portanto, não era tributável. Há ação tramitando, pretendendo a anulação de parte do loteamento. Lei posterior concedeu isenção a outros loteadores (fls. 240/254). O Município de Palmares do Sul ratifica as razões da inicial, visto que o imóvel poderia ser tributado, tendo havido prejuízo ao Município (fls. 282/284). O ex-Prefeito contesta ser incabível o pedido de ressarcimento aos cofres públicos, pois, anulada a Lei, o Município poderá cobrar os créditos da empresa loteadora. O legislador somente 116 pode ser responsabilizado em caso de má-fé (fls. 291/295). Realizou-se audiência de conciliação, a qual restou prejudicada, sendo saneado o feito (fl. 349). Na instrução foi colhido o depoimento pessoal dos requeridos, e ouvidas três testemunhas arroladas pelo autor (fls. 359/366). Os debates orais foram substituídos pela entrega de memoriais (fls. 370/377, 378/380 e 381/387). O Ministério Público manifestou-se, ratificando os termos da inicial, postulando a procedência (fls. 388/409). É o relatório. PASSO A DECIDIR I – Das preliminares. 1. Da concessão da liminar. O caput do art. 1º da Lei nº 8.437/92 dispõe: “Art. 1º – Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal” (grifei). O caso dos autos não se enquadra na hipótese da vedação legal. Ademais, o objetivo do texto da lei é a proteção ao bem público. Neste sentido, a concessão da liminar não foi contra o Município, pelo contrário, representou-lhe benefícios, em face da possibilidade da tributação, razão pela qual rejeito a preliminar argüida. 2. Da inviolabilidade dos Vereadores por seus votos a da unidade do Poder Legislativo. A proteção prevista no art. 29, inc. VIII, da CF não se enquadra na questão posta pela presente ação. Nesta seara, a disciplina de Michel Temer, em sua obra “Elementos de Direito Consti- SENTENÇAS tucional”, 14ª ed., p. 129: “A inviolabilidade diz respeito à emissão de opiniões, palavras e votos. Opiniões e palavras que, ditas por qualquer pessoa, podem caracterizar atitude delituosa, mas que assim não se configuram quando pronunciados por parlamentar. Sempre, porém, quando tal pronunciamento se der no exercício do mandato...” Ora, nos presentes autos, não se trata do que foi dito, mas, sim, do teor dos votos, cujas conseqüências trouxeram prejuízos ao Erário do Município de Palmares do Sul. Se assim não fosse, jamais os legisladores poderiam ser responsabilizados por nenhum de seus atos, podendo agir sem observância aos princípios básicos, como o da moralidade e da legalidade. No caso em tela, houve improbidade administrativa, não podendo os Edis acobertarem-se pelo manto da imunidade. No tocante à unidade do Poder Legislativo, através da qual os Vereadores-réus pretendem a responsabilização dos demais Vereadores, que votaram contra o projeto da Lei nº 503/94, igualmente não merece proceder a prefacial. Conforme se pode depreender das atas das sessões legislativas (fls. 30/72), os Vereadores que votaram contra o projeto de lei, não apenas manifestaram a negativa, como a justificaram, através da declaração de voto, ressalvando eventuais responsabilizações. Desta forma, não seria justo responsabilizar aqueles que, além de votarem contra, exigiram que fosse consignada sua negativa. Aceitar o contrário, seria admitir que o representante do Legislativo sempre seria responsabilizado pelos atos da Casa. SENTENÇAS A este respeito, o Vereador Ney Cardoso Azevedo Filho, ouvido como testemunha, declarou que “nesse caso específico, procedeu à declaração de voto, por ser um assunto delicado, e poderia haver repercussão futura, pois a questão dizia respeito a valores, e o Município poderia sofrer grandes prejuízos. Apesar de a Câmara aprovar, quis resguardar seu posicionamento em contrário (...) A Câmara responde por seus atos, mas não tem personalidade jurídica, e a declaração de voto é exatamente para resguardar os Vereadores que não votaram favoravelmente à aprovação. Esclarece que os atos administrativos são respondidos pelo Presidente da Câmara; os atos de Plenário pelos Vereadores, reiterando a questão da declaração de voto” (fl. 365 e 365v.). Pelas razões acima expostas, rejeito as prefaciais levantadas pelos Vereadores, passando à análise do mérito. II. Do mérito. A presente demanda merece proceder. O exame dos autos confirma os atos de improbidade administrativa praticados pelos membros do Legislativo e do Executivo, bem como resta indiscutível o prejuízo experimentado pelo Erário do Município de Palmares do Sul. O ajuizamento da ação civil pública em tela visa à declaração de nulidade da Lei Municipal nº 503/94, cujo teor assim dispôs: “Art. 1º – Fica o Poder Executivo Municipal autorizado a receber em dação, como pagamento da dívida ativa de IPTU, da Sociedade Nacional de Empreendimentos Imobiliários Ltda., um prédio de 277,22 m², pré-moldado, colocado em área da Prefeitura Municipal, situada na Av. Luiz 117 Silveira, na sede do Município. Parágrafo único – O prédio acima referido, de dois pavimentos, planta anexa, servirá para a instalação das entidades assistênciais da Cruz Vermelha de Palmares do Sul, Pasmental e Conselho Tutelar. “Art. 2º – O valor da dívida ativa é de R$ 1.756.456,21, provenientes de lotes localizados no Distrito do Quintão, cujo loteamento foi aprovado com base na Lei Municipal nº 250/53 do Município de Osório e sob a égide do Decreto-Lei nº 58, de 10-03-37. Parágrafo único – O valor da dívida ativa será reduzido ao valor do objeto da dação, como forma de permitir a regularização do pagamento. Ficando, assim, extinto todo e qualquer débito até o exercício de 1993, gerando para a SNEI os efeitos da quitação dos impostos devidos (IPTU). “Art. 3º – Ficam isentos do Imposto Territorial os imóveis da SNEI situados no Distrito de Quintão, pelo prazo de 10 anos, a partir de 1994, cessando a isenção, quando imóvel for objeto de compra e venda (...) Art. 6º – Fica a SNEI comprometida a ceder 30 lotes, na quadra H, à Prefeitura Municipal de Palmares do Sul em dação de pagamento”. O prédio pré-moldado e os terrenos, dados em pagamento, foram avaliados, posteriormente, pelo Fisco Municipal, respectivamente, em R$ 118.519,87 e R$ 408,00 cada, totalizando os 30 lotes em R$ 12.240 (fl. 154). Destarte, a rápida apreciação da lei, cuja declaração de nulidade se pretende, já demonstra que foram flagrantes a imoralidade e a ilegalidade praticadas pelos réus. É injustificável o benefício concedido à SNEI. O argumento utilizado foi 118 o de que os lotes, cuja isenção e quitação se recebeu, não poderiam ser tributados, em face da sua localização e ausência de urbanização, conforme mapa da fl. 354. A este respeito, cumpre ressaltar que a responsabilidade pela urbanização era da própria loteadora SNEI, não podendo esta utilizar-se da sua omissão para auferir benefícios fiscais. Ademais, a SNEI possuía lotes em área já urbanizada, ainda que em menor número, os quais, também, ficaram isentos da tributação. Enquanto isso, os demais moradores de Quintão, independentemente da localização e urbanização de seus lotes, eram obrigados a pagar o IPTU, ou, então, a sofrer as execuções fiscais. Mas o absurdo não pára por aí. Ao adquirirem os lotes da SNEI, após a vigência da Lei nº 503/94, os novos proprietários não procediam à transferência. Desta forma, os adquirentes do lotes da SNEI continuavam sem pagar os impostos, conforme declarou a testemunha Aroldo Leote Rocha: “Pelo que se sabe, a SNEI continua comercializando lotes. Na semana passada, conversou com Paim, corretor de imóveis, que informou estar comercializando lotes da SNEI (...) Há escritório da SNEI para a venda de lotes em Quintão, o qual está aberto (...) A denúncia feita ao Ministério Público foi para trancar a isenção dos impostos, foi uma representação da comunidade que reclamava. Procurou o Ministério Público, o qual informou que era necessária a configuração dos fatos, os denunciantes foram então até a Prefeitura, na qual verificaram que havia duas filas: uma para os isentos da SNEI, e outra para os pagantes de impostos. SENTENÇAS Quem era isento recebia um carimbo, em contrapartida, naquele período, houve uma avalanche de executivos fiscais (...)” (fl. 365 e 365v.) A diferença de tratamento aos contribuintes foi notória. Ademais, absurdo conceder a isenção e a quitação para uma loteadora, cujo poder econômico permite o pagamento, tanto assim o é, que a SNEI continua a comercializar os lotes, conforme declarações supra. Se os lotes não são urbanizáveis e tributáveis, deveriam assim ter sido declarados e, portanto, também não poderia a SNEI comercializá-los, contrariamente ao que pretende a loteadora, que continua a comercializá-los sem o pagamento dos impostos respectivos e sem o cumprimento da urbanização que lhe incumbe. O problema gerado pelos loteadores é de cunho nacional, sendo vergonhosas as falcatruas cometidas, sem que haja a devida fiscalização, sendo, por vezes, lesadas centenas de famílias, que utilizam todo o dinheiro que conquistaram pelo seu trabalho de uma vida toda para a aquisição de um lote. No caso de Quintão, o problema dos loteamentos é ainda mais expressivo, considerando-se tratar do maior loteamento do Brasil, sendo necessário que haja um retorno para a população e a punição dos responsáveis, não sendo justo que o pequeno contribuinte pague pelas falcatruas do grande, que se omite. A afirmação dos réus de que a SNEI nunca procedeu ao pagamento dos impostos e que, portanto, não teria havido prejuízo concreto ao Município, bem como a impossibilidade de pagar o montante alcançado, é absurda. Se a SENTENÇAS SNEI nunca pagou, deverá sofrer execuções fiscais, para que pague. Se não pagar, deverá ter seus bens penhorados, não apenas os de Quintão, mas os que certamente existem em outras comarcas e em outros empreendimentos, a fim de responder pela sua obrigação fiscal. Como bem asseverou o ilustre agente ministerial, se os lotes em questão não fossem tributáveis, a SNEI sequer deveria aceitar a dação em pagamento, pois estaria entregando 01 prédio e 30 terrenos, gratuitamente. Além disso, para que não houvesse a tributação, seria necessário que os lotes fossem declarados não-tributáveis, e não como aconteceu no caso em tela, em que os valores foram constituídos em dívida ativa, no montante de R$ 1.756.456,21, sendo quitados por menos de R$ 150.000,00. Os Vereadores agiram irresponsavelmente ao aprovarem a referida lei. Inclusive, a própria Comissão de Justiça e Redação havia dado parecer contrário à aprovação da lei, bem como houve sucessivas discussões a respeito. Conforme dito pelo Ministério Público, poder-se-ia, até mesmo, vislumbrar, além da culpa gravíssima, uma conduta dolosa por parte dos Vereadores e Prefeito da época, que dispuseram de receita pública, sem qualquer consciência de moralidade e legalidade, ignorando os princípios básicos da administração pública. Verifica-se esta ausência de bom-senso pelas palavras do Presidente da Câmara de Vereadores da época, Domingos Saraiva Azevedo, o qual, repetindo a frase que proferiu quando da 119 votação, declarou: “Voto, sim, porque com o meu voto estarei beneficiando as pessoas mais carentes do nosso Município” (fl. 362). É difícil acreditar que um representante do povo, ao beneficiar uma grande empresa, isentando-lhe do pagamento de mais de um milhão e meio, possa estar pensando no bem-estar da população carente. No mínimo, trata-se de hipocrisia. O prédio dado em pagamento, irrefutavelmente, está sendo utilizado para trabalhos sociais, sendo a sede do Conselho Tutelar, entre outros. Entretanto, se não fosse esta sede, deveria o Município providenciar em outro local, de maneira que estes serviços não ficariam desabrigados. O fato de outras loteadoras terem recebido isenção fiscal, cuja extensão é desconhecida na presente demanda, igualmente, não justifica a imoralidade evidenciada pelo ato dos Vereadores e Prefeito da época. Ademais, nos termos referidos pelo Ministério Público, nada impediria a SNEI de receber os mesmos benefícios genéricos conferidos às demais loteadores, desde que fossem legais. Efetivamente, não houve prova nos autos, no sentido de que o Prefeito e os Vereadores réus houvessem auferido benefícios econômicos ou de outra espécie, em face da aprovação da Lei nº 504/94. Entretanto, para a configuração do ato de improbidade administrativa, não é necessário que haja dolo, nem que sejam auferidos ganhos de qualquer gênero. Nesta seara, o art. 10, da Lei nº 9.492/ 92: “Art. 10 – Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao 120 Erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (...); VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie”. A conduta culposa dos Vereadores e do Prefeito da época é notória, agindo imprudentemente em face da receita pública, impedindo o Município de Palmares do Sul de auferir os impostos que lhe eram devidos, razão pela qual merecem responder pelos seus atos. Diversamente do postulado pelo Ministério Público, em sede de petição inicial, os imóveis dados em pagamento pela SNEI ao Município de Palmares do Sul devem permanecer com este, representando um abatimento do valor total devido. Esses bens foram posteriormente avaliados, e, portanto, o valor da avaliação deverá ser abatido do total devido a título de impostos, executando-se o restante. Saliente-se, por outro turno, nos termos da promoção ministerial, se o Município de Palmares do Sul entender como indevidos os impostos, poderá revê-los, até mesmo de ofício, lançando-os corretamente, através de certidões de dívida ativa. A forma como foi conduzida a isenção é maculada, pois os Edis não se preocuparam sequer em avaliar os bens que estavam recebendo em dação, bem como não esclareceram o valor exato dos débitos fiscais. Destarte, houve ilegalidade e imoralidade no ato dos Vereadores e do Pre- SENTENÇAS feito, ora demandados, bem como restou caracterizada a prática de ato de improbidade administrativa. A responsabilização dos Vereadores e do Prefeito da época será de cunho econômico, de sorte que deverão responder, solidariamente, pelo prejuízo econômico experimentado pelo Erário Público de Palmares do Sul, o qual deverá ser quantificado em ação própria. Saliente-se, por outro turno, que o despacho que concedeu a liminar (fl. 129) determinou a suspensão do curso prescricional dos débitos fiscais, de sorte que o Município de Palmares do Sul poderá e deverá executar o IPTU que entender devido, desde que constituído em dívida ativa, com relação à SNEI. Ante o exposto, julgo parcialmente procedente a presente ação civil pública: a) declarando a nulidade da Lei Municipal nº 503/94, tornando definitiva a liminar concedida, bem como declarando a conseqüente vigência dos créditos fiscais não-prescritos, abatendo-se o valor correspondente aos imóveis recebidos em dação em pagamento; b) condenando os réus Ernesto Ortiz Romacho, Domingos Saraiva Azevedo, João Tadeu Vasconcellos da Silva, Eládio Faguaga Torres, Nivalcir Farias Rocha e Roberto Pinto Borges, de forma solidária, ao ressarcimento aos cofres públicos, do prejuízo experimentado pelo Erário Público, a ser apurado em demanda própria; e c) condenando os réus no pagamento das custas processuais, igualmente de forma solidária. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Palmares do Sul, 17 de dezembro de 1999. Inajá Martini Bigolin, Juíza de Direito. 121 Processo nº 0800199927 – Separação Judicial 1ª Vara de Família Autora: E. K. L. Réu: L. A. F. L. Juiz prolator: João Ricardo dos Santos Costa Separação judicial. Desnecessidade de definir a culpa pelo término do casamento. Princípio da ruptura. Dignidade da pessoa humana. Art. 226, § 8º, da CF. Alimentos. Guarda dos filhos. Procedência parcial. Vistos, etc. E. K. L. ingressou com a presente ação de separação judicial contra L. A. F. L., ambos qualificados na inicial, mencionando que casou com o réu em 1980, pelo regime da comunhão parcial de bens. Tiveram dois filhos e aquinhoaram somente os bens móveis que guarnecem a residência do casal, um automóvel e dois telefones. Sustenta que o réu foi o responsável pela ruptura da vida em comum, em função de ter saído de casa e constituído outra família. Refere que trabalha como balconista, e o réu é representante comercial com empresa estabelecida, portanto, necessita de alimentos. Pede a separação judicial, com a partilha de bens que arrolou, e alimentos em 05 salários mínimos, sendo que 01 salário mínimo para a autora e 04 para os filhos. Juntou mandato e documentos da fl. 07 à 14. Fixados alimentos provisórios em 05 salários mínimos, foi o réu citado, apresentando contestação e reconvenção. Pede a reformulação do encargo ali- mentar, propondo a exoneração em relação à autora e o pensionamento dos filhos em 02 salários mínimos, sustentando que, após a separação, houve uma redução em suas condições financeiras. Aduz que existe uma residência a partilhar, construída com recursos do réureconvinte, e uma edificação nos fundos do imóvel que poderia ser alugada pela autora-reconvinda para ajudar no sustento dos filhos. Atribui à parte autora-reconvinda a culpa da separação, alegando que esta lhe colocou para fora de casa. Pede a improcedência da ação e procedência da reconvenção. Juntou documentos e mandato das fls. 32/58 e 64/66. Houve réplica às fls. 68/72, com a juntada de documentos das fls. 73/91. Contestando a reconvenção, a autorareconvinda refere que a culpa da ruptura da vida em comum foi do réureconvinte, em função de ter praticado adultério. Em réplica à reconvenção, manifestou-se o varão às fls. 102/108, juntando documentos das fls. 109/122. Em audiência, inexitosa a conciliação, foram tomados depoimentos de testemunhas. Vieram documentos bancários do réu-reconvinte às fls. 155/231. Substituídos os debates por memoriais, as partes ratificaram suas anteriores manifestações (fls. 238/242). 122 O Ministério Público propugnou pela procedência parcial da ação, com fixação alimentar somente para os filhos em 04 salários mínimos, não incluindo a residência na partilha de bens e não declarando culpa pelo fim do casamento. A sentença das fls. 253/258 julgou parcialmente procedente a ação e improcedente a reconvenção, decretando a separação judicial do casal, condenando o varão a pagar alimentos em 04 salários mínimos somente aos filhos, determinando a partilha dos bens descritos na inicial. A decisão também analisou os pedidos das partes postulando a declaração de culpa pela falência da união, firmando entendimento de que não cabe ao Estado definir culpa pelo termo do casamento. Houve apelação por parte do varão, sendo a sentença desconstituída, com o acolhimento do parecer do representante do Ministério Público que atua no Órgão Colegiado, que propugnou no sentido de a decisão ter sido divorciada dos autos, em virtude de não ter definido a culpa pela falência do casamento. É o relatório. DECIDO A desconstituição da sentença no presente processo estabeleceu uma situação singular a este magistrado. Como se pode observar, o fundamento da decisão anulatória exarada pela Egrégia Câmara recursal foi no sentido de que este decisor não teria analisado o pedido formulado pelas partes ao não definir a culpa pelo fim do casamento. Com a devida vênia, tal pedido foi claramente analisado do primeiro ao SENTENÇAS sétimo parágrafo da fundamentação do ato sentencial (fls. 255/256), porém aplicou-se hermenêutica no sentido de não caber ao Estado definir culpa pelo término do casamento. Tenho, desta forma, que a questão teve enfrentamento, e a jurisdição foi prestada em relação à lide posta pelas partes. A situação singular, antes referida, está no fato de que, firmado entendimento da não-apreciação do pedido atinente à culpa, obrigatoriamente este magistrado seria direcionado, via exegese imposta, a decidir conforme entendimento que não é seu, violando-se, dessa forma, a independência judicial, que é suposto constitucional do estado democrático de direito. Segundo Fábio Konder Comparato: “O magistrado deve submeter-se unicamente à lei e à sua consciência. É isto que garante ao jurisdicionado a impessoalidade de julgamento, sem a qual não se faz justiça”. (in “Cidadania e Justiça”, “Revista da AMB” nº 04, pp. 89/93, ano 02) A independência judicial talvez não tenha logrado tanta defesa como recebeu de Rui Barbosa, também citado no parecer ministerial (fl. 288), senão vejamos: “Quem quer que saiba, ao menos em confuso, destas coisas, não ignorará que todos os Juízes deste mundo gozam, como Juízes, pela natureza essencial às suas funções, do benefício de não poderem incorrer em responsabilidade pela inteligência que derem às leis de que são aplicadores”. (“Obras Completas”, vol. XLI/234, tomo IV) O acolhimento da tese de que a sentença não apreciou por completo a causa petendi implicaria necessariamente SENTENÇAS definir outro entendimento à questão da culpa. Na espécie, quatro destinos interpretativos poderiam ser deduzidos do contexto probatório: culpa da virago, culpa do varão, culpa de ambos ou culpa de ninguém. Todos os quatro entendimentos colidem frontalmente com a fundamentação da sentença. Qualquer deles adotado, objetivando suprir a nulidade apontada pelo juízo ad quem, vulneraria a independência judicial, firmando, aí sim, nulidade insanável, inclusive pela quebra do duplo grau de jurisdição, já que a decisão atenderia determinação do 2º grau. Não vislumbro outra solução que não a reedição da decisão anulada, o que não significa, de forma alguma, atribuir qualquer ilação negativa ao juízo recursal que anulou a sentença. Ao contrário, a presente decisão somente reforça o credo deste Juiz na pluralidade e vigor do Judiciário Gaúcho, em especial ao seu Tribunal de Justiça, que é vanguarda brasileira tanto no âmbito jurisdicional como administrativo. Talvez a sentença desconstituída não tenha explicitado o suficiente, em sua fundamentação, os argumentos jurídicos para sustentar o entendimento externado, pelo que tenho como cabível a extensão dos debates. Sinalo que o entendimento de não atribuir culpa nas separações de casais já vem sendo adotado por este juízo, o que, em momento algum, implicou indeferimento de provas requeridas pelas partes visando a demonstrar a ação culposa do contendor, até em função de a matéria ser, de certa forma, inédita no debate jurídico, apesar de já ter sido sustentada com maestria pela Desª Maria 123 Berenice Dias em decisão similar (Apelação Cível nº 70000507434, da 7ª Câmara Cível do TJRGS). Como referido na sentença, a dinâmica humana exige dos operadores do Direito uma abordagem multifacetária para solução de litígios, em especial os que envolvem relações afetivas, como o Direito de Família. O Código Civil é do início do século XX, porém foi debatido e construído no século XIX, sofrendo, portanto, toda a influência do conservadorismo e preconceitos da época. A presença da Igreja foi contundente na imposição de um modelo de família, moldurada por uma moralidade baseada na culpa e sentimentos maniqueístas. Exemplificando: o adultério, conhecido como o delito do amor, por muitas vezes foi utilizado para estigmatizar um cônjuge e vitimizar outro, destruindo relações afetivas, inclusive com a prole. Tirante a vergonhosa exceção da legislação casuística da era Vargas, a dissolução do casamento somente foi admitida em 1977, com a Lei do Divórcio. Antes existia somente o desquite, que era uma forma de regular situações onde não mais havia relação conjugal. “Trata-se de instituto que surgiu no Direito Canônico para liberar dos deveres de coabitação pessoas cuja convivência se tenha tornado muito difícil, sem que, porém, se reconheça a qualquer delas o direito a novas núpcias.” (José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, in “Direito de Família (Direito Matrimonial)”, Sérgio Antônio Fabris Editor, p. 452) Também na concepção histórica do divórcio, observou-se o envolvimento 124 de duas opções de ruptura da sociedade conjugal, baseadas no princípio da culpa e no princípio da ruptura. Nos primórdios do instituto do divórcio, este surge como sanção a uma conduta censurável de um dos cônjuges, e não era considerado o princípio da ruptura à concessão do divórcio. Assim, para lograr-se a extinção do matrimônio, mister a existência de uma vítima e de um culpado. A doutrinária acabou por reconhecer o princípio da ruptura, amenizando o instituto. A evolução do pensamento jurídico é bem situado historicamente por Corrêa Oliveira e Ferreira Muniz: “O princípio da culpa encontra seu terreno de eleição no Direito francês anterior à reforma. As causas de divórcio consistiam todas em comportamentos culposos, violadores de deveres conjugais, considerados merecedores de censura éticosocial: o adultério, a condenação à pena aflitiva e infamante, excessos, sevícias e injúrias. A inexistência do divórcio por mútuo consentimento enfatiza o caráter sancionador do sistema. “Neste sistema, porém, tão radicalmente inspirado no princípio da culpa, a jurisprudência e doutrina introduzem, gradativamente, aquilo que foi chamado de ‘deslizar’ prático do divórcio-sanção, previsto pelo Código, ao divórciofalência, que se impôs aos Juízes: ‘as culpas conjugais só são tomadas em consideração pelos Tribunais como sintomas ou pretextos de um estado permanente de desunião’. “Essa evolução encontra consagração legislativa no acréscimo introduzido por lei de 02-04-41, que exigiu, para que os fatos culposos constituíssem causa SENTENÇAS de divórcio, configurassem eles ‘uma violação grave dos deveres e obrigações resultantes do casamento’, e ainda que tais fatos tornassem ‘intolerável a manutenção da vida conjugal’. Este último requisito evoca claramente a idéia de fracasso matrimonial”. (obra citada, p. 450) Como visto, a tendência doutrinária é no sentido de, aos poucos, abandonar a aplicação do princípio da culpa como afirmam os autores referidos: “O princípio da culpa não tem mais, por isso, a sua antiga força de convencimento, sendo matéria extremamente difícil a da determinação do verdadeiro culpado: o jurista aberto aos processos realizados em matéria de psicologia do casal não consegue mais, em boa consciência, afirmar que o esposo condenado ao divórcio seja verdadeiramente o culpado da dissolução do vínculo” (p. 451). No século XXI, a demanda social exige de todos os segmentos da sociedade uma adaptação à diversidade da vida, notadamente a ser refletida nas decisões judiciais. As respostas do Judiciário devem, inexoravelmente, considerar aspectos comportamentais como inerentes à condição humana e não punir com a espada da culpa condutas que visam à busca da felicidade. Em não existindo mais amor entre duas pessoas, é legítima a busca de outro relacionamento, sem que essa conduta implique punição àquele que deixou de amar. O ato de amar não é um ato deliberado, planejado ou calculado. Deixar de amar a esposa ou o marido também não é decorrência de uma elaboração maquiavélica. Assim fosse, mais fácil e lógico seria planejar um idílio eterno SENTENÇAS com a mãe ou o pai de nossos filhos, garantindo a eles uma composição familiar ideal. Como dito, a imputação de culpa a condutas que influenciam no contexto familiar é procedimento que deve ser superado, e com urgência. Não pela “modernidade” ou pelo mero proselitismo “de cunho sociológico” (fl. 287), mas porque afeta a dignidade das pessoas, e isso é lei constitucional, figurando no art. 1º, III, da Carta Magna, como um dos fundamentos da República. “A dignidade da pessoa humana”, garantida na Constituição, deve atender um conceito mais amplo possível, como bem acentua José Afonso da Silva: “Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional, e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa de direitos pessoais tradicionais...” (in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, RT, 7ª ed., p. 93) Desta forma, tratando-se de princípio fundamental de norma constitucional, sua efetividade jurídica depende de uma postura jurisdicional que a ela dê validade e, principalmente, eficácia. Por certo, essa efetividade implica redimensionar a hermenêutica tradicional, máxime quando a norma constitucional se antepõe à legislação ordinária anacrônica. É bem o caso em tela. Não se trata de revogar dispositivos legais, mas 125 adequá-los à nova realidade constitucional, tarefa inarredável dos operadores do Direito. Mauro Capelletti, em referência oportuna, teoriza: “E, na verdade, o intérprete é chamado a dar vida nova a um texto que por si mesmo é morto, mero símbolo do ato de vida de outra pessoa. Com particular referência à interpretação judiciária dos precedentes (ou seja, case law), Lord Radeliffe, um dos mais influentes Juízes ingleses do nosso século, escreveu que o Juiz pode-se empenhar na mais estrita adesão ao princípio de respeitar rigorosamente os precedentes, bem pode concluir toda tarde sua própria jornada de trabalho na convicção de nada haver dito nem decidido senão em perfeita concordância com o que os seus predecessores disseram ou decidiram antes dele. “Mas ainda assim, quando repete as mesmas palavras de seus predecessores, assumem elas na sua boca significado materialmente diverso, pelo simples fato de que o homem do século XX não tem o poder de falar com o mesmo tom e inflexão do homem dos séculos XVII, XVIII ou XIX. O contexto é diverso; a situação referencial é diversa; e seja qual for a intenção do Juiz, as sacras palavras da autoridade se tornam, quando repetidas na sua linguagem, moedas de nova cunhagem. Neste sentido limitado, bem se pode dizer que o tempo usa a nós todos como instrumentos de inovação. “Quase necessário notar que essa profunda verdade não se aplica apenas à interpretação dos precedentes: também é válida para interpretação da lei (ou seja, da statutory law). De modo 126 mais geral, aplica-se a todo tipo de interpretação que tenha por objeto a linguagem e as palavras. E o poder inovativo do tempo bem pode operar com tal rapidez, que não aguarde a passagem dos séculos para se manifestar”. (in “Juízes Legisladores?”, Sérgio Antônio Fabris Editor, pp. 23/24) Outra linha constitucional que não se pode ignorar é a do art. 226, caput, da CF, concedendo à família a condição de entidade com “especial proteção” do Estado, cabendo definir como ocorre a denominada “especial proteção”. Essa definição, no âmbito do Poder Judiciário, cabe ao Juiz fazer. Concretamente, a aplicação indiscriminada do princípio da culpa como regulação de questões familiares é forte componente de ineficácia constitucional, porque fere o princípio da dignidade humana e afasta o Estado de seu compromisso de dar especial proteção à família. Os arts. 231 e 232 do CC literalmente estabelecem deveres do casamento que são formalmente garantidos pelo princípio da culpa. No mesmo sentido, os arts. 18 e 19 da Lei do Divórcio impõem sanções aos cônjuges culpados pela ruptura da vida em comum. Analisando tais dispositivos à luz do modelo constitucional, verte a impossibilidade de atribuição de culpa pela falência do amor, em função da falta de razoabilidade de exigir-se do ser humano conduta humanamente impossível, como viver (marido e mulher) com uma pessoa, amando outra. Indaga-se, ainda, onde fica a proteção especial do Estado, quando uma sentença sacramenta o homem ou a mulher como SENTENÇAS culpados pela separação, considerando a situação da prole? Como seria possível construir uma nova realidade familiar entre filhos e pais separados quando existe uma manifestação estatal, via sentença judicial, imputando culpa de genitor? Como pode o Estado, diante da realidade constitucional que passou a vigorar em 1988, pretender compelir comportamentos e sentimentos aos membros da família, transformando-a em entidade opressiva e limitadora da condição humana? Seria esta a “especial proteção” contida no art. 226 antes citado? Que benefício uma declaração judicial de culpa traria à auto-estima dos cônjuges após a falência de um casamento, tanto para aquele que supostamente teria dado causa ou àquele definido como vítima? Uma decisão judicial definindo culpado e vítima pela dissolução do casamento não estaria impondo violência no âmbito das relações da família rompida, em flagrante desacordo com o § 8º do art. 226 da CF? Ou será que após o término do casamento se tornam os vínculos irrelevantes para o Estado? Estou que não se pode aplicar os dispositivos infraconstitucionais antes citados sem o paradigma constitucional. Nesse aspecto reside o grande compromisso do Poder Judiciário. De outra sorte, não vislumbro qualquer necessidade de fundamentar na culpa uma separação judicial como forma de aplicar encargos ao cônjuge culpado ou benefícios ao inocente. No caso da imposição de obrigação alimentar, existem outros parâmetros, como a possibilidade e necessidade, dando SENTENÇAS manutenção ao dever da mútua assistência, que não fica revogado pela interpretação constitucional. Aliás, muito mais justo e construtivo que o dever da mútua assistência seja analisado pela história conjugal do casal, minuciando o papel de cada cônjuge durante o casamento, no que diz à construção da unidade familiar. Enfatizando-se a investigação probatória nesses aspectos, repelir-se-ia a lamentável busca de um culpado. Também no caso do art. 10 da Lei do Divórcio, que define a guarda dos filhos ao cônjuge inocente na separação, está totalmente revogado pela preponderância do interesse dos filhos, insculpido no art. 227 da CF e ratificado no Estatuto da Criança e do Adolescente. O derradeiro fundamento, para demonstrar a necessidade da aplicação do princípio da dignidade, na sua mais ampla forma de expressão, está na inadequação de regularem-se condutas no âmbito familiar, com sanções aos que deram causa às rupturas. Fomentar a construção de uma premissa de que as pessoas devam ser boas para não serem punidas, ou para não se sentirem culpadas, supõe forte antagonismo à lógica de que a bondade deva necessariamente ser fundada no respeito desinteressado a qualquer ser humano, mormente se este faz parte da mesma entidade familiar. Desta forma, estou que outra não poderia ser a hermenêutica dada ao caso em tela. No restante da matéria, mantendo-se a decisão anulada, passo a reeditar os fundamentos da sentença. A guarda dos filhos não foi objeto do litígio, devendo persistir com a mãe. Os alimentos, como 127 bem referiu o Parquet, devem ser fixados somente aos filhos. A parte-autora sempre exerceu atividade remunerada, não havendo comprovação de seus ganhos, impedindo a apuração do distanciamento entre a remuneração das partes litigantes. Tratando-se de pessoa já inserida no mercado de trabalho, e não havendo indicativo de que esteja impossibilitada de exercer atividade remunerada, descabida sua pretensão. Não interessa aqui se a autora-reconvinda é proprietária da loja existente no imóvel onde reside, fato inclusive que não restou bem apurado no processo. Relevante, outrossim, é que exerce atividade remunerada, seja como dona do estabelecimento, seja como empregada de sua genitora. Aos filhos, contrariamente, deve o réu-reconvinte alcançar pensão. O valor, na mesma esteira ministerial, deverá ficar em 04 salários mínimos. Sua movimentação bancária, trazida aos autos pelos documentos das fls. 156/231, demonstra que o genitor tem condições de alcançar a quantia postulada. Os bens a serem partilhados deverão ser arrolados na inicial, não incluindo o imóvel e as cotas da empresa do réu. Destas, a autora-reconvinda abriu mão quando se manifestou em memoriais. O imóvel documentalmente pertence à genitora da autora-reconvinda. O réu-reconvinte não logrou comprovar sua contribuição para a construção da residência. Trouxe as testemunhas J. V. e D. B., porém não acostou comprovantes de pagamentos de compra de material de construção ou contratação de mão-de-obra. A prova oral acostada é por 128 demais frágil para retirar a presunção de que a propriedade pertença à genitora da autora-reconvinda, certo de que o terreno em seu nome está titulado. Insubsistente a argumentação do réu-reconvinte, buscando enquadrar a autora-reconvinda como litigante de máfé, pelo simples fato de ter atribuído ao marido a culpa pelo fim da união. A postulação não se enquadra nos dispositivos do art. 17 do CPC. Diante do exposto, julgo parcialmente procedente a ação e improcedente a reconvenção para decretar a separação judicial do casal, condenando o réu-reconvinte a pagar alimentos somente aos filhos, em 04 salários mínimos mensais, mediante depósitos na conta da genitora, até o dia 05 de cada mês. A partilha dos bens engloba os descritos na inicial, ou seja, o automóvel, os móveis que guarneciam a residência do casal, os telefones, excluindo-se o imóvel e as cotas da empresa do varão. SENTENÇAS Em face da parcial procedência, as custas processuais ficam fixadas em 2/ 3 para o réu-reconvinte e 1/3 para a autora-reconvinda. Os honorários arbitro em 05 URHs para o procurador do réu-reconvinte e 10 URHs para o mandatário da autora-reconvinda, levando em conta a solução do litígio e o trabalho despendido pelos procuradores. Suspendo a execução da sucumbência em face da assistência judiciária gratuita deferida à parte autora-reconvinda e postulada na contestação pelo réu-reconvinte, que vai deferida neste ato. Registre-se. Intimem-se. Decorrido o prazo sem recurso, remeta-se ao Tribunal de Justiça, porque o apelo das fls. 261/263 deverá ser válido para a presente decisão, em virtude de não ter alterado a decisão desconstituída. Canoas, 20 de novembro de 2000. João Ricardo dos Santos Costa, Juiz de Direito. 129 Processo nº 01297001552 – Ação Declaratória de União Estável Cumulada com Partilha de Bens 2ª Vara de Família e Sucessões Vara nº 064477 Autor: O. S. Ré: I. P. S. Juiz prolator: Jorge André Pereira Gailhard Reconhecimento da existência de união estável. Requisitos inexistentes. Ação julgada improcedente. Vistos, etc. O. S., brasileiro, divorciado, pecuarista, residente na E. J. C., P. M., G./ RS, ajuizou a presente ação declaratória de união estável cumulada com partilha de bens contra I. P. S., brasileira, viúva, empresária, residente na Av. I., nesta Capital. Narra a inicial que autor e ré conheceram-se no final do ano de 1988, e a partir de dezembro de 1989 mantiveram relacionamento ininterrupto por quase 06 anos. Tratava-se de uma união estável, pública e notória, com intuito de formação de família. Todavia, por questões de foro íntimo do casal, ocorreu a separação durante o mês de julho de 1995. Afirma que a relação do autor e da ré sempre foi do conhecimento das respectivas famílias, dos amigos, da sociedade porto-alegrense, de políticos do Estado, dos empregados das residências e das empresas. O casal participava de várias atividades sociais, o que era noticiado em colunas sociais de jornais. Alega que a união revestiu-se de continuidade e publicidade, comparti- lhando-se os sentimentos e a colaboração para aumentar o patrimônio. O casal realizou várias viagens, a passeio e a negócios, inclusive para o exterior, hospedando-se em casas de amigos ou em hotéis. A relação do autor e da ré era de marido e mulher, com respeito e fidelidade recíprocos. Salienta que o autor e a ré fizeram questão de viajar até o interior de São Paulo, para informar à família do autor a união. O autor freqüentava a residência dos filhos da ré e os acompanhava em homenagens e nas entregas de prêmios com os quais eram freqüentemente agraciados. Nos finais de semana, sempre que possível, o casal permanecia no sítio de G./RS. Ressalta que a correspondência profissional e particular do autor era endereçada à residência de Porto Alegre. Destaca que o autor e a ré tratavam com freqüência sobre os assuntos ligados ao patrimônio do casal, apesar da existência de vários administradores, em razão da diversidade dos ramos das empresas. O patrimônio era comum, tanto que o autor utilizava os veículos da ré ou os veículos das empresas. Refere que o casal sempre fez planos para o futuro, dando continuidade ao relacionamento, até que, por mútua vontade, resolveram romper. 130 O patrimônio comum continuou sendo administrado pela ré, com a promessa de ser partilhado. Acordou o casal que a ré continuaria a alcançar ao autor as quantias que lhe fossem pedidas. Esclarece que durante a união foi adquirido considerável patrimônio, com o esforço comum, apesar de a maioria dos bens estar em nome da ré. Por tal motivo, mesmo após a separação, a ré alcançava ao autor as quantias por ele pedidas, o que deixou de ocorrer por questões desconhecidas do autor, havendo suspeitas de que a ré estaria transferindo patrimônio para o nome de terceiros. Menciona os nomes das várias pessoas e personalidades políticas que tomaram ciência do relacionamento do casal. Diz que todos os requisitos da união estável, previstos na Lei nº 9.278/ 96, estão presentes na relação em tela. Existia coabitação, estabilidade, publicidade, fidelidade, finalidade e affectio societatis. Aduz que o autor sempre foi bem aceito pela família da ré. Porém, no ano de 1992, foi obrigado, sob violenta coação moral, a assinar para os advogados dos filhos de I. uma carta que lhe foi ditada, referindo que não tinha interesse no patrimônio da ré. Caso o autor não assinasse a carta, os filhos da ré “proibiriam” a continuidade do relacionamento. Tal fato ocorreu no prédio sede da empresa da família da ré. Descreve os bens móveis, imóveis, valores bancários, empresas, direitos e ações que foram adquiridos na constância do relacionamento, os quais pretende ver partilhados. Pediu a procedência da ação, com a declaração da existência da união estável, bem como a partilha SENTENÇAS dos bens, além das cominações legais. A inicial veio instruída com os documentos das fls. 31/165. Citada, a ré contestou (fls. 176/193). Em preliminar, diz a contestação que a inicial é inepta, por não satisfazer os requisitos do art. 282 do CPC. O autor nunca concorreu para a aquisição dos bens, havendo impossibilidade jurídica do pedido. A alegada união estável nunca existiu, não encontrando respaldo nos fatos e no Direito. O relacionamento se restringiu ao plano afetivo, sem nenhuma conotação de origem patrimonial. Afirma que a ré nunca deixou de residir na Av. I., ponto referencial da família S. O autor nunca foi admitido residir ali, não tendo nenhum valor jurídico a existência de correspondência dirigida ao mesmo naquele endereço. Muito menos, a ré transferiu a sua residência para o sítio de G., embora, no curso deste relacionamento, por vezes lá permanecesse nos finais de semana. O autor não pode se socorrer da Lei nº 9.278/96, que regulamentou o art. 226, § 3º, da CF, pois o relacionamento cessou antes da edição da referida norma legal. Ademais, o art. 258, II, do CC torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens, pois a ré já contava mais de 50 anos de idade ao iniciar a relação afetiva com o autor. Assim, o eventual reconhecimento da união estável implicaria a impossibilidade da partilha dos bens. Por fim, em se admitindo a incidência da Lei nº 9.278/96, mesmo assim seria inviável a pretensão inicial, em razão do art. 5º, § 1º, do referido Diploma, em virtude da aquisição de bens por sub-rogação. Pediu a SENTENÇAS extinção do processo, sem julgamento do mérito, com base nos arts. 295, parágrafo único, II, e 267, I, ambos do CPC. No mérito, alega que a pretensão do autor é despropositada, restando evidenciado que o relacionamento que existiu entre as partes em momento algum envolveu ou poderia envolver a administração dos negócios da ré. Esses negócios, sabidamente, são de grande vulto e complexidade. Inclusive, a ré não tem qualquer intervenção pessoal na administração das empresas de cujo capital participa e nem exerce, em nenhuma delas, qualquer função. Salienta que o autor nem noção tem do vulto dos negócios e dos bens da ré. Pretende a partilha dos bens sem sequer conhecê-los, não só porque nunca estiveram ao seu alcance para serem administrados, como nunca concorreu, de qualquer forma, para a sua aquisição. O autor procura o enriquecimento sem causa, à custa do patrimônio alheio. Destaca que o autor conquistou a ré e ingressou no convívio da família, ascendendo a uma condição social jamais por ele imaginada. Restrito ao relacionamento afetivo, o autor tomou a iniciativa de entregar à ré a carta mencionada na inicial e anexada na contestação da ação cautelar, como meio de consolidar a confiança da ré. Jamais houve a alegada coação moral. Ressalta que o autor é homem de condições de fortuna extremamente humildes, motivo pelo qual é compreensível que a ré tenha lhe dado como presente de aniversário um automóvel VW Santana, de seu uso pessoal. Os cheques ofertados pela ré se constituíam 131 em verdadeiras doações que a ré fazia ao autor, ora sob pretexto de contribuição para as despesas do sítio de G., ora atendendo aos pedidos de socorro financeiro do autor. O autor residia no sítio de G. a título de comodato, já que o imóvel pertencia aos familiares da ré. Mesmo depois da separação do casal, o autor continuou residindo naquele sítio. Por tal motivo, e para encerrar o desagradável episódio, os familiares da ré outorgaram escrituras públicas de cessão de direito e de dação em pagamento ao autor, transmitindo-lhe o domínio de 05 imóveis rurais, localizados no Município de G./RS, no valor de R$ 103.000,00. Em uma das escrituras, o autor deu aos outorgantes “a mais plena, geral e irrevogável quitação”. No entanto, o autor relegou tudo ao esquecimento, propondo a presente ação. Os bens da ré são oriundos do próprio desenvolvimento das empresas de que ela já participava antes mesmo de conhecer o autor, e que, por bem administradas, geram lucros, o que permite à ré não só manter um alto padrão de vida, assim como reinvestir nas empresas de que é acionista, ou participar de novos empreendimentos. Logo, a aquisição patrimonial ocorrida o foi com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união. Aduz que o autor se transformou em beneficiário da fortuna da ré, vivendo deslumbradamente à sombra do prestígio de I. Assim, o autor freqüentou a alta sociedade, realizou viagens ao exterior, o que não poderia ocorrer somente com suas humildes condições de fortuna. O fim deste relacionamento 132 afetivo significou para o autor o fim de um sonho e o retorno para a dura realidade da vida, constituindo-se a pretensão inicial em uma verdadeira aberração jurídica. Relaciona os bens elencados na inicial, sobre os quais a ré não tem nenhuma participação. Pediu a improcedência da ação e a condenação do autor no ônus da sucumbência. A contestação veio acompanhada dos documentos das fls. 194/863. Replicou o autor (fls. 865/890). Designada audiência de tentativa de conciliação, resultou inexitosa (fl. 941). No despacho das fls. 948/950v., a magistrada que então presidia o feito determinou a realização de perícia para fins de partilha. Este Juízo, ao assumir a jurisdição da 2ª Vara de Família e Sucessões, bem como a presidência do feito, entendeu descabível a perícia nesta fase da ação de conhecimento, designando audiência de instrução e julgamento (fls. 964v./965). Foi proferido o despacho da fl. 974 e 974v., rejeitando a preliminar argüida na contestação, sendo, no entanto, suspensa a audiência de instrução e julgamento por decisão da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça. Decidido o recurso, no prosseguimento do feito, em audiência de instrução e julgamento, foram tomados os depoimentos pessoais das partes (fls. 1.070/1.073 e 1.074/1.078) e de 14 testemunhas (fls. 1.117/1.124, 1.150/1.153, 1.163/1.164, 1.167/1.168, 1.250/1.254, 1.274/1.276, 1.300/1.303, 1.313/1.314 e 1.435/1.437). Durante a instrução, as partes apresentaram documentos, dando-se vista reciprocamente. Declarada encerrada a instrução, as partes apresentaram memoriais. Ouvido, o Ministé- SENTENÇAS rio Público opinou pela improcedência da ação. Em apenso, a ação cautelar de arrolamento de bens (nº 01296102450) movida pelo autor contra a ré, em caráter preparatório. Na inicial, o autor repisa os mesmos argumentos da ação principal, requerendo, em liminar, o arrolamento dos bens. Designada audiência de conciliação, o autor desistiu do pedido liminar (fl. 111). Citada, a ré contestou (fls. 117/124). Ouvido, o Ministério Público opinou pela improcedência da ação. Em apenso ainda, o incidente de impugnação ao valor da causa (nº 01250544549), julgado procedente, no qual o valor da causa principal foi fixado em R$ 15.000.000,00. Vieram os autos conclusos. É o relatório. DECIDO I – A ação declaratória. União estável. 1. A preliminar argüida na contestação. A preliminar de inépcia da inicial e carência de ação foi devidamente analisada e refutada no despacho da fl. 974 e 974v. Tal decisão, inclusive, tornou sem objeto o agravo de instrumento interposto pela ré, pelo não-enfrentamento anterior da preliminar conforme a decisão da fl. 1.008. Ademais, os argumentos expendidos na preliminar em tela foram repisados nas alegações de mérito, onde merecerão análise. Quanto ao agravo de instrumento interposto pela ré da decisão que refutou a preliminar, foi negado ao mesmo o efeito suspensivo, e pelo que se tem notícia, os procuradores da ré desistiram do prosseguimento do recurso, tanto que a instrução, com a coleta da prova oral, transcorreu sem qualquer irresignação. SENTENÇAS 2. O mérito. No enfrentamento do mérito, merece destaque o parecer final do digno Órgão do Ministério Público, em certas passagens, face à lucidez com que abordou a questão: “... É fato incontroverso nos autos que autor e ré mantiveram um relacionamento afetivo no período compreendido entre os anos de 1989 e 1995... Como é notório, porém, só o tempo não é suficiente para que se admita caracterizada uma união estável... Extrai-se do exame detido dos autos que autor e ré em momento algum, durante o relacionamento, exteriorizaram o desejo de estabelecer um núcleo familiar... A prova colhida é desencontrada quanto à existência de uma coabitação... É possível que autor e ré chegaram a residir sob o mesmo teto, porém, em períodos espaçados e sem referências precisas, mas jamais de forma contínua e duradoura... Na realidade, a relação mantida pelas partes não era transparente... “Não restou demonstrado, de outra parte, que o autor tenha em algum momento orientado ou exercido qualquer espécie de ingerência sobre os negócios de interesse da ré... No entanto, viver em união estável é muito mais do que eventualmente partilhar o mesmo teto, viajar, participar de festas sociais, sendo que as liberalidades são atos que decorrem do próprio relacionamento afetivo, não se prestando a afirmar sobre a existência de entidade familiar... Ao revés, o que havia era uma situação cômoda para o autor, que era praticamente sustentado pela ré. E mais, foi o autor agraciado com um sítio e um automóvel nessa relação”. Do elucidativo parecer ministerial extrai-se a melhor solução para este caso 133 concreto. A ação não merece o mínimo acolhimento, por vários motivos. Efetivamente, nos autos está bem caracterizado que O. e I. mantiveram um relacionamento amoroso, no período de 1989 a 1995. Isto foi reconhecido pela própria ré quando ofertou a resposta. Inclusive, houve um equívoco de interpretação por este fato, admitido pela ré no despacho das fls. 948/950, onde foi destacado que “a união estável havida entre as partes é inconteste”. A prova demonstra, com clareza solar, que inexistiu a união estável nos termos amparados pela Constituição Federal e pelas Leis nos 8.971/94 e 9.278/ 96, sendo que o despacho judicial antes mencionado não tem o condão de vincular este juízo que realizou a instrução, ou a decisão definitiva deste feito. Está bem definido nos autos que o relacionamento entre O. e I. não passou do plano afetivo, do mero companheirismo. Tratou-se de uma relação aberta, onde o autor, homem de poucos recursos financeiros, conseguiu conquistar a simpatia, a amizade, a confiança e a intimidade da ré, mulher de notável vulto patrimonial e personalidade por demais conhecida neste Estado e no País. Nos depoimentos pessoais das partes se contém toda a essência do que realmente foi a convivência de O. e I., sendo que a simples leitura, principalmente do depoimento do autor, mostra, sem qualquer dúvida, que o relacionamento do casal não tinha as características pretendidas na inicial. De plano, verifica-se, no depoimento do autor, que, enquanto o mesmo conviveu com a ré, apresentava-se ele como “médico”, permitindo a manutenção de uma farsa, de uma mentira, já 134 que a este Juízo o autor disse que não tinha curso superior (fl. 1.070). Ora, o que se pode esperar de uma pessoa com tal conduta, que permite atribuir-lhe título superior e profissão que não tem? Na verdade, o autor trabalhava no centro espírita C. X., no Bairro P., nesta Capital, onde conheceu I. Diz-se que o autor é médium. Aliás, o autor admite que conheceu a ré neste centro espírita, iniciando, a partir daí, uma amizade e depois um namoro. Após isso, o autor alega que o casal passou a morar sob o mesmo teto, na residência da ré, na Av. I., e no sítio de G. Segundo o autor, a convivência do casal era pública, notória, de conhecimento dos familiares e da sociedade de Porto Alegre. Para demonstrar que tal relação tinha os requisitos de união estável, valeu-se o autor de fotografias que mostravam momentos íntimos do casal, junto aos amigos e parentes, de comprovações de viagens, de documentos vários, na tentativa de comprovar o endereço comum e a convivência harmoniosa do casal no meio social (fls. 32/ 156). Além disso, O. tentou comprovar a relação estável com o depoimento de testemunhas. Contudo, como adiante será visto, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor não deixaram transparente a união estável. A testemunha O. S. A. disse que O. e I. passaram a viver juntos a partir de 1989 até 1995, reconhecendo a testemunha que a ré era pessoa abastada, “uma potência” (fl. 1.150). Ora, qual o crédito que se pode dar a esta testemunha, já que O. é irmã do autor? Existe isenção neste depoimento? Será que O. SENTENÇAS diria alguma coisa que pudesse prejudicar o irmão neste processo? A testemunha M. M. M. também afirmou a existência do relacionamento entre O. e I., mas “pelas informações que recebia tanto de O. quanto de M. e M.” (fl. 1.163). Como se percebe, esta testemunha não era do relacionamento íntimo das partes e tomou conhecimento dos fatos através do próprio autor e de terceiros, que não acompanhavam a vida cotidiana das partes. A testemunha E. S. G., que trabalhou na empresa do grupo da ré, como encartador de jornal, depois como office-boy e, posteriormente, como funcionário do Departamento Administrativo-Financeiro, afirmou que, a partir de 1990, percebeu que a ré começou a aparecer na empresa acompanhada de um homem chamado O. Eles chegavam juntos. Segundo a testemunha, os funcionários da empresa e alguns empregados da casa da ré, principalmente o motorista dela, N. S. M., e A., filho da cozinheira da ré, comentavam para o depoente que O. era companheiro de I., e que, inclusive, ele dormia na casa dela (fl. 1.250). O depoimento desta testemunha não tem maior relevância. Ouvia apenas comentários de terceiros. Ademais, apenas viu o autor e a ré juntos na empresa, o que, por si só, está longe de comprovar uma união estável. De outro lado, é estranho o fato de a testemunha E. S. G. ter mencionado os nomes de dois empregados muito próximos da ré, o motorista pessoal de I. e o filho da cozinheira, sendo que os procuradores do autor não arrolaram tais pessoas como testemunhas, o que seria de fundamental importância, e nem SENTENÇAS sequer requereram a oitiva de ofício. Outrossim, esta mesma testemunha, arrolada pelo autor, esclareceu que O. não era funcionário do grupo e não exercia nenhuma função dentro da empresa (fl. 1.250). A testemunha S. M., ex-esposa do autor, data venia, prestou um depoimento superficial, narrando fatos através de comentários ouvidos do próprio autor, da filha deste e da irmã do autor, todas pessoas sem isenção, data venia. A testemunha afirmou que O. relatava viagens que realizava junto com I. (fl. 1.275). Como antes referido, não se nega a existência de um relacionamento amoroso entre O. e I. Em uma relação desta espécie, envolvendo pessoas maduras, descompromissadas, tendo uma delas alto padrão de vida, é fato bem comum o casal compartilhar momentos de lazer, viajando juntos. Qualquer casal de namorados procede desta maneira, o que não implica relacionamento estável, com intuito de formação de entidade familiar. Logo, o depoimento da testemunha em questão tem pouco significado. Aliás, a testemunha S. M. esclareceu, no decorrer do depoimento, que I. apresentava o autor como “Dr. O.”, mas não dizia que era seu namorado, companheiro ou esposo (fl. 1.275v.). Tal afirmação só vem ratificar o argumento do Ministério Público, no parecer final, ao dizer que a relação do autor e da ré não era transparente. A testemunha C. N. S. S., radialista e advogado, disse que ouviu do próprio O. o comentário de que ele e I. tinham vivido juntos por cerca de 05 anos. No 135 entanto, não sabe como foi o relacionamento do casal, muito menos a vida íntima. Nunca viu o autor e a ré juntos. Esta testemunha ouviu de terceiros a existência do relacionamento do casal, mencionando o nome do narrador de futebol H. S. (fl. 1.300). O depoimento desta testemunha nada esclarece. Não comprova união estável. Não comprova sociedade de fato. Não comprova nada no sentido de uma convivência marital séria. A testemunha J. B. B. afirmou que esteve na casa de I., cerca de seis vezes, para tratar de negócios com O., que lhe emprestava dinheiro a juros. Também esteve no sítio de G. (fl. 1.302). Referiu a testemunha, no depoimento, apenas negócios financeiros, sem nada mencionar sobre a existência de união estável, com os requisitos de fidelidade, coabitação, interesses e objetivos comuns, estabelecida com o objetivo de constituição de família. O fato de negociar com O. na casa da ré não significa que o casal vivia como marido e mulher. Como já mencionado por este Juízo, não se nega a existência do relacionamento afetivo, nem a presença do autor na casa da ré, o que por esta sempre foi admitido. A testemunha A. T. afirma que viu o autor e a ré em apenas uma oportunidade, na casa da irmã do autor, em São Paulo, ocasião em que I. foi apresentada como esposa de O. (fl. 1.313). Ora, O. apresentava I. como sua esposa, porém, ela não o apresentava como marido, namorado ou companheiro, como afirmado por outras testemunhas. O. fazia questão de apresentar I. como sua mulher, mas ela não. Ademais, a 136 testemunha viu o casal somente uma vez, o que não é o bastante para demonstrar a união estável. A testemunha não era das relações do casal. Não pode afirmar que tipo de relacionamento existia entre as partes. A testemunha F. A. S. disse que esteve na casa de I., não recordando a data, mas somente o ano de 1990, para tratar de assunto financeiro com o autor. I. teria sido apresentada como esposa. A própria testemunha disse que era o que podia informar a respeito do relacionamento entre O. e I. Em outras ocasiões, a testemunha telefonou para a casa da ré, a fim de falar com O. (fl. 1.435). Com o mais profundo respeito, este depoimento tem pouca valia. A testemunha não conhecia o dia-a-dia do casal. Não sabe se efetivamente O. e I. moravam juntos. Não conheceu as intimidades do casal, nem as características do relacionamento. Com efeito, uma leitura atenta dos depoimentos das testemunhas do autor leva este Juízo à firme convicção da não-configuração da união estável. Seus requisitos não estão presentes no relacionamento havido entre as partes. No aspecto da convivência duradoura, apesar de se tratar de um relacionamento de vários anos, não há que se atribuir efeitos de entidade familiar a esta relação intersexual, pois ausentes os outros elementos formadores da união estável. No pertinente à publicidade e notoriedade, é certo que a relação das partes tinha um certo destaque, isso em razão de I. ter sido esposa de um dos maiores empresários do ramo das comunicações e do Brasil. I. é mulher conhecida na alta sociedade de Porto SENTENÇAS Alegre, no Estado e no País. Trata-se de pessoa de destaque e de figura pública de elevado conceito, inclusive por suas obras sociais, junto à F. M. S. S. Assim, é normal que a ré esteja sempre sob o foco da imprensa e das colunas sociais, em qualquer lugar. Quem estiver do seu lado, por óbvio, irá merecer algum destaque, como ocorreu com o autor. Todavia, esta publicidade não serve como requisito da união estável, na forma pretendida pelo autor. Era uma publicidade jornalística, pela notoriedade da ré, e não uma publicidade de existência de família, de relação de marido e mulher. No tocante à continuidade, outro requisito, a mesma não existiu. A prova apresentada pelo autor não demonstrou aquela convivência do dia-a-dia, com a presença constante de ambos. O que O. conseguiu comprovar foi alguma convivência nos momentos íntimos da vida de I., junto aos seus familiares, demonstrados através das fotografias e de algumas viagens que o casal realizou. A vida cotidiana de um casal normal, como marido e mulher, não ficou demonstrada. O contato diuturno, a solidariedade e cumplicidade e os sentimentos íntimos dos co-participantes não restaram demonstrados. As testemunhas arroladas pelo autor não comprovaram este nível de relacionamento. A maior parte destas testemunhas ouviu comentários, emitidos pelo próprio autor. Outras referiram-se a negócios comerciais com O., tratados na casa de I. em algumas oportunidades. O requisito de constituição de família nem de longe existiu. Conforme admitiu a ré em seu depoimento pessoal, bem SENTENÇAS como algumas das testemunhas por ela arroladas, I. considerava O. como o seu companheiro afetivo (fl. 1.074). A ré mencionou que estava “carente”, em razão do falecimento do seu marido, e O. se mostrou um homem amoroso e delicado. O. era um companheiro para a ré, mas esta não tinha a intenção, com este relacionamento, de constituir nova família. Por isso, procurou um lugar para se encontrar com O., fora da sua casa (fl. 1.075). A testemunha A. M. afirmou que os filhos de I. consideravam o autor como namorado da mãe. Esteve na casa de I. em algumas oportunidades e nem sempre O. estava presente. Ele raras vezes estava presente (fl. 1.120). A testemunha L. A. afirmou que freqüentava e freqüenta a casa de I. com bastante assiduidade e percebeu que o relacionamento de O. e de I. não tinha e nunca teve os requisitos de entidade familiar. Eles não viviam como marido e mulher. Não moravam na mesma casa. O. nunca morou com I. na casa da Av. I. Os filhos de I., seus amigos e parentes observavam este relacionamento como o de mero companheirismo, sem maiores conseqüências. Tratava-se de uma relação superficial, sem grandes interesses na formação de patrimônio comum (fl. 1.122). A testemunha J. S. disse que ouviu comentários, nas rodas sociais de Porto Alegre, que o autor aproximou-se da ré com interesse meramente financeiro (fl. 1.124). Com efeito, um dos principais depoimentos prestado nos autos, que descaracteriza a fidelidade de O. para com I. e, por conseqüência, a alegada 137 união estável, foi o de E. B. P. Afirmou a testemunha que conhece o autor porque ele viveu maritalmente com sua filha, B. P., de abril de 1988 a setembro de 1995. Inicialmente, O. e B. residiram em um apartamento localizado na Av. I. e depois em outro situado na frente do S. P. B. Disse que O. era um homem simples, de poucos recursos econômicos, que se vestia de maneira bastante humilde. O. alegou que era médico em São Paulo, mas ficou desgostoso com a profissão. Então, O. comentou que passou a negociar com a compra e venda de gado. B. é funcionária concursada do T. A. e tem um bom salário. Tem condições de manter-se sozinha. Ela comentava que de vez em quando O. ajudava nas despesas do casal. A relação de O. e B. era um pouco tumultuada. Eles brigavam e O. acabava sumindo por alguns dias, voltando logo depois. Admite que sua filha era apaixonada por O., pois ele era uma pessoa agradável e encantadora. O término da relação implicou somente um prejuízo emocional para B. O. dizia que era muito amigo da família S. A testemunha até ficou desconfiada de que O. seria segurança de I. S. Todavia, a testemunha desconfiava do comportamento de O. e achava que ele poderia ter outros relacionamentos na época em que vivia com B. Percebeu que O. passou a se vestir muito bem depois que passou a afirmar que se relacionava com a família S. e com I. Ele passou a andar de carro, dizendo que o veículo era da empresa da ré. O. nunca disse que era funcionário da empresa da ré; por isso, a testemunha deduziu que ele poderia ser segurança 138 de I., face às constantes visitas à ré. O relacionamento de O. e B. era público e de conhecimento da família, da testemunha e dos amigos. Foi B. quem encerrou o relacionamento, em 1995. Ela estava cansada do comportamento de O., pois ele não tinha trabalho fixo, em todos estes anos, bem como costumava viajar sozinho e desaparecia por alguns dias sem dar explicações (fls. 1.117/1.119). Tal depoimento liquida com qualquer pretensão do autor. Demonstra que O. mantinha dois relacionamentos afetivos concomitantemente, o que, por si só, descaracteriza qualquer alegação de relação estável. Se a união estável é comparada ao casamento, a fidelidade é um dos seus deveres, como previsto no art. 231, I, do CC. Pois bem. Mesmo que fosse reconhecida a união estável, o autor, de qualquer forma, não teria direito à partilha dos bens. Em primeiro lugar, porque o acervo patrimonial e empresarial da ré é tão vasto que o crescimento deste patrimônio, com a aquisição de novos bens e empresas, é evidente produto de sub-rogação, a teor do art. 5º, § 1º, da Lei nº 9.278/96. Quando O. conheceu I., a ré já era uma mulher riquíssima, sendo proprietária de um império das comunicações. De 1989, data do início da relação afetiva, para cá, o grupo da ré somente cresceu e multiplicou as suas atividades, o que é de conhecimento público e notório. Assim, o autor não teve nenhuma participação na aquisição do patrimônio auferido ao decorrer do relacionamento. Neste aspecto, O. alegou ser oriundo de família de muitas posses, com SENTENÇAS origem em São Paulo. Apesar de não existir bens imóveis em seu nome, tinha dinheiro “conseguido de berço” (fl. 1.070). Contudo, o autor não fez qualquer prova para demonstrar a riqueza da sua família. Não juntou nenhum documento com a inicial, para tal fim. Na réplica à contestação, também, nenhum documento aportou aos autos para comprovar a alegada riqueza da família ou do próprio autor. Para tentar comprovar sua fortuna, o autor, após o depoimento pessoal, juntou os documentos das fls. 1.180/1.193, ou seja, matrículas de imóveis adquiridos por seu pai, que no total somam alguns hectares de terras, cerca de 500ha, como mencionado na petição das fls. 1.176/1.178. Ora, será que alguém que é proprietário de 500ha de terras, em São Paulo, com vários filhos, pode ser considerado homem rico? De qualquer forma, não importa aqui a fortuna do pai de O., mas sim a do próprio O., que a este Juízo parece inexistir. Em segundo lugar, o autor não teria direito à partilha porque quando teve início o relacionamento com I., em 1989, a ré já contava com mais de 50 anos de idade, o que determinaria a separação obrigatória de bens, a teor do art. 258, parágrafo único, II, do CC. Então, se a união estável é comparada ao casamento quanto ao regime de bens (comunhão parcial), deve preservar também as restrições da lei para o matrimônio civil. Se nem pelo casamento o autor teria direito à partilha, muito menos poderia ter pela união estável, sequer caracterizada. Afastada a união estável, resta a análise do eventual direito à partilha SENTENÇAS em razão da sociedade de fato. Nesse sentido, a pretensão de O. não encontra nenhum amparo. Como acima referido, o autor não contribuiu, de nenhuma forma, para a aquisição do patrimônio durante o relacionamento mantido com a ré. A uma, porque O. não era homem de grandes recursos financeiros. A duas, porque o autor não tinha emprego fixo, nem residência fixa. Não tinha curso superior. Trabalhava em um centro espírita, aliás kardecista, que não permite contribuições aos médiuns. Terceiro, porque não restou satisfatoriamente demonstrada a fortuna da família do autor, nem deste próprio. Quarto, porque as empresas e os bens de I. são de tamanha expressão que nem ela própria administra a complexa organização do grupo. São os filhos e o cunhado da ré, além de outros, os administradores do grupo. A ré, com a idade que tem, a esta altura da sua vida, deve somente usufruir de tal riqueza. Várias testemunhas afirmaram que O. jamais participou da administração das empresas e, também, que I. não se envolvia na administração (fls. 1.120, 1.124 e 1.167). O autor sequer interferiu na administração dos bens da ré. Apenas usufruiu dos benefícios do alto padrão de vida de I., recebendo, como admitiu na inicial, quantias em dinheiro para a sua própria sobrevivência. O autor não era proprietário sequer de um automóvel quando conheceu I. Assim, a alegação do autor no sentido de que emprestou à ré quantia superior a 01 milhão e 400 mil dólares chega a ser lastimável. Inexiste prova documental de tal empréstimo. De ou- 139 tro lado, nenhuma testemunha presenciou tal fato. O autor imaginou que se tornaria sócio de alguma empresa, como admitiu no depoimento pessoal, em razão de tal empréstimo. Esta era a esperança de O. com o relacionamento? Data venia, os empréstimos oferecidos pelo autor, em dólares americanos, informados por algumas das testemunhas por ele arroladas, não soam como verdadeiros. Nenhuma prova documental demonstra tais empréstimos. Há somente as afirmações das testemunhas. No entanto, não é crível que alguém empreste dinheiro a outrem sem obter garantias, inclusive com títulos de crédito (cheques, notas promissórias ou outros). Se o autor tirava cópias reprográficas dos cheques emitidos por I., devia tomar a mesma precaução com os documentos relativos aos empréstimos que fazia. O documento da fl. 1.404 não é idôneo. Foi produzido de forma unilateral, pelo próprio autor. Trata-se de um recibo simples, manuscrito por O. Com relação à carta das fls. 127/128, manuscrita e assinada pelo autor, pouco este documento significa para o deslinde da questão. Em tal carta, o autor apenas diz que tem interesse na pessoa da ré, o que é bastante comum nos relacionamentos amorosos, como acontece com qualquer casal de namorados. Outrossim, a alegação de coação moral não encontra o mínimo respaldo na prova. Inexistem testemunhas do fato. Ademais, a testemunha J. C. S. disse que foi O. quem escreveu a carta e a entregou espontaneamente à I. para demonstrar a falta de interesse no patrimônio da ré (fl. 1.253) 140 Enfim, a união estável ou a sociedade de fato não estão comprovadas. O ônus da prova era do autor, nos termos do art. 333, I, do CPC. A jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça assim orienta: “União estável. Só gera efeitos jurídicos a união estável com características de família e reflexos no patrimônio, com ela não se confundindo a aventura amorosa, patrocinada pela libido e pela cobiça” (“RJTJRGS” nº 165/404). “Concubinato e concubinagem. Identificação da sociedade familiar. A sociedade familiar constitui-se pelo casamento ou pela união estável. Esta se qualifica pela dedicação, colaboração e aplicação do homem e mulher nas tarefas da comunhão de vida e de interesses para construir o progresso moral e material unificados, não pela efêmera da concubinagem firmada só para o intercâmbio sexual. O direito à participação de bens radica na dissolução da sociedade concubinária fincada na relação jurídica permanente da affectio maritalis intuitu familiae, por isso que não se compra o amor e nem o sexo se indeniza.” (AC nº 591059126) “Concubinato. União estável. Caracterização. Falta. Toda pretensão de atribuição de patrimônio passa pela comprovação escorreita e indiscutível da existência de um relacionamento concubinário duradouro, exclusivo, notório e estruturado dentro dos limites de uma efetiva união estável, traduzida na entidade familiar que a atual Constituição quer que a lei facilite sua conversão em casamento. Mera concubinagem não gera qualquer efeito de ordem patrimonial a qualquer um dos envolvidos.” (AC nº 591037734) SENTENÇAS “Concubinato. Por si mesmo não gera efeitos. Somente na hipótese de um dos concubinos, pelo seu trabalho e apoio, ensejar o crescimento ao patrimônio do outro, sem compensação adequada, cabe cogitar-se de partilha do acervo... Não é o caso, pois, da simples troca de favores e gentilezas, inerente ao próprio relacionamento amoroso.” (“RJTJRGS” nº 135/384) Existiu apenas um relacionamento afetivo e interpessoal, bastante comum nos dias de hoje. O relacionamento foi aberto e descompromissado. Sem maiores pretensões do que a mera companhia, pelo menos por parte da ré. É certo que o relacionamento de O. e I. tinha, por exemplo, envolvimento financeiro, pois o próprio autor admitiu isto na inicial, recebendo quantias em dinheiro da ré para a sua manutenção, o que continuou ocorrendo mesmo após o término da relação. Assim, O. foi plenamente beneficiado com esta relação. Dela, o autor saiu com um automóvel, um sítio com casa (em G.) e telefone celular, além das várias doações em dinheiro e roupas. Usufruiu de viagens ao exterior e do convívio com pessoas da alta sociedade. Por fim, este Juízo não vislumbra a litigância de má-fé, pois, em decorrência dos vários anos de relacionamento descompromissado, o autor entendeu que tinha certos direitos, postulando-os perante o Poder Judiciário, sem lhe assistir razão, todavia. Ademais, a Constituição Federal garante a qualquer cidadão o acesso à Justiça (art. 5º, XXXV). II – A ação cautelar. Arrolamento de bens. A ação cautelar foi proposta com o caráter preparatório. No mérito, SENTENÇAS devem ser analisados os dois pressupostos básicos da ação cautelar, quais sejam: a plausibilidade de direito e o risco de dano irreparável. Nenhum destes elementos está presente. Como se viu acima, inexistiu união estável ou sociedade de fato entre as partes. Não há direito à partilha. Portanto, não há que se falar em plausibilidade de direito. De outro lado, o autor não correu nenhum risco em ver eventual patrimônio ameaçado, até porque não tinha qualquer direito aos bens pretendidos. E se assim fosse, o patrimônio da ré era bastante para assegurar qualquer direito ao final da lide principal. Nestes termos, improcede a ação cautelar, como promovido pelo Ministério Público na fl. 139 e 139v. 141 III – A decisão. Isso posto: a) julgo improcedente a ação declaratória e condeno o autor ao pagamento das custas e dos honorários aos procuradores da ré, que arbitro em 20% sobre o valor corrigido da causa, definido no incidente em apenso, observado o art. 20, § 4º, do CPC; e b) julgo improcedente a ação cautelar e condeno o autor ao pagamento das custas e dos honorários aos procuradores da ré, que fixo em 10 URHs, tendo em vista que à causa foi atribuído o valor de alçada, observada a norma legal já referida. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 17 de novembro de 1999. Jorge André Pereira Gailhard, Juiz de Direito. 142 Processos nos 01197351362 – Revocatória – e 01197416322 – Medida Cautelar de Seqüestro Vara de Falências e Concordatas – 2º Juizado Autora: Massa Falida de Companhia Dosul de Abastecimento Rés: Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. e Comprebem Comércio e Transportes Ltda. Juiz prolator: Jorge Luiz Lopes do Canto Ação revocatória. Ilegitimidade passiva e impossibilidade jurídica do pedido. Causa jurídica da ação revocatória. Pontos incontroversos quanto à existência do negócio jurídico objeto da revocatória. Falta de anuência dos credores da falida com a venda dos bens com a massa. Conceito de estabelecimento comercial. Termo legal: forma de fixação. Prejuízo à massa. Hipóteses do art. 52 da Lei de Falências. Situação financeira da falida no período suspeito e preço de venda dos imóveis neste termo. Análise técnica e econômica do estado de insolvabilidade – ineficácia relativa: discussão de boa-fé de fraude. Possibilidade jurídica do exame da revogatória e cisão da sociedade. Mérito da ação cautelar. Ônus da sucumbência. I – RELATÓRIO Vistos, etc. 1.1. A Massa Falida de Cia. Dosul de Abastecimento, já qualificada, ingressou com ação revocatória, em razão da ineficácia da alienação de bens pertencentes à massa, pelo rito ordinário, contra Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. e Comprebem Comércio e Transportes Ltda., também qualificadas. 1.2. Alega, em síntese, que a falida Cia. Dosul de Abastecimento, então representada por seus sócios Pedro Zaffari e Aldérico Zaffari, dentro do termo legal da falência e adotando conduta acarretadora de evidente prejuízo aos credores, provocando uma imensa diminuição no patrimônio da Massa Falida, celebrou, inicialmente, um pré-contrato de promessa de compra e venda com outras avenças em 19-05-95 (fls. 39/40), posteriormente ratificado pelo contrato de promessa de compra e venda de imóveis, móveis e utensílios, instalações, fundo de comércio de lojas, veículos, com transferência de direitos e obrigações em 1º-08-95 (fls. 41/44), com a empresa Nacional Central de Distribuição de Alimentos, representada pelos sócios Teodoro Pedrotti e Neri Carlos Dal Pozzo, no qual ficou estabelecida a transferência de bens descritos na inicial (fls. 26/33), consistindo esses em imóveis, móveis, veículos, estoques, instalações e fundo de comércio da primeira para a segunda, constituindo parcela considerável desses bens em supermercados, filiais da empresa, em regular funcionamento, pelo preço total de R$ 20.000.000,00, valor esse muito aquém do que efetivamente representavam. SENTENÇAS 1.3. Acrescenta que parte desses bens foram transferidos para a Comprebem, empresa que integra o mesmo grupo da Nacional e, em razão desses negócios, houve um esvaziamento da capacidade operacional da empresa e uma sensível diminuição de seu patrimônio, sendo o valor do conjunto de bens transferidos subestimado, e, ainda, apesar de alienado, foi desprezado o valor do fundo de comércio. 1.4. Refere, também, que o negócio é ineficaz, pois o ato de absorção das filiais pela Nacional foi realizado muito tempo após a decretação da falência da Cia. Dosul, a despeito de esse negócio ter sido efetuado dentro do termo legal da falência. 1.5. Entende que, em sendo válido o negócio, as requeridas são solidariamente responsáveis por todos os créditos da Cia. Dosul existentes até a época da conclusão dessa avença, pois teria ocorrido uma cisão parcial desta, respondendo as primeiras por todas as obrigações anteriores à cisão, a teor do art. 233 da Lei das Sociedades Anônimas. 1.6. Por derradeiro, diz que o negócio foi realizado em fraude contra credores, com o objetivo de esvaziar, por valor subestimado, o patrimônio da Cia. Dosul, e, ainda, sem que fossem especificamente descritos parte dos bens alienados da empresa que, nessa época, já estava em estado de insolvabilidade, circunstância conhecida e compactuada pelas requeridas. 1.7. Assim, restou caracterizado o prejuízo dos credores da falida, decorrente da referida transação, pois a empresa teve imensa redução em seu patrimônio, razão pela qual requer seja julgada 143 procedente a ação, com a declaração de ineficácia das alienações dos bens descritos na inicial e conseqüente cancelamento dos registros que tenham sido efetivados, condenando as rés nos ônus sucumbenciais. 1.8. Ajuizou, ainda, Medida Cautelar de Seqüestro, distribuída sob nº 01197351362, cuja liminar foi deferida e mantida pelo Egrégio Tribunal de Justiça, sendo tempestivamente aforada a presente ação principal. 1.9. Com a inicial foram juntados os documentos das fls. 34/195. 1.10. Citados, os réus apresentaram contestação às fls. 203/230, argüindo, em preliminar, a carência de ação, por ilegitimidade ativa da autora, por entender que a ação deveria ter sido proposta pelo seu síndico. Disseram que adquiriram os bens de terceiros, motivo pelo qual requereram, ainda, a integração à lide das instituições de crédito enumeradas nos itens 15 a 17 da peça contestatória, como litisconsortes necessários. No mérito, sustentam a legalidade do negócio entabulado, aduzindo que não houve prejuízo aos credores e, ainda, que não houve fraude praticada contra estes. Requerem a improcedência da ação. 1.11. Com a contestação foram acostados os documentos das fls. 231/1.054. 1.12. Às fls. 1.063/1.105, a autora apresentou réplica, rebatendo os argumentos deduzidos pelos réus na defesa e ratificou os termos da exordial. 1.13. O Ministério Público opinou à fl. 1.107 pelo afastamento da preliminar de ilegitimidade ativa, postulando pelo prosseguimento da demanda. 1.14. Foi proferido despacho saneador às fls. 1.110/1.111, no qual foi 144 rejeitada a preliminar de ilegitimidade ativa e indeferiu a citação de litisconsortes pretendida pelos demandados, determinando às partes a indicação, circunstanciada, de outras provas que pretenderiam produzir, inclusive em audiência, além das documentais existentes nos autos, nesta hipótese, com a respectiva especificação, inclusive quanto ao interesse e a finalidade a que se destinariam, sob pena de julgamento antecipado da lide. 1.15. A autora postulou a produção de prova pericial contábil, com objetivo de apurar o real valor dos bens transacionados e, ainda, o valor do fundo de comércio omitido na transação (fl. 1.113). 1.16. A co-ré Nacional postulou a produção de prova pericial para apuração da real situação econômico-financeira da falida, à época da negociação, e, ainda, a avaliação dos bens negociados (fl. 1.114). 1.17. A co-ré Comprebem, além de tecer considerações acerca da fixação do termo da falência, requereu a produção de prova pericial de auditoria; inquirição de testemunhas e requisição de documentos aos Tabelionatos de protestos de títulos e documentos (fls. 1.115/1.180). 1.18. A co-ré Nacional interpôs, ainda, embargos de declaração (fls. 1.181/ 1.184), sobre os quais manifestou-se o Ministério Público (fl. 1.186), desacolhidos pela decisão de fls. 1.188/1.190, que deferiu a produção de pericial contábil, facultando às partes a indicação de assistentes técnicos e a formulação de quesitos, os quais foram devidamente apresentados pelas partes (fls. 1.192/1.202). Quanto à prova testemunhal, a necessidade da mesma seria SENTENÇAS aferida por ocasião da entrega do laudo pericial, manifestando as partes o interesse na produção desta, com a indicação da finalidade à que se destinaria, sob pena de julgamento da lide no estado em que se encontrar. 1.19. A co-ré Nacional interpôs agravo de instrumento (fls. 1.204/1.215) contra a decisão das fls. 1.188/1.190, parcialmente provido pelo Egrégio Tribunal de Justiça, para o fim de determinar a integração das instituições de crédito na lide e, ainda, a realização de prova pericial de avaliação, rejeitando a preliminar de ilegitimidade ativa da autora (fls. 1.225/1.233). 1.20. Citadas, as instituições de crédito apresentaram contestação a saber: Citibank Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.245/1.230); Cia. Itauleasing, sucessora de Franlease S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.325/ 1.328); Bozano Simonsen Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.338/ 1.340); Cia. Interatlântico de Arrendamento Mercantil S. A. (fls. 1.381/1.391), todas elas apresentaram preliminar de carência de ação, dizendo que a demanda não lhe diz respeito. No mérito, sustentaram a validade dos contratos de leasing celebrados com a falida, motivo pelo qual reiteraram a alegação de que a lide revocatória não lhes diz respeito. 1.21. As rés manifestaram-se sobre as contestações (fls. 1.424/1.426 e fls. 1.428/1.429), e a autora manifestou-se às fls. 1.431/1.438. 1.22. Houve manifestação do Ministério Público sobre as contestações, e postulou fosse determinada a fixação de prazo para a entrega dos laudos periciais (fl. 1.439). SENTENÇAS 1.23. As partes apresentaram quesitos e indicaram assistentes técnicos (fls. 1.441, 1.443 e 1.446/1.447). 1.24. A co-ré Nacional postulou a suspensão da ação revocatória, até julgamento de ação rescisória por ela aforada, pretensão indeferida pela decisão da fl. 1.469. 1.25. A prova pericial contábil foi produzida, estando o laudo do perito judicial acostado às fls. 1.486/1.819; o parecer do assistente técnico da co-ré Nacional encontra-se às fls. 1.837/1.889, e o parecer do assistente técnico da autora às fls. 1.893/1.947. 1.26. Intimadas as partes, as rés manifestaram-se sobre o laudo pericial contábil às fls. 1.950 e 1.951, e autora às fls. 1.952/1.958. 1.27. A prova pericial de engenharia foi produzida, estando o laudo do perito judicial acostado às fls. 1.960/2.180; o parecer técnico do assistente técnico da autora encontra-se às fls. 2.183/2.186, e o parecer do assistente técnico da co-ré Nacional às fls. 2.188/2.737. 1.28. Instadas as partes, as demandadas manifestaram-se sobre o laudo pericial de avaliação às fls. 2.739 e 2.740, e a autora às fls. 2.743/2.751. 1.29. O Ministério Público opinou pelo prosseguimento da demanda (fls. 2.752). 1.30. Determinada a manifestação das partes acerca do interesse na produção de provas em audiência (fls. 2.753), postulando a autora o julgamento antecipado da lide (fls. 2.755/2.756), e as rés requereram, sem especificar a finalidade, a produção de prova testemunhal (fls. 2.757 e 2.758). 1.31. Foi determinada a abertura de vista ao Ministério Público para parecer 145 final, posto que as questões deduzidas são primordialmente de direito e as de fato se encontram suficientemente elucidadas pelas provas documental e técnica produzidas nos autos (fl. 2.759). 1.32. O Ministério Público opinou pela procedência da demanda, face à inequívoca ocorrência de prejuízo ao patrimônio da empresa, e, via de conseqüência, aos credores. Acrescentou que a prova leva ao reconhecimento, também, da intenção fraudulenta dos negociantes, em razão da alienação dos imóveis por valores muito abaixo dos praticados no mercado e, ainda, em razão da falta de especificação dos bens móveis que integraram a negociação (fls. 2.760/2.762). 1.33. Através do despacho da fl. 2.766, foi determinada a intimação do perito oficial para que esclarecesse os critérios empregados para a apuração do Fundo de Comércio da Falida, em como aqueles utilizados com relação ao que deixou de lucrar a autora com as vendas realizadas pelas rés, bem como informasse o grau de solvabilidade da postulante durante as transações levadas a efeito com as requeridas e, por fim, verificasse se as referidas transações, envolvendo o ativo permanente da Massa, implicaram, ou não, redução da atividade econômica da falida e se tal situação resultou em prejuízo aos credores. 1.34. A ré Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. ratificou o seu pedido no que tange à produção de prova testemunhal (fl. 2.767). 1.35. O perito atendeu à determinação da fl. 2.766, apresentando o laudo das fls. 2.769/2.949, do qual foram intimadas as partes, sendo que quanto ao 146 mesmo somente a autora se manifestou, às fls. 2.953/2.957. A ré Comprebem sustentou que se pronunciaria quanto ao laudo complementar “oportunamente” (fl. 2.952). 1.36. Em nova manifestação, o culto curador das massas, às fls. 2.959/2.961, ratificou integralmente o seu parecer das fls. 2.760/2.762, opinando no sentido da integral procedência da demanda. 1.37. A ré Nacional Central de Distribuição de Alimentos se manifestou à fl. 2.962, reportando-se à manifestação de seus assistentes técnicos, às fls. 2.963/ 2.972, quanto às explanações suplementares efetuadas pelo perito do juízo. 1.38. Vieram-me os autos conclusos para sentença. 1.39. Resumidamente, é o relatório. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Trata-se de ação revocatória que visa à declaração de ineficácia das vendas dos bens da falida descritos na exordial, realizadas dentro do termo legal com prejuízo à massa, objetiva e subjetiva, cuja transferência se operou antes da quebra e sem a anuência dos credores, regularmente instruída, na qual se impõe o julgamento da lide no estado em que se encontra, consoante estabelece o art. 330, inc. I, do CPC, posto que os fatos alegados estão suficientemente comprovados pela documentação inserta nos autos, bem como pelas perícias realizada, inadmitindo-se prova oral no caso em exame, tanto pelo valor dos referidos contratos de promessa de compra e venda, como também por ser inútil ao deslinde do litígio. Quanto às preliminares deduzidas. 2.2. Com relação à preliminar de ilegitimidade passiva da massa, a refe- SENTENÇAS rida prefacial foi afastada de plano no despacho saneador das fls. 1.110/1.111, matéria esta que restou irremediavelmente preclusa, posto que mantida a referida decisão pela superior instância, através do Agravo de Instrumento nº 598109932, de sorte que são aplicáveis ao caso sub judice o disposto nos arts. 75 do CC, 12, inc. III, do CPC e 63, inc. XVI, da Lei de Falências, tendo em vista que o síndico exerce mandato legal no interesse e em benefício da massa falida, sendo este conjunto patrimonial e jurídico o titular de direitos e obrigações, aliás o aresto precitado é conclusivo a esse respeito, ao asseverar que: “Agravo de instrumento. Falência. Ação revocatória. Legitimidade ativa e passiva para a causa. Avaliação de bens negociados. Há de se reconhecer à Massa Falida, através do síndico, e independente de discussão doutrinária, legitimidade ativa para a demanda revocatória falencial”. 2.3. Preambularmente, é de ser ressaltado que o presente pedido é juridicamente possível, posto que, em se tratando de ação revocatória, há que se levar em conta que os requisitos de admissibilidade da mesma estão embasados na prática de determinado negócio jurídico dentro do termo legal e na existência de prejuízo para a massa com a realização deste ato. 2.4. Nesse sentido, são os ensinamentos do jurista maior deste país, Pontes de Miranda, em sua obra “Tratado de Direito Privado”, parte especial, tomo XXVIII, § 3.357, pp. 325/327, 3ª ed., 1971, ao asseverar que: “... A declaração de ineficácia, segundo o art. 52 do Decreto-Lei nº 7.661, nada desconstitui. Os bens continuam no patrimônio SENTENÇAS do adquirente; apenas o valor deles está subordinado aos efeitos falenciais. Tal como ocorre nas espécies em que a alienação é posterior à penhora. O art. 52 do Decreto-Lei nº 7.661 funciona como se tivesse havido a penhora antes do negócio jurídico ou do ato-fato de adimplemento que qualquer dos incisos do art. 52 atingiu... “... A noção de ineficácia relativa permite que se tenha por acontecido tudo que aconteceu, porém não contra a massa. À massa, fica o caminho como se não estivesse fechado. O bem está no patrimônio do terceiro, mas a massa pode ir até lá e tirá-lo, porque, para a massa, ele não está lá. “... O fundamento da sanção do art. 52 do Decreto-Lei nº 7.661 não está, de modo nenhum, na ilicitude do ato do terceiro adquirente. O ato pode ser perfeitamente lícito; e a própria lei esclarece que se abstrai da scientia do terceiro (verbis ‘tenha, ou não, o contratante conhecimento do estado econômico do devedor’) e da intenção de fraudar (verbis: ‘seja, ou não, a intenção deste fraudar credores’). Tampouco se há de basear a sanção no enriquecimento injustificado de terceiro. Nem cabe falar-se de ilícito, nos casos de negócios jurídicos gratuitos, e de enriquecimento injustificado, se a título oneroso o negócio. Exatamente porque a ratio legis nada tem com a ilicitude (haveria desconstituição, CC, art. 145, II, 1ª parte), ou com o enriquecimento injustificado, pois justificação houve – ex hypothesi –, foi a sanção da ineficácia relativa a que o legislador preferiu” (omissis nosso). No mesmo diapasão, é o ensinamento do insigne jurista José da Silva Pacheco em sua obra “Processo de Fa- 147 lência e Concordata”, 6ª ed., Ed. Forense, p. 339, ao afirmar que: “No art. 52, cogita a lei da ineficácia dos atos praticados pelo falido, antes da quebra. Nos casos enumerados pelo referido artigo, não se há de pensar em provar a ciência pelo contratante do estado de insolvência ou de impontualidade do devedor, nem sequer há cabimento na invocação ou alegação de fraude. O ato, desde que incida um dos incisos do art. 52, é ineficaz, não produz efeito, relativamente à massa falida”. 2.5. Assim, outra não é a conclusão que não a possibilidade jurídica do presente pedido, bem como que, em tese, também encontra o mesmo amparo legal para sua formulação, na medida que o interregno de tempo abrangido pela presente ação é o do termo legal, sendo que os negócios jurídicos em discussão foram realizados dentro deste período, não havendo qualquer dúvida quanto à existência destes atos, de sorte que a discussão fica circunscrita em haver prejuízo à massa, ou não, com a venda dos referidos bens, até porque é incontroverso também que esta ocorreu sem a anuência dos credores da falida à época em que estas se operaram (art. 52, inc. VIII, da Lei nº 7.661/45). 2.6. Note-se que outro dos pontos a ser abordado neste tipo de ação é que se trata de presunção juris tantum contra o negócio realizado, consoante preleciona Pontes de Miranda na obra precitada para o reconhecimento da ineficácia do mesmo, portanto, o “ônus processual dos réus” é demonstrar que as vendas dos bens descritos na peça vestibular não importaram em prejuízo à massa no momento em que foram efetivadas. 148 2.7. Ainda, quanto às prefaciais alevantadas pelas Instituições Citibank Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.245/1.256); Cia. Itauleasing, sucessora de Franlease S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.325/1.328); Bozano Simonsen Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.338/1.340); Cia. Interatlântico de Arrendamento Mercantil S. A. (fls. 1.381/1.391) de carência de ação por ilegitimidade passiva, cujas citações foram admitidas no feito pela superior instância no agravo de instrumento precitado, a título de litisconsortes passivos, visto que haveria interesse jurídico na participação das mesmas, as quais estariam sujeitas aos efeitos da presente ação, passo ao exame das mesmas conjuntamente com o mérito da causa, posto que as referidas preliminares estão intimamente relacionadas com este, aliado ao fato de que envolvem estas a questão de fundo e se sujeitam aos seus efeitos. 2.8. Preambularmente, é preciso destacar que a pretensão da autora foi voltada exclusivamente quanto às duas primeiras demandadas, Nacional e Comprebem, na medida em que, ao serem atingidos os negócios jurídicos avençados com estes réus por aquela, os efeitos da ineficácia relativa da presente ação revocatória, em especial no que tange às cessões de direitos entabuladas através do pré-contrato de 1905-95, envolvendo também os contratos de arrendamento mercantil, nos quais havia a opção pela aquisição dos bens arrendados das instituições financeiras supracitadas, far-se-iam sentir apenas quanto à posição a ser ocupada pelo arrendante nos referidos ajustes, mas em nenhuma hipótese os efeitos imanentes SENTENÇAS da ação falencial atingiriam a esfera jurídica das entidades arrendadoras nos lease-back pactuados. 2.9. Portanto, na hipótese das referidas cessões às duas primeiras demandadas dos direitos pertencentes à autora, nos contratos de arrendamento mercantil avençados com as entidades arrendadoras, serem tornadas ineficazes frente à massa, a relação obrigacional mantida com as instituições precitadas permaneceria inalterada, apenas o cumprimento do contrato quanto à entrega da prestação relativa à transferência do domínio é que seria atribuída à massa falida, cedente deste direito, ou as demandadas, cessionários do referido leasing, situação esta para o caso de improcedência da presente ação. Aliás, nesse sentido é a promoção das fls. 1.186/1.187 do culto curador das massas Luiz Inácio Vigil Neto, Procurador de Justiça que atuava neste Juizado, ao asseverar que: “Dessa forma, pouco importa para as entidades arrendadoras o eventual êxito da ação revocatória, pois a sua posição na relação obrigacional continuará a mesma. Em outras palavras, perderá o direito de propriedade sobre a coisa, no caso de exercício do direito de opção contratualmente expresso, venha a ser exercido pela massa falida, venha a ser exercido pela embargante (a Nacional), ou a manterá esse direito na hipótese contrária”. 2.10. Assim, se em um primeiro momento houve o entendimento da superior instância, no sentido de determinar a citação das arrendadoras, pois haveria interesse jurídico das duas primeiras demandadas em saber a quem seria dado o direito de opção para aquisição dos bens arrendados, se a elas ou SENTENÇAS à massa falida, num segundo instante, se mostrou manifestamente ilegítimo o chamamento processual acolhido inicialmente, posto que a ineficácia relativa da ação revocatória do art. 52 da Lei de Quebras atinge exclusivamente aos efeitos do negócio jurídico entabulado e submetido ao crivo falencial, ou seja, refere-se apenas quanto à cessão de direitos feita entre a autora e as duas demandadas, permanecendo perfeitamente válidos e eficazes os arrendamentos mercantis entabulados com as entidades arrendadoras. Frise-se, ainda, que os contratos de lease-back precitados foram avençados anteriormente ao termo legal, e, como tal, estão os referidos pactos fora do período suspeito, no qual se desenvolve a investigação quanto aos negócios jurídicos lesivos à massa através das ações falenciais, pois apenas a cessão dos direitos atinentes à opção de compra dos bens arrendados é que ocorreu no interregno de tempo passível de ser examinado na presente ação. Portanto, em face das razões anteriormente deduzidas improcede a pretensão das rés Nacional e Comprebem contra as sociedades arrendadoras, cujo intuito daquelas era de envolver estas nos efeitos a serem constituídos através da ação em exame, o que se mostra juridicamente impossível, uma vez que as arrendadoras sequer participaram do “contrato de promessa de compra e venda de imóveis, móveis e utensílios, instalações, fundo de comércio de lojas, veículos com transferência de direitos e obrigações”, avençado entre a autora e as rés, o qual é objeto do presente litígio. 2.11. A conclusão precitada decorre não somente das causas jurídicas de 149 pedir apontadas na peça vestibular, transferência de propriedades imobiliárias realizadas após a quebra e a alienação do estabelecimento comercial, lato sensu, sem a anuência dos credores, fatos jurídicos estes que se enquadram nas hipóteses taxativamente previstas na norma legal antes invocada, como também no próprio objeto da lide, cujos bens e direitos, representados aqui pelos contratos sujeitos à ineficácia relativa da ação falencial em tela, estão perfeitamente descritos e apontados na exordial, sendo que nesta não foram elencados os contratos de arrendamento mercantil avençados com as instituições arrendadoras citadas no feito em exame, portanto, contra estas entidades, não há qualquer pretensão a ser deduzida, pois o litígio se circunscreve contra quem deverá ocupar o pólo atinente aos arrendatários e os efeitos da ação revocatória contra estes, pois as cessões de direito realizadas é que estão sob o foco da análise falencial. 2.12. Feita a análise em tela, resta definir apenas dois aspectos quanto ao chamamento processual das entidades arrendadoras, realizado no presente feito: em primeiro lugar, a que título este ocorreu; e em segundo lugar, a quem cabe satisfazer o ônus da sucumbência quanto à intervenção daquelas nestes autos, na medida em que não há de ser atribuído às mesmas qualquer comando sentencial, seja de cunho constitutivo negativo ou condenatório. O primeiro ponto a ser solvido é quanto ao tipo de intervenção de terceiro a ser atribuído às entidades arrendadoras demandadas, sendo que, no caso em exame, entendo que a citação destas levada a efeito nos autos se deu à 150 guisa de denunciação à lide por parte das demandadas Nacional e Comprebem, pois esta seria a única forma processual de trazer o litisconsorte passivo ao feito, na forma do art. 71 do CPC, c/c o art. 70, inc. III, do mesmo diploma legal. Portanto, definido o tipo de intervenção ocorrida no presente feito, bem como tendo as demandadas Nacional e Comprebem dado causa a esta, conforme deflui do requerimento constante à fl. 230 dos autos, o qual obteve sucesso no agravo de instrumento anteriormente mencionado, aliado ao fato de que decaíram as rés-denunciantes da pretensão deduzida contra os denunciados, devem aquelas arcar com o ônus processual atinente às custas e honorários profissionais perante estes. Pontos incontroversos: quanto à existência do negócio jurídico objeto da revocatória; a falta de anuência dos credores da falida com a venda dos bens pertencentes à massa; e o conceito de estabelecimento comercial. 2.13. No que tange ao mérito da causa, entendo que merece integral guarida a pretensão da autora, tendo em vista que tanto os negócios jurídicos descritos na exordial, como também o prejuízo à massa, decorrente das referidas transações, restaram provados no curso da lide, o que autoriza a declaração da ineficácia daqueles atos frente à falida, posto que as vendas em questão não tiveram a ciência e muito menos a concordância de seus credores na época em que foram entabuladas, o que importa na incidência do disposto no art. 52, inc. VIII, da Lei de Falências. Aliás, a esse respeito é o parecer do culto curador das massas, às fls. 2.760/ 2.762, o qual acolho integralmente, in- SENTENÇAS clusive como razão de decidir, cujos argumentos passo a transcrever sinteticamente a seguir, de sorte a evitar tautologia: “Verifica-se pela análise do feito, que a Cia. Dosul realizou transação com os requeridos, da espécie compra e venda, descritas na inicial, pelo valor aproximado de R$ 11.698.000,00, integralizado também por fundo de comércio, além de não terem sido os bens devidamente individualizados. Na época, como sabido, a Cia. Dosul enfrentava enormes dificuldades econômicas, tendo efetuado negócio com os requeridos, por valores muito abaixo do valor real, conforme se depreende do teor da perícia contábil, causando prejuízo de milhões de reais. Ressalte-se que os negócios foram realizados antes do decreto falencial, quando inúmeras ações tramitavam com a falida, encontrando-se aqueles dentro do termo legal. “Tais circunstâncias mencionadas, sem que se faça necessária análise mais aprofundada, demonstram o prejuízo real trazido aos interesses da empresa, inclusive denotando administração temerária por parte dos sócios. Com base nisto, a teor do que preceitua o art. 52, inc. VIII, da Lei de Falências, sem que se perquira sobre má-fé em relação a credores, são os atos considerados ineficazes em relação à massa. A prova produzida é clara quanto à existência, na ocasião, de credores, bem como de títulos protestados. Portanto, inequívoca a ocorrência de prejuízo ao patrimônio da empresa, e, via de conseqüência, aos credores. Mas, no entanto, a prova leva ao reconhecimento, também, da intenção fraudulenta dos negociantes. Para tanto, traz-se à colação dois fatos que, no mundo negocial, não podem SENTENÇAS ser praticados, nem sequer por comerciantes desavisados, o que, sem dúvida, não é o caso das pessoas envolvidas. Primeiro, a situação de se ter alienado os imóveis por valores muito abaixo dos valores de mercado, e, além disso, recebendo em pagamento valor pequeno em dinheiro. Segundo, o fato de não se ter especificado os demais bens móveis que integraram a negociação, o que demonstra a forma no mínimo pouco cuidadosa da realização do negócio. A fraude aos credores, então, é induvidosa, entendendo-se necessária a declaração de ineficácia pretendida pela autora...”. Ainda, em nova manifestação, às fls. 2.959/2.961, o parecer precitado foi integralmente ratificando, tendo o agente do Ministério Público acrescentado: “... De se ressaltar, Excelência, meramente procrastinatório o arrolamento de prova oral formulado pelas demandadas, que, com a exclusão dos valores a título de fundo de comércio, deixam cabalmente provada sua intenção de fraudar credores, ainda mais considerando o vulto dos negócios realizados, os muitos títulos protestados anteriormente, os créditos fiscais não-honrados. A estimativa para alienação inferior aos valores de mercado, o que resta sobradamente comprovado nos autos pela prova documental acostada, não deixa qualquer dúvida sobre a procedência dos pedidos de ver declarada a ineficácia dos negócios objeto de exame, até porque não fossem lucrativos, não teriam sido compradas lojas, com móveis e veículos, etc.”. 2.14. Dessa forma, a venda dos bens pertencentes ao patrimônio da falida, sem anuência dos credores naquela 151 época, importaram em prejuízo tanto ao patrimônio da massa, que não teve condições financeiras de se soerguer após aquelas alienações, como ao concurso de credores, na medida em que aquele patrimônio deixou de integrar a execução coletiva com a diminuição dos quinhões a serem satisfeitos a estes dentro das respectivas categorias. 2.15. É importante aqui trazer à baila o conceito de estabelecimento comercial, questão esta magnificamente enfrentada em acórdão que trata de tema similar referente à mesma massa falida, cujo Relator foi o eminente Des. Osvaldo Stefanello, que, com rara acuidade jurídica, enfoca esta questão de maneira insofismável, como se vê a seguir: “Equivoca-se a apelante no que diz com o ‘conceito de estabelecimento comercial ou industrial’ para efeito de falência e arrecadação de bens. Está certo Requião, citado, aliás, pela apelante, ao dizer que estabelecimento comercial é a universalidade de fato constituída ‘pela complexidade de bens unitários, que são aglutinados pela vontade do empresário ‘para servir-lhe de instrumento de atividade’. (“Curso de Direito Falimentar”, 16ª ed., Ed. Saraiva, I/201) “Porém, da lição do comercialista, não se pode pretender limitar como estabelecimento comercial apenas os bens diretamente envolvidos com o comércio, ou bens de mercancia. Estabelecimento comercial é constituído dos bens de comércio sim. Mas nele incluídos estão todos os bens que lhe dêem suporte financeiro ao estabelecimento comercial. Ou seja, bens que não fazem diretamente parte da atividade comercial, ou não diretamente ‘integrados à atividade comercial da empresa falida’, 152 na palavra da apelante (fl. 130), mas que lhe dão suporte material, inclusive para efeito de dificuldades financeiras que possa enfrentar o comerciante em sua mercancia”. (Apelação Cível nº 599215597, TJRGS, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Osvaldo Stefanello, 1º-03-00) Assim, mais não precisaria ser dito, a não ser ressaltar que o conjunto dos bens objeto do pré-contrato de promessa de compra e venda de parte do patrimônio da falida, avençado em 1905-95 (fls. 39/40), cuja transferência foi concretizada através do contrato de promessa de compra e venda de bens imóveis, móveis e utensílios da autora na data de 1º-08-95 (fls. 41/44), dentro do termo legal e cerca de 01 ano e 03 meses, anterior à decretação da quebra, efetivamente constituíam um importante aporte econômico da falida, os quais geravam uma riqueza responsável por cerca de 60% do seu faturamento. Portanto, este ativo primordialmente imobilizado efetivamente integrava o estabelecimento comercial da massa, pois estava diretamente ligado à atividade comercial desta, razão pela qual se subsumia na universalidade de fato caracterizadora da aviamento mercantil da falida. As razões jurídicas para a fixação do termo legal a partir do primeiro protesto, em contraposição à data referente ao início do processamento da concordata. 2.16. Note-se que, ao contrário do que argumentam as rés em sua defesa, às fls. 218/222, o termo legal retrotrai até a data do primeiro protesto, portanto, é indiscutível que os negócios entabulados ocorreram neste interregno de tempo, de sorte que estão sujeitos ao SENTENÇAS exame do juízo falencial através da presente ação revocatória. 2.17. Ainda, quanto à fixação do termo legal, igualmente entendo correto que este tenha sido fixado a partir do primeiro protesto, pois não houve no processo de concordata, que culminou com a quebra da falida, concessão daquele favor legal, visto que o ato judicial que determinou o andamento daquele feito mencionado na exordial sequer é decisão interlocutora, posto que irrecorrível, mas se trata apenas de despacho ordenatório de admissibilidade do processamento da concordata, conforme estabelece o art. 161, § 1º, da Lei de Quebras. 2.18. Por outro lado, o despacho inicial do processo da concordata da falida não importa em atestado de solvabilidade da mesma, tendo em vista que no mesmo apenas são examinados os pressupostos pré-processuais e processuais quanto ao provável direito à obtenção do favor legal, como preleciona com extrema propriedade o jurista maior deste País, Pontes de Miranda, que, ao tratar desta questão, assevera que: “O despacho de processamento é de cognição não-plena” (“Tratado de Direito Privado”, tomo XXX, 3ª ed., p. 182). Dessa maneira, não tem o despacho o mesmo caráter ou equivale a uma sentença concessiva de concordata, por conseguinte, também, não pode servir como um atestado de solvabilidade da falida, tanto é fato que esta situação foi identificada no curso do processo em questão e teve como corolário a decretação da quebra da empresa falida. Por fim, quanto ao referido despacho que admite o processamento da concordata, SENTENÇAS é oportuno trazer à colação os ensinamentos dos juristas José da Silva Pacheco e Rubens Requião que asseveram: “Se o pedido estiver em ordem, o Juiz determinará o seu processamento. É esse despacho recorrível? No regime do direito anterior, decidiu-se que desse despacho não cabe agravo (“RT” nº 45/ 428), ou qualquer recurso (“Revista Forense” nº 119/460)” (Silva Pacheco, “O Processo de Falência e Concordata”, 6ª ed., p. 653). “No processamento preliminar da concordata, o Juiz não profere sentença. Cabe-lhe, apenas, em despacho deferir o pedido inicial para mandar processar a concordata, se esse for o caso. A sentença, esta sim, será proferida no final desta fase, após o procedimento de toda a instrução. Se o pedido estiver em termos, corretamente instruído como deve ser, o Juiz determinará seja processada a concordata, proferindo despacho ordenatório. Desse despacho não existe recurso.” (Rubens Requião, “Curso de Direito Falimentar”, 2º vol., Ed. Saraiva, 6ª ed., pp. 77/78) 2.19. A conclusão que se impõe diante da situação jurídica existente é uma só, a fixação do termo legal, tendo por critério o primeiro protesto, é inarredável e insofismável, pois não houve a concessão da concordata para que se admitisse a possibilidade jurídica de o período suspeito começar a partir da data da distribuição da concordata, o que traria como pressuposto ínsito nesta hipótese de que não haveria protesto superior a 30 dias deste termo, o que também não coaduna com a realidade no caso em exame, nem ao menos pode-se pretender mitigar a investiga- 153 ção judicial neste interregno de tempo, sob o argumento de que, se o mesmo se retrotraísse muito, traria insegurança jurídica ao adquirente de boa-fé, posto que o valor maior a ser preservado aqui não é o individual, mas, sim, o concursal consubstanciado na massa de credores. É importante destacar que, no interregno de tempo abrangido pelo termo legal, é suficiente para a fixação deste prazo estabelecer o marco final até quando o mesmo será retrotraído, ou seja, à data do primeiro protesto, pois o exame da solvência, ou não, da falida ante as presunções estabelecidas em lei, quanto a este tema, militam contrariamente ao negócio entabulado, consoante esclareci anteriormente. 2.20. Em contrapartida, não há que se discutir da conveniência ou oportunidade da fixação do termo legal, levando em conta apenas a análise de uma das contas do balanço, ou com fulcro em publicações do meio empresarial, pois somente o exame econômico-financeiro da referida empresa é que vai revelar sua real situação de solvência no curso dos anos e, em especial, na época em que foram realizados os referidos negócios jurídicos, na medida em que o balanço patrimonial é apenas uma fotografia no tempo da sociedade comercial, que, dependendo do ângulo favorável, pode ocultar os índices de endividamento da empresa e sua própria solvabilidade, como se vê no caso em exame, no qual a venda dos bens descritos na exordial por preço reduzido acarretou a crise econômico-financeira que restou na quebra da postulante. Além do que, na fixação do termo legal, não se discute a insolvência ou 154 liquidez da empresa falida, mas, sim, os atos praticados por esta, que tanto podem ter sido causa da insolvência ou decorrerem desta, sendo que em qualquer hipótese o norte é a verificação se do negócio jurídico pactuado houve, ou não, prejuízo à massa ou aos credores, face ao tratamento desigual dado a estes últimos. 2.21. No que concerne ao exame do termo legal, as questões a serem enfrentadas inicialmente são quanto à sua finalidade e o seu lapso de duração. A toda evidência que este interregno de tempo está intimamente ligado com os atos jurídicos praticados pela falida, anteriormente à decretação da quebra e da eficácia destes quanto à massa, pois não se discute aqui a validade do negócio jurídico entabulado entre as partes, mas sua ineficácia relativa em sede de ação revocatória, aliás este interstício serve para ser verificado judicialmente, se a referida transação trouxe, ou não, prejuízo à massa. Assim, o lapso de tempo precitado, o qual alguns autores denominam de período suspeito tem como razão jurídica a verificação judicial anteriormente mencionada e, por isso, retrotrai a partir do primeiro protesto até o termo final do 60º dia deste marco, consoante estabelece o art. 14, inc. III, da Lei de Falências, veja-se que não há qualquer limitação legal quanto ao prazo que deva decorrer entre a decretação da quebra e o primeiro protesto, pois está condicionada esta investigação a este evento pretérito certo que serve para presumir o estado de insolvência. Frise-se que o protesto marca a impontualidade na satisfação de obriga- SENTENÇAS ção líquida, certa e exigível, o que faz presumir o estado de insolvência, isto é, que a empresa enfrenta crise econômica, uma vez que o seu patrimônio líquido é negativo, na medida em que a soma de suas coisas corpóreas e incorpóreas (bens + direitos) é menor do que as obrigações que assumiu (débitos), culminando com o afastamento desta sociedade do meio produtivo, em função de não possuir mais condições econômicas e financeiras de prosseguir no comércio, situação esta que não surge com a decretação da quebra, ao contrário, já vigora de longa data, portanto, neste período os negócios realizados devem ser investigados com precisão e cautela, de sorte a que não sejam lesados os credores da falida e desatendido o princípio de ordem pública e essencial ao desenvolvimento do processo falimentar do par conditio creditorum. É oportuno trazer à colação a este respeito a ementa da decisão proferida nos autos do Agravo de Instrumento nº 582001251, cujo Relator foi o saudoso Des. Antonio do Amaral Braga, quando então compunha a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, quando, com rara acuidade jurídica, definiu esta questão da fixação do termo legal, ao asseverar que: “Falência. Termo legal. Deve ser fixado quando caracterizada a insolvência. Protesto de título. Pouco importa se não foi o único. O pagamento em cartório não elide a presunção que o protesto faz gerar. Os protestos, protestos válidos, não têm na realidade a menor influência na hipótese, porque o que se quer para fixar o termo legal da falência é a época em que se verificou a defasagem econômica da firma SENTENÇAS falida. Isto está em Waldemar Ferreira, Valverde e outros autores, que agora vou-me furtar de citar”. Prejuízo à massa e a incidência das hipóteses do art. 52 da Lei de Quebras, análise quanto à situação financeira da falida no período suspeito e ao preço de venda dos imóveis. 2.22. No caso em exame, não há a menor dúvida de que houve o efetivo prejuízo aos demais credores com as transações consubstanciadas no pré-contrato de promessa de compra e venda de parte do patrimônio da falida, avençado em 19-05-95 (fls. 39/40), cuja transferência patrimonial foi concretizada através do contrato de promessa de compra e venda de bens imóveis, móveis e utensílios da autora, na data de 1º-08-95 (fls. 41/44), avençados entre as partes e objetos da presente ação revocatória, tendo em vista que houve a venda de ativo imobilizado substancial da falida, o qual contribuía com cerca de 60% do faturamento da mesma, de acordo com a análise comparativa realizada às fls. 35/38 do período anterior ao referido negócio jurídico e o imediatamente posterior aos pactos em exame, informação técnica esta na qual se constata, também, a drástica redução do quociente de solvência. Frise-se que aquela fonte de receita, uma vez retirada da falida, por certo foi uma das causas determinantes de sua derrocada econômica e quebra, visto que, no seu ramo de atividade comercial, é de fundamental importância a manutenção de elevado número de imóveis (lojas) ligados ao seu objetivo social, de sorte a atingir o maior número de consumidores e mercados, a fim 155 de obterem a necessária lucratividade com o giro da mercadoria adquirida de seus fornecedores, o que foi inviabilizado pelos negócios jurídicos em exame. 2.23. É oportuno considerar, ainda, que o fato de alguns dos imóveis que fazem parte da presente demanda serem objeto de arrendamento mercantil com opção de recompra pela falida em nada invalida as assertivas precitadas, tendo em vista que os contratos de leaseback avençados pela postulante autorizariam esta a consolidar o domínio sobre os referidos bens, direitos estes cedidos para a primeira demandada. Aliado ao fato de que o ponto comercial relativo a estas lojas estava sob a guarda e uso da autora, exercendo esta suas atividades comerciais naquele local, bem como obtendo receita operacional de porte com estas, sendo que a entrega das mesmas às rés através dos contratos analisados na presente ação falencial trouxe prejuízo econômico àquela. Situação esta que veio em detrimento da massa subjetiva de seus credores, posto que foi retirada a possibilidade do síndico de exercer a opção de cumprir os referidos contratos de leasing, em benefício daqueles, hipótese esta que está expressamente autorizada no art. 44 da Lei de Quebras. 2.24. Outro ponto que merece ser destacado na lide é o que diz respeito à assunção de obrigações da falida por parte da ré Nacional, situação jurídica esta que em nada favorece as demandadas, ao contrário do que as mesmas asseveram à fl. 216, no sentido de que: “Se a falida favoreceu algum credor em detrimento de outros, é matéria total- 156 mente alheia ao presente processo, eventualmente reconhecida afronta ao princípio da par conditio creditorum, na forma do art. 52, inc. II, a única conseqüência é a devolução do dinheiro à massa”; posto que a ação revocatória tem precisamente o intuito de recompor a isonomia de tratamento entre os credores da massa na sua respectiva categoria. Portanto, o negócio jurídico que deu causa a este descompasso deve ser atingido pela ineficácia relativa do presente feito, a fim de restabelecer as condições de acesso ao concurso do ativo da falida. 2.25. Aliás, no que tange aos credores da falida é preciso que se diga que as demandadas também estavam nesta condição à época dos referidos negócios jurídicos de promessa de compra e venda, portanto, aproveitaram-se desta situação para trocarem direitos obrigacionais por imóveis do ativo imobilizado da Massa, satisfazendo sem qualquer critério técnico alguns dos credores da postulante, inclusive obtendo vantagem com a dilação dos prazos para honrarem aquele passivo, sem o correspectivo acréscimo financeiro (juros). Ademais, a ré Nacional também conseguiu desconto de um dos fornecedores pagos na ocasião (fl. 1.502), quando já era evidente o estado de insolvência da mesma, o que contraria os princípios precitados referentes a concurso de credores e é, igualmente, razão suficiente para que os contratos objetos do litígio sejam atingidos pela ineficácia relativa frente à autora, retornando os referidos bens a integrarem o ativo da falida, pois não houve o ingresso de qualquer receita no fluxo de caixa da falida. SENTENÇAS 2.26. Assim, em função dos fatos anteriormente narrados, é de se concluir que: ou a demandada Nacional é uma empresa excessivamente crédula e benemerente, ou os negócios entabulados lhe foram desproporcionalmente favoráveis; hipótese esta que se mostra mais crível, visto que existiam cerca de “12.909 títulos protestados à época da realização do negócio jurídico atacado de créditos superiores a R$ 100.000,00 (fls. 1.479/1.480), dívidas junto às Fazendas Públicas e INSS no montante de R$ 25.430.002,85 (fl. 1.491)”, conforme constatado pelo perito nomeado por este Juízo, o que é confirmado pelo assistente técnico da autora, e não é negado pelo assistente da ré, o qual apenas traça juízos de valor, e não técnicos, sobre a possibilidade de discussão judicial quanto aos referidos créditos, numa clara tentativa de descaracterizar o estado de insolvência da postulante, por ocasião das transações levadas a efeito, o que, aliás, foi a tópica da defesa apresentada pelas rés. 2.27. A par disso, o laudo pericial atesta às fls. 1.498, in fine, e 1.504 que não houve a satisfação do fundo de comércio atinente às lojas transacionadas nos contratos objetos do litígio, cujo valor monta em R$ 4.383.116,55, excluída aqui a loja Dosul nº 65 por impossibilidade técnica de realização do cálculo, o que aliás é ponto incontroverso da lide, posto que confirmado pelas rés em sua defesa, à fl. 218, ao afirmarem que: “O fundo de comércio não fazia parte do negócio, nem interessava à Nacional ou à Dosul”; isto é, não interessava àquela demandada pagar pelo mesmo, na medida em que o ponto SENTENÇAS comercial foi vendido com a característica intrínseca em tela, aderindo esta à referida transação, sem que fosse dado pelo mesmo a correspectiva prestação monetária. Vantagem econômica esta recebida pelas rés em detrimento dos demais credores da falida, acresça-se a isto a receita projetada no valor de R$ 1.964.844,63, a qual perdeu a autora com a transação em exame, e se tem uma idéia clara do prejuízo ocasionado com o negócio jurídico sub judice, em especial, relativamente aos credores que não integraram a referida avença (fl. 1.508). 2.28. Não obstante isso, ou seja, que as próprias rés tenham negado a aquisição do fundo de comércio, o assistente técnico das demandadas se posiciona em sentido contrário, às fls. 1.843 e 1.851, restringindo-se a limitar este as coisas corpóreas pertencentes à falida, bem como afirmando que houve a aquisição do mesmo pelo simples fato de ter sido referido isto expressamente no compromisso de compra e venda avençado entre as partes, em 1º-08-95, argumentos estes que não subsistem a uma melhor análise técnica e à realidade fática comprovada pelas provas carreadas aos autos, sendo oportuno aqui trazer à baila as conclusões do perito nomeado por este Juízo, a seguir: “O critério de análise e determinação do lucro líquido mensal do estabelecimento em tela – Cia. Dosul de Abastecimento – para as lojas em questão, cinge-se no aspecto simples e de fácil constatação de que os resultados de uma empresa que apresenta dificuldades financeiras, em concordata ou até em fase de falência, 157 não tem como significado a falta de atratividade comercial, mas em geral e com muita freqüência problemas gerenciais e até de má-administração. (fl. 2.771, in fine) “Se assim não fosse em relação à empresa em questão, se o fundo de comércio desta fosse ‘fundo de fracasso’, como foi conceituado no laudo das fls. 1.837/1.871, numa tentativa de demonstrar que as lojas em questão não tinham atratividade e, em conseqüência, não tinham fundo de comércio, não teria sentido a aquisição das lojas em questão pela empresa-ré. “O valor potencial é representado no meio avaliatório e empresarial pela capacidade que uma determinada empresa, no seu todo ou pela individualidade que cada filial possui, de produzir renda máxima. Este valor pode-se situar além ou aquém do valor econômico representado pelos seus resultados, e uma avaliação deste valor econômico se mostra, face a este valor potencial, um negócio oferece, ou não, atrativos para aplicação de capitais (fl. 2.773). “A alma do negócio seria nada menos do que a força atrativa, que a fama dos estabelecimentos, o prestígio das marcas, o valor das invenções, a irradiação da simpatia e a afabilidade que os empregados exercem sobre a clientela (Clóvis Costa Rodrigues). A freguesia é a probabilidade que o comprador habitual terá no local antigo (Anson Marston e Tomas Agg, fl. 2.774)”. (omissis e grifos nossos) No mesmo diapasão, é o parecer do assistente técnico da postulante, à fl. 1.916, ao asseverar que: “Pretender apurar o fundo de comércio a partir do 158 resultado líquido obtido pela empresa, e não pela sua capacidade geradora de receita, poderia levar a equivocada e inaceitável possibilidade de ter-se fundo de comércio negativo, o que tecnicamente seria uma aberração contábil”. 2.29. Dessa forma, desnecessário seria fazer qualquer outro comentário a respeito do denominado fundo de comércio, uma vez que ficou suficientemente demonstrado que este é constituído também por coisas incorpóreas, como, por exemplo, o ponto comercial e a clientela, as quais certamente não foram consideradas nos negócios jurídicos levados a efeito e objetos da presente ação, na medida em que foi em conta, tão-somente, os bens corpóreos prometidos à venda pela falida, decréscimo este que veio em prejuízo não só desta, mas dos credores que formam a massa subjetiva, situação jurídica que autoriza a presente ação revocatória, em especial, em razão de não terem anuído a integralidade dos credores que a transação em tela. 2.30. Ainda, a respeito do efetivo prejuízo causado aos demais credores da falida que não fizeram parte dos negócios jurídicos objeto do litígio, é preciso que se tenha presente que a autora já se encontrava em estado de insolvência por ocasião dos negócios jurídicos examinados nestes autos, o que, num primeiro momento, não foi possível ser detectado no balanço especial apresentado quando do pedido de concordata desta, mas que foi perfeitamente identificado na análise técnica feita pelo perito nomeado por este Juízo, o que por si só é razão suficiente para comprovar o dano causado à massa SENTENÇAS subjetiva e à quebra do tratamento isonômico entre os credores de mesma categoria. 2.31. Quanto a este ponto do litígio, é fundamental verificar a criteriosa análise realizada pelo perito designado neste feito, a quem coube desvelar tecnicamente esta questão, como deflui das assertivas a seguir transcritas: “Os quocientes acima demonstram, como já dito, que a cobertura do passivo total só se postava viável com a participação do ativo permanente. Assim, com seu ativo circulante, a empresa só poderia quitar 45,3% do passivo circulante; com o ativo circulante acrescido do realizável a longo prazo poderia quitar 43,7% do passivo total. Por conseguinte, o ativo permanente teria de, em qualquer dos quocientes, contribuir com mais de 50% à cobertura do passivo. “Conclui-se do exposto que inobstante o balanço demonstrar posição ainda de solvência (patrimônio líquido positivo), a situação financeira da Cia. Dosul de Abastecimento postava-se extremamente difícil, já se vislumbrando a necessidade de moratória (fls. 1.517/ 1.518). “O pedido foi instruído, dentre outros documentos, com o Balanço Patrimonial de 31-12-95, por onde se infere, claramente, um estado de insolvência (fl. 1.521). Sob o aspecto puramente aritmético, considera-se que o patrimônio líquido manteve-se – embora em escala decrescente – positivo, as posições acima tabuladas são de solvência (fl. 1.522). “Em relação às posições calculadas em 31-12-94 (quesito f) constata-se, à evidência, deterioração na situação eco- SENTENÇAS nômico-financeira da autora. Como demonstrado, o ativo circulante não cobria mais do que 35% do passivo circulante em 30-04-95 e, em 31-05-95, mais do que 34%; esse ativo circulante acrescido do realizável a longo prazo cobria o passivo total nos percentuais de 36% e 35%, respectivamente, nas datas citadas. A dependência do ativo permanente, destarte, aumentou para 64% e 65%, respectivamente, nas duas datas. “Ainda com referência às datas mais próximas da negociação sub judice, verifica-se que o balancete de 30-04-95 projetava um prejuízo da ordem de R$ 7.252.217,67 e, o de 31-05-95, de R$ 9.248.870,74 (acumulado). Nessa projeção, fácil concluir-se que já no mês seguinte o quociente de solvência passaria a negativo. “Das análises expostas, consideradas conjuntamente, denota-se que na época em questão a situação econômico-financeira da Cia. Dosul de Abastecimento postava-se à beira da insolvência e préfalimentar (fl. 1.528). A partir do mês de junho de 1995, a contabilidade da Cia. Dosul de Abastecimento passou a demonstrar patrimônio líquido negativo (passivo a descoberto), como adiante demonstraremos. “Em tal situação, concluímos, após vários testes, não ser aplicável a fórmula de cálculo de Fatores de Insolvência de Kanitz e decorrente aferição pelo respectivo Termômetro de Insolvência. Aliás, a citada situação patrimonial líquida negativa por si só, obviamente, já caracteriza posição de insolvência (fl. 1.534). “O quociente de solvência da empresa, embora já em descendência rela- 159 tiva a partir de janeiro de 1995, agravou-se relevantemente após o mês de maio. Os índices médios obtidos da análise dos balancetes dos meses de janeiro a dezembro de 1995 ficaram assim divididos: quociente médio de janeiro a maio de 1995: 1,14 (solvente); quociente médio de junho a dezembro de 1995: 0,46 (insolvente) (fl. 2.779). “Quanto às receitas operacionais (vendas), saliente redução após o mês de maio de 1995, assim evoluindo até o final do ano. No exercício seguinte, não houve retomada dos níveis operados no período de janeiro a maio de 1995. Das análises expostas, é de concluir-se que no período estudado houve efetiva redução da atividade econômica da autora Cia. Dosul de Abastecimento, ora em regime falimentar”. (fl. 2.780) (omissis e grifos nossos) Igualmente, o assistente técnico da autora reafirma as conclusões do laudo pericial ao asseverar que: “De outra parte, apenas com os elementos da contabilidade da autora, que como se sabe, nem sempre espelham o real valor dos bens do ativo permanente imobilizado, é possível verificar que, com a transferência de 85,11% ou 85,47% do seu permanente, a autora quitou tão-somente 63,30% ou 60,29% do seu passivo quirografário (fl. 1.921). “Vale dizer, com a redução de cerca de 85% da sua capacidade de gerar receitas, em valores contábeis, a autora reduziu apenas cerca de 60% do seu passivo. As decorrências de tal negociação, conforme já se informou, foram o agravante da situação financeira da empresa e da sua posterior insolvência, com prejuízo aos credores (fl. 1.922). 160 Conforme acima informado, o prejuízo aos credores da autora são evidentes diante da transferência de patrimônio aos credores da massa falida, que tiveram as garantias dos seus créditos extintas ou, pelo menos, consideravelmente diminuídas. (fl. 1.923) “Mais uma vez restou claramente demonstrado no quesito que após a concretização do negócio com as rés o quociente de solvência da empresa, que até maio/95 lhe permitia pagar suas dívidas, tornou-se decididamente negativo, caracterizando sua insolvência e quebra. Tal situação, repita-se, deveu-se à drástica redução da capacidade de geração de receitas, de forma desproporcional à redução das suas dívidas (fl. 1.947)”. 2.32. Portanto, em razão dos dados técnicos anteriormente mencionados, não é preciso ser expert para chegar à conclusão de que os negócios jurídicos entabulados entre as partes foram danosos à falida e aos demais credores, pois, a partir de maio de 1995, houve considerável redução patrimonial de seu ativo permanente (investimentos, imóveis, maquinário, etc.), cerca de 80%, cujo corolário econômico foi a redução de 2/3 de sua atividade mercantil e receita operacional (vendas), o que ocasionou a impossibilidade de satisfazer as suas obrigações de curto prazo (passivo circulante), ou seja, os seus fornecedores, culminando por arrastar a autora para área de insolvência, segundo “os fatores de Kanitz”, isto é, a redução de seus bens (coisas corpóreas) e direitos (coisas incorpóreas) fez com que suas obrigações ultrapassassem o somatório daqueles e fizessem com que o patri- SENTENÇAS mônio líquido se transformasse em negativo (bens + direitos – obrigações < 0), isto é, na crise econômica que caracteriza o estado falimentar. A par disso, o assistente técnico da ré discorda das conclusões do perito oficial sem justificar o porquê, ou melhor usando o pífio argumento de que não houve prejuízo aos demais credores, pois foram pagos 98% dos títulos protestados (fl. 1.856), ou seja, que a satisfação de pequena parcela dos credores quirografários, se considerados apenas estes títulos em relação a toda gama de categorias de credores (trabalhistas, fiscais, etc.), e mais, limitado aqueles a alguns fornecedores, seria suficiente para preservar o princípio do pars conditio creditorum e evitar o dano causado à massa subjetiva, o que não corresponde à realidade. Por fim, também não podem prevalecer as afirmações do assistente técnico das demandadas de que, no período no qual foram realizados os negócios jurídicos entabulados entre as partes e objeto da discussão no presente feito, o patrimônio líquido da autora era positivo, nem que a referida transação foi vantajosa para esta, pois estas assertivas são inconsistentes frente à realidade, pois se isto efetivamente correspondesse à verdade, pergunta-se: por que a concordata se tornou inviável, e a postulante pleiteou sua autofalência? A resposta a este questionamento é uma só e já foi dada anteriormente, a venda de grande parte do patrimônio da autora ocasionou a inviabilidade econômica da mesma e a sua quebra. Ademais, o assistente técnico das rés excluiu do mês de maio de 1995 (fl. SENTENÇAS 1.858) o valor do primeiro negócio jurídico entabulado entre as partes e objeto da lide, quando a referida transação foi levada a efeito neste interregno de tempo (19-05-00), em manifesta contradição aos princípios contábeis da oportunidade e da competência, dispostos, respectivamente, nos arts. 6º e 9º da Resolução do Conselho Federal de Contabilidade, de 29-12-93, a fim de constatar a variação patrimonial e consignar as alterações do ativo e passivo no momento em que ocorreram. Manobra esta com o claro intuito de obter um resultado positivo para o patrimônio líquido naquele período e distorcer a análise patrimonial da falida, levada a efeito pelo perito oficial, sem atentar aos parâmetros fundamentais de confiabilidade e certeza da contabilidade criada por Lucca Pacciolo, nem ao princípio comezinho da partida dobrada, isto é, a cada débito corresponde um crédito de igual valor no exato ponto de sua efetivação, o que poderia passar desapercebido por este magistrado, não fosse o fato de ser especialista em finanças empresariais pela Fundação Getúlio Vargas, o que equivale ao grau de economista. 2.33. O último ponto a ser examinado, que também demonstra de forma insofismável o prejuízo causado à massa de credores com os negócios jurídicos sub judice, diz respeito ao fato de que os bens e direitos vendidos pela falida à ré Nacional o foram por valor inferior ao preço de mercado destes, consoante está comprovado no laudo de engenharia das fls. 1.960/2.002, no mínimo no que tange aos bens imóveis nos quais houve a fixação do valor destes pelo perito oficial em R$ 161 20.443.822,96 para aquela época (fl. 1.992), os quais acrescidos ao valor dos móveis, utensílios e instalações no mesmo montante contratado de R$ 8.302.000,00, bem como da quantia de R$ 900.000,00 (fl. 2.190), relativa aos veículos transacionados, mais o fundo de comércio no quantum de R$ 4.383.116,55, importam em R$ 34.028.939,51. Em contrapartida, o passivo assumido por aquele demandado foi de R$ 25.821.357,00 e que foi a base pecuniária da referida transação, embora não houvesse aqui transferência de valores para a falida, mesmo assim houve o deságio de 24,12% sobre o preço que deveria ter sido fixado para referida venda, isto é, uma diferença em termos nominais de R$ 8.207.582,51, sendo que este montante deixou de ser acrescido na receita não-operacional da falida, ocasionando dano a esta, assim como aos credores da autora, que deixaram de obter este aporte financeiro. Note-se que o referido deságio chegaria ao percentual de 41,51%, se considerado apenas o valor da avaliação dos bens imóveis, à fl. 1.992, e aquele estipulado contratualmente para estes nos compromissos de venda avençados entre as partes, cuja vantagem do demandado se mostra desarrazoada e prejudicial aos demais credores. Igualmente, não passou desapercebido deste magistrado que as lojas negociadas “estão localizadas junto a grandes conjuntos habitacionais” e “não há nenhum imóvel de características semelhantes nas imediações das lojas mencionadas” (fl. 1.991), fatos econômicos estes que aumentam a vantagem da aquisição feita 162 e, em contrapartida, o dano da referida transação quanto à falida e seus credores, pois torna maior o prognóstico relativo ao lucro cessante com a perda da receita operacional destas. 2.34. Há que se ressaltar que nem ao menos deve ser levado em conta para o deslinde do litígio se o preço fixado para venda dos imóveis da autora, no caso dos compromissos de compra e venda avençados com a ré Nacional, datados de 19-05-95 e 1º-08-95, estavam, ou não, acima do valor fiscal, uma vez que este sabidamente é menor que o de mercado, aliado ao fato de que nem ao menos a integralidade do contratado foi cumprida, pois a dívida assumida com o Bamerindus, no valor de R$ 650.000,00, não foi satisfeita, o que aliás foi indicado pelo assistente técnico da autora, à fl. 1.908, e também deve ser considerado para aferir o prejuízo causado à massa subjetiva. Ressalte-se que alguns dos imóveis vendidos pela autora se encontravam com gravames naquela ocasião (fls. 2.005/2.019), o que bem demonstra o prejuízo efetivo causado a estes credores e ao próprio concurso com os negócios jurídicos em questão, posto que o referido passivo não foi satisfeito, comprometendo a solvabilidade da autora, o que por certo também foi mais um fator que serviu para dar causa à quebra desta. 2.35. Assim, o conjunto probatório anteriormente mencionado é suficiente para demonstrar a lesão causada aos demais credores concursais, bem como motivo bastante para declaração de ineficácia dos referidos negócios jurídicos, SENTENÇAS situação esta que deixa claro o prejuízo sofrido pelos demais credores com a prática dos referidos negócios, contra os quais já militava a presunção de que foram lesivos à massa, segundo ensina Pontes de Miranda, quando trata das ações revocatórias. 2.36. Portanto, ao contrário do propugnado pelos réus, os referidos negócios jurídicos trouxeram prejuízos financeiros para à massa de credores, visto que as transações levadas a efeito além de diminuírem o patrimônio que servia de garantia aos credores da falida, também importaram em fluxo de caixa inferior ao que teria obtido esta, caso não se tivesse desfeito daquela parcela significativa de seus bens, pois teve ‘receita não-operacional menor do que a previsível para este tipo de negociação imobiliária’ na época em que foi realizada a venda dos imóveis descritos na exordial, o que se encontra devidamente demonstrado nos autos pela documentação anteriormente mencionada, e não foi objeto de qualquer impugnação, tornando-se incontroverso este ponto da lide. 2.37. Assim, deve ser levado em conta não só se o preço dos imóveis vendidos era o de mercado, ou não, hipótese esta que se constata pelo mero exame do laudo das fls. 1.960/2.002 dos autos, na medida em que há um deságio de cerca de 41,51% entre o preço fixado para aqueles bens nos contratos das fls. 39/40 e 41/44 dos autos e o apurado na avaliação precitada, o que por si só já serviria para demonstrar o referido dano comercial com as transações em exame, mas, sim, se estes negócios jurídicos trouxeram prejuízos financei- SENTENÇAS ros à falida, bem como se acarretaram lesão aos credores da massa, em razão de ter sido desfalcado o ativo concursal a ser partilhado entre as diversas categorias de crédito, situações estas igualmente comprovadas através de laudo técnico contábil, às fls. 1.487/1.535. 2.38. Releva ponderar, ainda, que as transações realizadas entre a primeira ré e a autora e a segunda ré e aquela se encontram eivadas de vício de origem, consoante dispõe o art. 52, em seus incs. VII e VIII, da Lei de Falências, quanto à incidência daquela primeira hipótese normativa, pouco há a ser acrescentado, posto que, sob o prisma que se examine a lide, os negócios jurídicos em tela foram lesivos à massa de credores, quer quanto à venda do referido patrimônio isoladamente considerada, quer quanto às suas repercussões econômico-financeiras, como também o próprio preço fixado para os referidos bens, o qual foi inferior ao de mercado. Portanto, ao contrário do pugnado pelas demandadas em sua defesa, não é o fato isolado relativo à averbação da transferência imobiliária, levada a efeito após a quebra, que está sendo levado em conta para decisão do litígio, mas a repercussão dos atos praticados e danos causados à massa, o que também serve para retirar a eficácia destes compromissos de venda frente à falida. Frise-se que o fato supracitado, ou seja, a venda de alguns dos imóveis sem prenotação anterior à quebra, conforme deflui dos registros insertos nos autos, o que aliás é incontroverso, ou do estabelecimento comercial sem o consentimento dos credores, por si só são causas suficientes para a declaração de 163 ineficácia relativa da venda do referido patrimônio, situações estas que poderiam ser conhecidas inclusive no curso da lide e mesmo de ofício por este Juízo, sob dois fundamento: o primeiro, de que nesta fase do processo falimentar o interesse a ser tutelado é de ordem pública, portanto, o magistrado pode agir mesmo de ofício na busca de solução que atenda ao princípio do pars conditio creditorum; o segundo, de que os fatos em questão são constitutivos do direito da autora e, por via de conseqüência, devem ser levados em conta para a resolução do litígio, consoante preceitua o art. 462 do CPC. 2.39. Por conseguinte, sob o ponto de vista que se examine a causa se constata o prejuízo causado ao patrimônio da falida e aos credores desta, pois houve redução do ativo sem acréscimo financeiro ou melhoria no fluxo de caixa, visto que não houve entrada de recursos para a Massa, o que atinge o basilar princípio do concurso falimentar consubstanciado no tratamento igualitário entre os credores, bem como atentando a ordem legal de pagamento destes, em prejuízo a privilégios especialíssimos, como os dos credores trabalhistas e dos tributários. Ineficácia relativa, discussão de boa-fé ou de fraude, possibilidade jurídica do exame da revogatória e cisão parcial da sociedade e mérito da ação cautelar em apenso. 2.40. É oportuno mais uma vez trazer à baila a lição anteriormente mencionada pelo jurista Pontes de Miranda, no sentido de que, em se tratando de ineficácia relativa a ser declarada na ação revocatória, não há que se cogitar de 164 boa ou má-fé do adquirente de bem pertencente à massa, cuja transação foi atingida pela declaração de ineficácia, aliás, esta condição jurídica está expressamente prevista no caput do art. 52 do Decreto-Lei nº 7.661/45. Aliás, a esse respeito é o aresto trazido à colação a seguir: “Falência. Restituição de mercadoria. Venda do estabelecimento comercial durante o termo legal da falência. Comprador que substitui o sucedido em seus direitos e obrigações. Administração dos bens. Inadmissibilidade. Boa ou má-fé irrelevantes. Ausência de efeitos relativamente à massa. Art. 52, caput, da Lei de Falências. Recurso não-provido. No caso concreto, não há que se cogitar da ocorrência de boa ou má-fé, pois a lei em, nenhum momento, estabelece tal requisito, apenas dispondo que ‘não produzem efeito relativamente à massa, tenha, ou não, o contratante conhecimento do estado econômico do devedor, seja, ou não, a intenção de fraudar credores’ (art. 52, caput, da Lei de Falências), cabendo ao devedor a notificação de seus credores por meio judicial ou de Cartório de Registro de Títulos e Documentos, com o firme propósito de cientificá-los da intenção de negociar seu estabelecimento (inc. VIII do mesmo artigo e diploma legal)”. (Apelação Cível nº 205.059-1, TJSP, “JTJ” nº 154/75) 2.41. Portanto, as condições pelas quais foram feitos os negócios jurídicos atingidos pela ineficácia a ser declarada, frente à massa falida, pouco importam para o deslinde do litígio, posto que não se está questionando sob este prisma a idoneidade dos intervenientes SENTENÇAS na cadeia civil de transações imobiliárias quanto aos imóveis e demais bens móveis objeto do presente feito, ou sequer se estas foram lícitas, pois o que interessa à causa é a prática dos referidos atos dentro do termo legal, e que os mesmos importaram em prejuízo não só à falida, como também à massa subjetiva de credores desta, devido ao desfalque patrimonial que sofreu com as referidas transações. 2.42. Dessa forma, embora fosse despiciendo adentrar na questão atinente à revogatória disposta no art. 53 da Lei de Quebras, pois já considerados os negócios jurídicos em tela ineficazes relativamente frente à massa, a fim de que não fique nenhuma questão sem resposta, entendo que até mesmo deveriam ser desconstituídos aqueles, pois seria possível juridicamente o exame desta matéria no caso em exame. 2.43. O primeiro ponto a ser abordado a esse respeito é quanto à intenção de fraudar, a qual não é flagrada através de prova plena ou contundente de tal prática, o que seria até mesmo juridicamente inexigível, mas é suficiente para estabelecer a ocorrência de tal vício e, por via de conseqüência, a anulabilidade do negócio avençado entre a massa falida e os réus, relevantes indícios de que isto tenha ocorrido e o prejuízo efetivo que tais atos tenham causado a terceiros, o que é incontroverso no caso em tela, conforme exaustivamente demonstrado na presente sentença. Aliás, a esse respeito são os arestos trazidos à colação, a seguir: “Falência. Ação revocatória. Requisitos. Presunção de fraude evidente. A ação revocatória SENTENÇAS corresponde, no âmbito do juízo falimentar, à actio pauliana do juízo cível. São seus pressupostos o eventus damni, que é o prejuízo para a massa, que vê reduzido seu patrimônio em detrimento de credores, pela fraudulenta venda de imóvel; mais o consilium fraudis, que é a consciência ou previsão de prejudicialidade, com ênfase na pessoa do alienante, somada à participatio fraudis, implementada pelo conhecimento do adquirente, ainda que presumido, da situação de insolvência do alienante. A alienação, quando vários pedidos de falência já se encontravam ajuizados, feita à empresa pertencente ao irmão do alienante falido, é suficiente, per se stante, para autorizar reconhecida a fraude”. (Apelação Cível nº 586016818, 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, Rel. Des. Jauro Duarte Gehlen, julgada em 25-05-87) “Falência. Transferências de bens do devedor inadimplente no termo legal da falência. Por isso que a transferência de bens imóveis de uma para outra sociedade, então composta dos mesmos participantes, no caso, marido e mulher, foi realizada com fraude aos credores no termo legal da falência, esses fatos são, quando menos, ineficazes e revogáveis e, assim, inoperantes diante dos credores da falida, valendo, contudo, o negócio jurídico celebrado por um dos dirigentes dessa sociedade com estabelecimento financeiro e mediante garantia hipotecária, por isso que evidente a inexistência de fraude para com terceiros no caso concreto, além de não ter sido citada para o litígio a credora hipotecária.” (Apelação Cível nº 590031985, 4ª Câmara Cível do Tribunal 165 de Justiça do Estado, Rel. Gervásio Barcellos, julgada em 29-04-92) 2.44. Também é oportuno trazer à baila que a falida já apresentava elevado coeficiente de endividamento, patrimônio líquido negativo, dentre outros fatores econômico-financeiros desfavoráveis examinados anteriormente quando da referida transação, conforme ficou evidente no laudo pericial contábil das fls. 1.487/1.535, portanto, a venda dos referidos bens importaram em verdadeira dilapidação do ativo da massa e prejuízo evidente dos credores, o que também já foi demonstrado. 2.45. Por conseguinte, deflui da minuciosa narrativa precitada indícios suficientes para crer que efetivamente ocorreu o consilium fraudis, o que autoriza a decretação não só da ineficácia como da nulidade da referida compra-e-venda dos bens imóveis e móveis descritos na exordial, bem como o retorno dos mesmos ao patrimônio da massa, consoante preconiza o art. 53 da Lei de Quebras, fato este suficiente para integral procedência da presente ação. Ainda, valho-me aqui mais uma vez do lapidar acórdão anteriormente citado, de lavra do culto Des. Osvaldo Stefanello, ao tratar de tema semelhante, relativo à mesma massa, asseverando que: “Daí por que não apenas com simulação agiram os então contratantes Dosul e Acta, mas com fraude manifesta. Para tanto basta considerar o disposto no art. 185 do CTN – também invocável, mesmo não tenha sido adotado como suporte legal da revocatória –, segundo o qual presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda 166 Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução. Isto em situação normal de atividade comercial ou industrial. Quanto mais estando o comerciante, ou industrialista, em estado falimentar, como no caso estava, quando da contratação dos serviços da Acta, a Dosul. “Tivesse a mencionada transação ocorrido no mundo normal dos negócios com a contratante em situação financeira sólida, sem débitos fiscais e de natureza outra, sem execuções fiscais com penhora de bens, sem títulos protestados, poderia admitir-se pudesse tratar-se de simulação inocente e admitir-se ausência de fraude. Não, porém, na situação em que se encontrava a Dosul, e de inequívoco e pleno conhecimento da ora apelante, empresa especializada em assessoria tributária, fiscal e contábil, o reitero, conhecedora profunda, por certo, de tais atividades, e do Direito Tributário e Fiscal, bem como da implicância da existência de débitos dessa natureza. “Não pode, pois, pretender-se possa dar credibilidade tenha agido com simulação inocente e sem fraude no episódio. De realçar, aliás, a respeito, que o consilium fraudis se afere das circunstâncias externas que envolvem a relação fraudulenta, na forma de agir das partes que se conluiam. Forma de agir externa da qual se extrai a real intenção das partes ao pactuarem. Quanto aos danos a direitos dos demais credores da massa falida, segundo elemento da fraude, quer-me parecer muita coisa não é necessário dizer, já que evidente, manifesto, se apresenta esse SENTENÇAS prejuízo ao universo de credores da massa”. (Apelação Cível nº 599215597, TJRGS, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Osvaldo Stefanello, julgada em 1º-03-00) 2.46. Ad argumentandum tantum que não se pudesse taxar de relativamente ineficazes os negócios jurídicos objeto da presente ação revocatória ou mesmo desconstituir estes, ainda assim entendo que seria juridicamente possível responsabilizar os réus solidariamente com a falida por todos os créditos existentes até 23-04-97, em virtude de interpretação teleológica quanto ao disposto no art. 233 da Lei das Sociedades Anônimas, uma vez que a venda de cerca de 80% de seu patrimônio importa em cisão de fato da referida empresa, e, por via de conseqüência, aqueles para quem foi transferida esta parcela patrimonial responderão de forma solidária pelas obrigações existentes anteriormente à divisão levada a efeito do ativo permanente, o qual pertencia à falida e alienante dos referidos bens, os quais também serviam de garantia e davam sustentação econômica àquela, no sentido de que seriam cumpridas as obrigações assumidas com os demais credores. 2.47. Por fim, no que tange à ação de seqüestro relativamente aos bens descritos na exordial, igualmente merece guarida a pretensão deduzida na mesma, pois, como preconiza o insigne jurista Galeno Lacerda, o mérito daquela causa está adstrito ao fumus boni juris e ao periculum in mora, de sorte que tendo o autor direito à declaração de ineficácia das alienações dos bens imóveis e móveis pertencentes à falida na ação principal, de acordo com as razões antes alinhadas, igualmente de- SENTENÇAS tém este o bom direito aduzido para o seqüestro dos bens objeto do presente litígio, o que leva necessariamente à procedência desta ação incidental. III – DECISUM 3.1. Ante o exposto, diante das razões antes expendidas e provas produzidas, julgo procedente a presente ação revocatória que a Massa Falida de Cia. Dosul de Abastecimento move contra Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. e Comprebem Comércio e Transportes Ltda., já qualificadas, a fim de declarar a ineficácia relativa das vendas dos bens imóveis e móveis descritos na exordial frente à Massa, bem como determinar a arrecadação dos mesmos, devendo estes retornarem ao patrimônio da falida, providência que deverá ser adotada pelo síndico. 3.2. Ainda, julgo procedente a ação cautelar de seqüestro em apenso que a requerente move contra as demandadas, devidamente qualificadas, a fim de tornar definitivos os efeitos da cautela liminar concedida. 3.3. Condeno os réus ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo para ambos os feitos em 20% sobre o valor da causa, tendo em vista o zelo profissional e trabalho realizado pelo patrono da autora, bem como aos honorários atinen- 167 tes aos peritos nomeados por este juízo, cujo valor final estabeleço tanto para o perito contábil como para o esperto engenheiro definitivamente na integralidade do adiantamento feito no curso da lide. 3.4. Por fim, julgo improcedente a denunciação à lide que Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. e Comprebem Comércio e Transportes Ltda. movem contra instituições Citibank Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil, Cia. Itauleasing Sucessora de Franlease S. A. – Arrendamento Mercantil, Bozano Simonsen Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil e Cia. Interatlântico de Arrendamento Mercantil S. A., também qualificadas. 3.5. Condeno as rés-denunciantes ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo para a referida denunciação à lide em 20% sobre o valor da causa para todos os procuradores das denunciadas, tendo em vista o zelo profissional e trabalho realizado pelos patronos das entidades arrendadoras, os quais serão rateados entre os mesmos na proporção igual de 5% para cada uma das denunciadas. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 03 de novembro de 2000. Jorge Luiz Lopes do Canto, Juiz de Direito. 168 Processos n os 6.691-61, 6.692-62, 6.693-63 e 6.698-68 – Ação de Cobrança Vara Única da Comarca de Júlio de Castilhos Autor: Banco do Brasil S. A. Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez Processo nº 140/90 – Reconvenção Reconvinte: Roberto Wairich Fernandez Reconvindo: Banco do Brasil S. A. Juiz prolator: Luiz Antônio Alves Capra Títulos do crédito rural. Inexistência de coisa julgada em face de anterior arresto que proclamou a nulidade de execuções baseadas nos mesmos títulos objetos das ações de cobrança. Afastamento de preliminar de carência de ação pelo não-ajuizamento de ação de prestação de contas. Caução de títulos: inocorrência do negócio no caso concreto. Possibilidade de correção monetária no crédito rural, bem assim, da cumulação de multa e honorários advocatícios. Limitação dos juros remuneratórios em 12% ao ano. Ações julgadas procedentes. RELATÓRIO Vistos, etc. Banco do Brasil S. A. ajuizou ações de cobrança contra Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez, todos devidamente qualificados nos autos. Das petições iniciais. Sustentou o autor haver concedido aos réus empréstimos rurais assim especificados: I – Processo nº 6.691-61. Réus: Alexandre Wairich Fernandez e Dora Regina Reginato Fernandez. A) EPI nº 75/49, no valor de NCr$ 420.000,00, formalizado através de cé- dula rural hipotecária emitida em 11-12-75, restando como saldo devedor, em 30-06-81, o valor de Cr$ 160.672,68. B) EAI nº 75/500, no valor de Cr$ 359.750,00, formalizado através da cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 11-12-75 e aditada em 03-01-80, ficando como saldo devedor, em 30-06-81, o valor de Cr$ 38.038,39; C) EAI nº 75/501, no valor de NCr$ 77.600,00, formalizado através de cédula rural hipotecária emitida em 11-12-75 e aditada em 03-01-80, restando como saldo devedor, em 30-06-81, a quantia de Cr$ 76.890,16. D) EAI nº 77/00162-7, no valor de Cr$ 515.300,00, formalizado através da cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 25-03-77 e aditada em 06-06-78 e 03-01-80, tendo como saldo devedor, em 30-06-81, um valor de Cr$ 66.864,40. E) EAC nº 78/00232-1, no valor de Cr$ 90.000,00, formalizado através de cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 06-03-78 e aditada em 03-01-80 e 30-09-80, apurado um saldo devedor, em 30-06-81, de Cr$ 58.608,98. F) EAC nº 78/00475-8, no valor de Cr$ 157.500,00, formalizada através de cédula rural hipotecária emitida em SENTENÇAS 03-01-80, tendo como saldo devedor, em 30-06-81, o valor de Cr$ 197.748,96. Asseverou que em 30-06-81 o débito objeto da ação de cobrança alcançava o valor de Cr$ 596.823,57, conforme demonstrado pelos extratos e respectivas contas gráficas. II – Processo nº 6.692-62. Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez. A) EAI nº 78/00251-8, no valor de Cr$ 477.500,00, formalizado através de cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 09-03-78 e aditada em 03-01-80, tendo como saldo devedor, em 30-06-81, o quantum de Cr$ 421.190,84. B) EAC nº 78/00476-6, no valor de Cr$ 292.500,00, formalizado através da cédula rural hipotecária emitida em 04-07-78 e aditada em 03-01-80, restando como saldo devedor, em 30-06-81, o valor de Cr$ 453.179,07. C) EAC nº 78/01176-2, no valor de Cr$ 2.177.200,00, formalizado através de cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 09-11-78 e aditada em 03-01-80, tendo como saldo devedor, em 30-06-81, a importância de Cr$ 547.985,96. D) EAI nº 79/0314-X, no valor de Cr$ 2.750.000,00, formalizado através de cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 13-03-79 e aditada em 30-09-80, restando como saldo devedor, em 30-06-81, o valor de Cr$ 3.211.524,28. Asseverou que em 30-06-81 as dívidas alcançaram o montante de Cr$ 4.633.880,15, o que se pode constatar nos extratos e respectivas contas gráficas. Mencionou que, em virtude do não-pagamento de prestações avençadas para 15-07-80 (EAI nº 78/251-8) e 169 31-07-80 (EACs nos 78/476-6 e 78/011762 e EAI nº 79/0314-X), considerou vencidas, extraordinariamente, todas as dívidas dos réus, na forma do art. 11 do Decreto-Lei nº 167/67. III – Processo nº 6.693-63. Réus: Alexandre Wairich Fernandez e Roberto Wairich Fernandez. A) EAC nº 79/00459-6, formalizado através de cédula rural pignoratícia emitida em 28-05-79, com um saldo devedor, em 30-06-81, de Cr$ 384.980,20. IV – Processo nº 6.698-68. Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez. A) EAC nº 79/01.498-2, no valor de Cr$ 9.326.700,00, formalizada através da cédula de crédito rural pignoratícia e hipotecária emitida em 11-12-79, da qual os réus permanecem devedores, em 30-06-81, das seguintes verbas: custeio de milho – Cr$ 769.324,65; custeio de aveia – Cr$ 616.809,87 (em ambas com juros convencionados de 15% ao ano) e aquisição de implementos – Cr$ 347.301,35, com juros convencionados de 21% ao ano. Restando, em 30-06-81, um saldo devedor de Cr$ 1.733.435,87. B) EPC nº 79/01499-0, no valor de Cr$ 1.822.925,00, formalizada através da cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 11-12-79, não tendo sido feito nenhum pagamento por conta deste empréstimo, cujo saldo devedor, acrescido dos encargos financeiros, atualizado até 30-06-81, era de Cr$ 2.141.260,18, a saber: custeio de azevém – Cr$ 1.828.384,90, com juros convencionados de 15% ao ano, e aquisição de animais – Cr$ 312.875,28, com juros convencionados de 25% ao ano. 170 C) EAC nº 80/00416-2, no valor de Cr$ 6.936.000,00, formalizado através da cédula rural pignoratícia e hipotecária emitida em 31-03-80. Sendo que o valor da dívida, acrescida dos encargos financeiros, em 30-06-81, era de Cr$ 7.330.249,26, a saber: adubo – Cr$ 4.943.287,85, com juros convencionados (inadimplemento de 2% ao ano), e custeios – Cr$ 2.386.961,41, com juros convencionados de 33% ao ano. Esclareceu que, em virtude do não-pagamento de prestações pactuadas para 15-01, 15-03 e 30-05-81, considerou vencidas, extraordinariamente, todas as dívidas, na forma do art. 11 do Decreto-Lei nº 167/67. Disse que o total do débito, em 30-06-81, importava em Cr$ 11.204.945,31, sendo que foram procedidas amortizações com numerário proveniente da liquidação de títulos que os réus haviam colocado em cobrança junto ao banco, todas por conta do EPC nº 79/1499-0, assim especificadas: 14-01-82 – Cr$ 228.400,00; 29-01-82 – Cr$ 361.600,00; 10-02-82 – Cr$ 69.240,00; 05-03-82 – Cr$ 830.000,00 e 11-03-82 – Cr$ 146.040,00. Disse ter ajuizado ação de execução objetivando o recebimento desses débitos, sendo que, por ocasião do julgamento dos embargos em 2º grau, o Tribunal de Alçada entendeu que o quantum da dívida não havia sido assentado nos processos, julgando nulas as execuções. Em seguida, firmou-se jurisprudência no sentido de que valores apuráveis por simples cálculo aritmético não levam à nulidade da execução. Não obstante haver resultado frustrada a execução, as dívidas persistem até hoje e restaram insatisfeitas, o que motiva a SENTENÇAS ação de cobrança, pois, embora estejam formalizadas por cédulas de crédito rural, títulos líquidos, certos e exigíveis na forma do art. 10 do Decreto-Lei nº 167/ 67, o fato de a execução ter sido julgada nula não lhes retira essa característica, sendo cabível o processo de execução, mas, considerados os percalços, opta por propor a ação de cobrança. Postulou, assim, fossem os requeridos condenados aos seguintes pagamentos: I – Processo nº 6.691-61. Réus: Alexandre Wairich Fernandez e Dora Regina Reginato Fernandez. A importância de Cr$ 596.823,57, valor devido em 30-06-81, a ser convertido para o padrão monetário vigente, com a inclusão, a partir de tal data, de correção monetária em conformidade com o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81; juros remuneratórios de 15% ao ano conforme convencionado, capitalizados semestralmente; juros moratórios de 1% ao ano (art. 5º, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 167/67), também capitalizados; e multa legal de 10% sobre o montante atualizado da dívida (art. 71 do mesmo Decreto-Lei), tudo acrescido dos ônus sucumbenciais. II – Processo nº 6.692-62. Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez. A importância de Cr$ 4.633.880,15, valor devido em 30-06-81, a ser convertido para o padrão monetário vigente, com a inclusão, a partir de tal data, de correção monetária em conformidade com o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81; juros remuneratórios de 15% ao ano com relação aos três primeiros títulos e 18% ao ano relativamente ao último, confor- SENTENÇAS me convencionado, capitalizados semestralmente (art. 5º do Decreto-Lei nº 167/ 67); juros moratórios de 1% ao ano, também capitalizados; e multa legal de 10% sobre o montante atualizado da dívida (art. 71 do mesmo Decreto-Lei), tudo acrescido dos ônus sucumbenciais. III – Processo nº 6.693-63. Réus: Alexandre Wairich Fernandez e Roberto Wairich Fernandez. A importância de Cr$ 384.980,20, valor devido em 30-06-81, a ser convertido para o padrão monetário vigente, com a inclusão, a partir de tal data, de correção monetária em conformidade com o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81; juros remuneratórios de 15% ao ano, conforme convencionado, capitalizados semestralmente; juros moratórios de 1% ao ano, na forma do parágrafo único do art. 5º do Decreto-Lei nº 167/67; multa legal de 10% sobre o montante atualizado da dívida (art. 71 do mesmo Decreto-Lei), acrescidos dos ônus sucumbenciais. IV – Processo nº 6.698-68. Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez. A importância de Cr$ 11.204.945,31, valor devido em 30-06-81, deduzidas as amortizações anteriormente especificadas, a ser convertido para o padrão monetário vigente, com a inclusão, a partir de tal data, de correção monetária em conformidade com o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81; juros remuneratórios segundo as taxas convencionadas e anteriormente indicadas, capitalizadas semestralmente (art. 5º do Decreto-Lei nº 167/67 e conforme pactuado); e multa legal de 10% sobre o montante atualizado da dívida (art. 71 171 do mesmo Decreto-Lei), acrescidos dos ônus sucumbenciais. Da contestação produzida por Alexandre Wairich Fernandez e Dora Reginato Fernandez. As contestações ofertadas pelos réus, mesmo naqueles processos em que um deles não figurava como parte, foram idênticas, razão pela qual podem ser abordadas em um único tópico em relação a todos os processos, dos quais ao menos um, Alexandre, é sempre réu. Em todos os feitos ofertaram, conforme adiante será relatado, impugnação ao valor da causa. Em relação ao Processo nº 6.693-63, a ré Dora postulou fosse admitida como terceiro, na condição de assistente, fulcro no art. 50 do CPC. Aduziram, inicialmente, com fulcro nos arts. 103 e 105 do CPC, que os processos demandam julgamento simultâneo, eliminando-se o perigo de decisões divergentes sobre um tipo de relação de direito que é comum a todas elas, o que já ocorreu quando, com base nas mesmas cártulas, foi promovida a execução. Assim, em atenção aos pontos de contato que em todas as ações são intimamente semelhantes, postularam o julgamento simultâneo. Sustentaram, preliminarmente, a carência de ação. Asseveraram que os pontos cruciais das demandas ordinárias são de idênticas origens àqueles elementos especiais característicos das execuções propostas contra os mesmos réus, tendo por base iguais fundamentos de pedir. Na ocasião, o banco foi derrotado, porque reconhecido como carecedor de ação, por circunstâncias que definiram a demanda, dentre elas, a de ocultar o destino dado a títulos 172 que lhe foram caucionados para garantia e abatimento da dívida então contraída. A detenção desses bens e a falta da conseqüente prestação de contas ocasionaram os percalços processuais que propiciaram a perda da demanda em todas as instâncias que se seguiram à primeira. As “ações ordinárias” (sic) têm vinculação com as execuções, vínculos advindos de serem elas originárias das mesmas obrigações, das mesmas causas de pedir e pela especial referência que lhes faz a petição inicial em todos os processos propostos. Esta identificação dos processos é ponto necessário para fundamentar as razões que geram a carência de ação. Seus fundamentos advém da hierarquia da coisa julgada. Mencionaram que a questão gira em torno de caução no valor de Cr$ 19.152.208,00 (valor da época), representado por notas promissórias e duplicatas de terceiros, que foram caucionadas em mãos do credor para garantir o abatimento da dívida. Através de despacho judicial lhe foi determinado que indicasse o destino que dera à importância que recebera em caução, em razão do que se pode perceber que o insucesso da demanda não decorreu somente simples cálculo aritmético, como pretende incutir a petição inicial, pois permanecem nas “ações ordinárias” (sic) propostas em substituição às malsucedidas execuções as mesmas perplexidades com que se debateram os prolatores da decisão de 2ª instância. Afirmaram que o banco detém ainda em suas mãos uma caução de Cr$ 19.152.208,00, cujo destino ainda não demonstrou, o que impede que a de- SENTENÇAS manda prossiga, não importa se pelas vias do processo de execução ou da ação de cobrança, pois obrigações garantidas por tamanhas quantias tornam antijurídico e irracional não exigir do credor caucionado que antes de exigir a dívida preste contas do destino da caução, pois o crédito coberto por esta gera direitos e obrigações recíprocas, cabendo ao credor caucionado o dever de demonstrar o saldo para cuja formação e aperfeiçoamento deva concorrer o caucionante devedor. A caução dos títulos foi a fonte principal do acórdão, o que foi sonegado pelo banco, que repete o ato antes cometido e que lhe custou toda a demanda. De tal modo, impõe-se reconhecer a carência de ação, por omitirse o autor de seu dever de prestar contas antes da propositura de qualquer das ações, obrigação inderrogável que decorre da vontade da decisão transitada em julgado, onde se reconhece a reciprocidade de direitos e obrigações entre as partes litigantes. Argumentaram que, em não sendo reconhecida a carência de ação, é de rigor determinar ao autor que preste contas, a fim de que reste esclarecida a situação em que se encontram os títulos caucionados em garantia, o que decorre dos fundamentos que constituíram a base da decisão da 2ª instância, não havendo viabilidade de prosseguimento do feito se o autor não der contas, havendo um saldo a ser apurado e que deverá representar o resultado entre o aporte de títulos e a dívida, não podendo a demanda prosseguir sem o cumprimento da vontade superior, transitada em julgado, qualquer que seja o tipo da ação escolhida. SENTENÇAS Há uma necessidade aritmética a ser definida por ato do banco que recebeu os títulos em caução, pois deteve em mãos bens de seus devedores para administrar, sendo que pagamentos foram recebidos por conta, recursos que a eles pertenciam foram movimentados e as taxas inflacionárias tornam importante saber-se quanto às datas das respectivas imputações em pagamento, o que somente pode ser respondido através da prestação de contas. Sem a prestação de contas haverá afronta às questões suscitadas na motivação do acórdão, dúvidas surgirão a respeito de quanto possam estar os réus devendo, com o risco de serem condenados a pagar o que não devem. Quanto ao mérito, asseveraram que, prestadas as contas, no caso de não ser decretada a carência de ação, há que se considerar que o direcionamento das ações ordinárias em curso será presidido sempre pelos rumos da decisão proferida pela 2ª Câmara Cível do TARGS (nos processos de anteriores execuções propostas pelo autor), não se podendo fugir de que existe um valor já determinado por sentença em mãos do credor, valor este equivalente ou próximo ao total da dívida: Cr$ 19.152.208,00 (reconhecido conforme fl. 07 do acórdão). Há um reconhecimento de tal quantia ínsito no bojo de ação trânsita em julgado, ao qual as partes e o julgador não poderão fugir. Assim, a situação se enquadra perfeitamente nos arts. 1.009 e ss. do CPC, com a extinção das dívidas até onde se compensarem. Salientaram ser responsabilidade do credor pela retenção dos títulos caucionados se em seu poder ocorrer a pres- 173 crição, vez que já decorridos 10 anos desde a caução prestada. Disse que os réus são levados a imaginar que os tenha recebido todos, o que mais razoável do que retê-los inconseqüentemente. Tal matéria deverá ser apreciada, com a responsabilização do credor, fulcro no art. 159 do CC. Quanto aos encargos pretendidos, mencionaram que afora a correção monetária, a ser apreciada na contestação, o restante, em condições normais, encontra respaldo na legislação pertinente. Entretanto, caberá ao julgador aferir até onde os devedores foram induzidos à mora (que lhes será a fonte geradora), em face da obstinação do credor em não lhes conferir as contas dos títulos que lhes pertencem, detendo-os em mãos sob caução, até os dias atuais. Alegaram que a correção monetária em nosso ordenamento jurídico é sempre introduzida por lei especial, sendo que, em se tratando de créditos rurais, é incabível a correção monetária, pois a lei específica que institucionalizou o crédito rural rejeitou a correção monetária do projeto de lei, sendo que, por força de unânime parecer da Comissão de Constituição e Justiça, foi ela rejeitada pela Emenda nº 09. Não obstante a expressa rejeição da correção monetária, tem ela sido aplicada com base em resoluções (atos administrativos) ou na Lei nº 6.899/81, que não trata de crédito rural. Questionaram a aplicação monetária nos créditos oriundos na agricultura e na pecuária sem a lei própria, se para todas as outras atividades tal encargo somente foi instituído mediante lei especial, sendo que a própria lei que os criou a rejeita. A Lei nº 174 6.899/81 não tem hierarquia para interferir em leis de ordem pública, imperativas e cogentes, com a Lei nº 4.829/65 e o Decreto-Lei nº 167/67. Asseveraram que anexados às diversas cédulas que instruem as petições iniciais encontram-se vários extratos de conta, onde foram lançados encargos de origem desconhecida, não só da lei, como também por desconhecimento físico das respectivas existências pelos devedores, os quais foram rejeitados, mediante menção apenas exemplificativa, por não representarem liquidez a partir da qual se possa estabelecer uma apreciação de valores com base nos resultados neles expressos, sendo documentos de elaboração interna e unilateral do credor, não sendo aceito qualquer saldo que deles resulte, impondo-se a realização de perícia contábil. Assim, pleitearam fosse acolhida a carência de ação por ocultar o credor o destino dado aos títulos caucionados ou por falta de prestação de contas capaz de definir o saldo, ou a compensação, com o reconhecimento da responsabilidade do credor advinda da prescrição dos títulos caucionados, ou, em último caso, seja afastada a correção monetária. Das contestações produzidas por Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez. Inicialmente, impõe-se fazer pequenos esclarecimentos, a saber: Roberto e Lucila não são partes no Processo nº 6.691-61, mas o são, em conjunto, nos Processos n os 6.692-62 e 6.698-68; e Lucila não é parte no Feito nº 6.693-63, no qual Roberto é demandado em conjunto com Alexandre. Entretanto, tal não impede que se reconheça que são idênticas as contestações SENTENÇAS produzidas nos Processos nos 6.692-62, 6.693-63 e 6.698-68, com pequenas modificações que não alteram os pontos em que se fundamenta a defesa. Em relação ao Processo nº 6.693-63, também foi ofertada reconvenção, que recebeu o nº 140/90. Dito isso, passemos aos temas versados nas contestações. Em suas peças de defesa, salientaram os requeridos que, conforme esclarecido na inicial, com pouca convicção, todas as execuções antes mencionadas foram embargadas, com êxito para os embargantes. Assim, os fatos historiados pelos documentos anexados assumem especial relevância para o deslinde do processo e da reconvenção, sendo que nesta se pretende responsabilizar o banco pelos títulos que lhe foram caucionados e que detém até hoje em seu poder, promovendo-se a compensação. O autor repete os mesmos erros que levaram à “improcedência das execuções” (sic), juntando os mesmos documentos e omitindo-se quanto aos títulos que lhe foram caucionados, que cubririam de forma suficiente o débito, surgindo um saldo credor em favor dos contestantes. A reconvenção e os demais feitos devem ser julgados simultaneamente, pela ampla afinidade que possuem. Os títulos que foram caucionados alcançam a importância de Cr$ 19.152.208,00, devendo o banco do Brasil ser responsabilizado pelos títulos que recebeu, vez que nunca esclareceu com exatidão as amortizações que procedeu e nem mesmo a data de recebimento de alguns títulos, circunstâncias bem esclarecidas nas perícias já realizadas. Sendo visada a compensação, necessária a realização de prova pericial. SENTENÇAS Quanto aos acessórios, asseveraram que os extratos anexados à inicial são documentos unilaterais, sendo que as perícias realizadas constataram a existência de acessórios sem a previsão cedular e sem especificação, que encobriam a cobrança de prêmios de seguro não contratados. O crédito rural é regido por regras específicas que não admitem a correção monetária, e se for o caso de ser reconhecida a sua incidência, tal somente deverá ocorrer a partir do ajuizamento da ação, na forma preceituada no art. 1º, § 2º, da Lei nº 6.899/81. A inicial pleiteia a incidência de juros remuneratórios, mas não menciona que, por convenção entre as partes, em determinadas parcelas não existe tal incidência, e especifica: Processo nº 6.698-68. EAC nº 70/1498-2: foram debitadas parcelas correspondentes a juros sobre parte isenta do financiamento, em 31-12-80 (Cr$ 158.219,73) e 11-03-81 (Cr$ 592.097,25), o mesmo ocorrendo na EPC nº 79/1499, com a inclusão de juros em 31-12-80 (Cr$ 71.093,75) e 30-06-81 (Cr$ 108.305,40), assim como na EAC nº 80/004416-2, juros em 30-06-81 (Cr$ 66.900,88); Processo nº 6.692-62. EAC nº 78/ 01.176-2: dispensa juros sobre a parcela de Cr$ 1.395.000,00, que no entanto foram debitados num total de Cr$ 221.679,91, o que foi apreciado pela perícia que instruiu a contestação; e Processo nº 6.693-63: os juros remuneratórios de 15% não incidem sobre a parcela liberada para a aquisição de fertilizantes (Cr$ 1.520.000,00), sendo inadmissível a pretensão sobre a maior parcela do financiamento. Afirmaram incabível a multa prevista no art. 71 do Decreto-Lei nº 167/67, 175 sem a expressa convenção das partes, sendo, de outro modo, incabível a sua cumulação com os honorários advocatícios. Postularam, por fim, o apensamento de todos os processos movidos pelo Banco do Brasil contra os contestantes, o que também se aplica à reconvenção. Da reconvenção movida por Roberto Wairich Fernandez. Por ocasião da reconvenção, reiterou o reconvinte haver dado, juntamente com seu irmão Alexandre Wairich Fernandez, diversos títulos em caução, somando a importância de Cr$ 19.152.208,00, sendo surpreendido pelo ajuizamento de feitos executivos, nos quais restou reconhecida a iliquidez e a necessidade de compensação, com a realização de prova pericial. Objetiva a compensação dos valores representados pelos títulos entregues em caução ao reconvindo. Assim, postulou fosse reconhecida a responsabilidade deste pelos títulos caucionados, com a compensação destes e com condenação do reconvindo ao pagamento de eventual saldo credor em favor de reconvinte, tudo acrescido dos ônus da sucumbência. Das impugnações ao valor da causa ofertadas por Alexandre Wairich Fernandez e Dora Regina Reginato Fernandez. Nos 04 processos foram ofertadas impugnações ao valor da causa, a fim de que este viesse a ser corrigido na forma estabelecida pelo art. 259, inc. I, do CPC. Do pedido de assistência formulado por Dora Regina Reginato Fernandez. Postulou a contestante Dora, em relação ao Processo nº 6.693-63, na condição de esposa de Alexandre Wairich Fernandez, com base no art. 50 do CPC, 176 lhe fosse deferida a intervenção no processo na condição de assistente. Da manifestação do autor sobre as contestações, reconvenção, assistência e impugnações ao valor da causa. A réplica às contestações repete-se em todos os feitos, com o que possível fazer um único relato. Salientou que a ação está fundamentada em títulos de crédito rural, emitidos pelos réus, não havendo dúvidas quanto à sua existência, sendo títulos líquidos, certos e exigíveis. Quanto à alegação acerca da caução e da prestação de contas, salientaram que os réus estão litigando de má-fé, pois sabem que os fatos não se passaram na forma como eles os apresentaram em juízo, assim como sabem o destino que a eles foi dado. Igualmente, não chegou a ocorrer a propalada caução de títulos, que é direito real, exigindo para a sua constituição, além da tradição destes, contrato escrito (arts. 771 e 791 do CC). No caso, os títulos haviam sido encaminhados ao banco para serem incluídos na garantia de composição de dívidas a ser efetivada, o que terminou não ocorrendo, sendo que os títulos foram recebidos em cobrança vinculada, conforme se comprova com o respectivo borderô. Assim, o autor era mero mandatário dos réus na cobrança de títulos, devendo aplicar os valores arrecadados na amortização de suas dívidas, sempre agindo em consonância com as ordens recebidas. Esclareceu que, dos mencionados títulos, 02 possuem um significado especial, por representarem mais de 70% do valor total envolvido, ou seja, aqueles de responsabilidade de Agamenon M. Berni (Cr$ 3.120.000,00 e Cr$ SENTENÇAS 10.900.000,00). Tais títulos foram entregues francos de pagamento ao respectivo devedor, pois primeiro os réus determinaram ao banco a prorrogação do vencimento de tais títulos, o que motivou parecer do jurídico; em seguida, os réus determinaram que as notas promissórias fossem entregues ao respectivo devedor, francas de pagamento. No que pertine aos demais títulos, alegou que a perícia realizada na execução esclareceu a questão, sendo que os valores arrecadados foram aplicados na amortização das Cédulas EAC nº 77/ 00821-4, EAI nº 77/00163-5 e EPC nº 74-1499-0, que não objeto das ações de cobrança, exceção feita a esta última, conforme denunciado no item 2 da inicial do Processo nº 6.698-68. Logo, não há prestação de contas ou compensação a ser procedida, sendo as alegações deduzidas meras inverdades destituídas de qualquer fundamento fático ou jurídico, resultando patente a litigância de má-fé. Ponderou, ao contestar a reconvenção, que, dos títulos recebidos para cobrança, 14 foram aplicados na amortização de dívidas e 02 foram devolvidos ao respectivo devedor, por expressa e formal autorização do reconvinte. Disse, quanto à carência de ação, que ela está desprovida de seriedade, pois a única decisão do Tribunal de Alçada foi no sentido de declarar nulas as execuções, apenas isso. As dívidas não foram declaradas extintas, sendo isso o que a parte dispositiva do acórdão determinou. Repeliu, por entender que lhe traria prejuízo, a cumulação das ações. Acerca da dívida em cobrança, asseverou que os empréstimos estão documentados em cédulas de crédito rural, tendo SENTENÇAS sido juntados extratos atualizados até 30-06-81, os quais não foram impugnados especificadamente, mas, sim, genericamente, o que se mostra de nenhum valor, pois incumbia aos réus a demonstração dos equívocos, não havendo fundamento para a produção de prova pericial. A teor do que preceituam os arts. 4º e 5º do Decreto-Lei nº 167/67, deve o financiador abrir conta vinculada à operação, sendo que os encargos são devidos a partir da liberação dos recursos. Salientou que a nulidade das execuções anteriormente ajuizadas ocorreu fundamentalmente pela falta de esclarecimentos sobre o destino dado aos títulos entregues ao banco para a cobrança, o que está devidamente esclarecido nesses feitos, existindo várias cartas dos réus dirigidas ao banco reconhecendo explicitamente os débitos, inclusive os seus valores. Também a perícia realizada esclareceu tal aspecto. Mencionou que os acessórios foram genericamente impugnados, não tendo tal questão a importância que se pretende atribuir, sendo débitos normais na espécie de financiamento de que se cogita. Quanto ao Processo nº 6.692-62, explicitou não ter havido cobrança indevida de juros quanto à Cédula nº 78/ 00176-2, pois, conforme pactuado, não incidiram juros até o vencimento da obrigação, o que somente ocorreu após o vencimento. Em relação ao Processo nº 6.693-63, disse que o exame do extrato da fl. 08 de tal feito mostra que foi contabilizada a parcela do financiamento destinada à aquisição de adubo, sobre a qual não incidiram juros e que já foi liquidada. Por fim, quanto ao Feito nº 6.69868, mais especificamente em relação ao 177 EAC nº 79/01498-2, a parcela de fertilizantes (extratos das fls. 14/16) era exigível em 1º-07-80 (cláusula forma de pagamento, fl. 11v.), razão pela qual são devidos os juros lançados em 31-12-80 e na liquidação dessa parcela, assim como em relação aos demais títulos. Os juros só foram exigidos após vencida a parcela relativa a fertilizantes. Sustentou devidos os juros, a correção monetária e a multa. Opôs-se ao pedido de assistência por falecer interesse jurídico à requerente. No que tange às Impugnações ao Valor da Causa nos 166/90 (6.693-63), 170/90 (6.691-71) e 168/80 (6.692-62), sustentou-as ineptas por não indicarem o valor que se pretende seja atribuído à causa. Quanto à Impugnação nº 164/90 (6.698-68), afirmou que o valor correto da causa é de Cr$ 2.371.884,34. Do destino dado ao pedido de assistência e impugnações ao valor da causa. O pedido de assistência restou indeferido, com fulcro no art. 50 do CPC, vez que o interesse da postulante era meramente econômico, sem afetar a sua esfera jurídica. Das Impugnações ao Valor da Causa restaram apreciadas as de nos 168/90 e 170/90. A primeira, para alterar o valor da causa no Processo nº 6.692-62 para Cr$ 2.392.253,53. A segunda, com alteração do valor da causa no Feito nº 6.691-61 para Cr$ 721.692,11. As Impugnações n os 164/90 e 166/90 restaram até então inapreciadas. Das manifestações dos réus sobre os documentos juntados pelo autor posteriormente às contestações. Os réus Alexandre e Dora sustentaram intempestiva a juntada de tais documentos, com fulcro no art. 397 do CPC. Postularam a realização de perícia grafodocumentoscópica 178 na procuração juntada. Ademais, os poderes na procuração foram conferidos somente por Alexandre e não abrangiam poderes especiais. Postulou, além da determinação de juntada do original, a juntada de prova emprestada aos autos. Foram excedidos os poderes conferidos na procuração. Os demandados Roberto e Lucila sustentaram já encontrar-se revogada a procuração, tendo sido substituída por outra. De outro modo, falecia ao mandatário poderes específicos para praticar os atos por eles realizados, inexistindo provas de que os títulos tenham sido entregues francos de pagamento ao devedor. Do despacho saneador. Entendendo que o feito encontrava-se pronto para o saneador, entendeu o julgador, havendo pedido de perícia contábil, fosse ele examinado conjuntamente nos 04 feitos envolvendo as partes. O que, atendido, resultou em idêntico saneador. Assim, restou afastada a conexão por serem as partes diferentes e por encontrarem-se os feitos em diferentes fases. Foi considerado não ser a prestação de contas um requisito para a ação de cobrança, relegando-se a compensação para análise posterior, com a determinação de produção de prova pericial conjunta para os 04 processos, assim como a oitiva de ofício de uma testemunha. Do prosseguimento dos feitos após o saneador. Não obstante repelida a união dos processos, na prática, tal veio a ocorrer após o saneamento, pois as demandas praticamente passaram a tramitar no Processo nº 6.698-68, pois embora se tenha juntado cópia da perícia nos demais feitos, foi nele que se realizou audiência de instrução (fls. 448 a 453), SENTENÇAS posteriores manifestações das partes, formulação de quesitos, esclarecimentos periciais e apresentação dos memoriais, que se substituíram ao debate por expressa manifestação das partes ante o despacho que deu por encerrada a instrução. Por ocasião dos memoriais, os litigantes, analisando a prova carreada aos autos, reprisaram os argumentos anteriormente expendidos, todos fazendo questão de estender os memoriais aos demais processos. Relatei, passo à fundamentação. Não obstante ter o despacho saneador repelido a conexão, diversa resultou a realidade processual, pois a perícia realizada foi una e a partir de um determinado momento todos os atos processuais realizaram-se em único processo, porém reportando-se a todos, o que torna inafastável a prolação de decisão conjunta. Das impugnações ao valor da causa inapreciadas. Inicialmente, é de rigor sejam apreciadas, antes de qualquer outra questão, as impugnações ao valor da causa que até então restaram inapreciadas, ou seja, os Processos nos 164/90 e 166/90, vez que influem decisivamente nos ônus sucumbenciais, assim como faz-se presente critério legal para a sua fixação. Tal questão se mostra por demais singela, aplicando-se ao caso posto em exame o comando do art. 259, inc. I, do CPC, que prevê para as ações de cobrança seja o valor da causa o resultado da soma do principal e demais acréscimos. Ao analisar a perícia produzida, cujo original foi juntado aos autos do Processo nº 6.698-68, constata-se, às fls. 618/619, que, na Impugnação ao Valor da Causa nº 164/90, que refere-se ao SENTENÇAS Processo nº 6.698-68, o valor correto que se deve atribuir à causa é de Cr$ 9.707.324,42. Por fim, na Impugnação que recebeu o nº 166/90, que se refere ao Processo nº 6.693-63, se afigura como valor da causa aquele que foi alcançado pela perícia para a data do ajuizamento do feito, ou seja, Cr$ 177.742,08. Assim, vão fixados tais valores acima especificados para os respectivos processos, com a conseqüente procedência das impugnações. Da coisa julgada. As contestações produzidas pelos requeridos trazem como um de seus fundamentos a coisa julgada, que teria se operado em virtude do acórdão prolatado em sede de recurso de embargos à execução, em relação aos mesmos títulos que embasam as ações de cobrança. Assim, no entendimento da culta defesa, não mais caberia discutir acerca de determinadas matérias, já definitivamente julgadas. Mostra-se necessário, ao exame das demais questões, sejam traçados os limites da coisa julgada, analisando-se, inclusive, acerca da existência de uma decisão heterotópica, vale dizer, aquela em que fora do dispositivo são decididas questões que dele deveriam constar e que, portanto, também geram a coisa julgada. Oportuno reproduzir o contido no art. 469 do CPC, verbis: “Art. 469 – Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III – a apreciação de questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”. 179 Ao compulsar os autos do Processo nº 6.698-68, aonde às fls. 339 à 340 encontra-se juntado o acórdão, para aferir que em seu dispositivo foi dado provimento à apelação, com a declaração de nulidade das execuções. Como se vê, o dispositivo do mencionado acórdão não contemplou as referências sobre a existência de caução ou a necessidade de compensação, não acobertando tais matérias com o manto da coisa julgada. Não vislumbro como se possa encaixar a alusão a tais questões, como pretendem os contestantes, como parte integrante do dispositivo que se encontre no lugar equivocado do respeitável acórdão, pois não se faz presente a decisão heterotópica. A questão decidida nos embargos foi acerca da iliquidez, que gerou a nulificação dos feitos executivos. Questões incidentais como a existência de caução e a necessidade de compensação dependeriam de expresso reconhecimento no dispositivo (em sentido amplo) ou de ação declaratória incidental. O debate acerca de tais questões, embora tenham elas sido admitidas como verdadeiras e utilizadas como fundamento da decisão de 2º grau, não tem o condão de gerar os efeitos pretendidos pelos requeridos, vez que de forma inarredável esbarra nos comandos dos arts. 468 e 469 do CPC, pois a respeito delas não provido qualquer pedido. Em tal sentido, inclina-se a jurisprudência: “A coisa julgada incide apenas sobre o dispositivo propriamente dito da sentença, não sobre seus motivos ou sobre questão prejudicial – CPC, art. 469, I e III, salvante, no alusivo a esta segunda hipótese, se proposta ação 180 declaratória incidental”. (REsp nº 444-RJ, STJ, 4ª Turma, “DJU”, de 22-04-91, p. 4.788). “A coisa julgada em sentido material restringe-se à parte dispositiva do ato sentencial ou àqueles pontos que, substancialmente, hajam sido objeto de provimento jurisdicional, quer de acolhimento, quer de rejeição do pedido”. (“RTJ” nº 133/1.311) “Os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, não fazem coisa julgada. As razões de decidir preparam, em operação lógica, a conclusão a que vai chegar o Juiz no ato de declarar a vontade da lei.” (“RTJ” nº 103/759) A teor do que preceitua o art. 458 do CPC, a sentença é composta por três partes, a saber: relatório, fundamentação e dispositivo, sendo que somente na parte dispositiva da sentença, na qual o Juiz decide efetivamente o pedido (lide), proferindo um comando a ser obedecido pelas partes, é que se opera a coisa julgada material. Disso resulta inexistir qualquer óbice legal ou fático para que se rediscutam as questões atinentes à existência ou inexistência de caução e eventual compensação, fatos que, aliás, foram objeto de dilação probatória. Da carência de ação em virtude da ausência de prestação de contas. Trata-se da preliminar deduzida por Alexandre Wairich Fernandez e Dora Fernandez nos feitos em que são partes, no sentido de que, ausente a devida prestação de contas, seria o autor carecedor do direito de ação. Estou em que tal prefacial não merece prosperar. É que, além de haverem os contestantes partido de errônea premissa para funda- SENTENÇAS mentá-la, tem-se que a prestação de contas não encontra-se prevista em lei como condição para o ajuizamento de ação de cobrança, que dela prescinde. É equivocada a premissa em que se fundam os contestantes, pois confundem, como se fora um único instituto, a execução e a condenação, as quais, a toda a evidência, são totalmente distintas. Por vezes, antes que se abram as “portas” da execução, é mister ultrapassar a “ante-sala” em que se constitui a condenação, o que ocorre, v. g., com os títulos executivos judiciais. Tal distinção foi muito bem traçada por Antonio Janyr Dall’Agnol Junior (“Ação Condenatória: Estrutura e Função”, “Revista da AJURIS” nº 63, fls. 27 a 35), mostrando-se oportuna a reprodução de algumas assertivas: “A experiência de todos os dias permite-nos observar que aquele que almeja a condenação de outrem a alguma prestação quer mais do que a declaração e menos do que execução. De outro lado, executar é mais do que condenar. A execução implica invasão na esfera jurídica do demandado, para de lá retirar algo que deveria legitimamente estar no patrimônio do demandante, e não está; ou para estigmatizar algum bem, ou alguns bens, para transformação em espécie, a fim de que o crédito do exeqüente reste satisfeito. A condenação, precedida indispensavelmente de declaração, implica algo mais do que essa, algo que concede ao vencedor da ação condenatória ‘passaporte’ para a via executiva (que é, pois, também diferente)”. Logo, equivocam-se os contestantes ao pretenderem trazer para dentro de ação condenatória requisitos que muito bem se prestariam para obviar feito SENTENÇAS executivo, pois a liquidez de que lá se cogita deve comprovadamente acompanhar a inicial, ao passo que a liquidez de que aqui se cogita pode restar efetivamente comprovada no curso da demanda, vez que a pretensão deduzida é a de constituição de título executivo judicial. De outro modo, não está a prévia prestação de contas erigida em condição da ação de cobrança. De fato, existem as chamadas condições da ação, através das quais se condiciona o direito de ação a determinados requisitos, cuja satisfação torna-se indispensável à obtenção de uma sentença de mérito. São elas: a possibilidade jurídica, a legitimação para a causa e o interesse processual. Nenhuma delas queda ausente no caso dos autos: o pedido é admitido em abstrato no ordenamento pátrio; há pertinência subjetiva da ação, ou seja, os pólos ativo e passivo da relação processual correspondem àqueles da relação de Direito material; e o provimento jurisdicional buscado é necessário e útil ao autor. Não seria absurdo cogitar acerca de uma especial condição da ação, presente em determinados casos por imposição legal. Entretanto, de condição especial da ação não se pode cogitar sem que ela esteja prevista em lei, sob pena de configurar-se ato invasivo à esfera legislativa. Inexiste comando legal que imponha ao requerente, no caso presente, a prévia prestação de contas, em razão do que falece amparo jurídico à preliminar deduzida, cuja rejeição se impõe. Da caução e respectiva compensação. É imperiosa a análise acerca da existência, ou não, da propalada caução, pois dela depende a admissibilida- 181 de da compensação, fatos de evidente importância ao deslinde do feito e da reconvenção. Estou em que a prova documental carreada aos autos desmente tenha o negócio realizado entre o banco (requerente) e os requeridos se dado sob a modalidade de caução, o que facilmente se pode constatar pelos documentos das fls. 44 e 45 do Processo nº 6.698-68, pois deles se pode abstrair que os títulos ali relacionados foram entregues em cobrança vinculada. De outro modo, tenho que seria inconcebível, em se tratando de títulos ofertados em caução, dispusessem os requeridos de plena liberdade para deles disporem, como demonstrado às fls. 364 e 366 do Processo nº 6.698-68, mediante atos praticados por um procurador dos demandados, a demonstrar indubitavelmente ter inocorrido a tão propalada caução, pois os próprios fatos a desmentem. Segundo ensina Arnoldo Wald, “Direito das Coisas”, 8ª ed., p. 249, “O devedor pignoratício ou caucionante dos títulos não pode praticar nenhum ato em relação aos títulos...” Ademais, a teor do que preceitua o art. 791 do CC, a caução principia a ter efeito com a tradição do título, devendo ser comprovada por escrito, na forma dos arts. 770 e 771 do CC. Deve o instrumento contratual especificar o valor do débito e descrever o título caucionado, assim como, em sendo feito por instrumento particular, que o seja em duplicata, ficando uma cópia para cada um dos contraentes. Repita-se, os documentos das fls. 44 e 45 demonstram o negócio entabulado entre os litigantes, a saber: cobrança 182 vinculada; dito documento não encerra qualquer manifestação de vontade no sentido de que estivessem os títulos sendo ofertados em caução e muito menos especifica o valor do débito, o que era de se exigir, em se tratando de direito real de garantia. Assim, se tal documento é incapaz de demonstrar tenham os títulos sido caucionados, onde então a prova documental exigida em lei? Diria mais, onde o registro perante o Cartório de Títulos e Documentos? Se caução houvesse, com certeza teriam os requeridos em seu poder documento bem menos singelo do que aquele trazido aos autos pelo credor, meros borderôs de títulos em cobrança. E mais, tratando-se de um direito real de garantia, era de rigor houvesse sido levado a registro, conforme determina a lei (art. 771 do CC e art. 127, inc. III, da Lei nº 6.015/73). Na verdade, a relação estabelecida entre os litigantes, com a entrega dos títulos de crédito em cobrança, é incapaz de ser admitida no mundo dos direitos reais, pois desprovida das características que deles se exigem, constituindo-se em mero direito pessoal, que até pode ser tida como uma garantia, mas acarretando a sua violação tão-somente efeitos de Direito Obrigacional. Assim, a se cogitar tenha o requerente dado destino indevido às cártulas que foram colocadas em cobrança, não fica obstada eventual compensação pelo dever que, em tese, se impunha de indenizar. Entretanto, não vislumbro, ao contrário do que se pretende nas contestações e na respectiva reconvenção, afigure-se alguma responsabilidade do demandante pelos títulos que lhe foram entregues em cobrança. SENTENÇAS De notar que, quanto à parte deles, se mostra oportuna e esclarecedora a perícia (fl. 607 do Processo nº 6.698-68), especificando que a exceção do Processo nº 6.898-68, Cédula EPC nº 79/01499-0, os títulos cobrados e utilizados para amortização de débitos recaíram em outros contratos não-vinculados às ações ordinárias, em razão do que, inadmissível no caso presente a discussão acerca de tais títulos, cujo resultado foi direcionado ao pagamento de outros débitos, que não aqueles trazidos a juízo, mostrando-se inviável levá-los em consideração por duas vezes. Porém, no que pertine às amortizações denunciadas pelo autor na peça vestibular do Processo nº 6.898-68, pequenas correções se impõem em virtude do que foi apurado na perícia, pois algumas das amortizações ocorreram em datas diferentes daquelas denunciadas pelo credor, impondo-se obedecer, em relação à Cédula EPC nº 79/01499-0, as seguintes amortizações (fls. 607 e 44): 14-01-82 – 94.417,00; 14-01-82 – 65.200,00; 15-01-82 – 68.783,00; 29-01-82 – 76.800,00; 29-01-82 – 284.800,00; 10-02-82 – 69.240,00; 05-03-82 – 370.000,00; 05-03-82 – 460.000,00; 11-03-82 – 65.280,00; e 11-03-82 – 80.760,00. De salientar que apenas algumas datas informadas pelo autor é que se encontravam erradas, sendo corretos os valores informados. No que pertine ao título entregue em cobrança, em que figurava como devedor Mário Rosa, no valor de Cr$ 113.664,00, o que a perícia apurou foi a sua devolução, conforme se pode constatar à fl. 616, dela não constando qualquer ressalva acerca de não encontrar-se documentalmente demonstrada, SENTENÇAS o que não ocorre em relação aos títulos de Agamenon Berni. Por fim, impende apreciar questão acerca da qual foi travado acirrado debate nos autos, qual seja, a dos títulos em que figurava como devedor Agamenon Machado Berni. Para solucionar tal questão, impõe-se analisar o seguinte: a) se o procurador dos requeridos dispunha de poderes para autorizar a entrega de tais títulos ao emitente; b) qual o valor que se pode atribuir à contabilidade do credor, pois dela consta ter havido a devolução dos títulos, não tendo sido registrado qualquer pagamento; e c) qual o valor que se pode atribuir à palavra do emitente de tais cártulas. Solvidas tais indagações, é que se poderá chegar a uma solução quanto à compensação, ou não, de tais valores, responsabilizando-se, ou não, o autor. Tais cártulas, segundo o credor, teriam sido entregues francas de pagamento ao devedor, em virtude de autorização oriunda do procurador dos demandados, mediante missiva acostada aos autos. Quanto ao primeiro questionamento por mim posto como necessário à solução de tal questão, afigura-se correto afirmar que o mandatário dispunha de poderes para agir em nome dos demandados, autorizando a entrega das cártulas ao devedor (Agamenon). Os instrumentos de mandato das fls. 368 e 369 do Processo nº 6.698-68 assim o demonstram. Nota-se que no documento da fl. 368 nada consta acerca de sua revogação, com o que, indemonstrado tenha ela ocorrido, o que incumbia aos réus demonstrar, na forma do art. 333, inc. II, do CPC, tenho que persistia ela hígida quando entabulado o negócio. 183 No que tange ao documento da fl. 369, embora conste na margem superior esquerda sua revogação por falta de revigoramento, por ato do credor, conforme esclarecido na perícia (fl. 612), que assim procedia periodicamente. Entretanto, foi carreada aos autos do Processo nº 6.692-62 (fl. 269) missiva assinada pelo demandado Roberto revigorando tal procuração, referindo-se, inclusive, a sua data. O ato de revogação, perpetrado pelo banco, tem pouca ou nenhuma importância, notadamente porque era incapaz de ocasionar a extinção do mandato, pois não se constitui em causa legalmente prevista para tal, a teor do que preceituam os incisos do art. 1.316 do CC. Em termos de operacionalização interna, poderia o requerente não atribuir mais valor ao mandato, que, entretanto, foi “revigorado” por Roberto Wairich Fernandez. Logo, quando assinada a carta da fl. 368 (Processo nº 6.898-68), encontravam-se em pleno vigor os instrumentos de mandato. Vencida a questão atinente à vigência dos mandatos outorgados pelos devedores, é mister seja analisado se o mandatário dispunha de poderes para agir como agiu, ou seja, poderia ele autorizar a entrega, sem o pagamento, dos títulos entregues em cobrança vinculada? Como se vê, a carta endereçada ao credor teve como remetente, através do procurador Sérgio Oliveira, o autor Roberto Wairich Fernandez, que autorizou a entrega dos títulos franca de pagamento. Assim, reduzido fica o campo de análise ao instrumento de mandato da fl. 369, como autorizador, ou não, do agir do mandatário, pois o ato foi 184 praticado tão-somente em nome do demandante Roberto. Tal instrumento de mandato se configura como especial na forma do art. 1.294 do CC, restringindo-se aos atos que nele são mencionados, pois os poderes vem detalhados em seu corpo. Dentre os poderes que foram conferidos ao mandatário, se inserem os de assinar menções, aditivos de qualquer espécie, inclusive de substituição ou remoção de garantia, assim como dar e receber quitação. Ora, embora as cártulas não se constituíssem em um direito real de garantia, na verdade encontravam-se vinculadas em virtude da modalidade de cobrança (vinculada), como referido alhures, em razão do que inserido, dentro dos poderes outorgados ao mandatário, a autorização para a entrega de tais cártulas, em razão do que o ato praticado não desbordou dos poderes confiados ao mandatário, inexistindo o apontado excesso. De outro modo, segundo relatado pelo demandado Alexandre (fl. 449 do Processo nº 6.698-68), mantinham os requeridos uma sociedade, da qual o mandatário era empregado. Não se tem notícia nos autos, pois prova alguma foi produzida em tal sentido, de que, nessa sociedade a que se referiu o demandado Alexandre, fosse necessária, para a constituição de procurador, a assinatura dos dois sócios, ônus probatório que incumbia aos demandados e capaz de desvestir a legalidade de que se reveste o ato praticado pelo mandatário. Ora, entregues os títulos em cobrança vinculada, poderiam, tanto Alexandre quanto Roberto, autorizar a entrega dos títulos independentemente de pagamento, seja pessoalmente, seja através de procura- SENTENÇAS dor, sem que necessitassem atuar em conjunto, ou constituir conjuntamente dito procurador. Assim, no meu sentir, como resposta à primeira indagação, o que se tem é que dispunha o procurador de poderes para autorizar a entrega dos títulos de crédito independentemente de pagamento. O segundo aspecto a ser apreciado é sobre qual o valor que se pode atribuir à contabilidade do demandante como meio de prova, tendo em vista a referência expressa na perícia (fl. 616 do Processo nº 6.698-68) de que constariam nas anotações do autor como devolvidos os títulos. Embora a perícia mencione que tal devolução não está amparada em documentos, tenho que ocorre justamente o contrário, pois a própria procuração antes referida é prova bastante do levantamento contábil levado a efeito pela perícia, que atesta a devolução das cártulas. Por fim, quanto à credibilidade que se possa atribuir ao depoimento da testemunha Agamenon, que alegou haver efetivado o pagamento das cártulas, estou em que tal depoimento não merece crédito. É totalmente estéril a discussão acerca de haver sido determinada a oitiva de tal testemunha de ofício pelo juízo, pois, na verdade, testemunhas arroladas pelo autor, pelo réu ou de ofício são testemunhas do processo, cuja veracidade da versão ofertada deve ser analisada em conformidade com a prova contextualizada. O fato de a oitiva da testemunha haver sido determinada pelo juízo não torna o seu depoimento a salvo da necessária análise, como se pairasse soberano acima de qualquer suspeita. Ao contrário, claros os interesses da testemunha no deslinde do feito. SENTENÇAS À fl. 536, do Processo nº 6.698-68 temos o depoimento de tal testemunha, colhido por precatória, esclarecendo ela que os títulos resultariam de uma operação particular de aquisição de animais feita junto a Roberto, os quais teria pago junto ao Banco do Brasil. De tais pagamentos, feitos com cheques de terceiros, não possui recibo, embora mencione que este lhe tenha sido fornecido, pois, em razão do tempo decorrido, o teria perdido. Segundo narra, o pagamento teria ocorrido no outono, dias após a concessão de uma prorrogação. Os títulos de crédito prescrevem em curto lapso temporal, mas a ação de enriquecimento ilícito que deles se pode originar dispõe de vida mais longa. Ao afirmar que as cártulas foram pagas, estaria tal pessoa se isentando de qualquer responsabilidade. Dissesse que teria recebido os títulos independentemente de pagamento ou que não houvesse pago, e colocar-se-ia ao alcance de demanda ressarcitória. Não fora o evidente interesse de tal testemunha, pouco razoáveis suas palavras. A uma, porque não é crível que uma instituição bancária receba pagamento mediante cheques de terceiros, prática que, cotidianamente, se constata ser inadmitida pelos bancos. A duas, porque embora a testemunha afirme ter recebido o recibo, dele não mais dispunha. A três, porque a perícia levada a efeito na contabilidade do autor em momento algum apurou a existência de tais pagamentos. Estranho, diz que pagou e não possui recibo. Disse ter pago com cheques de terceiros, prática inadmitida nos bancos, e que, na verdade, impossibilita que se averigúe a veracidade de sua 185 versão, o que poderia ocorrer com a microfilmagem de cheques, se estes fossem seus. Não sabe o período ao certo, mas tal pagamento não foi localizado na contabilidade do banco. Logo, ao avaliar tais aspectos, a conclusão a que se chega é no sentido de que, pelos títulos emitidos por Agamenon Berni, não se pode responsabilizar o autor, tendo em vista a entrega destes, independentemente de pagamento, ao próprio emitente, por autorização emanada de Roberto Wairich Fernandez, através de seu procurador, não havendo quaisquer valores a compensar, não merecendo prosperar, de igual modo, pelas mesmas razões, a reconvenção movida por Roberto Wairich Fernandez. Da comprovação de existência do débito. Dos autos emerge encontrar-se devidamente comprovada a existência do débito, vez que documentalmente demonstrado em todas as ações de cobrança pelas respectivas cédulas rurais, cuja autenticidade em momento algum foi refutada pelos demandados. Assim, o que se tem individualmente é que as provas documentais carreadas a cada um dos feitos apresenta a seguinte situação: Processo nº 6.691-61, embasado nas Cédulas EPI nº 75/000493, EAI nº 75/00501-0, EAC nº 78/002321, EAI nº 75/00500-2, EAI nº 77/001627 e EAC nº 78/00475-8 (fls. 08 à 25); Processo nº 6.692-62, embasado nas Cédulas EAI nº 78/00251-8, EAC nº 78/ 00476-6, EAC nº 78/01176-2 e EAI nº 79/00314-X (fls. 08 à 34); Processo nº 6.693-63, embasado na Cédula EAC nº 79/00459-6 (fls. 07 à 10); e Processo nº 6.698-68, embasado nas Cédulas EAC nº 79/01498-2 e EPC nos 79/01499-0 e 80/ 00416-2 (fls. 09 à 43). 186 Por outro lado, a perícia produzida possibilitou a apuração, levando-se em conta o critério adotado pelo autor, ou seja, valor do débito em 30-06-81, quanto efetivamente era devido em tal data, por cada uma das cédulas, cujos valores devem ser adotados com uma única reserva, qual seja, a de não-adoção daqueles que ultrapassem ao pleiteado pelo demandante em sua peça vestibular, pois se assim procedesse estaria a alcançar um plus além do que foi pleiteado (extra petita). De salientar que em alguns casos impõe-se a redução dos valores pedidos na exordial, vez que foi constatado na perícia que eles não estão calculados de acordo com os termos pactuados, e aqui se inserem e ficam solvidas, desde logo, as alegações de Roberto e Lucila acerca da indevida cobrança de juros em determinadas cédulas ou em parcelas destas, vez que a perícia contábil teve por norte a apuração do débito em conformidade com o que fora pactuado, ficando este a cavaleiro de qualquer cobrança indevida. Processo nº 6.691-61: EPI nº 75/ 00049-3 – Cr$ 141.132,29 (perícia); EAI nº 75/00501-0 – Cr$ 74.298,33 (perícia); EAC nº 78/00232-1 – Cr$ 56.029,76 (perícia); EAI nº 75/00500-2 – Cr$ 25.972,54 (perícia); EAI nº 77/00162-7 – Cr$ 45.644,94 (perícia); e EAC nº 78/004758 – Cr$ 196.360,68 (perícia); total – Cr$ 539.438,54. Processo nº 6.692-62: EAI nº 78/ 00251-8 – Cr$ 417.141,76 (perícia); EAC nº 78/00476-6 – Cr$ 397.572,05 (perícia); EAC nº 78/01176-2 – Cr$ 451.231,67 (perícia); e EAI nº 79/00314-X – Cr$ 3.187.459,75 (perícia); total – Cr$ 4.453.405,23. SENTENÇAS Processo nº 6.693-63: EAC nº 79/ 004459-6 – Cr$ 384.980,20 (valor autor); total – Cr$ 384.980,20. Processo nº 6.69868: EAC nº 79/014498-2 – Cr$ 151.445,86 (perícia); EPC nº 79/01499-0 – Cr$ 2.136.797,56 (perícia); e EAC nº 80/ 004416-2 – Cr$ 7.330.249,26 (valor autor); total – Cr$ 9.618.492,68. Observação: sem considerar as amortizações antes especificadas e que devem ser abatidas, notadamente porque ocorreram em datas posteriores. São esses, pois, os valores devidos em cada um dos processos na data de 30-06-81, sendo que em relação à Cédula EPC nº 79/01499-0 devem ser procedidas as amortizações anteriormente especificadas. Da incidência da correção monetária. Reconhecida a existência do débito e inadmitida a compensação, impõe-se apreciar acerca da incidência de correção monetária e, admitida esta, o termo inicial para a sua fluência. A tese de não-incidência de correção monetária nas dívidas oriundas de financiamentos agrícolas não merece prosperar. Na verdade, suprimir a correção monetária é expropriar indiretamente o credor, pois a correção monetária não é um plus que se acrescenta, mas um minus que se evita. Logo, a afastar-se a incidência da correção monetária se estará violando o direito de propriedade e o devido processo legal, com atropelo das garantias constitucionais contidas nos incs. XXII, XXIV e LIV do art. 5º da Lei Magna. Oportuna, a propósito, a manifestação de Arnoldo Wald, in “Revista da AJURIS” nº 60/333, “Quatro Décadas de Evolução da Correção Monetária”, para quem: “A ficção nominalista, de acordo com a qual a moeda mantinha, no tem- SENTENÇAS po, sempre o mesmo valor, foi desmentida pelos fatos, significando uma verdadeira expropriação do credor em favor do devedor”. O crédito rural não ocupa posição diversa, pois embora a legislação pertinente não preveja a incidência da correção monetária, também não veda. Ora, o ordenamento pátrio, é sabido, deve ser interpretado de forma sistemática, com a visão do todo, e não de forma restrita em relação a uma lei. Assim, partindo da Constituição Federal, conforme anteriormente explicitado, e analisando o Decreto-Lei nº 167/67, não vislumbro qualquer vedação à incidência da correção monetária nos créditos rurais. A reforçar tal entendimento existe a Súmula nº 16 do STJ, vazada nos seguintes termos, verbis: “A legislação ordinária sobre crédito rural não veda a incidência da correção monetária”. Repita-se, inexiste, em lei, qualquer vedação à incidência da correção monetária nos créditos rurais. Não vislumbro força ou relevância na argumentação no sentido de que a correção monetária foi excluída do projeto pelo Relator do mencionado Decreto-Lei, notadamente porque, nem sempre, tal forma de interpretação da lei é a mais adequada. A respeito, pertinente reproduzir parcialmente o voto do Min. Sálvio de Figueiredo no REsp nº 2.122-MS: “A referida lei, em que pese o seu silêncio sobre a correção monetária, não se apresenta destoante das demais do nosso sistema jurídico, até porque nela não existe nenhuma vedação à incidência da correção monetária. A circunstância de ter sido excluída do projeto, pelo seu relator, a previsão de correção 187 monetária, não tem, a meu juízo, a relevância que lhe dão os que comungam da tese da não-incidência da correção monetária nos mútuos rurais. “A uma, porque a mens legislatoris nem sempre constitui orientação satisfatória na exegese dos textos legais (a propósito, Alipio Silveira, “Hermenêutica Jurídica”, vol. I, cap. 09). A duas, porque, como visto, doutrina e jurisprudência, ante a evolução do fenômeno inflacionário, passaram a não mais exigir, como critério de aplicação da correção monetária, a prévia existência de autorização legal. A três, porque, a tornar-se por base a referida exclusão, autorizados também estaríamos a refletir sobre as razões que levaram o legislador constituinte a inserir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o art. 47, II. “Esse, com efeito, não é um raciocínio seguro e merecedor de aplauso, em que pesem os esforços desenvolvidos pelos ilustres escolialistas que têm se ocupado da matéria. A melhor interpretação de uma lei, como cediço, não é a que se ocupa do seu exame isolado e literal, mas, sim, a que se realiza dentro de um sistema lógico e racional. O jurista, proclamou Pontes de Miranda em seus “Comentários ao Código de Processo Civil de 1939” (vol. XII/23), ‘há de interpretar as leis com o espírito ao nível de seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente’. Em outras palavras, ‘há que interpretar a norma de acordo com a realidade e a teleologia do sistema’ (Galeno Lacerda, “Comentários”, Forense, art. 809 do CPC)”. De tudo resulta ser cabível, no caso posto nos autos, a incidência de correção monetária, restando fixar qual o 188 termo inicial de sua incidência. Pretende o credor ver incidir a atualização monetária na forma do art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81, com a incidência da correção monetária desde a data dos títulos, ao passo que os devedores postulam seja aplicado o § 2º do mesmo artigo, com incidência a partir do ajuizamento da ação. O caso posto nos autos das quatro ações de cobrança encerra situações de idêntica peculiaridade. É que em todas elas se encontra o credor munido de título que embasaria feito executivo, mas que, nas demandas de tal natureza anteriormente propostas, não logrou demonstrar a liquidez dos títulos de crédito. Tal decisão, entretanto, não fechou ao credor a porta da execução, da qual poderia novamente ter lançado mão, desde que demonstrada ab initio a liquidez de seu crédito, pois, uma vez reconhecida a liquidez, isso não significa dizer que ela persistirá para sempre, pois pode perfeitamente ser suprida, em se tratando de contratos bancários, pela apresentação dos extratos, os quais, diga-se de passagem, acompanharam as ações de cobrança. Não se venha dizer que em virtude da coisa julgada se teria criado uma situação permanente de liquidez, pois isso inexiste no mundo jurídico. Ademais, encontra-se sedimentado na jurisprudência o entendimento no sentido de que os contratos de abertura de crédito que se façam acompanhar dos respectivos extratos bancários são aptos a embasar feito executivo. Não obstante dispor de remédio processual mais expedito, o autor, talvez temeroso do insucesso em que resultaram as execuções que intentara, SENTENÇAS optou pelo processo de conhecimento, com todos os percalços de que ele se reveste. Poderia executar, mas não o fez. Ora, estando o credor a exigir nas ações de cobrança dívida líquida e certa, correta se mostra, no meu sentir, a incidência de correção monetária a contar da data de vencimento dos títulos, o que em parte já foi atendido por ocasião da elaboração do laudo pericial, chegando-se aos débitos apurados em 30-06-81, conforme referido alhures, sendo o caso de incidir o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81. Em tal sentido se inclina a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e de nosso Tribunal de Alçada, verbis: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça pacificou-se no sentido de admitir a correção monetária incidente sobre valores de quaisquer débitos judiciais, ainda que se trate de título executivo que tenha perdido a cambiariedade” (REsp nº 6.527-RJ, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, “DJU”, de 11-03-91, p. 2.393). “Cabimento da ação de cobrança para se exigir dívida de valor, líquida e certa, inclusive confessada pelo devedor, razão suficiente para que a correção monetária incida a partir do vencimento do título (art. 1º, § 1º).” (REsp nº 20.188-7-RJ, STJ, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, “DJU”, de 03-08-92, p. 11.312) “Ação ordinária de cobrança. Correção monetária. Incidência. Na ação de cobrança de débito representado por títulos de crédito, ainda que o credor se valha da via do processo de conhecimento, a correção monetária incidirá a partir dos vencimentos dos títulos e não do ajuizamento da ação.” (“Julgados do TARGS” nº 90/110) SENTENÇAS Assim, no meu sentir, devida a correção monetária desde o vencimento dos títulos. Da incidência da multa e possibilidade de cumulação com honorários. Para bem solucionar tal questão, é de rigor seja apreciada a natureza jurídica da multa prevista no art. 71 do Decreto-Lei nº 167/67. Tal artigo encontra-se inserido no Capítulo das Disposições Gerais do mencionado Decreto-Lei. Entretanto, há um capítulo específico tratando acerca da ação para cobrança das cédulas de crédito rural. Não é o objetivo da presente abordagem aferir se o Capítulo IV, que versa acerca da ação para a cobrança, encontra-se ou não em vigor. Na verdade, trata-se de analisar a sistemática da lei. Assim, se quisesse o legislador contemplar honorários, a eles faria inserir no local adequado, ou seja, ao tratar da ação para cobranças. Não o fez, sendo que dita multa está localizada no corpo da lei, em local totalmente diverso. Se poderia dizer que o legislador teria sido pouco técnico. Admita-se isso para aferir se o dispositivo contempla honorários. Definitivamente, não. Trata-se de multa decorrente do inadimplemento, que não pode ser confundida com a verba honorária, pois, embora se reconheça a pobreza da interpretação literal, não se pode negar que o vocábulo multa diz com a aplicação de penalidades, ao passo que os honorários dizem com a remuneração do trabalho realizado. Ora, inadimplentes os devedores, é de rigor a incidência da multa, vez que contemplada a hipótese elencada no artigo em tela. Por óbvio que, traçada a distinção entre multa e honorários, é admissível 189 a cumulação destes, não apenas porque se tratam de institutos jurídicos distintos, mas também porque, a pensar de modo diverso, estaria este juízo contemplando o amesquinhamento do exercício da advocacia, com evidente desconsideração ao preceituado no art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC, como se fosse possível tarifar o trabalho dos profissionais do Direito em percentual fixo, sem qualquer margem para a apreciação judicial, principalmente no caso dos autos, que envolve questão de razoável complexidade, em processo que se prolongou no tempo, exigindo laborioso trabalho dos procuradores dos litigantes. A reforçar tal entendimento mencione-se a Súmula nº 616 do STF: “É permitida a cumulação da multa contratual com os honorários de advogado, após o advento do Código de Processo Civil vigente”. Logo, desassiste razão ao contestante, pois plenamente cumuláveis honorários advocatícios e multa contratual, institutos jurídicos distintos que são. Dos juros pretendidos pelo autor. Estou em que se mostram excessivos os juros pretendidos pela parte-autora, pois ultrapassam ao permitido em lei. É sabido que, não obstante a chamada autonomia da vontade, o que desborda do permitido em lei é ato nulo e, como tal, suscetível de reconhecimento judicial, independentemente de provocação das partes, tal qual preceituado no parágrafo único do art. 146 do CC. Seria demasia pretender fossem suplantados os limites legais em nome da autonomia da vontade, restando ultrapassada, assim, a advertência posta por Radbruch, mencionado por Fernando Noronha in “O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais”, Saraiva, 190 1994, p. 123, que ora reproduzo: “A liberdade contratual do Direito converte-se... em escravidão contratual na sociedade. O que, segundo o Direito, é liberdade, volve-se, na ordem dos fatos sociais, em servidão”. É evidente que não abrangendo a nulidade a totalidade do ato, por não atingir ponto substancial, torna-se possível a distinção da parte que lhe é válida. Assim, no caso posto nos autos, os juros pactuados excedentes a 12% ao ano se revestem da eiva da ilegalidade, devendo ser reduzidos a tal patamar. Ora, há todo um aparato legislativo a regulamentar a limitação de juros, sendo que na forma do art. 1º da Lei nº 22.626/33 é vedada a cobrança de juros superiores ao dobro da taxa legal, impondo-se interpretar tal dispositivo em conjunto com os arts. 1.062 e 1.262 do CC, para, assim, chegar à conclusão de que não podem exceder a 12% ao ano. Não me parece aplicável ao caso posto nos autos a Súmula nº 596 do STF. Ocorre que a Lei nº 4.598/64, art. 4º, inc. IX, que possibilitaria às instituições financeiras a cobrança acima de tal patamar, utiliza-se em sua redação do verbo “limitar”, e como menciona o culto Colega Pedro Luiz Pozza, “Revista da AJURIS” nº 62/299, “Limitar significa reduzir, restringir, diminuir. Tanto que o inciso em questão, em sua parte final, refere que essa limitação destina-se a assegurar taxas favorecidas a determinados financiamentos. Se é assim, conclui-se que o objetivo do legislador foi, justamente, o de restringir os encargos praticados pelos bancos, não de conceder ao Conselho Monetário Nacional uma carta de alforria, permitindo a cobrança SENTENÇAS de juros abusivos”. Assim, persiste íntegro o dispositivo acima mencionado (art. 1º da Lei nº 22.626/33), a incidir, inclusive, em se tratando de instituições financeiras. Em tal sentido já se manifestou a 3ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Alçada, sendo Relator o Dr. Arnaldo Rizzardo, constante do “Julgados do TARGS” nº 80/315, que transcrevo parcialmente: “Contrato bancário... Limitação da taxa de juros a 12%, conforme imperativo do Direito Positivo (arts. 1.062 e 1.262 do CC e art. 1º do Decreto nº 22.626/33), porquanto o termo ‘limitar taxas de juros’, contido no art. 4º, inc. IX, da Lei nº 4.595/64, não significa elevá-la, o que, a seguir-se, ainda, a Súmula nº 596 do STF, importaria em ofensa ao princípio da isonomia jurídica das pessoas na ordem constitucional”. Disso resulta viável a limitação dos juros a 12% ao ano, vez que em conformidade com o que dispõe a Lei nº 22.626/33, em seu art. 1º, constituindo-se o que excede a tais patamares em disposição contratual a que se atribui a eiva da ilegalidade, o que ocorre flagrantemente no caso dos autos. DISPOSITIVO Isso posto, com fulcro no art. 269, inc. I, do CPC: A) Julgo procedente o pedido contido no Processo nº 6.691-61, para condenar os réus Alexandre Wairich Fernandez e Dora Regina Reginato Fernandez ao pagamento de Cr$ 539.438,54, valor devido em 30-06-81, a ser monetariamente atualizado desde tal época (art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81) pelo IGP-M, acrescido de juros de 12% ao ano, capitalizados semestralmente, e SENTENÇAS multa de 10% sobre o valor atualizado do débito (art. 71 do Decreto-Lei nº 167/67). B) Julgo procedente o pedido deduzido no Processo nº 6.692-62, para condenar os réus Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez ao pagamento de Cr$ 384.980,20, valor devido em 30-06-81, a ser monetariamente atualizado desde tal época (art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81) pelo IGP-M, acrescido de juros de 12% ao ano, capitalizados semestralmente, e multa de 10% sobre o valor atualizado do débito (art. 71 do Decreto-Lei nº 167/67). C) Julgo procedente o pedido deduzido no Processo nº 6.693-63, para condenar os réus Alexandre Wairich Fernandez e Roberto Wairich Fernandez ao pagamento de Cr$ 384.980,20, valor devido em 30-06-81, a ser monetariamente atualizado desde tal época (art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81) pelo IGP-M, acrescido de juros de 12% ao ano, capitalizados semestralmente, e multa de 10% sobre o valor atualizado do débito (Decreto-Lei nº 167/67), e improcedente a reconvenção movida por Roberto Wairich Fernandez; de outro modo, julgo procedente a impugnação ao valor da causa (nº 166/90), para atribuir-lhe como correto o de Cr$ 177.742,08, condenando o autor (impugnado) ao pagamento das custas processuais do incidente. D) Julgo procedente o pedido deduzido no Processo nº 6.698-68, para condenar os réus Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez ao pagamento 191 de Cr$ 9.618.492,68, valor devido em 30-06-81, a ser monetariamente atualizado desde tal época (art. 1º, § 1º da Lei nº 6.899/81) pelo IGP-M, acrescido de juros de 12% ao ano, capitalizados semestralmente, e multa de 10% sobre o valor atualizado do débito (Decreto-Lei nº 167/67); de outro modo, julgo procedente a impugnação ao valor da causa (nº 164/90), para atribuir-lhe como correto o de Cr$ 9.707.324,42, condenando o autor (impugnado) ao pagamento das custas processuais do incidente. Condeno os réus, em cada um dos processos, ao pagamento das custas e despesas processuais, assim como dos honorários advocatícios do patrono do autor, os quais vão fixados em 20% do valor atualizado de cada uma das condenações, percentual que fixo com fulcro no art. 20, § 3º, do CPC, levando em consideração que o trabalho desenvolvido pelo patrono do autor foi de acentuada qualidade, revestindo-se de considerável grau de zelo, sendo desenvolvido em comarca diversa daquela aonde mantém escritório profissional e, por fim, o longo desenrolar do processo com complexa dilação probatória. Antes de intimar as partes da presente sentença, deverá a Sra. Escrivã providenciar na extração de fotocópias do Processo nº 6.698-68, com sua juntada nos três outros processos, dos atos processuais que foram praticados apenas naquele e disserem respeito aos demais, considerado o momento em que começaram a ser praticados apenas naquele, sendo que deverá desconsiderar, sob supervisão deste juízo, as cópias desnecessárias. Feito isso e acostada a 192 cada um dos processos a sentença, publique-se, registre-se e intimem-se, sendo que a intimação deverá ser individualizada em cada um dos processos, possibilitando, assim, se for o caso, a interposição de recurso em cada um SENTENÇAS dos processos, pois as partes não são as mesmas em todos eles. Júlio de Castilhos, 28 de novembro de 1995. Luiz Antônio Alves Capra, Juiz de Direito Substituto. 193 Processo nº 00101873595 – Pedido de Alvará (Falência de Marsiaj Oliveira Incorporações Imobiliárias Ltda.) Vara de Falências e Concordatas – 1º Juizado Requerente: Egon Teichmann: Empreendimento Condomínio Edifício “Piazza Navona Flat Service” Interessado: Banco do Estado do Rio Grande do Sul S. A. – Banrisul Juiz prolator: Luiz Carlos Gay Serpa Daiello Pedido de alvará judicial. Contratos bilaterais não se rescindem com a quebra – art. 43 da Lei de Falências. Cancelamento da hipoteca convencional à habilitação. Concessão de escritura ao promitente-comprador. Sistema financeiro da habitação. Dívida do construtor não se transmite ao adquirente de unidade financiada. Procedência do pedido. Vistos estes autos. O autor, supra-identificado e já qualificado nos autos ajuizou pretensão de receber escritura do imóvel descrito na inicial. Sustenta que, através de instrumento particular de compra e venda, adquiriu de Flávio Ricardo Cordeiro o referido imóvel. Flávio Ricardo Cordeiro adquiriu da ora falida, através de contrato de particular de promessa de compra e venda (fls. 05/11), o imóvel em questão, tendo quitado o preço com a incorporadora. O autor pagou o preço avençado, mas, apesar de notificada, não outorgou a requerida a escritura, como se obrigara. Postula, ainda, que o imóvel lhe seja transferido sem o ônus hipotecário existente, tendo como beneficiário o Banco do Estado do Rio Grande do Sul S. A. – Banrisul. A falida, o síndico e o Minis- tério Público concordaram com o pleito. O Banrisul não concordou com a transmissão do imóvel ao promitente. É o breve relatório. Passo a decidir. Justifica-se, inicialmente, o pedido via alvará judicial, por ser este exatamente o meio apropriado para que o síndico pratique atos de administração da massa, na forma dos arts. 59 e 63, XVIII, da Lei de Falências. O processo falimentar é de ordem pública, atingindo os interesses e direitos de todos os credores, sendo os seus atos de caráter indisponível e de publicidade absoluta. O cumprimento dos contratos bilaterais, gize-se, é manifestação de cunho eminentemente unilateral por parte do síndico, após juízo de conveniência, mediante autorização judicial, que se dá através de alvará. O presente pleito tem fulcro no art. 43 da Lei de Quebras, que dispõe: “Os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser executados pelo síndico, se achar de conveniência para a massa. Parágrafo único – O contraente pode interpelar o síndico, para que, dentro de 05 dias, declare se cumpre, ou não, o contrato...” O síndico, em manifestação nos autos, declarou sua intenção de cumprir com o contratado, o que apenas ratifica 194 edital mandado publicar que, antecipando-se às interpelações dos credores, já deixava claro que cumpriria com todos os contratos firmados pela falida e que envolvessem imóveis já construídos. Trataria, pois, se fosse o caso, de receber os valores devidos pelos adquirentes e, em contrapartida, de transferirlhes o domínio, na forma contratada. A questão, pois, é de mero cumprimento dos contratos bilaterais firmados pela ora falida. Se houve o compromisso da compra e venda da unidade em construção, com o adimplemento do pagamento do preço, de um lado, e a efetiva construção e entrega do imóvel, de outro lado, resta apenas a sua escrituração no tempo e modo prometido. Assim, na forma do contratado na cláusula 8ª do instrumento da fl. 10, a escritura pública definitiva seria outorgada com os imóveis livres e desembaraçados de quaisquer ônus judiciais ou extrajudiciais, hipotecas (legais ou convencionais), no prazo de até 06 meses de conclusão. Embora excedido o prazo para a escrituração, não há impedimento para que agora seja efetivada, pois manifesta a pretensão do credor em recebê-la, mesmo que tardiamente. O Banrisul, manifestando-se nos autos, não concordando com o pedido do requerente, requer que haja a satisfação da integralidade de seu crédito junto à falida Marsiaj Oliveira Incorporações Imobiliárias Ltda., aduzindo que os imóveis hipotecados são garantia de seu crédito não satisfeito pela Incorporadora (Marsiaj). Evidente que tal manifestação encerra uma expectativa da credora, não uma condicionante ao cumprimento do contrato com o requerente, pois não lhe SENTENÇAS cabe estabelecer condições ao adimplemento de contrato entre a falida e o adquirente do imóvel, que é juízo de conveniência do síndico, como antes visto. O credor-hipotecário, na falência, como bem salientado pelo Dr. Promotor de justiça em seu parecer, submete-se às regras de classificação de créditos. Por ser hipotecário, receberá a classificação própria à natureza de seu crédito, ou seja, haverá seu crédito na ordem legal, após satisfeitos aqueles que lhe precedem que, exemplificativamente, são os de natureza acidentária, trabalhista, os das Fazendas Públicas, etc., além das despesas e dos encargos da massa. A circunstância, pois, de haver hipoteca a garantir determinado crédito antes da falência, não exclui o bem hipotecado da universalidade da massa falida, destacando-o do todo e colocando-o ao dispor de apenas um dos credores. O bem será normalmente arrecadado, entretanto, para a massa que fará a sua administração da forma mais conveniente a atender os direitos e interesses de todos os credores, não só do hipotecário. Descabe ao credor-hipotecário impedir que assim seja, pois seu direito é ao crédito e respectiva classificação, e não ao bem. Caso contrário, absolutamente desvirtuado e fraudado o instituto da falência, que trata de estabelecer o concurso universal e atender aos credores na medida de suas preferências e privilégios. A hipoteca, enfim, não sobrevive ao decreto falimentar, a não ser para o efeito de qualificar o crédito como hipotecário. Além dessa realidade, que me parece definitiva no presente pedido de SENTENÇAS cumprimento de contrato bilateral de promessa de compra e venda, merece análise, mesmo que perfunctória, a relação jurídica estabelecida entre a incorporadora, a financiadora da construção – e credora hipotecária – e o consumidor adquirente. Há uma tendência de sacralização do instituto da hipoteca, como se, após sua formalização, tomasse vida própria independente da obrigação que lhe originou, que lhe deu causa e que visa a garantir. Não é assim, e disso não se pode afastar o intérprete. A hipoteca, embora direito real sobre coisa alheia, tem a função e natureza de garantia de cumprimento de obrigação, nada além do que isso. A ora falida, através do instrumento público das fls. 46/69, em 25-07-91, firmou com o Banrisul contrato de empréstimo de importância destinada à produção de unidades residenciais, lojas e estacionamentos, dentre elas aquela referida na peça inicial, denominada de Piazza Navona Flat Service. O contrato foi firmado dentro do âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, regulado pela Lei nº 4.380, de 21-08-64, e legislação posterior. A falida pagaria o empréstimo num prazo de 24 meses, posteriormente prorrogado para 39 meses (fl. 106), contatos de 05-08-92. Estabeleceram que a dívida teria vencimento antecipado (cláusula 20ª), na hipótese de a Marsiaj (mutuária) alienar ou mesmo prometer à venda o imóvel sem a anuência expressa do Banrisul (letra d da referida cláusula). Tendo em vista tal dispositivo, inegável que as unidades em construção poderiam ser comercializadas, não sendo isso negócio vedado à Marsiaj. Tanto 195 que a conseqüência do descumprimento da condição imposta pelo credor (sua expressa anuência) era a de anteciparse o vencimento da dívida da incorporadora. Ora, uma coisa é proibir a venda ou promessa de venda das unidades. Outra, bem diferente, é permiti-la, como feito, exigindo expressa anuência e, caso descumprida, dar por vencida a dívida. A diferença é fundamental e tem conseqüências no negócio jurídico estabelecido com o terceiro adquirente da unidade em construção. Se proibida fosse, o terceiro não poderia negociar e, se negociasse, não poderia opor-se ao credor. Sendo permitida a venda, como era, o negócio jurídico estabelecido com Marsiaj alcança também o credor, tem eficácia em relação a este, que expressamente previu a possibilidade. A questão da expressa aprovação do negócio com o adquirente, pelo credor, apenas tem reflexo na relação do Banrisul com a Marsiaj. Se aprovada, irrelevante a venda ao contrato de empréstimo. Se não aprovada, por não submetida ao Banrisul, a conseqüência seria apenas o vencimento antecipado da dívida da incorporadora. Nada mais. Não há noticia de que o vencimento da dívida foi extraordinário, antecipado e, por conseqüência lógica, sequer se admite a hipótese de que a promessa de venda não tivesse a aprovação do credor Banrisul. Ademais, mesmo que assim fosse, tratam os autos de construção financiada nos moldes do Sistema Financeiro da Habitação que, a seguir será visto, possui sistemática própria. O sistema é lógico e correto, atendendo aos princípios da 196 boa-fé contratual. Não seria lógico, nem jurídico, que o Banrisul contratasse mútuo com a incorporadora para construção e comercialização de unidades residenciais, autorizasse as vendas, como acima visto, e, após induzir os terceiros a adquirirem os imóveis, lhes impingisse o ônus de pagar novamente a dívida da incorporadora para com o financiador da construção. Observe-se que o Banrisul, em 10-08-94, firmou aditamento ao contrato de financiamento, prorrogando o vencimento da dívida para 29 meses, contados de 05-06-93 (fl. 107), estabelecendo o prazo de 48 horas para liquidação do eventual saldo devedor da Marsiaj, “se o montante das comercializações das unidades não fosse suficiente a quitá-lo”. Ressaltada, pois, a circunstância de que as unidades destinavam-se à comercialização pela incorporadora, servindo seu produto ao pagamento do débito. Era dever de o financiador da obra fiscalizar que assim fosse. Na verdade, surpreende que ainda hoje ocorra discussão sobre se o terceiro adquirente de boa-fé responde pela hipoteca junto ao agente financeiro credor da construtora do mesmo imóvel. Se fosse isso possível, por certo que se estaria chancelando e incentivando a disseminação do crime de estelionato. A circunstância de o adquirente das unidades ficar ciente de que o imóvel encontra-se hipotecado não modifica sua situação de contratar de boa-fé, pois recebeu do vendedor a obrigação (promessa de) escriturar o imóvel livre e desembaraçado de todo e qualquer ônus, inclusive aquele específico da hipoteca. A relação que se estabelece é triangular e serve à geração e circulação de riquezas na sociedade. SENTENÇAS A construtora ou incorporadora empreende a construção de um conjunto habitacional e, para custeá-lo, procura recursos junto a agente financeiro imobiliário. Este, mediante garantia hipotecária do terreno e futuras acessões, empresta o valor ajustado. Libera-o parceladamente, à medida em que cumpridas as várias etapas da obra, exercendo seu poder–dever de fiscalização. Ao mesmo tempo, permite, expressa ou tacitamente, a comercialização pública das unidades em construção, constatando-se isso a uma simples leitura dos classificados dos jornais, onde as ofertas de venda não escondem a condição de estarem as obras financiadas por agentes financeiros da habitação. Os receptores da oferta pública de venda, ou seja, os consumidores finais das unidades habitacionais, aceitam-na e firmam os respectivos contratos, comprometendo-se ao pagamento do valor do imóvel. O valor, registre-se, corresponde ao normal de mercado, ou seja, não leva em conta a existência de hipoteca ao agente financeiro. A razão disso é bastante clara, pois a venda se realiza sem que o adquirente assuma obrigação alguma com o agente financeiro para quitar a hipoteca. Esta decorre de dívida do empreendedor (construtor-incorporador) para com o agente financeiro. O adquirente, repito, não assume tal dívida, ou parte dela, para com o agente financeiro, e todos na relação têm disso plena consciência. Aliás, o sistema não funcionaria, se assim não fosse, e, repito, todos os envolvidos sabem que desta forma é que funciona. Negar tal realidade configurase em reconhecer legitimidade à má-fé contratual e entender que os adquirentes SENTENÇAS de imóveis com obra financiada constituem uma parcela aquinhoada da população, cujo destino e prazer é pagar dívida alheia. Trata-se obviamente de uma incoerência, que se procurou acentuar com a ironia da situação. O fato é que o contrato tem a função de circular riquezas e, como afirma Cláudia Lima Marques, “... o comércio jurídico se despersonalizou, e os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam...” (“Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, Ed. RT, 1992, p. 27). Gerou isso, mesmo no Brasil de codificação civil vetusta e inspirada na falsa autonomia da vontade, uma nova necessidade de teorizar o contrato à realidade atual. Como salientou a doutrinadora mencionada, “... certo é que a decadência do voluntarismo do Direito Privado levou à relativação dos conceitos. O direito dos contratos, em face das novas realidades econômicas, políticas e sociais, teve que se adaptar e ganhar uma nova função, qual seja a de procurar a realização da justiça e do equilíbrio contratual. No novo conceito de contrato, a eqüidade, a justiça (Vertragsgerechtigkeit) veio ocupar o centro de gravidade, em substituição ao mero jogo de forças volitivas e individualistas, que, na sociedade de consumo, comprovadamente, só levava ao predomínio da vontade do mais forte...” (ob. cit., p. 50). Nosso Direito positivo consagrou no texto da Constituição Federal, como objetivo fundamental da República, o “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inc. I, da CF), repetindo, quando do estabelecimento dos princípios gerais da atividade econômica, que esta “... tem por fim assegurar 197 a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social...” (art. 170, caput, da CF) Solidariedade é “sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade... relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s)...” (“Novo Dicionário Aurélio”, 2ª edição) Inadmissível, pois, visão individualista dos contratos, dissociados do meio em que produzidos, no meio este que deverá traduzir um objetivo inafastável de justiça social, baseado na solidariedade de seus agentes. A menos que não se queira uma sociedade organizada e, ainda, que se negue o texto constitucional, relegando-o a mero enfeite de bibliotecas. Seria quase desnecessário ressaltar que todo e qualquer negócio jurídico baseiase no princípio geral da boa-fé, traduzido no dever de conduta ético exigível de todos quantos pretendem formar uma sociedade livre, justa e solidária, como é o objetivo da República Federativa do Brasil (art. 3º, inc. I, da CF). Impensável o contraponto disto, que é a má-fé na base das relações sociais, gerando o caos. Embora seja isto bastante claro, observa-se a necessidade da repetição do princípio, para que jamais se perca o seu rumo, desviando-se para nefastos caminhos, em que o objetivo é o de levar vantagem em tudo, não importando quanto possa significar em danos aos parceiros sociais. Ressalte-se que a boa-fé gera comportamentos às partes, tanto no que tange 198 aos direitos como aos deveres, cumprindo-lhes exercer direitos sem abusividade e adimplir obrigações corretamente, dentro do parâmetro daquilo que é o objetivo do compromissado. Há dever, em suma, de recíproca lealdade dos contratantes, de forma que, como conduta, ambos devem caminhar lado a lado para a consecução da justa expectativa que advém do negócio. A boa-fé precede a contratação e sobrevive ao adimplemento da obrigação principal. A teoria da confiança, também presente nos negócios jurídicos, por seu turno, “pretende proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nasceram no outro contratante, o qual confiou na postura, nas obrigações assumidas e no vínculo criado (...) protege-se, assim, a boa-fé e a confiança que o parceiro depositou na declaração do outro contratante...” (Cláudia Lima Marques, ob. cit., p. 63) Acrescenta aquela autora que “... a teoria da vontade concentrava-se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua vontade, concentrava-se no momento da criação do contrato; a teoria da confiança concentra-se também em um indivíduo, qual seja o que recebe a declaração de vontade, em sua boa-fé ou má-fé, mas tem como fim proteger os efeitos do contrato e assegurar, através da ação do direito, a proteção dos legítimos interesses e a segurança das relações...” (p. 63) Necessária foi esta breve digressão sobre a teoria contratual, mesmo que de forma superficial, para estampar e salientar do que se está tratando nesta complexa relação consumidor-construtor-financiador. Assim, tem-se que o adquirente cumpre com sua obrigação SENTENÇAS principal de pagar o preço do imóvel, sendo justa sua pretensão de receber o bem livre e desembaraçado, como se obrigara o vendedor. Esta era a sua legítima expectativa ao contratar, com plena ciência da construtora e do agente financiador da obra. O vendedor-incorporador-construtor, por seu turno, recebeu o preço, devendo cumprir com sua parte na relação. No que tange ao adquirente, deve transferir-lhe o domínio do bem adquirido e pago pelo consumidor. Relativamente ao agente financeiro, deve pagá-lo, como se obrigara. O agente financeiro, de outra parte, efetuou o empréstimo e tem legítima pretensão de reavê-lo de seu vendedor-incorporador-construtor, na forma contratada. Se este não paga, pode cobrá-lo diretamente, inclusive executando as eventuais garantias. Não pode, contudo, exercer pretensão contra o terceiro adquirente-consumidor, pois este não é seu devedor ou garantidor da dívida. A hipoteca inicial, abrangendo o todo do imóvel, não persiste, é ineficaz relativamente à unidade comercializada, pois, como antes visto, tal comercialização foi admitida e consentida pelo agente financeiro quando contratou com o construtor-incorporador o financiamento da construção. Fazia parte desta primeira relação, como condição inerente ao negócio jurídico, a possibilidade das alienações das unidades em construção-construídas ao público em geral. Mais do que possibilidade, diga-se, era o próprio objeto mediato do contrato que financiou a construção. Não haveria dito financiamento, se o objetivo não fosse exatamente o de vender, comercializar as unidades aos consumidores. SENTENÇAS Se assim era, tanto que admitida a notória oferta pública da venda através de publicidade, evidente que o consumidor que aceitou tal oferta, adquirindo o imóvel, não se obrigou com o agente financeiro, posto que contrário à natureza da oferta e do próprio negócio jurídico. Volto a salientar que também não era este o objetivo do agente financiador ao contratar com o construtor-incorporador. Sua pretensão era realizar seu lucro na operação de financiamento da construção, recendo o valor emprestado, com os acréscimos, através dos recursos captados pelo construtor, seu financiado, que adviram da comercialização das unidades aos consumidores finais. Não se pode, de forma alguma, confundir o objetivo do contrato com as garantias de seu cumprimento. Estas são a hipoteca enquanto não comercializada a unidade e, após, os créditos da comercialização. Aquele, o objetivo, é exatamente o de permitir a construção e vender, comercializar as unidades habitacionais em construção ou construídas. O que não se pode admitir é que o agente financeiro, totalmente omisso e negligente nos seus negócios, permitindo que o seu devedor não lhe repassasse os valores recebidos na comercialização das unidades, passados vários meses ou anos, volte-se contra o consumidor e passe a exigir-lhe dívida que nunca foi dele, mediante recusa de cancelar hipoteca. Se foi negligente, não fiscalizando como deveria, deve ele próprio, o agente financeiro, responder pelas conseqüências de seus atos e omissões, e não imputá-las a terceiros. Pode-se objetar, no entanto, como ficaria a situação do agente financeiro, 199 que, emprestando ao construtor-incorporador, não teve solvido seu crédito. Afinal, dirão, se tinha garantias, não pode ver frustrada a satisfação de seu crédito junto ao construtor-incorporador. A solução para o aparente impasse encontra-se no próprio sistema financeiro da habitação que, com singeleza, fechou o círculo lógico para a relação tripartite formada e que necessariamente se faz presente em todos os negócios jurídicos como o dos autos. Através da Lei nº 4.854, de 29-11-65, que “cria medidas de estímulo à indústria de construção civil”, foi criado o mecanismo que permitiu, com a necessária segurança jurídica às partes envolvidas, fossem atendidas as legítimas expectativas de todos os envolvidos nesta relação jurídica. O agente financeiro, com a certeza do retorno de seu empréstimo. O adquirente, com a certeza do recebimento do objeto contratado, ou seja, do imóvel, pagando por ele apenas aquilo que ele vale, sem riscos de responder por eventuais débitos do construtor-incorporador. Estabelece o art. 22 de mencionado diploma legal: “Os créditos abertos nos termos do artigo anterior pelas Caixas Econômicas, bem como pelas sociedades de créditos imobiliários, poderão ser garantidos pela caução, a cessão parcial ou a cessão fiduciária dos direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado. “§ 1º – Nas aberturas de crédito garantidas pela caução referida neste artigo, vencido o contrato por inadimplemento da empresa financiada, o credor terá o direito de, independentemente de qualquer procedimento judicial e com 200 preferência sobre todos os demais credores da empresa financiada, haver os créditos caucionados diretamente dos adquirentes das unidades habitacionais, até a final liquidação de crédito garantido. “§ 2º – Na cessão parcial referida neste artigo, o credor é titular dos direitos cedidos na percentagem prevista no contrato, podendo, mediante comunicações ao adquirente da unidade habitacional, exigir, diretamente, o pagamento em cada prestação da sua percentagem nos direitos cedidos”. No artigo seguinte, disciplina a situação em que haja a cessão fiduciária em garantia do crédito, onde permitido que o devedor (construtor-incorporador) exerça os direitos de cobrança em nome do credor, imputando ao devedor as responsabilidades de depositário. No caso de inadimplemento do construtor-incorporador, pode o credor-fiduciário, comunicando aos adquirentes das unidades habitacionais, destes receber diretamente até a satisfação total de seu crédito, entregando o restante ao construtor-incorporador. Posteriormente, o Decreto-Lei nº 70, de 21-11-66, em seu art. 43, reafirma o sistema, dizendo que os empréstimos destinados ao financiamento da construção ou da venda de unidades imobiliárias podem ser garantidos pela caução, cessão parcial ou cessão fiduciária dos direitos decorrentes de alienação de imóveis, aplicando-se o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 22 da Lei nº 4.864/65, supratranscritos. A novidade importante é que tais garantias passaram a se constituir em direitos reais, como determinado no parágrafo único do artigo em comento. SENTENÇAS Ora, o credor Banrisul, culposamente (negligência): a) não exerceu a tempo e modo seu direito de cobrança de seu efetivo devedor; b) também permitiu que o construtor-incorporador recebesse diretamente as importâncias do adquirente, sem exigir os repasses; c) não se insurgiu quanto à venda das unidades a consumidores, antes a incentivou, permitindo sua oferta mediante publicidade, induzindo-os a contratarem com o devedor. Quebrou, pois, o circuito de segurança jurídica que o sistema financeiro da habitação criou, onerando, com sua omissão culposa, aquele que, na relação, foi o único a adimplir com boa-fé suas obrigações, o adquirente da unidade habitacional. Não há razão alguma, portanto, para que se admita seja o adquirente da unidade habitacional responsável por débito de terceiro, que, volto a frisar, em nenhum momento pretendeu contrair ou efetivamente contraiu e que, na sistemática legal de segurança jurídica criada, nem poderia contrair. A questão, para finalizar, já mereceu análise do Superior Tribunal de Justiça, por sua 4ª Turma, no julgamento do Recurso Especial nº 187.940-SP (98/ 0066202-2), Wulf Salim e cônjuge, recorrentes, Delfim S. A. Crédito Imobiliário, recorrida, tendo como Relator o eminente Min. Ruy Rosado de Aguiar, cuja ementa dispôs: “Sistema Financeiro da Habitação. Casa própria. Execução. Hipoteca em favor do financiador da construtora. Terceiro promissário-comprador. Embargos de terceiro. Procedem os embargos de terceiros, opostos pelos promissários-compradores de unidade residencial de edifício financiado, contra a penhora efetivada no processo de SENTENÇAS execução hipotecária promovida pela instituição de crédito imobiliário que financiou a construtora. “O seu direito de crédito, que financiou a construção às unidades destinadas à venda, pode ser exercido amplamente contra a devedora, mas contra os terceiros adquirentes fica limitado a receber deles o pagamento das suas prestações, pois os adquirentes da casa própria não assumem a responsabilidade de pagar duas dívidas, a própria, pelo valor real do imóvel, e a da construtora do prédio. Recurso conhecido e provido”. A ementa já seria suficiente ao esclarecimento. Impõe-se, contudo, que se transcreva parte da brilhante fundamentação do Min. Ruy Rosado de Aguiar, onde afirmou: “As regras gerais sobre a hipoteca não se aplicam no caso de edificações financiadas por agentes imobiliários integrantes do Sistema Financeiro da Habitação, porquanto estes sabem que as unidades a serem construídas serão alienadas a terceiros, que responderão apenas pela dívida que assumiram com o seu negócio, e não pela eventual inadimplência da construtora. O mecanismo de defesa do financiador será o recebimento do que for devido pelo adquirente final, mas não a excussão da hipoteca, que não está permitida pelo sistema... “O princípio da boa-fé objetiva impõe ao financiador de edificação de unidades destinadas à venda aprecatarse para receber o seu crédito da sua devedora ou sobre os pagamentos a ela efetuados pelos terceiros adquirentes. O que se não lhe permite é assumir a 201 cômoda posição de negligência na defesa dos seus interesses, sabendo que os imóveis estão sendo negociados e pagos por terceiros, sem tomar nenhuma medida capaz de satisfazer os seus interesses, para que tais pagamentos lhe sejam feitos e de impedir que o terceiro sofra a perda das prestações e do imóvel...” Não há como, pois, deixar-se de atender ao pleito de cumprimento do contrato bilateral, pela massa, quando plenamente adimplido pelo compromissário. Diante de todo o exposto, acolho a pretensão contida e autorizo a Massa Falida de Marsiaj Oliveira Incorporações Imobiliárias Ltda., por seu síndico, no cumprimento do contrato bilateral que a falida firmou com o requerente, a outorgar escritura definitiva do imóvel descrito na inicial, sem ônus (hipotecário ou outros que possam eventualmente estar incidindo sobre o imóvel), por não existente no caso e, de qualquer forma, por ineficaz em relação ao adquirente. Expeça-se alvará para possibilitar o ato, fazendo constar os necessários dados dos imóveis e, como outorgado da escritura, Egon Teichmann já qualificado nos autos, determinando ao Oficial do Registro de Imóveis da 1ª Zona que cancele a hipoteca incidente sobre os imóveis objeto do presente processo. Despesas de escrituração e registro pelo requerente. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 29 de março de 2001. Luiz Carlos Gay Serpa Daiello, Juiz de Direito. 202 Processo nº 01196154460 13ª Vara Cível – 1º Juizado Autores: José Emílio Pessanha e Tulipas – Planejamento, Assessoria e Negócios Ltda. Ré: Indústria de Bebidas Antárctica-Polar S. A. Juíza prolatora: Nara Elena Soares Batista Direito de retirada dos acionistas em desacordo com a incorporação de sociedade comercial – arts. 230 e 270, parágrafo único, da Lei das Sociedades Anônimas. Direito de recesso assegurado no art. 109, V, da Lei nº 6.404/76 para o sócio minoritário e dissidente de decisão majoritária em assembléia geral. Número de ações. Procedência parcial. Vistos, etc. 1. José Emílio Pessanha e Tulipas – Planejamento, Assessoria e Negócios Ltda. promovem ação ordinária contra Indústria de Bebidas Antárctica-Polar S. A., dizendo que adquiriram 1.407.011 ações, da espécie preferencial, da empresa Companhia Sulina de Bebidas Antártica, e 30.040 ações, da classe ordinária, da empresa Cervejaria Serramalte S. A., ambas pertencentes ao Grupo Antártica de Bebidas. Ocorre que a empresa-ré, em assembléia geral extraordinária, deliberou a incorporação total das empresas retrocitadas, procedendo a uma operação de troca baseada em laudos de avaliação aos patrimônios líquidos das empresas incorporadas, o que resultou-lhes a atribuição de 492.129 ações no capital social da ré, respectivamente 79.544 e 412.585. Sem interesse na operação de troca, notificaram a incorporadora-requerida nesse sentido, solicitando o pagamento das ações que possuíam nas empresas incorporadas, pelo valor patrimonial apontado na própria assembléia. Recusa-se a ré, no entanto, ao pretendido, impedindo-lhes o exercício do direito de recesso, o que confronta direito positivo vigente e a melhor orientação jurisprudencial. Com efeito, a edição da Lei nº 7.958/ 89, que alterou inciso do art. 137 da Lei das Sociedades Anônimas, não aboliu o direito de retirada de sócio minoritário nas hipóteses de fusão, cisão ou incorporação de sociedades anônimas. Em verdade, ela tão-só excluiu o direito de recesso na hipótese do art. 265 da Lei nº 6.404/76 e aboliu a aplicação do reembolso do 80%, deixando incólume a figura da indenização em sede de incorporação total. Daí a presente demanda, onde objetivam, a título de indenização, no exercício do direito de recesso da sociedade-ré, os valores de R$ 1.245.180,46, relativo às ações da Sulina, e R$ 240.069,75, relativo às ações da Serramalte, a serem atualizados desde outubro/95. Com a inicial (fls. 02/07), trouxeram os documentos das fls. 08/38. 2. A requerida contestou (fls. 45/75), confirmando a incorporação das empresas em que eram acionistas os autores, mas apontando originariamente SENTENÇAS ao primeiro 1.388.794 ações preferenciais da Sulina e 6.664 ações ordinárias da Serramalte, enquanto a segunda tinha 11.862 ações ordinárias e 1.030 ações preferenciais da Serramalte, bem assim 18.377 ações preferenciais da Sulina, o que altera o valor pedido. Pelo plano de distribuição das novas ações, José Emílio tem 457.197 preferenciais e 17.646 ordinárias, e a Tulipas tem 31.400 ordinárias e 8.115 preferenciais. Alega que as três sociedades envolvidas, nos termos da legislação atinente à matéria, firmaram o protocolo para a incorporação em 02-10-95, também, obedecidos os regramentos para a avaliação dos patrimônios, donde que, inexistente prejuízo aos acionistas dissidentes da deliberação da assembléia geral, falece-lhes o direito de pedir a reparação (art. 264 da Lei das Sociedades Anônimas). Na incorporação da companhia controlada não há o direito de recesso vazio. Nesse sentido, a Lei nº 7.958/89, que deu nova redação ao art. 137 da Lei nº 6.404/76. Discorre a requerida, longamente, sobre os dispositivos da Lei das Sociedades Anônimas revogados pela Lei nº 7.958/89, apontando doutrina e jurisprudência no sentido de seu entendimento, qual seja de que, da revogação parcial do art. 137, decorreu a revogação implícita do art. 230, fulcro do direito invocado pelos autores e de parte do parágrafo único do art. 270. Aponta, ainda, que a nova legislação objetivou, justamente, eliminar distorção do direito de retirada, que ocorria no Brasil, e que vinha em prejuízo da preservação e da expansão da empresa, beneficiando o enriquecimento injustificado do acionista minoritário, a 203 custa dos demais acionistas, e, por vezes, até dos empregados, com a redução ou destruição da empresa. Reforçou, por fim, a inexistência de prejuízo dos acionistas reclamantes com a incorporação e postulou pela improcedência, juntando os documentos das fls. 76/ 153. 3. Em réplica, argumentaram os autores, por primeiro, que a requerida não considera 10.464 ações ON da Serramalte, adquiridas pela Tulipas, 04 meses antes da incorporação, cuja transferência entretanto retardou-se junto ao Bradesco, só concretizando-se 02 meses após a incorporação, o que gerou a transformação automática em ações da requerida. Quanto ao mais, a lei não exige prova do prejuízo em sede de incorporação para o exercício do direito de recesso, em que pese esse efetivamente tenha ocorrido, consoante os valores das ações das incorporadas e da incorporadora. E a Lei nº 7.958/89 não alterou de forma direta ou implícita o art. 230 da Lei das Sociedades Anônimas (fls. 156/ 201). 4. Manifestaram-se as partes, ainda, às fls. 199/201 e 204/206. É o relatório. Decido. 5. Procede, em parte, a presente demanda. 6. Não concordando os autores com a incorporação da Companhia Sulina de Bebidas Antártica e da Cervejaria Serramalte S. A., da qual são acionistas, pela ora requerida, pretendem que essa reconheça-lhes o direito de retirada, efetuando o reembolso do valor de suas ações nas sociedades incorporadas. Esse reembolso querem que seja feito incluindo todas as ações que possuem, inclusive 204 aquelas adquiridas alguns meses antes da incorporação e que, por retardo bancário, tiveram a transferência concretizada tão só após a assembléia geral extraordinária que a deliberou. Proposta a demanda em abril/96, sob a égide então da Lei nº 7.958/89, entendem que essa não alterou o art. 230 da Lei das Sociedades Anônimas no tocante ao recesso. E razão lhes assiste em parte na pretensão. 7. Já de início, verifica-se, pelo documento das fls. 16/26, que, em 31-10-95, por assembléia geral extraordinária da Indústria de Bebidas Antárctica-Polar S. A., foi decidida a incorporação, por essa, da Companhia Sulina de Bebidas Antártica e da Cervejaria Serramalte S. A., ambas também pertencentes ao Grupo Antártica. Verifica-se, ainda, pelos documentos das fls. 29/33, bem assim por aquele das fls. 34, que já, no correr do mês de novembro/95, os autores manifestavam à incorporadora-requerida a sua dissidência, exteriorizando a opção pelo direito de retirada e pleiteando o reembolso das ações de que eram titulares. O que não foi aceito pela suplicada, a qual alegou ter sido expressamente excluída tal faculdade de recesso, em caso de incorporação, com o advento da Lei nº 7.958/89. 8. Independente da novíssima legislação sobre a matéria – a Lei nº 9.457/ 97 que, ao dar nova redação aos arts. 136 e 137 da Lei nº 6.404/76, manteve íntegro o direito de recesso ao acionista dissidente da deliberação de incorporação da companhia em outra –, mantenho o entendimento de que, à época da propositura da presente demanda, quando em vigor a Lei nº 7.958/89, também não estava modificado o direito de re- SENTENÇAS tirada contido na legislação pertinente às Sociedades Anônimas. Entendimento esse contrário àquele que exterioriza a incorporadora aqui requerida. E que legitima a ação dos autores. 9. Como bem acentua Nelson Eizirik, autor gaúcho sempre afinado na legislação sobre essa matéria, em sua obra “Reforma das Sociedades Anônimas e do Mercado de Capitais”, Renovar/97, às fls. 64/66, “a Lei nº 7.958/89 – Lei Lobão –, ao dar nova redação ao caput do art. 137 da Lei das Sociedades Anônimas e excluir os incs. VI e VIII do art. 136 como hipóteses ensejadoras do direito de recesso, provocou enorme discussão doutrinária sobre eventual eliminação do recesso para as hipóteses de incorporação, fusão, cisão e participação em grupo de sociedades”. Entretanto, “a Lei Lobão não revogou o art. 230, que prevê o direito de recesso na incorporação, na fusão e na cisão, nem o art. 270, parágrafo único, que o disciplina, no caso de deliberação de se associar a grupo de sociedades. Não houve, em tais casos, a supressão do direito para os acionistas dissidentes, objetivando a sua promulgação, meramente evitarem a repetição, no texto legal, das hipóteses ensejadoras do recesso”. Filio-me inteiramente à corrente doutrinária do autor que defendeu não existir “qualquer incompatibilidade lógica entre a Lei nº 7.958/89 e os arts. 230 e 270, parágrafo único, da Lei das Sociedades Anônimas, que pudesse amparar a tese da revogação tácita de tais dispositivos legais”. (grifei, ob. cit.) E, aqui, não é demais citar também Rubens Approbato Machado, que, com muita propriedade, discorreu sobre a SENTENÇAS matéria em artigo da “Revista de Direito Mercantil”, e onde acentuou, à época, que a própria Comissão de Valores Mobiliários – CVM, órgão autárquico administrativo competente –, em manifestação expressa do entendimento de que a Lei nº 7.958/89 não revogara o direito de retirada, determinava às sociedades de capital aberto, que pretendessem praticar incorporação, fusão e cisão, que fizessem incluir, no protocolo ou na justificação, o valor do reembolso das ações a que teriam direito os acionistas dissidentes. A teor de telex que enviava às companhias, a Lei nº 7.958/89 não revogara o direito de retirada, “ao contrário, apenas aperfeiçoou a redação da lei societária, pois não dispôs expressamente sobre a revogação dos arts. 225 e 230 da Lei nº 6.404/76, quando podia fazêlo” (grifei, “RDM” nº 82, fl. 146). E, acrescento mais, teria que o fazer, para que se entendesse como suprimido o direito de recesso em hipóteses, por exemplo, como a da presente demanda – incorporação. 10. Realmente, tenho que, nas expressões supragrifadas, encontra-se o cerne da questão. E esse diz com a natureza e o fundamento do direito de retirada, que resulta da lei, é inerente à própria essência da sociedade, e daí intangível, consoante aliás enunciado do art. 109, V, da Lei nº 6.404/76: “Art. 109 – Nem o estatuto social, nem a assembléia geral poderão privar o acionista dos direitos de: ‘(...). V – retirar-se da sociedade nas casos previstos nesta Lei’.” 11. Com isso, para que resultasse vitorioso o entendimento da incorporadora aqui requerida, necessário seria que, em 1989, tivessem sido suprimidos 205 da legislação pertinente, de forma expressa ou tácita, “todos” os artigos que disciplinam o direito de recesso. O que inocorreu. Os elaboradores da Lei nº 7.958 eliminaram apenas a remissão feita no art. 137 da Lei nº 6.404/76 aos incs. VI e VIII do art. 136, quando o direito de retirada encontra-se previsto e assegurado em mais cinco outros mandamentos, quais sejam os arts. 225, I, 264, §§ 3º e 4º, e 230 (para as incorporações, fusões e cisões) e o art. 270, parágrafo único (para a constituição de grupos societários). Ou seja, as hipóteses legais de recesso não se esgotavam naquelas suprimidas. O art. 137 da Lei nº 6.404/76 enuncia, em caráter não-exaustivo e não-exclusivo, as hipóteses de retirada, por remissão ao art. 136, e esse diz sobre matérias que exigem quorum qualificado para deliberação em assembléia extraordinária. A regra geral do art. 137, entretanto, está reafirmada nos arts. 230 e 264, para casos de incorporação, fusão ou cisão. E incorporação é a hipótese dos autos. 12. Ainda que tivesse sido a intenção inicial do mens legislatoris retirar o direito de recesso nas hipóteses de incorporação, fusão e cisão, ela desaparece com a promulgação da lei, dando lugar ao mens legis, e esse deve ser obtido pela interpretação de todo o texto legal, onde se inseriu a norma, e não pela interpretação isolada do dispositivo. O que no caso conduz ao entendimento aqui adotado, de que o direito de recesso foi mantido quando da Lei nº 7.958/89, por se encontrar inserido no contexto da própria estrutura da Lei nº 6.404/76. 13. Não é demais acrescentar, aqui, que o instituto do direito de recesso reflete a permanente tensão que existe 206 no mecanismo societário da sociedade anônima, entre os interesses individuais dos sócios e as necessidades de permanência e desenvolvimento da empresa. A sociedade por ações, como sociedade de capital, faz prevalecer a vontade da maioria em suas deliberações. O legislador brasileiro, talvez por isso mesmo, desde o início, buscou de certa forma proteger o acionista minoritário e encontrou a fórmula justa, originária do Direito italiano, alcançando-lhe alguns poucos, mas bem definidos direitos e garantias. O suficiente para que possa fazer frente às decisões da assembléia geral dos acionistas, mas preservando ao máximo o princípio da maioria. Não há possibilidades então de abuso. Daí por que a previsão expressa desses direitos em hipóteses igualmente bem definidas para o seu exercício. Entre essas, a do direito de recesso em caso de incorporação. 14. A Lei nº 7.958/89, sob a égide da qual foi proposta esta demanda, e por isso sendo a que deve aqui ser fundamento da decisão, não afastou as chances de que o acionista descontente pudesse receber o reembolso do valor de suas ações, pois não dispôs com exclusividade sobre as hipóteses que possibilitam o recesso. As situações que regulou não são as únicas e exclusivas que acarretam o direito de recesso. Daí não haver antinomia entre ela e o art. 230 da Lei nº 6.404/76, como bem dispõe Norma Janssen Parente em “O Direito de Recesso na Incorporação, Fusão ou Cisão de Sociedades” (“RDM” nº 97/67). 15. Essa a razão de procedência da pretensão de retirada dos autores, sem a necessidade de que o justificassem, a não ser simplesmente pela dissidência SENTENÇAS com a incorporação. A lei não exige comprovação de prejuízo para o exercício do direito de recesso. Improcede a argumentação contestatória, por isso, também, quanto à necessidade, para a retirada, de que fossem menos vantajosas aos acionistas dissidentes as bases da incorporação. O direito de recesso do sócio dissidente não constitui uma sanção de ato ilícito praticado pela maioria, daí não representar o reembolso uma indenização, circunstância em que se é obrigado a provar o prejuízo sofrido. Pressupõe, tão-só, que o interesse do acionista foi atingido. Bastava no caso que os autores não aceitassem a incorporação. E isso eles manifestaram, como de início dito, ainda no mês seguinte à decisão da assembléia geral extraordinária. 16. Estabelecido o direito de retirada, entendo ainda como correta a pretensão dos autores em que o reembolso de suas ações se dê pelos números resultantes do laudo das fls. 87/98 – Avaliação do Patrimônio Líquido em 18-10-95 –, devidamente atualizados. O art. 45 da Lei nº 6.404/76 trata do pagamento, aos acionistas dissidentes de deliberação da assembléia geral, do valor de suas ações. E estabelece que esse não será inferior ao valor de patrimônio líquido das ações, de acordo com o último balanço aprovado pela assembléia geral. No caso, em outubro/95, realizou-se avaliação dos patrimônios líquidos das três empresas – incorporadora e incorporadas –, adotando como preço básico o balancete de 30-09-95 e a mando de suas diretorias, com o objetivo especial da pretendida incorporação. O trabalho resultou no laudo das fls. 87/98, datado de 18-10-95, e estava previsto, já, no SENTENÇAS protocolo de condições firmado em 02-10-95 (fls. 83/86). Foi referendado depois na assembléia geral extraordinária de 31-10-95 (fls. 16/26). Certo então que por esse laudo se estabeleça o valor do reembolso das ações dos autores. Mesmo porque a requerida não contestou expressamente essa pretensão quanto à base de cálculo (já que assim não pode ser considerada a simples consignação de forma generalizada à fl. 68, último parágrafo), nem impugnou o cálculo constante da inicial, ou o valor dele resultante, R$ 1.485,250,41, para os dois autores, ao menos no que diz com os valores atribuídos às ações. 17. Impugnou tão-só a requerida o número de ações indicado na inicial, por excessivo, o que os autores explicam na circunstância de que, em 13-06-95, a requerente Tulipas adquiriu 10.464 ações ON da Cervejaria Serramalte S. A., com solicitação de transferência junto ao departamento de acionistas do Bradesco, em 1º-08-95, entretanto a instituição financeira retardou-se e, tão-só em 22-12-95, concretizou a transferência, aí já com transformação automática em ações da incorporadora. Mas aqui razão assiste à impugnante. Com efeito, a documentação trazida pelos autores, às fls. 164 e ss., não supre a exigência exposta no art. 35 da Lei das Sociedades por Ações, pela qual considera-se regularizada a transferência de ações escriturais, tão-só quando feita nos livros de registros da instituição depositária, à vista de documento escrito do alienante. No caso, quando da assembléia geral extraordinária que decidiu pela incorporação, ensejando o direito de recesso dos autores, a exi- 207 gência ainda não fora atendida, donde que não concretizada a transferência. Para efeitos do direito de recesso, por isso, não podem ser consideradas as 10.464 ações ON da Cervejaria Serramalte S. A. adquiridas pela Tulipas, daí que efetivamente resta modificado o valor que reclama a inicial. O reembolso será tão-só por aquelas ações que a contestante reconhece às fls. 45/46. 18. Isso posto, julgo procedente em parte o pedido contido na inicial e condeno a Indústria de Bebidas Antárctica-Polar S. A. a efetuar o reembolso dos autores José Emílio Pessanha e Tulipas – Planejamento, Assessoria e Negócios Ltda., do valor das ações de que eram titulares em 31-10-95, mais precisamente 1.388.734 ações preferências da Cia. Sulina, 6.664 ações ordinárias da Serramalte (José Emílio), 18.377 ações preferenciais da Cia. Sulina e 11.862 ações ordinárias mais 1.030 ações preferenciais da Serramalte (Tulipas), calculado conforme o laudo de avaliação de 18-10-95, mais juros de mora de 6% ao ano a partir da citação, tudo atualizado desde a data da elaboração do referido laudo. Sucumbentes os autores em parte mínima do pedido, arca a requerida com o pagamento das custas processuais e dos honorários do patrono dos requerentes, que fixo em 10% sobre o valor da condenação, considerando o elevado valor dessa condenação e a instrução simplificada do feito. Tudo a ser apurado em liquidação por cálculo do contador. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 20 de outubro de 1997. Nara Elena Soares Batista, Juíza de Direito. 208 Processo nº 12851 – Ação de cobrança Autora: Veloso, Denisiuk & Cia. Ltda. Réu: Sasun Indústria de Produtos Termo-Transferíveis Ltda. Juiz prolator: Nilton Luís Elsenbruch Filomena Ação de cobrança. Contrato de factoring. Cessão de crédito. Inexistência de direito de regresso cambial. Risco do factorizador. Improcedência. Vistos e examinados. Veloso, Denisiuk & Cia. Ltda., já devidamente qualificada e representada, intentou presente ação de cobrança contra Sasun Indústria de Produtos Termo-Transferíveis Ltda., também qualificada e representada, expondo ser empresa de factoring e, decorrência dessas operações, recebeu o cheque no valor de R$ 1.300,00, sacado por Clarissa da Silva Dornelles, que restou sem pagamento, bem como duas duplicatas, cada uma no valor de R$ 856,00, sacadas contra Soili Smek Ltda.–ME. Assim, busca a condenação da requerida no pagamento importância de R$ 2.792,00. Regularmente citada, a requerida trouxe contestação na fl. 31, alegando preliminar de ilegitimidade passiva, impossibilidade jurídica do pedido e falta de causa de pedir. No mérito, refere que a operação é uma simples cessão de crédito, pelo que não pode haver o pedido de reembolso. Houve réplica e dispensa da prova oral. Vieram os autos conclusos para sentença, juntamente com outros tantos, causa de invencível acúmulo de serviço e, conseqüentemente, atraso no prestar da jurisdição. Relatei. DECIDO Procedo ao julgamento do processo no estado em que se encontra, visto ser desnecessária a realização de audiência de instrução e julgamento. As preliminares suscitadas confundem-se com o mérito, no qual deverá ser analisada a faturização eventual possibilidade de ação regressiva. O estabelecer do contrato firmado pelas partes foi muito bem apreciado pelo professor Pablo Barbieri, Professor de Direito Comercial II, na Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, Argentina, de quem transcrevo lições que entendo pertinentes ao processo em exame. “El contrato de factoring reconoce sus antecedentes en el Derecho anglosajón, fundamentalmente en los Estados Unidos de Nortemérica, teniendo su principal desarollo a mediados de este siglo, para ampliar sus horizontes hacia los distintos Estados europeos a partir de 1960... “Su traducción al castellano ha determinado que se lo denomine también contrato de factoraje o factoreo, y creemos acertada la conceptualización que se ha realizado del mismo, según la cual ‘es el contrato por el cual una entidad financiera (factor) se obliga a gestionar el cobro de los créditos de su cliente, anticipándole dicho cobro mediante un descuento sobre los docu- SENTENÇAS mentos de crédito que aquél entregue. Por su parte, el cliente se obliga a cumplir con las instrucciones del factor respecto de con quién puede contratar y las condiciones de pago; además, se obliga a pagar una comisión’. “La función económica de este contrato se puede encarar desde distintos ángulos. Sin embargo, nos parece importante destacar que la empresa factoreada (el cliente, em la terminologia de la definición transcripta) aumenta considerablemente la velocidad de rotación de su capital circulante, máxime cuando cobra decisivo valor el hecho de que la insolvencia de los deudores es asumida por la empresa de factoring, en carácter de entidad financiera, hecho por el cual percibe una comisión y un beneficio producido por el descuento obtenido por el pago anticipado. “Quien se ocupa del cobro de las facturas cedidas es el factor (empresa de factoring), quien incluso estará facultado a iniciar las acciones judiciales respectivas, para lo cual el factoreado generalmente presta su conformidad en el contrato. “El factor adelanta al factoreado los montos de las facturas cedidas, efectuando un descuento del monto a abonar por los terceros deudores. Este descuento es el beneficio que obtiene la empresa de factoring por la realización de esta verdadera operativa de ingeniería financiera” (“Contratos de Empresa”, Editorial Universidad, Buenos Aires, Argentina, 1998, pp. 247-9). De acordo com tais lições, a empresa-autora já obteve os seus benefícios 209 quando da realização do contrato, pois, seguramente, não adiantou a demandada 100% dos créditos cedidos, mas sim o percentual não especificado, por já ter descontado sua despesa operacional ou decorrente da sua atividade. Tratando-se de cessão de crédito, a empresa-autora tornou-se credora e proprietária dos títulos, não podendo agir regressivamente contra quem lhe transferiu tais títulos. Este é, também, o entendimento da jurisprudência, conforme pode ser visto no julgado publicado na “RJTJ”, 185/ 285. Consta daquela decisão que o contrato de faturização caracteriza-se pelo risco que o faturizador corre com a aquisição dos créditos. A decisão fala em risco porque a falta de pagamento, pelo devedor do título, não acarreta direito de regresso contra o cedente. Nestas circunstâncias, é acolhida a tese da empresa-demandada, no sentido de atribuir o risco da cobrança, e também seu insucesso, para a empresa-autora, que não pode buscar regressivamente os valores não liquidados pelos devedores mencionados, quer pelo cheque devolvido, quer pelas duplicatas não pagas. Diante do exposto, julgo improcedente a ação de cobrança. Pelo princípio da sucumbência, condeno a autora no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10% sobre o valor da causa, devidamente atualizado. Registre-se. Intimem-se. Estância Velha, 30 de março de 2001. Nilton Luís Elsenbruch Filomena, Juiz de Direito. 210 Processo nº 01197167362 – Ação de Indenização por Danos Morais e Patrimoniais 11ª Vara – 1º Juizado Autores: G. B. N e R. P. B. Rés: I. O. T. e T. I. Juiz prolator: Pedro Alexandre Cabreira Alfaro Dano moral e patrimonial contra agência de viagem. Inépcia da inicial e ilegitimidade passiva rejeitadas. Prejuízo à personalidade é indenizável. Limite da verba indenizatória. Procedência parcial. Examinados os autos. G. B. N e R. P. B., já qualificados, ajuizaram ação por danos morais e patrimoniais contra I. O. T. e T. I., dizendo, em síntese, que contrataram com as rés a prestação de serviço referente a uma viagem turística a Cancun, México, cujo “pacote” previa acomodações por 07 dias, traslados e city tour; que a relação entre as partes é de consumo, protegida pelo Código de Defesa do Consumidor; que pagaram à vista e antecipadamente R$ 1.000,00, cada um dos autores; que se apresentaram para a viagem, conforme a programação, e houve atraso de mais de 55 horas para o embarque, aguardadas entre o aeroporto e um hotel; que neste período não houve informações aos integrantes do passeio, por parte das rés, sobre o que ocorria. Relatam o desenrolar dos acontecimentos havidos durante o período de espera para o embarque, com informações desencontradas e que após o atraso de 02 dias e meio desistiram da viagem, pois chegariam ao destino apenas 03 dias antes da data fixada para o retorno. Informam que suas atividades profissionais não permitem viagens sem prévio planejamento, que foram parcialmente reembolsados pela ré I. do prejuízo financeiro sofrido, mas sofreram lucros cessantes, pois não gozaram as férias nem receberam a renda das suas atividades profissionais. Dizem que há danos emocionais pela frustração da viagem, além do desconforto e constrangimento que experimentaram Referem que as rés conheciam previamente a impossibilidade de a viagem se realizar, conforme a circunstâncias ocorridas com outros turistas, divulgadas pela imprensa local – que transcrevem – pelo que a continuidade nas vendas dos “pacotes” turísticos se afigura como conduta culposa. Afirmam que incide o Código de Defesa do Consumidor, pois o negócio jurídico celebrado entre as partes é contrato de consumo, do tipo padrão ou adesão, vigendo o princípio da boa-fé e que restaram abalados pela conduta das rés. Colacionam jurisprudência em amparo à tese da autonomia do dano moral como fato gerador do dever de indenizar. Requerem a procedência com a condenação das demandadas a indenizá-los por danos patrimoniais e morais. Juntam documentos. Citadas (fl. 65), contestaram as requeridas (fls. 66-74 e 80-95). A ré T. SENTENÇAS levanta preliminares. A primeira, de ilegitimidade passiva, por ser mera intermediadora na compra de “pacotes” junto à operadora de turismo I., codemandada, não podendo responder por fatos a que não deu causa e também porque ressarciu os requerentes de todos os valores que despenderam, pelo que o processo deve ser extinto. A segunda, de inépcia da inicial, pois confusa e imprecisa, prejudicando a defesa, em especial pela ausência de pedido específico, induzindo à interpretação, o que é vedado. No mérito, alega que os autores foram os únicos a se sentirem lesados com os problemas ocorridos, já que todos os passageiros receberam atendimento adequado, sendo inclusive imediatamente ressarcidos quando desistiram da viagem; que, em vista do caráter personalíssimo do dano moral, este não pode ser analisado conjuntamente entre as partes autoras; que as notícias jornalísticas trazidas pelos demandantes não guardam qualquer relação com as circunstâncias do litígio. Analisa o instituto do dano moral, especialmente quanto às dificuldades de se estabelecer a sua existência e mensuração e finaliza dizendo inexistentes os danos extrapatrimoniais referidos pelos autores. Requer o acolhimento das preliminares e, em caso negativo, a improcedência da ação. A co-ré I. contesta igualmente aduzindo preliminar de legitimidade passiva, pois, na condição de operadora turística, não pode responder pelos atrasos de responsabilidade das companhias aéreas, sobre as quais não tem poder de controle ou ingerência. Assim, deve o feito ser extinto, mesmo porque quanto 211 às suas responsabilidades na viagem não há qualquer reclamação. Quanto ao mérito, repisa o argumento de que cumpriu com suas obrigações; que qualquer indenização, seja material ou moral, pressupõe seja comprovada a existência do dano, o que não ocorreu neste processo, inviabilizando a pretensão da inicial. Traz doutrina nesse sentido. Ressalta que mesmo havendo responsabilidade objetiva do transportador, pelo nexo causal entre o prejuízo sofrido pelo passageiro e o agir daquele, à cristalização do dever de indenizar é necessária a prova real da ocorrência do dano; que a doutrina e a jurisprudência nacionais são majoritárias no entendimento de ser incabível indenização, sobretudo moral, por atraso de vôo, colacionando julgados e doutrina nesse sentido; que o atraso ocorrido foi menor do que o alegado pelos autores e deu-se por motivo de força maior e caso fortuito, que não podem ser creditados à companhia aérea; que descabe a incidência do Código de Defesa do Consumidor no exame de matéria sub judice, pois a relação de consumo no transporte aéreo tem norma própria. Finaliza repelindo a pretensão dos autores, que não fizeram prova do que alegam, requerendo o acolhimento da preliminar e, em caso de análise do mérito, a improcedência da demanda. Houve réplica onde os autores rebatem as preliminares e fundamentos de mérito das contestações, reafirmando as posições já esposadas na exordial. Realizada audiência, na qual, não havendo acordo, foram ouvidas três testemunhas arroladas pelos autores e dispensados os depoimentos pessoais, oportunizando-se a produção de memoriais. 212 Em razões finais (fls. 117-120), os autores analisam a prova testemunhal, que teria confirmado as circunstâncias de fato narradas na inicial, e reafirmam a incidência do Código de Defesa do Consumidor na espécie, bem como a existência do dano moral. A ré I. apresentou memorial (fls. 122126) onde reafirma a preliminar argüida na contestação e diz que a pretensão dos autores careceria de comprovação da existência do dano, prova da qual não se desincumbiram. Ainda, na hipótese de acolhimento da indenização, esta deve ser proporcional à suposta lesão e ao valor cobrado pelo trajeto que fariam, para que não ocorra enriquecimento sem causa. Pede a improcedência. A demandada T. I., intimada em audiência (fl. 144), deixou apresentar memoriais. Eis o relatório. Passo às razões de decidir. PRELIMINARES Inépcia da inicial. Pela ordem lógica de prejudicialidade, examino a preliminar de inépcia da inicial. Embora deficiente a inicial, que se perde em longa descrição de circunstâncias que poderiam ser narradas em poucas linhas, tornando-se enfadonha, com citações jurisprudenciais, chegando ao absurdo de 16 folhas, para um pedido relativamente simples, não é inepta. Fortes e bem alinhadas as razões da ré I. nesta preliminar. Todavia, não se aplicam, do modo como pretende, à situação dos autos. Apesar da deficiência apontada, a inicial permite ver que as rés venderam serviço, que a viagem não se concretizou na data marcada, que as requeridas não teriam tomado providên- SENTENÇAS cias adequadas e que de tais fatos teriam advindo dissabores e prejuízos aos autores. Afasto, pois, essa preliminar. Ilegitimidade passiva. Ambas as rés se dizem ilegítimas para responderem pela alegada lesão a direitos dos autores. A T. I. foi apenas intermediária, segundo alega. Todavia, o intermediário também é um vendedor, aufere lucro e se compromete com o resultado final da transação. Seria muito cômodo intermediar um serviço que causa prejuízo, tirar lucro e depois “lavar as mãos”, alegando que é questão entre terceiros. A responsabilidade da vendedora é evidente, pois não provou que seja apenas mandatária como alega. Repele-se, portanto, essa preliminar da T. I. A I. é, sem dúvida, a agenciadora e, apesar de atribuir a responsabilidade à companhia aérea, não a denunciou à lide. Também – e principalmente – a agenciadora tem compromisso com a efetiva e adequada concretização do serviço que promove e do qual aufere lucro. Não pode, na hora em que algo sai errado, simplesmente eximir-se, pretendendo que o consumidor vá acionar uma desconhecida companhia de um país distante. Pelo menos em tese, a I. responde pelos fatos narrados na inicial. Foi ela quem escolheu ou aceitou a empresa aérea que veio a ocasionar os transtornos narrados pelos autores. Rejeita-se, igualmente, a preliminar de ilegitimidade passiva da I. MÉRITO Está provado que existiu o obstáculo que inviabilizou a viagem dos autores. As rés não impugnam o documento SENTENÇAS da fl. 45, do representante da A. no Brasil, que noticia problema “técnico-operacional”. Os fatos, de um modo geral, não são negados pelas rés. Pequeno atraso na viagem, seria tolerável. Mas os autores alegam que a mesma atrasou 55 horas, durante as quais ficaram em um vai-e-volta, sem sequer ter recebido informações precisas. A testemunha J. P., que integrava o grupo submetido ao impasse e que chegou a viajar, informa que a viagem foi reduzida de 07 para 04 dias (fl. 115). E., também integrante da excursão, diz que a saída devia ter ocorrido no domingo de manhã e só saíram “na terça de tardezinha” (fl. 115). F., viajor da mesma nau errante, narra os transtornos da viagem, inclusive em Cancun e no retorno. Informa que durante a espera, não havia representantes das rés para dizer o que realmente estava ocorrendo (fl. 116). A desistência dos autores, portanto, foi legítima. Ninguém está obrigado a esperar, por mais de 02 dias, por uma viagem que tinha hora e dia marcados. Tampouco estavam obrigados a aceitar a redução do passeio pela metade. Por toda a peripécia, são co-responsáveis as rés, que agenciaram, venderam e fizeram as tratativas com a empresa aérea, empresa essa que se mostrou sem condições de substituir um avião em pane, de modo a atender, com um mínimo de competência, os consumidores que buscavam lazer, divertimento e descanso e não demora, indefinição e angústia. Não tinham os autores meios para saber das condições da A. Quem tinha o dever de avaliar o serviço que estava 213 colocando à venda, antes de contratar, eram as rés, que são do ramo e que têm contato direto com a transportadora. Os infelizes adquirentes desse “pacote” certamente não teriam adquirido o mesmo se soubessem da falta de condições da transportadora. Desse modo, as rés devem indenizar e, se for o caso, se ressarcirem junto à transportadora, já que não denunciaram à lide a A. Danos patrimoniais. Os autores não foram claros na inicial e nada provaram quanto aos danos patrimoniais. Disseram, às fls. 06 e 07, que além do prejuízo direto (dano emergente) parcialmente reposto pela T. I., sofreram lucros cessantes, porque não viajaram nem trabalharam durante aquela semana. Ora, é de se presumir que os autores estavam de férias e não provaram que o recesso fosse exclusivamente para a viagem. Assim, de qualquer modo, não trabalhariam, não cabendo indenização por lucros cessantes. Não há outro dano patrimonial especificado e provado, pelo que não procede esse pedido. Danos morais. Conforme antes referido, os autores foram submetidos à espera e à frustração decorrente da desistência da viagem, tudo porque as rés contrataram o transporte com uma empresa sem condições, que simplesmente alegou problema “técnico-operacional” (fl. 45) e atrasou a viagem por quase 03 dias. Os fatos contrariam a afirmação da I. (fl. 83, item 7) de que a companhia aérea contratada presta serviços de qualidade. As testemunhas atestam os transtornos vividos pelos que enfrentaram a viagem. O vôo durou 30 horas (fl. 116). Em outra ocasião, no mesmo 214 mês em que estava programada a viagem dos autores, um avião da A. teria tentado levantar vôo sem conseguir, enquanto o comandante repetia “neste avião eu não vôo” (fl. 46). Houve problemas de hospedagem, que também foi contratada pelas demandadas, promotoras da excursão. Não está provado e não há indícios de que o atraso que provocou a desistência dos autores tenha ocorrido por força maior ou caso fortuito, como diz a I. Os indícios são de precariedade da companhia aérea, incapaz de substituir um avião em pane, de modo a abreviar a espera dos passageiros. Os danos morais, como também já referido, consistiram na espera angustiante, sem a devida atenção por parte das rés – que não davam informações precisas – e na desistência da viagem, devido ao demasiado atraso. Os autores planejaram e prepararam-se para um pouco de lazer, fugindo da pressão da cidade grande, e acabaram acumulando frustração e estresse. Esse prejuízo à personalidade é indenizável. Não se trata de simples atraso e sim de inviabilização da viagem. Como é impossível mensurar a angústia e a frustração e como não há critério legal para a indenização do dano moral, cabe o arbitramento. No caso, os autores não foram claros quanto aos valores de aquisição do “pacote”, não pediram valor certo, os recebidos juntados pela T. I. são confusos e o valor da passagem referido pela I., à fl. 125, não está comprovado. Por outro lado, descuidaram os autores de provar as condições econômico-financeiras das requeridas. Referem os autores, ao citarem julgado, indenização de 1.000 salários mínimos, o que, SENTENÇAS no caso seria absurdo. Há que se considerar, embora a dificuldade, o tamanho da lesão, tendo presente, também, que a indenização não se destina a enriquecimento fácil. Tudo ponderado e considerado que o abalo não foi grave, arbitra-se a indenização em 50 salários mínimos para cada autor. Tal verba parece advertir suficientemente as rés, não sendo excessivamente pesada, ainda que sejam empresas de pequeno porte – por hipótese, pois não provaram os requerentes – satisfazendo, razoavelmente, os autores. Note-se que ele é economista e ela é médica, podendo-se concluir que o valor fixado equivale ao salário mensal médio desses profissionais. As rés são solidárias, pois conjugam esforços para angariar clientes e obter lucro. DECISÃO Isto posto, julgo procedente em parte o pedido ajuizado por G. B. N. e R. P. B. contra I. O. T. S. A. e I. V. T. L (exI. T.) e condeno as rés a pagarem aos autores indenização por dano moral em valor equivalente a 50 salários mínimos (valor de hoje) para cada um dos autores. O valor da condenação será corrigido pelo IGP-M e acrescido de juros da mora se não for pago no prazo de 30 dias a contar da intimação da sentença. Cada parte pagará custas e honorários na proporção em que restaram vencidas. Arbitro o decaimento dos autores, para efeito de custas, em 1/3. Considerando o deficiente trabalho do procurador dos autores, fixo os honorários advocatícios devidos pelas rés aos autores em 10% do valor da condenação. SENTENÇAS Na impossibilidade da calcular o valor de que decaíram os autores e considerando o trabalho normal dos procuradores das rés, fixo os honorários advocatícios devidos pelos autores a cada uma das requeridas em 06 salários mínimos. Presume-se que os honorários da sucumbência se destinam a ressarcir as 215 partes pelo que gastaram com os respectivos advogados, pelo que poderá haver compensação dos honorários, salvo se os procuradores provarem que contrataram antes o recebimento dessa verba. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Pedro Alexandre Cabreira Alfaro, Juiz de Direito. 216 Processos n os 00100947531 e 00101166347 – Ação de Revisão Contratual e Cautelar Inominada 13ª Vara Cível Autor: Jorge Luís Bonetti Pinheiro Réu: GM – Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil Processo nº 00102114767 – Ação de Reintegração de Posse Autor: GM – Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil Réu: Jorge Luís Bonetti Pinheiro Juiz prolator: Régis de Oliveira Montenegro Barbosa Revisão contrato leasing com indexador em dólar. Possibilidade. Vistos, etc. Jorge Luís Bonetti Pinheiro, qualificado na inicial, ajuizou ação de revisão contratual combinada com compensação de créditos e nulidade de cláusulas contratuais contra Banco GM – Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil, sob alegação de que ajuizou ação cautelar visando ao pagamento das prestações vincendas do contrato de leasing que firmou com o réu. Só que as prestações se tornaram deveras onerosas, já que contratado o índice de correção pelo dólar norte-americano, a par de lhe ser cobrada taxa de juros superior a 12% a. a., acima do limite estabelecido constitucionalmente, de forma capitalizada, comissão de permanência, multas e demais encargos, tudo em desacordo com a Constituição Federal e legislação vigente. Postulou seja tornada definitiva a liminar concedida na ação cautelar, bem como sejam declaradas nulas as cláusulas abusivas que ensejaram a cobrança dos itens supra-referidos, com a compensação dos créditos pagos a mais, condenando o réu nos ônus da sucumbência. Citado, o réu ofereceu contestação, asseverando, em preliminar, inépcia da inicial e impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, discorre acerca das características peculiares do contrato de leasing e a impossibilidade de sua revisão, bem como tece considerações sobre a legalidade das cobranças efetuadas, tudo conforme o contratado entre as partes. Descabível, por outro lado, a repetição de indébito ou compensação de valores. Postulou a improcedência da ação, com as cominações de praxe. Foi deferido pedido liminar incidental no sentido de que o réu se abstenha de lançar o nome do autor em órgãos de restrição de crédito (fl. 71). Replicou o autor, às fls. 74/82. Sobreveio decisão à fl. 130 que rejeitou as preliminares invocadas pelo réu em contestação. Seguiram-se novas e sucessivas manifestações das partes. Em 03-03-99, o autor ingressara com ação cautelar inominada, sustentando que firmara contrato de leasing com o réu, visando à aquisição de um veículo marca Chevrolet, modelo Kadett GLS, ano 1997/1998, a ser pago em presta- SENTENÇAS ções, as quais, no entanto, tendo sido adotado o dólar norte-americano como fator de correção, tornaram-se insuportáveis, já que de R$ 612,00 atingiram a cifra de R$ 1.322,37, o que se deveu à abrupta alteração do câmbio e conseqüente desvalorização do real. Devem ser declaradas nulas as cláusulas abusivas, à luz do Código de Defesa do Consumidor. Também foram praticadas cobranças excessivas a título de juros e outros encargos. Postulou o deferimento de liminar para depósito das prestações vincendas tendo por base na variação do INPC e não do dólar norte-americano, com a procedência ao final da ação e condenação do réu nas verbas sucumbenciais. A liminar foi deferida (fl. 27 dos autos da cautelar). Ofertada contestação pelo réu refutando as alegações do autor (fls. 35/43). Replicou o autor às fls. 53/60. Em 17-08-99 o ora réu intentara ação de reintegração de posse do veículo objeto da presente ação, alegando mora no pagamento das prestações. Pleiteou a reintegração liminar, o que foi indeferido, tendo sido mantida a posse daquele com o autor. Após citado, o ora autor apresentou contestação, onde alude não estarem presentes os requisitos para a reintegração postulada. É o relatório. DECISÃO Julgo os feitos no estágio em que se encontram, porquanto presente a hipótese do art. 330, inc. I, do CPC. As preliminares suscitadas pelo réu já sofreram análise por parte do juízo e foram afastadas, pelo que passo de pronto ao exame do mérito da quaestio juris. 217 Pretende o autor, na presente ação ordinária e na ação cautelar em apenso, a revisão do contrato de leasing entabulado com a instituição ré, para que a taxa de juros praticada não se sobreponha ao limite constitucional de 1% a. m., também de forma a não ser capitalizada, bem como sejam expurgadas as cobranças a título de comissão de permanência, multa e demais encargos. Também objetiva o autor a substituição do indexador inicialmente contratado com o réu, qual seja, a variação cambial do dólar norte-americano, face à superveniência de onerosidade excessiva em razão da inesperada e abrupta alta do dólar norte-americano no transcurso do período de contratação. Cuida a espécie de contrato de arrendamento mercantil, mais conhecido como leasing, o qual se trata de negócio híbrido e atípico, onde está embutido um conjunto de operações, tais como promessa de compra e venda, locação de bem móvel e mútuo. É contrato de natureza complexa e de discutida interpretação jurídica. Vem regulado pela Lei nº 6.099/74, modificada pela Lei nº 7.132/83, não se configurando como mera e simples operação de financiamento. Trata-se de modalidade de financiamento, com previsão legal de facilitar ao arrendatário o uso e gozo do bem, sem que necessite este desembolsar, inicialmente, o seu valor, mas com opção de, findo o prazo estipulado para a vigência do contrato, uma vez pago o preço residual, adquirir a propriedade do bem. Arnaldo Rizzardo, em artigo publicado na “Revista AJURIS”, 35/137, considera-o como “contrato essencialmente 218 complexo, visto encerrar uma promessa unilateral de venda, um mandato, uma promessa sinalagmática de locação de coisa e uma opção de compra...”. Prosseguindo, preleciona que “não se trata de uma simples locação com promessa de venda, como à primeira vista pode parecer, mas cuida-se de uma locação com uma consignação de uma promessa de compra, trazendo, porém, um elemento novo, que é o financiamento, numa operação específica que consiste na simbiose da locação, do financiamento e da venda”. É natural e intuitivo, pois, que os pagamentos ajustados excedam o preço de venda do bem, visto encartarem, a par da totalidade dos custos, o lucro do arrendador. Ressalte-se, ainda, por relevante, que outros encargos compõem, necessariamente, o valor das parcelas do contrato, incluindo-se, nelas, o pagamento pela depreciação do bem arrendado, enquanto em uso, os custos do arrendante, tais como Imposto sobre Operações de Crédito e o custo de captação do dinheiro no mercado. Não se pode desconsiderar, ainda, a necessária margem de lucro a ser auferida pelo arrendante, o que também não pode ser descartado. É da jurisprudência: “Não prevendo o contrato de arrendamento mercantil a cobrança de juros e sua capitalização sobre as prestações, não há lugar para o exame da legalidade da cobrança de taxas acima do limite de 12% ao ano” (Apelação Cível nº 197002769, 9ª Câmara Cível do TARGS, julgada em 01-0497, Relª Juíza Maria Isabel de Azevedo Souza). SENTENÇAS Ainda: “Injurídico é dispensar ao leasing, sem se buscar sua desconsideração como tal, tratamento de financiamento, ignorando-se suas facetas próprias de negócio complexo. Impertinência da pretensão de redução de juros, embutidos no preço inicial, onde considerados ingrediente outros” (Apelação Cível nº 196196729, 6ª Câmara Cível do TARGS, julgada em 01-12-96, Rel. Juiz José Carlos Teixeira Giorgis). Não se mostra viável, portanto, a pretendida revisão contratual no tocante aos juros e demais encargos cobrados, restando afastado, via de conseqüência, o pleito de repetição de indébito e compensação de valores. O mesmo não se pode afirmar relativamente à forma de correção das parcelas representativas do preço do veículo adquirido pelo autor junto ao réu. Note-se que o presente caso vem revestido da peculiaridade de que fora eleito o dólar norte-americano como indexador das parcelas do contrato firmado entre as partes litigantes. Neste caso, procede a pretensão do autor. Inexiste dúvida, por se tratar de fato público e notório, que, por ocasião do estabelecimento do vínculo obrigacional entre autor e réu, o País gozava de relativa estabilidade econômica e, principalmente, cambial. Só que, também fato notório e por isso imune de prova, a partir de janeiro de 1999, ocorreu variação abrupta da taxa de câmbio, o que, via de conseqüência, ocasionou sensível alta da cotação do dólar norte-americano. A bem da verdade, havia fundado receio de que o País viesse a experimentar uma “quebra financeira”, com o que iria à SENTENÇAS bancarrota, a exemplo do que vinha de acontecer com alguns países do continente asiático. Isto veio a afetar, modo contundente, os contratos cuja celebração fora eleita a moeda norte-americana como indexador, causando verdadeiro pânico por parte de quem optara por esta forma de correção das prestações avençadas. Não se pode olvidar que, à época em que entabulado o contrato entre as partes litigantes, vivia-se em período de franca estabilidade cambial, sendo pouco imaginável que eventual variação da taxa de câmbio ocorresse nas proporções em que se deu. Isto levando em conta, torna-se lícito concluir que o fato se revestiu de imprevisibilidade, inclusive com vistas à incidência, no caso, da cláusula rebus sic stantibus, rendendo ensejo à aplicação da teoria da imprevisão. Por outro lado, a onerosidade excessiva experimentada pelo autor é indubitável, já que as prestações subseqüentes vieram a sofrer sensível aumento, visto que de R$ 612,00 passaram para R$ 1.322,32! Ora, perfeitamente lógico se conclua que, caso soubesse ou previsse o autor a alta sensível e insuportável das prestações por força da variação da taxa cambial, certamente não teria contratado na forma como o fez. Tudo isso conduz à ilação inarredável no sentido de ter havido ruptura do equilíbrio contratual, afetando o negócio jurídico em sua base, o que acaba por vulnerar o princípio da comutatividade ínsito a este tipo de relação obrigacional. 219 Acresce, ainda, ser inquestionável, neste caso, a aplicação do disposto no art. 6º, inc. V, da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), haja vista se tratar de nítida relação de consumo. Tais fatos estão a justificar a pretensão do autor em ver revisado o contrato de leasing entabulado com o réu, na parte relativa ao indexador eleito. Por estas mesmas razões, desprocede a ação de reintegração promovida pelo ora réu, já que, neste caso, resta descaracterizada eventual mora do autor, vindo a falecer, assim, requisito essencial para o sucesso de dita ação. Ante o exposto: a) julgo procedente em parte, os pedidos encartados nas ações ordinária e cautelar inominada em apenso, tornando definitiva a liminar anteriormente deferida, para, em conseqüência, desacolher a pretendida revisão do contrato no tocante aos juros e demais encargos, bem como o pleito de repetição de indébito e compensação de valores, e declarar que, a partir da data do ajuizamento da ação cautelar (0303-99), deverá ser utilizado o INPC como forma de correção das prestações vincendas e vindouras, com origem no contrato de leasing entabulado entre as partes, objeto da presente ação, em substituição ao dólar norte-americano, já que declaro, outrossim, nula a respectiva cláusula que instituiu este indexador; e b) julgo improcedente a pretensão formulada na ação de reintegração de posse em apenso. Em razão da sucumbência, condeno o réu a satisfazer integralmente as custas processuais da ação de reintegração de posse (Processo nº 00102114767), bem como 70% das custas das ações 220 ordinária e cautelar (Processos n os 00101166347 e 00100947531, respectivamente) em apenso, e, ainda, com os honorários do advogado do autor, os quais arbitro, para as três ações, em conjunto, em 06 URHs, já operada a compensação, presente a natureza das lides e trabalho despendido (art. 20, § 4º, c/c o art. 21, do CPC). Transitada em julgado, expeça-se alvará em favor do réu para levantamento das quantias depositadas no curso da ação. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 03 de junho de 2000. Régis de Oliveira Montenegro Barbosa, Juiz de Direito Substituto em regime de exceção. Não há, pois, como vingar a pretensão da ré, uma vez que parte de premissas equivocadas, na medida em que não leva em consideração a real natureza do contrato em alusão. SENTENÇAS Por outro norte, em virtude de ter a ré incidido em mora no tocante à prestação mencionada na exordial e conforme previsão contratual, desfez-se a avença de pleno direito, acarretando o vencimento antecipado das prestações subseqüentes, com o que restou evidenciado o esbulho possessório. Ex positis, julgo procedente a presente ação de reintegração de posse, para o fim de reintegrar a autora definitivamente na posse do veículo descrito na inicial. Em razão da sucumbência, condeno a ré a satisfazer as custas do processo e honorários do patrono da autora, que arbitro em 04 URHs, observada a natureza do feito e trabalho despendido (art. 20, § 4º, do CPC). Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 26 de maio de 2000. Régis de Oliveira Montenegro Barbosa, Juiz de Direito Substituto em regime de exceção. 221 Processo nº 2.156 – Ação Anulatória de Ato Jurídico 2ª Vara Judicial Autora: V. S. O. Réus: L. B., L. O. B. e L. O. B. Juiz prolator: Régis de Oliveira Montenegro Barbosa Nulidade de doação porque ocorrente prejuízo à companheira. União estável declarada. Vistos, etc. V. S. O., qualificada na inicial, aforou ação anulatória de ato jurídico contra L. B., L. O. B. e L. O. B., igualmente qualificados, as duas últimas menores impúberes, sob alegação de que a partir de 08-01-77 a autora e o primeiro demandado passaram a ter convivência more uxória, na forma de união estável, tendo resultado o nascimento das duas últimas demandadas. Após vários anos de vida em comum passaram a ocorrer desentendimentos entre o casal, o que culminou com o ajuizamento, em maio de 1992, de ação cautelar de separação de corpos, tendo sido deferida a liminar. Seguiram-se o ajuizamento de ações de dissolução de sociedade de fato, cautelar de arrolamento de bens e ação de alimentos. Ocorre que o primeiro réu, pressentindo o malogro da relação do casal, principiou, já no ano de 1986, a desviar bens do patrimônio comum. Sem o prévio consentimento da autora, fez doação de bens imóveis às duas demandadas, mas com reserva de usufruto vitalício a ele e com cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, bens estes que fo- ram adquiridos com o esforço comum do casal. Tratou-se de expediente para evitar que tais bens constassem entre aqueles a serem partilhados entre os integrantes do casal. Sem a outorga da autora, tais atos jurídicos estão eivados de vício, dando azo à nulidade destes, conforme art. 145 do CC. Colacionou jurisprudência em prol de sua tese. Requereu a procedência da ação, para que sejam declarados nulos o ato de doação objeto da Escritura Pública nº 21.244, através da qual o primeiro demandado doou à ré L. o imóvel objeto das Matrículas n os 24.558 e 24.626 do Livro 2 do Registro de Imóveis de Cachoeirinha, bem como o ato de doação do imóvel que coube à ré L., objeto da Escritura Pública nº 21.243, constante na Matrícula nº 677, R 5/677, para que os mesmos voltem a integrar o patrimônio comum do casal. Nomeado curador especial às rés menores impúberes (fl. 42v.), foram os demandados citados, aquelas na pessoa do curador (fls. 44/45), que prestou compromisso (fl. 46). Ofereceu o primeiro demandado contestação (fls. 54/59), onde sustenta que na verdade a autora não contribuiu para a aquisição do patrimônio do casal, inocorrendo, portanto, o alegado “esforço comum”. A autora apenas cuidava das filhas do casal. Tanto é que desde 1986 não 222 tinham mais convivência conjugal. Criou a empresa T. B., para tentar salvar a relação, onde a demandante nunca trabalhou, a qual foi formada com bens de propriedade exclusiva sua. O bem imóvel doado à ré L. foi adquirido pelo réu em 1º-10-84, com bens que já eram de sua propriedade, enquanto que o imóvel doado à ré L. foi adquirido posteriormente ao ano de 1986, período em que não havia mais vida e esforço em comum, a par de ter sido comprado só pelo réu, sem contribuição da autora. Não foi comprovado que a autora contribuiu, com capital ou trabalho, para a aquisição de bens pelo réu. As doações são lícitas e não contêm qualquer vício. Postulou a improcedência da ação, com os consectários legais. Ofertaram contestação, outrossim, as rés L. e L. (fls. 76/77), oportunidade em que asseveram não ter a autora comprovado que tenha participação efetiva na formação do patrimônio do casal. Pelo menos um dos imóveis doados o foi com bens que já eram de propriedade do réu. O outro o foi após 1986, quando não mais havia contribuição em comum para a formação do patrimônio do casal. O que ocorreu foi uma antecipação de herança por parte do réu às suas herdeiras necessárias, com objetivo de garantir-lhes o futuro, havendo outros bens a serem partilhados entre o casal. A decisão deste processo depende do julgamento da ação de dissolução de sociedade de fato. Pugnaram pela improcedência da ação, com as cominações de praxe. Replicou a autora às fls. 80/83. O feito teve sua tramitação suspensa até decisão final na ação de dissolução de SENTENÇAS sociedade de fato (fl. 97), tendo sido juntada cópia do acórdão respectivo, transitada em julgado a decisão (fls. 126/ 127). Realizou-se audiência, onde, proposta a conciliação, esta resultou inexitosa, tendo as partes desistido da produção de prova oral. Deu-se por encerrada a instrução, sendo que as partes debateram, cada uma batendo-se em prol de sua tese. Emitiu parecer escrito o Órgão do Ministério Público, no sentido de que seja julgada procedente a ação. É o relatório. FUNDAMENTAÇÃO Restringem-se a dois os pontos nevrálgicos da demanda a serem apreciados e que os réus erigem como fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da autora (art. 333, inc. II, do CPC). Um deles é o de que a partir do ano de 1986, com a deterioração da relação do casal, deixou de haver a contribuição comum para a mantença e formação do patrimônio deste, pelo que como extinta estivesse a sociedade de fato. O outro, no sentido de que a doação feita à filha L. envolveu imóvel que, muito embora adquirido no ano de 1984, o foi mediante bens que já pertenciam exclusivamente ao réu, já que preexistentes ao início do relacionamento com a autora. A primeira das situações postas já se encontra sob o manto da coisa julgada, visto que objeto de apreciação judicial através do julgamento do recurso interposto na ação de dissolução de sociedade de fato. Assim é que, através do ven. acórdão das fls. 129/133, verifica-se que foi reconhecida a existência de união estável e de sociedade de fato SENTENÇAS entre o casal, mesmo a partir do ano de 1986, sob o argumento de que “o mau relacionamento entre um casal certamente não descaracteriza o casamento, nem elimina seus efeitos. O mesmo princípio é válido relativamente à união estável” (fl. 129). Resultou reconhecido, assim, o período de janeiro de 1977 a junho de 1992 como de sociedade de fato entre autora e réu. Também ficou consignado no ven. acórdão, em relação à existência, ou não, de esforço comum, que “não há necessidade seja o esforço comum traduzido por contribuição financeira de ambos os conviventes... vêm os Pretórios decididamente se orientando em considerar como esforço comum também aquele desenvolvido inclusive nas tarefas do lar e com a criação e educação dos filhos...” (fl. 129). Corolário disso é que pelo menos um dos argumentos dos réus para considerar válida uma das doações efetivadas, a partir daí, caiu por terra. Tem-se, assim, que por ocasião do imóvel doado à filha L., a autora já detinha, por direito, a meação sobre dito bem, pelo que qualquer ato translativo de propriedade necessariamente deveria contar com a sua outorga (art. 235, inc. IV, do CC). Passo à análise no que diz com o bem de raiz doado à filha L. Sustentam os réus que este imóvel fora adquirido através de bens que já pertenciam ao réu varão. Cuidar-se-ia, portanto, da intitulada aquisição por sub-rogação. Só que, como bem observou o ínclito representante do Ministério Público em seu parecer conclusivo, a presunção é que os bens constantes do patrimônio do casal foram adquiridos pelo esforço 223 comum. A sub-rogação, como exceção, deve restar cumpridamente demonstrada. Não logrou o réu, entretanto, afastar a alegada presunção. Como bem apreendeu o Dr. Promotor de Justiça, os dados da matrícula juntada às fls. 30/31 não fecham com aqueles da cópia de recibo de arras acostado à fl. 62. Lá consta que já teria sido pago pelo imóvel doado à L. a importância de Cr$ 10.000.000,00, devendo os Cr$ 20.000.000,00 restantes, a perfazer o preço de Cr$ 30.000.000,00, serem pagos mediante a emissão de nota promissória. No último documento referido, consta pagamento da importância de Cr$ 60.000.000,00, por ocasião da assinatura do arras, sendo que o saldo de Cr$ 20.000.000,00, a perfazer o preço de Cr$ 80.000.000,00, seria pago em momento ulterior. Estes Cr$ 60.000.000,00 teriam sido pagos através de um imóvel de propriedade do réu e de um automóvel marca Volkswagen, ano 1980. Efetivamente, comprovou o réu através da certidão da fl. 61 que este imóvel a que se refere o recibo arras já era de sua propriedade ao tempo da transação. Todavia, como asseverado com percuciência pelo digno agente ministerial, no confronto de tais dados, deve prevalecer aquele constante na matrícula das fls. 31/32, já que exarado pelo Oficial do respectivo Registro de Imóveis, o qual detém fé pública. Tem-se, outrossim, que a certidão da fl. 61 faz presumir ainda seja o réu o proprietário do imóvel em questão. Também não resultou comprovado que o réu deu o mencionado automóvel em pagamento do imóvel que posteriormente doou à filha, ônus que lhe competia. 224 À vista de tais argumentos, tenho por inexistente a alegada aquisição por sub-rogação com relação ao imóvel posteriormente doado à ré L. Tinha a autora, pois, direito à metade de cada um dos imóveis que foram doados às filhas do casal. Registre-se, derradeiramente, que a circunstância insinuada pelas rés L. e L. na peça contestacional de que se trataria de adiantamento de legítima desserve para tisnar a pretensão esboçada na exordial, porquanto, também neste caso, necessária se fazia a outorga da demandante, tendo-se presente seu direito à meação. Nulas, assim, as doações efetivadas pelo réu L. B. em favor das demandadas L. e L., visto que em ofensa aos arts. 145, incs. II e IV, e 235, inc. IV, ambos do CC. Merece prosperar, portanto, a ação. Ex positis, com fulcro no art. 145, incs. III e IV, c/c o art. 235, inc. IV, ambos do CC e demais dispositivos legais que regem a espécie, julgo procedente o pedido encartado na pre- SENTENÇAS sente ação anulatória de ato jurídico e, em decorrência, decreto a nulidade das Escrituras Públicas de doação de nos 21.244 e 21.243, constantes às fls. 28/29 e 32/33, lavradas no Tabelionato de Cachoeirinha, com cancelamento dos respectivos registros efetivados nas matrículas dos imóveis, de nos 24.558 e 24.626 do Livro 2, bem como de nº 677 do Livro 2, do Registro de Imóveis de Cachoeirinha, constantes às fls. 26/27 e 30. Em razão da sucumbência, condeno os réus ao pagamento das custas do processo e honorários advocatícios ao patrono da autora, os quais arbitro em 06 URHs, considerando a natureza da lide e trabalho despendido (art. 20, § 4º, do CPC). Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Diligências legais. De Porto Alegre para Cachoeirinha, 23 de setembro de 2000. Régis de Oliveira Montenegro Barbosa, Juiz de Direito Substituto em regime de exceção. 225 Processo nº 46.343 – Ação Civil Pública 1ª Vara Judicial – Comarca de Sapucaia do Sul Autor: Ministério Público Réu: Município de Sapucaia do Sul Juiz prolator: Roberto José Ludwig Ação civil pública. Competência funcional e em razão da pessoa. Imparcialidade do juízo. Julgamento do feito no estado em que se encontra. Legitimidade da atuação do Ministério Público. Possibilidade jurídica de intervenção judicial. Argüição de constitucionalidade. Desvio de verbas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental – FUNDEF. Procedência da ação. 1. RELATÓRIO 1.1. Da inicial. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, através do titular da Curadoria de Defesa Comunitária, propôs, em face do Município de Sapucaia do Sul, a presente ação civil pública, com base no IC Nº 02-98, tendo por escopo vê-lo compelido judicialmente a aplicar verbas que, segundo relatório do Tribunal de Contas do Estado, deixaram de ser despendidas na educação, em ofensa aos ditames do art. 212 da Constituição de 1988 e das Leis Federais nos 9.394/96 (LDB) e 9.424/96 (FUNDEF). Em apertada síntese, alegou que o descumprimento desses preceitos se consubstanciou na prática de computar indevidamente certas verbas como integrantes do percentual mínimo de 25% previsto no art. 212 da CF/88, especialmente o denominado “retorno do FUNDEF”, que, no sentir do autor, não constitui tributo municipal, ao contrário do valor retido àquele fundo, que é, sim, receita efetiva do Município. Através desse procedimento equivocado, sustenta, causou o demandado dano à coletividade da população sapucaiense, consistente na falta de aplicação de R$ 5.791.159,02 em educação. Pretende, assim, a condenação do requerido a proceder à aplicação de R$ 1.955.091,34 nos ensinos fundamental (na proporção de no mínimo 60%) e infantil (no máximo 40%), bem como a despender outros R$ 3.836.067,68 no ensino fundamental, dos quais 60% para pagamento de professores e 40% em outros itens, a critério do administrador. Liminarmente, pediu antecipação de tutela ao fundamento da iminência do término do prazo para confecção do orçamento municipal, para que o demandado fosse obrigado a aplicar as verbas mencionadas até final deste ano (2000), a menos que houvesse possibilidade financeira para cumprimento ainda no ano de 1999, quando ajuizada a demanda. À inicial, acostou-se vasta documentação. 1.2. Dos provimentos iniciais. A liminar foi concedida na forma postulada. 1.3. Da resposta. Citado, ofertou o réu contestação. Prefacialmente, argüiu de inconstitucional a Lei Federal nº 9.424/96, 226 que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental – FUNDEF, por decorrência da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 14/96, na qual está assentado aquele diploma, por ofensa ao art. 18 (autonomia do Município), c/c o art. 60, § 4º, inc. I (princípio federativo), bem como aos arts. 158, inc. IV, 159, inc. V, b, e 160, caput, todos da Carta da República. Tachou, ainda, vários dispositivos da Lei nº 9.424/96 como afrontosos aos artigos mencionados e, ainda, ao art. 5º, caput (quebra da isonomia dos entes federativos) e do art. 30, inc. III (autonomia financeira), especialmente por estabelecer critérios subjetivos para que a União disponha sobre o valor mínimo por aluno e aplique rendas do Município. Requereu, assim, a proclamação incidental dos vícios apontados. No mérito, asseverou estar cumprindo o art. 212 da CF/88, pois, conforme pretende provar através de perícia contábil, aplicou, de uma receita de R$ 23.718.202,97, no ano de 1998, a cifra de R$ 8.049.769,39 na “área da educação”, desde que considerados como tais certas aplicações que pretende ver declaradas legítimas. Subsidiariamente, argumentou que, mesmo admitindo as informações constantes da inicial, o saldo ainda a ser aplicado seria de R$ 1.714.816,07 e não o almejado. Afirmou que não houve utilização indevida ou irregular de verba. Quanto ao cumprimento da liminar, aduziu dificuldades orçamentárias e de execução. Juntou documentos. 1.4. Da réplica. Houve réplica, onde rebatidas as alegações de fato e de di- SENTENÇAS reito expostas na peça defensiva, e postulou o julgamento antecipado da lide. 1.5. Das atividades de saneamento. Instado o réu a especificar e justificar provas, requereu perícia e oitiva de Auditor do Tribunal de Contas do Estado. Seguiu-se a decisão da fl. 765 e 765v., onde determinadas diligências e ordenado ao Município-réu que demonstrasse sua divergência com os cálculos da inicial. O demandado entendeu já ter atendido ao despacho e insistiu no requerimento de prova pericial e testemunhal; também aventou a existência de interesse da União no feito. Ao mesmo tempo, interpôs agravo de instrumento, ao qual restou agregado efeito suspensivo, tendo, porém, obtido improvimento. Entrementes, aportou ao feito manifestação do Tribunal de Contas do Estado. O autor se pronunciou pela desnecessidade de intimação ou citação da União. Por seu turno, após vista dos autos, reiterou o demandado a argüição de incompetência do juízo, declinando para a Justiça Federal. A União, cientificada da demanda, externou desinteresse em intervir. Insatisfeito, insistiu o réu na provocação da União a se manifestar no feito. É o relatório. 2. MOTIVAÇÃO 2.1. Das questões preliminares e de processo. 2.1.1. Da competência. Suscitou o demandado, em mais de uma oportunidade, a incompetência absoluta deste Juízo e desta Justiça, declinando para a Justiça Federal, ao argumento de que a União teria interesse de intervir na demanda. Sustenta, para tanto, que SENTENÇAS caberia àquele ente da federação, através de um dos órgãos do Ministério da Educação, a fiscalização e o acompanhamento da aplicação das verbas FUNDEF. O autor discorda, admitindo, no máximo, assistência simples. A questão da competência se resolve em dois níveis. Em primeiro, verifica-se a competência funcional do juízo e, depois, a competência em razão da pessoa. Ambas são de natureza absoluta, reclamando harmonização do seus critérios. 2.1.1.1. Da competência funcional. A presente demanda, cuidando-se de ação civil pública, rege-se por normas especiais de competência. O escopo do legislador consistiu em aproximar, ao máximo, a reparação do dano contra interesses meta ou supra-individuais do local onde a sua lesão ocorreu. Ganhase em celeridade e na eficiência da reparação. Por isso, de modo expresso, estabeleceu a lei norma de competência especial, derrogatória da legislação processual comum, verbis: “Lei nº 7.347, de 24-07-85 (...) “Art. 2º – As ações previstas nesta lei serão propostas no foro do local onde ocorrer dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa”. Além desse claríssimo dispositivo, a competência funcional deste juízo foi objeto de inequívoco pronunciamento pretoriano, consagrado em verbete específico da súmula do Superior Tribunal de Justiça, que, dessarte, estabeleceu a interpretação a ser observada no âmbito nacional para o comando constante da lei federal acima referida: “Súmula do Superior Tribunal de Justiça. 183 – Compete ao Juiz Estadual, nas 227 comarcas que não sejam sede de Vara da Justiça Federal, processar e julgar ação civil pública, ainda que a União figure no processo. Referência: CF/88, art. 109, I; Lei nº 7.347, de 24-07-85, art. 2º; CC nº 2.230-RO (1ª Seção, 26-11-91, “DJU”, de 16-12-91); CC nº 12.361-RS (1ª Seção, 04-04-95, “DJU”, de 08-05-95); CC nº 16.075-SP (1ª Seção, 22-03-96, “DJU”, de 22-04-96).” (“DJU”, de 31-03-97) Assim, ainda que a União figure no processo como parte ou terceiro interessado, não se desloca a competência para a Justiça Federal, a menos que no foro onde ocorreu o dano esteja instalada Vara daquela Justiça. Sobre a natureza funcional da competência não discrepa a doutrina. Em seu festejado “Comentários ao Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor”, Theotonio Negrão colaciona as seguintes notas ao art. 2º da LACP: “Art. 2º – 1. cfe. CPC, art. 100, V, a (acrescento, foro do local do dano). “Art. 2º – 2. ‘A ação civil pública e as demais propostas com base na Lei nº 7.347/85 devem ser ajuizadas no foro do local onde ocorreu o dano a que se refere seu art. 2º. ‘Se se trata de comarca em que não há Juiz Federal, será competente o Juiz de Direito, cabendo recurso para o Tribunal Regional Federal’ ’. (“RSTJ” nº 45/34) No mesmo sentido: “RJTJRGS” nº 168/223. V., porém, nota seguinte. “O art. 2º da Lei nº 7.347/85 harmoniza-se com o art. 109, §§ 2º e 3º, da Constituição.” (CC nº 2.230-RO-EDcl, STJ, 1ª Seção, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, julgado em 09-02-93, rejeitaram os embargos, voto unânime, “DJU”, de 228 1º-03-93, p. 2.478, 2ª Col., ementário) Neste sentido: “RDP” nº 97/294. “Compete à Justiça Estadual conhecer e julgar ação civil pública com objetivo de proteção ao patrimônio público, mesmo na hipótese de configurar-se o litisconsórcio passivo da Caixa Econômica Federal, configurada a hipótese prevista no art. 2º da Lei nº 7.347/ 85, que é a dos autos.” (CC nº 12.982-6-SP, STJ, 1ª Seção, Rel. Min. Peçanha Martins, julgado em 18-04-95, voto unânime, “DJU”, de 12-06-95, p. 17.577, 2ª Col., ementário) “Comprovado o interesse da União para intervir no feito, a competência da Justiça Estadual em 1º grau permanece, por força do art. 2º, com recurso, porém, para o Tribunal Regional Federal, de acordo com o art. 108, II, da atual CF.” (“RTFR” nº 154/23) No mesmo diapasão, Athos Gusmão Carneiro, na sua decantada obra “Jurisdição e Competência”: “Conforme dispõe o art. 2º da Lei nº 7.347, as ações civis públicas devem ser propostas ‘no foro do local onde ocorrer o dano’, competência dita ‘funcional’, o que se justifica, como acentua Hely Lopes Meirelles (“Mandado de Segurança, e Ação Civil Pública”, 11ª ed., p. 120), pela facilidade de obtenção da prova testemunhal e de realização das convenientes perícias. “(...) Em intervindo, todavia, qualquer das pessoas de direito público referidas na Constituição Federal (art. 109, I), competente será a Justiça Federal; e se na comarca do local do dano não for sediada a Vara do Juízo Federal, então, ex vi do art. 2º da Lei nº 7.347/ 85, a ação civil pública será processada e julgada no juízo estadual, sob compe- SENTENÇAS tência federal ‘delegada, com recurso, nesse caso, para o Tribunal Regional Federal’ (CF, art. 109, §§ 3º, in fine, e 4º)”. (Athos Gusmão Carneiro, “Jurisdição e Competência”, 6ª ed., Saraiva, 1995, pp. 101-2) Na mesma linha, vai o magistério de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, ao comentar o art. 109 da CF/88: “A LACP 2º fixa competência do local do dano, de natureza funcional (absoluta), para processamento e julgamento de ação civil pública. Mesmo que a União, suas autarquias ou empresas públicas sejam partes ou intervenientes, a ação civil pública será julgada pela Justiça Comum estadual, nos locais onde não houver Vara da Justiça Federal”. (Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, “Código de Processo Civil Comentado”, 3ª ed., RT, 1997, p. 148) Em suma, certa e absoluta a competência deste juízo. A controvérsia sobre a presença da União tem relevo, apenas, para efeito de competência recursal. Havendo presença daquele ente, o eventual recurso deverá ser levado à apreciação do Tribunal Regional Federal, pois, então, tem-se competência estadual restrita ao 1º grau, por delegação. Essa matéria será resolvida no item subseqüente. 2.1.1.2. Da competência em razão da pessoa. Reza o art. 109, inc. I, da Carta da República que a intervenção da União atrairia a competência da Justiça Federal. No 1º grau, como já exaustivamente analisado acima, haveria competência do juízo estadual local, por delegação. Mas caberia recurso ao Tribunal Regional Federal. SENTENÇAS No caso, a União foi cientificada da demanda através da sua legítima representação, que é a Advocacia-Geral da União. O seu agente houve por bem externar o desinteresse daquela pessoa política, conforme declaração das fls. 831/2. E o fez com arrazoado que se mostra convincente: a questão discutida nestes autos não diz diretamente com o FUNDEF, mas, sim, com a correta aplicação de verbas na educação, segundo os moldes constitucionais, cuja fiscalização compete aos Tribunais de Conta dos Estados. Não há necessidade de que o Ministério da Educação venha a manifestar-se neste feito, pois, consoante o seu cerne litigioso, não se está a debater sobre desvio ou irregularidades da aplicação do FUNDEF, e sim sobre a observância do art. 212 da CF/88, no que toca à verba de retorno do FUNDEF. Feita essa inequívoca manifestação, insiste o Município na sua tese e pretende seja a União novamente provocada a se pronunciar sobre o seu interesse, ao pretexto de que, em contatos diretos com o procurador do Município, tal teria sido recomendado. Nenhuma prova há nesse sentido, o que, ademais, seria de regularidade discutível. É óbvio que o Ministério da Educação, como é público e notório, tem pleno interesse em fiscalizar o gerenciamento das verbas do FUNDEF. Evidentemente, por necessidades burocráticas, criou órgão para tanto. Contudo, daí não decorre interesse em que a União intervenha no processo. Reduzindo a tese ao absurdo, todos os processos sobre os delitos de tóxico seriam da competência da Justiça Fede- 229 ral, pois a União deveria intervir em cada um deles, já que há um ou vários órgãos na estrutura dos Ministérios que têm por objeto a prevenção e fiscalização do consumo de entorpecentes. Da mesma forma a União seria chamada em ações de responsabilidade contra profissionais médicos, farmacêuticos, cujas profissões têm seu exercício fiscalizado pelos Conselhos Regionais. Quando se trata de verbas que, em algum momento, sejam manipuladas ou recolhidas a fundo federal, mas repassadas a entes estaduais ou municipais, a jurisprudência predominante tem entendido que a competência da Justiça Federal somente existe quando a fiscalização está afeta, exclusivamente, ao Tribunal de Contas da União. No caso, é tranqüila a atribuição aos Tribunais de Contas estaduais da observância dos limites mínimos de aplicação de verbas em educação. A vencer a tese do réu, toda a matéria teria de ser remetida à fiscalização do Tribunal de Contas da União, o que sequer alegou na fase administrativa. 2.1.1.3. Do juízo competente. Por tudo o que se disse acima, inexiste a menor dúvida sobre a absoluta competência deste juízo para processar e julgar esta demanda, como também de que não há hipótese de intervenção da União, e, assim, não se trata de competência delegada. Dessarte, o eventual recurso terá de ser encaminhado ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado. Aliás, foi a esse Órgão que o demandado recorreu contra decisão interlocutória exarada neste feito. 2.1.2. Da imparcialidade do juízo. Reiteradas vezes, neste feito, questionou 230 o réu a isenção deste Juízo ao argumento de que estaria orientado a devotar demasiada atenção ao feito e conduzindo a sua tramitação de modo açodado, sem atender aos reclamos da parte-demandada, especialmente quanto à dilação probatória pretendida. Irregular a conduta do Município-réu. Não opôs exceção; não suscitou o incidente em que pudesse discutir e comprovar o impedimento ou a suspeição; todavia, não se pejou de pôr em debate a imparcialidade, apanágio e pressuposto da prestação jurisdicional. No caso, o equivocado posicionamento da Procuradoria do Município, nestes autos, foi devidamente anotado e mereceu crítica do eminente Relator do agravo de instrumento interposto. Colhe-se, com efeito, da cópia do respectivo acórdão: “Da mesma forma, é oportuno e necessário registrar o modo inconveniente com que o réu interpretou a atuação do magistrado monocrático que, cônscio da sua investidura, nada fez que merecesse a censura, debitando-se a pronta antecipação de tutela e a vontade premente de prestar jurisdição às mesmas razões que empolgam o Agente Ministerial, e, ainda, aos incessantes ataques ao Poder Judiciário, que, assim, responde, pela sua voz, às imprecações que lhe são arrojadas pela demora no julgamento dos processos, que visam ao aviltamento da função jurisdicional” (fls. 843/4, frisei). Nada há por acrescentar, nem retirar de tão apropriada qualificação do ocorrido nestes autos. 2.1.3. Da oportunidade do julgamento no estado do feito. Como observado na decisão da fl. 765 e 765v., a única SENTENÇAS controvérsia de cunho fático se resume à discrepância de números da receita municipal do ano de 1998. As demais questões são meramente de Direito e, como tal, dispensam produção de provas em audiência. O réu postulou perícia e oitiva de Auditor do Tribunal de Contas. A Colenda 3ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça deste Estado já teve oportunidade de se manifestar sobre a necessidade de dilação probatória neste feito. A ementa do acórdão tem a seguinte redação: “Processual civil. Produção de prova. Ao magistrado cabe apreciar a adequação e a necessidade da prova vis-à-vis dos elementos contidos no feito. Deixando o agravante de impugnar objetivamente as questões suscitadas, com base nos registros da contabilidade pública, não dá ensejo à realização de perícia contábil, que nada ou pouca informação poderá acrescer. Valorização do princípio da efetividade do processo. Agravo desprovido”. (AI nº 70000880997, TJRGS, 3ª Câmara Cível) Em suma, entendeu aquele Órgão Recursal que a perícia contábil seria viável se efetivamente necessária ao deslinde do caso, o que somente ocorreria se o Município tivesse, de modo concreto e objetivo, em termos contábeis, impugnado as alegações constantes da inicial no tocante aos valores da receita do Município. Embora o Município devesse fazê-lo, a rigor, no próprio texto da contestação, foi-lhe claramente proporcionada uma oportunidade (suplementar) para impugnação especificada no vergastado despacho da fl. 765 e 765v., item 5. Ali SENTENÇAS constou, com todas as letras, a intimação para que o réu demonstrasse e comprovasse, num prazo razoável (10 dias), a sua divergência para com os números da receita levantada pela auditoria do Tribunal de Contas do Estado, números esses que haviam sido endossados pelo autor e estavam expressamente afirmados na exordial. Também se determinou ali a intimação do Município a que explicitasse a sua inconformidade com relação a cada um dos itens da fl. 499, com demonstração matemática, pois os dados da fl. 499 haviam sido acolhidos pelo Ministério Público (autor) como exatos, uma vez que resultantes de auditoria da Corte de Contas estadual. Instou-se, assim, o réu a que viesse, mais uma vez, exercer o seu direito de defesa e o dever de impugnação especificada. Ordenou este Juízo, ainda, diligências que poderiam levar ao esclarecimento da questão fática, restrita à divergência de números da receita. O demandado, entretanto, desperdiçou as oportunidades concedidas. Não atendeu aos comandos judiciais contidos no despacho da fl. 765 e 765v., preferindo, ao contrário, atacar essa decisão através de agravo, onde foi infeliz (cópia das fls. 838/446), olvidando-se do princípio da eventualidade. Depois disso ainda teve várias vezes os autos em carga (excedendo o prazo, inclusive) e, também, não cuidou de remediar a falha. Igualmente, teve o réu vista da informação remetida pelo Tribunal de Contas (fls. 779/91), conforme certificado à fl. 836, sem nada objetar ao nela contido. Depois teve vista dos autos outra 231 vez, mas, novamente, estava mais preocupado em transferir o processamento do feito para outra Justiça, sem razão. Em suma, o réu fez opções no sentido de evitar ou procrastinar o julgamento deste feito por este Juízo, descurando do essencial, que é, repito, a atenção aos fatos discutidos no processo e às provas nele encartadas. Ainda que assim não fosse, como se pode ler do acórdão lavrado, a questão atinente à divergência de valores da receita se faz secundária em relação à raiz da controvérsia. Nesta, predomina, com larga vantagem, a definição sobre se determinada verba (no caso, o retorno do FUNDEF) pode, ou não, ser lançada como receita para fins de cumprimento do art. 212 da CF/88. O Município não contestou, a rigor, a afirmativa da inicial de que computou, sim, o chamado retorno do FUNDEF no cálculo do limite mínimo de 25% do art. 212 da Carta da República. Deve, portanto, reputar-se “confesso” quanto a aspecto fundamental da lide. Aduziu o Município que cumpriu o ditame constitucional e que a divergência se localizaria na qualificação de certas despesas como passíveis da cômputo do limite constitucional. Engana-se, nesse particular, o demandado. A divergência fundamental dos autos diz com o chamado retorno do FUNDEF. As demais questões podem ser resolvidas facilmente à luz da Lei de Diretrizes e Bases e da lei do FUNDEF. Enfim, com lastro no decidido pela Corte Recursal e à luz dos autos, entendo efetivamente desnecessária a perícia contábil ou financeira postulada pelo réu, pois praticamente de nenhuma utilidade 232 seria para o deslinde da controvérsia e somente atrasaria a prestação jurisdicional, pela sua vastidão e complexidade. Também nada justifica a oitiva do Auditor do Tribunal de Contas do Estado, pois seu depoimento apenas esmiuça o conteúdo de documentos dos autos e serve, tão-somente, para ilustrar eventos secundários relacionados à apuração da irregularidade, no que tange à obrigação insculpida no art. 212 da CF/ 88. Caso tivesse o Município trazido elementos substanciais da sua inconformidade, talvez até fosse interessante ouvir a testemunha. Não, porém, à luz do comportamento processual do réu. Cabível, assim, o julgamento do feito no estado em que se encontra. 2.1.4. Da possibilidade de intervenção judicial na matéria. Este juízo, ao deferir a antecipação de efeitos da tutela, já se pronunciou sobre a viabilidade do pedido enquanto demanda judicial, ou seja, a possibilidade de intervenção judicial em matéria que, aparentemente, diz com a discricionariedade administrativa. E somente na aparência há liberdade do administrador no manejo de verbas relacionadas à educação. Da própria topologia do texto constitucional já se extraem importantes revelações sobre como o direito à educação se situa no ordenamento pátrio: “(...) Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. “Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Art. 5º – (...) § 1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm ‘aplicação imediata’. Ver jurisprudência (...) “Capítulo II – Dos Direitos Sociais. Art. 6º – São direitos sociais a ‘educa- SENTENÇAS ção’, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (NR) (Redação dada ao artigo pela EC nº 26, de 2000, “DOU”, de 15-02-00). “Título VIII – Da Ordem Social. Capítulo I – Disposição Geral. Art. 193 – A ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bemestar e a ‘justiça sociais’ (...) “Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do Desporto. Seção I – Da Educação. Art. 205 – ‘A educação, direito de todos e dever do Estado e da família’, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Portanto, a educação é, na moldura desenhada pelo Constituinte de 1988, um direito social fundamental de todos, oponível e exercitável em face do Estado, com aplicabilidade imediata, pela remissão feita no art. 5º, § 1º. O critério topológico não é o único a atestar a pertinência do direito à educação aos de natureza fundamental. Toda a doutrina o considera como tal, a partir de opções que o Constituinte fez, como se verá adiante. Cuidando-se de direito fundamental e, nessa medida, auto-aplicável, poderá o cidadão, independentemente de condicionamentos infralegais incompatíveis com o texto maior, exigir do Estado-Administração prestações positivas para que o seu direito possa ter concretude, isto é, eficácia no plano dos fatos. SENTENÇAS O enquadramento da educação na categoria dos direitos fundamentais assume relevância especial no presente caso, como facilmente se depreende da definição daquela espécie de direitos. Assoma particularmente feliz a conceituação oferecida pelo insigne mestre gaúcho Ingo Wolfgang Sarlet com base nos estudos de Alexy (“Teorie der Grundrechte”, p. 407): “Assim, com base no nosso Direito constitucional positivo, e integrando a perspectiva material e formal já referida, entendemos direitos fundamentais podem ser conceituados como aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, do ponto de vista do Direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade material), integrados ao texto da Constituição e, portanto, ‘retirados da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos’ (fundamentalidade formal), bem como as que, pelo seu objeto e significado, possam-lhes ser equiparados, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui consideramos a abertura material consagrada no art. 5º, § 2º, da CF, que prevê o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes do regime e dos princípios da Constituição, bem como direitos expressamente positivados em tratados internacionais”. (Ingo Wolfgang Sarlet, “Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988”, in Pasqualine, A. et alii, Sarlet, I. W. [org.], “O Direito Público em Tempos de Crise”, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1999, pp. 129-73) Destaco, dentre as notas do conceito, a exclusão de qualquer juízo de disponibilidade dos poderes constituídos 233 sobre os direitos fundamentais. Dessarte, refogem as respectivas matérias a qualquer discricionariedade administrativa. Inexiste espaço para os critérios da conveniência e oportunidade. Por outro lado, não se pode negar certa peculiaridade na eficácia dos denominados direitos sociais, em cujo rol se inclui o direito à educação. A melhor doutrina distingue entre direitos sociais prestacionais e de defesa (idem, ibidem), não sendo perfeita a identificação entre direitos sociais e prestacionais. Certo é, porém, que há direitos fundamentais sociais positivos, isto é, que geram direito a uma prestação por parte do Estado, a um agir seu para a concretização de metas inseridas na norma, constituindo a expressão direta do Estado social de direito. Tais espécies de direitos prestacionais geralmente assumem feição programática, por situar-se a sua concretização na chamada “reserva do possível”. Não seriam, para certa vertente doutrinária, vindicáveis judicialmente nessa medida. Todavia, mesmo os direitos sociais de cunho prestacional engendram uma série de eficácias, como: a revogação de atos normativos contrários e anteriores, independentemente de declaração de inconstitucionalidade; vinculação do legislador para a criação de programas e observância das metas ditadas; inconstitucionalidade de atos normativos posteriores conflitantes; definição de parâmetros de interpretação, integração e aplicação de normas inferiores; proibição de retrocesso; “criação de posição jurídico-subjetiva equivalente a uma dimensão negativa dos direitos positivos, no sentido de que “o particular poderá 234 exigir do Estado que se abstenha de atuar em sentido contrário ao disposto na norma de direito fundamental prestacional” (idem, p. 162). Esta última eficácia mostra-se de interesse para o caso dos autos, porquanto, tendo o Constituinte determinado expressamente limites mínimos de aplicação de receita em educação, para evidentemente serem atingidos objetivos sociais indiscutíveis, têm os cidadãos direito a exigirem do Estado que cumpra o preceito. A norma encontrase inscrita no art. 212 da CF/88: “Art. 212 – A União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os Estados, o Distrito Federal e ‘os Municípios 25%’, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”. Essa disposição tem aplicabilidade imediata e eficácia plena. Na lição do mestre rio-grandense Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, a Constituição de 1988 fixou destinação específica de parte da receita dos impostos em sinal de prioridade que dá à educação: “(...) Desta primazia, nasce uma certeza: instalou-se, no texto constitucional, como orientação institucional, que o valor educação é preponderante a outros valores, quando se trata do ensino fundamental. Daí entendermos que, desenhado como princípio constitucional, afigura-se como limitação implícita a emendas constitucionais, qualificando-se como cláusula pétrea”. (Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, “Comentários à Constituição Federal: Direitos e Garantias Fundamentais”, Porto Alegre, Advogado, 1997, pp. 87-8) SENTENÇAS Com relação à eficácia deste princípio, o mesmo doutrinador assevera que: “O não-oferecimento de ensino fundamental pelo Estado poderá ser reclamado e buscado perante o Judiciário, e o Estado, por força de decisão judicial, terá que ofertar em escola pública ou em escola particular, mediante bolsa de estudo (art. 213, § 1º)”. (Idem, ibidem) A prioridade do ensino fundamental, opção claríssima e imutável do Constituinte, rendeu ensejo à criação do FUNDEF, como se percebe até mesmo pelo nome. Com essa norma, o legislador infraconstitucional está providenciando no sentido da concretização dos desideratos atinentes à educação. O art. 212, de cuja aplicação se cogita nestes autos (mais que do FUNDEF propriamente dito), não representa dispositivo dependente de regulamentação. José Afonso da Silva, em seu clássico “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, abordou o tema no capítulo “eficácia das normas constitucionais socioideológicas”. Ali advogou a plena eficácia de certas normas socioideológicas, isto é, que expressam opções ideológico-valorativas do constituinte. Entre os exemplos citados pelo mestre, constam várias relacionadas à educação, “incluído o art. 212”. (José Afonso da Silva, “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, São Paulo, Malheiros, 3ª ed., 2ª tiragem, 1998, p. 193) O já multicitado Ingo Wolfgang Sarlet dedica menção especial ao direito social à educação, para nele vislumbrar um perfil peculiar, destacando-o dos demais direitos sociais: “(...) g) Mesmo no âmbito dos direitos fundamentais pres- SENTENÇAS tacionais típicos (direito à saúde, educação, previdência social, etc.), ‘em face do perfil que lhes foi conferido pelo nosso constituinte, verifica-se que a própria prestação que constitui seu objeto acaba, por vezes, assumindo a feição de um direito defensivo’, inobstante não exatamente no sentido já referido. Tomando-se, por exemplo, o ‘direito social à educação’, regulado na Constituição no art. 6º e nos arts. 205 e ss., constatar-se-á que o direito geral à educação abrange uma série de direitos, dos quais o direito à instrução (no sentido de um direito a que o Estado preste ensino, colocando à disposição do titular do direito escolas, material didático e professores) é apenas um entre outros. “O art. 206, em diversos dos seus incisos, consagra alguns direitos de natureza eminentemente defensiva (negativa), como é o caso da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (inc. I), da liberdade de ensino e aprendizagem (inc. II) e da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais (inc. IV). O mesmo se poderá afirmar com relação ao art. 207 da CF, que consagra a garantia institucional da autonomia universitária”. (Idem, p. 163) A moldura (ou perfil) eleita pelo constituinte vem a configurar um conjunto de normas de impacto no que tange à educação, transparecendo a prioridade que o legislador maior conferiu à educação. Nesse quadro, o art. 212 está a garantir a eficácia daquelas relevantes opções, ao estabelecer os meios financeiros de seu cumprimento. E a disposição do art. 212 não poderia 235 estar dependente de outras normas, pois é, ela própria, a norma garantidora da eficácia das demais. Somente aplicando 25% de suas receitas de impostos é que o Município poderá atender aos demais regramentos (claríssimos) sobre educação, notadamente a fundamental. Esse direito de todos à educação autoriza intervenção judicial, para que se dê cumprimento aos comandos (e pois aos fins) estabelecidos na Lei Maior. Rodolfo de Camargo Mancuso examinou tal temática, reconhecidamente espinhosa, na perspectiva da crítica ao superdimensionamento (inchamento) do Poder Judiciário através da tutela dos interesses supra-individuais. O professor considera a tutela dos interesses difusos uma forma de participação democrática na esfera pública, feita através do Poder Judiciário. Após analisar a possível hipertrofia desse canal (e respectivo Poder) e o conflito com o sistema representativo, concluiu Mancuso pela legitimidade dessa espécie de intervenção judicial, pois se trata de atuação no seu campo de atribuições típicas, embora qualificada e incrementada pela deficiência dos demais Poderes: “De outra parte, hoje se reconhece que a ação em justiça, quando se trata de interesses supra-individuais, é uma forma de participação comunitária na gestão da coisa pública. “Ninguém, seriamente, pode desconhecer o quanto é difícil e complexo o acesso do indivíduo às instâncias administrativa e legislativa: são requerimentos, démarches demoradas, lóbis, etc., ao passo que, para se ter acesso a um Juiz Togado, é bastante uma petição em forma e figura de juízo; para logo, 236 quando o caso o exija, a autoridade judiciária determinará a tutela cabível, sobretudo nos casos de urgência. Não se trata de ‘inchamento’ do Poder Judiciário, porque, quando ele outorga tutela aos interesses metaindividuais, não está desenvolvendo atividade de ‘suplência’; ‘é a sua própria’ atividade, de outorgar tutela a quem a pede e merece. “No caso dos interesses difusos, a intervenção jurisdicional é hoje considerada fundamental; não é que esse Poder esteja a invadir a seara dos outros; será, antes, um sinal de que os outros não estão a tutelar esses interesses, ‘obrigando’ os cidadãos a recorrerem diretamente à via jurisdicional”. (Rodolfo de Camargo Mancuso, “Interesses Difusos”, 4ª ed., SP, RT, 1997, p. 114) Não se há, pois, de qualificar o direito social à educação como programático, segundo a vetusta teoria, nem muito menos tecer condicionamentos à pronta aplicabilidade do art. 212 da CF/88. Cuida-se de direito justiciável, pois; sempre que a sua negação, através de condutas omissivas ou comissivas dos governantes, esteja a exigir intervenção do Poder Judiciário, esta será evidentemente legítima. Aliás, como anotado por Paulo Bonavides, a tendência evolutiva do Direito Constitucional consiste em que os direitos sociais em geral, inicialmente remetidos à vala da mera programaticidade, “tendem a tornar-se tão justiciáveis quanto” os denominados direitos fundamentais de primeira geração. (Paulo Bonavides, “Curso de Direito Constitucional”, 6ª ed., Malheiros, 1996, p. 518) SENTENÇAS Também não se há de repelir a persecução judicial do direito ao pretexto de que existe outro remédio jurídico, qual seja a intervenção da União ou do Estado no ente que descumprir a regra de aplicação de recursos em educação. A existência do remédio político-institucional apenas confirma o vigor e a relevância do dever atribuído aos administradores. E, uma vez desatendido, gera pretensão judicialmente dedutível, porquanto não pode a coletividade ou os cidadãos lesados em seus interesses metaindividuais aguardar o acionamento do mecanismo político-institucional, de uso muitas vezes contaminado por condicionantes ligadas à coloração político-partidária ou outros influxos. Cabível e oportuna, pois, a possibilidade de demanda judicial na matéria. O que não cabe ao Judiciário é detalhar a forma e o modo como o administrador obedecerá ao comando maior. Tal atribuição não lhe pode ser retirada, pois coincide com o chamado mérito administrativo. Também não poderá invadir o espaço do legislador local, na matéria de interesse local, ou seja, da apreensão das necessidades pontuais da comunidade local e seu atendimento dentro dos parâmetros da legalidade de nível superior. Em tema de Direito Financeiro, portanto, não se diga que haveria invasão da competência da Câmara de Vereadores, pois esta demanda não conterá provimento no sentido de que tais ou quais verbas sejam alocadas ou removidas das rubricas a, b ou c. Apenas se fixará um comando atinente ao resultado: estabelecido o limite mínimo, o SENTENÇAS resultado não pode ser inferior, permanecendo as prerrogativas do legislador e o administrador locais para estabelecer prioridades, meios e formas segundo o interesse local, que atinjam aquela meta que foi estabelecida abstratamente pela Constituição e que vem de obter uma concreção nesta demanda. Por tudo isso, o pleito se faz perfeitamente viável e se ajusta aos moldes legais. 2.1.5. Da legitimidade da atuação do “Parquet”. Conforme já anotado anteriormente, mostra-se induvidosa a legitimidade do Ministério Público para fazer valer, concretamente, os preceitos constitucionais no plano da educação. Instrumentos há, com efeito. Pela ação civil pública, tem o Ministério Público federal ou estadual o direito e o dever de agir para a consecução dos objetivos eleitos pelo legislador maior. Poderá, dessarte, o Ministério Público ajuizar ação civil pública com o escopo de compelir o Município a cumprir o preceito de investimento mínimo em educação, porquanto numa ponta se cuida de exercer claro direito de todos (difuso) à educação e, de outro, de fazer valer a posição jurídica decorrente (co-respectiva) da obrigação constitucional de inverter certo valor mínimo em educação. Perfeitamente cabível, portanto, que o Parquet postule a formação de título ou comando judicial de obrigação de fazer, como, por exemplo, a determinação de investir recursos em educação. A própria regulamentação da ação civil pública o esclarece: “Lei nº 7.347, de 24-07-85: “Art. 1º – (...) Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade 237 por danos morais e patrimoniais causado (redação dada pela Lei nº 8.884, de 11-06-94): I – ao meio ambiente; II – ao consumidor; III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo (inciso acrescentado pelo art. 110 da Lei nº 8.078, de 11-09-90); e V – por infração da ordem econômica e da economia popular (NR) (redação dada ao inciso pela Medida Provisória nº 1.965-12, de 02-03-00, “DOU”, de 03-03-00). “Art. 3º – A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer, ou não, fazer”. 2. 1.6. Da argüição de inconstitucionalidade. Inquina-se de inconstitucionalidade a Emenda Constitucional nº 14/ 96 e a Lei nº 9.424, de 1996, nela embasada, por afronta a vários dispositivos constitucionais. Não destacou o réu qual dos artigos ou incisos da Emenda Constitucional está contaminado do vício apontado. Já quanto à lei, elencou alguns elementos do seu texto, que convém sejam reproduzidos: “Lei nº 9.424, de 24-12-96 (“DOU”, de 26-12-96): Art. 1º – É instituído, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, o qual terá natureza contábil e será implantado, automaticamente, a partir de 1º-01-98. “§ 1º – O Fundo referido neste artigo será composto por 15% dos recursos: I – da parcela do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias sobre prestações de serviços de 238 transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, devida ao Distrito Federal, aos Estados e aos Municípios, conforme dispõe o art. 155, inc. II, c/c o art. 158, inc. IV, da CF. “II – do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal – FPE e dos Municípios – FPM, previstos no art. 159, inc. I, a e b, da CF e no Sistema Tributário Nacional de que trata a Lei nº 5.172, de 25-10-66; e III – da parcela do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI devida aos Estados e ao Distrito Federal, na forma do art. 159, inc. II, da CF e da Lei Complementar nº 61, de 26-12-89. “§ 2º – Inclui-se na base de cálculo do valor a que se refere o inc. I do § anterior o montante de recursos financeiros transferidos, em moeda, pela União aos Estados, Distrito Federal e Municípios, a título de compensação financeira pela perda de receitas decorrentes da desoneração das exportações, nos termos da Lei Complementar nº 87, de 13-09-96, bem como de outras compensações da mesma natureza que vierem a ser instituídas. “Art. 6º – A União complementará os recursos do Fundo a que se refere o art. 1º, sempre que, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente. § 1º – O valor mínimo anual por aluno, ressalvado o disposto no § 4º, será fixado por ato do Presidente da República e nunca será inferior à razão entre a previsão da receita total para o Fundo e a matrícula total do ensino fundamental no ano anterior, acrescida do total estimado de novas matrículas, observado o disposto SENTENÇAS no art. 2º, § 1º, incs. I e II. (Nota: V. Decreto nº 3.326, de 31-12-99, “DOU”, de 03-01-00, que fixa o valor mínimo anual por aluno) “§ 2º – As estatísticas necessárias ao cálculo do valor anual mínimo por aluno, inclusive as estimativas de matrículas, terão como base o censo educacional realizado pelo Ministério da Educação e do Desporto, anualmente, e publicado no Diário Oficial da União. “§ 3º – As transferências dos recursos complementares a que se refere este artigo serão realizadas mensal e diretamente às contas específicas a que se refere o art. 3º. “§ 4º. No primeiro ano de vigência desta Lei, o valor mínimo anual por aluno, a que se refere este artigo, será de R$ 300,00. § 5º – (Vetado). “Brasília, 24 de dezembro de 1996; 175º da Independência e 108º da República. Fernando Henrique Cardoso. Paulo Renato Souza”. Analisados os argumentos do réu nesse tópico, conclui-se que incorreu em equívoco, seja no plano da estratégia defensiva, seja nos próprios fundamentos. Quanto à estratégia, mostra-se inteiramente desfavorável, à posição do réu no processo, a eventual declaração de inconstitucionalidade dos diplomas instituidores do FUNDEF, porquanto, a ser assim, o Município teria computado como receita e aplicado valores inconstitucionais. Logo, teria de ressarcir os valores aos outros entes que teriam sido prejudicados com os inconstitucionais retenção e repasse. Tal ocorre, porque, segundo se verá diante com mais clareza, o réu contou para fins de receita própria o chamado SENTENÇAS retorno do FUNDEF, isto é, o excesso em relação à sua parcela de contribuição para o Fundo. Considerou como receita sua o proveniente de terceiros, vale dizer, aquilo que, agora, impugna no plano da validade perante o ordenamento. A impugnação ataca justamente o ponto no qual o FUNDEF é favorável ao Município, ou seja, o seu caráter de fundo federal, que recolhe receitas de outros entes, para redistribuí-las para Municípios como Sapucaia do Sul. A crítica endereçada à lei, por deferir poderes de ingerência da União, por exemplo, está atacando indiretamente a validade dos aportes que a União e outros entes lhe fizeram. No plano do mérito da argüição, também não tem razão o Município. Em primeiro lugar, vigora o princípio de que, em sendo possível contornar a declaração de inconstitucionalidade, o julgador deverá abster-se de escolher essa via, de toda maneira excepcional. Deve-se presumir que as normas infraconstitucionais se ajustam às de nível superior, isto é, que se fazem compatíveis com os fundamentos destas últimas. Sempre que possível, deverá ser preferida a solução que evite a declaração de inconstitucionalidade ou, pelo menos, a amputação do texto da lei. Alternativas há, como reconhece a moderna teoria. Tanto as Cortes constitucionais, como os julgadores no controle difuso podem (e nessa medida devem) lançar mão dos instrumentos técnicos da interpretação, conforme a Constituição (verfassungs conforme Auslegung) e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Em apertada e singela síntese, na primeira 239 hipótese o aplicador, diante de várias interpretações do dispositivo questionado, endossa aquela que guarda harmonia com a norma superior. No segundo caso, o intérprete declara inconstitucional apenas certa forma de interpretar determinado texto, para afirmar, indiretamente, a norma que se mostre coadunável com os preceitos superiores do ordenamento. Em ambos os instrumentos, como anotou Lenio Streck em recente curso promovido pela AJURIS, em Porto Alegre-RS, ressalta a importância da distinção entre “texto” e “norma”. O aplicador deve ter atenção aos dois, mas o que realmente interessa, no manejo do Direito, são as normas compatíveis com a letra do texto da disposição questionada e com o texto de nível constitucional. A inconstitucionalidade constitui vício da norma, mas inflete sobre palavras ou expressões do texto que lhe confere substrato. Quando possível afastar apenas interpretações inconstitucionais, assim deverá ser feito. Quando, porém, tal não se mostra viável, ainda pode ser evitada a redução do texto, escolhendo-se uma interpretação compatível com a norma superior; e, por fim, quando não mais se afigura possível outra alternativa, suprime-se parte ou todo o texto da disposição, declarando-a inconstitucional. No tocante à interpretação, conforme convém referir o magistério de Juarez Freitas, para quem se trata de um verdadeiro princípio da hermenêutica constitucional, o qual está indissoluvelmente vinculado à presunção da constitucionalidade e à técnica de o Juiz 240 somente declarar a inconstitucionalidade, quando rigorosamente manifesta: “De acordo com tal princípio, o exegeta somente pode declarar a inconstitucionalidade (material ou formal) quando frisante e manifestamente configurada. Não sendo dessa maneira, deve concretizar o Direito, preservando a unidade do sistema, sem aderir a excessivos conservadorismos, porquanto se efetiva e cristalinamente configurada a inconstitucionalidade, não se lucra em tardar a supressão da norma viciada. Em outras palavras, este princípio reclama contínua relativização operada pelos demais, especialmente pelo princípio da proporcionalidade”. (Juarez Freitas, “Tendências Atuais e Perspectivas da Hermenêutica Constitucional”, in “Revista da AJURIS”, nº 76, dez./99, II/407) (destaquei) O ensinamento de Juarez Freitas insere-se na moderna compreensão sistemática do Direito, segundo o qual os valores e as normas do ordenamento devem ser compreendidos e aplicados sempre na perspectiva de um sistema hierarquizado, tendo por ápice as opções axiológicas fundamentes inscritas na Constituição. As disposições legais, mesmo dentro do texto da Constituição, devem ser lidas e interpretadas harmonicamente, observados princípios como o da proporcionalidade. A respeito desse tema, notável a contribuição de Heinrich Scholler, in “Revista da AJURIS” nº 75, set./99, I/169-86. Há que se reconhecer, pois, a relatividade mesmo em “princípios sensíveis” como o da federação e dos direitos individuais (Freitas, idem, fl. 404), ou em disposições aparentemente im- SENTENÇAS perativas e absolutas da Constituição. Assim, nessa ótica, o princípio federativo e a autonomia dos Municípios não devem receber leitura direta e estanque. É preciso aprofundar o exame numa perspectiva integradora dos comandos constitucionais, para só então descer à exegese das normas atinentes à autonomia, por exemplo. Nesse eixo de compreensão, nada induz que, devidamente sopesado o preceito da autonomia do Município em face dos demais princípios e objetivos do ordenamento brasileiro, seja verificável alguma hipótese de afronta à Lei Maior, nem se mostra necessário estabelecer, dentro da normatização do FUNDEF, alguma interpretação conforme a Lei Maior para alguma das suas disposições. Na hipótese dos autos, entendo que efetivamente inocorre incompatibilidade das disposições questionadas em face do Direito Constitucional. Os pronunciamentos da Corte Suprema, até o momento, não são favoráveis à tese do réu. Nas suas raras manifestações, a interferência foi pontual (restringindo-se a prazos) e de cunho cautelar: “Ação direta de inconstitucionalidade. Medida cautelar. Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério. Cautelar, em parte, deferida, para suspender a eficácia das expressões que fixam prazo para o exercício, pelas unidades da Federação, de atos compreendidos em sua competência legislativa (arts. 9º e 10, II, da Lei nº 9.424, de 24-12-96)”. (ADInMC nº 1.627-DF, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octávio Gallotti, “DJU”, de 24-10-97) SENTENÇAS No que tange, especificamente, aos argumentos do demandado, porém, a posição do Supremo Tribunal Federal ainda não é de todo conhecida quanto ao mérito, embora tenha sido indeferida liminar: “ADIn (Medida Liminar) nº 1.749-5-DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, Partido dos Trabalhadores – PT, Partido Democrático Trabalhista – PDT, Partido Comunista do Brasil – PC do B, Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, Partido Verde – PV, Requerentes, (CF, art. 103, inc. VIII) Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa do Senado Federal, Presidente da República, Congresso Nacional, Requeridos, Dispositivo legal questionado: Art. 5º da Emenda Constitucional à Constituição Federal nº 14, de 1996 e Lei Federal nº 9.424, de 24-12-96, Interessado. “Emenda Constitucional nº 14 – Modifica os arts. 34, 208, 211 e 212 da CF, e dá nova redação ao art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. “Art. 5º – É alterado o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e nele são inseridos novos parágrafos, passando o artigo a ter a seguinte redação: “Art. 60 – Nos 10 primeiros anos da promulgação desta Emenda, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão não menos de 60% dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da CF, à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental de seu atendimento e a remuneração condigna do Magistério. “§ 1º – A distribuição de responsabilidades e recursos entre os Estados e seus Municípios a ser concretizada com 241 parte dos recursos definidos neste artigo, na forma do disposto no art. 211 da CF, é assegurada mediante a criação, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, de natureza contábil. “§ 2º – O Fundo referido no parágrafo anterior será constituído por, pelo menos, 15% dos recursos a que se referem os arts. 155, inc. II, 158, inc. IV, e 159, inc. I, alíneas a e b, e inc. II, da CF e será distribuído entre cada Estado e seus Municípios, proporcionalmente ao número de alunos nas respectivas redes de ensino fundamental. “§ 3º – A União complementará os recursos dos Fundos a que se refere o § 1º, sempre que, em cada Estado e no Distrito Federal, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente. “§ 4º – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios ajustarão progressivamente, em um prazo de cinco anos, suas contribuições ao Fundo, de forma a garantir um valor por aluno correspondente a um padrão mínimo de qualidade de ensino, definido nacionalmente. “§ 5º – Uma proporção não inferior a 60% dos recursos de cada fundo, referido no § 1º, será destinada ao pagamento dos professores do ensino fundamental em efetivo exercício no Magistério. “§ 6º – A União aplicará na erradicação do analfabetismo e na manutenção e no desenvolvimento do ensino fundamental, inclusive na complementação a que se refere o § 3º nunca 242 menos que o equivalente a 30% dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da CF. “§ 7º – A lei disporá sobre a organização dos fundos, a distribuição proporcional de seus recursos, sua fiscalização e controle, bem como sobre a forma de cálculo do valor mínimo nacional por aluno. “Lei nº 9.424, de 24-12-96 – dispõe sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, na forma prevista no art. 60, § 7º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. “Fundamentação constitucional: art. 1º, III; art. 3º, IV; art. 5º, § 2º; art. 18; art. 30, III; art. 34, VII, c; art. 60, § 4º, I; art. 155, II; art. 158, IV; art. 159, I, a e b, II, § 3º; art. 160; e art. 205. “Decisão: Resultado da liminar: Indeferida. Decisão da liminar: O Tribunal, por votação unânime, indeferiu o pedido de medida cautelar, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente (Plenário, 18-12- 97). Data de julgamento da liminar: Plenário, 18-12-97. Data de publicação da liminar: pendente Resultado do mérito: não-conhecido “Decisão do mérito: por maioria de votos, o Tribunal não conheceu da ação direta , vencidos os Srs. Mins. Octavio Gallotti (Relator), Ilmar Galvão e Néri da Silveira. Votou o Presidente. Redigirá o acórdão o Sr. Min. Nelson Jobim. Ausentes, justificadamente, os Srs. Mins. Carlos Velloso (Presidente), Sepúlveda Pertence e Celso de Mello. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Marco Aurélio (Vice-Presidente) (Plenário, 25-11-99). “Data de julgamento do mérito: Plenário, 25-11-99. Data de publicação do SENTENÇAS mérito: pendente. Incidentes: “Decisão por despacho”. “Identificação: ADIn (Medida liminar) nº 1.967-8, origem: Distrito Federal, Rel. Min. Octavio Gallotti, Governador do Estado do Rio de Janeiro (CF, art. 103, inc. V), Requerente, Presidente da República, Congresso Nacional, Requerido, Dispositivo legal questionado, Interessado: arts. 1º, 2º, 3º e 6º e respectivos parágrafos, da Lei Federal nº 9.424, de 24-12-96. “Fundamentação Constitucional: arts. 24, IX, §§ 01º e 2º; 25, § 1º, 160 e 169, IV. Decisão: resultado da liminar: não-conhecida. “Decisão da liminar: o Tribunal, por votação unânime, não conheceu do pedido de medida cautelar e determinou o apensamento destes autos aos da ADIn nº 1.749-5-DF. Votou o Presidente. Ausente, justificadamente, o Min. Carlos Velloso (Plenário, 24-03-99). Data de julgamento da liminar: Plenário, 24-03-99. Data de publicação da liminar: acórdão, “DJU”, de 25-06-99. “Resultado do mérito: não-conhecido. Decisão do mérito: por maioria de votos, o Tribunal ‘não conheceu da ação direta’, vencidos os Srs. Mins. Octavio Gallotti (Relator), Ilmar Galvão e Néri da Silveira. Votou o Presidente. Redigirá o acórdão o Sr. Min. Nelson Jobim. Ausentes, justificadamente, os Srs. Mins. Carlos Velloso (Presidente), Sepúlveda Pertence e Celso de Mello. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Marco Aurélio (Vice-Presidente) (Plenário, 25-11-99). “Data de julgamento do mérito: Plenário, 25-11-99. Data de publicação do mérito: pendente. “Incidentes: tendo sido determinado, no acórdão da fl. 61, o apensamento SENTENÇAS destes autos aos da ADIn nº 1.749-5-DF, requisitem-se estes últimos à douta Procuradoria-Geral da República, onde se encontram. Publique-se. Brasília, 30 de junho de 1999” (Publicado em 02-08-99). Como se percebe da transcrição, os dispositivos questionados são, ao fim e ao cabo, os mesmos atacados aqui, e, também, pelo idêntico fundamento (ofensa à autonomia, em síntese). Enquanto guardião da Lei Maior, o Supremo Tribunal Federal não editou pronunciamento sobre o mérito, segundo consta acima. Porém, sabe-se que indeferiu liminar, o que permite vislumbrar alguma tendência, pois certamente anotaria inconstitucionalidades tais como as alegadas. Acrescento que não se dá afronta à regra da autonomia dos Municípios, pois a legislação do FUNDEF jamais derrogou competências para instituir ou arrecadar tributos da competência desses entes da federação. Também não se verifica ingerência na esfera privativa do Município, pois a escolha da destinação dos recursos, dentro das normas existentes, caberá ainda aos governantes locais; a fixação de limites de aplicação de verbas ocorre em várias leis (ex.: saúde) e somente incide em inconstitucionalidade quando agredir, frontalmente, a autonomia do Município, inviabilizando-o financeiramente ou reduzindo gravemente a margem de liberdade do governante para investimentos segundo as necessidades locais. Seria o caso de flagrantes invasões da esfera de competência desse último, mas não simples instituição de um sistema de retenções e repasses com base em critérios de população estudantil, com vista a uma melhor distribuição de 243 recursos para aperfeiçoamento dos níveis de educação no País. Na legislação do FUNDEF não se consubstancia restrição à propriedade de verbas ou recursos dos Municípios, e sim a instituição de um mero fundo de natureza contábil que incide sobre apenas parte de diversas rubricas de receita e que está infiltrado dos objetivos eleitos pelo Constituinte para a nossa federação: promoção do desenvolvimento, superação das desigualdades sociais e regionais, erradicação de males como a pobreza e o analfabetismo. Sempre que o FUNDEF atender a tais reclamos maiores do ordenamento brasileiro está a obedecer à Constituição de 1988, que os alçou a metas superiores. O fato de o Município de Sapucaia ter auferido substancial retorno do FUNDEF vem exatamente corroborar a concepção de que ele atende aos seus objetivos e, também, aos preceitos fundamentais da Carta de 1988 no que tange à autonomia dos entes federativos. De notar-se que a sistemática de criação de fundos federais e de repasses não existe apenas no campo da educação e não pode, por si mesma, gerar inconstitucionalidade por ingerência nas esferas de autonomia locais. Do contrário, a federação e seus objetivos seriam, sim, inviáveis. O melhor seria, então, um Estado único ou uma completa separação dos níveis. É verdade que, no sistema federativo brasileiro, há certas peculiaridades, que motivam a se questionar o genuíno caráter de federação. A União, em certas áreas, detém poderes excessivos. Não, porém, no FUNDEF. Como ocorre em qualquer federação, a autonomia das unidades não pode exacerbar-se a ponto 244 de suprimir outro dos princípios federativos, que é o da cooperação. No âmbito da educação, as novas leis, como a do FUNDEF, têm vindo solucionar graves disparidades regionais e locais, ao mesmo tempo que redistribuem importantes tarefas, como a gerência e a fiscalização locais. A instituição de conselhos descentralizados, por exemplo, está a demonstrá-lo. Igualmente no que tange à fixação, pelo Chefe do Executivo da União, do valor mínimo por aluno, não vejo qualquer ofensa aos princípios invocados pelo réu. Impõe-se, para que o fundo tenha racionalidade na busca de seus objetivos, que o critério mencionado receba uma fixação uniforme e única. O fundo tem, nesse aspecto, caráter nacional, pois são objetivos da nação o melhoramento do ensino fundamental e a correção das graves disparidades regionais (art. 3º, incs. II e III, da CF/88). Em contrapartida, a lei contém previsão de que a União arcará com políticas e custos relevantes, além da contribuição com a chamada complementação do valor mínimo; demais disso, procedeu-se a importante revisão do salário-educação: “Art. 1º – (...) § 3º – Integra os recursos do Fundo a que se refere este artigo a complementação da União, quando for o caso, na forma prevista no art. 6º. “Art. 6º – A União complementará os recursos do Fundo a que se refere o artigo 1º, sempre que, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente. “Art. 14 – A União desenvolverá política de estímulo às iniciativas de me- SENTENÇAS lhoria de qualidade do ensino, acesso e permanência na escola promovidos pelas unidades federadas, em especial aquelas voltadas às crianças e adolescentes em situação de risco social. “Art. 15 – O salário-educação, previsto no art. 212, § 5º, da CF, e devido pelas empresas, na forma em que vier a ser disposto em regulamento, é calculado com base na alíquota de 2,5% sobre o total de remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, aos segurados empregados, assim definidos no art. 12, inc. I, da Lei nº 8.212, de 24-07-92. “§ 1º – A partir de 1º-01-97, o montante da arrecadação do salário-educação, após a dedução de 1% em favor do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, calculado sobre o valor por ele arrecadado, será distribuído pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, observada a arrecadação realizada em cada Estado e no Distrito Federal, em quotas da seguinte forma: “I – quota federal, correspondente a 1/3 do montante de recursos, que será destinada ao FNDE e aplicada no financiamento de programas e projetos voltados para a universalização do ensino fundamental, de forma a propiciar a redução dos desníveis socioeducacionais existentes entre Municípios, Estados, Distrito Federal e regiões brasileiras; “II – quota estadual, correspondente a 2/3 do montante de recursos, que será creditada mensal e automaticamente em favor das Secretarias de Educação dos Estados e do Distrito Federal para financiamento de programas, projetos e ações do ensino fundamental”. Assim, a própria lei contempla mecanismos de freios e contrapesos, para SENTENÇAS evitar o desequilíbrio de tarefas e custos entre União, Estados e Municípios. Aparentemente, pois, o sistema está equilibrado, sem provocar qualquer impacto negativo nas disponibilidades dos Municípios. E não se diga que sejam subjetivos os critérios de estabelecimento do valor mínimo, quando a própria lei estabelece a forma de sua fixação, onde avultam dados objetivos extraídos por métodos estatísticos. Estatística e subjetividade jamais se podem confundir. Frise-se que o FUNDEF constitui inovação merecedora de encômios exatamente por concretizar a importância que o ensino fundamental deve receber nas esferas mais próximas do cidadão, que são os Municípios. Evidentemente, impõe-se acompanhamento e alguma centralização, para que as metas seja racionalmente buscadas e, assim, atingidas com maior homogeneidade e eficiência (inclusive menores custos). Calha como uma luva o ensinamento de Sacha Calmon Coelho Navarro acerca do mecanismo de repartição de receitas tributárias, que, segundo o insigne tributarista, “não tem absolutamente nenhum nexo com o Direito Tributário”. Aduz tratar-se de simples “relações intergovernamentais, que de modo algum dizem respeito aos contribuintes”, cuja regulação constou por equívoco ou comodismo no Capítulo do Sistema Tributário. A sua finalidade é outra: “O sistema de repartição de impostos e o sistema de repartição dos produtos quebraram o centralismo fiscal da União Federal, promovendo uma melhor distribuição de recursos entre as pessoas políticas da Federação e obrigando, de sobredobro, o Executivo federal a dimi- 245 nuir a sua ingerência no organismo federativo, que se agigantara durante os 21 anos da ditadura militar (1964 a 1985), a mais longa de nossa história e, queira Deus, a última”. (Sacha Calmon Coelho Navarro, “Comentários à Constituição de 1988”, 6ª ed., RJ, Forense, 1996, p. 415) (destaquei) A revisão das proporções e quotas de tributos para efeito de criação e gerenciamento de um fundo como o FUNDEF apenas tem por resultado melhor organizar o sistema de transferências, permitindo participação efetiva a Estados e Municípios, que, de outro modo, não teriam o manuseio de recursos importantes para setores vitais como a educação. Assim, mesmo para quem, como Sacha Calmon Coelho Navarro tece críticas à hipertrofia da União no federalismo brasileiro, não há como reconhecer inconstitucionalidade, justamente, quando fundos como o FUNDEF e respectivos sistemas de repasses vêm para corrigir distorções. Em apoio ao entendimento aqui esposado, colaciono os seguintes informes do Ministério da Educação (conforme Manual do FUNDEF, amplamente distribuído): “Principais efeitos do FUNDEF. Com o critério redistributivo dos recursos e a garantia de uma significativa parcela do fundo para remuneração do Magistério, importantes transformações ocorreram no cenário de financiamento do ensino fundamental ao movimentarem-se recursos dos governos com maior capacidade financeira e/ ou com um baixo nível de participação no atendimento escolar na direção dos Municípios em situação inversa. Com isso, mais de 2.700 Municípios obtiveram 246 ganhos financeiros com o FUNDEF em 1998, superando 3.200 Municípios em 1999, segundo dados do Departamento de Acompanhamento do Fundo. “Outra expressiva mudança foi a elevação de 6% nas matrículas entre 1997 e 1998, de acordo com o censo escolar. Anteriormente, a média de crescimento anual era da ordem de 3%. Verificou-se, ao mesmo tempo, importante modificação na participação dos governos estaduais e municipais no atendimento ao ensino fundamental. Em 1997, os Municípios atendiam 40,7% dos alunos e os Estados, 59,3%. Em 1999, essas participações foram de 49,4% e 50,6%, respectivamente. Com relação à remuneração do magistério, entre 1997 e 1998, verificou-se uma melhoria salarial média de 13% em favor dos profissionais em exercício nos sistemas estaduais e municipais do país, conforme pesquisa da FIPE-USP. No Nordeste, esses ganhos atingiram 49% na média das redes municipais. “Acompanhamento e controle social do FUNDEF. Em cada Estado e em cada Município, o FUNDEF deve ser fiscalizado por um Conselho de Acompanhamento e Controle Social, com a atribuição de supervisionar o FUNDEF e o censo escolar. No âmbito dos Municípios, a composição mínima desse conselho é de quatro membros, representando: a Secretaria Municipal de Educação ou órgão equivalente; os professores e os diretores de escola; os pais de alunos; os servidores das escolas. “Um quinto membro, representando o Conselho Municipal de Educação, é obrigatório nos Municípios onde este conselho exista. O Poder Executivo estadual ou municipal é obrigado a SENTENÇAS disponibilizar, mensalmente, ao Conselho do FUNDEF, todos os dados e informações sobre os recursos e sua utilização. O Banco do Brasil, quando solicitado, fornece extrato bancário da conta do FUNDEF a membros do Conselho, Deputados, Vereadores, Ministério Público e Tribunais de Contas”. Em outras palavras, o FUNDEF veio para beneficiar o ensino, especialmente em Municípios como o de Sapucaia do Sul, já podendo contar com resultados animadores. E, ao invés de pecar por centralismo, vem qualificado pela democratização e participação na fiscalização das verbas endereçadas à educação. 2.2. Do mérito. 2.2.1. Do núcleo da lide. Ainda que já tenha sido repisado, convém enfatizar que neste feito não se discute desvio de verbas do FUNDEF, tema que se tornou mais freqüente na imprensa, pela repercussão natural que provoca. Versa a presente demanda, sim, sobre a observância, pelo Município de Sapucaia do Sul, no ano de 1998, do comando insculpido no art. 212 da Carta da República de 1988. “Art. 212 – A União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os Estados, o Distrito Federal e ‘os Municípios 25%’, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, ‘na manutenção e desenvolvimento do ensino’ ”. A receita resultante de impostos remete ao art. 16 do Código Tributário Nacional, verbis: “Art. 16 – Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”. A questão do FUNDEF somente emerge da consideração de que o SENTENÇAS Município-Réu, ao ser investigado, admitiu por seus agentes (e coerentemente não contestou neste feito), ter computado a verba de retorno do FUNDEF para efeito de atendimento do comando inscrito no art. 212 da CF/88. Com clareza meridiana deduz-se que o retorno do FUNDEF não pode ser considerado imposto de Sapucaia do Sul, nem resulta da receita proveniente dos impostos do mesmo Município, pois é derivado da receita de outros Municípios e retido ao fundo, para depois retornar a Sapucaia do Sul por efeito da observância de critérios expressos na legislação reguladora desse fundo contábil. Aliás, o demandado sequer se aventura a debater essa questão básica. O elenco de impostos é taxativo, por definição. Mesmo que o legislativo sapucaiense inscrevesse o retorno do FUNDEF como imposto ou o computasse como tal, padeceria de inconstitucionalidade. O fato de ter um censo estudantil favorável não é causa geradora de imposto, e sim mero critério de cálculo de um maior ou menor repasse, segundo a política de redistribuição adotada. A receita de impostos advém da ocorrência de fato gerador do contribuinte, independentemente de atuação estatal. No retorno do FUNDEF, não há fato gerador dos contribuintes de Sapucaia do Sul, e a verba vem às mãos do administrador por mero ato de transferência de um mesmo fundo contábil. Como bem o disse o Ministério Público-Autor, se fosse possível computar o retorno do FUNDEF para obtenção do patamar mínimo de inversão de receita em educação, haveria uma burla à finalidade do art. 212, que consiste exatamente em comprometer parcela 247 significativa da receita das entidades da federação para a educação, sem dúvida pela consciência do constituinte com relação à gravidade dos índices nacionais (analfabetismo, evasão escolar, etc). A prevalecer o raciocínio do Município demandado, haveria, ainda, uma distorção, pois o Município que, tendo mais alunos, recebesse mais verbas do FUNDEF e as contasse para o fim do art. 212 da CF, estaria aplicando de suas receitas próprias bem menos que os outros, estimulando a sua inoperância, além de estar fruindo receitas alheias. Com relação às dificuldades de cumprimento, cuida-se de matéria que compete ao Município resolver, dentro das disponibilidades e da situação financeira em que vive. Tendo auferido volumoso aporte de recursos a título de retorno do FUNDEF e os tendo computado para os fins do art. 212 da CF, deixou de lançar mão de receitas próprias para cumprir aquele preceito. Portanto, sobraram-lhe divisas provenientes das suas próprias receitas e, imagina-se, deve ter formado reservas. Agora, cumpre-lhe atender ao ditame constitucional, aqui concretizado, com os meios que tem ou que vá buscar onde for possível. Ademais, passaramse vários meses desde a edição do provimento liminar. Nesse lapso, com certeza, caso tenha sido previdente, deve ter tomado as medidas cabíveis para levantar os recursos necessários. 2.2.2. Das questões atinentes a valores. O autor houve por bem, ao redigir o seu pedido, estabelecer quantificação do mesmo em termos monetários. Penso que até não seria preciso descer a tal minúcia. Mas, tendo sido feito, teve o réu oportunidade para defender-se até 248 mesmo nesse aspecto. Tem-se um pedido de condenação em aplicar R$ 5.791.159,02 em educação, distribuídos da seguinte forma: R$ 1.955.091,34 nos ensinos fundamental (na proporção de no mínimo 60%) e infantil (no máximo 40%), e outros R$ 3.836.067,68 no ensino fundamental, dos quais 60% para pagamento de professores e 40% em outros itens, a critério do administrador Na contestação, o réu afirmou ter cumprido o mandamento constitucional, por ter aplicado, de uma receita de R$ 23.718.202,97 no ano de 1998, a cifra de R$ 8.049.769,39 na “área da educação”, desde que consideradas como tais certas aplicações que pretende ver declaradas legítimas. Subsidiariamente, argumentou que, mesmo admitindo as informações constantes da inicial, o saldo ainda a ser aplicado seria de R$ 1.714.816,07, e não o almejado. A primeira diferença diz com o total da receita obtida no ano de 1998: R$ 24.470.634,89 (conforme inicial) e R$ 23.718.202,97 (segundo o réu). O autor tomou os dados atinentes à receita da auditoria do Tribunal de Contas do Estado, cujo resumo encontra-se à fl. 499. O réu não impugnou especificadamente as rubricas do respectivo quadro, e podia tê-lo feito. Ao prestar informações requisitadas por este Juízo, o Tribunal de Contas do Estado apurou uma diferença mínima (míseros R$ 51,20), encontrando o valor final de R$ 24.470.686,09 (fl. 780). A diferença diz com a rubrica do I. V. V. C. que não havia sido incluída anteriormente. Da mesma informação remetida pelo Tribunal de Contas, colhe-se a certeza SENTENÇAS sobre a causa real da discrepância, que reside nas rubricas 02 e 03 do quadro da fl. 780, ou seja, multas e juros da dívida ativa (R$ 28.184,58) e na “Manut. Des. Ensino 10 e 25%” (R$ 724.298,54). Em nota, esclarece o ofício que “esta última receita” “de acordo com informação do Município, apensado ao Expediente nº 3.525-0200/99-9 (fl. 33), a qual segue cópia anexa, com a rubrica nº 199099.01, refere-se ao lançamento de 25% das receitas próprias de impostos (IPTU, ISSQN, Dívida Ativa e ITBI). “Dessa forma, considerando que o valor constante no Balancete Orçamentário da Receita, na fonte impostos, considera 75% desses impostos, esse valor, mesmo sendo lançado sob o título de outras receitas correntes, deve ser considerado como base de cálculo para a MDE” (fl. 780). Nenhuma linha se dignou o Município a discorrer sobre essa observação e, enfim, sobre a causa da discrepância apontada. Vê-se, assim, que não tem consistência o argumento defensivo de que a razão da diferença residiria em distinta interpretação do que poderia ser lançado para o FUNDEF. Aliás, preocupouse o Tribunal de Contas em asseverar que também ele entende que o dispêndio com serviços médicos e odontológicos constitui despesa relativa ao ensino, já o mesmo não ocorrendo com relação ao financiamento da assistência à saúde e programas de alimentação. Porém, retomando o cerne da controvérsia, reafirmou o Tribunal de Contas do Estado a diferença aplicada a menor em 1998 e que deve ser reposta SENTENÇAS no próximo exercício, que é o valor de R$ 5.740.024,69 (fl. 04), praticamente idêntico ao perseguido nesta demanda (R$ 5.791.159,02). Tenho, assim, como certas e definitivas as informações trazidas pelo Tribunal de Contas do Estado, seja por falta de impugnação especificada e objetiva por parte do Município, seja pelo embasamento e exame preciso feito pelos seus agentes (no inquérito e agora, às fls. 779/82), seja, ainda, pela autoridade, responsabilidade e experiência daquela Corte e dos seus respectivos técnicos, cuja credibilidade encontra-se acima de qualquer dúvida. 2.3. Da solução. As razões de fato e de direito levantadas pelo demandante encontram ressonância na prova dos autos e no ordenamento jurídico pátrio. O demandado deixou de exercer as faculdades e de aproveitar as oportunidades de defesa, bem como de prova que lhe foram asseguradas, fazendo com que até mesmo no secundário aspecto relativo à quantificação a demanda mereça prosperar. Corrige-se, apenas, o valor final, para que se forme o título judicial com base na derradeira manifestação, não-impugnada, do Tribunal de Contas do Estado, que aferiu o montante de “R$ 5.740.024,69 a ser reposto pelo réu em educação”. As proporções devem ser ajustadas, ficando definido, assim, que deverão ser aplicados: a) R$ 1.903.957,01 nos ensinos fundamental (na proporção de no mínimo 60%) e infantil (no máximo 40%); e b) R$ 3.836.067,68 no ensino fundamental, dos quais 60% para pagamento de professores e 40% em outros itens, a critério do administrador. 249 O ajuste numérico, por ser praticamente insignificante em face do montante devido, em nada afeta a sucumbência. Os valores acima expressos ficam sujeitos à correção monetária pelo IGP-M desde o dia 31-12-98, data-limite até quando deveriam ter sido investidos e não o foram. Segundo tranqüila jurisprudência, independentemente de pedido expresso, a reposição das perdas monetárias se impõe em atenção ao princípio da vedação do enriquecimento (e corolário empobrecimento) sem causa. Da mesma forma quanto aos juros, que incidem ex lege, à taxa legal, devendo ser computados desde a citação. Avizinhando-se o mês de junho e, pois, da metade do exercício, o cumprimento da presente sentença deverá darse em, pelo menos, 50% até o final deste ano (2000), ficando o restante para o ano-exercício vindouro. Com relação à liminar proferida, fixou-se sancionamento para a hipótese de descumprimento. Todavia, ainda não findou o exercício de 2000, nem teve o Ministério Público-Autor iniciativa, ao que consta, em concretizar a fiscalização das condutas tendentes ao cumprimento. 3. DISPOSITIVO Isso posto, julgo procedente o pedido formulado no processo para: a) confirmar o provimento liminar concedido, retificando-se, apenas a expressão numérica conforme acima esclarecido; b) condenar o Município de Sapucaia do Sul a proceder à aplicação da importância de R$ 5.740.024,69, nas proporções e para as destinações seguintes: b.1.) R$ 1.903.957,01 nos ensinos fundamental (na proporção de no mínimo 60%) e infantil 250 (no máximo 40%); b.2.) R$ 3.836.067,68 no ensino fundamental, dos quais 60% para pagamento de professores e 40% em outros itens, a critério do administrador; c) condenar o réu a acrescentar aos valores acima a correção monetária segundo o IGP-M, a contar 31-12-98, bem como juros de 6% ao ano, computados desde a citação; e d) condenar, ainda, o réu nas custas processuais. SENTENÇAS Deixa-se de condenar no pagamento dos honorários, por cuidar-se de ação civil pública movida pelo Ministério Público. Fixo, para a hipótese de descumprimento desta sentença, multa diária de 50 salários mínimos. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Demais diligências legais. Sapucaia do Sul, 24 de maio de 2000. Roberto José Ludwig, Juiz de Direito 251 Processo nº 563 – Manutenção de Posse Autores: Carolina Minda Dapper, Roque Virgílio Dapper, Olivia Dapper, Angelino Olimar Dapper, Delci Dapper, Bonifácio Stanislau Dapper, Julia Dapper, Jurema Erminda Schuh, Rudi Schuh, Toni Sueli Ramisch, Roque Ramisch, Claudete Carmem Roos e Valmir Roberto Roos Réus: Arsênio Wobeto, Alma Wobeto e Ademar Dapper Juiz prolator: Silvio Viezzer Servidão de trânsito aparente, embora descontínua. Possibilidade da ação possessória. Procedência do pedido. Vistos, etc. Carolina Minda Dapper e outros, qualificados nos autos, por meio de seus procuradores, ajuizaram ação de manutenção de posse contra Arsênio Wobeto e outros, afirmando que são proprietários de uma área de 12 hectares, encravada, situada em Boa Vista do Herval, e argumentando ocorrências de turbação na posse, uma vez que os requeridos estão impedindo o acesso à referida área, feito, há mais de 50 anos, por meio de uma estrada que passa sobre a área de domínio destes. Aduziram que há cerca de um ano os requeridos decidiram não mais permitir que fossem realizados trabalhos de conservação na estrada – tais como fechar buracos e abrir valos para escoamento da água –, apesar de a estrada possuir cercas nos dois lados e conduzir a rede elétrica que abastece a residência dos requerentes, culminando, no mês de maio último, com a colocação de portões de arame na estrada, impedindo completamente a passagem. Salientaram que vêm sendo ameaçados pelos requeridos e que esgotadas as possibilidades de solução amigável – tendo havido inclusive interferência do Poder Público Municipal. Pediram liminar de manutenção de posse para abertura da estrada obstruída pelos requeridos, e ao final, julgamento procedente, condenando-se os requeridos ao pagamento dos ônus sucumbenciais. Juntaram procurações e documentos. Deram à causa o valor de R$ 5.000,00. Designada audiência de justificação e tentativa de conciliação, as partes acordaram, em caráter provisório, no sentido de que os requeridos permitirão o trânsito dos autores na estrada objeto da ação, durante o período de tramitação do feito. Neste ato foi determinada a realização de perícia. Juntados quesitos e documentos, veio aos autos o laudo pericial (fls. 77 à 92). Manifestaram-se as partes sobre o laudo pericial (fls. 94/ 95 e 102/104). Aportou nos autos complementação do laudo pericial (fls. 109/ 110), seguindo-se novas manifestações das partes (fls. 112/113 e 115/117). Na fase de instrução foram ouvidos um requerido e um autor e inquiridas 09 testemunhas arroladas pelas partes. Houve desistência da inquirição de uma testemunha arrolada pelos réus, com concordância da parte adversa. Juntados novos documentos e oportunizada manifestação das partes. Realizada inspeção 252 judicial, tomada por termo nos autos (fls. 150/151). Substituído o debate por memoriais. Os autores, alegando existência de servidão de passagem, contínua e aparente, cortando as propriedades dos requeridos há mais de 30 anos; impossibilidade de abertura de outro acesso, notadamente utilizando-se a antiga estrada vicinal, praticamente fechada por capoeira e vegetação formada pelos vários anos de desuso, face à existência de depressão geográfica de aproximadamente 04m, na divisa com suas terras; e existência de posse mansa, pacífica, contínua e ininterrupta dos autores sobre o caminho existente nas terras dos requeridos, bem como reportando-se ao teor das provas oral, pericial e da inspeção judicial, pediram julgamento procedente. Os requeridos, por sua vez, argumentando, em suma, falta de justificativa legal para a manutenção da permissão de passagem por suas terras, face à existência de possibilidade de abertura de acesso próprio, utilizando-se da estrada pública vicinal – ao teor do documento da fl. 90 – e reportando-se às provas produzidas, pediram julgamento improcedente. É o relatório. DECIDO Inicialmente é de se estabelecer o conceito de servidão de trânsito e a diferença entre esta e a denominada passagem forçada. Para tanto, observese a lição do mestre Arnaldo Rizzardo, publicada na “Revista AJURIS” nº 30, em março de 1984, in verbis: “Servidão de trânsito. Conceito. A servidão de trânsito tem por finalidade estabelecer um SENTENÇAS prédio em comunicação com outro, ou com a via pública, através de prédios intermediários (Lafayette Rodrigues Pereira, “Direito das Coisas”, 5ª ed., Freitas Bastos, 1943, p. 420, § 130). “Compreende uma extensão de área em imóvel alheio, destinada a servir de passagem a outro imóvel. A sua delimitação configura o caminho que é, no conceito de Pardessus, ‘un espace de terrain servant à la communication d’un lieu à un autre, quelle que soit sa longueur ou sa largeur, et indépendamment de ce qu’il est plus ou moins fréquenté’ (J. M. Pardessus, “Traité des Servitudes ou Services Fonciers”, Dixième Édition, Bruxelles Société Typogra-phique Belge, 1841, p. 193, nº 216). “Está enunciado no art. 705 do CC: ‘Nas servidões de trânsito, a de maior inclui a de menor ônus, e a menor exclui a mais onerosa’. Não expressa o Código uma definição. Interessou-se apenas em delimitar sua extensão. “(...) Servidão de trânsito e passagem forçada. Distinções. A passagem forçada, na lição de Hely Lopes Meirelles, ‘destina-se a propiciar judicialmente saída para a via pública, fonte ou porto, quando a propriedade do autor não a tem ou vem a perdê-la’. (“Direito de Construir”, Ed. RT, 4ª ed., São Paulo, 1983, p. 285) “Conforme o conceito do art. 559 do CC, outrora, servidão legal de trânsito é direito de vizinhança que corresponde ao prédio uma saída para a via pública, enquanto a servidão convencional de passagem não supõe aquela necessidade, podendo assentar no útil, no cômodo, até mesmo no supérfluo. A distinção SENTENÇAS está em consonância com a jurisprudência: ‘Convém, de logo, que se frise a distinção entre o direito de passagem forçada regulada pelos denominados direitos de vizinhança e a proteção às servidões. A primeira pressupõe um prédio encravado, com indispensável necessidade de saída para a via pública, assegurando a lei ao proprietário o direito de consegui-la sobre prédios alhei-os, possibilitando-lhe a destinação econômica. Funda-se, assim, na necessidade e na indispensabilidade. Já a servidão se coloca no cômodo e até no supérfluo’. (“Julgados do TARGS” nº 36/306; na mesma linha, “RJTJSP” nº 69/114, Lex Editora S. A.) “O interesse geral da sociedade no sentido de os prédios não permanecerem inexplorados e estéreis, em virtude do encravamento, marca a passagem forçada. Oportuna é a lição de Demolombe: ‘II est d’ailleurs évident aussi que I’intérêt général de la société n’exige pas moins que I’intérêt privé du propriétaire, que les fonds enclavés ne demeurent pas inexploités et stériles; et, sous ce rapport, on peut dire que cette servitude est en même temps d’utilité publique’. (C. Demolombe, “Cours de Code Napoleon”, XII/86, “Traité des Servitudes”, Tomo II, 3ª ed., Auguste Durand e L. Hachette & Cie., Paris, 1863, nº 598) “Para haver encravamento, impõe-se que o prédio, confinando, ou não, com a via pública, se apresente na seguinte situação: ‘Não tenha saída para ela (a via pública), nem possa buscar-se uma, ou, podendo, somente a conseguiria mediante uma excessiva despesa; ou a saída de que disponha (direta, indireta, con- 253 vencional ou mesmo necessária) seja insuficiente e não se possa adaptá-la ou ampliá-la, ou porque isto é impossível, ou porque os reparos (com que se obtivesse uma saída não excessivamente incômoda) requereriam por igual despesas desproporcionadas’. (Lenine Nequete, “Passagem Forçada”, Saraiva, 2ª ed., São Paulo, 1978, p. 05) “Em Josserand também encontramos o significado de encravamento: ‘El enclavamiento es la situación de un fundo que no tiene salida a la via pública o que tiene una salida insuficiente para su utilización; se dire en tal caso que ese fundo está enclavado; su situación es intolerable y le quita todo o casi todo su valor si no interviene el legislador para majorarla, para hacer cesar el embotellamiento que sufre; y esto precisamente es lo que se ha hecho al instituir la servindumbre depaso en caso de enclavamiento: el propietario del fundo enclavado podrá exigir, mediante indemnización, del propietario o de los propietarios de los fundos enclavantes, aún cuando formen parte del dominio público, un paso suficiente hasta la via pública’. (Louis Josserand, “Derecho Civil”, Tomo I, III/462-463, Ediciones Jurídicas Europa-América, Bosch & Cia. Editores, Buenos Aires, 1950, nº 1.980) “O encravamento, pois, para tipificar a espécie, não precisa ser absoluto. Não se exige que o fundo não disponha de nenhuma saída para a via pública. Se uma passagem penosa, longa, estreita, perigosa ou impraticável existir, não fica afastado o direito a outra comunicação. A finalidade da lei é tornar possível a exploração ou o conveniente uso dos prédios, de sorte que o titular 254 do domínio com uma saída insuficiente, e que para melhorá-la ou ampliá-la se impõe um dispêndio excessivo, tem direito ao acesso, pois o prédio não deixa de ser encravado. “É o ponto de vista dos Tribunais: ‘Aliás, é cediço, a idéia de encravamento é relativa. Segundo entendimento da doutrina e da jurisprudência, também se considera encravado o prédio que, embora tendo saída ou passagem, não seja ela segura, praticável ou suficiente. No caso, porém, o encravamento real existe, o que dá ao apelante direito à passagem forçada que, stricto sensu, nem se confunde com servidão, embora seja havida como servidão legal, dada a possibilidade de sua coativa imposição’. (“RT” nº 532/63). “De bom alvitre esclarecer que a passagem é insuficiente quando resultante de forte declive, de acesso estreito e inseguro. Não o é no caso de aparecerem incômodos e dificuldades para o trânsito, como um caminho longo e sinuoso. ‘A maior comodidade e economia não justificam a reintegratória. Se o prédio possui passagem, mesmo angustiosa, para via pública, não será ele encravado no sentido legal.’ (“RT” nº 413/336) “O dispêndio excessivo é configurado nas hipóteses em que o prédio encravado está separado da via pública por um curso de água sem ponte ou barca, e que a travessia obriga a efetuar pesados gastos, desproporcionais inteiramente ao valor do imóvel. “Na servidão de trânsito, as causas de instituição são diversas e podem assentar na utilidade ou mera facilidade. Tanto que, na maioria das vezes, é es- SENTENÇAS tabelecida convencionalmente. Não requer a inexistência de outro caminho para atingir-se um prédio distinto ou a via pública. “A passagem forçada do Código Civil Brasileiro equivale à servidão de trânsito do Código de Napoleão, art. 682: ‘Le propriétaire, dont les funds sont enclaves, et qui n’a aucune issue sur la voie publique, peut réclamer un passage sur les fonds de ses voisiens, pour I’exploitation de son héritage, à la charge d’une indemnité proportionnée ou dommage qu’il peut occasionner’.” (grifo meu) Observe-se, ainda, a lição de Lenine Nequete, in “Da Prescrição Aquisitiva”, 3ª ed., ano de 1981, pp. 99 e 100, in verbis: “Princípios que informam as servidões prediais (convencionais). Em resumo, as servidões – como as entendeu nosso legislador – se definem como um direito real, voluntariamente imposto a um prédio em favor de outro, e em virtude do qual perde o proprietário do primeiro o exercício de algum direito dominial ou é obrigado a tolerar que dele se utilize o proprietário do segundo, tornando-se este último mais útil ou, pelo menos, mais agradável. “Informam-nas, assim, os seguintes princípios: A) Pressupõem a existência de dois prédios não pertencentes ao mesmo dono e relativamente próximos um do outro, não necessitando, porém, que sejam contíguos. “B) Devem produzir alguma vantagem ao prédio dominante, de maneira a aumentar-lhe o valor ou fazê-lo mais aprazível. “C) Formando exceção ao direito comum, e sendo limitações da propriedade serviente, não se presumem (CC, art. 696). SENTENÇAS “D) São, em regra, indivisíveis, por isso que os serviços relativos ao seu objeto formam um só todo e que se não podem considerar realizados senão integralmente; assim, não é possível adquirilas, exercê-las ou perdê-las por partes; subsistem, em caso de partilha, em benefício de cada um dos quinhões do prédio dominante, salvo se, por natureza ou destino, só se aplicarem a certa parte de um, ou de outro (CC, art. 707). “E) São direitos reais sobre a coisa alheia, mas direitos acessórios, permanecendo ligados ao prédio dominante de maneira inseparável: praediis inherent; em conseqüência do que não podem ser cedidas, penhoradas ou hipotecadas separadamente, nem destacadas do prédio dominante, para serem atribuídas a um outro; acompanham o imóvel em suas alienações: ambulant cum dominio. “F) Dizem-se perpétuas, o que decorre logicamente do seu caráter de acessoriedade, ligando-as ao prédio dominante de tal sorte que, enquanto lhe trouxerem vantagem, mantêm-se enquanto ele se mantiver. Contudo, não sendo este um atributo essencial, faculta-se a sua modificação mediante convenção (assim como a sua extinção pelo não-uso: CC, art. 710). “G) O seu conteúdo, porém, não pode nunca ser facere, isto é, uma prestação pessoal do proprietário do imóvel serviente: servitus in faciendo consistere nequit; mas sempre um in patiendo ou um in nom faciendo. “H) A lei, afinal, não as limita em número: as servidões convencionais que se podem estabelecer são, assim, indefinidas, tantas quantas são as vantagens 255 que podem de alguma maneira proporcional ao prédio dominante, como, aliás, já se facultava no Direito Romano”. A toda a evidência, o caso dos autos subsume-se ao conceito de servidão de trânsito. O imóvel dos autores não se encontra encravado, tanto no sentido legal – estrito – quanto tomando-se por base a melhor exegese – como já foi dito acima, a idéia de encravamento é relativa –, haja vista que aos fundos – ao Sul – divisa com estrada pública municipal – estrada vicinal –, conforme se observa no mapa acostado na fl. 92 dos autos e ao teor da resposta da senhora perita ao quesito nº 06, constante na fl. 80 dos autos. Ressalte-se, inobstante a alegação de existência de desnível no terreno no local que faz divisa com a estrada vicinal – segundo a parte autora, de aproximadamente 04m – e a constatação do magistrado – saliente-se, na condição de leigo, porquanto não tem conhecimentos de engenharia ou geologia – por ocasião da inspeção judicial, no sentido de que “há total impossibilidade de abertura de estradas devido ao declive do terreno e à passagem de um córrego” (fls. 150v. e 151), a senhora perita nomeada concluiu favoravelmente à abertura de acesso no local, sem, praticamente, ser necessária incursão na área de terras pertencente ao lindeiro ao Sul – Arsênio Wobeto – consoante conclusão existe possibilidade de abertura de estrada mais a Oeste, conforme está indicado – em vermelho – no mapa da fl. 92 (in verbis). Ademais, preenchidos os princípios inerentes, elencados por Lenine Nequete, ao teor da lição supra. 256 A existência real de servidão de trânsito descontínua e aparente nos imóveis de propriedade dos requeridos – imóveis servientes – em benefício do imóvel pertencente aos autores – imóvel dominante – foi suficientemente comprovada nos autos por meio das fotografias acostadas, laudo pericial, inspeção judicial e prova oral produzida. Vejamos. Com efeito, está diante de servidão de trânsito descontínua e aparente, haja vista o teor das fotografias acostadas com a inicial (fls. 22 e 23), bem como aquelas obtidas por ocasião da realização da perícia (fotos nos 8 à 13 das fls. 86 à 88 dos autos). Descontínua porquanto a servidão de trânsito exige e tem o seu uso condicionado a atos pessoais do senhor do prédio dominante, repetidamente e a intervalos de tempo. Aparente porque se revela por sinais exteriores, tais como sulcos, trilha, porteiras e desaparecimento de grama – ao que se observa nas fotos antes referidas. O laudo pericial afirma a existência de estrada particular “cortando” a propriedade dos requeridos, com extensão de 310,50m + 68,00m, representada, com tinta vermelha, no mapa da fl. 92 dos autos. A senhora perita informou, em resposta ao quesito nº 04, formulado pelos requeridos, sobre a existência de estrada particular, ao responder “a estrada em litígio encontra-se em mau estado de conservação, necessitando de melhorias com máquinas, trabalhos de escoamento das águas do arroio (drenagem) para que seja possível a trafegabilidade com automóvel de passeio”. Ademais, este magistrado, ao realizar a inspeção judicial, de que foi lavrado termo nos autos, constatou a efetiva SENTENÇAS existência de servidão de trânsito no local. Lê-se no termo de inspeção judicial (fl. 150v.), in verbis: “Este magistrado percorreu a pé o trecho de estrada assinalado no mapa da fl. 92 com cor vermelha. A manutenção deste trecho também é precária. Há locais com atoladouros e locais com ‘poças d’água’. O referido trecho permite a passagem de veículos. Não há cercas ou portões no referido trecho a impedir a passagem de veículos. Em ambos os lados da estrada há cerca divisória da propriedade de Arsênio Wobeto. O trecho assinalado com a cor vermelha consubstancia uma estrada de colônia, aparente”. As partes e as testemunhas inquiridas – inclusive aquelas arroladas pelos requeridos – são uníssonas no sentido de que a aludida “estrada particular” existe há muito tempo – há mais de 30 anos – e que sempre foi utilizada pelos moradores da localidade, de forma livre e ininterrupta. Ressaltam que os antecessores dos autores, assim como toda vizinhança – e até pessoas estranhas – sempre utilizaram-se da referida estrada, tanto para chegar ás terras de que eram proprietários, como para encurtar caminho para o centro do Município de Santa Maria do Herval. Edio Klementz (fls. 131 e 132) inclusive afirmou que “ainda usa a estrada que sai na frente da casa do Arsênio, porquanto é o único acesso para a sua casa”. A prova oral é cabal no sentido da existência da servidão de trânsito, evidenciando-se, inclusive, o exercício da posse sobre a estrada por tempo suficiente à usucapião. Observe-se as declarações, in verbis: “Aproximadamente há 20 anos o depoente mora na casa cuja SENTENÇAS foto consta na fl. 23 dos autos, afirmando que efetuou reformas. Informa que há 28 anos, quando mudou-se para o local, as terras ao Sul de sua propriedade, em que fixou residência, pertenciam, uma parte, ao Oeste, ao Sr. Alfredo Dapper, e outra parte, a Leste, ao Sr. Ernesto Dapper, tendo ambos herdado de Jacó Dapper, e sendo hoje ambos falecidos. “As demarcações da divisa entre as terras do depoente, dos autores e do outro requerido foram efetuadas há aproximadamente 03 anos, de forma consensual, mediante contratação de agrimenso. (...) Informa que desde 28 anos atrás até aproximadamente 02 anos atrás, primeiro o falecido Alfredo e depois os filhos deste, que continuaram no local, passam no local (...) A rede de energia elétrica que passa pelas terras do depoente vai até a casa dos herdeiros de Alfredo Dapper (...) Há 28 anos atrás Alfredo Dapper já passava pelo local, na frente da casa do depoente”. (declarações do requerido Arsênio Wobeto, fl. 124) “Há aproximadamente 30 anos, o vizinho, Sr. Arsênio, reside no local (...) O pai do depoente passava pela estrada que se situa na frente da casa do Sr. Arsênio, até antes de falecer. (...) Atualmente, quando não há chuva, é possível se chegar com veículo até à residência do depoente, passando pela estrada que está em vermelho no mapa da fl. 92. Atualmente, somente o depoente com a família residem em Boa Vista do Herval (...) O depoente planta batata inglesa, arroz e milho e também cria gado, em Boa Vista do Herval (...) “Confirma que efetuou o requerimento constante na fl. 121 dos autos à Prefeitura Municipal de Santa Maria do Her- 257 val, salientando que se destinava à viabilização de acordo com o Sr. Arsênio, o que acabou não acontecendo (...) Diz que permite a passagem dos vizinhos por suas terras, salientando que um trecho da passagem foi bloqueada por Ademar Dapper, permitindo a passagem apenas a pé (...) Afirma que pelo local passam inclusive pessoas estranhas, que encurtam o caminho e vão para Santa Maria do Herval.” (declarações de Angelino Olimar Dapper, fls. 124 e 125) “(...) A depoente era proprietária das terras adquiridas por Arsênio Wobeto, localizadas em Boa Vista do Herval. Arsênio adquiriu as terras há mais de 30 anos. Há 30 anos atrás o falecido Alfredo Dapper e também Ademar Dapper já moravam no local, sendo vizinhos de fundos da propriedade que pertencera a depoente. A casa em que reside Arsênio foi construída pela depoente. A depoente morou no local até os 36 anos de idade, conhecendo-o muito bem. “Na época em que residia no local havia passagem para vizinhos e, até, as vezes, para os estranhos, defronte à sua residência. Naquela época, pela estrada passavam carros e também carroças dos vizinhos dos fundos. A estrada foi aberta a base de enxada. Apresentadas as fotos de nos 09 à 13, constantes nas fls. 87 à 89, a depoente informou que representam a estrada que na época em que residia no local era ocupada para passagem dos vizinhos (...) A conservação da estrada era feita pelos próprios moradores. Aquele era o único caminho que levava até a roça dos Dapper.” (declarações de Anila Michel, fl. 126) “(...) Residia nas terras que atualmente pertencem a Arsênio Wobeto, localizadas em Boa Vista do Herval. O 258 depoente nasceu no local e residiu ali até 1948. Apresentadas algumas fotos, o depoente reconheceu na foto nº 11 a casa em que residia. Na época em que o depoente morava no local eram vizinhos de fundos Alfredo Dapper e Ademar Dapper, bem como antes disso, os pais destes. Informa que a saída para a estrada geral era feita por meio das terras em que residia o depoente. Na época os vizinhos saíam para a estrada geral utilizando a passagem pelas terras em que morava o depoente. “Afirma que havia outro caminho, porém este aumentava a distância em aproximadamente 02km, por isso era usado o caminho pelas terras do depoente (...) Desde que o depoente tem conhecimento era possível a passagem, pelo local, de carroças e até caminhões. A estrada foi aberta a base de enxada. A passagem era aparente (...) Na última vez em que esteve no local a estrada de acesso aos Dapper permanecia no mesmo local.” (declarações de Erni Michel, fl. 126v.) “(...) Conhece a estrada que passa pela frente da casa de Arsênio e vai até a propriedade dos Dapper há 28 anos. Apresentadas as fotos das fls. 87 à 89 dos autos, reconheceu o depoente a estrada que passa entre a casa e o galpão de Arsênio e que conhece há 28 anos. Afirma que Angelino utilizava a estrada para passar com o frete. Que outras pessoas passam a pé, pessoas desconhecidas, o vizinho Plínio Glemann, o próprio depoente, etc. Conheceu Alfredo Dapper, afirma que ele utilizava a estrada (...) Sabe que existe uma cerca que separa a estrada, em ambos os lados. “(...) O depoente afirma que desde que conhece a rua, ela era aparente, SENTENÇAS isto é, notava-se que era usada para passagem de pessoas e também para o transporte de produção (...) Se precisasse usar a estrada, poderia fazê-lo porque Arsênio não o proibiu (...) Informa que a rua principal de saída da propriedade dos Dapper é aquela que passa em frente da casa de Arsênio Wobeto. Refere que há outra saída, porém que esta segunda opção aumenta a distância, em mais de 02km (...) Afirma que existe rede elétrica próximo a estrada e que vai até a casa de Angelino Dapper. Sabe que Angelino Dapper planta batatas em sua propriedade.” (declarações de José Beno Kroetz, fl. 127) “(...) Mora em Boa Vista do Herval há aproximadamente 36 anos. Sua propriedade faz divisa com Arsênio Wobeto, situada ao Sul da propriedade dos Dapper (...) Conhece a estrada que se localiza em frente à casa em que mora o Sr. Arsênio. Afirma que esta estrada existe desde o tempo anterior àquele que o depoente conhece a região (...) O falecido Ernesto usava tal estrada e também todos que freqüentavam sua casa (...) “Acredita que provavelmente a estrada era mantida por esforços conjuntos de Arsênio e dos Dapper. A estrada era conhecida por toda a vizinhança. Acredita que era aparente (...) Apresentadas as fotos das fls. 87 à 89, referiu que correspondem à estrada sobre a qual o depoente diz ter existência desde muito tempo atrás (...) O acesso à estrada, ao que sabe o depoente, sempre foi liberado.” (declarações de Evaldo Land, fl. 128) “(...) Tem conhecimento de que a estrada existe há 15 anos (...) O caminho utilizado por Ademar para ir às próprias terras é aquele que passa na frente da casa do Sr. Arsênio (...) Tem conhe- SENTENÇAS cimento de que os vizinhos que moram longe da estrada geral também utilizavam a estrada que passa pela frente da residência do Arsênio. Passavam a pé por esta estrada.” (declarações de Nelson Boeff, fl. 130) “(...) Conhece a estrada que passa na frente de Arsênio Wobeto, entre a garagem e a casa, e sabe que existe há mais de 30 anos e que esta estrada era ocupada para passagem de pedestres e carroças, entre os quais, o próprio depoente e também os demais vizinhos. O falecido Alfredo usava esta estrada. O pai de Ademar também usava esta estrada (...) Sabe que cada um dos usuários fazia um pouco da manutenção da estrada que leva aos Dapper. A estrada sempre foi aberta, isto é, aparente (...) Até a casa deste (falecido Alfredo) a estrada continua aberta e nunca foi interrompida, desde o tempo em que o depoente sabe da existência da estrada (...) O depoente ainda usa a estrada que sai na frente da casa do Arsênio. É o único acesso para a casa do depoente (...) Informa que dos lados da estrada há cerca, mas que Arsênio deixou a estrada aberta.” (declarações de Edio Klementz, fls. 131 e 132) “(...) Conhece a estrada que sai da frente da casa de Arsênio Wobeto e vai até a outra estrada municipal há aproximadamente 50 anos. Neste período, a estrada nunca foi interrompida no trecho entre a residência do Sr. Arsênio e a residência do falecido Alfredo (...) A maioria dos vizinhos e também estranhos que vinham de fora usavam a estrada, pintada de vermelho e de verde no mapa da fl. 92.” (declarações de Osvaldo Dapper, fls. 131 e 132) “(...) Afirma que não pode informar o tempo de existência da estrada que 259 passa pela frente da residência de Arsênio Wobeto e sai em uma estrada municipal porque ela é mais velha que o depoente. O depoente usava a referida estrada (...) A estrada existe no trecho entre a casa do Sr. Arsênio e do Sr. Alfredo, falecido. Neste trecho nunca foi interrompida com pedras ou arames.” (declarações de Erico Dapper, fl. 132 e 133) Ao teor do entendimento assente, em se estando diante de caso de servidão de trânsito, há possibilidade, no que se refere ao tipo “descontínua e aparente”, de exercício de defesa por meio de ação possessória – inclusive interdito possessório –, assim como reconhecimento do direito real por meio de ação declaratória de usucapião. Há inclusive Súmula do Supremo Tribunal Federal referindo-se à matéria – “Súmula nº 415: Servidão de trânsito não-titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória”. Ademais, observe-se abaixo. “Aquisição da servidão de trânsito pela posse. A posse continuada da servidão de trânsito constitui uma forma de seu reconhecimento como direito, defensável pelos meios jurídicos previstos para a tutela das servidões, conforme reiteradamente se vem expressando a jurisprudência. Desde que seja visível o uso, perceptível ao longo do prédio serviente, transforma-se em direito protegido pelos interditos possessórios: ‘Materializada no solo, visível e permanente, deve ser mantida a posse da servidão’. (“Jurisprudência Catarinense” nº 25/281) “Naturalmente, não está ela titulada, pois aí não caberia discussão. Tornada permanente, desenvolvendo o dono do 260 prédio que dela se utiliza atos sucessivos de aproveitamento, transitando no imóvel para chegar a seu prédio, manifestada através de sinais evidentes, como sulcos, moirões, buracos, trilha, porteiras, desaparecimento de grama, existência de valetas, merece a tutela da lei, que a mantém e a conserva, mesmo que não consumado o lapso de tempo da prescrição aquisitiva (“RT” nº 152/304). “Pois, desponta como princípio na jurisprudência, ‘pode-se ter posse da servidão antes de se ter direito da servidão’ (“RJTJRGS” nº 33/111). “As decisões dos Pretórios neste sentido consolidaram o entendimento de forma indiscrepante, tornando-o princípio de direito erigido na Súmula nº 415, nestes termos: ‘Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória’. “Lafayette Rodrigues Pereira mostrava que o Direito Romano previa já para algumas das servidões descontínuas interditos possessórios especiais, acrescentando que a jurisprudência de seu tempo acompanhava a tendência do direito que ele chamava de moderno ao adotar as possessórias como suficientes, por si sós, para proteger a quase-posse das servidões, qualquer que fosse a natureza e a espécie, isto é, de caráter contínuo ou descontínuo, afirmativo ou negativo (obra citada, p. 292, e nota 272, § 136). “O Tribunal de Alçada de Minas Gerais desenvolveu a tendência, ao assentar que ‘na doutrina e na jurisprudência tornou-se incontroverso que a servidão de trânsito, desde que se mostre SENTENÇAS visível e permanente, pela natureza das obras realizadas, é passível de proteção possessória. Na esteira desse entendimento, é que o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em acórdão de que foi Relator o eminente Des. Aprígio Ribeiro, assentou, com muito acerto, que é suscetível de servidão de trânsito, e o seu uso defensável por via de interditos, a estrada que se não revela apenas eventualmente à passagem de viandante, mas que se manifesta visivelmente na forma de aterros, estivamentos, cercas e porteiras, solenizando-se, assim, por sinais objetivos e ostensivos (v. “Jurisprudência Mineira”, V/957, fascículos 5 e 6). “Também o Egrégio Superior Tribunal Federal, depois de decidir que as servidões de trânsito podem tornar-se aparentes pelos sinais evidentes que se apresentarem e contínuas, e que nessa hipótese são prestigiadas pela lei civil (“Minas Forense” nº 02/707), acabou por assentar, na Súmula nº 415, que servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, se considera aparente, conferindo direito à proteção possessória’. (“RT” nº 412/404) “O Tribunal de Justiça de São Paulo, entre outras oportunidades, seguiu idêntica tese, como se vê na fundamentação da Apelação Cível nº 203163: ‘Tratandose de mera posse de servidão de trânsito, havendo obras visíveis, como porteiras, cercas e corredor de gado, tornando-a contínua e aparente, goza de proteção possessória, sem necessidade de título e prova dominial’. (“RT” nº 444/88. Ainda, 484/88 e 493/53) Em síntese, quando estabelecida com obras SENTENÇAS que lhe atestam a existência, a servidão deve ser considerada como aparente e não-descontínua, gozando, portanto, dos interditos possessórios (“Rev. Forense” nº 233/178).” (in Arnaldo Rizzardo, “Revista AJURIS” nº 30, março de 1984 – grifo meu) “Servidão aparente reconhecida em face dos elementos probatórios colhidos no processo. Nova incursão no campo fático da controvérsia, a que não se presta o recurso especial (Súmula nº 07 do STJ). “Transcrição no registro de imóveis. Exigência somente para as servidões não-aparentes (...) II – Não cabe, em sede de recurso especial, incursionar no campo fático da controvérsia, para revolver provas colhidas nos autos e serviram de base ao reconhecimento da existência de servidão aparente (Súmula nº 07 do STJ). “A transcrição no Registro de Imóveis só é exigível para o estabelecimento das servidões não-aparentes (art. 697 do CC). III. Recurso a que se nega provimento, indiscrepantemente.” (REsp nº 22288-0-SP, STJ, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, “DJU”, de 13-02-95, p. 2.219) “(...) Agravo. Ação de manutenção de posse. Servidão. Utilização e conservação de barragem. Desligamento de cerca eletrificada. Liminar deferida. Preliminar. Falta dos pressupostos para liminar. Inocorrência. Os atos que impedem o exercício do direito de servidão podem ser atacados por interditos possessórios. A colocação de cerca eletrificada sem a verificação da devida legalidade e afastamento de risco não pode prevalecer seja qual for o procedimento judicial, pela relevância da situação, 261 diante a iminência de risco e incerteza da segurança das vidas das pessoas e animais. Liminar. Despacho de manutenção. “O Juiz realizou inspeção judicial, demonstrando pleno conhecimento da situação, inclusive todo o histórico das contendas judiciais, justificando a manutenção da liminar. Preliminar rejeitada. Agravo desprovido.” (Agravo de Instrumento nº 196118897, 5ª Câmara Cível do TARGS, Dom Pedrito, Rel. Silvestre Jasson Ayres Torres. Agravantes: Andréa Menezes de Salles, Pedro Afonso Almeida de Salles ou Pedro Afonso Salles. Agravados: João Antonio Machado da Rocha e Lise Florência Caiaffo da Rocha. Julgado em 10-10-96, unânime) “(...) Reintegração de posse. Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória (Súmula nº 415 do STF).” (Apelação Cível nº 197083025, 4ª Câmara Cível do TARGS, Caxias do Sul, Rel. Ulderico Cecatto, julgada em 19-06-97) Neste passo, uma vez já afirmada a existência da servidão de trânsito há mais de 30 anos e a possibilidade de defesa por meio de ação possessória, há de se perquerir: Os autores tem o direito de exigir a sua manutenção? A resposta a esta indagação – que, definitivamente, define o rumo da demanda: procedência, ou não – passa, necessariamente, pela análise dos “requisitos para o reconhecimento da posse na servidão de trânsito”. A este respeito temos a lição do eminente Des. Arnaldo Rizzardo – obra citada –, in verbis: “Requisitos para o 262 reconhecimento da posse na servidão de trânsito. Mas deve existir uma razão forte e séria, que evidencie a real necessidade, como foi referido e será analisado mais aprofundadamente, para admitir a servidão de trânsito através da posse. “Neste sentido, há certa identificação como a passagem forçada, que reclama um razoável encravamento do prédio a fim de ser concedida. Se, embora evidente a posse, o pretendente busca uma maior comodidade apenas, um encurtamento de distâncias, tendo outra via de acesso à sua propriedade ou ao caminho público ou à fonte, pelos mesmos princípios que regem a passagem forçada não se estabelece a serventia ou o uso do caminho. “É o que pontifica na jurisprudência: ‘Não se pode onerar a propriedade lindeira com servidão de passagem, se o vizinho dispõe de outra para o mesmo fim, ainda que tenha de percorrer maior distância ao servir-se de estrada municipal para atingir sua propriedade. A servidão de passagem existe em função da necessidade do trânsito e não para servir à conveniência pessoal do interessado, cuja propriedade não se acha encravada’. (“RT” nº 398/187 ) “ ‘Não se pode onerar propriedade vizinha com servidão de passagem, quando se dispõe de estrada de acesso à via oficial. A servidão de trânsito não objetiva servir conveniência pessoal do interessado, cuja propriedade não se acha encravada’, embora resulte ‘encurtamento de distância’ (“RT” nº 422/177). “ ‘Servidão de passagem. Não é de ser deferida se a prova é conducente à demonstração que sua necessidade re- SENTENÇAS side em mera comodidade para escoamento da produção.’ (“Julgados do TARGS” nº 39/402. Idem, “RT” nos 455/ 80 e 520/141; “Rev. Forense” nº 243/ 147) “Mas há pontos de vista contrários, menos rigorosos em conceder a servidão: ‘Quando se cuida de real servidão de passagem, assinalada por obras visíveis, da qual têm os autores quase posse ad interdicta, como ocorre nestes autos, o fato da existência de outra estrada em favor do prédio dominante não obsta a que reconheça o seu direito de uso ou trânsito dessa outra estrada’. (“RT” nº 334/363) “Conquanto justas as razões, cada situação merece um exame especial, preponderando a conclusão de onerar-se o menos possível o imóvel alheio, e somente quando o determinarem fortes exigências fáticas do prédio necessitado. Na constituição por ato convencional das partes seria aceitável o ponto de vista acima. Tratando-se, entretanto, da posse como fato gerador, o gravame não pode desvirtuar-se da natureza da passagem forçada, embora não com a mesma rigidez de requisitos, razão que torna irrelevante a posse se desacompanhada da necessidade do caminho. “Fazendo frente a uma via qualquer, ou com acesso razoável a ela pelo próprio terreno, não se impõe o encargo, malgrado a posse existente. É o que salienta a jurisprudência mais ponderada: ‘Se a abertura de estrada pública extinguiria servidão regularmente transcrita, por força do art. 709, inc. II, do CC, é manifesto que, não existindo transcrição, será inadmissível que se restabeleça uma servidão de passagem, no caso, SENTENÇAS quando já existe uma estrada pública, acessível ao prédio dominante. E não importa que o traçado da estrada pública seja mais longo, porque o autor não pode tirar vantagem em terras alheias, se dispõe de meio para atingir o mesmo objetivo, sem onerar o proprietário vizinho. A servidão de caminho existe em razão de necessidade de trânsito e não de enriquecimento do prédio dominante’. (“RT” nº 322/218) “Considera-se o uso que vinha sendo exercido como mera tolerância do proprietário e não posse no sentido jurídico. (“RT” nº 441/117) “Forte corrente da jurisprudência inadmite, ainda, a proteção quando os caminhos que atravessam prédios particulares não se dirigem a lugares públicos, nem a fontes ou pontes (“Julgados do TARGS” nº 23/163), tendo-os como simples atravessadouros se não fundados em títulos legítimos. “A razão estaria no art. 562 do CC, que preceitua: ‘Não constituem servidão as passagens e atravessadouros particulares, que se não dirigem a fontes, pontes, ou lugares públicos, privados de outra serventia’. “Comenta Clóvis: ‘Pondo de lado esta questão técnica (da colocação do artigo no capítulo das servidões), o edito do artigo afirma que os caminhos, que atravessam prédios particulares, se não se dirigem a lugares públicos, se estendem meras concessões do proprietário, se não se fundarem em títulos legítimos. Não se adquirem por usucapião’. (ob. cit., vol. III, comentário ao art. 562) “João Luiz Alves considera os atos de passagem como de pura tolerância, tendo direito a ações apenas o dono do 263 prédio atravessado (“Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil”, 1º/515, 2ª ed., Livraria Acadêmica Saraiva & Cia., São Paulo). Mas a regra precisa ser entendida corretamente. “Carvalho Santos, abordando a interpretação do dispositivo transcrito, diz que foi mal redigido. O legislador pretendeu reproduzir o direito anterior, sem alteração, para o qual não existia servidão se o caminho se dirigisse para local onde não houvesse serventia alguma, ou sem a menor utilidade. A redação da norma seria esta: ‘Não constituem servidão as passagens e atravessadouros particulares, que não se dirigem a fontes, pontes ou a lugares que não tenham serventia alguma’. “Daí concluir-se que, se o lugar não tem fonte ou ponte, mas tem outra serventia qualquer, a passagem ou atravessadouro constitui servidão: ‘Existe servidão ainda que a serventia esteja em lugar que não seja público, mas particular, sendo defeituosa a redução que faz parecer que o lugar deve ser público’. (Carvalho Santos, obra citada, VIII/48) “Em resumo, deixará de incidir o ônus referido quando se dirigem os caminhos para lugar sem qualquer serventia, ou sem utilidade. Mesmo porque falece razão, então, para consentir na passagem. Mas a necessidade desponta-se a utilização se destina com vistas ao trabalho, embora não situado em lugar público”. Temos ainda a lição de Lenine Nequete (obra citada, pp. 110 e 111), in verbis: “No que respeita, para concluir, à servidão de trânsito, é de se dizer, preliminarmente, que carecem de razão 264 os autores e os julgados que a confundem com a passagem forçada. Não é possível – alega-se – falar em servidão de trânsito senão quando há encravamento, à vista do que dispõe o art. 562 do CC. “A maior ou menor dificuldade de comunicação ou incômodos sofridos pelo proprietário do prédio dominante não bastam para o reconhecimento desse ônus, que traz graves e sérios inconvenientes às propriedades rurais. É manifesta a improcedência do argumento que limita a servidão de passagem à necessidade de prédio encravado: a passagem forçada (CC, art. 559), outrora servidão legal de trânsito, é direito de vizinhança que corresponde ao prédio sem saída para a via pública, enquanto que a servidão convencional de passagem não supõe aquela necessidade, podendo assentar no útil, no cômodo, até mesmo no supérfluo”. (grifo meu) Ao que se observa nas lições acima, há dois entendimentos quanto aos requisitos para o reconhecimento da posse na servidão de trânsito. Um deles vincula o direito ao reconhecimento da posse da servidão de trânsito à real necessidade de saída para via pública, o que, na prática, a equipara ao direito de “passagem forçada”. Outro afirma a possibilidade de reconhecimento, havendo prova suficiente da posse mesmo no caso de implicar mera utilidade e, ainda mais, até consubstanciando supérfluo. Arnaldo Rizzardo aborda as duas situações, inclinando-se para a primeira. Lenine Nequete, ao contrário, rejeita a primeira hipótese. O entendimento deste magistrado afeiçoa-se mais àquele preferido por SENTENÇAS Lenine Nequete – excluindo-se a hipótese de deferimento de servidão de trânsito com assento no supérfluo. Com efeito, não há de se deferir a proteção à posse de servidão de trânsito tão-somente nos casos de encravamento, sob pena de tornar letra morta as disposições legais pertinentes. Não obstante, há de se apurar a real necessidade e/ ou utilidade, sopesando-se também a situação fática do imóvel serviente, a fim de onerar-se o menos possível o imóvel alheio. Partindo-se destas duas premissas examinemos a situação fática consolidada. A servidão sobre as terras dos requeridos existe há mais de 30 anos – o que restou comprovado. Ao rigor da lei, consoante prova produzida, os autores têm o direito de ver declarada a usucapião da servidão – muito embora não seja objeto do pedido, motivo pelo qual a decisão restringir-se-á à questão da manutenção da posse. A aludida estrada, em que pese situar-se sobre terreno particular, é de utilidade pública, porquanto não somente os autores a utilizam, mas também outros moradores da localidade, entre os quais podemos citar Edio Klementz (fls. 131 e 132) e o próprio requerido Ademar Dapper, ambos proprietários de imóveis encravados – no que pertine à situação do requerido Ademar, observe-se a localização de seu imóvel, demonstrada no mapa da fl. 92 dos autos –, os quais teriam direito a “passagem forçada”. Com efeito, os autores não dispõem, no atual momento, de outra ligação – efetivamente aberta – com a via pública. Têm a real necessidade de utilizar a SENTENÇAS referida estrada para ingressar em seu imóvel – o que vem acontecendo desde há muitos anos –, bem como para escoar sua produção – leia-se o teor da prova oral produzida, bem como o teor da petição das fls. 173/174 dos autos. Exigir-se a abertura de outra saída, aos fundos, ligando-se à estrada vicinal, consubstanciaria decisão injusta, a onerar os autores, ressalte-se, pequenos proprietários rurais. Ademais, dificultaria a utilização e exploração do imóvel, haja vista as precárias condições de trafegabilidade da estrada vicinal – leia-se o teor da prova pericial do termo de inspeção judicial. De outro lado, vale questionar qual o ônus para os requeridos ante a decisão pela manutenção da posse dos autores sobre a servidão. Evidentemente que nenhum. Com já foi dito, embora fosse negado o pedido dos autores, o caminho não poderia deixar de existir, uma vez que consubstancia a única ligação do imóvel do requerido Ademar Dapper com a via pública – in casu a estrada geral. Por conseqüência, a decisão favorável aos autores não cria qualquer ônus ao requerido Arsênio Wobeto. Vale ressaltar que há notícias nos autos no sentido de que o requerido Arsênio Wobeto não deseja fechar a estrada, mas tão-somente impedir a passagem dos ora autores – prova disso: as declarações de José Beno Kroetz, constantes na fl. 127, afirmando que não foi proibido de passar pelo local – quiçá, por intriga pessoal com um ou outro, por motivo não esclarecido. É de se salientar ainda que a servidão está perfeitamente delimitada pela existência de cerca de arame ao longo de seu 265 curso, em ambos os lados, na propriedade de ambos os requeridos. Assim sendo, apresenta-se ilícita a tentativa dos requeridos almejando turbar a posse dos autores sobre a aludida estrada. Não destoa da presente decisão o julgado abaixo, in verbis: “Servidão de trânsito. Remoção à revelia dos donos do prédio dominante. Diminuição de vantagens. Não pode ser aceita remoção de servidão de trânsito existente há mais de 50 anos, sem anuência dos donos dos prédios dominantes, se tal mudança acarretou aumento considerável de distância, com agravação de encargos e perda de tempo, para os que da antiga estrada se serviam. A interpretação do permissivo do art. 103 do CC condiciona-se rigorosamente à observância de tal requisito. Apelo conhecido e provido. Sentença reformada. “Vê-se que, além de não atenderem os recorrentes às exigências legais e regimentais, referentes à alegação de dissídio jurisprudencial, pretendem eles o reexame de matéria fática, o que encontra óbice na Súmula nº 07 do Egrégio STJ. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso”. (Agravo de Instrumento nº 58127-6-GO, STJ, Rel. Min. Nilson Naves, “DJU”, de 25-11-94, p. 32.354) Com corolário de todo o exposto, impõe-se julgar procedente o pedido dos autores. Finalmente, ante o teor do petitório das fls. 174/175 dos autos, impõe-se autorizar, de imediato, por meio de medida liminar – incidental – , a título de antecipação de tutela, uma vez que presentes os pressupostos elencados no art. 273, caput e inc. I, do CPC – ao teor desta decisão –, a realização de serviços de manutenção da 266 servidão de trânsito – tais como a construção de aterros; encascalhá-la; a introdução, no prédio serviente, de pessoas para executar obras e manter em bom estado o leito da passagem, contanto que a sua duração e modo produzam o menor incômodo possível –, à custa da parte interessada, tudo com a finalidade de permitir a sua utilização durante eventual curso da lide em sede recursal – tudo consoante teor do art. 699 do CC. Nota: “De outro lado, do exercício decorrem os atos necessários para a conservação e o uso. Ao dono da servidão, ensina Clóvis, é autorizada a realização dos seguintes atos, entre outros: o corte de árvores para abrir o caminho; a construção de aterros e de pontes; a introdução, no prédio serviente, de pessoas para executar obras e manter em bom estado o leito da passagem (obra citada, III/254). “Carvalho Santos endossa a lição: ‘Poderá fazer escavações e os serviços imprescindíveis para o melhoramento da estrada, encascalhá-la, derrubar as árvores que prejudiquem o trânsito, podendo mesmo ocupar outros lugares se fizer preciso para a execução de tais obras, contando que a sua duração e modo produzam o menor incômodo possível ao dono do prédio serviente’. (J. M. Carvalho Santos, “Código Civil Brasileiro Interpretado”, Livraria Freitas Bastos S. A., São Paulo, 1963, 11ª ed., IX/323)” (in Arnaldo Rizzardo, obra citada) Diante do exposto, julgo procedente a presente ação de manutenção de posse ajuizada por Carolina Minda Dapper e outros contra Arsênio Wobeto e outros para fins de manter e assegurar o exercício da posse dos autores sobre a servidão de trânsito existente – estrada SENTENÇAS particular “cortando” a propriedade dos requeridos, com extensão de 310,50m + 68,00m, representada, com tinta vermelha, no mapa da fl. 92 dos autos –, o que faço com fundamento nos arts. 695 e 699 ambos do CC, bem como arts. 926 e ss. do CPC. Outrossim, defiro de medida liminar – incidental –, a título de antecipação de tutela, para fins de autorizar, de imediato, a realização de serviços de manutenção da servidão de trânsito – tais como a construção de aterros; encascalhá-la; a introdução, no prédio serviente, de pessoas para executar obras e manter em bom estado o leito da passagem, contanto que a sua duração e modo produzam o menor incômodo possível –, à custa da parte interessada, tudo com a finalidade de permitir a sua utilização durante eventual curso da lide em sede recursal, o que faço com fundamento no art. 273, caput, e inc. I, do CPC. Destarte, expeça mandado de intimação pessoal dos requeridos e de remoção de obstáculos, ficando o(a) Oficial(a) de Justiça autorizado(a) a requisitar força policial – se necessário –, a fim de assegurar o cumprimento da presente medida liminar incidental. Autorizo a senhora Escrivã a assinar mandado e ofícios pertinentes. Condeno os réus ao pagamento, em partes iguais, das custas e despesas processuais, bem como de honorários advocatícios em favor dos advogados da parte autora, que ora arbitro em R$ 1.800,00, tudo com fundamento no art. 20, § 4º, do CPC. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Dois Irmãos, 30 de dezembro de 1997. Silvio Viezzer, Juiz de Direito. 267 Processo nº 13.574-154/98 – Ação Civil Pública Autor: Ministério Público Réu: Município de Horizontina-RS Juíza prolatora: Simone Brum Pias Ação civil pública. Legitimidade ativa do Ministério Público para demandar em matéria tributária. Nova planta de valores dos imóveis fixados de acordo com os ditames legais. Capacidade contributiva respeitada – art. 145, § 1º, da CF. Atualização decorrente de valorização imobiliária. Improcedência. Vistos, etc. O Ministério Público ajuizou ação civil pública contra o Município de Horizontina-RS, relatando, em suma, que houve aumento abusivo da cobrança do IPTU, a ser pago pelos munícipes em 1998, tendo em vista que a comissão instalada pelo requerido para reavaliar os valores venais dos imóveis aumentou estes de forma excessiva, chegando, em alguns casos, a 300% de majoração. Aduziu que a comissão não explicitou os critérios do art. 45 do CTM, já que sendo excessivo o aumento, caberia ao requerido demonstrar a valorização dos imóveis, mormente frente à desvalorização destes na atual conjuntura econômica e sensível diminuição das transações imobiliárias. Alegou que, não tendo o Município comprovado a implementação dos requisitos do art. 45 da Lei nº 1.292/97, deveria ter reajustado o IPTU pelos índices de inflação oficial. Ainda, que houve violação do art. 6º da Lei Municipal nº 1.309/97 e do princípio constitucional da capacidade contributiva, disposto no art. 145, § 1º, implicando confisco, já que o pagamento exige, dos contribuintes, diminuição patrimonial. Pediu a concessão de liminar, suspendendo a cobrança do tributo, autorizando os contribuintes a pagarem o IPTU corrigido pelo IGP-M, e determinando a restituição dos valores pagos a maior, com a fixação de multa diária para o caso de descumprimento da decisão. No mérito, pediu a procedência, com a condenação do requerido a recalcular o valor do IPTU, de acordo com inflação oficial de 1997, e a restituir os valores pagos a maior. Juntou documentos. A liminar foi deferida (fls. 195/196), determinando a suspensão da cobrança do IPTU, autorizando os contribuintes a pagarem o imposto corrigido pelo IGP-M de 1997, até final decisão, e determinando a restituição dos valores pagos a maior, com índices superiores ao IGP-M, em dez dias, com multa diária de 10 salários mínimos para caso de descumprimento. Citado na pessoa de seu representante legal (fl. 199), o Município contestou, alegando não haver relação de consumo, não sendo cabível a ação civil pública. Portanto, ilegítimo é o Ministério Público para pleitear a revisão do IPTU. No mérito, alegou não ter atentado à Constituição Federal e Código Tributário Nacional e Municipal, sendo que a comissão de reavaliação dos imóveis 268 foi criada por lei, aprovada por unanimidade pela Câmara de Vereadores, e nomeados por portaria seus integrantes, os quais, ao elaborarem a nova planta de valores, observaram a capacidade contributiva dos munícipes, prevendo descontos e isenções. Aduziu que os imóveis estão com valor venal igual ou inferior a 70% do valor de mercado, conforme laudos de avaliação de ITBI. Pediu a extinção do processo sem julgamento de mérito, acolhendo a preliminar, ou a improcedência e a reconsideração da decisão que concedeu a liminar. Juntou documentos. Mantida a liminar (fl. 267), juntou o Município comprovante do pedido de suspensão da liminar, formulado junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que foi por este deferido, às fls. 302/303. Com vista, manifestou-se o Ministério Público, em réplica, pela procedência da ação, em parecer. Instadas a especificar as provas que desejassem produzir, pediu o Ministério Público o pronto julgamento da lide, e o requerido pediu a oitiva de testemunhas. Designada audiência de instrução, o Município desistiu das testemunhas arroladas, com o que foi concorde o Parquet, tendo sido homologado por este Juízo. As partes apresentaram memoriais, tendo o Parquet pedido a rejeição da preliminar de ilegitimidade e, no mérito, a procedência dos pedidos iniciais. O requerido pleiteou a improcedência, ante a comprovação da legalidade na majoração do tributo. Vieram os autos conclusos para sentença. Relatei. Passo a fundamentar e a decidir. SENTENÇAS A matéria discutida é exclusivamente de direito, estando o feito apto a ser julgado, conforme o art. 330, I, do CPC. A controvérsia reside na legalidade, ou não, da majoração do IPTU, a ser pago pelos munícipes no exercício de 1998. O Ministério Público, antes da análise da matéria relacionada com o mérito, como defensor dos direitos difusos e coletivos, é parte legítima para figurar no pólo ativo da presente ação. A respeito da matéria, assim já se manifestou o Egrégio Tribunal de Justiça: “Ação civil pública. Matéria tributária. Legitimidade do Ministério Público. Reajuste do IPTU. Índice inflacionário de 1994 pelo IGP-M. Legitimidade ad causam do Ministério Público. O Ministério Público tem legitimidade ad causam para demandar em ação civil pública, envolvendo matéria tributária, visto que caracteriza a defesa de direitos homogêneos, como tais entendidos os que têm origem comum, que, por sua vez, nada mais são do que espécie do gênero interesses coletivos. “Exegese do art. 129, III, da CF, c/c o art. 81, III, do CDC. Soma-se que há diversos diplomas legais ampliando a legitimidade processual substitutiva, o que reflete uma tendência moderna no sentido de facilitar a jurisdição no atacado, porquanto possui a vantagem de alcançar idêntica solução a todos os que se encontram em idêntica situação, com enorme desafogo ao Judiciário, sem prejuízo da qualidade da prestação do serviço. (Apelação Cível nº 197121817, 1ª Câmara Cível do Estado do Rio Grande do Sul, Faxinal do Soturno, Rel. Des. Irineu Mariani, julgada em 23-09-98, “DJ”, de 14-05-99, p. 28) SENTENÇAS No mesmo sentido, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 197121817, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. Irineu Mariani, julgada em 23-09-98). Afastada a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público, passo a analisar o mérito. Necessário analisar-se, uma a uma, as alegações do autor. I – Referiu o Parquet que a Comissão que elaborou a nova planta de valores dos imóveis não atendeu ao disposto no art. 45 do CTM – Lei nº 1.292/97, explicitando de forma minuciosa os critérios utilizados para a reavaliação dos imóveis, mesmo que por amostragem. Ressalte-se que a Comissão de Avaliação foi regularmente constituída, conforme determinado pela Lei nº 1.292/ 97, sendo nomeada pelo Senhor Prefeito Municipal (fl. 211). Tal Comissão elaborou a nova planta de valores, que foi aprovada pela Lei nº 1.309/97. Esta Comissão, nos termos do art. 45 do CTM, deveria ter observado os seguintes critérios: “A Comissão de avaliação deverá observar, além do disposto nos arts. 53, 54, 55, 56 deste Código, os seguintes critérios: “I – Quanto à construção: a) o metro quadrado de construção corrente no mercado imobiliário; b) os valores estabelecidos em contratos de construção; c) os preços relativos às últimas transações imobiliárias; e d) quaisquer outros dados informativos pertinentes. “II – Quanto ao terreno e às glebas: a) o índice médio de valorização; b) os preços relativos às últimas transações imobiliárias; c) o número de equipamentos urbanos que serve o local; d) os 269 acidentes naturais e outras características que possam influir em sua valorização; e e) quaisquer outros dados informativos pertinentes”. Afirmou o Ministério Público que a Comissão não explicitou tais critérios ao elaborar a nova planta de valores. No entanto, o que a Lei nº 1.292/97, em seu art. 45, exige é a observação de tais critérios, e não a descrição de um a um. Consoante ata da fl. 213, quando foi colocado em discussão o projeto de lei que estabelecia as plantas e tabelas de valores dos imóveis urbanos da sede do Município e Vila Cascata, houve “ampla explanação com o mapa demonstrativo dos novos valores. Após ampla discussão, o projeto foi colocado em votação, sendo aprovado por unanimidade de votos”. Assim, verifica-se que quando da aprovação da Lei nº 1.309/97 (fls. 42/ 45) houve, sim, observação dos critérios do art. 45 da Lei nº 1.292/97, embora naquela não tenham sido explicitados, o que nem era exigido por esta. Nenhuma ilegalidade há, portanto, nas novas plantas e tabelas de valores dos imóveis urbanos da sede do Município e de Vila Cascata, consoante se vê nas fls. 42/45, no que tange à observação dos critérios do art. 45 do CTM. Afirmou o Parquet que poderia, ao menos, ter sido demonstrada por amostragem a observação de tais critérios, prova esta que veio aos autos através dos documentos das fls. 218 à 225, que evidenciam que o novo valor atribuído aos imóveis referentes aos demonstrativos das fls. 218/224 estão abaixo do valor de mercado, demonstrados pelo anúncio de vendas da fl. 225, promovido pelos próprios proprietários. 270 Ainda, os documentos das fls. 228 e 229 revelam que o imóvel referido foi vendido por valor bem superior à nova avaliação do mesmo para fins de IPTU, da mesma forma que os das fls. 230/ 231, 232/233, 234/235, 236/237, 238/ 239, 240/241, 243/244, 245/246, e ainda as avaliações das fls. 248/249, 251/ 255257/258, 260/261 e 263/264, que especificam em detalhes quais as características do imóvel, bem como a pontuação para fins de IPTU, evidenciando, por amostragem, o porquê dos novos valores. Isso sem considerar os mais antigos, acostados nas fls. 247, 250, 256, 259, 262 e 265, que apenas foram juntados para servir de comparativo aos documentos antes referidos, já que são referentes aos mesmos imóveis. Não se pode considerar o percentual de aumento, mas, sim, se os novos valores se coadunam com a realidade e têm razão de ser. Não tendo havido supervalorização dos imóveis, a reavaliação não tem de ilegal ou imoral. II – Ainda, alegou que houve violação ao art. 6º da Lei Municipal nº 1.309/ 97, que estabelece as plantas e tabelas dos imóveis, que dispõe: “Os valores estabelecidos nesta lei serão reajustados anualmente com base no índice oficial da inflação”, uma vez que o tributo, em alguns casos, foi majorado em mais de 300%. Ocorre que tal dispositivo aplica-se apenas àqueles em que não há nova lei, observado o princípio da anterioridade, e os valores são apenas corrigidos pelos índices oficiais da inflação, o que ocorre por simples decreto do Poder Executivo, sem a intervenção do Poder Legislativo, como ocorreu no caso em tela. SENTENÇAS Não pode o Município, por simples decreto, aumentar o IPTU em valor superior à sua simples atualização monetária, ex vi do art. 97, II, e § 1º, do CTN. O § 2º do art. 97 do CTN diz respeito somente à correção monetária do valor venal do imóvel – base de cálculo do imposto predial – não alcançando reavaliação econômica desse valor venal. Diferente é o caso em exame, onde houve lei, e não simples decreto, podendo haver a reavaliação dos imóveis, e conseqüentemente do valor do imposto, em patamar superior aos índices da inflação. Conforme ensina Pinto Ferreira, as leis, como normas fixadas pelo Poder Público competente para reger as relações sociais de uma determinada comunidade, são elaboradas naturalmente pelo Poder Legislativo, no regime constitucional moderno. (“Curso de Direito Constitucional”, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 393) Havendo lei, na acepção técnica da palavra, pode, sim, ser atualizado o valor venal dos imóveis, de acordo com o fenômeno mercadológico, e também com as mudanças estruturais dos mesmos, como ocorreu no caso em tela, com a Lei nº 1.309/97. III – Com relação à Constituição Federal, aduziu o Ministério Público que houve desrespeito ao princípio da capacidade contributiva, previsto no art. 145, § 1º, segundo o qual é inútil instituir imposto onde não há riqueza, mesmo sendo o IPTU um imposto real. E mais, que houve verdadeiro confisco, já que os contribuintes apenas poderiam pagar mediante redução patrimonial, o que é vedado pelo art. 150, IV da Carta Magna. SENTENÇAS Relativamente à capacidade contributiva, é a mesma preservada na medida em que a incidência impositiva do IPTU afete os imóveis de maior valor. Como bem referido pelo Parquet, o IPTU é um imposto real, que leva em consideração a propriedade, e não o proprietário. A matéria foi examinada no Recurso Extraordinário nº 206.970-1-MG, 2ª Turma, Supremo Tribunal Federal, em 1997: “Naquela assentada – referindo-se ao RE nº 153.771 – restou pacificado entendimento de que a progressividade do IPTU, que é imposto de natureza real em que não se pode levar em consideração a capacidade econômica do contribuinte (grifei), só é admissível, em face da Constituição, para o fim extrafiscal de assegurar o cumprimento da função social da propriedade...”. Conforme leciona Alfredo Augusto Becker, citado por Sandra Lopez Barbon, “o conceito de capacidade contributiva, ao penetrar no mundo jurídico, é o seguinte: a riqueza do contribuinte não é a totalidade da riqueza do contribuinte, mas unicamente, um fato – signo presuntivo de sua renda ou capital”. (“Do IPTU”, Ed. Del Rey, 1ª ed., p. 85) E observa a citada autora: “O princípio da capacidade contributiva, como já estudado, é um desdobramento do princípio da igualdade (ob. cit., p. 84). De fato, o art. 150 da Carta Magna proíbe ‘instituir tratamento entre os contribuintes que se encontrem em situação equivalente’. A contrario sensu, não é admissível tratamento igualitário para aqueles que se encontrem em situações desiguais. E não se pode considerar que o proprietário de um apartamento 271 condominial estritamente residencial, esteja na mesma situação daquele que é proprietário de uma unidade pertencente a um apart-hotel. Este desfruta de atributos que aquele não possui. Não podem ser tributados da mesma maneira, no que pertine ao imposto predial”. Também Roque Antônio Carrazza assinala que “enfatizamos que a capacidade contributiva, para fins de tributação por via do IPTU, é aferida em função do próprio imóvel (sua localização, dimensão, luxo, características, etc.), e não da fortuna em dinheiro de seu proprietário. Não fosse assim, além da incerteza e insegurança, proliferariam situações deste tipo: pessoa hoje pobre, mas que adquiriu caríssimo imóvel em período economicamente faustoso de sua vida profissional, estaria a salvo do IPTU. Não nos parece que este seja o espírito do dispositivo constitucional”. (“Curso de Direito Constitucional Tributário”, Ed. Malheiros, p. 68) Assim, não merece ser acolhida tal alegação ministerial. Da mesma forma com relação ao confisco, o mesmo inocorre no caso em tela. O Município foi dividido em diversas zonas ou setores fiscais (fl. 42), e entre elas classificou os imóveis de acordo com o padrão (alto, médio ou baixo – fl. 43), classificando ainda as construções (fl. 44). No sentido da inexistência de confisco: “IPTU. Majoração depende de lei. Atualização dos valores dos imóveis, decorrente da valorização imobiliária, mesmo que superior à própria desvalorização da moeda. O acréscimo decorrente, não pode ser considerado como forma de confisco de bens, já que o valor 272 do tributo correspondente a uma pequena parcela, em relação ao valor do imóvel. A atualização dos valores dos imóveis, que se constituirão em base para cálculo do imposto, encontra respaldo no art. 97, § 2º, do CTN. Doutrina: Hely Lopes Meirelles, “Direito Municipal Brasileiro”, 3ª ed, p. 841; Paulo de Barros Carvalho, “Curso de Direito Tributário”, p. 206; Regis Fernandes de Oliveira, “Receitas Públicas Originárias”, p. 36. Jurisprudência: “RT” nº 184/196; “JTACESP” nº 106/251 (Apelação Cível nº 0075001800, Londrina, Rel. Juiz Sérgio Rodrigues, 4ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada-PR, Julgada em 07-06-95, Acórdão nº 5.832, publicada em 16-06-95) (grifei). Se as pessoas terão dificuldades ou não para pagar, o que até foi considerado pelo Município ao prever as isenções (art. 215 do CTM), não é tal fator que é levado em consideração quando se está a questionar a legalidade do tributo, e até mesmo a moralidade dos valores cobrados. Por tais razões, julgo improcedente o pedido, revogando a liminar inicialmente concedida. Sem sucumbência pelo Ministério Público. Nesse sentido: “Aforamento pelo Ministério Público. Sucumbência. Inadmissibilidade. Aplicação dos arts. 17 da Lei nº 7.347, de 1985, com a redação SENTENÇAS dada pelo art. 115 da Lei nº 8.078, de 1990, e art. 5º, inc. LXXIII, da CF, de 1988. É inaplicável o art. 20 do CPC para a ação civil pública, movida pelo Ministério Público, que for julgada improcedente, quando se não configura malícia de parte do autor, por estar atuando em defesa dos direitos e interesses da própria coletividade. Recurso provido”. (Agravo de Instrumento nº 594090748, 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Santa Maria, Rel. Des. Celeste Vicente Rovani, 13-09-94) “Processo civil. Ação civil pública. Ministério Público. Ônus da sucumbência. Isenção. O Ministério Público, como defensor de interesses da sociedade, ao ser vencido em ação civil pública, é desobrigado de pagar as despesas do processo e a verba advocatícia, ressalvada a atuação maliciosa. Inteligência do art. 18 da Lei nº 7.347, de 24-07-86. Precedentes jurisprudenciais. Recurso provido”. (Apelação Cível nº 595018979, 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Canoas, Rel. Des. Celeste Vicente Rovani, 04-10-95) Registre-se. Intimem-se. Horizontina-RS, 29 de fevereiro de 2000. Simone Brum Pias, Juíza de Direito Substituta. 273 Processo nº 00800410522 – Indenização por Danos Materiais e Morais – Trânsito Número na Vara 23.751 Autor: Espólio de Dirceu Maldonado Santos Ré: Agratemp – Peças e Serviços Eletrodomésticos Ltda. Juiz prolator: Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa Ação de indenização. Falecimento da parte antes do ajuizamento da ação. Conseqüente extinção do mandato outorgado ao advogado que firma a inicial. Extinção do processo por inépcia da inicial. Vistos, etc. Espólio de Dirceu Maldonado Santos, representado por sua inventariante Aracy Maldonado Santos, qualificada, ajuizou ação de indenização por danos materiais e morais, pelo rito ordinário, contra Agratemp – Peças e Serviços Eletrodomésticos Ltda., com sede no Município de Gravataí, Av. Dorival Cândido Luz de Oliveira, nº 820, narrando, em síntese, que, na madrugada do dia 21-11-98, Dirceu Maldonado dos Santos estava na direção da Moto Yamaha/RD 135, placa 8866, transportando na carona sua namorada Nilva Teresinha Cabral Haas, transitando pela Rua Guilherme Shell, sentido Canoas–Porto Alegre e quando atingia o quarteirão formado pelas Ruas Nelson Paim Terra e Santa Clara teve sua frente cortada pela GM Chevy 500 L, placas ICP 0456, de propriedade da ré e conduzida por seu empregado João Gustavo Santos Pereira, ocasião em que atingiu a motocicleta, causando lesões corporais em Nilva e a morte de Dirceu. O fato ocorreu porque condutor da Chevy não teve os cuidados necessários e ingressou na via preferencial. A vítima fatal era moço e residia com a mãe, viúva, de parcos recursos, a quem amparava com seu trabalho de porteiro, onde percebia R$ 223,00. Com apoio no art. 159 do CC, inc. V do art. 5º da CF e Súmula nº 37 do STJ, pretende ver reconhecido seu direito de ser ressarcido dos danos materiais, quaisquer despesas envolvendo o acidente, perda da moto e danos morais, sucumbência e gratuidade judiciária. A inicial foi instruída com procuração e documentos (fls. 06/63). Provocada pelo despacho da fl. 64, esclareceu a representante legal que o titular da pretensão indenizatória deve ser considerado o espólio de Dirceu Maldonado Santos (fl. 66), isto em 13-10-99. Recebida a emenda, foi a representante provocada para firmar declaração de pobreza, para apreciação da assistência judiciária gratuita, em 18-10-99 (fl. 67). No dia 29-11-99, aportou aos autos o pedido nos seguintes termos: “Tendo em vista o despacho exarado nos autos, vem o requerente juntar aos autos a competente declaração de pobreza, para o fim de ser concedido o benefício da assistência judiciária gratuita em favor do espólio e da representante do mesmo, nos termos da declaração em anexo. Anexo a esta petição veio a declaração feita por Aracy 274 Maldonado dos Santos e assinada por sua filha, Rosiclei Santos Maria, cuja declaração data de 12-05-99 (fl. 70)”. Citação (fls. 75/76). Resposta: Argüiu preliminar de carência de ação por não ter o espólio legitimidade ativa para a causa, nos termos do art. 76 e parágrafo único do CC, c/c o inc. VI do art. 267 e incs. II e III do art. 295 do CPC. Em outra preliminar requereu a suspensão do processo até decisão definitiva do feito criminal instaurado contra João Gustavo, condutor da Chevy, conforme inc. IV do art. 265 do CPC. No mérito, admitiu a participação de seu funcionário e veículo de sua propriedade no evento. Aduziu que João Gustavo não agiu com imprudência, negligência e imperícia. Foi a vítima fatal a causadora do acidente, atuando com culpa exclusiva quando dirigia a moto sem sinais luminosos e em alta velocidade, retirando do condutor do veículo da ré a previsibilidade do evento, requerendo a improcedência da ação. Réplica (fls. 90/91). As partes prosseguiram debatendo e requereram prova oral (fls. 100 e 102). Audiência de instrução: foram inquiridas duas testemunhas do autor e três da ré (fls. 118/ 122), sendo que outra da ré foi inquirida na Comarca de Tramandaí (fl. 138) e outra do autor foi inquirida em Porto Alegre (fls. 148/150). Memoriais: Pelo autor, examinou a prova oral e requereu a procedência da ação (fls. 156/159). A demandada reproduziu a preliminar de carência de ação e em outra preliminar argüiu a ausência de pressupostos de constituição e desenvolvimento regular do processo, porque a inventariante do espó- SENTENÇAS lio faleceu antes do ingresso deste feito, extinguindo o mandato que fora outorgado ao bacharel que firmou a inicial, conforme art. 1.316 do CC, requerendo a extinção do feito com fundamento no art. 243 e no inc. IV do art. 267 do CPC ou a decretação da nulidade do processo a contar do falecimento da represente do espólio. No mérito, analisou a prova oral e pediu a improcedência (fls. 164/169). Dadas as circunstâncias, oportunizei nova manifestação do autor, sobrevindo o pedido de fl. 172, vazado nos seguintes termos: Tendo em vista a notícia do óbito da Sra. Aracy Maldonado Santos, então postulamos a suspensão do feito pelo prazo de 30 dias, afim de que seja oportunizada a regularização do pólo ativo, eis que doravante impulsionará o feito a sucessão da mesma. Assim, emérito julgador, nos termos da exposição supra requer que Vossa Excelência se digne em conceder prazo de 30 dias para que seja regularizado o pólo ativo, eis que a representante do espólio veio a falecer (fl. 172). Em seguida, sem que fosse apreciado referido pedido, aportou aos autos nova manifestação do mesmo causídico, requerendo a habilitação de Rosiclei Santos Maria, Ione Sirlei Maldonado Santos e Luiz Fernando Maldonado Santos, retificando-se o pólo ativo para constar a sucessão de Aracy Maldonado Santos (fl. 174), juntando procuração conjunta (fl. 175), certidão de óbito (fl. 176) e documentos de identidade (fls. 177/179). Deferido este pedido (fl. 180), a ré agravou na forma retida (fls. 182/188), sobrevindo resposta dos habilitados (fls. 193/196). Relatei. SENTENÇAS DECIDO A matéria que envolve os pressupostos processuais a legitimidade e regularidade de representação tem preferência sobre as demais que estão sendo debatidas como preliminar. Com efeito, a legitimidade da representação processual é de fundamental importância, posto que matéria de ordem pública, por isso que pode e deve ser objeto de conhecimento do Juiz em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, conforme explicitado no § 3º do art. 267 do CPC. De outro lado, operando-se vício processual insanável, é autorizado ao Juiz a declaração, não se lhe aplicando o princípio da preclusão (parágrafo único do art. 245 do CPC). Como reclamou a demandada, a outorga do mandato da fl. 06 ocorreu em 09-02-99. Depois, para demonstrar a necessidade da assistência judiciária gratuita, o advogado juntou a declaração da fl. 70, em 29-11-99, mas esta com data de 12-05-99, com a assinatura de Rosiclei filha de Aracy. Aracy, por sua vez, falecera em 24-07-99. A conseqüência do falecimento da outorgante é bem clara no art. 1.316 do CC: Cessa o mandato (inc. II) pela morte... de uma das partes. A Professora Maria Helena Diniz comenta: I – Causas extintivas do mandato. O mandato cessará pela revogação, renúncia do mandatário, morte ou interdição de uma das partes, mudança de estado, término do prazo de duração e conclusão do negócio. (in “Código Civil Anotado”, Saraiva, 1997, 3ª edição, p. 869) Em seguida, arremata: IV – Morte de qualquer dos contratantes. Por ser o 275 mandato intuito personae, cessará com o falecimento de qualquer dos contratantes. (“RT” nos 239/237, 502/66, 225/ 338 e 169/127; “RF” nos 77/509 e 134/ 442; e “AJ” nos 100/149, 96/59 e 97/71) Caio Mário da Silva Pereira assinala que um dos caracteres do mandato é ser ele intuito personae, celebrando-se especialmente em consideração ao mandatário, e traduzindo, mais que qualquer outra figura jurídica, uma expressão fiduciária, já que o seu pressuposto fundamental é a confiança que o gera. (in “Instituições de Direito Civil”, Forense, 5ª edição, 1981, p. 352) Quanto à extinção, faz o seguinte comentário: A morte de qualquer das partes faz cessar o mandato, que é contrato intuito personae. (ob. cit., p. 367) Portanto, tendo a ação sido ajuizada em 23-09-99, sendo provocado a demonstrar a necessidade para a concessão da assistência judiciária gratuita e juntada a declaração assinada pela filha de Aracy em 29-11-99 (fl. 69), sendo que a mesma Aracy falecera em 24-07-99 (fl. 176), operou-se a extinção do mandato antes mesmo do ingresso da ação. Mesmo assim, sabendo do falecimento de Aracy, o advogado, que sabendo não ser mais seu representante, prosseguiu agindo em seu nome. Não é crível sua alegação de desconhecimento do fato, vez que teve contato com uma de suas filhas, quando foi intimado para demonstrar a necessidade para a concessão dos benefícios da gratuidade. Demais disso, nos autos do inventário negativo que tramita na 1ª Vara Cível desta Comarca, em cujo processo foi expedida a certidão de nomeação de 276 inventariante, foi intimada por duas vezes para se manifestar, a fim de ultimar aquele feito, uma pela Nota de Expediente nº 176/199, de 02-06-99, e outra vez pela Nota nº 281/1999, publicada em 03-09-99. Nem neste, nem nos autos do inventário, quando o mesmo advogado tinha procuração, foi capaz de informar o falecimento da mandatária. Tanto mais grave se mostra esta circunstância que, agora, não é mais possível salvar qualquer ato do processo, vez que a instrução foi encerrada com produção de prova oral, sem que este juízo e a parte contrária tivessem conhecimento desta situação, o que macula todo o feito. Ademais, não se trata aqui de suspensão do feito para regularização da representação, já que a extinção do mandato não ocorreu durante a tramitação do processo, mas antes mesmo dele ter início. Conseqüentemente, os atos processuais não podem ser objeto de convalidação. Não se trata, pois, de atos nulos, mas de atos inexistentes, diante da extinção do mandato mesmo antes do ingresso da ação. Mestre Galeno Lacerda ensina que: As condições da ação devem ser vigiadas sempre que possível, no despacho saneador, e, até antes, por ocasião do despacho liminar. No Direito brasileiro, essa investigação no saneador está condensada na fórmula: “examinará se concorre o requisito do legítimo interesse econômico ou moral”. Na expressão “interesse legítimo” reúnem-se as três condições – para que o interesse seja “legítimo”, é curial que haja possibilidade jurídica e legitimação SENTENÇAS para a causa. (in “Despacho Saneador”, 2ª edição, 1985, saFE, p. 80) Por se tratar de princípio, e não de regra prevendo nulidade, é que o vício com que nasceu o processo é insanável, pois o due process of law sempre fez parte da estrutura da ciência do processo. Sálvio de Figueiredo Teixeira preconiza: O outro grande princípio, na teoria das nulidades, é o devido processo legal, na medida em que este, como um dos pilares da ciência processual, contempla não apenas os princípios do juiz natural (legalmente investido na função, competente e imparcial) e do contraditório, mas, também, o princípio do procedimento regular, que reside na observância das regras e dos princípios que informam e orientam o ordenamento jurídico. (in “Prazos e Nulidades em Processo Civil”, Forense, 1987, p. 49) Comentando sobre o que denominou de balizamentos do sistema brasileiro, o mesmo autor sintetiza: i) os atos inexistentes carecem de jurisdicionalidade e jamais convalescem; m) os vícios dos atos processuais subordinamse a um sistema próprio, devendo ser apreciados sob a ótica da ciência processual; e o) a teoria das nulidades, em processo civil, orienta-se sobretudo por princípios, destacando-se o do devido processo legal e o da instrumentalidade das formas e dos atos (ob. cit., p. 51). As manifestações jurisprudenciais são no mesmo sentido: “Processual. Ação rescisória. Procuração. Não se conhece de rescisória minguada do procuratório, ao qual não se atende a juntada da cópia reprográfica da procuração outorgada na ação primitiva, tanto mais que SENTENÇAS se denuncie a morte de alguns dos autores outorgantes daquele antigo mandato”. (in Superior Tribunal de Justiça, AR nº 502-AL, “DJ”, de 02-06-97, p. 23.749, 3ª Seção, Rel. Min. William Patterson, site do STJ via Internet) Em outro acórdão encontra-se: “Mandato. Morte. Extinção. A subsistência excepcional do mandato, prevista no art. 1.308 do CC, prende-se a que da delonga possam resultar prejuízos para o mandante ou seus sucessores”. (in REsp nº 41.163-SP, “DJ”, de 03-04-95, 3ª Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, site do STJ via Internet) O Egrégio Tribunal de Justiça já declarou: “Apelação cível. Reexame de pensão previdenciária. Ilegitimidade ativa. Tendo ocorrido o falecimento da parte-autora antes do ingresso da ação, resta caracterizada a inépcia da inicial, na forma do art. 267, I, c/c o art. 295, I, parágrafo único, III, todos do CPC. Com a morte cessa a capacidade civil extinguindo-se, por conseqüência, o mandato outorgado anteriormente. Litigância de má-fé. Possível o enquadramento do procurador como litigante de má-fé, quando demonstrada prática de ato sem manifestação de vontade da parte que alega representar. Segunda apelação provida, prejudicada a primeira apelação e o reexame”. (AC nº 70000936377, 1ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Rel. Des. Henrique Osvaldo Poeta Roenick, julgado em 21-06-00, site do TJRS via Internet) Finalmente, não há como negar que o subscritor da petição inicial tinha conhecimento da morte de sua mandatária, ainda antes do ingresso desta 277 ação. Com efeito, como dito no relatório, ele foi intimado para juntar declaração da autora para demonstrar que era necessitada para fins da assistência judiciária gratuita, ocasião em que se limitou a juntar declaração firmada por sua filha Rosiclei que, embora acenado discretamente pelo referido causídico, não tinha autorização para assinar em nome da mãe, conforme se vê claramente do documento da fl. 71, cuja finalidade era outra. Circunstância que não deixa dúvida de que tinha ele ciência deste falecimento é a de que Rosiclei foi intimada por mandado, em 08-06-00, para a audiência de instrução e julgamento designada para 12-06-00, conforme se vê da fl. 126, na mesma Rua Araçá nº 1640, Bairro Harmonia, nesta cidade. Portanto, foi intimada no mesmo endereço de Aracy. Não houve mudança de endereço. Logo, não é crível que o causídico, tendo que acompanhar o processo e juntar elementos determinados pelo Juízo, não tenha mais entrado em contato com Aracy ou com sua filha Rosiclei por longo período de quase dois anos, a não ser que se tenha que admitir que é normal o advogado só entrar em contato pessoal com sua constituinte no dia da audiência, sem que haja necessidade de preparação para enfrentamento da solenidade com as vicissitudes que lhe são próprias. Demais disso, tendo sido intimada para a audiência, esta não compareceu, mesmo tendo declarado ao Oficial do feito que agora era ela a inventariante, momento em que aceitou a contrafé e deu a nota de ciente. 278 Por que o advogado não informou, no dia da audiência, o falecimento de sua constituinte? Por que Rosiclei não compareceu na audiência? Estas providências certamente teriam abreviado o processo. Forçoso é aceitar a idéia de que não lhes interessava o encerramento do feito sem o julgamento do mérito, pretendendo tirar proveito do que não lhes pertencia de direito e de fato, solapando à ré até mesmo o direito de impugnar a legitimidade da sucessão que acabou por se habilitar somente depois da instrução realizada. Mesmo após a certidão do Oficial, já na fase dos memoriais, o ex-representante voltou a quedar-se em silêncio tumular sobre o falecimento de sua ex-constituinte, como se pode ver às fls. 156/159. O mais curioso ainda é que cotejou as declarações de todas as testemunhas inquiridas, menos as declarações de Nilva Teresinha Cabral Haas, a namorada de Dirceu, que estava na carona da moto e sobreviveu ao infausto acontecimento e que mereceu especial citação inclusive na petição inicial. Este silêncio respeitoso não foi por acaso. É que somente esta testemunha declarou em juízo que Aracy havia falecido. Sempre com maestria, Galeno Lacerda imortalizou ensinamentos no “despacho saneador”: A prova de que não basta o interesse econômico, temo-la no processo simulado e fraudulento. Aqui, abre-se um campo fecundo à atividade saneadora do Juiz, atividade que assume feição de autodefesa, pois que é ele o sujeito passivo imediato da SENTENÇAS fraude processual. Defendendo-se, desforra a ordem jurídica da mais grave das afrontas, aquela em que a malícia se abisma em perverter o instrumento de realização do direito e da justiça, em veículo de injustiça e de má-fé. (ob. cit., p. 93) Não tenho dúvida, portanto, em afirmar que houve má-fé desde a propositura da ação, envolvendo especialmente o advogado e Rosiclei que veio a se habilitar somente após a instrução (fls. 174/179), procedendo de modo temerário (inc. V do art. 17 do CPC), o primeiro ao ingressar com a ação, e a segunda ao deixar de provocar o juízo acerca do falecimento de Aracy Maldonado Santos. Face ao exposto: 1) julgo extinto o feito por inépcia da inicial com apoio no inc. I do art. 267, c/c o inc. I do art. 295 e inc. III do parágrafo único do mesmo artigo do CPC; 2) condeno o autor ao pagamento das custas processuais e honorários de advogado que estimo em 04 (quatro) URHs, tendo em vista o zelo do profissional e o tempo despendido para o seu serviço (§ 3º do art. 20 do CPC); 3) revogo a gratuidade concedida à fl. 72; e 4) condeno o advogado subscritor da inicial e Rosiclei, solidariamente, ao pagamento de 02 (dois) salários mínimos como indenização em favor da ré (§ 1º do art. 18 c/c o § 4º do art. 20 do CPC). Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Canoas, 17 de maio de 2001. Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa, Juiz-Pretor. 279 Processo nº 08195021483 – Ação Pauliana Número na Vara 10.647 5ª Vara Cível de Canoas Autora: Dick Empreendimentos Imobiliários Ltda. Réus: Ericka Helena Kindler Kirsch, Hugo Leonardo Kirsch, Eva Teresinha Pires Kirsch, Evaldo Albino Kirsch, Hideko Shimabukuro Kirsch, Luiz Carlos Kirsch, F. O. K., M. O. K., R. K. K. J., R. K. K. e R. S. K. Juiz prolator: Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa Ação pauliana. Condições da ação. Eventus damni e consilium fraudis transmissão gratuita de bens pelo devedor, quando já se encontrava em estado de insolvência. Art. 106 do CC, ônus da prova da solubilidade cabe ao devedor. Anterioridade do crédito ao ato gratuito, caracterizada a insolvência, a anulação da doação independe de má--fé. Procedência da ação. Vistos, etc. Dick Empreendimentos Imobiliários Ltda., antiga Casa Dick Comércio de Tecidos Ltda., por seu representante legal, através de seu procurador, ajuizou ação pauliana contra Ericka (ou Erica) Helena Kindler Kirsch, viúva, do lar, CIC nº 186002470-04, Rua Pedro Weingartner, nº 87, nesta cidade; Hugo Leonardo Kirsch e sua mulher, Eva Teresinha Pires Kirsch, casados, CIC nº 155437309-34, Rua Itacolomi, nº 10.289, Curitiba-PR, Evaldo Albino Kirsch e sua mulher, Hideko Shimabukuro Kirsch, casados, CIC nº 164022350-91, Rua Cel. Airton Plaisant, nº 1.599, Curitiba-PR, Luiz Carlos Kirsch, divorciado, CIC nº 166850750-15, Rua Pedro Weigartner, nº 87, ap. 02, F. O. K. e M. O. K., menores impúberes, representados por seu pai Vili Alfredo Kirsch, Rua P. W., nesta cidade, R. K. K. J., R. K. K. e R. S. K., menores impúberes, representados por seu pai Ricardo Kindler Kirsch, Rua P. W., nesta cidade, narrando que locou para Restaurante Calçadão Ltda., propriedade de Ricardo Kindler Kirsch, imóvel na Rua 15 de Janeiro, nº 501, nesta cidade, a contar de 1º-03-87, sendo afiançado por sua mãe Erika. Os locativos deixaram de ser pagos a contar de outubro de 1990, resultando na ação de despejo que foi vitoriosa em 1º e 2º graus, tornando-se a autora credora dos locativos impagos, sendo que as chaves do imóvel foram devolvidas em 23-09-93. A fiadora e principal pagadora, solidariamente responsável com a locatária, conforme Cláusula 12ª do contrato, pretendendo não honrar com o que se comprometera, doou aos filhos, noras e netos demandados o imóvel constituído de terreno e prédio de três pavimentos situado na Rua Pedro Weingartner, nº 87, com suas instalações e benfeitorias, além de sua parte ideal no imóvel constituído do terreno e prédio de madeira da Rua Pedro Weingartner, nº 81, nesta cidade, e em ambos reservando-se o direito ao usufruto, junto ao 4º Tabelionato de Porto Alegre, em 28-07-93, e registrada no Registro de 280 Imóveis de Canoas, em 06-08-93, após a constituição do débito e antes da entrega das chaves do imóvel locado. Com isto, acrescenta, a fiadora agiu de forma fraudulenta contra seu credor, ficando insolvente e frustrando a expectativa de receber o crédito decorrente do aluguel referido, que é anterior à data do ato impugnado, incidindo os arts. 106 e 109, e inc. II do 147 do CC. Requereu a procedência da ação para: (1) anular as doações feitas; (2) cancelar as escrituras e seus registros; e (3) sucumbência. A inicial foi instruída com procuração e documentos (fls. 09/51). Citações: fls. 59, 61, 63, 64, 65 e 75. Resposta: fls. 78/86. Admitiram a doação dos imóveis caracterizados na inicial, sendo Ericka doadora com idade avançada, com problemas de saúde, considerando ser o momento para partilhar alguns bens em vida, motivos que a levaram a tomar tal atitude, mas que não caracteriza a fraude contra credores, já que as doações ocorreram antes de sua citação nos autos da ação de execução, pois esta foi distribuída em 15-05-95 e aquelas ocorreram em 28-07-93, enquanto a execução contratual foi distribuída em 04-05-94. Só tomou conhecimento do débito em 19-06-95, quando citada para a execução contratual. De outro lado, não participou da ação de despejo, nem dela foi intimada, não havendo má-fé de sua parte, nem se tornou insolvente, sendo proprietária de dois terrenos, sendo um terreno na praia de Imbé e um terreno em Torres, requerendo a improcedência da ação. Acompanharam procurações e documentos das fls. 87/115. SENTENÇAS Réplica: fls. 116/123, com documentos (fls. 124/127), franqueados aos demandados que não se manifestaram (certidão da fl. 128v.). Posteriormente, os demandados juntaram mais dois instrumentos de mandato (fls. 139/140). As partes prosseguiram se manifestando e admitiram ser a matéria de Direito, comportando julgamento antecipado. Oficiou o Ministério Público (fls. 146/147). Após novas manifestações, foram novamente os autos com vista ao Ministério Público, cuja promoção foi atendida, provocando a autora sobre o prosseguimento (fl. 159v.), quando esta reiterou o pedido de julgamento antecipado (fl. 163). Os autos voltaram ao Ministério Público suplicando exarar seu “parecer final”, já que em mira o julgamento antecipado, momento em que o Órgão insistiu no sentido de deferir às partes a apresentação de memoriais (fl. 164). Vieram conclusos. Efetivamente, a matéria é de Direito e por isso não há razão para dilação probatória. O feito já tem penosa tramitação de cinco anos, não sendo compreensível a abertura de novos prazos, o que só atrasaria ainda mais a sua solução, razões pelas quais entendo de exarar de logo a sentença (inc. I do art. 330 do CPC). Relatei. DECIDO Rejeito a preliminar argüida pela autora em sede de réplica, nos exatos termos do manifestado pelo ínclito Promotor de Justiça à fl. 147, eis que na contestação apenas houve equívoco, quando a resposta foi em nome do representante legal dos menores, uma vez que deveria ser em nome das partes pelos pais representados. O defeito, SENTENÇAS entretanto, não chega a macular a resposta e muito menos leva à conseqüência acenada pela autora. Portanto, tenho como respondida a ação na forma regulamentar. No mérito, observa-se, preliminarmente, que são duas as condições da ação revocatória: 1) eventus damni; e 2) consilium fraudis. Os demandados admitiram lisamente que houve as doações alegadas na inicial, o que de resto vêm demonstradas pelas respectivas anotações nas matrículas existentes no Registro Geral do Registro de Imóveis desta cidade (fls. 39/42). De sua vez, a autora locou o imóvel localizado na Rua 15 de Janeiro, nº 501, nesta cidade, à Restaurante Calçadão Ltda., sendo este representado pelo sócio e demandado Ricardo Kindler Kirsch, pai dos demandados R. K. K. J., R. K. K. e R. S. K., cujo contrato, destinado à atividade própria do Restaurante, passou a vigorar em 1º-03-87 pelo prazo de um ano (fls. 31/32). A demandada Ericka assinou na qualidade de fiadora, principal pagadora e solidariamente responsável com o locatário pelas obrigações da avença até a desocupação do imóvel, conforme se vê da Cláusula 12ª (fl. 32). A sentença de 09-12-91 (fls. 33/34) e o acórdão de 18-03-93 (fls. 35/37) dão conta de que o locatário deixou de pagar os alugueres desde o mês de outubro de 1990, sendo que a entrega das chaves ocorreu em 23-10-93, conforme termo de entrega em cartório (fl. 38), documentos estes que não foram impugnados. Observo, desde logo, que os demandados R., R., R., Luis Carlos, F., M. 281 e a fiadora Ericka residem no mesmo endereço, conforme se vê do mandado da fl. 60 e contrato de locação em que a co-ré E. prestou fiança, onde declarou o seu endereço (fl. 32). A resposta dos demandados centra-se em que a doadora e fiadora E. não agiu com intenção de fraudar, pois não sabia da existência da ação de despejo, da execução e da execução contratual, sendo que para esta última só foi citada posteriormente ao ato das doações, e além disto não ficou insolvente, restando-lhe dois terrenos. Entretanto, sua linha de conduta processual está equivocada, pois confunde “fraude contra credores e fraude à execução”, situações que são inconfundíveis, até mesmo pela localização legal onde são tratadas. A fraude contra credores vem prevista na Seção V do Capítulo II do Título I do Livro III do Código Civil, enquanto que a fraude à execução vem dimensionada no Capítulo IV do Título I do Livro II do Código de Processo Civil. Os pressupostos de uma e de outra são diversos. A Professora Maria Helena Diniz faz esta distinção: Ter-se-á fraude contra credores quando a alienação de bens lese os credores. Caracterizar-se-á a fraude à execução quando se der a alienação de bens do devedor, já comprometidos por obrigação sua, desde que esteja em curso alguma ação movida contra ele e desde que a execução recaia futuramente sobre esses bens. Os atos praticados em fraude contra credores, por serem anuláveis, requerem uma ação para o seu reconhecimento. Antes dela não poderão os bens ser objeto de penhora, pois, enquanto não for anulado o ato fraudulento, prevalecerá a alienação... Na 282 fraude de execução causa-se dano ao credor e atenta-se contra o poder jurisdicional, por subtraírem da penhora bens que garantem as obrigações. Por tal razão o ato praticado será tido como ineficaz, não produzindo qualquer efeito relativamente ao credor; logo, o bem alienado sujeitar-se-á à execução. (in “Código Civil Anotado”, 3ª edição, 1997, Saraiva, pp. 127/127) O fato de ter feito as doações antes de ser citada para a execução contratual, portanto, é que legitima o exercício da ação pauliana, nos termos do art. 106 do CC, verbis: “Os atos de transmissão gratuita de bens, ou remissão de dívida, quando os pratique o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, poderão ser anulados pelos credores quirografários como lesivos dos seus direitos”. (art. 109) De sua vez, o art. 109 diz: “A ação, nos casos dos arts. 106/107, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé”. E assim mesmo é que tem entendido o Egrégio Superior Tribunal de Justiça: “Direito Civil e Processual Civil. Embargos de terceiro. Suposta fraude de execução. Requisito da citação válida. Fraude contra credores. Enunciado nº 195 da Súmula do STJ. Embargos por promissária-compradora com título registrado. Validade. Verbete nº 84 da Súmula do STJ. Prequestionamento. Inocorrência. Verbetes n os 282 da Súmula do STF e 5º e 7º da Súmula do STJ. Dissídio. Dessemelhança fática. Recurso desacolhido. SENTENÇAS “I – A existência de um processo de execução, com citação válida, pressuposto para se reconhecer a fraude de execução, distinta da regulada na lei civil e nominada como fraude contra credores. II – O promissário-comprador que, em caráter irrevogável e irretratável, recebeu o bem por meio de escritura pública e cuidou de registrá-lo na matrícula do imóvel se equipara ao proprietário para efeito de defesa de seu direito, facultando-se-lhe manejar embargos de terceiro. Ademais, ainda que se tratasse de contrato de compromisso de compra e venda não-registrado, admissível seria a utilização dos embargos de terceiro, nos termos da jurisprudência iterativa deste Tribunal, sedimentada pelo Enunciado nº 84 de sua Súmula. III – A fraude contra credores não pode ser reconhecida em embargos de terceiro, demandando ação própria”. (Enunciado nº 195 da Súmula do STJ)” (in REsp nº 109.417-SP, “DJ”, de 26-10-98, p. 121, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, site do STJ via Internet) A ré Ericka, doadora e fiadora, nega que tenha ficado em insolvência, alegando que possui dois imóveis. Entretanto, os imóveis referidos, como já constou no início, trata-se de dois terrenos, sendo um na Praia do Imbé e outro na Praia de Torres. Não trouxe sequer a estimativa dos valores destes bens. Sabe-se, entretanto, que terrenos de praia não têm valor expressivo. A prova pertence a Ericka, indubitavelmente, como se há de entender da redação do inc. II do art. 333 do CPC. Os Tribunais Superiores têm manejado com o mesmo padrão: “Processual SENTENÇAS civil. Fraude de execução. Insolvência. Ônus da prova. Na fraude de execução, não é do credor o ônus da prova do fato negativo da insolvência, em face da alienação de bens após o ajuizamento da demanda. O encargo da prova de solvabilidade é do demandado”. (in REsp nº 13.988-ES, “DJ”, de 28-06-93, p. 12.886, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Cláudio Santos, site do STJ via Internet) Em outra decisão, encontra-se: “Fraude contra credores. Ação pauliana. Ônus da prova. Incumbe ao devedor provar a própria solvência. Tema ademais que, dando motivo, na origem, para a admissão do recurso, não pode ser examinado, neste caso, pelo Superior Tribunal de Justiça, porque a espécie teve solução à luz do conjunto fático, simplesmente”. (in REsp nº 31.366-SP, “DJ”, de 09-08-93, p. 15.229, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, Rel. Min. Nilson Naves, site do STJ via Internet) Em que pese isto, a dívida foi estimada em R$ 152.025,45, valor expressivo e que, notoriamente, ultrapassa com folga os valores agregados dos dois terrenos constituídos de lotes de pequena metragem, como se pode observar dos documentos das fls. 105 e 106. Finalmente, a informação da inicial, não-negada pelos demandados, é de que as doações dos imóveis foram em favor dos filhos, noras e netos de Ericka, e de forma gratuita. Assim sendo, todas estas circunstâncias apontam na direção alegada na inicial, isto é, de que E. se desfez dos imóveis para fugir de sua obrigação de pagar o débito solidário. E a afirmação tem inteira pertinência, eis que os 283 imóveis atingidos pela doação são os principais imóveis de seu patrimônio, sendo um deles constituído de um prédio de apartamentos (fls. 39/41), localizado na Rua Pedro Weingartener, nº 87, servindo de residências tanto para Ericka como para seus filhos, noras e netos e o outro imóvel localizado na mesma rua, e ambos localizados em zona urbana e nobre desta cidade. Conseqüentemente, o argumento da resposta, segundo o qual Ericka, ao doar seus imóveis mais valorizados, não tinha conhecimento da dívida, cai por terra, sendo inadmissível que não tivesse conhecimento quando tudo ficou em família. “Serão suscetíveis de fraude os atos jurídicos a título gratuito (doação, dote) ou remissão de dívida (CC, art. 1.053), quando os pratique independente de má-fé, o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência”. (“RT” nos 568/43, 555/172, 434/143 e 526/176) (in “Código Civil Anotado”, Maria Helena Diniz, ob. cit., p. 126) De seu turno, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado vem sustentando a mesma linha: “Obrigações. Fraude contra credores. Ação revocatória ou pauliana. Presentes os três pressupostos – crédito anterior, prejuízo ocasionado e consilium fraudis, impõe-se a procedência da ação, basta a scientia fraudis dessumível, no caso, por ser o negócio entre irmãos. Não se exige crédito certo, senão que certa a causa geradora do direito. Reconhecimento do débito por parte do demandado. Ação julgada procedente com a anulação das escrituras e insubsistência dos registros”. (in “RJTJRS” nº 195/311) 284 Estão presentes, assim, (1) o eventus damni e (2) o consiliun fraudis. A obrigação e o crédito efetivamente são anteriores aos atos gratuitos. Face ao exposto, julgo procedente a ação para a finalidade de: 1) anular as doações feitas por Ericka, fls. 145 a 147, de 28-07-93 do 4º Tabelionato de P. A.; 2) tornar insubsistentes os Registros do Registro de Imóveis de C.; e 3) conde- SENTENÇAS nar os demandados ao pagamento das custas processuais e honorários de advogado que arbitro em 05 (cinco) URHs, tendo em vista o trabalho do profissional e o tempo despendido para o seu serviço (§ 4º do art. 20 do CPC). Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Canoas, 15 de maio de 2000. Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa, Juiz-Pretor. 285 Processo Cível nº 01197980517-2212 – Ação Ordinária – Reconvenção Autores: Sandra Mara Coelho Koch e Arthur Koch Rés: Sucessão de Luiz Gonzaga do Prado e Noeli Costa do Prado Juiz prolator: Tasso Caubi Soares Delabary Ação para outorga de escritura definitiva com base em promessa de compra e venda, irretratável e irrevogável. Ilegitimidade passiva afastada. Reconvenção para rescisão contratual e reintegração de posse julgada improcedente. Requisitos da outorga definitiva demonstrados. Procedência da ação. RELATÓRIO Vistos, etc. Sandra Mara Coelho Koch e seu marido, Artur Koch, qualificados na inicial, ingressaram com a presente ação ordinária, com pedido de antecipação de tutela, contra Noeli Costa do Prado, também qualificada nos autos, por si e em representação à sucessão de Luiz Gonzaga do Prado, aduzindo, em síntese, que através de contrato particular de promessa de compra e venda de imóvel, adquiriram da requerida e de seu falecido esposo o apartamento nº 503, do Edifício Pampa, localizado na Rua Dr. Flores, 307, nesta capital, matriculado no Registro de Imóveis da 1ª Zona sob nº 40.849, tendo cumprido as duas obrigações principais assumidas no referido contrato, cuja cópia anexam com a inicial, ou seja, o pagamento integral do preço exigido e as prestações decorrentes do financiamento imobiliário, tendo sido imitidos na posse do referido imóvel. Com o falecimento do marido da requerida, titular da sucessão demandada, o seguro de risco contra morte ou invalidez permanente quitou o valor do saldo devedor em favor do agente financeiro. O contrato foi celebrado mediante cláusula de irrevogável e irretratável, e, como no processo de inventário, a inventariante, ora requerida, se opôs à regularização da propriedade do imóvel; resta aos requerentes a presente ação para que os demandados cumpram com o contrato, outorgando a escritura definitiva, ou, por sentença, seja determinada a transferência do imóvel para seus nomes, além de condenar os requeridos ao pagamento de indenização por perdas e danos, correspondente ao valor da diferença entre o montante representativo da propriedade plena do imóvel e o de sua posse, proporcionalmente, entre a data da citação e a data da satisfação da pretensão. Pedem a tutela antecipada. Transcrevem jurisprudência. Anexam documentos, dentre os quais o contrato particular de promessa de compra e venda de imóvel (fls. 14/16) e os recibos de pagamento do preço avençado, além da quitação das prestações do financiamento habitacional. A apreciação da antecipação da cautela foi diferida para após a formação do contraditório. Citados os requeridos, no prazo legal, apresentaram contestação e reconvenção. Em resposta, rechaçam o pedido de liminar, uma vez os autores não possuem 286 direito subjetivo líquido e certo capaz de permitir a concessão da liminar pleiteada. No mérito, dizem que o documento celebrado entre as partes é pré-contrato de natureza aleatória, previsto nos arts. 1.118 e 1.121 do CC, dependendo de contrato de compra e venda a ser assinado futuramente, para efeito de transferência do domínio do imóvel. Assim, as partes contrataram uma obrigação de fazer, consistente na elaboração definitiva da compra e venda, que não se concretizou até a morte do promitente e mutuário-varão, tendo o contrato perdido o objeto, pois o saldo devedor que seria assumido pelos promissários compradores desapareceu, quitado que foi pelo seguro de vida. Afirmam que o seguro de vida é pessoal e constituído em favor dos sucessores da pessoa segurada, e não em favor do agente financeiro, frente ao qual é mera garantia para quitação do débito. Negam direito à indenização postulada pelos autores, porque de acordo com o art. 865 do CC, se a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes. Com a quitação do saldo devedor do financiamento, pelo seguro de vida, contra a morte do mutuário-varão, o contrato preliminar, objeto da lide, perdeu o seu objeto e, face à ausência da contratação em definitivo da compra-evenda do imóvel, o pedido dos autores tornou-se juridicamente inviável. Na hipótese de se considerar a promessa de compra e venda como definitiva, aduzem que não estavam obrigados a cumprir a sua parte enquanto os reque- SENTENÇAS rentes não cumprem a sua, ou seja, a transferência do saldo devedor, que deixou de existir pela quitação através do seguro de vida. Pedem a improcedência da ação. Em contra-ação (reconvenção), alegam que firmado o contrato de promessa de compra e venda entre as partes, tendo os autores-reconvindos utilizado o nome do de cujus durante dez anos, sem transferir o contrato para seus nomes; com a morte do mutuário-varão e a quitação do imóvel, o contrato perdeu o objeto, tornando-se inexeqüível. A propriedade imobiliária transmitiu-se imediatamente aos sucessores do falecido. Como os autores-reconvindos continuaram ocupando o imóvel, é justo que sejam eles compelidos a pagarem os locativos. Pedem a procedência da reconvenção para que os reconvindos sejam condenados a devolverem o imóvel e a pagarem um valor a título de locação desde o sinistro, que determinou a quitação do contrato de mútuo hipotecário. Os autores replicaram a contestação e contestaram a reconvenção. Nesta, aduzem que as rés-reconvintes pretendem a reintegração de posse do imóvel sem promoverem a rescisão do contrato e sequer aventam a hipótese de devolver o valor recebido, devidamente atualizado, e demais gastos efetuados com o imóvel, assim como imposto e outros. Opõem a carência do pedido reconvencional de reintegração por ausência dos pressupostos essenciais para a formulação do pedido: falta de prévia notificação, incomprovação do esbulho ou turbação e omissão quanto à devolução do valor recebido, merecendo a SENTENÇAS reconvenção extinção nos termos do art. 267, IV e VI, do CPC. No mérito, dizem que sua posse é garantia por contrato regular, em pleno vigor há mais de dez anos, tendo cumprido sempre todas as obrigações previstas na avença. O pagamento de indenização pressupõe a existência de algum dano, o que não foi demonstrado pelos reconvintes. Não estão demonstrados nenhum dos requisitos do art. 927 do CPC a ensejar o pedido reintegratório. Concluem com o pedido de extinção da reconvenção, pelo acolhimento das preliminares, ou, no mérito, a sua improcedência. Houve manifestação das rés-reconvintes que insistem na tese da natureza aleatória do contrato e no seu descumprimento em vista dos autores não terem transferido a dívida hipotecária para seus nomes. Alegam a ilegitimidade passiva ad causam, porque os autores adquiriram o imóvel de José Carlos Duarte da Costa, a quem o falecido Luiz Gonzaga e a ré Noeli haviam vendido o imóvel, cujos direitos foram cedidos aos autores. Sustentam a possibilidade de alegarem a ilegitimidade a qualquer tempo. Anexam cópia de termo de declarações, através do qual José Carlos manifesta anuência com os termos da promessa de compra e venda e pedem a intimação do mesmo. Nova manifestação dos autores, onde aduzem que a cada manifestação das rés-reconvintes a defesa fica mais confusa, chegando o absurdo de alegarem ilegitimidade passiva, apesar do instrumento de promessa de compra e venda firmado pelos mesmos. Embora se dizendo ilegítimos para a ação, mantêm a reconvenção, em flagrante contradição. 287 Atribuem a conduta das rés-reconvintes a uma aventura jurídica, pedem o julgamento antecipado do processo e a condenação das demandadas como litigantes de má-fé. É o relatório. 2. FUNDAMENTAÇÃO Não obstante o pedido formulado pelas rés-reconvintes, para oitiva de testemunha, o processo comporta julgamento antecipado, nos termos do art. 330, eis que versa matéria de fato e de direito que independe de outras provas além daquelas que já integram o feito. A serôdia alegação de ilegitimidade passiva ad causam não merece a menor consideração, porque destituída de fundamento legal. A prova documental, especialmente o contrato que sustenta o pedido dos autores, firmado pelo de cujus e pela requerida Noeli, contrariam a invocada ilegitimidade e colocam os demandados como partes legítimas para suportarem a ação nos termos em que proposta. A alegação é destituída de convicção, posto que, não obstante se dizerem ilegítimos para a ação, em momento algum cogitam de desistência da reconvenção. Ora, somente pode reconvir quem for parte legítima para responder, uma vez que é pressuposto para a reconvenção o liame e conexão entre a ação e a reconvenção (art. 315). 2.1. Da ação. Versa a espécie ação ordinária através da qual os autores pretendem compelir os demandados a outorgarem a escritura definitiva do imóvel prometido a venda. Através do “contrato particular de promessa de compra e venda de imóvel”, cuja cópia consta à fl. 14, o de 288 cujus Luiz Gonzaga do Prado e sua consorte, a ré Noeli Costa do Prado, prometeram vender o imóvel constituído de apartamento no quinto pavimento do edifício Pampa, com área construída de 60,20 m², localizado na Rua Dr. Flores, nesta Capital, matriculado sob nº 40.849, hipotecado à Companhia Real de Crédito Imobiliário, em virtude de contrato habitacional pelo Sistema Financeiro da Habitação, mediante as condições estabelecidas no contrato, dentre as quais o pagamento do preço de forma parcelada, prevendo a imissão dos promissários na posse do imóvel e cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade. Com a inicial, os autores comprovam o cumprimento das obrigações assumidas, especialmente o pagamento do preço, através dos recibos das fls. 17 à 19, diretamente aos promitentes, e mais o pagamento das prestações junto ao agente financeiro, durante dez anos. A imissão na posse do imóvel está provada pelos documentos das fls. 56 à 59, através dos quais se vê que o autor-varão tem licenciada atividade pela Prefeitura Municipal, no ramo de consultório médico, no endereço do imóvel, desde 1987, assim como mantém cadastro no mesmo local como usuário de energia elétrica, o que não deixa margem de dúvida de que efetivamente os promissários-compradores foram imitidos na posse do imóvel contratado. Alegam os demandados que o contrato se extinguiu pela quitação do saldo devedor, pelo seguro, em face da morte do mutuário, como que não foi cumprida a cláusula contratual que previa a transferência do saldo devedor SENTENÇAS para o nome dos promissários, não passando a avença de um pré-contrato de natureza aleatória, subordinada a evento futuro que não se concretizou. Não obstante a transcrição de doutrina de Orlando Gomes para justificar suas alegações, face às peculiaridades do pacto firmado entre as partes, é o mesmo autor quem ensina, verbis: “A promessa de venda como contrato preliminar propriamente dito desapareceu praticamente do comércio jurídico, devido à superioridade manifesta de outro negócio jurídico que continua designado pelo mesmo nome, mas é nitidamente distinto, bem como em razão da tendência para a ele assimilar toda promessa que não contenha o pacto de arras penitenciais. “Poder-se-ia denominar esse negócio jurídico distinto pela expressão compromisso de venda, a fim de evitar a confusão reinante na doutrina, com repercussão na jurisprudência. Costuma-se chamá-lo promessa irrevogável de venda (grifei), valendo a qualificação como nota distintiva, que não conduz à sua verdadeira natureza jurídica. “Trata-se, com efeito, de um contrato que, bem analisado, não encerra promessa recíproca de contratar, mas, apenas, a obrigação de, preenchidas certas condições ou chegada a oportunidade, praticarem o ato necessário à efetivação do intento que uniu suas vontades. “Concluído o compromisso, não pode qualquer das partes arrepender-se. Ele é irretratável (grifei). Levando-o ao Registro de Imóveis, impede-se que o bem seja alienado a terceiro. Imite-se na posse do imóvel e se comporta como SENTENÇAS se fora seu dono. Preenchidas as condições que o habilitam a pedir o título translativo de propriedade, obtém-se, através de sentença, se a outra parte não quiser ou não puder firmá-lo. Admite-se a execução coativa sob forma específica, ocorrendo, nesse caso, a adjudicação compulsória”. Ora, conforme já ficou visto, o contrato firmado entre as partes foi em caráter irrevogável e irretratável com a imissão dos promissários na posse do imóvel. Assim, uma vez cumpridas as obrigações contratuais quanto ao pagamento do preço, o que também está comprovado nos autos, e nada nesse sentido foi alegado em contrário pelos demandados durante a instrução, foram adimplidas todas as obrigações assumidas, tornando o negócio definitivo. Portanto, desfeita a confusão quanto à natureza do contrato, através da própria lição de Orlando Gomes, eis que na verdade não se trata de contrato preliminar, mas promessa irretratável de venda, e muito menos de contrato aleatório, que é aquele cuja prestação a que se compromete uma das partes depende de evento futuro e incerto (art. 1.118 do CC), o que não é o caso sob exame, onde o contrato é sinalagmático-comutativo, isto é, obriga ambas as partes na mesma proporção. O fato de prever cláusula de transferência do saldo devedor para o nome dos compromissários (item 3, letra b) pode significar condição, nunca a álea, que deriva do latim, cujo sentido é sorte, acaso, etc. As prestações e contraprestações a que se obrigaram as partes eram todas certas, ou seja, tratando-se de compra e 289 venda, os promitentes comprometeram-se a dar o bem, enquanto os promissários a pagar o preço, o que não depende de nenhum evento futuro, eis que as prestações desde sempre foram conhecidas. Desta forma, não há que se falar em extinção do contrato por perda do objeto, face à quitação do saldo devedor, pois pelas condições do contrato o que as partes celebraram foi a compra-e-venda do bem comprometido, que por questão de conveniência ou oportunidade não chegou a ser formalizada a escritura pública, que é da substância do ato, o que não significa que, em face disso, pode a parte-devedora do bem deixar de concretizar o negócio, uma vez cumprida pela outra parte todas as condições estabelecidas, o que, lhe confere direito à adjudicação compulsória, para transcrever o imóvel em seu nome. A cláusula em caráter irrevogável e irretratável obriga os contratantes e seus sucessores, nos termos do art. 928 do CC, consoante se observa das jurisprudências colacionadas com a inicial, cujos ven. arrestos estão reproduzidos nos autos e, ao contrário do que dizem os demandados, reporta situação semelhante a questão debatida, aos quais se acrescenta mais os seguintes julgados, que tratam matéria da mesma espécie: “Compromisso de compra e venda. Imóvel. Outorga de escritura definitiva. Obrigação de fazer. Quitação total do preço perante o agente financeiro, com a morte do promitente-vendedor. Sub-rogação dos herdeiros nos direitos da financeira. Inadmissibilidade, em face do art. 928 do CC e de disposição clausular. Irrelevância de que o financiamento não 290 tenha sido transferido para o nome do compromissário-comprador”. (TJSP, AC nº 159.133-2, 16ª Câmara Cível, Rel. Des. Bueno Magano, julgada em 19-09-90) (“RJTJESP” nº 126/64) “Compromisso de compra e venda. Cessão de direito sobre imóvel financiado. Falecimento do promitente-vendedor antes da outorga da escritura definitiva. Obrigação que deve ser cumprida pelo espólio – irrelevância do fato de ter sido extinto o contrato de mútuo e quitado o débito pelo falecimento do mutuário. Inexistência de sub-rogação nos direito do agente financeiro pelos herdeiros. Se o promitente-vendedor e cedente de todos os direitos referentes a imóvel financiado vem a falecer antes de a escritura definitiva vir a ser outorgada em face da financeira, esta obrigação deve ser cumprida pelo espólio, pela viúva-meeira e pelos herdeiros (grifei). Não constitui embaraço ao cumprimento da obrigação o fato de ter sido quitado o crédito da financeira e extinto o contrato de mútuo pelo falecimento do cedente, pois seu espólio não se sub-roga nos direito do agente financeiro que recebeu o saldo restante da seguradora, não podendo exigir do cessionário o pagamento desse saldo, nem rescisão do contrato de cessão”. (AC nº 129.533-2, 16ª Câmara Cível, TJSP, Rel. Des. Bueno Magano, “RT” nº 630/113) Os autores além de cumprirem com as obrigações diretamente com os promitentes-vendedores, igualmente cumpriram, durante mais de dez anos, com as obrigações perante o agente financeiro, pagando as prestações do financiamento habitacional, em cujo valor está embutido o preço do seguro SENTENÇAS que permitiu a quitação do saldo devedor. Assim, a extinção do contrato pela quitação do saldo somente foi possível em virtude do cumprimento regular da obrigação também perante a seguradora. Em que pese o seguro estar em nome do varão-promitente, de há muito o contrato de fato já não mais lhe pertencia, eis que cedido aos autores. Desta forma, não havendo sub-rogação dos herdeiros no direito da financeira, conforme lição inserta nos arrestos transcritos, não podem os requeridos invocar direito próprio para deixar de cumprir o contrato. Os requeridos foram solicitados a cumprirem a obrigação, voluntariamente, inclusive através de pedido formulado nos autos do inventário, onde o imóvel sequer foi arrolado, tal a consciência de que o imóvel não mais integrava o espólio, porém se negaram a fazê-lo. Natural que sendo os autores compelidos a ingressarem judicialmente para o cumprimento da obrigação, a recusa vem em prejuízo dos autores que não podem dispor plenamente dos direitos de proprietários, havendo, sem dúvida, um diferencial na qualificação do título entre a posse a título de contrato particular e o domínio pleno através da competente escritura levada a registro no Álbum Imobiliário. Este referencial representa uma perda ou prejuízo aos autores, que estão impedidos do exercício pleno sobre o imóvel por obra dos requeridos que se negam a regularizar o direito. Este diferencial estimo em um terço do valor do imóvel, pois inegável que a mera posse a título particular não tem o mesmo valor que o domínio pleno, que está SENTENÇAS sendo sonegado aos autores pelos requeridos. 2.2. Da reconvenção. Em reconvenção, postulam os reconvintes a rescisão do contrato e a reintegração na posse do imóvel objeto de contrato particular de compra e venda. Evidente que para que haja a rescisão do contrato necessário o descumprimento das obrigações assumidas, o que, conforme ficou assentado durante o exame da ação, não pode ser atribuído aos autores-reconvindos, que cumpriram regiamente com as obrigações contratadas, não só diretamente com os promitentes, pelo pagamento do preço ajustado, como com o agente financeiro, através da quitação das prestações durante dez anos. O fundamento do pedido de rescisão, falta de transferência do saldo devedor para o nome dos promissários, não pode constituir motivo para a rescisão do contrato, uma vez cumpriram eles com todas as obrigações contratuais. Aliás, a transferência estava vinculada ao pagamento da parcela prevista no item b e a imissão na posse do imóvel. A parcela foi regularmente paga e independente da transferência os promitentes imitiram os promissários na posse do imóvel, conforme ficou visto durante o exame da ação, com o que, lícito admitir que a transferência do saldo devedor não se constituía em obrigação principal ou condição de validade do contrato, do contrário, certamente, os reconvintes já teriam notificado os autores reconvindos para cumprirem a obrigação, o que não ocorreu, não podendo agora, após terem estes pago 291 o financiamento habitacional durante dez anos, rescindir o contrato sem se prontificarem a restituir o valor que os autores despenderam, a pretexto de perda do objeto sem culpa dos contratantes. Não se pode desconhecer ou fechar os olhos a uma realidade do sistema financeiro habitacional, qual seja a existência dos conhecidos “contratos de gaveta”, aos quais a jurisprudência vem reconhecendo como legítimos, emprestando-lhes validade, tantas são as onerações dos contratantes para o refinanciamento do saldo devedor, que acabam os contratos permanecendo em nome do mutuário originário. Além disso, os reconvintes não buscaram colocar os reconvindos em mora, para extrair desta as conseqüências que lhes permitiria rescindir o contrato. Nesse passo, a posse dos reconvindos é legítima, uma vez transmitida pelos próprios promitentes em razão de contrato particular de promessa de venda com cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade, onde todas as obrigações foram cumpridas pelos contratantes, inexistindo causa para a rescisão. Diante disso, não procede a reconvenção. 3. DISPOSITIVO Pelo exposto, julgo procedente a ação para o fim de condenar as requeridas, sucessão de Luiz Gonzaga do Prado, representada pela inventariante Noeli do Prado, bem como esta, em nome pessoal, a outorgarem a escritura definitiva do imóvel objeto do contrato, o apartamento nº 503, do Edifício Pampa, localizado no quinto pavimento do nº 307 da Rua Dr. Flores, Centro de 292 SENTENÇAS Porto Alegre, matriculado sob nº 40.849, no prazo de trinta dias, sob pena de multa diária equivalente a um salário mínimo, bem como condenar as requeridas a indenizarem as perdas e danos aos autores, consistente no diferencial entre o valor correspondente ao domínio pleno do imóvel e a posse derivada de contrato particular, que arbitro em um terço do valor do imóvel, a ser liquidado por arbitramento, tomando por base a estimativa fiscal para lançamento do IPTU; julgo improcedente a reconvenção. Face ao julgamento de mérito, onde existente mais do que a mera verossimilhança do direito invocado, indepen- dente do trânsito em julgado, antecipo a tutela pleiteada para o fim de excluir o imóvel objeto da questão do inventário da sucessão de Luiz Gonzaga do Prado, intimando-se para tanto a inventariante. Condeno as rés-reconvintes nas custas da ação e da reconvenção e em honorários advocatícios que arbitro em 20% do valor atribuído às demandas, já consideradas ação e reconvenção, consoante o disposto no art. 20, § 3º, do CPC. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 06 de abril de 1998. Tasso Caubi Soares Delabary, Juiz de Direito. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO Processo Cível nº 01197980517/002212 – Embargos de Declaração Autores: Sandra Maria Coelho Koch e Arthur Koch Rés: Noeli Costa do Prado e Sucessão de Luiz Gonzaga do Prado Juiz prolator: Tasso Caubi Soares Delabary RELATÓRIO Vistos, etc. Os autores, ora embargantes, face à sentença de folhas, que julgou procedente a ação e improcedente a reconvenção, dispondo quanto à ação o seguinte: “Julgo procedente a ação para o fim de condenar as requeridas, sucessão de Luiz Gonzaga do Prado, representada pela inventariante Noeli do Prado, bem como esta, em nome pessoal, a outorgarem a escritura definitiva do imóvel objeto do contrato, o apartamento nº 503 do Edifício Pampa, localizado no 5º pavimento do nº 307 da Rua Dr. Flores, Centro de Porto Alegre, matriculado sob nº 40.849, no prazo de trinta dias, sob pena de multa diária equivalente a um salário mínimo, bem como condenar as requeridas a indenizarem as perdas e danos aos autores, consistente no diferencial entre o valor correspondente ao domínio pleno do imóvel e a posse derivada de contrato particular, que arbitro em um terço do valor do imóvel, a ser liquidado por arbitramento, tomando por base a estimativa fiscal do lançamento do IPTU; julgo improcedente a reconvenção. “Face ao julgamento de mérito, onde existe mais do que mera verossimilhança do direito invocado, independente do trânsito em julgado, antecipo a tutela pleiteada para o fim de excluir o imóvel SENTENÇAS objeto da questão, do inventário da sucessão de Luiz Gonzaga do Prado, intimando-se para tanto a inventariante”; opõem os presentes embargos de declaração para suprir omissões da sentença consistente em: 1) determinar às rés-embargadas à inclusão do imóvel no inventário de Luiz Gonzaga do Prado, mencionando a obrigação de outorga de escritura pública aos demandantes; 2) atender a parte final do pedido contido no item 6.5. da inicial para que, em caso de recusa pelas rés em outorgar a escritura definitiva, que a sentença supra a vontade das partes, ordenando ao Registro de Imóveis da 1ª Zona que registre a decisão, operando a transmissão da propriedade do bem aos autores; e 3) que disponha sobre o pedido de condenação, a título de indenização, do pagamento dos honorários advocatícios contratados pelos autores-embargantes com seus patrocinadores, consoante contrato de honorários anexo aos autos. FUNDAMENTAÇÃO Conheço dos embargos posto que tempestivamente manifestados. Segundo o art. 535, inc. I, do CPC, cabem embargos de declaração quando omitido ponto a que o Juiz ou Tribunal devia pronunciar-se. Em relação ao primeiro ponto dos embargos, relativo ao deferimento da tutela antecipada asseguratória, quando foi determinada a exclusão do bem do inventário para evitar que seja partilhado aos herdeiros e acabe obstaculizando a decisão, tenho que não merece reparo, pois o pedido formulado pelos autores de suspensão do inventário acarretará embargo à conclusão do procedi- 293 mento sucessório, podendo advir prejuízo aos herdeiros e eventualmente a terceiros, relativamente a outros bens que integrem a herança, não parecendo a melhor forma de assegurar o cumprimento do julgado, não vendo onde possa a fórmula utilizada pelo juízo prejudicar direito dos autores-embargantes. Aliás, o propósito da tutela antecipatória, de garantir os efeitos do cumprimento da obrigação, está perfeitamente ressalvado pelo comando contido na sentença, sem prejuízo para o curso normal do inventário. O próprio pedido constante no item 6.2 da inicial é explícito quanto a isso, verbis: “A concessão de tutela antecipada/asseguratória com o intuito de garantir os efeitos do cumprimento da obrigação de outorgar a escritura pública definitiva aos demandantes, sustando o inventário do imóvel, objeto de ação, e a conseqüente partilha do bem ou mesmo a transmissão aos herdeiros ou a terceiros”. Sustar o inventário do imóvel é excluí-lo do rol dos bens partilháveis. Outra não poderia ser a solução, uma vez acolhido o pedido, ficou definido que o imóvel não mais pertencia à sucessão, eis que comprometido através de instrumento particular com cláusulas de irretratabilidade e irrevogabilidade, pendendo, tão-somente, a formalização da escritura para a transferência do domínio. Sendo assim, quanto ao item primeiro dos embargos, entendo inexistir omissão ou contradição a ser suprida, mantendo o comando sentencial. Relativamente ao item segundo, referente ao pedido para que a sentença substitua a vontade das partes, caso as rés se recusem a formalizar a escritura, 294 efetivamente a sentença omitiu, considerando, especialmente, que foram as rés condenadas à obrigação de fazer a escritura definitiva, para o que foi fixado prazo de trinta dias, mediante multa. Partindo do pressuposto de que não-cumprido o julgado em sua primeira parte, a sentença substituirá a vontade dos compromitentes-vendedores, constituindo-se em título hábil para operar a transferência do domínio junto ao Registro de Imóveis, com caráter de adjudicação compulsória. Já referente ao terceiro item dos embargos, relativo à condenação das rés ao pagamento dos honorários contratados com seus patrocinadores, através do contrato anexado aos autos, a título de indenização, independente da sucumbência nestes autos, tenho por improcedente, uma vez o referido contrato de honorários é omisso quanto ao valor da sucumbência, presumindo-se que compete à parte-contratante, como forma de ressarcir-se do valor despendido, com o que haveria dupla oneração às rés ao mesmo título, condenação pelos honorários contratados a título de SENTENÇAS indenização e na sucumbência, por imposição do art. 20 do CPC. DISPOSITIVO Posto isso, conheço dos embargos de declaração para suprir a omissão tão-somente do item segundo, ou seja, para determinar que não atendendo as rés a condenação de prestarem a escritura pública de transferência do imóvel litigioso no prazo fixado na sentença, independentemente da multa fixada, ficam os autores autorizados a levarem a sentença a registro no Álbum Imobiliário, ordenando ao Registrador que opere a transmissão da propriedade do imóvel litigioso aos autores, atendidos os requisitos fiscais, improcedendo quanto aos outros dois pontos embargados, ou seja, referente à tutela antecipatória, ficando mantido o comando sentencial, assim como o indeferimento de condenação, a título de indenização, pelo valor dos honorários contratados com seus patrocinadores. Intimem-se. Porto Alegre, 30 de abril de 1998. Tasso Caubi Soares Delabary, Juiz de Direito. 295 Processo nº 11.092-61/95 – Ação de Reparação de Danos Autora: I. L. F. G. Ré: E. S. B. L. Juíza prolatora: Vanise Rohrig Monte Dano moral decorrente de notícia veiculada pela rádio da cidade. Ação julgada parcialmente procedente. Vistos, etc. I. L. F. G. ingressou em juízo com ação de reparação de danos contra E. S. B. L., ambos qualificados à fl. 02, para obter reparação material e moral em conseqüência dos danos advindos da veiculação, na emissora de rádio, de entrevista que expôs sua vida íntima e que foi concedida por seu marido. Alegou que, em 10-01-94, a requerida levou ao ar entrevista concedida por seu marido J. T. G., vulgo “C.”, do qual se encontra separada de fato, na qual o mesmo assumiu o fato de ter contraído o vírus da AIDS, contaminando-a, ao mesmo tempo em que denunciava “C.” como “culpada”, alertando aos que tivessem mantido relações sexuais com a mesma para que procurassem um médico, antes de contaminarem toda a cidade. No dia seguinte, 11-01-94, na programação diurna da emissora, a entrevista foi notícia novamente, desta vez com os locutores enfatizando o nome da requerente, inclusive dizendo que a aguardavam para a edição do programa naquele dia e citando artistas portadores do vírus. Disseram que a intenção não era fazer sensacionalismo com a desgraça alheia, pois não se esperava que ele fosse dizer o nome de outras pessoas no ar, o que não é ético. Continuaram a tecer comentários, dizendo que a intenção do entrevistado era atingir a esposa, como de fato ocorreu, pois a reportagem “estourou como uma bomba” na cidade de H. Na época, a autora trabalhava como doméstica e estudava no colégio A. F. A partir do fato supranarrado, a mesma passou a ser tratada de forma diversa, com as pessoas esquivando-se de sua companhia, sendo preterida em ofertas de emprego e hostilizada pelo filho, que era discriminado na escola e pelos amigos. Os efeitos psicológicos e morais suportados e ainda sofridos pela requerente, mesmo sem ser portadora do vírus HIV, diante da irresponsabilidade com a qual agiu a emissora, ao veicular matéria que injuriou e difamou a autora e sua família, permitem que a mesma possa pleitear indenização por danos morais e materiais. Requereu a citação da emissora; indenização com base na situação econômica da ré, na função punitiva e, principalmente, em função da gravidade, da natureza e da repercussão dos fatos em sua vida. Requereu, ainda, o depoimento pessoal do representante legal da rádio, a procedência da ação e a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais e materiais, custas e honorários advocatícios, bem como o benefício da assistência judiciária gratuita (fls. 02 à 13). 296 Instruiu a inicial com os documentos das fls. 14 à 22. Foi deferida a assistência judiciária gratuita (fl. 24). A ré foi devidamente citada (fl. 26 e 26v.). Na contestação alegou, prefacialmente, cerceamento de defesa, eis que a autora não anexou fita magnética contendo a gravação do programa, impossibilitando que se comprove a autenticidade das transcrições feitas na inicial. Em sede de preliminar, alegou inépcia da inicial, pois a autora convivia com o marido, podendo a separação de fato ser um disfarce para envolver a emissora de rádio; falta de causa de pedir, eis que não trouxe aos autos nenhuma comprovação de prejuízo monetário sofrido, quem sabe tentando enriquecer com uma indenização ilícita; incapacidade de ser parte, porque a emissora apenas transmitiu a opinião de J. G., tendo alertado o mesmo de sua responsabilidade sobre o que iria relatar, a rádio só tentou alertar a sociedade para o problema da AIDS, portanto quem deveria estar no pólo passivo da ação era J. G. No mérito, disse não se ter verificado injúria e difamação, uma vez que a emissora nada falou sobre a autora, simplesmente quis avisar a população local sobre uma epidemia que poderia ocorrer; a rádio convidou a requerente para dar a sua versão dos fatos; a prova que norteia o processo, a fita magnética, foi obtida através do Judiciário, para embasar ação de separação e de busca e apreensão de menor, foi usada para fim diverso; a autora continua freqüentando seu curso e residindo na cidade, o que prova não ter sofrido os alegados prejuízos. SENTENÇAS Alegou a prescrição ou a decadência, nos termos do art. 29, §§ 2º e 3º, da Lei nº 5.250/67, e o fato de a autora ter demorado 01 ano e 04 meses para se sentir injuriada, ofendida e pleitear indenização. Requereu a citação de J. G. para compor a lide, a extinção do feito ou a improcedência da ação (fls. 27 à 31). Instruiu a contestação com o documento da fl. 32. A ré acostou instrumento de mandato à fl. 35. Na réplica, o autor disse, preliminarmente, não proceder a chamada à lide de J. G., uma vez que não estão presentes as hipóteses do capítulo VI do CPC, e a indenização pleiteada foi pelos danos causados com a divulgação do fato narrado por J. G.; a alegada inépcia da inicial não apontou a falta de nenhum requisito intrínseco ou extrínseco; a ausência da causa de pedir confundiu-se com as alegações sobre o mérito; a ilegitimidade de parte não se verifica, pois o pedido foi decorrente da divulgação e dos comentários acerca da entrevista de J. G. No mérito, disse inexistir cerceamento de defesa, pois, em momento algum, a ré impugnou o conteúdo transcrito, inclusive se valendo dele para estribar sua defesa, até porque a veiculação partiu da ré, que deve ter o original em seus arquivos; o uso de espaço na rádio pelo entrevistado não retira a responsabilidade da ré; transparece discriminação social por parte da requerida pela condição de pobreza da autora; a obrigação de indenizar decorre do fato, e não da existência de dolo; a prescrição indicada diz respeito ao direito de resposta, e não à composição dos danos (fls. 37 à 39). SENTENÇAS Foi deferido prazo para a ré regularizar sua representação processual, o que foi feito (fls. 41, 43, 44, 46 e 48). Foi designada audiência preliminar e requerida a oitiva de testemunhas pelas partes (fls. 53, 56 à 58). Em audiência, a conciliação resultou inexitosa. A requerente agravou nos autos da decisão que recebeu a contestação, entendendo que o prazo era de 05 dias em função do rito especial, a requerida diz que na citação estava consignado prazo de 15 dias, devendo este prevalecer. A magistrada entendeu que assistia razão à requerida e que o agravo era intempestivo, pois deveria ter sido interposto no prazo de 10 dias a contar do recebimento da contestação. As preliminares arroladas na contestação foram afastadas (fls. 61 e 62). A denunciação à lide não prosperou, por não terem sido observados os requisitos constantes do art. 282 do CPC, tendo sido indeferida com base no art. 295, I, do CPC (fl. 63 e 63v.). Em nova audiência, foi homologada a desistência das testemunhas não-localizadas, foram ouvidas as partes e cinco testemunhas e os debates substituídos por memoriais (fls. 65 à 68v.). Foram apresentados memoriais pela autora às fls. 70 à 75. A ré os apresentou às fls. 77 à 81, após o prazo, eis que seu procurador se encontrava com problemas de saúde, conforme atestado médico da fl. 82. Foram os autos da ação cautelar de exibição de documento, existente entre as partes, apensados a estes autos. Vieram os autos conclusos. É o relatório. DECIDO. As preliminares suscitadas pela ré, inépcia da inicial por falta de causa de pedir e ilegitimidade passiva, 297 já foram todas afastadas por ocasião da audiência preliminar, e não serão novamente analisadas. A presente ação de indenização tem por base a veiculação de entrevista em emissora de rádio local. De modo que tal fato é que enseja a reparação pleiteada pela autora. A alegação prefacial feita pela requerida de que houve cerceamento de defesa não prospera. A base de tal alegação foi a não-anexação da fita magnética que reproduziu a entrevista, por parte da autora, o que teria impossibilitado a adequada defesa por parte da emissora de rádio. Entretanto, como a entrevista e os comentários foram veiculados pela própria requerida, é óbvio que a mesma, como emissora de rádio, possui em seus arquivos tal material e encontra-se a pedir o que já tem. Além disso, a requerida, em nenhum momento, nega que os fatos tenham-se passado como narrado na inicial, citando, inclusive, na contestação, trechos da entrevista, transcritos pela autora na inicial, para embasar a sua defesa, sendo que o conteúdo da entrevista foi confirmado pelas testemunhas, entre elas o próprio diretor da rádio e o radialista que fez a entrevista. Soma-se a isto o fato de que a requerente interpôs ação contra a requerida, visando à exibição de uma cópia da gravação da entrevista objeto deste feito, poucos dias após o fato, tendo conseguido este intento, conforme reconhece a ré, na contestação, afirmando, no entanto, que o fato do conhecimento do conteúdo da fita ter sido usado para embasar ação de separação e de busca e apreensão de menor, filho da requerente que estava em companhia 298 do pai, implicaria não poder a autora utilizá-lo para interpor a presente ação. Entendo não existir tal vedação na lei, exigindo, no entanto, a notificação da emissora de rádio, nos termos do art. 57 da Lei nº 5.250/67, providência suprida pela requerente, dentro do prazo legal, com a interposição da referida ação cautelar, que lhe possibilitou o inteiro conhecimento da mesma, conforme processo em apenso. Quanto ao chamamento à lide do entrevistado, não vejo como admiti-lo, eis que não se enquadra nas hipóteses constantes do capítulo VI do Código de Processo Civil. A alegação de prescrição ou decadência diz respeito ao direito de resposta não exercitado pela autora, e não ao direito de reparação de dano. Diz expressamente o § 2º do art. 29 da Lei nº 5.250/67, citado pela requerida: “(...) § 2º – A resposta, ou retificação, deve ser formada por escrito, dentro do prazo de 60 dias da data da publicação ou transmissão, sob pena de decadência do direito”. Embora a requerida não tenha referido que o art. 56 da Lei nº 5.250/67 dispõe que a ação para haver indenização por dano moral deve ser proposta dentro de 03 meses da data da publicação ou transmissão que lhe der causa, sob pena de decadência, cumpre referir que este dispositivo foi revogado implicitamente, pelo inc. X do art. 5º da CF de 1988, que igualou, sem ressalvas, os efeitos por direito individual violado, garantindo a indenização pelo dano moral e material. Assim, segundo a orientação pacífica da jurisprudência, o prazo prescricional para interpor ação para indenização por dano moral é o SENTENÇAS mesmo da ação por indenização por dano material, ou seja, 20 anos. No mérito, a responsabilidade civil da empresa de radiodifusão decorre expressamente do § 2º do art. 49 da Lei nº 5.250/67, que prescreve: “Art. 49 – (...) § 2º – Se a violação de direito ou o prejuízo ocorre mediante publicação ou transmissão em jornal, periódico ou serviço de radiodifusão, ou de agência noticiosa, responde pela reparação do dano a pessoa natural ou jurídica que explora o meio de informação ou divulgação”. A violação de direito ou prejuízo a que se refere o artigo em epígrafe apenas diz respeito ao abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Nos termos do art. 12 da Lei nº 5.250/67, os prejuízos decorrentes deste abuso obrigam à reparação do dano. A pessoa física ou jurídica que explora o meio de informação responde pela reparação do dano, com direito à ação regressiva contra o autor da ofensa. Cumpre comentar sobre o conflito aparente entre o direito de informação por parte da imprensa e o direito à privacidade do indivíduo, ambos previstos constitucionalmente. E, ainda, sobre o que seja o referido abuso no exercício do direito de informação, nos termos do art. 12 da Lei nº 5.250/67. Em matéria publicada no “Jornal da AJURIS” (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, em junho de 1996, nº 49, foi abordada esta questão que pela sua clareza e objetividade, reproduzo na integralidade, parte do texto (p. 05), procurando elucidar este aspecto: “Esta questão, segundo o Promotor Público Luís Carlos Rodrigues Duarte, gera a SENTENÇAS colisão de deveres jurídicos: ‘Sempre que eles se defrontam, se está diante deste fenômeno’, explica. Segundo o Promotor, para solucionar o problema, devem ser feitos exames caso a caso e a posteriori, situação em que o analista deve levar em conta três princípios. Primeiro, o da intencionalidade informativa, ou seja, o jornalista não pode estar movido por sentimentos como despeito, ânimo ou ciúme. “Segundo, o princípio da oportunidade informativa, situação que exige do profissional a revelação de fatos importantes naquele momento, e a não-utilização desse material em outra ocasião, de forma oportunista. Este item envolve a opinião pública, que é manipulada toda a vez que o comunicador omite fatos relevantes. O terceiro princípio é o da relevância social da informação. “ ‘É inadmissível, por exemplo, que eu tome um dado pessoal, íntimo do indivíduo, em nome do direito de informação’, afirma o Promotor que também é professor de Direito Penal (da Faculdade de Direito) e de Direito Penal de Imprensa (da Faculdade de Comunicação Social) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul . Ele cita vários casos, entre eles, a especulação da infância de um indivíduo, envolvido em crimes sexuais, tentando com isso explicar a atitude do criminoso. ‘Isso não tem importância para o desvendamento do fato específico imediato. Agora, se houver relevância social, o direito à informação prevalece sobre o direito à privacidade’, afirma”. Assim, entendo que, observando tais princípios, verifica-se que a entrevista do dia 10-01-94, concedida por J. T. G., foi 299 levada ao ar movida pelo sentimento de informar a população, visto que o entrevistado dizia que tinha denúncias e alertas à população. Nesta entrevista, disse ter contaminado sua ex-mulher, mas não declinou o seu nome. Além de ter sido observado o primeiro princípio, foram observados nesta ocasião, também, os princípios da oportunidade e da relevância social da informação, não existindo abuso do direito de informação, nos termos do art. 12 da Lei nº 5.250/67. Ocorre, no entanto, que no dia seguinte, 11-01-94, a ré, durante a programação diurna, voltou ao assunto, e desta vez não observou os princípios retromencionados, incorrendo no abuso do direito de informação, e, pelo prejuízo causado por tal conduta, deve reparar os danos causados. Pois, neste dia, a emissora veiculou novamente a referida entrevista sem necessidade, movida pela intenção de aumentar a audiência pelo sensacionalismo, utilizou-se da entrevista de forma oportunista e referiu, sem necessidade nenhuma, expressamente, o nome da requerente, especulou sobre o fato de o entrevistado ter agido com a intenção de atingir sua ex-esposa, incursionando na vida privada da autora, o que não foi negado pela ré, sendo que o próprio entrevistador, em seu depoimento, disse que “foi veiculado pela rádio que as pessoas citadas por C. teriam direito de se manifestar pelo mesmo tempo sobre o assunto. Tal divulgação saiu em momento posterior à entrevista” (fl. 68). Assim, o abuso ocorreu na divulgação da entrevista e nos comentários sobre a mesma em momento posterior à sua realização. 300 “Ninguém pode arrogar-se o direito de levantar a cortina da vida privada do cidadão, comercializando ou dramatizando os seus interesses privativos ou a sua desgraça. A ninguém é lícito vasculhar as intimidades, seja de quem for, ainda que com o intuito de edificação ou advertência coletiva, sem anuência expressa do exemplificado”. (Darcy Arruda Miranda, in “Comentários à Lei de Imprensa”, 3ª ed., revista e atualizada, 1995, Ed. RT, p. 162) Ocorre que, conforme a doutrina e a jurisprudência, o § 1º do art. 20 da Lei nº 5.250/67 se aplica a todos os crimes contra a honra, assim, no dizer de Darcy Arruda Miranda, na sua obra retrocitada, p. 340, “quem reproduz escrito difamatório de alheia autoria, conhecendo o seu conteúdo, responde por dolo. A iniciativa da reprodução equivale à autoria”. Assim, o autor da ofensa é o jornalista que fez os comentários sobre a entrevista, no dia seguinte da mesma. “A ninguém se outorga o direito de reproduzir infâmias, mesmo que o fato seja notório. Nem por ter sido arrombada e saqueada uma residência, eu tenho o direito de entrar nela e completar o saque”. (Darcy Arruda Miranda, in “Comentários à Lei de Imprensa”, 3ª ed., revista e atualizada, 1995, Ed. RT, p. 340) Segundo o mesmo autor já citado, a imputação de moléstias repugnantes ou graves, incuráveis, ou não, constitui injúria, pois expõem o indivíduo ao desprezo e causam no mesmo sentimentos de dor e de aviltamento. Quanto ao fato de a ré ter argumentado que na divulgação da entrevista e nos comentários posteriores não houve o animus inju- SENTENÇAS riandi, sendo que a intenção da rádio era somente informar a população, inclusive citando doutrina que conceitua o que seja tal animus, tenho que, nos comentários sobre a referida entrevista, a dolosidade é manifesta, pois: “Não se concebe boa-fé em reprodução intencional de ofensa”. (ob. cit., p. 396) “O animus injuriandi existe sempre que o agente saiba que a imputação do fato tem caráter de prejudicar a honra ou a reputação da pessoa, à qual o fato é imputado.” ( ob. cit., p. 400). O jornalista que fez os reiterados comentários sobre o assunto, divulgando o nome da requerente, tanto sabia que o entrevistado, ao conceder a entrevista, pretendia atingir a honra de sua ex-mulher, que chegou a dizer tal fato, expressamente, na veiculação dos comentários. Na própria contestação (fl. 30), o contestante reproduz, fielmente, o comentário do locutor, “foi bom haver sinceridade por parte da emissora para com seus ouvintes, mostrar a que ponto pode chegar uma pessoa (J.) com o objetivo de retaliações”. “Não há mister, pois, para que o dolo de injuriar se realce no escrito incriminado, que o animus injuriandi esteja íncito no fato, porquanto, uma vez que o agente tem consciência de que o seu conteúdo é injurioso, encerrando expressões ou palavras que poderão ferir a dignidade ou o decoro de alguém, e assim mesmo o dá à publicidade, é porque aceita o risco de ofender... “A respeito, doutrina Nelson Hungria: ‘Segundo a regra geral, o dolo pode ser direto ou eventual. Se não basta para o reconhecimento da dolosidade a SENTENÇAS simples consciência do caráter ofensivo da ação, é suficiente, entretanto, que a previsão do resultado lesivo não tenha servido de contramotivo à ação, isto é, basta que o agente, embora sem querer, positiva ou diretamente, o previsto resultado lesivo, consinta ex ante no seu advento” (ob. cit., p. 403). Assim, a alegação da ré de que não pretendeu causar dano à requerente, tendo somente exercido o seu direito de informação, não lhe exime da obrigação de indenizar os danos causados, pois ainda que a finalidade da conduta da ré tenha sido, realmente, de prestar um serviço público de esclarecimento e informação da população, agiu com dolo, e a finalidade de seu ato será avaliada para graduar a fixação da indenização à requerente, e não para excluir a ilicitude de seu ato. “Admitida a descriminante da moralidade do fim, deveria também ficar isento de pena, por exemplo, aquele que furtasse para fazer doação a uma casa de caridade, ou aquele que matasse um canceroso para poupá-lo ao sofrimento, ou eliminasse um facínora para sossego da povoação em que vive.” (ob. cit., p. 398). Demonstrada a responsabilidade civil da ré, cabe estabelecer o quantum da indenização, segundo as regras do direito positivo. Do dano material. A requerente afirma ter tido danos materiais, eis que foi preterida em empregos na cidade, pela discriminação sofrida, face à referida notícia. Contudo, não há elementos nos autos que informem a existência deste dano material, tendo, inclusive, a requerente, em seu depoimento pessoal, dito que após a veiculação da notícia conti- 301 nuou a trabalhar em seu emprego, com o mesmo salário, até a mudança de seus patrões da cidade. Declarou, também, que conseguiu emprego junto ao posto do I., para fazer a limpeza, e que, embora a chefe do posto tenha sido questionada sobre o fato de estar empregando uma “aidética”, continuou neste emprego até janeiro de 1996, quando se mudou da cidade para ir trabalhar na residência de seus antigos patrões. O depoimento do seu patrão J. A. C. confirma que a requerente continuou empregada mesmo após a notícia, embora estivesse trabalhando em sua casa há poucos dias, e o fato de que foi trabalhar novamente para ele, mudando-se desta cidade em janeiro de 1996 (fls. 66/67). Da mesma forma, M. L. Z. diz que a autora trabalhou para ela, antes e depois da divulgação da notícia, até a mesma mudar-se da cidade. Confirma, ainda, que a depoente trabalhou no posto do I. até a mudança (fl. 67 e 67v.). Quanto ao comércio de tapetes que a requerente alegou ter na época dos fatos, e ter sido abalado em função da notícia, eis que as pessoas não encomendaram mais suas mercadorias com medo de contaminação, entendo que não ficou suficientemente provado o nexo causal da veiculação da notícia com o fato de a requerente não receber encomendas de tapetes. As testemunhas J. A. C. e M. L. Z. ficaram sabendo de tais fatos somente pelo que contava a requerente, não havendo outros elementos para aferir a existência deste alegado dano material. Do dano moral. Atualmente é pacífico o entendimento de que o dano moral é indenizável, principalmente em 302 razão do inc. X do art. 5º da CF de 1988. O dano referido constitui-se na violação do direito à honra da requerente, que conforme fundamentação acima exposta, foi injuriada pela veiculação dos referidos comentários sobre a entrevista concedida pela seu ex-marido à ré, na qual este afirmou portar o vírus da AIDS e ter contaminado a autora. Para aferir o quantum a ser indenizado é necessário avaliar a extensão do dano na vida da requerente, o seu sofrimento psíquico; o grau de culpa do responsável, neste caso, a intensidade do dolo; as condições econômicas do responsável; o fato de que a indenização deve ter também um aspecto punitivo para o ofensor, de forma que o iniba de reiterar a conduta danosa; e demais itens contidos no art. 53 da Lei nº 5.250/67. Quanto ao fato de arbitrar o valor do dano, considerando o número de vezes que foi veiculada a notícia, entendo ser critério de menos importância, pois os critérios determinantes são os acima referidos. “Civil. Responsabilidade civil. Dano moral. Arbitramento. No arbitramento do dano moral, há que se considerar tanto sua reparação, oferecendo à vítima uma satisfação em dinheiro, quando a necessidade de se impor ao ofensor uma expiação pelo ato ilícito. Caso em que a indenização de 100 salários mínimos satisfaz ambos os requisitos. Votos vencidos. Embargos acolhidos em parte.” (EI nº 595002056, 2º Grupo de Câmaras Cíveis do TJRGS, Porto Alegre, Rel. Des. Araken de Assis, julgados em 10-04-95) “Dano moral. Indenização. Critério de quantificação. O critério de fixação do valor indenizatório levará em conta SENTENÇAS tanto a qualidade do atingido como a capacidade financeira do ofensor, de molde a inibi-lo a futuras reincidências, ensejando-lhe expressivo, mas suportável, gravame patrimonial. Embargos Infringentes rejeitados por maioria.” (EI nº 595032442, 3º Grupo de Câmaras Cíveis do TJRGS, Porto Alegre, Rel. Des. Luiz Gonzaga Pila Hofmeister, julgados em 1º-09-95) Os arts. 51 e 52 da citada lei limitam a indenização por dano causado, quando ele ocorre por culpa do jornalista, ou seja, por imprudência, negligência, ou imperícia. Entendo, conforme já exposto nesta sentença, que a veiculação dos comentários danosos foi feita de forma dolosa, não se aplicando ao caso as limitações da lei. “É indispensável, para que se opere a limitação, que o ato seja culposo, porquanto, se houve dolo, não há que se falar em limitação na reparação do dano.” (ob. cit., p. 734) A existência do dano moral é cabalmente demonstrada nos autos, eis que as testemunhas são unânimes em afirmar que a requerente foi discriminada socialmente e teve o relacionamento com o seu filho abalado, bem como passou por estado de depressão e tristeza. J. A. C. disse expressamente que “a esposa do depoente era professora, funcionária da escola A. F., e colegas dela chegavam a exigir que a requerente fosse despedida da casa do casal... O depoente acredita que as brigas com o filho da qual se queixava a requerente foram posteriores à divulgação da notícia” (fl. 67). M. L. Z. afirmou que “após a notícia, recebeu telefonemas de pessoas que lhe perguntavam se a depoente não tinha SENTENÇAS medo de ter como empregada uma portadora de AIDS. Também no supermercado chegou a ser perguntada a respeito dos fatos, tendo respondido que acreditava na palavra da requerente, que dizia ser mentira tal notícia. Posteriormente, a requerente lhe mostrou os exames com o resultado negativo... A depoente declara que, na época, a requerente ficou bastante deprimida pelo fato, sendo que não comia, perdeu peso e fumava bastante... A requerente revelou que teve problemas com o filho, que foi discriminado e, por algumas vezes, agredido fisicamente, em função da veiculação da notícia” (fl. 67 e 67v.). Tais depoimentos corroboram as declarações da autora de que foi alvo de comentários e segregação por parte da comunidade desta cidade, tanto na escola onde estudava à noite, escola A. F., como nos estabelecimentos comerciais e em todos os demais lugares públicos, sendo obrigada a andar com o referido exame na bolsa. A depoente era facilmente reconhecida, porque já havia tido um restaurante na cidade, fato que agravou a sua discriminação. Com certeza, tais fatos foram um dos fatores que determinaram a mudança da autora desta cidade para I. Por tais depoimentos é possível verificar que a humilhação e a dor psíquica sofrida pela autora foi bastante intensa e se estendeu por vários meses. Também é possível verificar que a notícia teve grande repercussão, sendo que o diretor da rádio afirmou que esta tem potência de 5 quilowatts (fl. 66 e 66v.), e J. A. L., locutor da rádio, disse que ela alcança vários municípios e tem grande audiência (fl. 68 e 68v.). 303 Desta forma, entendo que a extensão do dano foi grande pela sua veiculação pela rádio e repercussão na cidade, considerando ainda que a autora era pessoa conhecida, e que esta cidade é de pequeno porte, sendo que as pessoas que nela residem possuem pouca informação acerca do vírus da AIDS, e a forma de sua contaminação, atribuindo à rádio local total credibilidade. A indenização por dano moral tem natureza não-patrimonial e decorre da dor, do espanto, da emoção, da vergonha, enfim, da dolorosa sensação experimentada pela vítima em razão do ato ilícito que sofreu. No caso, não há dúvida de que a autora sofreu pesado dano moral na sua reputação, pelas discriminações sociais que passou a sofrer, com reflexos no relacionamento familiar, no constrangimento de conviver socialmente. “Com muito acerto e percuciente observação ressalta Hermano Duval: ‘É óbvio que no centro da notícia está sempre um fato humano, cuja repercussão através do rádio e do cinema, sobretudo da televisão, é muito mais sensível ao seu interessado do que através da notícia gráfica, pois, além da forma viva por que é apresentada, ela ainda atinge, além das localidades do interior onde não há imprensa alguma, mas há receptores de rádio ou de televisão, uma classe diversa da dos leitores, isto é, a dos que não sabem ler! Daí, também, o sucesso do cinema nacional no interior do País: quem não sabe ler, vê figura... “ ‘O reverso do direito à informação da imprensa, isto é, a notícia, tem hoje, portanto, um alcance espetacular; e a própria circunstância de ela prescindir 304 de qualquer esforço por parte do ouvinte ou do telespectador torna-a particularmente preferida à comunicação escrita, por sua vez, já superada pela comunicação escrita colorida! “ ‘Segue-se daí que, se o direito à informação é amplo, é um imperativo da hora presente, já a amplificação que os modernos meios de difundir a notícia também o seja. E a razão é óbvia: é que a notícia humilhante, ridícula ou difamatória, veiculada através do rádio, do cinema e da televisão, fere muito mais sua vítima do que pelo jornal, que é incapaz de transmiti-la tão ao vivo! Deve portanto, haver um limite à publicação da notícia’ (ob. cit., p. 160). “Indenização. Dano moral e patrimonial decorrente de publicação de notícia na imprensa. A liberdade de informar só tem como fronteira, como limite, a honra e a dignidade alheias. Porque ‘minha honra é minha vida’ (Shakespeare) e assim como não se pode, num ato irrefletido, sacar a vida de alguém, também não se pode, sem as cautelas éticas, atingir a honra de quem quer que seja. Tendo sido os autores, pessoas humildes e pobres e por isso constituindo a honra o único cabedal de que dispõem, demitidos em razão de notícia vinculada ao jornal, sem que soubesse o diretor do jornal identificar se eram eles os responsáveis pelo fato publicado em artigo, cabe, além do ressarcimento pelo dano patrimonial, o pelo dano moral. Recurso provido em parte” (AC nº 594155061, TJRGS, 8ª Câmara Cível, Osório, Rel. Des. Eliseu Gomes Torres, julgada em 22-12-94). SENTENÇAS Quanto ao grau de culpa do agente, entendo que o jornalista que fez os comentários sobre a entrevista, embora tivesse agido com manifesto dolo, pois conhecia o conteúdo injuriante e devastador da reiteração da notícia, teve pequeno grau de culpa, pois o fato de convidar a requerente para contar a sua versão da história, espontaneamente, antes da propositura da ação, demonstra que teve a intenção de minimizar a situação da autora, pelo menos dando-lhe a oportunidade de se manifestar na própria rádio. Entendo que tal atitude vem a favor do agente, e não contra, como quer fazer crer a autora. É possível que não estivesse em condições emocionais de falar na rádio, devido ao abalo que sofreu, mas se tivesse ido, talvez pudesse ter minimizado um pouco a situação. Além disso, a intenção do jornalista foi de alertar a população para o risco da epidemia e de esclarecer sobre os motivos que levaram o entrevistado a fazer as afirmações, o que vem ao seu favor, ao avaliar a intensidade do dolo. Quanto à capacidade econômica do responsável civil, entendo que é boa, pois é uma emissora de rádio conceituada e de grande audiência, como ficou demonstrado no processo, tendo mais de 30 anos e possuindo como capital social a soma que correspondia, em 15-10-81, a Cr$ 4.000.000,00, possuindo a matriz nesta cidade e uma filial em P. (fls. 49/52). Considerando todos estes aspectos e a jurisprudência, entendo por fixar a indenização pelo dano moral sofrido pela autora em 150 salários mínimos. Os juros SENTENÇAS moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual (Súmula nº 54 do STJ). Isto posto, julgo procedente em parte a pretensão da requerente, com fulcro no art. 49, § 2º, da nº Lei 5.250/67, c/c o art. 5º, inc. X, da CF de 1988, eis que não restou comprovado o dano material alegado, para condenar a Emissora S. B. Ltda. a proceder ao pagamento da quantia de 150 salários mínimos a I. L. F. G., a título de indenização pelo dano moral causado, calculado pelo salário mínimo vigente à época do fato, corrigido monetariamente pelos índices oficiais até a data do pagamento, acrescido de juros de mora de 6% ao ano, a contar da data do evento danoso, nos termos da Súmula nº 54 do STJ. Sucumbentes parcialmente ambas as partes, uma vez que a autora não teve acolhida a sua pretensão relativa ao ressarcimento do dano material, pagará esta o correspondente a 1/5 das custas 305 processuais, enquanto a requerida pagará os restantes 4/5. No que tange aos honorários, a demandada pagará ao advogado da demandante 15% sobre o valor total da condenação que lhe foi imposta, enquanto a requerente pagará ao advogado da requerida 10% sobre o valor da pretensão não-acolhida, ou seja, sobre a diferença resultante entre o valor atualizado atribuído à causa, acrescido de juros de 6% ao ano, a contar da data do evento danoso, e o valor total da condenação. Para a fixação dos honorários, considerei o disposto no art. 20, § 3º, a e c, do CPC. Suspendo o pagamento, pela autora, da verba decorrente da sucumbência parcial, em face de ter-lhe sido concedido o benefício da assistência judiciária gratuita. Registre-se. Publique-se. Intimem-se. Horizontina, 22 de janeiro de 1997. Vanise Rohrig Monte, Juíza de Direito Substituta. 306 Processo nº 18.732 – Ação Ordinária de Indenização 1ª Vara Judicial Autor: Simão Serrano Elias Réu: Banco do Estado do Rio Grande do Sul S. A. Juíza prolatora: Vanise Röhrig Monte Indenização. Danos morais. Contrato de abertura de crédito em conta-corrente. Unilateral redução do limite de crédito e indevida devolução cheques emitidos pelo correntista. Ação julgada parcialmente procedente. Vistos, etc. Simão Serrano Elias ingressou em juízo com ação ordinária de indenização contra Banco do Estado do Rio Grande do Sul, ambos qualificados à fl. 02, visando à condenação da requerida a reparar, financeiramente, o dano moral sofrido pelo autor em conseqüência de ilícito praticado pela requerida, bem como a condenação desta a fazer publicar na imprensa local, às suas expensas, retratação ao ato ilegal praticado. Alegou o autor que é correntista da requerida há mais de dez anos, com a qual mantinha um contrato de abertura de crédito em conta-corrente, denominado “Super Conta”, sob nº 35.009759.06. O limite de crédito contratado na referida conta era de R$ 10.000,00, tendo sido renovado em 16-03-98. Não obstante, teve o autor dois cheques de nos 707832 e 707833, nos valores de R$ 2.000,00 e R$ 66,20 da referida conta, devolvidos por insuficiência de fundos, nas datas de 08-06-98 e 09-06-98, embora estivessem dentro do limite contratado. Afirmou, ainda, que recebeu uma comunicação do banco, no dia 09-06-98, às 16h50min, via AR, na qual constava que o limite de R$ 10.000,00 havia sido reduzido para R$ 2.001,00, unilateralmente. Ocorre, que quando do recebimento de tal carta, já haviam sido devolvidos os citados cheques emitidos pelo autor. Segundo o que o autor apurou junto aos funcionários da agência local, o motivo da redução do limite, unilateralmente feita, era por determinação superior, em razão de matéria, de autoria do requerente, publicada, no jornal da cidade sobre juros bancários e pelo fato de o autor patrocinar ações contra os interesses da requerida. Em razão da devolução dos cheques, ilegalmente feita, pois não foi o autor avisado previamente da redução do limite de crédito de sua conta, teve o autor prejuízos pessoais, morais e profissionais, consistentes na vergonha e incomodação sofridas, necessitando de reparação a ser determinada pelo Judiciário. Alegou que teve sua imagem pública abalada, visto que é advogado militante na comarca, na qual já foi Presidente da Subseção local da OAB/RS, sendo, na época dos fatos, instrutor do Tribunal de Ética e Disciplina da referida Ordem. Arrolou jurisprudência sobre o tema, e apontou os artigos da legislação e os argumentos da doutrina que amparam sua pretensão. Requereu, ao final, a procedência da ação nos termos do pedido e a condenação do réu ao pagamento de custas SENTENÇAS processuais e honorários advocatícios em 20% sobre o valor da condenação, tudo acrescido de juros e acréscimos legais. Instruiu a inicial com os documentos das fls. 12 à 35. Antes da citação, o autor acostou aos autos petição informando que outro cheque, no valor de R$ 40,00, por ele emitido contra o banco-réu sacado, em razão da referida conta-corrente, tinha sido devolvido por insuficiência de fundos, por duas vezes, tendo sido encerrada a conta do autor. Juntou o cheque devolvido e o aviso de débito (fl. 44). Novamente peticionou o autor, antes da citação, postulando a antecipação de tutela, para que fosse determinado ao réu que se abstivesse de inscrever o nome do autor, ou já o tendo feito, determinasse a sua exclusão, em órgãos de restrição de crédito, e, ainda, junto ao Banco Central, sob pena de multa diária de R$ 500,00. A antecipação de tutela foi deferida. A ré contestou a ação, confirmando que havia um contrato de cheque especial firmado com o autor com limite de crédito de R$ 10.000,00, que foi reduzido em 08-06-98 para R$ 2.001,00, em decorrência do baixo saldo médio. Alegou, então, que o autor foi cientificado da redução por aviso de recebimento – carta AR, entregue pelo correio, no próprio dia 08-06-98 –, porém negou-se a assinar o aviso e emitiu os cheques nos 707831, de R$ 5.000,00, 707832, de R$ 2.000,00, e 707833 de R$ 66,20, sabendo que ultrapassaria o limite garantido, de má-fé, para que fosse devolvido, com intuito de provocar indenização por dano moral e beneficiar-se financeiramente da situação. Além disso, a ré dissertou sobre os elementos a serem considerados no 307 arbitramento do valor do dano moral, quais sejam: a) as condições das partes; b) a gravidade da lesão e sua repercussão; e c) as circunstâncias fáticas. Ao final, pediu a improcedência da ação. Em réplica, o autor reiterou os argumentos expendidos na inicial, refutando integralmente o alegado na contestação, inclusive requerendo a aplicação da pena de litigante de má-fé à ré, tendo em vista que abusou do direito de defesa, tentando imputar ao autor a culpa dos fatos, inclusive com o planejamento da ação por parte deste. Designada audiência, foram ouvidas sete testemunhas, encerrada a instrução e realizado o debate no qual o autor pediu a procedência da ação e a ré, a improcedência, reportando-se, cada qual, aos argumentos expendidos na inicial e na contestação, respectivamente. Vieram os autos conclusos. É o relatório DECIDO O feito encontra-se regular e sem nulidades, estando pronto para ser sentenciado. Trata-se de ação visando ao arbitramento de indenização ao autor por dano moral praticado pela ré. Dos fatos incontroversos. O autor relatou que mantinha Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente com a ré sob o nº 35.009759.06, conta cujo o limite de crédito era de R$ 10.000,00, conforme renovação trimestral do contrato realizada em 16-03-98. O valor do limite de crédito foi então reduzido, por ato unilateral da ré, em 08-06-98, de R$ 10.000,00 para R$ 2.001,00. Tais fatos não foram contestados pela ré, que os confessou. Dos fatos controversos. 1º fato: o autor alegou que somente ficou sabendo da 308 redução do limite em 09-06-98, após o encerramento do horário bancário, motivo pelo qual já havia emitido cheques, em 09-06-98 e 08-06-98, que extrapolaram o limite de crédito de R$ 2.001,00, porém ficavam dentro do limite de R$ 10.000,00. 2º fato: tais cheques foram devolvidos por insuficiência de fundos e acarretaram inúmeras perturbações ao autor, tais como, abalo de crédito, prejuízo à sua imagem pública, profissional e comercial, fazendo com que o autor passasse por situação vexatória que lhe trouxe sofrimento pessoal. 3º fato: a redução do limite de crédito feita pela ré foi motivada pelo fato de o autor ter patrocinado ações judiciais contra os interesses da ré e por ter escrito matéria sobre juros bancários que foi publicada no jornal local. Das alegações da ré. A ré alegou que o autor sabia da redução do limite de crédito de sua conta-corrente, ocorrida em 08-06-98, motivo pelo qual se negou a assinar o aviso de recebimento na carta enviada pela ré na referida data e emitiu os cheques de n os 707831, 707832 e 707833, propositadamente, para ensejar a devolução dos cheques, com o intuito de provocar o dano moral e beneficiar-se financeiramente da situação. Das provas. A redução do limite de crédito da conta do autor, antes de findo o prazo contratado (três meses a partir de 16-03-98), por ato unilateral da ré, por si só, já é um ato caracterizador de descumprimento de contrato e com potencial para gerar danos ao autor. Além disso, verifica-se que a redução foi sem justificativa plausível, pois embora tenham alegado que o motivo fosse a pequena movimentação financeira da conta do SENTENÇAS autor, não foi esta a motivação que constou da carta enviada pela ré ao autor, fl. 23, e não explicou a ré o que seria a “pequena movimentação financeira”. Porém, ainda que houvesse motivação lícita para redução de tal limite de crédito, o que não ficou provado existir, a ré deveria ter comunicado ao autor o fato com antecedência. Entendo que, mesmo que a carta tivesse chegado em mãos do autor em 08-06-98, não teria havido comunicação ao autor, eficiente e antecipada, pois a redução do limite ocorreu neste mesmo dia. Entretanto, além da comunicação da redução do limite de crédito não ter chegado ao conhecimento do autor com antecedência, tal comunicação chegou após o fato consumado, como ficou provado nos autos. A carta de comunicação enviada pela ré, fl. 23, data de 08-06-98; a data da postagem, conforme envelope juntado aos autos na fl. 22, data de 08-06-98; e a data do recebimento é 09-06-98, às 16h50min, conforme documento da fl. 22, ou seja, um dia após a redução do limite de crédito. Assim, entendo estarem comprovadas, pela prova carreada ao processo, as alegações do autor quanto ao primeiro fato controvertido. A alegação da ré, de que o autor já sabia da redução do limite antes de receber a comunicação, não ficou provada nos autos. As testemunhas Paulo Roberto de Biasi, Nilso Zampiva e Paulo Borges Valiati, que trabalham na empresa-requerida, afirmaram que não comunicaram a redução do limite do crédito em conta-corrente diretamente ao autor antes de ser operada tal redução. Nilso e Paulo Borges referiram que um funcionário teria tentado fazer tal SENTENÇAS comunicação, porém teria falado somente com a secretária do autor, quando este não estava em seu escritório. Estas testemunhas concordaram que a carta de comunicação foi enviada pela ré no próprio dia da redução, sendo que era uma carta com aviso de recebimento, porém “a sistemática do banco é de iniciar a operação apenas com a expedição da carta AR, sem aguardar o seu retorno”, conforme declaração de Paulo Roberto de Biasi na fl. 89-v. Provado que o autor só teve conhecimento da redução de seu limite de crédito após esta ter sido operada pela ré, resta verificar se houve o dano moral alegado. Do dano moral. O autor emitiu cheques antes de ser comunicado da redução de seu limite de crédito que ultrapassaram tal limite, porém estavam em perfeita adequação ao limite anterior, de R$ 10.000,00. Teve tais cheques devolvidos quando colocados em compensação bancária (fls. 25/29 e 44). Em razão disto, teve sua conta encerrada e o seu nome cadastrado como inadimplente junto ao Banco Central (fl. 49). Todos estes fatos não são negados pela requerida. Existiu, desta forma, dano moral indenizável. Sem dúvida ocorreu abalo de crédito, pois o autor não pode retirar talonários de cheque junto a outras entidades bancárias, porque estava com restrição em seu crédito junto ao Banrisul. Também evidente que o autor teve sofrimento e incomodações decorrentes de tal fato, pois teve que realizar vários atos para regularizar sua situação junto ao Banco Central, inclusive pedindo antecipação de tutela neste feito para alcançar tal fim. Além disso, teve que procurar as pessoas para as quais passou os cheques e pagá-las 309 diretamente, expondo-se à situação vexatória, pois os cheques tinham sido devolvidos por falta de fundos. Comprovado que o autor goza de boa reputação econômica e moral, conforme documentos juntados às fls. 13 à 15, e declarações das testemunhas que prestaram depoimento nos autos. Sem dúvida que a situação de ter que explicar a alguém o motivo pelo qual um cheque seu foi devolvido por falta de fundos, quando tal ato foi provocado pela ação da ré, é situação desagradável para uma pessoa que possui boa reputação e orgulha-se de ser honrada e digna. Além disso, é pacífico o fato de que a honra e a reputação de um advogado são fatores determinantes para sua clientela, ainda mais em cidades do interior do Estado onde os fatos relativos a estes profissionais são mais facilmente divulgados e conhecidos pela população. Para aferir o quantum a ser indenizado é necessário avaliar a extensão do dano na vida da requerente, o seu sofrimento psíquico; o grau de culpa do responsável, neste caso, a intensidade do dolo; as condições econômicas do responsável; e o fato de que a indenização deve ter também um aspecto punitivo para o ofensor, de forma que o iniba de reiterar a conduta danosa. “Civil. Responsabilidade civil. Dano moral. Arbitramento. No arbitramento do dano moral, há que se considerar tanto sua reparação, oferecendo à vítima uma satisfação em dinheiro, quando a necessidade de se impor ao ofensor uma expiação pelo ato ilícito. Caso em que a indenização de cem salários mínimos satisfaz ambos os requisitos. Votos vencidos. Embargos acolhidos em parte”. (Embargos Infringentes nº 595002056, 310 2º Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rel. Des. Araken de Assis, 10-04-95) “Dano moral. Indenização. Critério de quantificação. O critério de fixação do valor indenizatório levará em conta, tanto a qualidade do atingido como a capacidade financeira do ofensor, de molde a inibi-lo a futuras reincidências, ensejando-lhes expressivo, mas suportável, gravame patrimonial. Embargos infringentes rejeitados por maioria”. (Embargos Infringentes nº 595032442, 3º Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rel. Des. Luiz Gonzaga Pila Hofmeister, 1º-09-95) Da extensão do dano na vida do requerente. Pelas provas carreadas aos autos, o autor teve três cheques devolvidos, nos valores de R$ 2.000,00, R$ 66,20 e R$ 40,00; uma vez que o cheque de nº 707831, no valor de R$ 5.000,00, foi sacado por ele diretamente no caixa do banco. Assim, poucas pessoas tiveram conhecimento de tal fato, não tendo o autor logrado êxito em provar o contrário. Sendo que a testemunha Antônio Turíbio Borges Ferreira afirmou, expressamente, fl. 87, ao relatar que viu o autor no posto de gasolina efetuando o pagamento do cheque de R$ 40,00 ao dono: “ ... não sabe por que motivo o cheque foi devolvido. O dono do posto não fez comentário sobre o fato com o depoente e acredita que não tenha feito tal comentário com outras pessoas”. Mesmo tendo sido o fato comentado por algumas pessoas, entendo que o autor não teve sua reputação diminuída, pois as pessoas já associavam o fato SENTENÇAS à conduta da ré, não atribuindo culpa ao autor. José Giovanoni Neto disse, textualmente, que “... se recorda que na data narrada na inicial estava dentro da agência bancária do Banrisul desta cidade, na fila do caixa, e ouviu comentários dos que lá estavam de que o autor teria colocado uma nota no jornal contra os interesses da agência Banrisul e que por tal motivo o banco teria encerrado a conta do autor, ocasionando a devolução de um cheque que ele havia passado num posto de gasolina. Também comentaram que o autor estaria com problemas financeiros, mas o depoente acha que isso não é verdade”. (fl. 87-v.) Ainda, no mesmo depoimento: “Houve comentários na cidade de que o encerramento da conta do autor também foi motivado pelo fato do autor, enquanto advogado, patrocinar causas que contrariavam os interesses do banco e também em defesa do Sindicato dos Bancários”. Também são neste sentido os depoimentos das testemunhas Antônio Derby Freitas e Sandra Maria Trindade Scorsato. O dano maior foi, desta forma, no âmbito do sofrimento pessoal do autor, da sua dor psíquica, pois se depreende pelos depoimentos prestados que o autor procurava dar explicações para o fato de ter tido um cheque devolvido, inclusive aparentando vergonha pelo fato e revolta. Antônio Turíbio Borges Ferreira afirmou que “... achou que o autor estivesse com vergonha do dono do posto”. (fl. 87) Sandra Mara Trindade Scorsato declarou que “... estava na agência bancária do Banrisul na data narrada na inicial e viu o autor sentado conversando com o Sr. De Biasi, sendo que o autor estava bastante alterado e nervoso, SENTENÇAS motivo pelo qual chamou a atenção da depoente (fl. 88-v.), e ainda no mesmo depoimento... lembra-se que o Sr. De Biasi, na qualidade de gerente da agência, tentava acalmar o autor que estava bastante brabo e alterado”. Por tais depoimentos é possível verificar que a dor psíquica sofrida pelo autor foi bastante intensa. Também é possível verificar que o fato não teve grande repercussão na sua reputação. Desta forma, entendo que a extensão do dano foi média. Do grau de culpa do responsável. Os motivos da redução do limite de crédito do autor não ficaram esclarecidos pela ré, pois embora esta tenha alegado que foi porque o autor tinha “pequena movimentação financeira”, não esclareceu o que tal conceito significa. Por outro lado, o autor trouxe aos autos prova de que a redução do referido limite de crédito feita pela ré foi motivada pelo fato de o autor ter publicado matéria no jornal local da cidade sobre juros bancários e também porque, como advogado, patrocinou várias ações judiciais contra os interesses da ré, conforme documentos juntados às fls. 16 à 19, carta da ré, fl. 23, que menciona que o limite seria reduzido por “determinações superiores”, e depoimentos das testemunhas. A testemunha José Giovanoni Neto, em seu depoimento, declarou, expressamente: “Os próprios funcionários do banco ratificaram que o encerramento da conta do autor se devia à nota publicada no jornal”. (fl. 87-v.) O Sr. Nilso Zampiva, Gerente Adjunto da ré, declarou que “na ocasião em que houve a redução do limite do valor do cheque especial do autor, houve uma 311 determinação superior do banco, da sede ou da superintendência de Passo Fundo, via contato telefônico, determinando especificamente o encerramento da conta do autor. Quando desta determinação, nenhum outro correntista foi especificado para que houvesse a mesma operação. A princípio, a determinação superior era de encerramento da conta, mas a agência optou pela redução do limite do cheque especial do autor”. (fl. 90) Ora, o autor não estava inadimplente, não tinha título protestado, tinha dinheiro aplicado, tinha familiares correntistas do banco, não havia assim motivo justo ou lógico para que fosse determinado o encerramento de sua conta, sendo crível que foi assim determinado pelos motivos apontados pelo autor, aliás, os únicos existentes conforme as provas carreadas aos autos. Desta forma, o grau de culpa da ré é grave, pois agiu por motivação injusta e com clara intenção de prejudicar o autor, não ficando caracterizado nos autos a existência de culpa concorrente por parte do requerente. Da capacidade econômica do agente. Quanto à capacidade econômica do responsável civil, entendo que é boa, pois trata-se de uma entidade financeira sob a forma de sociedade de economia mista, com participação do Estado do Rio Grande do Sul, fato público e notório que dispensa provas. Da fixação do “quantum” a ser indenizado. Considerando todos estes aspectos: 1) pequena extensão do dano na vida pública do requerente, porém grande sofrimento psíquico; 2) alto grau de culpa da ré e inexistência de culpa concorrente por parte do autor; 3) excelente capacidade financeira da ré, sendo que 312 a indenização deve ter um aspecto punitivo; e, considerando, ainda, a jurisprudência, entendo por fixar a indenização pelo dano moral sofrido pelo autor em cem salários mínimos. Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual. (Súmula nº 54 do STJ) O autor postulou indenização de no mínimo duzentos salários mínimos e que fosse a ré condenada a fazer publicar na imprensa local, às suas expensas, retratação do ato ilegal praticado, nos termos constantes da sentença de mérito. No entanto, tendo este juízo entendido que a imagem do autor não restou denegrida e que não houve repercussão social negativa para o mesmo, a indenização vai fixada em 100 salários mínimos e é indeferida a condenação da ré à publicação na imprensa como postulado pelo requerente. Da inexistência de litigância de má-fé por parte da ré. O autor postulou a aplicação da pena de litigante de má-fé à ré, entendendo que esta abusou de seu direito de defesa, ao expressar na contestação que o autor sabia da redução do limite antes da emissão dos cheques e fez tal emissão propositadamente para ensejar a presente demanda indenizatória. Ocorre que, embora a ré não tenha provado tal fato, existiu base para esta alegação, pois conforme as testemunhas Nilso Zampiva e Paulo Borges Valiati, fls. 90 à 91, esteve um funcionário da ré no escritório do autor, antes da redução do limite de crédito, para lhe comunicar tal fato, porém foi obtido junto à sua secretária a informação de que o autor não estava na cidade, e a secretária recusou-se a receber a comunicação. SENTENÇAS Além disso, houve realmente um saque no caixa no valor de R$ 5.000,00, no dia 08-06-98, fl. 28. Assim, não vislumbro litigância de má-fé por parte da ré, embora não tenha conseguido provar suas alegações. Isso posto, julgo procedente em parte a pretensão da requerente, com fulcro no art. 5º, inc. X, da CF, de 1988, para condenar o Banco do Estado do Rio Grande do Sul S. A. a proceder ao pagamento da quantia de cem salários mínimos a Simão Serrano Elias, a título de indenização pelo dano moral causado, calculado pelo salário mínimo vigente à época do fato, corrigido monetariamente pelos índices oficiais até a data do pagamento, acrescido de juros de mora de 6% ao ano, a contar da data do evento danoso, nos termos da Súmula nº 54 do STJ. Sucumbentes parcialmente ambas as partes, uma vez que o autor não teve acolhida a sua pretensão relativa à condenação da ré a publicar em jornal local, às suas expensas, retratação, nem a pretensão de ver a ré condenada a pagar no mínimo 200 salários mínimos, pagará esta o correspondente à metade das custas processuais, enquanto a requerida pagará a outra metade. No que tange aos honorários, a demandada pagará ao demandante, que atua em causa própria, 15% sobre o valor total da condenação que lhe foi imposta, enquanto o requerente pagará ao advogado da requerida 10% sobre o valor da pretensão não-acolhida, ou seja, sobre cem salários mínimos. Para a fixação dos honorários, considerei o disposto no art. 20, § 3º, alíneas a e c, do CPC. Registre-se. Publique-se. Intimem-se. Soledade, 1º de abril de 1998. Vanise Röhrig Monte, Juíza de Direito. 313 SENTENÇAS CRIMINAIS 314 315 Processo nº 3.492-278/99 (IP nº 0259/99) Autor: Ministério Público Réus: A. P. F. e N. M. P. Juiz prolator: André Luís de Moraes Pinto Crime de furto. Aplicação do princípio da bagatela. Furto de vinte peixes. Sentença absolutória. “O Direito, como o viajante, deve estar sempre pronto para o dia seguinte!” (Benjamin Cardoso, Juiz da Suprema Corte Americana) “La ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos.” (camponês salvadorenho) Vistos e examinados os autos. A. P. F., brasileiro, casado, vigilante, com 34 anos de idade, natural de I., branco, filho de P. L. F. e S. M. F., residente na Rua L. E. R., nesta cidade, e N. M. P., vulgo “S.”, brasileiro, casado, soldador, natural de N. M. T.-RS, com 49 anos de idade, branco, filho de P. M. P. e D. A. S., residente na Rua C. R., nesta cidade, foram denunciados pelo Ministério Público como incursos nas sanções do art. 155, §§ 1º e 4º, inc. IV, do CP e art. 1º da Lei nº 2.252/54. A peça incoativa, em síntese, assim narra os fatos: “No dia 16-10-99, de madrugada, em M., neste Município, os denunciados, em comunhão de esforços com o adolescente M. E. H., motivados pela idéia de lucro fácil, subtraíram, para si, 20 peixes, avaliados em R$ 22,00, da propriedade de O. P. e Z. N. D. Nas mesmas condições de tempo e de lugar, os denunciados corromperam o adolescente referido a praticar a infração penal descrita”. A denúncia foi recebida em 14-12-99 (fl. 32). Interrogados, os indigitados negaram a autoria. Contestaram que estivessem no local do crime. Afirmaram que estavam pescando, com autorização, em uma propriedade vizinha. No tríduo legal (fl. 36) foi apresentada defesa prévia por procurador constituído, oportunidade em que manifestada discordância em relação aos fatos articulados na inicial. No decorrer da fase instrutória procedeu-se à inquirição das vítimas e de sete testemunhas. No prazo do art. 499 o Ministério Público requereu a atualização dos antecedentes. A defesa nada postulou. Em alegações finais, o Parquet pediu fossem os réus condenados pelo crime de furto qualificado, por entender presentes autoria e materialidade. No entanto, requereu a absolvição pelo delito remanescente, por não reconhecer a existência da figura típica. A defesa técnica pugnou pela absolvição dos réus, fazendo referência à insuficiência de provas. Vieram-me os autos conclusos para sentença. Relatei. Passo a fundamentar. A vestibular acusatória noticia o furto de vinte peixes, avaliados em R$ 22,00, praticado pelos acusados. Note-se: não se está a falar de precatórios, “laranjas”, pasta rosa, propina, anões do orçamento, socorro a Bancos, operação Uruguay, passeio ao Território de Fernando de Noronha usando avião oficial, sobra de campanha, 316 prêmio de loteria, viagem-fantasma, superfaturamento de obras, loteamento de benesses, cargos para apaniguados, concessão de canais de rádio e televisão, compra de votos, reeleição, falsificação de remédios, de troca de grei partidária às vésperas de eleição para as mesas diretoras do Congresso Nacional... São R$ 80,00 e não R$ 160.000.000,00... O incriminado reconheceu a prática do evento, mas justificou que as frutas se destinavam a saciar a fome de seus filhos, tendo sido rateadas com seu sobrinho inimputável. A conduta denunciada não foi efetuada mediante violência ou grave ameaça. Não houve perigosidade. Por esta razão, mais que nunca, a interpretação do tipo deve seguir uma força centrípeta, num viés restritivista. Questão simples e eminentemente patrimonial (mero ilícito civil), que só pode ser objeto do Direito Penal do terror, insensível à realidade social, trajado como Robin Hood, exercendo o papel de superego da sociedade. Indisfarçável, pois, a desvalia do comportamento, a irrelevância da conduta e a insignificância da ação, e, por corolário, imprescindível a aplicação do princípio da bagatela criminal, uma vez que sem fôlego para ofender o bem jurídico protegido pela moldura do art. 155 do diploma repressivo. Condenar alguém por furto de peixes é, por conseqüência, aplicar-lhe pena restritiva de direito que, se não cumprida, conduzirá à conversão em pena privativa de liberdade. É cadeia. É possibilitar a reincidência. É marcar com ferro em brasa a certidão de antecedentes. É fechar as portas do trabalho e das já estreitas vias da reinserção social. SENTENÇAS As certidões das fls. 30-1 não positivam maus antecedentes. Não pode um cidadão de direitos ficar eternamente manchado por fato isolado que tenha praticado no curso de sua existência, designadamente a quase 30 anos. Se o instituto da reincidência, cujos efeitos são indisfarçavelmente mais gravosos, sucumbe com o passar de um lustro, não poderiam aquelas condenações sem força para gerá-la se perpetuarem, negativando o histórico de vida do agente. Estes entendimentos, sublinho, não podem ser confundidos com frouxidão, benevolência, emocionalismo casuísta ou com condescendência a incentivar a criminalidade. Ao contrário, por distinto vértice, tem o fito de considerar o valor social de uma realidade fática, obstando a criação de mais um fosso a distanciar a Justiça no atendimento das questões verdadeiramente importantes para a sociedade. Outrossim, não percebo interesse do Estado (e, sobretudo, dos seus financiadores, os contribuintes assalariados – mal-assalariados) em ver impulsionada a tão pesada e dispendiosa máquina judiciária para apurar condutas de escassa ou inexpressiva lesividade social, considerando que, em outro prisma, se encontram os imensuráveis acontecimentos potencial ou realmente graves. Em tempos de pancriminalização, de helefantíase típica, de furor repressivo, não se pode perder de vista o caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, devendo este se constituir na ultima ratio, e não numa luva moldada a todas as mãos. Nesse contexto, é mister referir Weltzel e a sua “Teoria da Adequação Social”, pela qual, em apertadíssima síntese, se intenta embretar (intradogmaticamente) o raio de incidência da norma SENTENÇAS penal. Não é possível se legitimar a constatação do saudoso Heleno Fragoso, apud Nilo Batista, “Punidos e Mal Pagos”, Rio de Janeiro, Revan, 1990, p. 94: “O Direito Penal é, realmente, Direito dos pobres, não porque os tutele e proteja, mas porque sobre eles exclusivamente faz recair sua força e seu dramático rigor”. Abordando tema nos moldes deste em apreço, o jurista Amilton Bueno de Carvalho, em conhecida obra, que obrigatoriamente suscita questionamentos e reavaliações (“Magistratura e Direito Alternativo”), reproduz citação de Fechner, a qual, pelo conteúdo e significado, exige seja designada: “Somente para os desafortunados é que a ordem jurídica se torna problemática. Para eles, essa ordem é exclusivamente produto do arbítrio dos poderosos. É proibido pedir esmolas nas portas das igrejas, roubar pão e dormir sob as pontes”. A realidade triste de uma sociedade maculada pela desigualdade, pela exclusão, pelo abandono e pela discriminação tem encontrado sensibilidade pontual nos tribunais, senão vejamos: “Furto. Crime de bagatela. Se o fato imputado ao réu mostra-se irrelevante socialmente, sendo o valor do bem furtado irrisório, aplica-se o princípio da insignificância. Apelação provida para absolver o réu”. (Apelação-Crime nº 698132826, 2ª Câmara de Férias Criminal do TJRGS, Lagoa Vermelha, Rel. Des. Marco Antônio Bandeira Scapini, apelante: R. C. A. P., vulgo “J.”, apelada: a Justiça, julgada em 30-07-98, unânime) “Crime de bagatela. Conduta atípica. A subtração de algumas ramas de aipim da horta da vítima, por determinar um dano material insignificante, revela que 317 a ação incriminada descrita na denúncia não possui peso ou vigor suficientes para atentar contra o bem jurídico tutelado pela norma contida no art. 155 do CP, tornando atípica a conduta do agente, ensejando a rejeição da denúncia.” (“Julgados do TARGS” nº 69/101) Por derradeiro, é de ser vincado o célebre voto da lavra do Des. Léo Afonso Einloft Pereira, por ocasião do relatório no Recurso em Sentido Estrito nº 291063840: “Descriminando-se judicialmente a bagatela, não se estará desestimulando a honestidade, pois ninguém se tornará desonesto porque o Judiciário adstringiu o efeito do ilícito insignificante ao antecedente policial. A desonestidade surge pela dramaticidade da situação socioeconômica do agente. Não será a impunidade do fato irrelevante que fomentará o crime, mas a pobreza do povo. É a miséria a inimiga da aflita sociedade brasileira, não o jovem delinqüente que dela é fruto. “Portanto, para combater delitos patrimoniais, urge que o País se empenhe na radicação de questões como a natalidade descontrolada, a fome, a infância abandonada, o desemprego e a pobreza em geral, e não que o Poder Judiciário reprima gravemente as infrações patrimoniais, pois estará combatendo os seus efeitos, ao revés de atacar as causas da criminalidade. “Neste vendaval de cinismo e decomposição moral que afeta uma sociedade em crise, envolvendo até mesmo a classe dirigente, sustentar-se no preceito dura lex, sed lex que a tese do crime de bagatela não encontra guarida no Direito sancionador pátrio, salvante como causa especial de diminuição de pena, no furto e no estelionato, ou de perdão judicial, 318 ao crime do art. 176 do CP, é uma postura sobremodo legal, mas conservadora, não-compatível, repita-se, com a realidade nacional, a qual o julgador jamais poderá desconhecer ou ignorar”. Arrematando, exteriorizo ainda mais o que muito bem vincou o Des. José Antônio Paganella Boschi em seu texto “Justiça aos Juízes”, publicado pelo “Informativo do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais” nº 05/08: “O uso abusivo do Direito Penal é uma prática antiga em nosso País. O Prof. René Ariel Dotti menciona, em suas “Notas para a História das Penas no Sistema Criminal Brasileiro”, que ao tempo das Ordenações Portuguesas e de seu fantástico regime de terror um rei africano, ao ouvir espantado a leitura do catálogo de punições, teria manifestado a estranheza de que não se cominasse pena ‘para quem andasse descalço’ ”! Por fim, servindo de inspiração e para provocar oxigenada reflexão, reproduzo neste julgamento a composição do cantor nativista João de Almeida Neto, intitulada “A Defesa”: “Voltando de uma caçada, dentro da noite silente, o acusado, João Vicente, cometeu a insensatez de agarrar umas batatas de uma lavoura lindeira, furtando pela primeira e, também, última vez. É de bons antecedentes, como a defesa supunha, pois não falta testemunha que lhe abone o proceder, é um índio de pouca prosa, honesto, simples, pacato, que mora à beira do mato, plantando para viver. “Mas todos têm o seu dia de culo, como se diz... e ele, pobre, infeliz, tentado por Satanás, pôs no bolso umas batatas, de vinte a trinta, calculo, e no seu dia de culo foi descoberto, no más. E foi um ‘Deus-nos-acuda’, seu rancho SENTENÇAS foi revistado, veio um Sargento fardado com pose de General, e o João Vicente Pacheco, pacato, simples, honesto, o filho do seu Modesto, foi processado, afinal. “E agora, aqui me concentro nestes versos sem beleza, para fazer a defesa de tão pequeno ladrão; abro o código da lei, como se diz lá por fora, e peço, sem mais demora, a sua absolvição. João Vicente está inocente e não merece a condena, porque está isento de pena, pelo Código Penal; pois nestes tempos modernos, de roubos e negociatas, quem furta algumas batatas é um retardado mental. “Ou então basta uma multa, porque o furto praticado, de tão pequeno e minguado, coube em dois bolsos normais, e que importa à parte lesada, menos pobre em bens terrenos, umas batatas a menos, umas batatas a mais. Por falta de dolo ou culpa que o crime caracterize, deixe passar o deslize até sem multa, doutor. Vossa Excelência é sensível, e sabe em sua nobreza que a maior batata inglesa não vale um gesto de amor”. Ainda, não encontrei quaisquer elementos nos autos, precisamente na prova oral e nas certidões, a indicar tenham os argüidos corrompido o adolescente. Ao exposto, julgo improcedente a pretensão penal e absolvo A. P. F. e N. M. P., com supedâneo normativo no art. 386, inc. III, do CPP. Custas pelo Estado. Preencha-se o Boletim Individual Estatístico e remeta-se-o ao Departamento de Informática Policial. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Não-Me-Toque, 11 de outubro de 2000. André Luís de Moraes Pinto, Juiz de Direito. 319 Processo-Crime nº 2.317/205 – Estupro Vara Judicial Única da Comarca de Campo Novo Autor: Ministério Público Réu: L. S. Juiz prolator: Luís Antônio Saud Teles Estupro com violência real e presumida. Vítima que resulta grávida do próprio genitor. Ação penal julgada procedente. Vistos, etc. L. S., brasileiro, viúvo, montador, com 45 anos de idade na data do fato, natural de R.-RS, filho de J. A. S. e de S. S., residente na Rua R., Bairro P., no Município de P.-RS, foi denunciado, pelo Ministério Público , como incurso nas sanções do art. 213, c/c os arts. 224, a, 225, II, e 226, II, todos do CP, pela prática do seguinte fato delituoso: “Nos anos de 1993, 1994, 1995 e 1996, em diversas datas, não esclarecidas no inquérito policial, na cidade de C. N., e no ano de 1996, em P.-RS, o denunciado L. S. constrangeu a vítima D. F. S., sua filha, à conjunção carnal, mediante ameaças e violências físicas, conforme auto de exame de corpo de delito da fl. 15. “Para submeter a vítima à prática da conjunção carnal, o denunciado explorava o temor reverencial da filha D., e ainda a agredia fisicamente, quando ela se recusava a manter relações sexuais com o acusado. A esposa do denunciado e mãe da vítima havia falecido, de forma que a vítima ficou à mercê do acusado. “A violência também é presumida pela idade da vítima, porque a ofendida D. tinha 12 anos de idade, quando o denunciado iniciou a prática de cons- trangimento à conjunção carnal contra a filha (certidão da fl. 12). Em conseqüência das relações sexuais mantidas com o denunciado L. S., a vítima D. restou grávida e deu à luz uma menina em 28-09-96, conforme certidão da fl. 09. O crime foi cometido com abuso de pátrio poder que o denunciado exercia sobre a vítima, sua filha”. A denúncia foi recebida em 03-08-98. O réu foi interrogado (fls. 117/8). Confessou ter mantido relações sexuais, de forma consensual, com a vítima, quando esta já contava mais de 15 anos de idade. Por defensor constituído, apresentou defesa prévia na fl. 119 e arrolou seis testemunhas. Durante a instrução do processo, colheu-se o depoimento da vítima e de oito testemunhas. Na fase do art. 499 do CPP, as partes nada requereram. Em alegações finais, o Ministério Público (fls. 216/29) postulou a condenação do réu, nos moldes da denúncia. A defesa (fls. 231/3) postulou a absolvição, afirmando a atipicidade do fato. Vieram os autos conclusos. Relatei. DECIDO D. F. S. (a vítima) é filha de L. S. (o réu) e de M. N. S., sendo que após a morte da mãe, D. permaneceu residindo apenas com o pai. A persecutio criminis in judicio partiu das informações da avó materna da vítima, que tinha 320 fundadas suspeitas de que o pai da filha de D. era o seu próprio pai, ou seja, que L. era o pai da filha de sua filha. No depoimento da vítima, prestado perante a autoridade policial (fl. 27), esta relata que sua mãe morreu no ano de 1993 e que, desde então, seu pai a obrigava a manter relações sexuais com ele, mostrando-se agressivo quando ela com isso não consentia. Estas relações ocorreram desde após a morte de sua mãe, até após a época em que L. passou a conviver com J. Quando restou comprovado que estava grávida, como L. sabia que era o pai do filho que sua própria filha esperava, todos se mudaram para a cidade de P. Ouvido como indiciado (fl. 41), L. refere que após a morte de sua esposa, porque trabalhava como montador, passava maior parte do tempo viajando, sendo que, passado cerca de 02 anos da morte de sua esposa, D. não aceitava que o depoente tivesse outra mulher, pois “chorava seguidamente e ficava emburrada”. Diante dessa situação, acabou ocorrendo o envolvimento sexual entre o depoente e sua filha D., sendo que, quando deste relacionamento, D. não era mais virgem. Até porque passava maior parte do tempo viajando, os relacionamentos sexuais com sua filha não eram freqüentes, e, quando retornava para casa, D. não o deixava sair. Na época em que o depoente passou a conviver com J., ainda mantinha relações sexuais com a filha D., sendo que J. desconhecia tal envolvimento. Em razão desses envolvimentos sexuais, D. engravidou do depoente. Com o recebimento da denúncia, realizou-se o interrogatório do réu, que SENTENÇAS restou reduzido a termo nas fls. 117/8. Também em juízo o réu não nega o envolvimento sexual com sua própria filha, mas apresenta a sua estória permeada por circunstâncias não-referidas na fase policial. No interrogatório das fls. 117/8, o réu aduz que manteve relações sexuais com D. apenas quando esta já contava 15 anos de idade. De forma contrária ao afirmado perante a autoridade policial, o réu agora nega a paternidade da criança gerada por sua filha D., afirmando que nem sabia que ela estava grávida. Relata que as relações sexuais com sua filha duraram mais ou menos 02 meses e ocorreram antes do nascimento de D. (filha de D., que nasceu em 28-09-96), quando D. ainda não tinha “barriga”. Por fim, afirma que nunca forçou a filha D. a praticar o ato sexual, sendo que inclusive falava para ela que “isto não era certo”. Que a vítima manteve relações sexuais com seu pai não há dúvidas nos autos. Resta saber os limites temporais de tais relacionamentos e as circunstâncias em que eles ocorreram. A tese ministerial é no sentido de que o réu cometeu os fatos em continuidade delitiva, durante os anos de 1993, 1994, 1995 e 1996, ou seja, antes e depois de a vítima completar 14 anos de idade. Termo inicial. Embora não haja nos autos a certidão de óbito de M. N. (mãe da vítima), há várias referências das testemunhas no sentido de que o falecimento ocorreu no ano de 1993. D. refere que a primeira pessoa com quem manteve relações sexuais foi seu pai, e tiveram início logo após a morte de sua mãe, quando contava 12 anos de idade e ainda não havia menstruado, pois já SENTENÇAS tinha 13 anos de idade quando da primeira menstruação. Considerando que a vítima nasceu em 06-02-81, quando da morte de sua mãe, contava exatos 12 anos de idade. O réu, quando ouvido na Polícia, refere que, no tempo em que manteve relações sexuais com a vítima, faziam “uns” 02 anos que sua esposa havia falecido. Refere também que “já no tempo em que estava convivendo com J. ainda mantinha relações sexuais com D.” Depreende-se deste depoimento (diga-se de passagem: depoimento que não restou minimamente atacado pelo réu como sendo viciado, nulo ou fruto de abuso policial) que as relações sexuais tiveram início antes do convívio entre o réu e J. J. refere dois dados temporais importantes. No depoimento prestado em 26-05-98 (fl. 44), afirma que possui com o réu um filho de 04 anos de idade. No depoimento prestado em 21-10-99, declara que convive com o réu há mais de 06 anos. Portanto, por força de interpretação lógica, conclui-se que J. convive com o réu desde o ano de 1993, ou seja, logo em seguida após o óbito da mãe da vítima. Se o réu passou a conviver com J. ainda no ano de 1993 e antes disso já mantinha relações sexuais com a vítima, isto corrobora a tese ministerial quanto ao termo inicial dos atos descritos na inicial acusatória. No interrogatório judicial o réu faz afirmações inconciliáveis, pois afirma que manteve relações sexuais com a vítima, quando esta já tinha mais de 15 anos de idade, pelo período de 02 meses, e quando ela ainda não estava grávida. Ocorre que a vítima completou 15 anos de idade em 06-02-96 e deu à luz sua filha em 28-09-96. Se se considerar o 321 prazo normal de gestação, conclui-se pela impossibilidade de o afirmado pelo réu ser verdadeiro, pois quando D. completou 15 anos de idade já estava no primeiro ou segundo mês de gestação da filha D. Por tudo isto é que concluo que o réu manteve relações sexuais pela primeira vez com a vítima quando esta contava menos de 14 anos de idade, ainda no ano de 1993. Termo final. A vítima afirma que o réu é o pai de sua filha. Portanto, a palavra de D. aqui também conforta a tese ministerial de que, até o ano de 1996, o réu manteve relações sexuais com a vítima. Nas declarações prestadas perante a autoridade policial, o réu reconhece a paternidade da filha da vítima, portanto, também aqui encontra guarida o afirmado na inicial quanto ao termo final dos atos sexuais entre L. e D. Sopesando-se a palavra firme e segura da vítima, que aceita o constrangimento de sustentar que sua filha é fruto de uma relação incestuosa; e as palavras dúbias do réu, que perante a autoridade policial diz uma coisa e, na frente do magistrado, outra, é certo que aquela prefere estas. Aqui não há lugar para discussão no sentido de o réu ser, ou não, o pai da filha da vítima, mas não se pode descurar a hipótese, pois a paternidade foi reconhecida pelo réu quando de suas declarações à autoridade policial. Sendo, ou não, pai de D., a verdade é que, na época da concepção desta criança, o réu mantinha relações sexuais com D., vale dizer, no mínimo 09 meses antes do nascimento de D., réu e vítima ainda mantinham relações sexuais. Mas um fator de relevância para determinar-se este termo final são os 322 depoimentos no sentido de que, logo que o réu tomou ciência da gravidez de sua filha, transferiu residência para a cidade de P., para afastar D. do convívio dos familiares maternos. Possuía ele um motivo para isto e o motivo era esconder a gravidez incestuosa dos olhos da avó materna da vítima. Dessarte, todas as evidências apontam no sentido de que, pelo menos, até 28-12-95 réu e vítima mantiveram relações sexuais, pois esta é a provável data da concepção de D. Violência real. O tipo previsto no art. 213 do CP possui como elementares o constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, de uma mulher à conjunção carnal. Portanto, a verificação da violência ou a da grave ameaça são elementos indispensáveis para a tipificação deste delito. Quanto à violência, esta pode ser real ou ficta, pois a lei presume que aquelas pessoas elencadas no art. 224 do CP não podem consentir de forma válida à prática do ato sexual. Portanto, não cabe falar-se em cópula consensual se a mulher conta menos de 14 anos de idade, é alienada mental ou encontra-se em situação que não possa oferecer resistência. Conjugando-se estes dois artigos legais, pode-se afirmar que: a) sempre que houver conjunção carnal com uma mulher mediante violência ou grave ameaça, configurado estará o delito de estupro; e b) mesmo sem violência ou grave ameaça, ainda haverá estupro se a vítima encontrar-se em uma das hipóteses do art. 224 do CP, pois aqui presume-se a ausência de consentimento válido. Mais uma vez analiso os depoimentos da vítima e as palavras do réu. “… A primeira vez que aconteceu relação sexual entre os dois foi logo em segui- SENTENÇAS da que sua mãe morreu, em casa, estando somente os dois, já que sua irmã já tinha casado. Estava indo dormir e o réu forçou a barra, tendo batido na depoente. Não contou para ninguém, porque tinha medo dele… Depois que seu pai casou com J., continuou mantendo relações com ele. J. sabia, mas não fazia nada porque senão L. batia nela… Não contava isso para ninguém, nem para sua irmã…” (depoimento judicial da vítima, fl. 168, mas sem os grifos) “… Após o falecimento da mãe da declarante, no ano de 1993, seu pai, L. S., vinha obrigando-a a sair com ele, a manter relações sexuais com ele; que quando a declarante se negava a ‘sair’, L. mostrava-se agressivo…” (depoimento prestado pela vítima na fase policial, fl. 27, sem os grifos) Outra é a ótica do réu. Transcrevo parte de seu depoimento da fl. 41. In verbis: “… Passados uns 02 anos do falecimento da esposa do depoente, a filha D. não aceitava que o depoente tivesse outra mulher, chorava seguidamente e ficava emburrada. As coisas foram até um ponto em que acabou acontecendo o envolvimento do depoente com a filha, ou seja, mantiveram relações sexuais…” Em juízo, no interrogatório das fls. 117/8, limita-se o réu a aduzir que: “… Nunca forçou D. a praticar qualquer ato sexual, tendo, inclusive, falado para ela que isto não era certo…” Para o réu, a vítima quis, insistiu, seduziu, atacou tanto que acabou determinando o relacionamento sexual, embora soubesse que “aquilo não era certo”. Não temo erro ao afirmar que no processo penal todos buscamos justificar ações humanas, e, para a maioria dos atos, até existe uma justificativa SENTENÇAS plausível, mas que justificativa existe para o pai que viola a sexualidade de sua própria filha, quando até mesmo os animais irracionais evitam o cruzamento entre parentes próximos? Será que um pai algum dia poderá justificar, não para os outros, mas a si próprio, o fato de ter descoberto a nudez de sua filha, daquela que é sangue do seu sangue? No mínimo, nos autos o réu não logrou justificar seu ato, pois inadmissível, impensável e inconcebível a hipótese de que um pai não consiga evitar o envolvimento sexual com a própria filha, ainda mais quando sabia que “aquilo não era certo”. Mais. Do outro lado da relação encontra-se uma criança, que já aos 12 anos de idade, mesmo antes da primeira menstruação, manteve relações sexuais com o próprio pai. Ainda mais. Menina esta órfã de mãe e que se encontrava subjugada única e exclusivamente aos mandos e desmandos do pai. Houve violência quando dos atos sexuais entre réu e vítima? É óbvio que sim, pois a vítima não se cansa de referir que: a) seu pai a agrediu; b) ficava agressivo quando ela se negava a satisfazer a sua lascívia; e c) não podia ter namorados, porque o pai não deixava. Houve grave ameaça? Também é evidente que sim, pois a exploração do temor reverencial (agravado pela circunstância de a mãe da vítima ter falecido) é inegável. A vítima encontrava-se absolutamente à mercê do réu, sendo que sua vida dependia única e exclusivamente de L., seu pai, seu algoz. Quando o réu tinha o dever moral e legal de velar pelos direitos da vítima, abusa de sua condição pessoal para subjugá-la e violá-la em sua sexualida- 323 de. Portanto, também é certo que houve grave ameaça. Continuidade delitiva. “O pai de D. é seu pai… As relações sexuais com seu pai foram umas seis vezes. Não tomava anticoncepcional, pois não sabia destas coisas. A primeira vez que aconteceu a relação não fazia nem um ano que sua (sic) mãe tinha morrido…” (depoimento judicial da vítima, fl. 168) Conjugando tudo o até aqui apresentado, é certo afirmar que houve uma continuidade delitiva, pois todas as relações (seis, segundo a vítima) mantidas entre réu e vítima ocorreram em condições de tempo, lugar e modo de execução semelhantes, que possibilitam que os subseqüentes atos sejam havidos como continuação do primeiro. Sempre que o réu relacionou-se sexualmente com sua filha foi mediante violência física e/ou graves ameaças em razão do temor reverencial, portanto, independentemente da idade da vítima, em todas as oportunidades restou caracterizada a ocorrência do delito de estupro. Entretanto, como a idade da vítima possui importante relevância para a fixação da pena, há que ser considerada a existência de duas cadeias de continuidade delitiva: a primeira entre os atos praticados antes de a vítima alcançar a idade de 14 anos; e a segunda, após aquela data. Vítima menor de 14 anos – Leis nos 8.069/90 e 8.072/90. Antes das alterações legislativas ocorridas em 1990, o tipo básico do delito de estupro previa penas abstratas de 03 a 08 anos de reclusão. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, buscando o cumprimento dos objetivos traçados pela doutrina da proteção integral, acrescentou ao art. 213 do CP um parágrafo 324 único, elevando as penas corporais previstas no caput para os limites de 04 a 10 anos de reclusão, quando a ofendida fosse menor de 14 anos de idade. Ocorre que restou assinalado para o Estatuto da Criança e do Adolescente um prazo de vacatio legis, portanto, embora publicado em 16-07-90, somente passou a viger 90 dias após a publicação. Durante o prazo da vacatio legis do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi publicada e entrou imediatamente em vigor a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 25-07-90), que alterou a pena prevista no caput do art. 213 do CP para reclusão de 06 a 10 anos, com a majoração de metade, se a vítima encontrar-se em uma das hipóteses do art. 224 do CP. Assim, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a viger, surgiu um aparente conflito de normas, pois, alguns incautos poderiam sugerir que o estupro praticado contra uma vítima menor de 14 anos seria apenado de forma mais branda que na hipótese de a vítima contar mais de 14 anos de idade na data do fato. É bem verdade que o malsinado § 1º do art. 213 do CP (introduzido pelo art. 263 do ECA) restou expressamente revogado pela Lei nº 9.281/96. Mas, no caso dos autos, como prevalece a regra tempus regit actum, a questão não pode ser solucionada com a simples afirmação da revogação havida pela Lei nº 9.281/96. Quanto ao assunto, alinho-me entre aqueles que afirmam que o parágrafo único do art. 213 do CP não passou de um dispositivo natimorto, pois a Lei dos Crimes Hediondos, ao alterar o apenamento do delito de estupro, revogou tacitamente as alterações determinadas pelo Estatuto da Criança e do SENTENÇAS Adolescente. E, aqui, não se pode deixar incorrer em peta, pois, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha passado a viger após a vigência da Lei dos Crimes Hediondos, a Lei nº 8.072/90 é posterior à Lei nº 8.069/90. Vítima menor de 14 anos – Majorante do art. 9º da Lei nº 8.072/90. Como já afirmado acima, mesmo sem violência real ou grave ameaça pode haver o delito de estupro, pois o nosso ordenamento penal não reconhece o coito consensual se a vítima encontra-se nas hipóteses do art. 224 do CP. O Direito é sistema e como tal deve ser interpretado, portanto, penso que a melhor exegese do art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos é aquela que mantém a coerência sistêmica e atribui uma utilidade a todos os dispositivos legais invocados. Somente para explicitação, tenho que a questão deve ser assim solvida: a) Estupro com violência ficta (aquele em que não há violência ou grave ameaça, e a vítima encontra-se nas hipóteses do art. 224 do CP): a pena é a prevista no caput do art. 213 do CP; b) Estupro com violência real ou grave ameaça, praticado contra vítima que se encontra nas hipóteses do art. 224 do CP: a pena é a do caput do art. 213, majorada de metade por força do art. 9º da Lei nº 8.072/90; e c) Estupro com violência real de que resultou lesão corporal de natureza grave ou morte, praticado contra vítima nas hipóteses do art. 224 do CP: as penas são aquelas previstas no art. 223, caput e parágrafo único, aumentadas de metade em qualquer das formas qualificadas, também por força do art. 9º da Lei nº 8.072/90. Por que não incide a causa de aumento do art. 9º da Lei nº 8.072/90 nos SENTENÇAS casos de estupro com violência ficta? A resposta é óbvia, pois, em Direito, não se admite o bis in idem, e, se se considerasse a menoridade da vítima tanto para reconhecer a existência da violência ficta, como para determinar a majoração da pena, haveria aqui uma dupla valoração penal para a mesma circunstância. Corolário. Após todo o exposto, resta a conclusão de que o réu praticou o delito de estupro contra a sua filha, em continuidade delitiva, com violência real e grave ameaça, durante os anos de 1993, 1994, 1995 e 1996. Resta agora a fixação das penas. Fixação das penas. A) Primeira investida sexual. Vítima menor de 14 anos de idade (de 1993 até 05-02-95). L. S. não registra antecedentes (certidões das fls. 52 e 214v.) e sua conduta social vem abonada nos autos pelas testemunhas T. (fl. 152) e O. (fl. 182). Demonstrou não possuir qualquer espécie de freios morais ao buscar a satisfação de seu ímpeto sexual com a própria filha, e isto é sintoma mais que suficiente a demonstrar uma personalidade desviada. Os motivos do delito são normais à espécie, e as circunstâncias serão valoradas como causas de aumento da pena. As conseqüências são por demais relevantes, pois, mesmo que D. (filha da vítima) não seja filha do réu, esta criança para sempre carregará a pecha de ser fruto de uma relação incestuosa. E mais, os danos que o ato tresloucado do réu já geraram para o desenvolvimento sadio de sua filha continuarão sendo verificados por toda a adolescência da menina e, quiçá, em sua vida adulta. Quanto ao comportamento da vítima, não consigo vislumbrar nos autos nenhum ato que se possa atribuir à D. 325 como determinante do delito. Somente alguém vil, abjeto, execrável e ignóbil poderia sugerir que, quando uma criança chora ou senta no colo do pai e suplica carinho, está dando azo ou provocando a prática de um delito contra os costumes. O próprio réu afirma que sabia que aquilo não era certo. Como tinha consciência do fato que estava praticando; como era inteiramente capaz de determinar-se de forma contrária; como lhe era exigível conduta diversa, é certo que a sua culpabilidade somente pode ser graduada como intensa. Dessarte, pela análise dos parâmetros ditados pelo art. 59 do CP, fixo a pena-base em 06 anos e 06 meses de reclusão. Influenciam na fixação da pena duas circunstâncias bastante relevantes que constituem causas de aumento da pena: o fato de o réu ser ascendente da vítima (art. 226, II, do CP) e a menoridade da vítima (art. 9º da Lei nº 8.072/ 90). Segundo a regra insculpida no parágrafo único do art. 68 do CP, o Juiz deve aplicar apenas uma das causas de aumento da pena, se estas encontram-se na parte especial (e as causas de aumento existentes na legislação extravagante são consideradas como estando na parte especial). Como a causa que mais aumenta é o fato de a vítima não ser maior de 14 anos, utilizo a circunstância de o réu ser pai da vítima como agravante genérica, e não como majorante. Assim, porque o delito foi cometido por ascendente contra descendente (art. 61, II, e, do CP), agravo a pena-base em 02 meses de reclusão. Como inexiste outra circunstância agravante ou atenuante, a pena provisória resta fixada em 06 anos e 08 meses de reclusão. 326 Não considero a confissão do réu, porque a confissão em seu sentido técnico não houve. O réu não nega a prática dos atos sexuais, mas não reconhece o estupro. Isto não é confissão. O delito foi praticado contra pessoa que encontrava-se nas hipóteses do art. 224 do CP, ou seja, contra vítima menor de 14 anos de idade, portanto, incide a causa de aumento prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, que determina a majoração da pena provisória por metade. Dessa forma, a pena definitiva para o primeiro estupro praticado pelo réu contra a vítima D. é de 10 anos de reclusão. B) Última investida sexual. Vítima maior de 14 anos de idade (de 06-02-95 até 1996). A fixação da pena para os demais fatos somente teria relevância para poder-se confrontar eventual hipótese de concurso material, mais benéfico que o reconhecimento da continuidade delitiva. Como é certo que a ficção da continuidade é mais favorável ao réu (a pena mínima para cada um dos fatos seguintes seria de 09 anos de reclusão: art. 213 mais art. 226, II, ambos do CP), deixo de proceder aos cálculos e procedo à imediata análise da pena pelo delito continuado. Continuidade delitiva. Sobre a hipótese debatida nos autos, possível se apresenta a aplicação do disposto no caput do art. 71 do CP, pois a série de estupros praticados pelo réu contra sua filha podem ser entendidos como única. Em razão da quantidade de atos praticados pelo réu (seis, segundo a vítima), a majoração da pena vai fixada na ordem de 1/4. Assim, como a pena definitiva restou fixada em 10 anos de reclusão para o fato mais grave, o reconhecimento da continuidade delitiva a eleva em 1/4, e, então, a pena a ser SENTENÇAS cumprida pelo réu é de 12 anos e 06 meses de reclusão. Art. 92, II, do CP. Como o réu abusou sexualmente de sua própria filha, resta mais que evidente que não possui ele capacidade de exercer o pátrio poder sobre a vítima. Entretanto, este efeito da condenação perde relevância prática, pois os documentos existentes nos autos demonstram que o réu já foi destituído do pátrio poder que detinha sobre a filha D. Isso posto, julgo procedente a denúncia para condenar o réu L. S., como incurso nas sanções do art. 213, caput, do CP, c/c o art. 9º da Lei nº 8.072/90, na forma do art. 71, também do CP, no cumprimento da pena privativa de liberdade de 12 anos e 06 meses de reclusão e na incapacidade para o exercício do pátrio poder sobre a vítima. Nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, o regime de cumprimento da pena será o integralmente fechado. Como o réu apresentou-se a todos os atos do processo e inexistem causas a determinar a sua segregação provisória (até mesmo o clamor social já não é tão intenso, pois os fatos ocorrem já há alguns anos), possibilito que apele em liberdade. Com o trânsito em julgado da sentença condenatória, lance-se o nome do réu no rol dos culpados, oficie-se ao TRE, expeça-se a Ficha Pj-30 e o BIE, forme-se o PEC e expeça-se de forma incontinenti o mandado de prisão. Após a remessa do PEC à Vara das Execuções Criminais de Três Passos, arquive-se com baixa. Custas pelo réu. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Campo Novo, 07 de julho de 2000. Luís Antônio Saud Teles, Juiz de Direito. 327 Processo-Crime nº 00102150456 – Homicídio Simples Inquérito Policial nº 1.445/99-100.315A Autor: Ministério Público Réu: R. A. S. Origem: 2º Juizado da 1ª Vara do Júri – Comarca de Porto Alegre Juiz prolator: Mário Rocha Lopes Filho Homicídio simples. Delito de trânsito. Vítima que fica presa às ferragens do automóvel. Inocorrência de dolo eventual. Desclassificação do delito. Vistos, etc. 1. R. A. S., brasileiro, casado, vigilante, filho de J. A. S. e de C. A. S., residente na Rua W. M., Bairro R. B, nesta Capital, foi denunciado pelo Agente do Ministério Público, por infração ao art. 121, caput, na forma do art. 14, inc. II, ambos do CP, com suporte no inquérito policial supramencionado, porque: “No dia 22-08-99, por volta das 16h15min, na Av. A. C., Bairro P., nesta Capital, o denunciado, conduzindo o automóvel Voyage, deu início ao ato de matar a vítima F. O. L., atropelando-o e a arrastando-o por aproximadamente 05km, produzindo-lhe as lesões descritas no boletim de atendimento do Hospital Cristo Redentor. “O fato não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, posto que o mesmo foi detido pela autoridade policial, e também devido ao imediato socorro médico prestado ao ofendido”. A denúncia foi recebida em 26-10-99, e o acusado, preso em flagrante homologado, após regular citação, foi interrogado, forneceu sua versão sobre o fato e, através da Defensoria Pública atuante nesta Vara, ofereceu defesa prévia no tríduo de lei (fls. 27v., 172v./176 e 182/183). A instrução colheu os informes de três testemunhas arroladas na inicial acusatória e três testemunhas de defesa, homologando-se, com a anuência da defesa, a desistência da inquirição da testemunha faltante. Além disso, foi substituída a inquirição das testemunhas arroladas em defesa prévia por declarações abonatórias, conforme postulação da defesa e despacho da fl. 207. Durante a instrução, adveio o passamento da vítima, motivando, por essa razão, o aditamento à denúncia pelo Ministério Público, imputando ao acusado a sanção descrita no art. 121, caput, do CP, conforme promoção das fls. 237/ 238. Recebido o aditamento em 02-06-00 (fl. 238v.), foi o réu reinterrogado, reaberto o prazo para apresentação de alegações preliminares, concluindo-se a instrução com a inquirição de duas testemunhas – uma delas por precatória expedida para a Comarca de Passo Fundo, em virtude de o Corregedor-Geral da Brigada Militar ter fornecido o novo endereço da referida testemunha, por não mais integrar os quadros daquela instituição, conforme se vê à fl. 241 –, tendo a defesa reiterado os depoimentos das demais testemunhas inquiridas em juízo (fls. 245/250 e 255). 328 Registre-se, por pertinente, ter sido concedida a liberdade provisória ao imputado, mediante os compromissos de estilo, antes mesmo do início da instrução criminal (fl. 142v.). Declarada encerrada a instrução, no prazo do art. 406 do CPP, o Órgão Ministerial propugnou pela pronúncia do acusado, e a defesa, por seu turno, pela desclassificação do delito ao réu atribuído. É, em síntese, o relatório. 2. Decido. 2.a. Preliminarmente, cumpre ser registrado ter sido expedida carta precatória para a comarca de Passo Fundo, em razão de haver o Corregedor-Geral da Brigada Militar, conforme o Ofício nº 994/H/COR, da fl. 241, informado o desligamento da testemunha L. R. D. dos quadros daquela instituição, sendo, portanto, despiciendo o comentário tecido pelo insigne magistrado da Comarca deprecada, à fl. 255. Por outro lado, antes de aferir a respeito da conduta de R. A. S., a quem é imputada a prática de homicídio simples com dolo eventual, por pertinente, permito-me acrescer o seguinte: 2.b. A problemática do trânsito. 2.b.1. Introdução. É bom fique registrado, desde o início, que os delitos de trânsito são aqueles que mais preocuparam e continuam preocupando não só os legisladores, a sociedade, como também – e principalmente – a mídia. Houve uma época em que os jornais e os noticiários de televisão preocupavam-se, dia após dia, com o número das mortes ocorridas nas estradas, especialmente durante o período de veraneio. Sem mais delongas, é correto registrar que esta neurose coletiva trouxe motivação ao legislador, levando-o, em razão disso, a nos apresentar, através da SENTENÇAS Lei nº 9.503, de 23-09-97, em vigor, a partir de 23-01-98, o novo Código de Trânsito Brasileiro. Aparentemente, com a nova legislação, todos os problemas ficariam resolvidos, mas na verdade, ao contrário, a novel legislação, além de nos trazer conceitos duvidosos e de difícil representação no âmbito do processo, a rigor, com a superveniência da Lei nº 9.714/98, novamente, em contradição ao sistema vigente e aos objetivos da nova lei, foi consagrada a impunidade. É fácil lembrar-nos dos tempos passados, onde o sonho de consumo dos jovens era um automóvel Volkswagen, o famoso “Fusca”, com rodas de magnésio, cuja velocidade não ultrapassava os 120km/h. Hoje, trafegamos pelas ruas, e o famoso “Fusca” é uma raridade. Os automóveis de mil cilindradas atingem velocidade superior a dos fuscas antigos, e tudo isso, somado à falta de educação específica da população brasileira, leva, necessariamente, a este caos em que vivemos atualmente. Seria também necessário indagar quais as razões que nos levaram a abandonar as estradas de ferro, onde o transporte da produção e de pessoas era mais seguro, optando pelo transporte via rodoviária, com os caminhões, feito através de estradas esburacadas, sem conservação e mal sinalizadas. Poderíamos também cogitar da problemática do valor do frete, que literalmente paralisou o Brasil há dias atrás, isso sem deixar de referir, e quem sabe indagar, as razões pelas quais parte dos motoristas profissionais costumam dirigir embriagados ou tomando remédios para não dormirem e, assim, cumprir o horário estabelecido para a entrega da carga transportada. SENTENÇAS Por fim, chegamos ao final do milênio sem resolver o problema do trânsito, pois as fábricas produzem mais automóveis, cada vez mais modernos, as estradas não possuem verbas para a sua manutenção, e não há educação nem prevenção, muito menos fiscalização adequada. Evidentemente, em um aspecto, houve uma aparente melhoria, mas para os cofres do Estado, com multas pesadas impostas aos motoristas infratores. 2.b.2. O Código de Trânsito Brasileiro e a Lei das Contravenções Penais. Inicialmente contrariando o entendimento dos Tribunais Superiores, a Turma Recursal Criminal do Rio Grande do Sul, de forma unânime, em relação à contravenção do art. 32, e, majoritariamente, quanto à do art. 34 da Lei das Contravenções Penais, vem sustentando não mais poderem coexistir, harmonicamente, tais infrações com os arts. 306 e 309 do CTB. De um lado temos delitos de mera conduta, onde a presunção militava em favor da sociedade, e de outro, temos a necessidade de demonstração do dano potencial ou do perigo de dano, respectivamente, os arts 306 e 309 do CTB. No entender da Turma, como já se preconizava no Código Penal de 1969, referido por Marcelo Linhares, em sua obra “Contravenções Penais” (ob. cit., Ed. Saraiva, 1980, p. 293), e mais recentemente o Ministro Cernichiaro (REsp nº 34.332, STJ, 6ª Turma , “DJU”, de 02-08-93, p. 14.295), mesmo nas contravenções precisávamos da possibilidade concreta do perigo de dano a outrem. Não há mais espaço no Direito brasileiro para a condenação por presunção; aliás, se para o mais, que é o crime, precisamos da demonstração de dano potencial ou perigo de dano, para 329 o menos, que é a contravenção, não se pode admitir venha tal circunstância em prejuízo do agente. A omissão legislativa permite a discussão, na doutrina, a respeito dos conceitos de ab-rogação (Damásio de Jesus) e derrogação, e, por isso, novamente somos obrigados a questionar o legislador, por não se ter apercebido do problema, transferindo essa responsabilidade, como no mais das vezes, ao tão criticado Poder Judiciário. Afinal, como poderíamos definir dano potencial e perigo de dano? Essa terminologia equivocada permite a crítica que muitos fazem a respeito do Código de Trânsito Brasileiro, dentre eles, Fabrício Pozzebon, na obra “Crime e Sociedade”, organizada pelo Dr. Cezar Bittencourt (Juruá Editora, 1999). A Turma Recursal Criminal do Rio Grande do Sul vem entendendo que dano potencial e perigo de dano, respeitadas opiniões em contrário, são conceitos assemelhados e que não comportam outra interpretação, que não a de que, para a existência dos delitos onde se exige a figura, o perigo de dano necessita ser real, efetivo, concreto, e não uma mera possibilidade abstrata (AC nº 71000000315, de 23-04-99). Podemos, assim, cogitar de que alguém, embriagado, dirija seu veículo pelas ruas e, se não proporcionar uma situação de perigo concreto de dano, não poderá ter sua conduta analisada nos lindes do art. 306 do CTB. Por fim, à exceção dos delitos de homicídio (art. 302) e de lesão corporal culposa (art. 303), do ato de dirigir embriagado (art. 306) e participar de competição não-autorizada (art. 308), com a exposição de outrem a dano potencial ou perigo de dano, todas as demais infrações 330 incluem-se dentre os delitos de menor potencial ofensivo, sobre os quais incide a Lei nº 9.099/95. 2.b.3. Os crimes de trânsito e o dolo eventual. Aquela neurose coletiva já referida possibilita que alguns “objetivando prevenir a impunidade” cogitem da aplicação do dolo eventual aos delitos de trânsito. De forma simplista, justificam a penalização por homicídio doloso, tendo como argumento preponderante o fato de alguém dirigir embriagado e em velocidade acima da permitida, esquecendo-se do que, na realidade, significam, doutrinariamente, o dolo eventual e a culpa consciente. Para simplificar esse raciocínio, presumem o assentimento para o resultado danoso, sem qualquer elemento probatório a demonstrar tivesse tal circunstância passado pela cogitação do agente. Esta afirmação não prescinde a lembrança do mestre Nelson Hungria que, em sua obra “Comentários ao Código Penal”, ao fazer uma análise a respeito dos dolos direto, indireto, e dolo alternativo, ao se referir ao dolus eventualis, tratando da determinação da vontade, disse o seguinte: “Também não é indeterminada a vontade no dolo eventual: quando a vontade, dirigindo-se a certo resultado, não recua ou não refoge da prevista probabilidade de outro resultado, consentindo no seu advento, não pode haver dúvida de que esse outro resultado entra na órbita da vontade do agente, embora de modo secundário ou mediato. A menção expressa que faz o Código ao dolo eventual, para equipará-lo ao dolo direto (em que o resultado é querido de modo principal ou imediato), plenamente se justifica: não obstante a justeza do raciocínio SENTENÇAS de que ‘quem se arrisca, quer’, tem-se pretendido, em doutrina e na jurisprudência, identificar o dolus eventualis com a culpa consciente (luxúria ou lascívia, do Direito Romano), isto é, com uma das modalidades da culpa stricto sensu. “Sensível é a diferença entre essas duas atitudes psíquicas. Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá. Eis a clara e precisa lição de Logoz, que merece transcrição integral: ‘... a diferença entre essas duas formas de culpabilidade (dolo eventual e culpa consciente) apresenta-se quando se faz a seguinte pergunta: ‘por que, em um e outro caso, a previsão das conseqüências possíveis não impediu o inculpado de agir?’. “A esta pergunta, uma resposta diferente deve ser dada, segundo haja dolo ou culpa consciente. No primeiro caso (dolo eventual), a importância inibidora ou negativa da representação do resultado foi, no espírito do agente, mais fraca do que o valor positivo que este emprestava à prática da ação. Na alternativa entre duas soluções (desistir da ação ou praticá-la, arriscando-se a produzir o evento lesivo), o agente escolheu a segunda. Para ele o evento lesivo foi como que o menor de dois males. Em suma, pode dizer-se que, no caso de culpa consciente, é por leviandade, antes que por egoísmo, que o SENTENÇAS inculpado age, ainda que tivesse tido consciência do resultado maléfico que seu ato poderia acarretar. “Neste caso, com efeito, o valor negativo do resultado possível era, para o agente, mais forte que o valor positivo que atribuía à prática da ação. Se estivesse persuadido de que o resultado sobreviria realmente, teria, sem dúvida, desistido de agir. Não estava, porém, persuadido disso. Calculou mal. Confiou em que o resultado não se produziria, de modo que a eventualidade, inicialmente prevista, não pode influir plenamente no seu espírito. Em conclusão: não agiu por egoísmo; não refletiu suficientemente’ ”. Coerente, ainda, alusão à Fórmula de Frank, feita pelo mesmo mestre, dizendo o seguinte: “A primeira delas assim decide: a previsão do resultado como possível somente constitui dolo se a previsão do mesmo resultado como certo não teria detido o agente, isto é, não teria tido o efeito de um decisivo motivo de contraste. É esta a fórmula denominada da ‘teoria hipotética do consentimento’, a que o próprio Frank acrescentou esta outra (chamada ‘teoria positiva do consentimento’): se o agente se diz a si próprio: seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir, é responsável a título de dolo”. Ambas as fórmulas deverão servir de orientação para o Juiz, mas é óbvio que, para sua aplicação aos casos concretos, terá ele de guiar-se pelo conhecimento das circunstâncias do fato, para retraçar os motivos do agente. É o que bem acentua M. E. Mayer, com a sua teoria da motivação: “Para distinguir essas duas espécies de culpabilidade (dolo eventual e culpa consciente), 331 deve indagar-se como o agente se comportou ao prever o resultado, tendo-se em vista, para tal fim, o complexo total de seus motivos. Mais: assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco; é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer” (grifo aposto). E, referindo o Ministro Campos, ao comentar o art. 15, inc. I, do CP pretérito, disse: “O dolo eventual é, assim, plenamente equiparado ao dolo direto. É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente ratifica ex ante, presta anuência ao seu evento” (“Comentários ao Código Penal”, I/113-115, tomo II, Ed. Revista Forense, 1995). Magalhães Noronha, por sua vez, refere, simplificando as diferenças de dolo direto e dolo eventual “... que o primeiro é a vontade por causa do resultado; o outro é a vontade apesar do resultado” (“Direito Penal”, Ed. Saraiva, 1982, I/147). Aníbal Bruno refere que o agente no dolo eventual “prevê o resultado apenas como provável ou previsível, mas, apesar de prevê-lo, age, aceitando o risco de produzi-lo; a vontade não se dirige propriamente ao resultado, mas apenas ao ato inicial, que nem sempre é ilícito, e o resultado não é representado como certo, mas só como possível. Mas o agente prefere que ele ocorra, a desistir do seu ato” (“Direito Penal”, tomo II, pp. 73/74). Paulo José da Costa Júnior alude que no dolo eventual “ao representar mentalmente o evento, o autor aquiesce, tendo uma antevisão duvidosa de sua realização. Ao prever como possível a 332 realização do evento, não se detém. Age, mesmo à custa de produzir o evento previsto como possível. Assume o risco, que é algo mais do que ter consciência de correr o risco; é consentir previamente no resultado, caso este venha a ocorrer. Integram o dolo eventual: a representação do resultado como possível e a anuência do agente à verificação do evento, assumindo o risco de produzi-lo” (“Curso de Direito Penal”, I/87, 1992). E ainda: “Saliente-se, contudo, que a vontade, e não a representação, constitui a essência do dolo eventual. A decisão de agir, mesmo com a possibilidade da realização do evento, é uma situação psicológica característica, impregnada de volição. Constitui de qualquer modo uma decisão da vontade diante do evento previsto como possível, ainda que indiferente ou até incômodo. Prever o evento e não se abster da conduta equivale a querer. O dolo, no entanto, é algo de positivo, que não pode ser configurado negativamente (não recusar o evento, não se abster da conduta, etc.). Sendo o dolo eventual elemento integrante da parte mais grave da culpabilidade, embora menos intenso que o dolo determinado, não pode ser expresso em termos aproximativos ou negativos. O agente haverá de emitir um juízo afirmativo: o evento poderá verificar-se. Se o juízo assertório do autor, ao prever o evento, confia na sua habilidade ou na boa fortuna para que ele não se verifique, estaremos no campo da culpa consciente. Tanto vale não prever um evento, como prever que ele não se verifique. Os elementos integrantes do dolo eventual são dois: a representação do resultado como possível e a anuência do agente do evento, assumindo o risco SENTENÇAS de produzi-lo. Tais elementos não podem ser extraídos da mente do autor, mas deduzidos das circunstâncias do fato. Em caso de dúvida por parte do julgador, deverá concluir pela solução menos rigorosa: a da culpa consciente” (“Comentários ao Código Penal”, Ed. Saraiva, 1996, pp.75/76). Por último, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Enrique Pierangeli referem: “O dolo eventual, conceituado em termos correntes, é a conduta daquele que diz a si mesmo ‘que agüente’, ‘que se incomode’, ‘se acontecer, azar’, ‘não me importo’. Observe-se que aqui não há uma aceitação do resultado como tal, mas, sim, sua aceitação como possibilidade, como probabilidade”. E acrescenta: “O limite entre o dolo eventual e a culpa por representação é um terreno movediço, embora mais no campo processual do que no penal. Em nossa ciência, o limite é dado pela aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado e, no campo processual, configura um problema de prova que, em caso de dúvida sobre a aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado, imporá ao tribunal a consideração da existência de culpa, em razão do benefício da dúvida: in dubio pro reo” (“Direito Penal Brasileiro”, Ed. RT, pp. 501/502). Talvez o problema esteja na equiparação do dolo eventual com o dolo direto, circunstância inocorrente, por exemplo, no Código italiano, sendo pertinente a lembrança de que (...) no meio dos escritores, há quem condene esta forma indireta de dolo (Souza Neto, “O Motivo e o Dolo“, 2ª ed., Freitas Bastos, sem referência de data). Afinal, de tudo, depreende-se que assumir o SENTENÇAS risco é colocar-se, conscientemente, em situação de perigo que poderia ter sido evitado, anuindo o agente, de forma clara e insofismável, com o previsível resultado danoso. A partir de tais argumentos, surgem duas questões de igual importância: com a devida vênia, a primeira delas diz respeito ao equívoco da atual interpretação a respeito do dolo eventual, banalizada, permitindo, com a simplificação e analogia indevida, o cometimento de injustiças; a outra está relacionada com o vácuo legislativo, pois a nova legislação, ressalvado o gravame das penalizações administrativas, do ponto de vista repressivo ou punitivo, pouco ou nada, considerando-se a Lei nº 9.714/ 98, foi acrescentado. 2.b.4. A questão da embriaguez. Embora não seja o caso dos autos, por não haver prova de que estivesse o réu embriagado, é importante seja revisada a questão da embriaguez, cuidada expressamente pelo legislador penal, quando reconheceu que a culpabilidade se mantém nos casos de ebriez preordenada, voluntária e culposa, e, embora punível, esta situação merece algumas indagações. O Código Penal, excepcionando a teoria da atividade, onde imputabilidade do agente é examinada ao tempo da ação ou omissão, adotou a teoria da actio libera in causa para os casos de embriaguez preordenada, voluntária e culposa, segundo a qual a conduta criminosa do agente é aferida no momento imediatamente anterior ao da inimputabilidade pela intoxicação, em que o sujeito se dispôs, dolosa ou culposamente, a embriagar-se. Com acerto é aplicada a teoria na embriaguez preordenada, pois o agente se coloca em situação de inconsciência 333 ou incapacidade de autocontrole propositadamente, a fim de praticar delito. Entretanto, o mesmo não acontece com a embriaguez culposa e voluntária, segundo afirmam Alberto Silva Franco e outros, in “Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial”: “Situação inteiramente diversa, contudo, sucede com a aplicação da teoria da actio libera in causa, em relação à embriaguez voluntária e à embriaguez culposa. Naquela, o agente ingeriu bebida alcoólica para ficar bêbedo, ou, pelo menos, ao ingeri-la, assumiu o risco de atingir a ebriez; nesta, o agente não pretendia embriagar-se, mas, por imprudência ou negligência, chega àquele estado, que lhe era previsível e, deste modo, evitável. “Numa e noutra situação, o agente não tinha em mente, ao tomar a bebida alcoólica, a prática de fato criminoso, o qual vem, contudo, a cometer no período em que estava submetido à intoxicação alcoólica. O legislador, fazendo uso de uma verdadeira ficção jurídica (deu por imputável que, na realidade, não o era), considerou-o, nas duas hipóteses, como portador tanto de capacidade de entender o caráter ilícito do fato, como da capacidade de determinar-se conforme esse entendimento. Transferiu, por isso, o juízo da imputabilidade do tempo da ação ou da omissão para um momento precedente, ou seja, para o da ingestão da bebida alcoólica ou da substância equivalente. “É evidente que a deslocação no tempo desse juízo não bastou para camuflar a consagração legislativa de uma hipótese de imposição de pena, por pura responsabilidade objetiva, o que colide francamente com o princípio do nullum crimen sine culpa, apresentado como 334 idéia-força de toda a reformulação da Parte Geral do Código Penal. Permanece, pois, em matéria de embriaguez, aquela eiva, aquele resquício de responsabilidade objetiva do Código Penal de 1940, num código que pretende ser moderno, expungindo todos os vestígios de responsabilidade sem culpa” (Walter Marciligil Coelho, “Erro de Tipo e Erro de Proibição no Novo Código Penal”, in “O Direito Penal e o Novo Código Penal Brasileiro”, 1985, p. 82). “De nenhuma valia, para afastar tal entendimento, é a alegação de que a conduta criminosa será dolosa se o agente se embriagou voluntariamente, ou culposa se veio a embebedar-se por negligência ou imprudência. Não há confundir o elemento psicológico da embriaguez com o dado de subjetividade, que acompanha a ação ou a omissão. Da mesma forma, inservível o argumento de que é necessário verificar se o embriagado atuou com dolo, ou com culpa, isto é, se quis a prática do fato delituoso, ou se o provocou por ter faltado ao dever objetivo de cuidado, que a situação concreta lhe impunha. “Num estado de ebriez plena, não é possível distinguir dolo de culpa. Como observa Giuseppe Bettiol, ‘dolo e culpa, em limites diversos, pressupõem a normalidade da relação psicológica, normalidade que deve ser excluída, se o agente atua com condições de incapacidade penal’ (“Diritto Penale”, 1982, p. 446). “Destarte, ‘se o fato delituoso praticado em estado de embriaguez que conduz à incapacidade de entendimento e de autogoverno não era sequer previsível, para o agente, no momento em que estava sóbrio, não há culpa e só se pode admitir que estamos diante SENTENÇAS de hipótese anômala de responsabilidade objetiva. Essa deplorável solução foi adotada pela lei vigente em nome de mais eficaz repressão à criminalidade’ (Heleno Cláudio Fragoso, “Lições de Direito Penal”, 1987, p. 209). “É de discutir-se, no entanto, se a disciplina legal sobre a embriaguez voluntária ou culposa não fere o inc. XLV do art. 5º da CF, que estabelece o princípio da personalidade da pena. Uma leitura literal do texto conduz à idéia de que o legislador constituinte pretendeu apenas fixar o princípio de que nenhuma pena poderá passar da pessoa do delinqüente, isto é, nenhuma responsabilidade de caráter penal poderá ser debitada a pessoa estranha, como autor, co-autor ou partícipe, à prática do fato criminoso. O sentido e o alcance do dispositivo constitucional vai, no entanto, além. Uma outra ilação mostra-se subjacente ao preceito constitucional que minus dixit quam voluit. “Se a pena não pode passar da pessoa do delinqüente, é fora de dúvida que deva ter, com ele, estreita correlação, deve pertencer-lhe, deve atingi-lo como pessoa, enquanto centro de agir e de decisão. Desta forma, ninguém poderá, em verdade, responder por fato delituoso que não seja expressão de seu atuar, que não seja uma afirmação sua. Isso significa, nessa perspectiva, que todo agente deverá ser punido apenas e exclusivamente por fato próprio, por fato seu, enfim, por fato de sua responsabilidade pessoal. O caráter pessoal da responsabilidade penal implica, no dizer de Giuseppe Bettiol (ob. cit., p. 56), que o fato criminoso só possa ser atribuído a um agente ratione personae, isto é, ‘não pela simples ve- SENTENÇAS rificação de um nexo material ou objetivo entre uma ação e um evento lesivo (critério mecânico), mas na base de uma imputação humana, a qual se traduz num juízo de reprovação’. “Assim, a responsabilidade pessoal pressupõe a existência de uma conduta que seja própria do agente: em síntese, ‘exclui toda responsabilidade penal pelas ações de outros e toda responsabilidade por fatos cometidos sem os pressupostos subjetivos que fundamentam a responsabilidade penal’ (Enrique Bacigalupo, “Manual de Derecho Penal”, 1984, p. 31). Prescindir da existência dessa vinculação pessoal, de modo que o fato criminoso seja posto, objetivamente, a cargo do agente, é de todo inadmissível. Em conclusão, a embriaguez voluntária ou culposa, enquanto hipótese de responsabilidade pelo mero resultado, contraria a letra e o próprio espírito da Constituição Federal” (Alberto Silva Franco e Outros, “Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial”, Ed. RT, 1995, pp. 332/333). Como se disse, embora não seja o caso dos autos por não vir demonstrada a embriaguez, esta lembrança é manifestamente pertinente. 2.b.5. A Lei nº 9.099/95 e o Código de Trânsito Brasileiro. Por imposição legal contida no art. 291 e parágrafo único do CTB, aplicam-se as disposições dos arts. 74, 76 e 89 da Lei nº 9.099/95. O art. 74 trata da composição civil, o art. 76, da transação penal, e o art. 89, da suspensão condicional do processo. Há quem sustente serem inaplicáveis aos arts. 306 (embriaguez ao volante) e 308 (participação em competição não-autorizada) do CTB os arts. 74 e 88 da Lei nº 9.099/95. Esse é o entendi- 335 mento de Luiz Flávio Gomes, que considera absurda tal cogitação, por se tratar de delitos contra a incolumidade pública e de outrem (Luiz Flávio Gomes, “Boletim do IBCCrim.” nº 61, dez./ 97, p. 04). Ao mesmo tempo que pretende reprimir a conduta, estabelece uma norma que permite sua despenalização, permitindo a conciliação, se for possível, a transação penal, que na verdade, para alguns, é pena sem processo, e a suspensão condicional do feito, mediante as condições de estilo (art. 89). Pode-se dizer, para finalizar, que, com as restrições mencionadas, à exceção do homicídio culposo, aplica-se a Lei nº 9.099/95. Por fim, ainda que o máximo da pena seja superior a 01 ano, entende-se necessária a representação da vítima nos delitos de lesão corporal culposa, à luz do art. 88 da Lei nº 9.099/95. 2.b.6. Aspectos controvertidos. Para finalizar, é possível chamar a atenção para algumas situações especiais: com o Código de Trânsito Brasileiro, majorou-se a pena do homicídio culposo, estabelecendo um mínimo de 02 e um máximo de 04 anos de detenção, ao invés de 01 a 03 anos como estabelecido no Código Penal. Aliás, a respeito a crítica de Rui Stocco, ao referir que a legislação permite tratamento diferenciado para delitos assemelhados (“Código de Trânsito Brasileiro: Disposições Penais e Suas Incongruências”, “Boletim do IBCCrim”, São Paulo, ano 5, nº 61, pp. 01/10, dez./97). Por outro lado, é importante a invocação da lesão corporal culposa no trânsito, cuja pena foi estabelecida entre 06 meses a 02 anos de detenção. 336 Tal circunstância gerou uma brincadeira: se acontecer um acidente de trânsito, com lesões, o melhor é dizermos que pretendíamos provocá-la pois aí poderíamos ter a punição na forma do art. 129, caput, do CP, que prevê uma pena de 03 meses a 01 ano de detenção. Já foi referida a questão do dolo eventual. Por fim, é possível dizer que nada mudou em relação aos delitos de trânsito; especificaram-se algumas condutas, estabeleceram-se punições que, com a nova redação do art. 44 do CP, jamais serão aplicadas, pelo menos como foram originalmente concebidas. Esta, na verdade, é a crua realidade, pois, a teor do disposto no art. 44, inc. I, do CP, que prevê para o crime culposo, qualquer que seja a pena aplicada, a substituição da privativa de liberdade por uma ou duas penas restritiva de direitos, amenizando, assim, o rigor da pretensão punitiva do Estado. Ora, ao contrário do rigor propalado pela mídia, estamos mais uma vez diante da impunidade consagrada numa legislação permissiva e, certamente por isso, já se pretende nova alteração do Código de Trânsito Brasileiro com maior “flexibilização”, beneficiando claramente os motoristas infratores. 2.b.7. O Código de Trânsito Brasileiro e Direito Penal mínimo. Aqui uma discussão pertinente, relacionada, em seu cerne, com o Direito Penal mínimo, pregado pelo Dr. José Carlos Dias, então Ministro da Justiça, que sugeriu a revogação – e estamos de acordo – da Lei dos Crimes Hediondos, esta mais uma reforma pontual do Sistema Repressivo Brasileiro. Muito antes do questionamento a respeito de ser a favor ou contra, em- SENTENÇAS bora esta seja uma discussão onde se revela a tendência para o próximo milênio, é de ser considerada a motivação determinante para que tal hipótese passe a ser cogitada pelo legislador ou por aqueles que detêm os destinos da nação. Não se trata de ser a favor ou contra, é uma discussão crescente a revelar a tendência para o próximo milênio. Será a solução? Se for esta a adotada pelo legislador, corresponderá aos anseios da sociedade? Não seria razoável cogitar-se de um estudo mais aprofundado, criterioso, responsável, ou, pelo menos, uma campanha de conscientização e esclarecimento da população, que não mais agüenta a imposição vertical de tanta legislação? Tais indagações são pertinentes, pois as decisões a serem tomadas importarão em alterar toda a sistemática vigente, como já se fez na reforma do art. 44 do CP, reforma esta realizada tendo como suporte preponderante o fato de o Estado não ter condições de gerir adequadamente o sistema penitenciário, nem ter interesse político de assim proceder e que consagra, de fato e de direito, o pensamento liberal aqui discutido. Não se trata, portanto, de uma reforma de base, consciente, lastreada no passado, no presente e pensando no futuro, mas, sim, no nosso entendimento, mais uma reforma pontual do legislador. Agiu corretamente? Estes são os questionamentos; quais as soluções? 2.c. O caso concreto. No caso dos autos, à vista de todo o processado, não se vislumbra o animus necandi na conduta do acusado. O réu, quando interrogado em juízo, afirmou estar trafegando seu veículo a uns 40, no má- SENTENÇAS ximo 50km/h, quando escutou um leve barulho no carro, na frente, e não viu nada de anormal, seguindo para casa normalmente, quando então, ao passar por uma parada de ônibus, as pessoas que ali estavam gritaram para ele parar; ato contínuo, ele parou o carro, viu a pessoa “enfiada” dentro do carro e pegou seu celular para chamar a polícia. Ainda, asseverou não ter visto a vítima, não ter ingerido bebida alcoólica e saído do carro para visualizar a altura em que se encontrava na Av. P. A. (fls. 173/176). J. A. R. V., policial militar que efetuou o flagrante, inquirido em juízo, afirmou ter dito o réu que a vítima “saiu do nada, na Av. A. C., com um pedaço de pau na mão e veio em direção ao carro dele, bateu no carro dele e seguiu”. Asseverou ter em seguida telefonado para a D. L. T., uma senhora informando que a vítima teria tentado assaltar-lhe em frente ao supermercado, tentativa inexitosa quando da chegada do supermercado não, contudo, na segunda investida, quando teria vítima lhe tomado uma vassoura. Segundo o depoente, teria sido nesse momento que o réu atropelou a vítima, que estaria fugindo do local. Por último, disse que o réu inicialmente mencionou ter sido assaltado e tinham levado seu veículo (fls. 246/249). L. R. P. O., testemunha inquirida por precatória na Comarca de Passo Fundo, asseverou ter dito o réu a ele que não parou no local do atropelamento, porque achou se tratasse de um assalto; ainda, disse que corpo da vítima ficou rente ao chão e não dava para vê-la da posição do motorista (fl. 255). Por outro lado, N. A. O. e V. A. P. afirmou não ter o réu o hábito de beber; ainda, A. 337 R. N., embora não houvesse presenciado o ocorrido, asseverou ter dito o réu a ele não ter visto a pessoa embaixo de seu carro e, quando a viu, parou (fls. 205/206). Por fim, S. M. M. C. S. disse que a vítima lhe pegou pelo braço na entrada do supermercado, pedindo lhe fosse dado R$ 1,00 e, então, como não atendeu ao solicitado, ela teria dito: “então vou te matar a pau”. Ainda, afirmou não ter visto para que lado o rapaz saiu (fl. 203). De todo o asseverado, depreende-se não fornecer a prova oral produzida elementos a permitir a conclusão estivesse o imputado anuído com o resultado morte da vítima quando do fato delituoso, mormente ao se vislumbrar o laudo de exame para verificação de embriaguez alcoólica e tóxicos, dando conta da inexistência de embriaguez e uso de substâncias psicotrópicas, acostado à fl. 170. Todos afirmam que o réu não viu, ou não tinha condições de ver, a vítima presa junto às ferragens, quando prosseguiu com o carro em andamento; aliás, essa a sua versão, convergente com a prova judicializada. Esta é a circunstância e, por isso, nem de longe pode ser reconhecida como dolo eventual, sendo coerente, por essa razão, a redistribuição do feito a uma das varas criminais, em razão da competência material. 3. Ante o exposto, julgo improcedente a denúncia e, com base no art. 410 do CPP, determino a redistribuição do processado. Intimem-se. O réu, pessoalmente. Porto Alegre, 09 de outubro de 2000. Mário Rocha Lopes Filho, Juiz de Direito. 338 Processo nº 7.809/009 Autor: Ministério Público Réu: J. K. Juiz prolator: Volnei dos Santos Coelho Delito de homicídio culposo. Demonstrada a culpa do condutor. Sentença condenatória. Vistos, etc. J. K., já qualificado, foi denunciado pelo Ministério Público pelo seguinte fato delituoso: “No dia 03-10-97, por volta das 23h30min, na estrada que liga G. V. à cidade de E., nesta Comarca, o denunciado J. K., conduzindo o automóvel VW-Santana, ano 1989, agindo de forma imprudente e negligente, matou, culposamente, o motociclista A. R., de 23 anos de idade. “Por ocasião do fato, o denunciado trafegava no sentido E.–G. V. Por dirigir desatentamente e desenvolver excessiva velocidade para o local, acabou por colidir na traseira da motocicleta Honda CG-125, ano 1983, tripulada pela vítima A. R., que trafegava no mesmo sentido. Em função da colisão, o motociclista, que conduzia o veículo regularmente e na sua mão de direção, quase no acostamento, foi projetado para a frente e para o alto, perdendo o capacete e sofrendo traumatismo craniano, que lhe causou a morte, ut auto de necropsia da fl. 13. “Após o fato delituoso, o denunciado deixou de prestar imediato socorro à vítima, fugindo do local para evitar a prisão em flagrante. A vítima, socorrida por terceiras pessoas, foi levada ao nosocômio, mas acabou falecendo poucos minutos após o acidente”. O Ministério Público deixou de apresentar proposta de suspensão, fundado na incidência da causa de aumento prevista no § 4º do art. 121 do CP. A denúncia foi recebida em 19-02-98 e determinada a citação do réu e sua intimação para interrogatório (fl. 70, v.). O réu foi interrogado (fl. 73). O defensor constituído apresentou a defesa prévia (fl. 76), arrolando testemunhas. Na instrução, foram ouvidas 08 testemunhas (fls. 121/124 e 129/130). Houve inspeção judicial no local do fato, conforme relatório da fl. 134. Ao final da instrução, habilitou-se o assistente da acusação. Os debates orais foram substituídos por alegações escritas, objetivando as partes melhor apreciação do conjunto probatório, o que foi deferido. Não se vislumbra prejuízo às partes; pelo contrário, puderam melhor debater a causa. O Ministério Público pediu a condenação, aduzindo que a acusação restou comprovada (fls. 139/146). O assistente de acusação ratificou as alegações do Parquet, pedindo a condenação (fl. 148). A defesa pediu absolvição (fls. 150/154). Sustentou que não há elementos suficientes para a condenação. É o relatório. A materialidade está demonstrada pelo auto de necropsia das fls. 16/17 e pela prova testemunhal colhida. Em SENTENÇAS relação à autoria, restou apontado o acusado como tendo cometido homicídio culposo e não prestado socorro à vítima. O réu nega o fato a ele imputado. Declarou que colidiu com seu veículo na traseira da motocicleta conduzida pela vítima. Disse que a motocicleta encontrava-se com o farol e sinaleira desligados. A vítima não usava capacete, sendo essa a causa dos traumatismos que levaram à sua morte. Nega tenha agido com imprudência ou negligência. Procurou demonstrar a culpa da vítima. No entanto, em matéria penal, não há compensação de culpas. Necessário verificar, se dentre as várias causas do evento, alguma concausa foi produzida pelo réu. Em caso positivo, tendo o réu também dado causa ao evento por ação ou omissão, importa verificar se, afastada a conduta do réu, dentro da eliminação hipotética, deixaria de ocorrer o fato lamentável, o que leva a considerá-la causa. Ora, se o réu não tivesse colidido na traseira da motocicleta e derrubado a vítima, o evento morte não teria ocorrido. Portanto, a conduta do réu é uma causa. Eliminando-a desaparece o resultado. Certo que o denunciado deu causa, perquirir-se-á, então, se agiu com culpa ou dolo. Este, à evidência, não ocorreu. De fato, o réu deu causa ao evento. Resta saber se o fato praticado decorreu de culpa. Certo o nexo causal entre resultado morte e a conduta do réu. A testemunha L. R. D. M. (fl. 121) relatou que “viu quando uma moto e um carro de cor escura que vinham no sentido contrário, quando o veículo que vinha atrás da moto, com velocidade 339 superior, acabou colidindo, juntando a moto e esta ficou presa do veículo e o motoqueiro caiu”. M. V., outra testemunha (fl. 122), disse que “viu o momento da colisão, que o motoqueiro ficou segundos em cima da moto, e após passou por cima do capô e caiu do lado esquerdo do motorista. Confirma que está correto o levantamento topográfico que a moto vinha no sentido E.-G. Tem certeza de que o motoqueiro não veio da Rua M. M.” Corroborando com aqueles testemunhos, há a prova pericial que aponta que o ponto de impacto foi “na parte frontal traseira” da motocicleta (fl. 32). Assim, o réu deslocava-se na mão de direção da vítima. Em determinado momento, colidiu com a frente de seu veículo na traseira da motocicleta. Ato contínuo, a vítima caiu, passando por cima do capô do carro do denunciado, e a moto ficou presa embaixo do veículo, tendo sido arrastada por vários metros. A tese defensiva de que a vítima estava parada no meio da estrada ou teria ingressado de súbito na pista, vindo de uma rua perpendicular à pista de rolamento onde se deslocava o acusado, ficam afastadas pelo testemunho de M., conforme transcrito acima, que disse ter certeza que a vítima não veio da Rua M. M. e que vinha na direção E. para G. Logo, não estava parada e não entrou de súbito na frente do réu como quer ele alegar. Para tal evento ocorrer, dois veículos se deslocando no mesmo sentido, e o condutor ignorar aquele que vai à sua frente, colidindo em sua traseira, é preciso que haja dolo ou esteja o motorista 340 que colidiu em completa desatenção ou em velocidade incompatível, não dominando seu veículo. A tese de que não viu o veículo na sua frente por não tê-lo enxergado, pois estava com farol e sinaleira desligados, não procede. Isso é negado pelo testemunho de M. na polícia (fl. 34), onde relatou que o farol dianteiro da moto estava ligado, quanto à sinaleira, afirmou que não tinha como ver, dado que vinha em sentido contrário. L. (fl. 121) ainda referiu em seu depoimento em juízo que havia iluminação pública no asfalto. Tudo isso demonstra que a causa da colisão, derrubando a vítima de sua motocicleta, foi o empreendimento de velocidade excessiva, levando à impossibilidade de contornar a situação e evitar o evento. Assim foi o depoimento de M. F. (fl. 123): “No momento em que o depoente viu a motocicleta, o réu procedeu à frenagem do veículo. Não lembra se o réu chegou a reduzir o veículo, acha que fez isso. Se girasse para esquerda colidiria com o veículo que vinha pela esquerda, e que provavelmente não dava para tirar para direita, que foi tudo muito rápido”. Observando-se a foto da fl. 58, vê-se que a pista tem um largo acostamento. A fotografia mostra três pessoas andando no acostamento, o que dá a idéia de ser larga o suficiente para o réu desviar pela direita e evitar a colisão na parte da traseira da moto. Desse modo, se havia um veículo à esquerda como informou a testemunha M., havia a possibilidade de contornar pela direita. Isso só não seria possível em razão de velocidade excessiva ou incompatível. SENTENÇAS Além disso, conclui-se que o réu estava em alta velocidade, observando-se o conjunto probatório. O levantamento topográfico mostra que o veículo do réu freou 16m e arrastou a motocicleta por 85m. Logo, do ponto de impacto até a parada do veículo e da motocicleta, foram percorridos 128m, conforme dados da fl. 57 daquele levantamento. É de considerar que uma motocicleta embaixo de um veículo é causa para frená-lo, ainda que suspenda uma roda dianteira, e não é causa para impedir que seja freado, ao contrário do sustentado pela defesa. Assim, a grande distância percorrida pelo carro do réu com uma motocicleta trancada e arrastada embaixo, só tem explicação na alta velocidade desenvolvida. Por outro lado, a foto da fl. 30 mostra o estado da dianteira do veículo do réu. Houve severo estrago. Ressaltando que vinha na mesma direção e sentido da motocicleta, a velocidade que esta ia deve ser descontada. Se o réu andasse a 70 km/h como alegou e a vítima a 40 km/h ou 30km/h, a velocidade resultante é também 30 ou 40 km/h, o que é incompatível com os estragos no veículo da foto da fl. 30. Logo o réu estava em velocidade bem acima do que alegou. Soma-se ainda o fato já referido de o réu ter colidido na traseira de quem vai à sua frente, o que é indicativo de que a única explicação para o evento está na velocidade imprimida pelo acusado, que era elevada, fazendo com que perdesse o controle da situação, causando a colisão e a queda da vítima no solo com os traumatismos que causaram a sua morte. SENTENÇAS A defesa disse que estava em velocidade moderada e o fato de ter andado em torno de 100m após a colisão é obra do inexplicável, fruto da fatalidade. Ora, tal argumento embora inteligente, próprio do patrono do réu, não procede. O fato não é obra do acaso nem decorre algo inexplicável. O fato só se deu motivado por uma velocidade empreendida pelo réu, muito acima do moderado. Sem dúvida, o réu imprimiu uma velocidade tal que não pôde parar ou desviar seu veículo, colidindo na traseira da moto. Na verdade, embora demonstrada a elevada velocidade desenvolvida pelo réu, pouco importa se veio a 150 ou 40 ou 70 km/h, como disse. O certo é que, na situação, no momento exato, deveria ter diminuído a velocidade, o que lhe permitiria evitar o evento e, como não evitou, resta que a velocidade que manteve era excessiva para a situação. Entendo que desimporta a real velocidade imprimida. Importante é saber se com a velocidade que se conduzia evitou, ou não, o fato. Não evitando, evidenciou-se a incompatibilidade dela. Ora, se estivesse a 180 km/h e, com uma manobra, evitasse o fato, a velocidade não deixaria de ser 180 km/h, no entanto nenhuma repercussão teria, o que mostra que a velocidade é sempre tida como imprudente, se não evitado o fato danoso. Ou seja, compete ao motorista reduzir a velocidade até que tenha condições suficientes para contornar a situação. É o que faria o homem médio, o pater familias. À evidência, a imprudência não se caracteriza pelo fato de o carro estar em velocidade superior àquela indicada nas 341 placas de sinalização das estradas. A imprudência reside em causar dano ao andar em velocidade acima daquela que o pater familias andaria, na mesma situação e condições, a fim de não causar evento danoso. Ou seja, imprudente é quem anda em velocidade superior àquela que tornaria possível evitar o fato lastimável. Assim, em determinadas condições do veículo e da estrada, se exige de qualquer motorista adequar a velocidade de seu automóvel a fim de dirigi-lo de forma segura, não gerando lesões ou mortes. Se assim não o faz, por acreditar que não ocorrerá ou que poderá evitar o fato danoso, e não evitando, vindo a ocorrer, comete crime culposo. No caso, o réu colidiu na parte traseira da motocicleta enquanto essa andava no mesmo sentido, derrubando a vítima e gerando o evento morte. A velocidade empregada era incompatível com a situação. Era superior àquela recomendada e que empreenderia o homem médio prudente. Se estivesse em velocidade adequada não teria ocorrido o fato. Teria desviado o veículo para a direita ou freado o carro, não colidindo e matando a vítima. É essa a conclusão a que se chega pelo conjunto probatório. Desse modo, por assim agir, não evitando o fato, houve-se o réu com imprudência e negligência. Imprudente por andar em velocidade acima da recomendada para o momento, vindo a bater na traseira da motocicleta da vítima, colidindo e derrubando-a, causando a sua morte. Negligente por não ter guiado com a atenção devida de forma a perceber o deslocamento de veículo 342 à sua frente. Com a desatenção e a velocidade que imprimia não pode evitar o fato, gerando o evento danoso. Assim, o réu deu causa ao evento culposamente. As demais concausas não importam para imputação do fato ao réu. A eventual concausa gerada pela vítima não afasta a responsabilidade do acusado. Não há compensação de culpas. A participação da vítima é verificável e considerada na análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP. Quanto ao fato de estar, ou não, a vítima usando capacete, não há elementos. Isso, todavia, como dito, não afasta a culpa do réu pelo evento. Se a vítima estava sem capacete, mais se impunha a obrigação de evitar a colisão, pois as chances de sua conduta de derrubá-lo e resultar a morte eram maiores. Além do que o fato de estar usando, ou não, o capacete desimporta, por não haver, como já dito, compensação de culpas. Portanto, não prosperam as teses defensivas. Restou provado que a morte da vítima resultou de ato imprudente e negligente do réu, impondo-se a condenação. Quanto à omissão de socorro, o réu não nega o fato. Justifica-se, dizendo que ficou apavorado. Percebeu que a vítima já estava sendo socorrida e procurou seu pai e foi ao hospital posteriormente. Procurou então afastar a causa de aumento da pena, fundado no pavor que foi acometido, por ter sido a vítima socorrida por terceiro e pelo fato de ter ido ao hospital. Disse ainda que a vítima, pelo quadro, não sobreviveria, o que afastaria a omissão. No entanto, a vítima não morreu instantaneamente, logo era devido o SENTENÇAS socorro pelo réu. Se sobreviveria, ou não, a vítima, desimporta para a incidência da causa de aumento. Tanto era exigível que terceiros prestaram socorro. Não pensaram na possibilidade, ou não, de a vítima sobreviver. Descabe o raciocínio se ia, ou não, sobreviver. A lei não defere ao causador do dano a possibilidade de conjecturar da sorte daquele que acabou de sofrer o fato. Exige inconteste e de pronto a prestação do socorro. Só elide a responsabilidade a morte imediata, onde o socorro não é exigido, por óbvio. Não é o caso. Devia e podia o réu socorrer a vítima. Não o fazendo, incidiu a causa de aumento da pena. Referiu a testemunha L. “que o motorista do veículo que colidiu com a moto, ao atingir o quebra-mola, engrenou marcha-ré, a depoente ficou aliviada, achando que o motorista ia auxiliá-los no acidente, mas, tão logo a moto se desprendeu do veículo, ele foi embora, saindo em velocidade normal, a depoente juntou os documentos do motoqueiro”. (fl. 121) A testemunha M. relatou que “A moto foi arrastada pelo carro. Diz que passou o quebra-mola com a moto embaixo. Chegou a passar o quebra mola, parou o veículo e deu ré, o depoente achou que ele fosse prestar socorro, mas ele fugiu do local”. (fl. 123) Justificou o réu que estava apavorado e por isso foi embora. No entanto, embora apavorado, atinou em empreender marcha-ré para desvencilhar seu veículo da motocicleta e ir embora, como noticiaram as testemunhas L. e M. (fls. 121 e 122), deixando a vítima à sorte e à bondade de quem nada tinha a ver SENTENÇAS com a situação criada por ele. À evidência, quem está tomado de pavor, o fica em todos os sentidos. Não atinaria empreender a marcha-ré, manobra necessária para livrar o veículo. Tal manobra exige raciocínio. Visualizou a situação e desvencilhou o carro. Isso mostra claramente que o réu estava consciente. Assim, tinha o réu condições psicológicas para prestar socorro, sem perigo algum à sua segurança. Na essência, o que levou terceiros a auxiliar a vítima jogada no asfalto, faltou para o réu: solidariedade humana. Procurou apenas sair daquela situação, egoisticamente, pensando só em si. Típico comportamento punido pela lei. Objetiva o legislador inibir o comportamento egoístico para impor o auxílio e solidariedade. O § 4º, ao contrário do afirmado pela defesa, obriga o causador do fato ao pronto auxílio, por isso prevê a sanção. O auxílio dado por terceiro não elide a responsabilidade do réu, quando, podendo, deixa de prestar auxílio. É o caso. O fato de ir posteriormente ao hospital na companhia do pai, o que ficou amplamente demonstrado na instrução pela defesa, só está a indicar o arrependimento posterior e o reconhecimento de que no momento devia e podia prestar auxílio. A visita posterior à vítima, para saber seu estado no hospital, em nada altera a situação, uma vez que a infração se consumou no momento em que deixou o local do fato sem prestar o auxílio devido. Assim, impõe-se a condenação por homicídio culposo na forma majorada pela omissão de socorro. No caso, é de se reconhecer a meno- 343 ridade do réu, uma vez que contava com 18 anos à época do fato. Pelo exposto, julgo procedente a denúncia para condenar J. K., já qualificado, como incurso nas penas do art. 121, §§ 3º e 4º, do CP. Passo a individualizar a pena. Considerando as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, tem-se que: a) a culpabilidade é elevada. É extremamente reprovável a conduta do réu que, com seu veículo, portando-se de forma imprudente e negligente, ceifou uma vida. A sociedade exige maior rigor em tais casos. Daí acarretar exasperação da pena. Além disso, o réu é mentalmente hígido, e tinha plena consciência do caráter ilícito do fato, ou seja, trafegar em alta velocidade. Podia e devia agir de modo diverso; b) o réu não apresenta antecedentes; c) a conduta social, assim consideradas as suas relações com a família e a sociedade, vem em favor do réu; d) personalidade normal; e) os motivos foram a imprudência e negligência, determinantes em delitos como o em tela; f) as circunstâncias ensejam exasperação da pena pela forma que se deu o fato: o réu colidiu na traseira da motocicleta da vítima fazendo com que ela passasse por cima do capô de seu carro. Situação que exige maior reprimenda pela violência e sofrimento causado à vítima, que foi jogada por cima do capô do veículo do réu, caindo no asfalto, gerando os politraumatismos acusados no auto de necropsia; g) as conseqüências são normais a tais delitos; e h) a defesa não logrou demonstrar que a vítima tenha colaborado de qualquer forma na ocorrência do fato. 344 Sendo a maioria das circunstâncias judiciais favoráveis ao réu, fixo a pena-base em 01 ano e 03 meses de detenção. Presente a atenuante da menoridade, art. 65, I, do CP, diminuo a pena em 01 mês de detenção. Ausentes circunstâncias agravantes. Resta a pena provisória em 01 ano e 02 meses de detenção. Presente a causa de aumento pela omissão de socorro, aumento a pena em 1/3, torno-a definitiva em 01 ano, 06 meses e 20 dias de detenção. Substituo a pena aplicada por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviço à comunidade, junto ao H. S. R., conveniado, e interdição temporária de direitos, suspendendo a habilitação para dirigir veículos, de acordo com os art. 43, IV e V; 44, § 2º; 46 e 47, inc. III, todos do SENTENÇAS CP, pelo tempo da pena (art. 55 do CP). Deixo de aplicar o sursis (art. 77 do CP), por entender insuficiente para reprimir e prevenir o delito. Em caso de aplicação de pena privativa de liberdade na forma do art. 44, § 4º, do CP, o réu deverá iniciar o cumprimento da pena no regime aberto, com base no art. 33, § 2º, alínea c, e § 3º, c/c o art. 59, parte final, ambos do CP. Após o trânsito em julgado, forme-se o PEC, lance-se o nome do réu no Rol de Culpados, extraia-se o BIE e PJ30 e comunique-se o TRE. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Getúlio Vargas, 30 de novembro de 1999. Volnei dos Santos Coelho, Juiz de Direito Substituto. 345 ÍNDICE 346 347 SENTENÇAS CÍVEIS A Ação civil pública. Improbidade administrativa. Cargo público exercido de forma irregular ........................................................................................................... 11 Ação civil pública. Liminar. Nulidade de lei municipal. Inviolabilidade de voto dos Vereadores. Improbidade administrativa consubstanciada em prejuízo ao Erário Público. Princípio da isonomia dos contribuintes ................. 115 Ação civil pública. Legitimidade ativa do Ministério Público para demandar em matéria tributária. Reajuste do IPTU. Capacidade contributiva ............... 267 Ação civil pública. Legitimidade ativa do Ministério Público. Competência funcional e em razão da pessoa. Verba de retorno do FUNDEF (art. 212 da CF). Argüição de inconstitucionalidade ................................................................ 225 Ação de cobrança. Contrato de factoring. Cessão de crédito. Inexistência de direito de regresso cambial ..................................................................................... 208 Ação de cobrança. Títulos de crédito rural. Execuções anteriores. Coisa julgada. Comprovação de existência do débito. Cumulação de multa e honorários. Limitação dos juros em 12% a. a. ....................................................... 168 Ação pauliana ou revocatória. Fraude contra credores. Insolvência do devedor. Doação sem efeito ........................................................................................... 279 Ação pauliana ou revocatória. Fraude contra credores. Legitimidade passiva. Ineficácia relativa. Termo legal. Denunciação da lide ..................................... 142 348 SENTENÇAS Acionista. Vide Sociedade anônima. Aposentadoria compulsória. Notário e Registrador. Atividade pública delegada .................................................................................................................................. 77 Arrendamento mercantil. Leasing. Revisão de contrato. Indexador em dólar. Possibilidade ............................................................................................................... 216 Ato jurídico. Nulidade. Doação de imóvel a menor impúbere ...................... 221 Autorização judicial. Interrupção da gravidez. Risco à saúde da mãe ou má formação do feto ....................................................................................................... 67 C Casamento. Ação de anulação. Não demonstrado erro essencial. Prévia união estável. Improcedência do pedido ........................................................................ 59 D Dano moral. Notícia veiculada pela emissora de rádio, de entrevista que expôs vida íntima ..................................................................................................... 295 Dano moral. Crédito em conta-corrente. Unilateral redução do limite de crédito e indevida devolução de cheques emitidos pelo correntista ........... 306 Dano moral e patrimonial. Agência de viagem. Pacote turístico. Prejuízo à personalidade. Limite da verba indenizatória ..................................................... 210 Deserdação. Vide Inventário. Doação. Revogação por ingratidão ....................................................................... 30 E Emenda constitucional nº 20/98 ............................................................................ 77 Escritura pública. Anulação cumulada com reivindicação movida pelo espólio. Prescrição aquisitiva e extintiva ..................................................................... 39 Escritura pública. Falência. Contratos bilaterais. Promessa de compra e venda não se rescinde com a quebra .............................................................................. 193 SENTENÇAS 349 Extinção do processo. Ação de indenização. Inépcia da inicial. Mandato. Extinção. Morte .......................................................................................................... 273 G Gravidez. Interrupção ............................................................................................... 67 Gravidez. Vide Autorização judicial. I ICMS. Mandado de segurança. Direito a créditos em operações relativas ao ativo permanente, consumo, entrada de energia elétrica e serviços de comunicação. Princípio da não-cumulatividade ............................................................ 82 Improbidade administrativa. Vide Ação civil pública. Inventário. Deserdação. Provada a injúria, ofensa e humilhação à testadora 63 Investigação de paternidade. Cumulada com pedido de guarda. Paternidade e maternidade socioafetiva. Princípio da aplicação da proteção integral e melhor interesse da criança .................................................................................... 53 J Juros. Limite constitucional. Auto-aplicabilidade. Lei da Usura. Instituição financeira ..................................................................................................................... 70 L Lei nº 6.404/76, arts. 109, V, 230 e 270, parágrafo único ............................. 202 Lei nº 7.672/82 .......................................................................................................... 18 M Menor. Medida socioeducativa descumprida. Aplicação de medida de liberdade assistida. Princípio da ressocialização ........................................................ N Nulidade. Vide Ato jurídico. 99 350 SENTENÇAS Nunciação de obra nova. Construção em via pública. Licenciamento para obra. Competência do Município .......................................................................... 111 O Obra nova. Vide Nunciação de obra nova. P Pensão. IPE. Cancelamento para filhas solteiras ................................................ 18 Promessa de compra e venda. Outorga de escritura definitiva. Promessa irretratável de venda. Imóvel objeto de inventário ........................................... 285 R Registro de nascimento. Retificação referente ao sexo. Transexualismo. Intervenção cirúrgica. Possibilidade .......................................................................... 34 Responsabilidade civil do Município. Indenização. Acidente de trânsito devido a “valeta” aberta em via pública. Morte de filho menor ...................... 101 S Separação judicial. Exame de culpa. Substituição do princípio da culpa pelo princípio da ruptura. Alimentos. Guarda dos filhos ......................................... 93 Separação judicial. Princípio da culpa. Alimentos aos filhos .......................... 121 Servidão de trânsito. Descontínua e aparente. Possibilidade de manutenção na posse ...................................................................................................................... 251 Sociedade anônima. Acionista. Sócio dissidente. Retirada em desacordo com a incorporação de sociedade comercial ............................................................... 202 U União estável. Sociedade de fato. Concubinato. Caracterização. Ação declaratória. Requisitos inexistentes. Partilha de bens ............................................... 129 SENTENÇAS 351 SENTENÇAS CRIMINAIS A Acidente de trânsito. Homicídio. Dolo eventual. Inocorrência. Desclassificação do delito .............................................................................................................. 327 Acidente de trânsito. Homicídio culposo. Culpa do condutor ....................... 338 E Estupro. Ação penal. Violência real e presumida. Vítima grávida de genitor ......................................................................................................................... 319 F Furto. Princípio da bagatela. Sentença absolutória ............................................ 315 352