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PODER JUDICIÁRIO
SENTENÇAS
RIO GRANDE DO SUL
4
Porto Alegre – Dezembro de 2000
2
Sentenças : Rio Grande do Sul / [ publicada por ] Poder
Judiciário e Ajuris. – v.1 (dez. 2000)- . – Porto Alegre:
Departamento de Artes Gráficas, 2000Semestral.
1. Poder Judiciário-Rio Grande do Sul-Sentença-Periódico
2. Poder Judiciário-Rio Grande do Sul-Primeiro grau-Periódico I. Rio Grande do Sul. Poder Judiciário II. Ajuris.
CDU 347.993(816.5)(05)
Catalogação elaborada pela Biblioteca do TJ-RS
CAPA: Abreudesign
3
SUMÁRIO
Composição do Tribunal de Justiça ......................................................................
5
Composição da Associação dos Juízes .................................................................
6
Editorial ........................................................................................................................
7
Sentenças Cíveis ........................................................................................................
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Sentenças Criminais ...................................................................................................
313
Índice ...........................................................................................................................
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4
5
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Des.
Des.
Des.
Des.
Des.
Des.
Des.
Des.
Des.
Bel.
Luiz Felipe Vasques de Magalhães – Presidente
Tael João Selistre – 1º Vice-Presidente
Antonio Janyr Dall’Agnol Junior – 2º Vice-Presidente
Délio Spalding de Almeida Wedy – 3º Vice-Presidente
Antonio Guilherme Tanger Jardim – 4º Vice-Presidente
Danúbio Edon Franco – Corregedor-Geral da Justiça
Leo Lima – Vice-Corregedor-Geral da Justiça
Donato João Sehnem – Diretor-Geral do Tribunal de Justiça
Luiz Armando Bertanha de Souza Leal – Subdiretor-Geral Administrativo
Luiz Fernando Morschbacher – Subdiretor-Geral Judiciário
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL
BIÊNIO 2000-2001
CONSELHO EXECUTIVO
Dr. Luiz Felipe Silveira Difini – Presidente
Des. José Aquino Flôres de Camargo – Vice-Presidente Administrativo
Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha – Vice-Presidente Social
Dra. Vera Lúcia Deboni – Vice-Presidente Cultural
Dr. João Ricardo dos Santos Costa – Vice-Presidente de Patrimônio e Finanças
CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA SENTENÇAS
Dr. Luciano André Losekann
Dr. Jorge Luiz Lopes do Canto
Dra. Adriana da Silva Ribeiro
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EDITORIAL
Com enorme satisfação, na qualidade de magistrado deste Estado, apresento à
comunidade jurídica rio-grandense a Revista “Sentenças”, volume nº 4, trazendo a
produção intelectual e qualificada dos Juízes de 1º grau, cuja atividade constitucional de decidir é exposta como garantia da constante distribuição da justiça e
contínua construção do estado democrático de direito.
Além do suporte imprescindível para o mister forense dos lidadores do Direito,
objetiva a presente edição trazer ao leitor as mais diversas decisões a cerca de
temas variados e complexos, refletindo, conseqüentemente, os posicionamentos
jurídicos, econômicos e sociais de seus prolatores, com explícita demonstração da
constante busca no aprimoramento e real efetivação dos direitos fundamentais e
da cidadania daqueles que depositam neste Poder sua esperança de justiça.
Mais um volume, agora o quarto, representa não apenas o sucesso da publicação, mas a exigência de seu constante aprimoramento, reflexos de um trabalho
criterioso e científico de seus editores e, especialmente, conseqüência do estudo
e dedicação de seus autores, responsáveis pela árdua e difícil missão de julgar.
Desembargador Luiz Felipe Vasques de Magalhães
Presidente
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SENTENÇAS CÍVEIS
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Processo nº 772 – Ação Civil Pública
2ª Vara Judicial de I.
Autor: Ministério Público
Réus: J. S. M. e A. C. L. B.
Juiz prolator: Alan Tadeu Soares Delabary Júnior
Improbidade administrativa decorrente de cargo público exercido de forma irregular. Ação civil pública julgada
parcialmente procedente.
Vistos, etc.
O Ministério Público ingressou, neste
juízo, com a presente ação civil pública
contra J. S. M. e A. C. L. B. A inicial narra
que o réu A. C. L. B. foi designado
Secretário Municipal de Saúde e, através
do Decreto nº 1.953/93, foi convocado
para exercer as suas funções em regime
de trabalho com dedicação integral.
Asseverou o Parquet que o art. 32
da Lei Municipal nº 1.755/90, com redação dada pela Lei Municipal nº 1.936/
93, prevê uma gratificação especial para
os detentores de Cargo em Comissão –
CC ou Função Gratificada – FG, quando
exercessem cargos de Secretário Municipal, Assessor Jurídico, Assessor Especial, Chefe de Gabinete e Assessor de
Planejamento e Coordenação. Tal adicional possui o coeficiente de 1.8 sobre
o respectivo Cargo em Comissão ou Função Gratificada.
O Agente do Ministério Público informou que, por inúmeras vezes, o réu
A. B. deixou a Secretaria de Saúde para
realizar, durante o expediente, sua atividade como médico-anestesista. Tais informações foram obtidas junto à administração do Hospital S. P., onde o réu
exerce suas atividades profissionais.
Segundo o Parquet, o recebimento
de gratificação para dedicação integral
e a manutenção de atividade paralela,
inclusive no horário de expediente na
Prefeitura Municipal, caracterizaram ato
de improbidade administrativa, praticada pelo réu A. B. Não é diferente a
situação do co-réu J. S. M., que, como
Prefeito Municipal, agiu com negligência, face ao pagamento das gratificações
ao réu A. B.
É obrigação de o Chefe do Executivo
Municipal fiscalizar a correta aplicação
da verba pública, sendo inadmissível que
não tivesse conhecimento do fato e, mais,
que não o tivesse impedido.
Asseverou o Ministério Público que
os réus praticaram os atos definidos
como ímprobos e previstos nos arts. 9º,
caput, 10, caput, e inc. XI, e 11, caput,
e inc. I, da Lei nº 8.429/92. Pediu: a)
que fosse declarado que os réus praticaram ato de improbidade administrativa; b) que fossem os réus condenados
a ressarcirem, integralmente, os valores
mensais pagos indevidamente a A. C. L.
B., referente ao recebimento da gratificação prevista no art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/90; e c) que fossem os
réus condenados à perda da função
pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o Poder Público
e receber benefícios ou incentivos fiscais. Pediu, ainda, o Agente Ministerial
12
a requisição de documentos junto ao
Município de I. e ao Hospital S. P.
Juntou documentos, às fls. 28-111.
Em despacho das fls. 76-8, foi indeferida a requisição postulada, com fulcro
no art. 129, II e VI, da CF/88, e assinado prazo de 30 dias para que fosse
providenciada a juntada dos documentos. Os documentos foram juntados às
fls. 80-9 e 91-111.
Citados, os réus ofereceram contestação, sendo o Município de I., através
de curador nomeado pelo juízo, à fl.
112.
O réu J. S. M. (fls. 118-120) aduziu
que não existe qualquer ato de improbidade na sua conduta. Asseverou que
foi mais vantajoso economicamente para
o Município a convocação do médico
A. C. L. B. para o regime de dedicação
integral, do que o pagamento de horas
extras. A carga horária do Secretário da
Saúde, cargo exercido por A. B., ultrapassa, e muito, o horário de expediente
da Prefeitura Municipal.
Narrou que o Município não possuía
exclusividade nos préstimos profissionais do então Secretário da Saúde, que
podia exercer a Medicina. Que profissionais conceituados não se sujeitariam a
perceber somente a importância de R$
1.338,16 mensais. Pediu a improcedência da ação.
O co-réu A. C. L. B., por sua vez,
alegou, em sua contestação (fls. 121-9),
que: inexistia impedimento legal para que
exercesse a Medicina cumulativamente
ao exercício do cargo de Secretário da
Saúde; sempre exerceu as suas funções
além do horário de expediente; a ínfima
remuneração recebida não caracterizou
qualquer privilégio, pelo contrário, provocou desvantagem econômica ao réu;
SENTENÇAS
se não recebesse a gratificação, deveria
perceber horas extras; existem no Município apenas dois médicos-anestesiologistas, logo, se não pudesse exercer sua
atividade, haveria prejuízo para a população; o médico não pode deixar de
atender a setores de urgência e que
atua na comunidade há 19 anos, tendo
sempre pautado sua conduta profissional em princípios morais, éticos e humanitários.
Postulou a expedição de ofícios ao
Hospital S. P. e à Prefeitura Municipal,
solicitando informações sobre os horários das atividades do réu nestas instituições e, no mérito, a improcedência
da ação. O curador nomeado ao Município manifestou-se pela procedência da
ação (fls. 132-4), tendo em vista que
desrespeitados os princípios da legalidade e moralidade, e que não pode
aquele que exerce cargo público desconhecer as normas e obrigações que são
implícitas às suas funções. O Ministério
Público replicou, fls. 138-149.
Em audiência de instrução, foi colhida a prova oral, com os depoimentos
pessoais dos réus às fls. 162-4. A oitiva
das testemunhas arroladas pelo réu A.
B. foi dispensada, face à sua ausência
e de seu procurador na audiência (fl.
167). Os debates orais foram substituídos por memoriais apresentados pelo
Ministério Público (fls. 170-80), pelos
réus (fls. 181-2 e 184-7) e pelo curador
nomeado (fls. 188-9). É o relatório.
DECIDO
A Constituição Federal de 1988, no
seu art. 37, consagrou como um dos
princípios que deve reger a Administração Pública o da Legalidade. Reza o
referido artigo: “A administração Pública
SENTENÇAS
direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e, também, ao seguinte...”
O princípio da legalidade – que
resulta do Estado de Direito, art. 1º da
CF/88 – pauta a conduta dos agentes
públicos à lei. O agir do administrador
público deve dar-se nos estritos termos
da legislação. A sua liberdade de atuar
(discricionariedade) encontra na lei o
alicerce e, ao mesmo tempo, o limite.
Como nos ensina o saudoso mestre
Hely Lopes Meirelles: “A legalidade, como
princípio de administração (CF, art. 37,
caput), significa que o administrador
público está, em toda a sua atividade
funcional, sujeito a mandamentos da lei
e às exigências do bem comum, e deles
não se pode afastar ou desviar, sob pena
de praticar ato inválido e expor-se a
responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso...”
Continua o notável doutrinador: “...
Na Administração Pública não há liberdade, nem vontade pessoal. Enquanto
na administração particular é lícito fazer
tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública, só é permitido fazer o
que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’; para o
administrador público significa A. C. L.
B. ‘deve fazer assim’.” (In “Direito Administrativo Brasileiro”, 20ª ed., 1995,
Editora Malheiros, p. 82).
No presente caso, tem-se que o co-réu A. C. L. B. foi nomeado pelo Decreto nº 1.952/93 para exercer a Função
Gratificada de Secretário Municipal de
Saúde (fl. 29). Na mesma data (25-02-93),
o citado réu foi convocado para traba-
13
lhar em regime de dedicação integral,
pelo Decreto nº 1.953/93 (fl. 30).
A convocação para o trabalho em
regime integral deu ao réu A. o direito
a perceber a gratificação de 1.8 sobre
total da sua FG, nos termos do art. 32
da Lei Municipal nº 1.755/90, modificado pela Lei Municipal nº 1.936/93. Tal
adicional foi pago de março de 1993 até
março de 1996, como se denota na documentação das fls. 84-8.
Mesmo com a convocação para o
regime integral, como Secretário da Saúde, e percebendo gratificação para tal,
o réu A. B. não se afastou da sua atividade profissional de médico-anestesista. E mais, exerceu sua profissão no
horário de expediente da Prefeitura Municipal (das 08h às 13h), como demonstram os documentos remetidos pelo
Hospital S. P. (fls. 93-111)
Tais fatos, aliás, são incontroversos,
vez que ambos os réus não negam que
foi paga a gratificação. Em seu depoimento pessoal, o réu A. B. aduz (fl.
163): “... quando convocado pelo Prefeito, Dr. J. M., para assumir o cargo de
Secretário da Saúde, não deixaria de
exercer a sua atividade de anestesista...”
A gratificação paga era para dedicação integral. O réu A. deveria ter-se
afastado do exercício da Medicina, ou,
então, não ter assumido o cargo público. O fato de não ter ocorrido o afastamento das funções e ter percebido
gratificação para dedicação exclusiva é
inadmissível. Tal conduta feriu o princípio da legalidade e da moralidade. Se
há um decreto municipal prevendo a
dedicação exclusiva, deve o agente
público segui-lo à risca, pois, como já
foi referido, o administrador público está
vinculado à lei, que limita o seu agir.
14
A dedicação integral, segundo ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, é o
regime pelo qual “... o servidor só pode
trabalhar no cargo ou na função que
exerce para a Administração, sendo-lhe
vedado o desempenho de qualquer outra
atividade profissional pública ou particular...” (ob. cit., p. 411)
Não merecem ser acolhidas, portanto, as alegações de que o então Secretário da Saúde, uma vez convocado para
o regime de dedicação integral, poderia
exercer sua atividade profissional.
Se os vencimentos eram poucos para
o exercício do cargo público, se na
cidade havia somente outra anestesista,
além do réu A. B., são circunstâncias
que deveriam ter sido meditadas antes
da assunção ao cargo. Ainda mais quando se trata de Secretário Municipal –
cargo de confiança. Se, sopesados tais
fatores, o réu decidiu não se afastar do
exercício da Medicina, jamais deveria
ter aceitado o cargo público.
A conduta dolosa de A. B. enquadra-se no art. 9º, caput, da Lei nº 8.429/
92. O referido réu recebeu indevidamente vantagem econômica (gratificação prevista no art. 32 da Lei nº 1.755/
90, alterado pela Lei Municipal nº 1.936/
93), vez que se deveria ter dedicado
integralmente ao serviço público. O que
comprovadamente não fez, exercendo
sua profissão cumulativamente ao cargo
público e no horário do expediente
municipal.
Os atos de improbidade imputadas
ao réu A. B. e previstos nos arts. 10,
caput, e inc. XI, 11, caput, inc. I, todos
da Lei nº 8.429/92, entretanto, devem
ser absorvidas pelo art. 9º, caput, da
referida lei. A situação do réu J. M. não
SENTENÇAS
é diferente. Como, então, Chefe do
Executivo Municipal, sob hipótese alguma poderia ter autorizado o pagamento
da gratificação ao co-réu A. B., sabendo
que este não se afastaria das suas funções.
J. M. autorizou o pagamento da gratificação (Decreto Municipal nº 1.953/
93), mesmo tendo ciência de que A. B.
não deixaria a sua atividade profissional
particular.
Como se depreende no seu depoimento (fl. 163-v.): “... O depoente não
chegou a tratar sobre as anestesias que
o médico A. C. viesse a realizar durante
o expediente da Secretaria da Saúde,
por entender implícita tal situação, por
se tratar ele de médico e pequena a
cidade que tem apenas dois médicos-anestesistas...”
O ex-Prefeito J. M., assim como o A.
B., praticou ato caracterizado como de
improbidade administrativa. Mais precisamente, no art. 10, caput, da Lei nº
8.429/92 (absorvidas as demais condutas a ele imputadas na inicial – arts. 9º,
caput, 10, XI, e 11, caput, e inc. I, da
referida Lei de Improbidade). A sua
conduta causou lesão ao Erário Municipal, quando autorizou, dolosamente, o
pagamento da gratificação prevista na
Lei nº 1.936/93, ao então Secretário da
Saúde. Mesmo sabedor que era de que
A. B. não se dedicaria, integralmente,
ao serviço público, o que de fato não
fez.
O estrito cumprimento da lei pelos
agentes públicos – princípio da legalidade dos atos administrativos – foi desrespeitado pelos réus. E como afirma
Fábio Medina Osório: “No Estado de
Direito, quer-se o governo das leis, não
SENTENÇAS
dos homens, radicando o princípio da
legalidade, especificamente, nos arts. 5º,
II, 37, 84, IV, todos da Carta Constitucional vigente, significando que a Administração nada pode fazer senão o
que a lei determina”. (in “Improbidade
Administrativa”, 2ª ed., Editora Síntese,
p. 127)
As alegações de que a opção pelo
pagamento de gratificação seria mais
vantajoso ao Município do que o pagamento de horas extras não prospera.
Primeiro, porque a gratificação era para
o regime de dedicação integral, como já
foi abordado. E, depois, porque o
Município não está sujeito ao pagamento de horas extras aos Secretários Municipais.
Como lembra o agente ministerial,
os Secretários Municipais são agentes
políticos (modalidade de agentes públicos), que não estão sujeitas às normas
que regulamentam os servidores públicos.
Nesse sentido, a lição de Hely Lopes
Meirelles: “Agentes Políticos: ... Não são
servidores públicos, nem se sujeitam ao
regime jurídico único estabelecido pela
Constituição de 1988. Têm normas específicas para sua escolha, investidura,
conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhe são
privativos...” (ob. cit., p. 72)
Os agentes políticos não estão sujeitos à percepção de horas extras. Não só
pela ausência de previsão legal, mas
como também porque é inerente a tais
cargos (autoridades públicas) o comprometimento com a sociedade, sem que
seja exigida benefícios financeiros ao
titular de tão nobre função. Como já foi
frisado, se era desinteressante financei-
15
ramente ao réu A. B. o exercício exclusivo do cargo de Secretário da Saúde,
não deveria ter ele o assumido.
As penas previstas para aqueles que
praticam atos de improbidade estão previstas no art. 12, I a III, da Lei nº 8.429/
92. As cominações, além do ressarcimento do dano, abrangem a suspensão
dos direitos políticos, a perda da função
pública, o pagamento de multa civil e
a proibição de contratar com o Poder
Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. As referidas
cominações são de extrema gravidade,
devendo ser usadas com comedimento.
O princípio utilizado para a fixação das
penas é o da proporcionalidade, que
nada mais é do que a equivalência da
pena à infração praticada.
No dizer do já referido autor Fábio
Medina Osório: “O princípio da proporcionalidade, de matriz constitucional, é
de ser aplicado pelo Poder Judiciário na
concretização da Lei nº 8.429/92, seja na
própria tipificação do ato de improbidade, deixando de fora dos tipos legais
comportamentos que não se mostrem
materialmente lesivos aos valores tutelados pelo legislador e pelo constituinte
de 1988, seja na adequação da resposta
estatal, através das sanções, a ilícitos de
menor gravidade”. (ob. cit., p. 271)
Com base no princípio da proporcionalidade, passo a fixar as cominações a serem aplicadas aos réus. Ao réu
A. C. L. B., pela prática art. 9º, caput,
da Lei nº 8.429/92, devem ser aplicadas
as seguintes penas (previstas no art. 12,
I, da Lei de Improbidade Administrativa): 1. deverá ressarcir o dano causando ao Erário, com a devolução da gratificação de 1.8 sobre a FG que recebia,
16
prevista no art. 32 da Lei Municipal nº
1.755/80, modificada pela Lei Municipal
nº 1.936/93; 2. terá os seus direitos
políticos suspensos pelo prazo de 08
anos, mínimo previsto; 3. pagará a título de multa civil, a ser revertida ao
Município, o valor que recebeu indevidamente, através da gratificação para
dedicação integral. Tal cominação, também, é a penalidade mínima prevista; e
4. estará proibido de contratar com o
Poder Público ou receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta
ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja
sócio majoritário, pelo prazo de 10 anos;
No que tange ao réu J. M., que
cometeu o ato de improbidade previsto
no art. 10, caput, da Lei nº 8.429/92,
devem ser aplicadas as cominações descritas no art. 12, II, da Lei de Improbidade Administrativa: 1. terá os seus direitos políticos suspensos pelo prazo de
05 anos, mínimo previsto; 2. pagará a
título de multa civil, revertida à Municipalidade, o valor recebido indevidamente pelo réu A. C. L. B. Referente à
gratificação de 1.8 sobre a FG do cargo
de Secretario da Saúde, prevista no art.
32 da Lei Municipal nº 1.755/80, modificada pela Lei Municipal nº 1.936/93; e
3. estará proibido de contratar com o
Poder Público ou receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta
ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja
sócio-majoritário, pelo prazo de 05 anos.
A sanção de perda da função pública
está prejudicada, vez que os réus deixaram os cargos anteriormente ocupados, e não há notícia de que exerçam
outros. Ademais, terão os direitos políticos suspensos.
SENTENÇAS
Isso posto, julgo parcialmente procedente os pedidos para: a) declarar
que o réu A. C. L. B. praticou o ato de
improbidade previsto no art. 9º, caput,
da Lei nº 8.429/92; b) condenar o réu
A. C. L. B. a ressarcir o dano causado
ao Erário Municipal, com a devolução
da gratificação de 1.8 sobre FG, prevista
no art. 32 da Lei Municipal nº 1.755/80,
modificada pela Lei Municipal nº 1.936/
93, forte nos arts. 9º, caput, e 12, I, da
Lei nº 8.429/92, devidamente corrigida
pelo IGP-M. Os valores serão apurados
em liquidação de sentença; c) decretar
a suspensão dos direitos políticos do
réu A. C. L. B. pelo prazo de 08 anos,
com base nos arts. 9º, caput, e 12, I, da
Lei nº 8.429/92 c/c o art. 15, V, da CF/
88; d) condenar o réu A. C. L. B. ao
pagamento de multa civil, que deverá
reverter ao Município, no valor que
recebeu indevidamente, através da gratificação para dedicação integral, forte
nos arts. 9º, caput, e 12, I, da Lei nº
8.429/92, devidamente corrigida pelo
IGP-M, sendo os valores apurados em
liquidação de sentença; e) proibir o réu
A. C. L. B. de contratar com o Poder
Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou
indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário, pelo prazo de 10 anos, com
base nos arts. 9º, caput, e 12, I, da Lei
nº 8.429/92; f) declarar que o réu J. S.
M. praticou o ato de improbidade previsto no art. 10, caput, da Lei nº 8.429/
92; g) decretar a suspensão dos direitos
políticos do réu J. S. M., pelo prazo de
05 anos, na forma dos arts. 10, caput,
e 12, II, da Lei nº 8.429/92, c/c o art.
15, V, da CF/88; h) condenar o réu J.
S. M. ao pagamento de multa civil, que
SENTENÇAS
deverá ser revertida em prol do Município, no valor da gratificação recebida
indevidamente pelo réu A. C. L. B., na
forma dos arts. 10, caput, e 12, II, da
Lei nº 8.429/92. Os valores serão devidamente corrigidos pelo IGP-M e apurados em liquidação de sentença; i) proibir o réu J. S. M. de contratar com o
Poder Público ou receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta
ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja
sócio majoritário, pelo prazo de 05 anos,
com base nos arts. 10, caput, e 12, II,
da Lei nº 8.429/92; j) rejeitar o pedido
de condenação do réu A. C. L. B., pela
prática dos atos previstos nos arts. 10,
caput, e inc. XI, e 11, caput, e inc. I,
17
da Lei nº 8.429/92; e l) rejeitar o pedido
de condenação do réu J. S. M., da prática dos atos previstos nos arts. 9º, caput,
10, inc. XI, e 11, caput, e inc. I, da Lei
nº 8.429/92.
Sem condenação em custas, que não
foram adiantadas, nem em honorários,
que não são devidos ao Ministério
Público (interpretação do art. 18 da Lei
nº 7.347/85).
Após o trânsito em julgado da sentença, oficie-se ao Colendo Tribunal
Regional Eleitoral, comunicando a condenação.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Itaqui, 06 de julho de 1998.
Alan Tadeu Soares Delabary Júnior,
Juiz de Direito Substituto.
18
Processo nº 00103512985 (102167)
2ª Vara da Fazenda Pública – 2º Juizado
Autoras: Magnólia de Aquino Primeira e outras
Réus: Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul – IPERGS e outro
Juiz prolator: Almir Porto da Rocha Filho
Aplicação, ou não, da Lei nº 7.672/82.
Notificação do Instituto de Previdência
do Estado – IPE de que os benefícios das
pensões pagas às filhas solteiras seriam
cancelados. Ilegalidade. Manutenção das
pensões. Ação julgada procedente.
Vistos, etc.
Magnólia de Aquino Primeira, Enilda
Mara Nunes Parada e Rosana Turski de
Ávila, todas brasileiras, solteiras, pensionistas, residentes as duas primeiras em
Pelotas e a última em Piratini, ajuizaram
a presente ação ordinária de manutenção e revisão de pensões contra o Instituto de Previdência do Estado do Rio
Grande do Sul – IPERGS –, autarquia
estadual, com sede na Av. Borges de
Medeiros nº 1.945, Porto Alegre, e Estado do Rio Grande do Sul, aduzindo
serem filhas de servidores falecidos, que
ingressaram no serviço público antes de
31-12-73.
Recebem há anos como pensionistas
da autarquia e necessitam dos valores
para a sobrevivência. Foram notificadas,
em jan./2000, de que o benefício seria
cancelado. A Lei nº 7.672/82 determina
que devem receber a pensão enquanto
não forem casadas. O Estado, em razão
da crise financeira que o atinge, fez
interpretação equivocada da legislação.
Trata-se de manobra política. É ilegal a supressão dos benefícios. Dizem
ter direito adquirido, com amparo no
art. 5º, XXVI, da CF. Afirmam que a
prescrição atingiu o ato administrativo,
consoante o disposto no art. 54 da Lei
nº 9.784/99. Salientam o teor do enunciado nº 105 da Súmula do STJ. Caracteriza-se também a coisa julgada. Alegam perceber mensalmente uma cota
familiar de 45%, acrescida de uma cota
individual de 5% por dependente.
Pretendem, ainda, receber o benefício no valor integral da remuneração
dos servidores falecidos, como se vivos
fossem, no período não-prescrito, incidindo sobre as diferenças juros de mora
e correção monetária. Embasam suas pretensões nos arts. 40, § 5º, da CF, c/c o
art. 41, § 3º, da CE, mencionando jurisprudência. Postularam antecipação de
tutela. Acostaram documentos (fls. 22 à
52).
Foi deferida em parte a antecipação
de tutela pretendida, apenas para a manutenção do pensionamento (fls. 53/54).
O agravo de instrumento interposto pelas
autoras não obteve êxito (fls. 75/76).
Foi comunicado pelo pólo ativo o cancelamento do benefício, apesar da
medida concedida (fls. 78/79). O Estado, apesar de citado, não apresentou
defesa.
O IPERGS contestou, alegando que
as autoras não possuíam 21 anos em
1º-01-74, como determina o art. 73 da
Lei nº 7.672/82, apesar de os segurados
terem ingressado anteriormente no ser-
SENTENÇAS
viço público. A expressão “conservam”
pressupõe a existência do vínculo e do
direito naquela norma previstos. Ademais, trata-se de regra excepcional, pois
contida nas disposições transitórias da
lei em tela. A interpretação há que ser
restritiva. Para a manutenção do benefício devem comprovar invalidez. Pretende a improcedência do pedido. Anexou documentos (fls. 85 à 124).
Em réplica, as autoras rebateram os
argumentos contestacionais, reiterando
os termos da exordial. Salientaram ter
havido cerceamento de defesa no procedimento administrativo. O Ministério
Público opinou pela improcedência da
pretensão. Foi dado à causa o valor de
alçada. É o relatório.
DECIDO
O pedido deve ser conhecido diretamente, na forma do art. 330, I, do
CPC, por se tratar de questão exclusivamente de Direito. Inicialmente, excluo
o Estado do Rio Grande do Sul da lide,
pois não é parte legitima para figurar
no pólo passivo da relação processual.
Sua citação só ocorreu pela determinação contida no art. 26 da Lei nº 7.672/
82. O dever de pensionamento é do
Instituto, autarquia estadual, consoante
tem decidido o Egrégio Tribunal de
Justiça (Apelação Cível nº 594116485).
Fundamento a questão relacionada ao
cancelamento das pensões. É essencial a
análise da legislação previdenciária através do tempo, uma vez que representou,
a cada momento, a intenção do legislador, sempre voltado para os fatos da
vida social. Sem dúvida, até a década de
80, e ainda hoje em algumas situações,
as diferenças eram brutais entre as pessoas dos sexos masculino e feminino. E
19
não é preciso ir longe. Na Magistratura
Rio-Grandense, sempre de ponta em nível
nacional, a primeira mulher só ingressou
na década de 70.
A Constituição Federal de 1988,
buscando amenizar tais fatos, em seu
art. 5º, I, estipulou: “Art. 5º – Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição...”
Nesta fase da vida nacional, há quase
20 anos, quando ainda vigia a Carta
Federal de 1967, com a Emenda nº 01
de 1969, foi editada a Lei nº 7.672, em
18-06-82. Os tempos eram outros, e as
grandes modificações nacionais, felizmente, estavam por vir. Entretanto, naquele momento da história, ainda as
mulheres recebiam, e em algumas situações realmente era necessário, os hoje
chamados privilégios.
Neste contexto, insere-se o art. 73
da referida Lei, ora em discussão, de
seguinte teor: “Art. 73 – As filhas solteiras maiores de 21 anos, de segurados
do Instituto, admitidos no serviço público estadual em data anterior a 1º-01-74,
conservam a qualidade de dependentes, para os efeitos desta Lei”.
O que o legislador teve por intenção, assim como já acontecera com a
Lei nº 6.617/73, em seu art. 9º, § 5º, foi
exatamente manter as filhas solteiras
como dependentes, mesmo após completarem 21 anos, “desde que o servidor houvesse ingressado no serviço público anteriormente a 1974”.
20
Portanto, é uma situação em extinção, não fazendo jus ao benefício tão-somente aquelas filhas, cujo ingresso
do associado deu-se após 1974 nos
quadros do Estado.
Transcrevo o referido dispositivo para
melhor compreensão: “Art. 9º – Para os
efeitos desta lei são considerados dependentes do associado: “... § 5º – É assegurado à filha solteira maior de 21 anos
o direito a ser considerada dependente
presumida de associado, desde que esteja
vinculado ao serviço público estadual, anteriormente à vigência desta Lei”.
Caso o legislador quisesse excluir,
em ambas as leis, as filhas solteiras então
menores de 21 anos, a redação deveria
ter sido diferente, ou seja, deveria ter
dito que restava assegurado o benefício
àquelas que já houvessem completado
21 anos. Entretanto, sempre redigiu de
forma a regrar as hipóteses das que já
tivessem ou viessem a ter 21 anos.
O limitador, para restringir as situações futuras, naquelas leis, não era a
idade das filhas, mas, sim, a data de
ingresso do associado no serviço público: anterior a 1974.
Por este motivo, é que sempre foi
concedida e mantida a pensão das referidas filhas solteiras até a notificação
expedida pela atual direção do IPERGS.
Não é crível que tantas Administrações
houvessem conduzido erroneamente a
situação, nos últimos 27 anos, se considerada a Lei de 1973, ou 18 anos, se
computado a contar de 1982, especialmente considerando a alta qualidade
intelectual e de saber jurídico de vários
dos Procuradores-Gerais do Estado, que
estiveram à testa daquele Órgão.
A razão é simples: o art. 73 é claro
e não me parece que deva ser interpre-
SENTENÇAS
tado de forma diferente da que vinha
sendo. Os pareceres trazidos aos autos
não analisaram a questão de modo global e, também, gramatical, mas apenas
isoladamente e, mesmo assim, equivocadamente.
Se averiguada a legislação federal
contemporânea à estadual, constata-se
que naquela esfera também as filhas
solteiras maiores de 21 anos, que já
percebiam pensionamento, tiveram mantidos os seus benefícios. Isto está estampado nas Leis nos 3.373/58, 3.765/60
e 4.069/62. Não há dúvidas de que, se
houvesse irregularidade no ato administrativo, ele poderia ser alterado, desde
que não concretizada a decadência ou
a prescrição.
De qualquer modo, na situação presente, ocorreu a prescrição administrativa, consoante previsão do Decreto nº
20.910/32, art. 1º, de seguinte teor: “Art.
1º – As dívidas passivas da União, dos
Estados e dos Municípios, bem assim
todo e qualquer direito ou ação contra
a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em 05 anos, contados da data
do ato ou fato do qual se originaram”.
Tratando sobre a prescrição administrativa grandes doutrinadores ensinam.
Celso Antônio Bandeira de Mello: “É,
outrossim, de 05 anos o prazo para a
Administração, por si própria, anular seus
atos inválidos, dos quais hajam decorrido efeitos favoráveis ao administrado,
salvo comprovada má-fé, consoante a
Lei nº 9.784, de 29-01-99, disciplinadora
do processo administrativo. Também, aí,
não se distingue entre atos nulos e
anuláveis.
“Vê-se, pois, que este prazo de 05
anos é uma constante nas disposições
SENTENÇAS
gerais estatuídas em regras de Direito
Público, quer quando reportadas ao
prazo para o administrado agir, quer
quando reportadas ao prazo para a
Administração fulminar seus próprios
atos. Ademais, salvo disposição legal
explícita, não haveria razão prestante
para distinguir entre Administração e
administrados, no que concerne ao prazo, ao cabo do qual faleceria o direito
de reciprocamente se proporem ações.
“Isso posto, estamos em que, faltando regra específica que disponha de
modo diverso, o prazo para a Administração proceder judicialmente contra os
administrados é, como regra, de 05 anos,
quer se trate de atos nulos, quer se trate
de atos anuláveis. Ressalte-se, todavia,
que, por força do art. 37, § 5º, da Constituição, são imprescritíveis as ações de
ressarcimento por ilícitos praticados por
qualquer agente, servidor, ou não, que
causem prejuízos ao erário”. (“Curso de
Direito Administrativo”, 12ª ed.,
Malheiros, 2000, p. 124)
Lúcia Valle Figueiredo: “Claro está
que, se tiver ocorrido a prescrição – na
verdade, preclusão administrativa –, a
invalidação não poderá ocorrer, como
também não poderá ocorrer anulação
judicial, se houver ocorrido prescrição.
O Direito repele, sem dúvida, situações
pendentes. Deveras, o instituto da prescrição visa, exatamente, à estabilidade
das situações constituídas pelo decurso
do tempo.
“Entendemos ser de 05 anos o prazo
prescricional, ou, melhor dizendo, de
preclusão, uma vez que este é o lapso
de tempo normal para se atacar as relações travadas pela Administração Pública. Não endossamos, pois, com todo
respeito pela opinião de outros concei-
21
tuados autores, o entendimento de que
o prazo seria de 20 anos.
“Temos afirmado que as situações
jamais são de ‘mão única’. Assim como
as ações contra a Administração Pública
devem respeitar o prazo prescricional
de 05 anos, também entendemos que a
invalidação do ato não se possa dar em
prazo maior”. (“Curso de Direito Administrativo”, 4ª ed., Malheiros, 2000, p.
227)
Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “Ficamos com a posição dos que, como Hely
Lopes Meirelles (1996:589), entendem
que, no silêncio da lei, a prescrição
administrativa ocorre em 05 anos, nos
termos do Decreto nº 20.910. Quando
se trata de direito oponível à Administração, não se aplicam os prazos do
Direito Comum, mas esse prazo específico aplicável à Fazenda Pública; apenas em se tratando de direitos de natureza real é que prevalecem os prazos
previstos no Código Civil, conforme entendimento da jurisprudência.
“Desse modo, prescrita a ação na
esfera judicial, não pode mais a Administração rever os próprios atos, quer
por iniciativa própria, quer mediante
provocação, sob pena de infringência
ao interesse público na estabilidade das
relações jurídicas. Na esfera federal, a
questão ficou pacificada com a Lei nº
9.784, cujo art. 54 veio estabelecer que
‘o direito da Administração de anular os
atos administrativos de que decorram
efeitos favoráveis para os destinatários
decai em 05 anos, contados da data em
que foram praticados, salvo se comprovada má-fé’. Pela norma do § 1º do
mesmo dispositivo, ‘no caso de efeitos
patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do
22
primeiro pagamento’.” (“Direito Administrativo”, 12ª ed., Atlas, 2000, pp. 586/
587)
Hely Lopes Meirelles: “A prescrição
administrativa opera a preclusão da oportunidade de atuação do Poder Público
sobre a matéria sujeita à sua apreciação.
Não se confunde com a prescrição civil,
nem estende seus efeitos às ações judiciais (v. adiante, item V), pois é restrita
à atividade interna da Administração,
acarretando a perda do direito de anular ato ou contrato administrativo, e se
efetiva no prazo que a norma legal estabelecer. Mas, mesmo na falta de lei
fixadora do prazo prescricional, não
pode o servidor público ou o particular
ficar perpetuamente sujeito à sanção administrativa por ato ou fato praticado há
muito tempo.
“A esse propósito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que ‘a regra é a
prescritibilidade’. Entendemos que, quando a lei não fixa o prazo da prescrição
administrativa, esta deve ocorrer em 05
anos, à semelhança da prescrição das
ações pessoais contra a Fazenda Pública (Decreto nº 20.910/32), das punições
dos profissionais liberais (Lei nº 6.838/
80) e para cobrança do crédito tributário (CTN, art. 174). Para os servidores
federais a prescrição é de 05 anos, 02
anos e 180 dias, conforme a gravidade
da pena (Lei nº 81.112/90, art. 142).
“... O instituto da prescrição administrativa encontra justificativa na necessidade de estabilização das relações entre o administrado e a Administração e
entre esta e seus servidores, em obediência ao princípio da segurança jurídica, examinado no cap. II, item II. Transcorrido o prazo prescricional, fica a Administração, o administrado ou o servi-
SENTENÇAS
dor impedido de praticar o ato prescrito, sendo inoperante o extemporâneo”.
(“Curso de Direito Administrativo Brasileiro”, 25ª ed., Malheiros, 2000, pp. 626/
627)
Essencial salientar que os atos de
inclusões das autoras deram-se com os
óbitos de seus pais, há mais de 05 anos.
A jurisprudência toma o mesmo rumo.
Conseqüentemente, a Administração tem
contra si o prazo de 05 anos para revisar os seus atos, desde que praticados
de boa-fé, como na situação dos autos.
Transcorrido o qüinqüênio, faz-se coisa
julgada administrativa, operando-se preclusão para alteração das situações por
ela consolidadas. Traz a impossibilidade
de modificar a relação dela decorrente
entre a administração e o administrado.
Mais uma vez, o Mestre Hely Lopes
Meirelles esclarece: “Coisa julgada administrativa: a denominada coisa julgada administrativa que, na verdade, é
apenas uma preclusão de efeitos internos, não tem o alcance da coisa julgada
judicial, porque o ato jurisdicional da
Administração não deixa de ser um simples ato administrativo decisório, sem a
força conclusiva do ato jurisdicional do
Poder Judiciário. Falta ao ato jurisdicional administrativo aquilo que os publicistas norte-americanos chamam the final enforcing power, e que se traduz
livremente como o poder conclusivo da
Justiça Comum. Esse poder, nos sistemas constitucionais que não adotam o
contencioso administrativo, é privativo
das decisões judiciais.
“Sobre esse tema, observou, com
justeza, Araújo Falcão que: ‘Mesmo aqueles que sustentam a teoria da chamada
coisa julgada administrativa reconhecem
que, efetivamente, não se trata, quer
SENTENÇAS
pela sua natureza, quer pela intensidade de seus efeitos, de res judicata propriamente dita, senão de um efeito
semelhante ao da preclusão, e que se
conceituaria quando ocorresse, sob o
nome de irretratabilidade’.
“Realmente, o que ocorre nas decisões administrativas finais é, apenas,
preclusão administrativa, ou a irretratabilidade do ato perante a própria Administração. É sua imodificabilidade na via
administrativa, para estabilidade das
relações entre as partes. Por isso, não
atinge, nem afeta situações ou direitos
de terceiros, mas permanece imodificável entre a administração e o administrado destinatário da decisão interna do
Poder Público...” (ob. cit., pp. 625/626).
No mesmo sentido a lição de Maria
Sylvia Zanella Di Pietro: “Portanto, a
expressão coisa julgada, no Direito Administrativo, não tem o mesmo sentido
que no Direito Judiciário. Ela significa
apenas que a decisão se tornou
irretratável pela própria administração.
Embora se faça referência apenas à
hipótese em que se exauriu a via administrativa, não cabendo mais qualquer
recurso, existem outras possibilidades
que abrangem os casos de irrevogabilidade dos atos administrativos. Aliás, a
coisa julgada administrativa costuma ser
tratada dentro do tema das limitações
ao poder de revogar os atos da Administração.
“No Capítulo 7, item 7.11.3, referente à revogação, foram apontadas essas
limitações: não podem ser revogados os
atos vinculados, os que exauriram os
seus efeitos, os meros atos administrativos, os que geraram direitos subjetivos. Não podendo ser revogados, tornam-se irretratáveis pela própria Admi-
23
nistração, fazendo coisa julgada administrativa”. (ob. cit., p. 585)
Não pode ser esquecido, por fim, o
Enunciado nº 6 da Súmula do STF, que
prevê a necessidade de retornar ao
Tribunal de Contas para análise os atos
anteriormente por ele aprovados, para
revogação ou anulação, in verbis: “A
revogação ou anulação, pelo Poder Executivo, de aposentadoria, ou qualquer
outro ato aprovado pelo Tribunal de
Contas, não produz efeitos antes de aprovada por aquele Tribunal, ressalvada a
competência revisora do Judiciário”.
Claro que esta exigência só seria
cabível, no caso concreto, se não houvesse ocorrido a prescrição administrativa, nem estivessem as autoras com razão. Saliento que o reconhecimento do
direito abrange apenas os fatos discutidos neste processo, e não situações peculiares de cada pensionista como, por
exemplo, casamento, concubinato, exercício de serviço público remunerado.
Em relação à integralidade da pensão, também o Direito ampara as requerentes: Neste tópico, inicialmente, saliento a prescrição das parcelas anteriores a 05 anos do ingresso da demanda.
Não é atingido o fundo de direito,
de acordo com o art. 1º do Decreto nº
20.910/32 e Enunciado nº 85 da Súmula
do STJ, de seguinte teor: “Nas relações
jurídicas de trato sucessivo em que a
Fazenda Pública figure como devedora,
quando não tiver sido negado o próprio
direito reclamado, a prescrição atinge
apenas as prestações vencidas antes do
qüinqüênio anterior à propositura da
ação”.
A decisão da questão passa, necessariamente, pela análise da constitucionalidade de dispositivos da Legislação
24
Estadual, frente a artigos das Cartas
Federal e Rio-Grandense, no tocante às
pensões de servidores públicos. A Constituição Federal, em seu art. 40, §§ 4º e
5º, estabelecia (pela Emenda Constitucional nº 20/98, os artigos foram alterados)
(§ 3º – Os proventos de aposentadoria,
por ocasião da sua concessão, serão
calculados com base na remuneração
do servidor no cargo efetivo em que se
der a aposentadoria e, na forma da lei,
corresponderão à totalidade da remuneração; § 7º – Lei disporá sobre a concessão do benefício da pensão por
morte, que será igual ao valor dos proventos do servidor falecido, ou ao valor
dos proventos a que teria direito o servidor em atividade na data de seu falecimento, observado o disposto no §
3º): “Art. 40: O servidor será aposentado: ... § 4º – Os proventos da aposentadoria serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que
se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação de cargo ou
função em que se deu a aposentadoria,
na forma da lei.
“§ 5º– O benefício da pensão por
morte corresponderá à totalidade dos
vencimentos ou proventos do servidor
falecido, até o limite estabelecido em
lei, observado o disposto no parágrafo
anterior”.
A
interpretação
das
normas
retroelencadas leva à conclusão de que
as únicas limitações possíveis são as
decorrentes dos tetos remuneratórios de
SENTENÇAS
cada um dos Poderes, na forma do art.
37, XI, da Carta Magna (nova redação
pela Emenda Constitucional nº 19/98)
(XI – a remuneração e o subsídio dos
ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da Administração direta,
autárquica e fundacional, de membros
de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os
proventos, pensões ou outra espécie
remuneratória, percebidos cumulativamente, ou não, incluídas as vantagens
pessoais ou de qualquer outra natureza,
não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal): “Art. 37 – ... XI
– a lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor
remuneração dos servidores públicos,
observados, como limites máximos e no
âmbito dos respectivos poderes, os valores percebidos como remuneração, em
espécie, a qualquer título, por membros
do Congresso Nacional, Ministros de
Estado e Ministros do Supremo Tribunal
Federal e seus correspondentes nos
Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores
percebidos, como remuneração, em
espécie, pelo Prefeito”.
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estipulou que a revisão
dos proventos e pensões deveria ser
ajustada em 180 dias, in verbis: “Art. 20
– Dentro de 180 dias, proceder-se-á à
revisão dos direitos dos servidores públicos inativos e pensionistas e a atualização dos proventos e pensões a eles
devidos, a fim de ajustá-los ao disposto
na Constituição”.
SENTENÇAS
Necessário averiguar, assim, a eficácia das normas constitucionais atinentes
à espécie.
O Mestre Pontes de Miranda, em
“Comentários ao Código de Processo
Civil”, Ed. RT, I/126, leciona: “Quando
uma regra se basta, por si mesma, para
a sua incidência, diz-se bastante em si,
self-executing, self-acting, self-enforcing.
Quando, porém, precisam as regras
jurídicas de regulamentação, porque, sem
a criação de novas regras jurídicas que
as completem ou suplementem, não
poderiam incidir e, pois, ser aplicadas,
dizem-se não bastantes em si”.
O Professor Celso Ribeiro Bastos, ao
tratar do assunto, em sua obra “Direito
Constitucional”, Ed. Saraiva, 12ª ed.,
1990, p. 109, ensina: “Em verdade, a
maior ou menor aptidão para atuar, para
incidir sobre os fatos abstratos descritos
na hipótese da norma, depende do modo
como a própria norma regula a matéria
de que se nutre. E falar, a possibilidade
de plena incidência da norma está sempre condicionada à forma de regulação
da respectiva matéria. Se esta é descrita
em todos os seus elementos, é plasmada por inteiro quanto aos mandamentos
e às conseqüências que lhe correspondem, no interior da norma formalmente
posta, não há necessidade de intermediária legislação, porque o comando
constitucional é bastante em si. Tem
autonomia operativa e idoneidade suficiente para deflagrar todos os efeitos a
que se preordena.
“De revés, se a matéria que se põe
como conteúdo da norma é deficientemente plasmada, de modo a que tal
defeito de conformação intercorra por
qualquer um dos seus elementos lógi-
25
co-estruturais – que são hipótese, o
mandamento e a conseqüência –, aí se
torna necessária a expedição de um
comando complementar da vontade
constitucional. Dá-se, então, o reclamo
da interposta lei, para suprir as insuficiências da norma, complementar as suas
prescrições e tornar sua incidência possível, em termos de plenitude eficacial”.
Assim, as normas constitucionais
podem ser de eficácia plena (auto-aplicáveis), ou de eficácia contida (nãoauto-aplicáveis). In casu, os dispositivos que determinam o pagamento integral dos vencimentos ou proventos do
servidor falecido são auto-aplicáveis, com
eficácia desde a entrada em vigor da
Carta Nacional.
Deve ser salientado que a Constituição Estadual igualmente recepcionou as
disposições federais, determinando que
os pensionistas devem perceber o correspondente à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido:
“Art. 41 – ... § 3º – O benefício da
pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos
do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, sendo revisto, na mesma proporção e na mesma data, sempre
que ocorrerem modificações nos vencimentos dos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou
função em que se deu o falecimento ou
a aposentadoria, na forma da lei”.
Não é o que vem acontecendo, todavia, nas pensões das requerentes, que
não atingem a integralidade prevista.
Configura-se clara afronta às disposições
da Constituição Federal. Como se chegou a tal situação? Através de normas
26
da Legislação Estadual, que estão sendo
seguidas
pela
autarquia-ré,
em
desconsideração à Lei Maior.
Para melhor visualização e discussão da questão, reproduzo os dispositivos considerados inconstitucionais: “Art.
1º – O valor das pensões pagas pelo
Instituto de Previdência do Estado do
Rio Grande do Sul – IPERGS será atualizado de forma a resguardar suas
correspondência à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido nesta lei,
sendo revisto de conformidade com o
que determina o § 3º do art. 41 da
Constituição Estadual, c/c o parágrafo
único do art. 12 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
“Parágrafo único – Os critérios para
a fixação do valor das pensões, suas
limitações e das parcelas que integram
o salário de contribuição são os definidos no art. 18 e seus parágrafos e no
art. 27 da Lei nº 7.672, de 18-06-82,
com a redação da Lei nº 7.716, de
26-10-82”. (Lei nº 9.127/90)
“Art. 27 – O valor da pensão por
morte será constituído de uma quota
familiar correspondente a 45% do salário-de-benefício, acrescida de tantas
quotas individuais, correspondentes a 5%
do salário-de-benefício, quantos forem
os dependentes habilitados, até o máximo de 11 (Lei nº 7.672/82, com redação
dada pela Lei nº 7.716/82)”.
O art. 1º e seu parágrafo único da
Lei nº 9.127/90 são flagrantemente incompatíveis com o disposto no art. 40,
§ 7º, da CF, que se estende às esferas
estaduais e municipais. O Constituinte
de 1988, quando estipulou a correspondência da pensão à integralidade dos
proventos ou vencimentos, com certe-
SENTENÇAS
za, não pretendia incorporar, através de
legislação infraconstitucional, qualquer
espécie de limitação, a não ser aquelas
previstas no art. 37, XI, da própria Carta
Magna. Deste modo, o condicionamento previsto no art. 27 da Lei nº 7.672/
82, por determinação do parágrafo único da Lei nº 9.127/90, vai de encontro
à Constituição Federal, violando direito,
no caso, das pensionistas.
Neste sentido, já decidiu o Egrégio
Supremo Tribunal Federal, ao conceder
liminar na ADIn nº 1.137-5-RS, em
21-10-94, por unanimidade plenária, tendo como Relator o Min. Ilmar Galvão,
nos seguintes termos: “Constitucional.
Ação direta. Liminar. Pensão. Servidores
públicos. Valor. Equivalência. Limitação.
Lei gaúcha nº 9.127/90... Afigura-se relevante a tese de inconstitucionalidade
da norma que condiciona ao número
de dependentes a percepção, pelo pensionista, do valor integral dos vencimentos ou proventos do servidor público falecido, tendo em vista o § 5º do art.
40 da CF, que estabelece a correspondência entre os mencionados valores
sem qualquer condicionamento, exceto
no tocante às limitações decorrentes dos
tetos remuneratórios no âmbito de cada
um dos Poderes (art. 37, XI). Norma
que, embora editada há certo tempo,
restringe a percepção de verba alimentar a justificar a conveniência de sua
suspensão cautelar até o julgamento
definitivo da causa...
“Acórdão – Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros
do Supremo Tribunal Federal, em sessão
plenária, na conformidade da ata de
julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, em conhecer, em
parte, a ação e, nesta parte, deferir, em
SENTENÇAS
parte, o pedido de medida liminar para
suspender, até a decisão final da ação,
a eficácia da expressão até o limite estabelecido nesta Lei, contida no caput
do art. 1º da Lei nº 9.127, de 07-08-90,
do Estado do Rio Grande do Sul, bem
como das expressões e ‘e’ e no art. 27,
contidas no parágrafo único do mesmo
artigo (1º). Votou o presidente”.
Vê-se, assim, que foram suspensas
exatamente as expressões limitadoras da
percepção da totalidade da pensão
deixada pelo servidor falecido.
O Pretório Excelso praticamente
pacificou o assunto, havendo inúmeros
arestos sobre a questão: “Pensão. Valor
correspondente à totalidade dos vencimentos do servidor falecido. Auto-aplicabilidade do art. 40, § 5º, da CF. Esta
Corte, desde o julgamento dos Mandados de Injunção nos 211 e 263, firmou
o entendimento de que o § 5º do art.
40 da CF é auto-aplicável, sendo que a
lei nele referida não pode ser outra
senão aquela que fixa o limite da remuneração dos servidores em geral, na
forma do art. 37, XI, da Carta Magna”.
(RE nº 216.920-0-RS, Rel. Min. Moreira
Alves, julgado em 09-09-97)
“Recurso extraordinário. Constitucional. Auto-aplicabilidade do art. 40, §§ 4º
e 5º, da CF. Pensão por morte. Valor
correspondente à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido. 1. As normas contidas nos §§ 4º e
5º do art. 40 da CF não dependem de
legislação infraconstitucional, por serem
auto-aplicáveis. A revisão dos proventos da aposentadoria será efetuada sempre que houver modificação da remuneração dos servidores em atividade,
estendendo-se aos inativos quaisquer
benefícios ou vantagens posteriormente
27
concedidos àqueles. 2. O valor da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do
servidor falecido, observado o teto inscrito no art. 37, XI, da CF. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (RE
nº 225.916-2(275)-RS, 2ª Turma, Rel. Min.
Maurício Corrêa, julgado em 27-04-98)
“Constitucional. 2. Pensão integral.
3. Art. 40, § 5º, da CF: Auto-aplicabilidade. 4. Precedentes : MI-211; ADIn nº
1.630-DF. 5. Recurso conhecido e provido.” (RE nº 222.870-RS, 2ª Turma, Rel.
Min. Nelson Jobim, julgado em 23-03-98,
Celina Batista de Oliveira – recorrente,
Instituto de Previdência do Estado do
Rio Grande do Sul – recorrido)
A orientação do Supremo Tribunal
Federal, definitiva, deve ser seguida, por
ser aquela Corte a guardiã da Constituição, especialmente pelo princípio da segurança jurídica, com igualdade entre
todos os pensionistas.
Trago, ainda, à colação, jurisprudência do TJRGS, assim ementada: “Pensão.
IPERGS. Art. 40, § 5º, da CF/88. Orientação do Supremo Tribunal Federal. A
pensão previdenciária, desde o advento
da Carta Constitucional de 1988, é integral, superando norma expressa a outras determinações gerais da Lei Maior.
Irrelevância do debate sobre teto remuneratório ou natureza das vantagens
auferidas pelo extinto. Implantação de
pagamento em folha, quanto às parcelas vincendas. Correção monetária das
parcelas vencidas. Súmula nº 148 do
STJ, e sua compreensão. Honorária que
se reduz, ajustando-a à repetitividade e
singeleza da causa”.
Da análise atenta dos dispositivos da
Carta Magna e da própria legislação federal, como no caso da Lei nº 8.112/90,
28
depreende-se que a intenção dos constituintes foi exatamente a de determinar
a igualdade de proventos ou vencimentos, tanto na aposentadoria, quanto em
benefício dos pensionistas, desimportando quantos dependentes haja em relação a cada servidor.
A referida Lei nº 8.112/90, que trata
do Regime Único dos Servidores Públicos Federais, ratificou os termos da Carta
Magna, como se depreende de seu texto, que segue: “Art. 215 – Por morte do
servidor, os dependentes fazem jus a
uma pensão mensal de valor correspondente ao da respectiva remuneração ou
provento, a partir da data do óbito,
observado o limite estabelecido no art.
42”.
Ressalto não haver violação ao art.
195, § 5º, da CF. O entendimento, inclusive da Corte Suprema, é no sentido de
que não incide em benefício criado pela
própria Carta Magna. As vantagens pessoais devem ser incluídas no cálculo. A
expressão “vencimentos” foi utilizada,
no art. 40, § 5º, no plural, exatamente
com a finalidade de englobar todos os
ganhos do servidor. Ademais, para fins
de contribuição, é utilizada como base
de cálculo a integralidade dos vencimentos, inclusive, vantagens pessoais.
Esta a lição do Mestre Hely Lopes
Meirelles: “Vencimento, em sentido estrito, é a retribuição pecuniária devida
ao servidor pelo efetivo exercício do
cargo, correspondente ao padrão fixado
em lei; vencimento, em sentido amplo,
é o padrão com as vantagens pecuniárias auferidas pelo servidor a título de
adicional ou gratificação. Quando o legislador pretende restringir o conceito
ao padrão do servidor emprega o vocá-
SENTENÇAS
bulo no singular – vencimento –, quando quer abranger, também, as vantagens conferidas ao servidor usa o termo
no plural – vencimentos.
“Essa técnica administrativa é
encontradiça nos estatutos e foi utilizada no texto constitucional nas várias
disposições em que o constituinte aludiu genericamente à retribuição dos
agentes públicos – servidores e magistrados – estipendiados pela Administração, e não deixa qualquer dúvida quanto ao significado de vencimento, no
singular”. (“Direito Administrativo Brasileiro”, 21ª ed., São Paulo, Malheiros,
1996, p. 403)
O Tribunal de Justiça do Estado vem
decidindo neste sentido: “Previdenciário. IPERGS. Pensão integral. O § 5º do
art. 40 da Carta Magna, consoante exegese do Supremo Tribunal Federal e
desse Tribunal, determina que as pensões devem ser pagas na totalidade dos
vencimentos que o segurado perceberia, se vivo fosse. O indigitado dispositivo é auto-aplicável e de incidência imediata. O termo ‘vencimentos’ contido
neste dispositivo abrange a retribuição
pecuniária padrão e as vantagens. Negaram provimento, confirmando a sentença em reexame necessário”. (Apelação Cível nº 598447555, 21ª Câmara
Cível, Rel. Des. Marco Aurélio Heinz,
julgada em 02-12-98)
Impõe-se o reconhecimento do direito das autoras, com o pensionamento
em valor correspondente ao que perceberiam os servidores, caso estivessem
vivos. No tocante às parcelas vencidas
e vincendas, até a implementação do
benefício, incidirá correção monetária,
desde a data em que deveriam ter sido
SENTENÇAS
satisfeitas, pelo IGP-M, considerado o
mais adequado dos índices para aferição da inflação, mormente atentando-se
para o caráter alimentar da pensão.
Ante o exposto, julgo procedente o
pedido, excluindo o Estado da lide, sem
ônus sucumbenciais, e condenando o
Instituto-réu a manter os benefícios das
pensões das autoras, ou restabelecê-los
em caso de cancelamento pela interpretação que fez do art. 73 da Lei nº 7.672/
82, ressalvadas outras hipóteses que não
tenham sido objeto da presente ação.
Ainda, deverá revisar as pensões das
requerentes para os mesmos valores que
perceberiam os segurados falecidos, caso
estivessem vivos, bem como pagar-lhes
as diferenças entre o quantum recebidoe
o que teriam direito, desde 05 anos
anteriores ao ajuizamento da ação, excepcionadas, portanto, as parcelas prescritas, acrescidas de correção monetária
pelo IGP-M, contada das datas em que
29
deveriam ter sido satisfeitas e juros legais de 6% ao ano, a partir da citação,
abatendo-se o imposto de renda incidente. O pagamento dar-se-á através de
precatório, na forma legal.
Arcará o requerido com o pagamento das custas processuais e honorários
advocatícios, que fixo em 5% do montante das parcelas vencidas, na forma
do enunciado nº 111 da Súmula do STJ,
considerando tratar-se de Fazenda Pública o valor da condenação e o trabalho realizado, a teor do art. 20, §§ 3º e
4º, do CPC.
Transcorrido o prazo recursal voluntário, remetam-se os autos ao Egrégio
Tribunal de Justiça do Estado para reexame necessário.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 30 de setembro de
2000.
Almir Porto da Rocha Filho, Juiz de
Direito.
30
Processo nº 20.695/100 – Ação Ordinária de Revogação de Doação
1ª Vara Judicial
Autora: Balbina Maria Lima Macedo
Réus: Adão Dorneles Rodrigues e outra
Juiz prolator: André Guidi Colossi
Revogação de doação por alegada
ingratidão. Inocorrência. Improcedência
do pedido.
Vistos, etc.
Balbina Maria Lima Macedo ajuizou
ação ordinária de revogação de doação
contra Adão Dorneles Rodrigues e Eleny
Tunes Rodrigues, alegando, em síntese,
a ingratidão destes, a ensejar o ato
revocatório postulado.
À inicial, sustenta a autora, após
apresentar estudo sobre sua personalidade e negócios por ela realizados, a
demonstrar a origem das quadras de
campo de sua propriedade, que, por
amizade, doou aos réus, no ano de 1986,
de forma verbal, área separada de sua
fazenda e denominada de “Bota”, haja
vista semelhança desta com tal espécie
de calçado.
Alega a autora, justificando seu proceder, que o pai do primeiro réu, Sr.
Adão Morocine Dorneles, foi empregado do seu pai durante anos, sendo
pessoa de sua confiança e a quem
conhecia pelo apelido carinhoso de
“Morocho”. A isso somou-se o pedido
do próprio réu Adão, no sentido de que
na referida área poderia criar gado com
um primo irmão, de nome Edegar
Dorneles.
Posteriormente, sustenta, assinou a
escritura de doação da referida área, de
aproximadamente 130ha, situada dentro
da área maior de sua propriedade, sendo que já no ano de 1992, devido a
negócio realizado com terceiro, assinou,
juntamente com os réus, instrumento
onde estes concordaram com a divisão
da área (total), a eles cabendo a área
doada: 130,68ha, perfeitamente localizados (a “Bota”).
Todavia, argüi, no ano de 1994,
através do seu arrendatário, Ernani
Comis, veio a tomar conhecimento do
proceder dos réus, que, mediante notificação e averbação em Registro de
Imóveis, esta datada ainda de 1988,
procuraram melhor localizar seu campo, de forma a ficar com a frente da
fazenda e a sede desta, uma casa de
alvenaria de 60m², assim como receber
percentagem de arroz (preço pago pelo
arrendatário) que não lhes pertencia.
Dessa forma, sustenta a ingratidão
dos réus, assim como que a doação
feita não coincide com a escriturada, já
que ao assinar a referida escritura pensava estar tão-somente a formalizar a
doação de fato que havia feito de área
de terra nua plenamente localizada.
Requer, então, a procedência da ação,
com a revogação da doação, que, alega,
restou escriturada com erro de vontade.
Juntou documentos.
Citados, os réus ofereceram resposta
tempestivamente, requerendo, em preliminar, a extinção do feito sem julgamento
do mérito, por ser a autora carecedora da
SENTENÇAS
ação, e, no mérito, a improcedência do
pedido, em argumentos que se iniciam
com a prescrição, alcançando a nãotipificação da ingratidão no proceder dos
réus, conforme legislação civil.
Replicou a autora, a seguir abrindose às partes momento para especificação das provas pretendidas produzir.
Silentes ficaram, vindo os autos conclusos. É o relatório.
PASSO A DECIDIR
Impõe-se o julgamento do mérito
conforme o estado do processo, aplicando-se, conseqüentemente, o disposto no inc. I do art. 330 do CPC.
A pretensão da autora não merece
acolhimento. Como relatado, sustenta ter
assinado escritura pública de doação que
não representa sua vontade, tendo assim agido, justifica, “por erro, dolo, fraude e simulação por parte do donatário”
(fl. 10). Em síntese, alega vício de vontade, já que “ao assinar a escritura de
doação imaginava que apenas estava
formalizando a doação de fato que já
havia feito há 02 anos atrás, com área
plenamente localizada” (fl. 10), qual seja:
o local denominado de “Bota” e que
possui exatamente 130,68ha de área de
terra nua.
Efetivamente, a desconstituição da
doação pura e simples pode ser requerida tanto com fulcro nos motivos comuns à invalidação de quaisquer contratos (art. 1.181, 1ª parte, do CC), a
exemplo dos vícios de vontade (consentimento e sociais), previstos no inc.
II do art. 147 da Lei Civil, assim com
base na ingratidão dos donatários (art.
1.181, 2ª parte, do CC).
In casu, a autora, de forma um pouco confusa, suscita ambos os fundamen-
31
tos, em que pese saiba-se que não se
confundem, já que aqueles pertinentes
à invalidação, os vícios de vontade, devem ser concomitantes, contemporâneos
ao ato de doar, enquanto a ingratidão,
embasadora da revogação, deve ser
posterior àquele momento. No primeiro
caso tem-se anulação de negócio jurídico; no segundo, revogação.
Da simples leitura da escritura pública de doação da fl. 13, constata-se
que dela consta a efetiva vontade da
autora ao tempo do fato, isto é, pelo
referido instrumento restou doada aos
réus “uma fração de campo, com área
de 130ha e 68a, na Gleba A... dentro
das seguintes confrontações ”(grifei);
confrontações essas que – ressalte-se –
confundem-se, à exatidão, com a descrição do imóvel objeto da Matrícula nº
6.471 (fls. 14/15), de propriedade de
um condomínio, do qual condômina
também é a autora.
Ou seja, da referida escritura consta
exatamente a área doada pela autora.
Se não há menção à sua localização
dentro da área maior, é porque a doadora, à ocasião condômina, juntamente
com Eloá Maria Lima Macedo Brasil,
Cesar de Azambuja Brasil e Juraci Lima
Macedo, não poderia fazê-lo, já que
impunha-se, para tal proceder, prévia
partilha da coisa comum via acerto entre
os co-proprietários ou ação de divisão
(art. 629 do CC, c/c o inc. II do art. 946
do CPC).
Do exame da matrícula das fls. 14/
15, constata-se que ao tempo da doação, assim como do registro (R. nº 04)
da escritura pública respectiva, era a
autora proprietária de fração ideal do
imóvel, representativa da maior parte
dele. Desse modo, somente poderia doar
32
fração de campo, sem maiores
especificações. Assim foi feito, inexistindo, dessa forma, vício na escritura,
que, como visto, fixa com precisão a
extensão – sem falar em localização –
da área reconhecidamente doada pela
autora.
Se a autora assevera ter doado área
localizada, denominada “Bota”, é porque, e isso constata-se dos autos, havia
uma divisão fática do imóvel. Nesse sentido, tem-se, a título de indício, o incompleto documento da fl. 20. Desse
modo, não persistindo o acordo aparentemente firmado entre os condôminos
para registro da partilha, resta à autora
a ação divisória, quando poderá comprovar com precisão suas alegações e
formular pedido sobre a constituição dos
quinhões (art. 970, última parte, do CPC).
Claro está, portanto, que a escritura
fustigada representou a real intenção da
autora, não sendo, por conseqüência,
passível de invalidação por qualquer
vício de consentimento. Isso considerado, tem-se o pleito de revogação fundamentado na ingratidão dos donatários,
decorrente de situações fáticas atribuídas aos réus, como segue: ocupação de
área não doada, mais precisamente da
área de frente da fazenda, onde está
situada a sede desta, com averbação (A.
nº 05) fraudulenta na matrícula do imóvel; e tentativa de recebimento de arroz
devido à autora pelo arrendatário.
Nesse sentido, dúvida não resta de
que problema existe quanto à posse e
propriedade da área comum e frutos a
ela inerentes. A averbação de nº 05 na
matrícula do imóvel demonstra a intenção do réu em localizar a área doada,
de modo a que abranja um prédio de
SENTENÇAS
alvenaria (sede da fazenda), sem prévia
partilha da coisa comum. Já a notificação da fl. 16, observada conjuntamente
com o contrato das fls. 17/19, bem
demonstra a controvérsia que envolve
os frutos do referido imóvel.
Tais atos, sem dúvida, são passíveis
de questionamento pela autora, inclusive na via judicial, mas – é de indagar
se – será que servem à caracterização
de ingratidão por parte dos donatários?
A defesa, nesse aspecto, o da inocorrência da ingratidão, tece argumentos
precisos à ocasião em que sustenta, em
contestação, a carência da ação pela
impossibilidade jurídica do pedido, em
preliminar que se confunde com o
mérito. A doação é um ato de liberalidade do doador, que não pode ser
revogado unilateralmente, no todo ou
em parte, se já aceito pelos donatários,
à exceção, v. g., dos casos de ingratidão
destes.
Esta, a ingratidão, na lição de Orlando Gomes, “não tem, em Direito, o significado da linguagem comum” (in “Contratos”, Ed. Forense, 14ª ed., p. 218).
Para o saudoso civilista, a lei enumera
taxativamente (art. 1.183 do CC), e não
exemplificativamente, os fatos que configuram ingratidão, impondo-se, ainda,
uma interpretação restritiva, de modo a
que não haja aplicação analógica ou
exegese liberal.
Desse modo, o procedimento dos
réus ao laborarem na averbação nº 05
e na notificação da fl. 16 demonstra
conduta aparentemente ingrata no mundo dos fatos; para o Direito, todavia,
inexistiu ingratidão com tal proceder,
não se justificando, por tal razão, a revogação da doação, ato de liberalidade
SENTENÇAS
da autora. O agir dos réus não encontra
tipificação nos incisos do art. 1.183 do
CC, de forma que impõe-se a improcedência da ação.
Por derradeiro, em que pese já
definida a questão, cumpre seja analisada a questão da prescrição sustentada
pelos réus em defesa. Trata-se, a toda
a evidência, de prazo decadencial o disposto no inc. I do § 6º do art. 178 do
Diploma Civil, porque potestativo da
autora o direito à revogação da doação,
que independe de prestação dos réus.
E mais, tem-se em julgamento ação
ordinária de revogação de doação, ou
seja, constitutiva negativa, sendo que
somente as ações condenatórias estão
sujeitas à prescrição. Nesse sentido, temse lição de Agnelo Amorim Filho.
Isso considerado, verifica-se que os
próprios réus, em contestação (fl. 35),
sustentam serem três os atos por eles
praticados, e que teriam dado azo ao
pedido de revogação por ingratidão.
Ora, se a averbação noticiada, um
desses atos, da qual decorre – por lei
– uma ficção de conhecimento, datava
de mais de ano ao tempo da proposi-
33
tura da ação, o mesmo não pode ser
dito da notificação (fl. 16), outro dos
atos reconhecidos pelos próprios réus.
Inexistiu, portanto, prescrição, porque
de prazo decadencial se trata; e a decadência do direito também não se
caracterizou, já que não expirado o
período de tempo fixado (art. 1.184)
para um dos atos (notificação) apontados pela autora como caracterizador de
ingratidão dos donatários.
Ante o exposto, julgo improcedente
a ação ordinária de revogação de doação ajuizada por Balbina Maria Lima
Macedo contra Adão Dorneles Rodrigues
e Eleny Tunes Rodrigues, que o faço
com fulcro no inc. I (rejeitar o pedido)
do art. 269 do CPC. Condeno a autora
ao pagamento das custas processuais e
honorários advocatícios do procurador
da parte ex adversa, os quais fixo no
equivalente a 05 salários mínimos, atento ao disposto no § 4º do art. 20 do
CPC.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Itaqui, 10 de abril de 1995.
André Guidi Colossi, Juiz de Direito
Substituto.
34
Processo nº 01194073738 – Retificação de Registro de Nascimento
Vara dos Registros Públicos
Autor: M. A. S.
Juiz prolator: Antônio Carlos Antunes do Nascimento e Silva
Retificação do Registro de Nascimento por ter ocorrido cirurgia de mudança
de sexo. Possibilidade jurídica do pedido. Sentença procedente.
“Humanidade – É a virtude que
conduz o magistrado a não se abstrair
de sua condição de criatura compreensiva de seus semelhantes, renunciando
a reclamar deles, em desatenção às
conjunturas, aquilo que, em princípio, a
lei não teria reclamado. A assimilação
com a vida modela as inspirações e
orienta as normas.” (Warlomont)
Vistos, etc.
M. A. S., qualificado na inicial, por
procurador, formula o presente pedido
de retificação de registro de nascimento, objetivando, após intervenção cirúrgica, a alteração do sexo masculino para
o feminino e do nome para V. A. S.
Refere, em síntese, ter sido, desde o
nascimento, tratado como se fosse do
sexo feminino. Vestia-se e era vestido
como menina, brincava com bonecas e,
já na adolescência, agia como se fosse
mulher, o que se externava pelo uso de
vestes femininas, com pinturas e com
características perfeitas do sexo, sendo
conhecido por todos, até hoje, como se
mulher fosse. Submeteu-se a um processo de correção cirúrgica dos órgãos
genitais, atendendo sua condição psicológica. É um transexual e assumiu psiquicamente a condição de mulher. Os
sofrimentos e traumas psíquicos são
incontáveis, em decorrência da rejeição
social. Postula, então, a alteração do
prenome e do sexo.
Juntados documentos. Realizada
perícia físico-psiquiátrica (laudos às fls.
84/89 e 117/119). Tomado o depoimento pessoal do requerente (fls. 95/115),
que propugnou pela procedência do
pedido (fls. 122/124), no que foi secundado, em parte, pelo Ministério Público,
através de parecer da Dra. Ana Luiza
Mércio Lartigau (fls. 136/140), que opinou pelo deferimento da alteração do
nome do postulante, mas, quanto ao
sexo, entendeu cabível somente a alteração de masculino para transexual feminino, com manutenção do princípio
da publicidade dos registros. Relatei.
DECIDO
O laudo médico (fls. 117/119), após
constatar que o requerente foi submetido à intervenção cirúrgica para extirpação
da genitália masculina, verificou a ausência de grandes lábios (apenas a presença de duas pregas de pele, longitudinais, em relevo, proeminentes e com
aspecto de grandes lábios), de pequenos
lábios, de clitóris e de glândulas
parauretrais (Skene) e glândulas e canais
paravaginais ou vulvovaginais (Bartholin),
bem assim que a vagina apresenta orifício circular neoformado e conclui (fl.
119): “Ao exame clínico, o periciado submeteu-se à cirurgia para retirada do pênis
SENTENÇAS
e dos testículos e neovaginoplastia. Apresenta evidentes caracteres femininos (contornos corpóreos, distribuição pilosa, distribuição adiposa, massa muscular e timbre de voz), porém, pode-se afirmar que
os determinantes sexuais (sexo genético,
gonodal, somático e de criação) se diferem adequadamente, não estamos, pois,
frente a um caso de intersexualidade. O
periciado é do sexo masculino. Cabe
consignar que a transexualidade, em
decorrência do histórico, não deve ser
desconsiderada”. (sic)
O laudo psiquiátrico (fls. 84/89),
depois de analisar a história pessoal do
requerente, registra que o mesmo não
apresenta sinais ou sintomas suficientes para configurar um quadro de doença mental. O homossexualismo gera
ansiedade, devido à constante luta por
sua crônica crise de identidade. A troca
de nome lhe aliviará neste estado interior de crise frente à sociedade, e faz
o diagnóstico de transexualismo masculino primário (sic).
Ainda, M. não apresenta patologia
mental. Psicologicamente, pensa como
mulher, veste-se e age como tal (fl. 88).
A troca do nome masculino para o feminino lhe trará o benefício da sintonia de
se sentir mulher e ser portadora de identidade feminina, terminando, em parte, a
crônica crise de identidade (fl. 89).
Sobre o tema, Roberto Barbarena
Graña, referido por José Francisco Oliosi
da Silveira (“O Transexualismo na Justiça”, Ed. Síntese, 1995, p. 09), citando H.
Benjamin, afirma: “Benjamin descreve-os
como pessoas de sexo masculino que,
mesmo sabendo-se homens e biologicamente normais, encontram-se profundamente inconformados com seu sexo biológico e desejosos de modificá-lo”.
35
Matilde Josefina Sutter (“Determinação e Mudança de Sexo – Aspectos
Médico-Legais”, RT, 1993, p. 105) menciona: “A incompatibilidade entre o sexo
biológico e a identificação psicológica
num mesmo indivíduo é chamada de
transexualismo pela grande maioria dos
estudiosos... Para Holmer Oliveira
Menezes ‘transexualismo é a inadequação psicológica ao sexo somático, que
é aquele denunciado pela genitália interna, pela genitália externa e pelos
caracteres secundários; ou ainda, a não-harmonização entre o sexo somático e
o sexo psicossocial, com alterações no
comportamento sexual do indivíduo’ ”.
Epps Quaglia, também aludido por
Matilde Josefina Sutter (ob. cit., p. 106),
na mesma linha de raciocínio, registra:
“Transexualismo é entidade que se caracteriza basicamente pela profunda
rejeição que o indivíduo afetado sente
em relação ao sexo anatômico”.
A literatura médica, assim, faz as
seguintes conceituações: O homossexual tem preferência por pessoa do mesmo sexo; o bissexual apresenta indistinta satisfação com ambos os sexos; o
transexual é o que não aceita sua conformação física, rejeita seu sexo biológico e, psicologicamente, identifica-se
com o sexo oposto, mesmo não sendo
portador de qualquer anomalia. Ainda,
sobre o transexual, refere que o mesmo
se sente alheio ao meio social, passa a
assumir o sexo oposto e o seu organismo acompanha o desejo psicológico de
se comportar com o sexo assumido.
Não é outra a conclusão, a partir da
tomada do depoimento pessoal do postulante (fls. 97/115). Apresentava ele,
desde tenra idade, profunda inconformidade com seu sexo biológico masculino
36
e a sua identificação psicológica como
mulher. Não havia, como referido por
Holmer Oliveira Menezes, antes citado,
harmonização entre o seu sexo somático
e o seu sexo psicossocial, acarretando-lhe, via de conseqüência, profundas alterações em seu comportamento social.
Refere, expressamente, em seu longo depoimento, todas as dificuldades
pelas quais passou, todas as suas ansiedades, todas as suas aspirações, enfim,
todo o desenrolar de seu processo psíquico, até culminar com a realização da
intervenção cirúrgica, com objetivo de
adaptar o sexo à sua condição psicológica. Evidenciada, portanto, na exata
conceituação dos autores citados, à
saciedade, sua condição de transexual.
Mais ainda, transexual primário, porque
a inconformidade com o sexo de nascimento e sua procura para o adaptar
ao seu sexo psicológico advém da infância e juventude.
Roberto Farina (“Transexualismo: Do
Homem à Mulher Normal através dos
Estados de Intersexualidade e das
Parafílias”, São Paulo, Novular, 1982, p.
141) assim o define: “O transexual primário, verdadeiro ou essencial, é o
protótipo da esquizossexualidade, onde
a obsessão de mudança de sexo é compulsiva, precoce, imperativa e perene”.
O que postula o requerente? Alteração do sexo masculino para o feminino!
A legislação pátria, no entanto, ao contrário de alguns outros países, não contempla soluções autorizativas para a
solução da quaestio enfocada nos presentes autos. Porém, por pouco tempo,
talvez, posto que tramita na Câmara
Federal o Projeto de Lei nº 70/95, de
autoria do Deputado José Coimbra, que
“dispõe sobre intervenções cirúrgicas que
SENTENÇAS
visem à alteração de sexo e dá outras
providências”, já tendo, inclusive, recebido, na Comissão de Constituição e
Justiça, parecer favorável do Deputado
Régis Oliveira, magistrado aposentado,
que, em certos pontos, registra (in verbis): “... O rigor do padrão moral de
outrora cede espaço, hoje, a novas realidades, aos novos costumes, e a hipocrisia de então não mais encontra eco
na vida e na ciência hodiernas... De
outro, surge a grande realidade empírica.
Os costumes alteram-se, os comportamentos mudam, as condutas ficam mais
flexíveis, fruto das informações de massa. Em conseqüência, as regras jurídicas
não podem imobilizar-se. Ao contrário,
devem adaptar-se aos novos tempos.
Os comandos normativos dirigem-se à
determinada sociedade, à determinada
comunidade. Não são conceitos desapegados de qualquer conteúdo, como
se o mundo jurídico pudesse ser um
mundo alheio ao que se passa na comunidade a que se dirige. Os comandos tendem a se alterar, na medida em
que muda realidade”.
A operação e a mudança de sexo,
prossegue Régis Oliveira, mudam, efetivamente, o sexo da pessoa. Em conseqüência, torna-se indiscutível que o
operado habilita-se a ter vida social
normal, embora, em tese e por ora
decorrente dos avanços da ciência, ainda possa procriar. Evidente, todavia, que
poderá constituir família.
Como já se observou: “la majorité
de la doctrine n’admit que les trois cas
suivant: défaut absolu de consentement,
identité de sexe, défaut des formes et
incompétence du célébrantx”. (Planiol &
Ripert, “Traité Pratique de Droit Civil
Français”, Paris, 1926, tomo 02, nº 252)
SENTENÇAS
Porém,
enquanto
legem
non
habemus, não pode o julgador se eximir de enfrentar e decidir a postulação
inicial, inclusive para que, na expressão
de Warlomont, ao início citada, “a assimilação com a vida modele as inspirações e oriente as normas”.
M., pela intervenção cirúrgica a que
foi submetido, não mais apresenta a
constituição de pessoa do sexo masculino. Isso é irreversível, como também
o é, como ensinam os doutos, sua condição de transexual primário. Então, por
que não permitir que seja V. A. em seu
assento de nascimento, já que V. A.
nasceu, V. A. cresceu e V. A. que sofreu
todas as vicissitudes da vida para conseguir adaptar o sexo de nascimento ao
sexo que sente ter, à pessoa que sente
ser?
Que é o homem? Mais corpo ou
mais alma? Ouso até responder a tal
indagação de Ari Darcy Wachholz,
magistrado deste Estado, em sentença
proferida quando titular desta Vara dos
Registros Públicos (citado por José Francisco Oliosi da Silveira, in “O
Transexualismo na Justiça”, Ed. Síntese,
1995, p. 73): O ser humano é, sem
dúvida, mais alma do que corpo! Logo,
o seu sexo deve ser aquele que vem de
seu íntimo, que vem de suas entranhas,
que vem de sua alma, e, in casu, para
M. outro não é que não o feminino,
motivo pelo qual se impõe o deferimento da alteração postulada.
Por outro lado, a Lei nº 6.015/73
estabelece, em seu art. 58, ser imutável
o prenome, salvo nas situações reguladas no seu parágrafo único e no art. 55,
parágrafo único. Entretanto, mesmo fora
das exceções disciplinadas, não se pode
aceitar de forma absoluta essa imutabili-
37
dade. Os tempos mudam, evoluem,
estamos no limiar do século XXI e os
direitos fundamentais da pessoa humana devem acompanhar essas mutações,
criando, inclusive, novos fatos e situações jurídicas, passíveis de ingresso em
novas normas legais.
O que se entende geralmente por
nome? Cícero já o elucidava em uma
frase que De Cupis tomou para epígrafe
de importante monografia: “Nomen est,
quod uni cuique personae datur, quo
suo quaeque proprio et certo vacabulo
appellatur”.
R. Limongi França (“Do Nome Civil
das Pessoas Naturais”, RT, 3ª ed., p. 20)
propõe para tal expressão a seguinte
tradução: “Nome é o vocábulo que se
dá a cada pessoa, e com o qual é
chamada, por ser o seu designativo
próprio e certo”.
A identidade, que é um direito fundamental da pessoa humana, inaugura
os direitos de cunho moral, exatamente
por se constituir no elo de ligação entre
o indivíduo e a sociedade em geral. O
bem jurídico tutelado é a identidade,
que se considera como atributo ínsito
na personalidade humana (Carlos Alberto Bittar, “Os Direitos da Personalidade”, Forense Universitária, 1ª ed., pp.
120/121).
O abalizado Prof. W. de Barros
Monteiro, com referido por José Serpa
de Santa Maria (“Direitos da Personalidade e a Sistemática Civil Geral”, Ed.
Julex Livros, 1ª ed., 1987, p. 132), define o nome como o sinal exterior pelo
qual se designa, se identifica e se reconhece a pessoa no seio da família e da
comunidade.
Carlos Fernández Sessarego (“El
Cambio de Sexo y su Incidencia em las
38
Relaciones Familiares”, “Revista de Direito Civil” nº 56/07) preleciona: “El
derecho a la identidad personal es uno
de los derechos fundamentales de la persona humana. Esta especifica situación
jurídica faculta al sujeto a ser socialmente reconocido tal como ‘el es’ y, correlativamente, a imputar a los demás el deber
de no alterar la proyeccion comunitária
de sua personalidad. La identidad
personal es la ‘manera de ser’ como la
persona se realiza en sociedad, con sus
atributos y defectos, con sus caracteristicas
y aspiraciones, con su bagage cultural e
ideológico. Es ele derecho que tiene todo
sujeito a “ser él mismo”.
Então, por que não deixar, também,
que M. adote, em seu assento de nascimento, o nome de V. A., já que pelo
mesmo é reconhecido, caracteriza o seu
elo de ligação com a sociedade e é
atributo de sua personalidade? Impõe-se, de igual forma, o deferimento da
alteração do prenome, para que M., na
SENTENÇAS
expressão de Sessarego, tenha o direito
de “ser él mismo”.
Isto posto, julgo procedente o pedido inicial, formulado por M. A. S., determinando que o seu nome seja alterado para A. V. S, bem como seja alterada a anotação referente ao sexo, de
masculino para feminino. Mantenha-se
segredo de justiça. A alteração deverá
ser praticada pelo titular do Ofício ou
por quem estiver em legal substituição.
No fornecimento de certidões não se
fará referência à situação anterior.
O expediente (mandado e peças)
deverá ser arquivado em caráter de
segredo de justiça. Informação ou certidão não poderá ser dada a terceiro,
salvo ao próprio interessado ou no atendimento de requisição judicial. Custas
ex lege.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 16 de junho de 1997.
Antônio Carlos Antunes do Nascimento e Silva, Juiz de Direito.
39
Processo nº 2.361/25 – Ação Ordinária de Nulidade de Escritura Pública,
Cumulada com Reivindicação
Autor: Espólio de F. R., representado pelo inventariante, F. R. N.
Réus: O. M. L. e outros
Juiz prolator: Antônio Carlos Ribeiro
Ação de anulação de escrituras públicas. Ocorrência de prescrições aquisitiva e extintiva. Improcedência do pedido.
Vistos, etc.
F. R. N., inventariante dos bens de
F. R., ajuizou a presente ação ordinária
de nulidade de escrituras públicas, cumulada com reivindicação, contra O. M.
L., A. L., N. L., D. P., S. B. M., M. S. B.
M., V. B. S., menor, pai E. B. S., O. R.,
V. R., W. D. C., P. N., A. G., L. P., M.
e C. O., A. G. O., J. C., F. I. S., V. J.
S., R. R., J. C., A. R. P., A. G., L. W. N.,
J. W. N., V., V. e W. N., I. F. S., A. R.,
A. J. D., S. G., F. A. P., L. B., A. A. O.,
E. B. B. S., casada com J. M. B. S., Z.
T. B. S., S. T. B. S., menor, seu pai E.
B. S., N. B. S., menor, O. P., R. R. & Cia.
Ltda., M. & Cia. Ltda., alegando, em
suma, que A. P. extorquiu do casal C.
R. uma procuração em causa própria e
outorgou-a a A. B. para que este alienasse todos os bens do espólio de F. R.,
anteriormente a habilitação de mais três
herdeiros que foram reconhecidos, –
através de investigação de paternidade,
cumulada com petição de herança. Neste
processo, foi anulada a escritura de
partilha amigável que atribuiu ao casal
de C. R. o único bem do espólio, constituído de uma gleba de terras de campos e matos, denominada “P. R.”, situada neste Município, no lugar denomi-
nado “Sesmaria dos Butiá”, com a extensão de 24.707.039 metros quadrados.
Asseverou que, em conseqüência da
nulidade, restaram nulas as escrituras
subseqüentes, que deram origem aos
registros relacionados na petição inicial,
por força do art. 145, incs. IV e V, do
CC. Salientou que o mesmo ocorreu com
as vendas feitas por J. R., irmã do falecido, eis que excluída da vocação
hereditária, em decorrência da existência de descendentes. Alegou, ainda, a
existência de protesto judicial para afastar a boa-fé dos adquirentes e requereu
a procedência total da ação.
Com a inicial, vieram os documentos das fls. 44 à 121. Expedidos mandado e precatória citatória, veio aos autos
mandado da fl. 128, onde não foram
citados A. L., D. P., C. O. e E. B. S. Em
decorrência, foram expedidas novas precatórias citatórias – (fls. 134 a 137). À
fl. 134, consta a citação da Firma M.
M. & Cia. ofereceu contestação (fls.
149 à 153), aduzindo, em preliminar, a
impugnação ao valor da causa, afim de
que seja fixado de acordo com o valor
mínimo usado pelo avaliador na comarca para o alqueire; a absolvição de instância, por não constar documento indispensável da prova de ser o autor inventariante do espólio; falta de citação
das esposas dos réus; por estar o autor
promovendo execução do acórdão; e por
40
falta de diligência nos autos por mais de
30 dias. No mérito, alegou que a decisão
judicial não atingiu os direitos reais de A.
B. e seus sucessores singulares, por não
terem sido partes do processo.
De outra parte, a contestante já tem
direito a propriedade pelo decurso do
tempo necessário a usucapião, eis que
sua posse, somada a de seus antecessores, data de 08-02-27. Requereu a improcedência da ação. Juntou os documentos das fls. 154 à 206.
À fl. 211, consta a citação de C. O.;
à fl. 217, a citação de A. L., ambas por
precatória. À fl. 223, consta a citação de
D. P. Veio aos autos manifestação de O.
P. (fl. 225), alegando a falta de citação
das esposas dos réus, não fluindo o
prazo de contestação enquanto não
suprida a irregularidade. Juntou procuração (fl. 226).
Foi determinada a citação (fl. 227).
O autor requereu a citação das esposas
(fl. 228). Foram expedidos precatórias e
mandados, constando as citações das
fls. 235, 238 e 246.
M. O., A. G., A. R. P., A. G., A. G.
O., A. J. D., A. N. e L. P. ofereceram
contestação (fl. 248), aduzindo, em preliminar, ser irrisório o valor da causa e
não haver prova de ser o autor inventariante. No mérito, alegaram que possuem as terras como suas, por si e seus
antecessores, há mais de 30 anos, de
forma pacífica, mansa, ininterrupta, com
justo título e boa-fé. Requereram a
improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das
fls. 249 a 316.
À fl. 318, manifestou-se E. B. B. S.,
alegando a falta de citação de seu esposo e nominando condôminos exis-
SENTENÇAS
tentes na área e que não foram citados.
Juntou os documentos das fls. 319 à
332.
Sobreveio a réplica às contestações
até então oferecidas (fls. 336 à 338),
onde o autor ataca as preliminares, trazendo prova de ser inventariante do
espólio e, no mérito, ratificou os termos
da inicial, fazendo juntada, entre outros
documentos, do protesto judicial. Juntou os documentos das fls. 339 à 375.
Às fls. 377 a 381, manifestou-se A. R.,
relacionando pessoas residentes na área
litigiosa e ainda não citadas.
J. M. B. S., E. B. B. S., A. R., I. A.
S. R., S. G., O. R. G., W. R., A. R., A.
S. B. M., C. B. M., W. B. S., E. M. S.,
J. C., V. T. C., O. R., L. R., A. O., A. N.
O., M. S. B. M., I. G. M., A. A. O., T.
C. O., W. B., H. I. B., N. B., A. B., N.
L. C., N. S. C., R. G. D., M. D. G. D.,
O. M. L., D. B. L., N. L., C. R. L., A. P.
B., G. P. B., A. B., M. G. B., E. B., E.
M. B., J. C., U. L. C., F. I. S., S. B. S.,
Z. T. B. S. e Z. T. B. S. ofereceram
contestação (fls. 382 à 406), alegando,
em
suma,
preliminarmente,
a
não-fluência do prazo de contestação,
por falta de citação de todos os condôminos, relacionando-os; a elevação do
valor da causa, pois, o dado à causa
impossibilita um recurso ao Supremo
Tribunal Federal; e a absolvição de
instância, por ter havido cessão dos
quinhões dos herdeiros em 25-01-38 e
por falta de citação de todos os condôminos. No mérito, alegaram a prescrição aquisitiva, eis que possuem as terras por tempo necessário para a usucapião, ainda com justo título e boa-fé.
Requereram a improcedência da ação,
com as cominações legais.
SENTENÇAS
P. N., H. B. N., V. N., L. D., V. N.,
M. L., L. V. N., assistido por seu pai P.
N., ofereceram contestação (fls. 407/408),
alegando, em preliminar, falta de citação de todos os litisconsortes e valor
irrisório da causa. No mérito, alegaram
a prescrição de qualquer direito dos
autores sobre o imóvel, eis que possuem mansa, pacífica e ininterruptamente
por mais de 20 anos. Requereram a
improcedência da ação, com as cominações legais. À fl. 410, O. P. requer a
juntada do instrumento procuratório e
dos documentos das fls. 412 à 673.
Às fls. 676 à 681, foi oferecida réplica às contestações, aduzindo a intempestividade destas e dos documentos
juntados; que o valor da causa nada
tem a ver com o recurso extraordinário;
descabe aos contestantes requererem
intervenção de terceiros e, no mérito,
não há que se falar em usucapião em
virtude do protesto judicial e decretação
de nulidade da escritura que deu origem às demais.
Às fls. 680/681, o feito foi saneado,
oportunidade em que foi determinada a
citação de todos os litisconsortes. Foi
determinado o reajuste do valor da
causa, bem como diligência do ofício
de justiça sobre o número de famílias
existente na gleba.
À fl. 691, veio aos autos a informação
do Oficial de Justiça, noticiando a existência de mais ou menos 384 famílias. À
fl. 695, foi concedido o benefício da
justiça gratuita ao inventariante F. R. N.
Às fls. 706/797, 712 à 714 e 720 à 721,
manifestou-se o autor quanto à falta de
citação de eventuais moradores na área.
Por determinação judicial, às fls. 723/
724, o Escrivão relacionou todos os réus
41
que contestaram a ação; os que não
contestaram; os que contestaram e não
constam na inicial, os citados com as
respectivas esposas; a falta de citação
da mulher e os não-citados. Através do
despacho da fl. 724, foram determinadas novas citações. À fl. 727, foi juntado
mandado de citação. À fl. 740, foi juntado mandado de citação.
A. M. C. ofereceu contestação (fl.
742), alegando que o feito se trata mais
de uma execução de sentença, de um
feito onde não foi parte. Invocou a
prescrição aquisitiva por ser terceiro de
boa-fé. Juntou os documentos das fls.
743 à 756. O autor replicou esta contestação, repisando os termos das manifestações anteriores (fls. 759/760).
Às fls. 768/769, veio aos autos procuração outorgada pelo inventariante em
nome do espólio de F. R. À fl. 772, veio
aos autos o instrumento procuratório de
O. C. C., esposa de A. M. C. Às fls. 784/
785, foi requerida a averbação da citação no Registro de Imóveis, o que foi
deferido, constando a cópia do mandado à fl. 792. Às fls. 793 a 798, manifestou-se o espólio autor, relacionando pessoas que ainda não foram
citadas e requerendo a realização do
ato. Acompanhou os documentos das
fls. 799 à 807.
À fl. 812, o espólio requereu a juntada de comprovante da substituição do
inventariante, que passou a ser O. R. Às
fls. 824 à 827, consta o mandado de
citação e respectiva certidão. À fl. 834,
o Ministério Público recebeu vista dos
autos. Às fls. 848 à 850, foi requerida a
citação, por edital, de todos os desconhecidos, invasores e interessados da
área litigiosa, o que foi deferido. Consta
42
nos autos exemplar do Diário da Justiça
com a publicação do edital (fls. 855/
856).
G. G. P., por si e representando a
filha F. P., D. P. e O. C. P. ofereceram
contestação (fls. 859/860), alegando, em
preliminar, a prescrição intercorrente, eis
que o feito ficou paralisado sem a iniciativa da parte; a ilegitimidade passiva,
por serem terceiros de boa-fé, eis que
a fraude hereditária ocorreu há mais de
50 anos. No mérito, aduziram que são
terceiros de boa-fé, sendo que o espólio deve buscar perdas e danos contra
os autores da fraude ou seus sucessores
dentro do limite das heranças. Requereram a improcedência da ação. Juntaram
os documentos das fls. 861 à 867.
L. B. e C. L. B. ofereceram contestação (fls. 869/870), aduzindo, em preliminar, a nulidade da citação por edital, eis que pessoas conhecidas; a substituição das partes no pólo ativo, eis
que o autor faleceu e não houve substituição pelo espólio, o que suspende o
feito. No mérito, alegaram usucapião,
eis que possuem justo título e boa-fé e
suas posses somadas às de seus antecessores atinge mais de 60 anos. Requereram a improcedência da ação. Juntaram os documentos das fls. 871 à 874.
A. B. C., E. O. C., A. P., J. S. P., A.
G. Z., N. Z., C. J. G., E. M. G., F. P. M.,
N. P. T., I. M. G., M. T. B., I. M. G., B.
J. G., J. G. N., M. G. O., R. P., M. C. P.,
A. B. C., S. P. O., V. P. e O. T. P.
ofereceram contestação (fls. 875 à 901),
alegando, em preliminar, a ilegitimidade ativa, eis que os herdeiros cederam
seus direitos hereditários após o protesto judicial; falta de citação de todos os
litisconsortes. No mérito, historiaram os
fatos e alegaram em seu favor a pres-
SENTENÇAS
crição aquisitiva, eis que suas posses
somadas aos antecessores totaliza mais
de 100 anos, sendo sempre mansa,
pacífica e ininterrupta, além de justo
título e boa-fé. Requereram a improcedência da ação, com as cominações
legais. Juntaram os documentos das fls.
902 à 997.
A. F., I. G. F., A. D., S. D., A. M. O.,
A. A. O., A. J. D., B. R. K., L. L. K., C.
C., L. C. C., H. V., N. C. V., J. A., D. B.
A., L. E. C., R. M. C., L. O. P., R. M. P.,
R. P. F., A. P. F., S. B., A. D., V. H. D.,
Z. D. L., W. G., E. G., W. L. B. e F. F.
B. ofereceram contestação (fls. 998 à
1.043), aduzindo, em preliminar, a carência de ação, eis que todos os herdeiros cederam seus direitos hereditários,
em 25-01-38 e 14-12-37, após o protesto judicial; falta de citação de todos os
litisconsortes necessários. No mérito,
historiaram os fatos e alegaram em seu
favor a prescrição aquisitiva, eis que a
posse, por si e seus antecessores, atinge
mais de 60 anos, sempre de forma
mansa, pacífica, sem qualquer oposição, além de justo título e boa-fé. Requereram a improcedência da ação, com
as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.044 à 1.180.
M. & Cia. Ltda. ofereceu contestação
(fls. 1.181 à 1.190), ratificando os termos da contestação já apresentada e
aduzindo, em preliminar, ser irrisório o
valor da causa; a absolvição de instância, por serem os autores carecedores
de adição, eis que transferiram todos
seus direitos hereditários a G. Z.; falta
de comprovação de ser inventariante
do espólio; falta de citação das esposas;
nulidade da citação por edital, por serem réus conhecidos; falta de diligência
do autor por mais de 30 dias. No mé-
SENTENÇAS
rito, alega que a decisão judicial que
anulou a partilha amigável não atingiu
os direitos reais de A. B. e sucessores,
por não terem sido partes na anulação.
Após historiados os fatos, a contestante
alegou posse mansa, pacífica e ininterrupta que, somada a de seus antecessores, atinge mais de 100 anos. Alegou a
prescrição de pretensão dos autores,
requerendo a improcedência da ação,
com as cominações legais. Juntou os
documentos das fls. 1.191 à 1.232.
N. B. ofereceu contestação (fls. 1.233
e 1.234), aduzindo, em preliminar, a
prescrição aquisitiva, tendo tempo hábil
para usucapião. Alegou, ainda, que a
decisão judicial não atinge os direitos
reais de A. B. e seus sucessores. Caberia ação de perdas e danos contra os
autores da fraude. Requereu a improcedência da ação, com as cominações
legais. Juntou os documentos das fls.
1.235 à 1.240.
B. L., C. G., R. G. e J. J. O. ofereceram contestação (fls. 1.241/1.242),
alegando, em preliminar, a prescrição
aquisitiva, tendo tempo hábil para usucapião, salientando que adquiriram o
imóvel de boa-fé. A decisão judicial não
atingiu os direitos reais de A. B. e seus
sucessores singulares. Caberia ação de
perdas e danos contra os autores da
fraude. Requereram a improcedência da
ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.243 à 1.258.
O. R., L. P. R., A. J. D., V. B., I. T.
B., L. F., E. F., A. L., T. L., L. C. T., B.
M. T., Z. A. B. M. L., O. M. L., A. B. M.
L., E. M. L. e S. B. M. ofereceram contestação (fls. 1.259 à 1.272), aduzindo,
em preliminar, a ilegitimidade ativa, os
autores são carecedores de ação por
terem transferido todos os seus direitos
43
hereditários para G. Z., em 25-01-38;
falta da prova de ser inventariante –
documento indispensável à propositura
da ação, sendo os herdeiros hoje falecidos, não se sabendo quem são os
autores da ação; inépcia da inicial –,
não juntou documento comprobatório
da propriedade do imóvel, relacionando apenas alguns dos réus, não fornecendo endereços; nulidade do feito por
falta de citação inicial – quando todos
os réus são conhecidos descabe a citação por edital, não havendo condições
de prosseguir o feito sem completar os
pólos da relação processual. Requereram a extinção do processo, sem julgamento do mérito. No mérito, após
historiarem os fatos, alegaram a prescrição do direito dos autores, bem como
a prescrição aquisitiva em decorrência
da usucapião, eis que suas posses, somadas às de seus antecessores, atingem
mais de 40 anos, além de possuírem
justo título e boa-fé. Requereram a
improcedência da demanda, com as
cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.273 à 1.355.
G. L. O., M. L. O., J. V. N., H. F. N.,
L. W. N., M. N. N., S. M. N., V. N., T.
L. N., J. H., E. T. H., L. A. D., M. C. D.,
D. P., E. P., L. B., M. M. B., M. J. R.,
M. T. R., M. C., G. C. C., O. P. e L. P.
P. ofereceram contestação (fls. 1.356 à
1.372), aduzindo, preliminarmente, a
carência de ação, por terem os autores
transferido todos os seus direitos hereditários para G. Z. e A. B. No mérito,
alegaram a prescrição da ação, por se
tratar a petição de herança direito pessoal, já tendo decorrido mais de 20 anos
quando do ingresso daquela ação. Salientam que a nulidade da escritura apontada pelos autores não atingiu os direitos
44
de G. e A., pois estes não foram partes
naquele processo. Invocaram, ainda a
prescrição aquisitiva, eis que suas posses somadas a de seus antecessores gera
tempo hábil para usucapir, as quais
sempre foram mansa, pacífica e com
justo título. Requereram a extinção do
processo, sem julgamento do mérito ou
a sua improcedência, com as cominações legais. Juntaram os documentos das
fls. 1.373 à 1.466.
A. L. M., L. P. M., V. P. M., A. S., N.
G. S., I. L. P., V. P. P., E. P. L., M. A.
Q., Z. P. Q., A. G., R. N. G., J. G., A.
O. G., A. G., M. N. G., W. B. S., E. M.
S., A. J. G., A. A. O., T. C. O., W. O.,
E. T. O., N. B., T. O. B., C. O. P., A.
P., A. O., T. E. O., D. B., C. G. B., J.
R. W., G. P. W., M. F. P., W. P. P., E.
P., E. P., I. P. e M. R. P. ofereceram
contestação (fls. 1.467 à 1.480), aduzindo, preliminarmente, a inépcia da inicial por não ter sido formulado pedido,
apenas o autor protestou pela nulidade
de todas as escrituras públicas; a prescrição da ação, por se tratar de direito
real que prescreve em 10 anos, entre
presentes, e em 15 anos, entre ausentes; prescrição aquisitiva, por serem terceiros de boa-fé e terem tempo hábil
para usucapir, mencionando a Súmula
nº 237 do STF. No mérito, alegaram a
posse mansa e pacífica, sem qualquer
contrariedade; não serem os autores
parte legitima por terem transferido todos
os seus direitos hereditários, salientando que o protesto judicial perdeu seu
efeito à ratificação posterior feita por C.
R.; falta de citação de todos os
litisconsortes necessários, requerendo a
extinção do processo. Asseveraram, ainda, que os efeitos da nulidade da escritura invocada pelos autores não atingiu
SENTENÇAS
de A. B. e de seus sucessores singulares. Requereram a improcedência da
ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.481 à 1.566.
C. J. O., A. P. S., D. G., A. C. e J.
B. F. ofereceram contestação (fls. 1.567/
1.568), alegando, preliminarmente, estar prescrita a pretensão dos autores,
pois os contestantes têm posse mansa,
pacífica e ininterrupta há mais de 40
anos, argüindo, pois, a usucapião como
defesa. No mérito, alegaram que a petição de herança não atinge os direitos
de A. B. e seus sucessores singulares,
por não ter sido parte. Requereram o
acolhimento da preliminar e, no mérito,
a improcedência da ação, com as cominações legais. Juntaram os documentos
das fls. 1.569 à 1.601.
A. B., M. C. C., W. C. O., A. O., A.
P. T., I. A. S. R., A. V., A. J. D., A. L.
P. G., J. P. O., S. G., H. C., A. J. L., J.
A. M., C. R. M., D. J. M., R. M. M., W.
A. L., N. P., F. O. P. S., V. N., T. F. O.,
W. O., J. J. O., A. P. O., E. N., J. N., M.
G. R., A. F., D. L. C., J. D. S., J. R. S.,
E. J. S., B. A. S., J. M. C., J. P. T., A. T.,
T. L. F., N. F., M. T. T., J. L. T., E. J.
N., I. R., M. D. N., E. A. L., G. P., N.
L. K., L. K., S. K., G. C., A. G., A. G.
O., L. C. O., W. O., L. M. O., A. T. P.,
D. P., A. Z. M., V. J. M., A. J. B., M. F.,
R. F., J. C. F., L. N., M. T. G., L. L. S.,
A. M. S., J. L. C., A. M. C., V. S., E. O.,
A. O., W. B., A. P. R., N. C., C. C. V.,
J. N., D. N. e L. C. ofereceram contestação (fls. 1.602 à 1.608), aduzindo, em
preliminar, a prescrição da pretensão
dos autores, eis que os requeridos estão
na posse e domínio há mais de 40 anos,
argüindo, ainda, a usucapião como
matéria de defesa. No mérito, argumentam que a nulidade invocada pelos
SENTENÇAS
autores não atinge os direitos reais de
A. B. e de seus sucessores singulares.
Requereram a extinção do processo ou,
no mérito, sua improcedência, com as
cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.609 à 1.947.
J. M., E. T. B., I. P., C. B. M., L. M.
N., E. I. G. ofereceram contestação (fls.
1.948/1.949), aduzindo, preliminarmente, estar prescrita a pretensão dos autores, eis que os requeridos detém a posse
e domínio há mais de 40 anos, de forma mansa, pacífica e ininterrupta e de
boa-fé, invocando a usucapião como
matéria de defesa. No mérito, alegaram
que a nulidade invocada na inicial não
atingiu os direitos reais de A. B. e seus
sucessores singulares. Requereram o
acolhimento da preliminar ou, no mérito, a improcedência da ação, com as
cominações legais. Juntaram os documentos das fls. 1.950 à 1.961. À fl. 1.963,
foi juntado o exemplar do jornal com a
publicação do edital de citação.
Às fls. 1.969 à 1.983, o espólio autor
replicou as contestações apresentadas,
insurgindo-se contra todas as preliminares argüidas, requerendo a rejeição e,
no mérito, citou doutrina e jurisprudência, repisando os termos da inicial e de
suas manifestações anteriores, requerendo a procedência da ação.
Com vista dos autos, o Ministério
Público emitiu o parecer da fl. 1.987,
onde requereu diligência ordenatória do
feito, bem como a juntada de dois mapas
da área pelo espólio autor. O autor foi
intimado para atender a promoção,
oportunidade em que requereu a reconsideração, por desnecessárias a diligência, ou o recebimento como agravo
retido (fls. 1.989 à 1.991). Os autos
vieram conclusos. É o relatório.
45
DECIDO
A matéria versada nos presentes
autos autoriza o julgamento antecipado,
eis que a questão, embora de direito e
de fato, não exige a produção de provas em audiência, ante a farta prova
documental carreada aos autos, na forma do art. 330, inc. I, do CPC.
Antes de entrar na análise das preliminares argüidas, necessário se faz
que seja expressamente analisado o
pedido de diligência formulado pelo
Ministério Público (fl. 1987), onde requereu a juntada de plantas da área
litigiosa. Rejeito o pedido. A área objeto da presente ação está perfeitamente descrita na petição inicial, constando
sua metragem e confrontações, bem
como veio aos autos certidão do Registro Imobiliário, requisitos essenciais para
a promoção da reivindicatória. Não determina, portanto, a lei que o reivindicante apresente planta do imóvel. De
outra parte, não foi objeto de nenhuma
das contestações que não se tratasse
da mesma área que deu origem aos
seus registros de propriedade. Foram
citados, por edital, todos os interessados e os ocupantes da área para promoverem suas defesas. Desse modo,
tal diligência somente acarretaria maior
demora na solução da lide e em nada
contribuiria.
Preliminares. Diante do grande número de contestações, passo a analisar
as preliminares em conjunto, conforme
a matéria argüida.
Valor da causa. As impugnações feitas ao valor atribuído à causa foram formuladas no corpo das contestações. Não
obstante, este juízo possibilitou o reajustamento (fls. 680/681), o que não foi
atendido pelo espólio-autor. Entretanto,
46
rejeito a preliminar, porque não utilizado o devido incidente processual. Nesse sentido tem se posicionado a jurisprudência: “Não se conhece a impugnação ao valor da causa, formulada no
corpo da contestação”. (STJ, 1ª Seção,
AR nº 164-SP, Rel. Adhemar Maciel,
julgado em 28-11-89, não conheceram,
“DJU”, de 05-03-90, p. 1.395, 1ª col.,
em.; “RT” nos 98/108, 506/127, 574/171,
613/150, “Julgados do TARGS” nos 49/
86, 105/394, in “Código de Processo
Civil e Legislação Processual em Vigor”,
1991, p. 173, Theotonio Negrão)
Ilegitimidade ativa dos herdeiros.
Pela documentação acostada, verifica-se
que B. J. S., C. R., J. S. P., L. R., C. R.,
F. P. S. e F. R., em 25-01-38, cederam
todos os seus direitos hereditários para
G. Z. Consta, também, que C. R. tenha
alienado seus bens para A. B. em 1927
e ratificado em 1937.
Rejeito a preliminar. A ação é movida pelo espólio de F. R., embora, na
inicial, tecnicamente possa causar confusão, levando a entender que o herdeiro individualmente seja o autor da demanda. Ora, com a nulidade da partilha
amigável feita em favor de C. R., em
tese, o espólio recebeu o bem novamente para o monte-mor. Então, embora o herdeiro ou eventuais herdeiros
tenham cedido ou alienado seus direitos, o espólio, através de seu inventariante nomeado e compromissado (fl.
341), representando herdeiros ou
cessionários, pode expor sua pretensão
em juízo. Solucionada a petição de
herança e na hipótese de reversão de
bens ao espólio, só então viria à tona
a discussão sobre o direito de cada herdeiro à herança, eis que reconhecida
essa qualidade em sentença posterior.
SENTENÇAS
Substituição processual. Foi alegado,
em preliminar, que com a morte do
inventariante F. R. N. necessário seria a
habilitação de seus sucessores no feito.
Rejeito a preliminar. Ora, o falecido era
apenas inventariante do Espólio de F.
R. Com a sua morte, teria de vir aos
autos o novo inventariante, comprovando a sua qualidade, o que foi feito (fl.
812), passando o Senhor O. R. a representar o espólio.
Falta da prova de ser inventariante.
Esta omissão restou suprida, eis que veio
aos autos certidão comprobatória de ter
F. R. N. prestado o compromisso legal
de inventariante no inventário por morte
de F. R. (fl. 341). Rejeito a preliminar.
Extinção do feito por falta de iniciativa do autor. Alegaram que os autos
ficaram parados por mais de 30 dias,
por falta de iniciativa da parte autora,
devendo, então, ser extinto o processo,
sem julgamento do mérito.
Rejeito a preliminar. Seria possível
decretar a extinção do processo caso
tivesse sido intimado pessoalmente o
autor, na pessoa de seu representante,
e mesmo assim nada tivesse sido feito
no prazo estipulado em lei.
Inépcia da inicial. Alegaram que o
autor não juntou documento comprobatório de sua propriedade sobre o
imóvel objeto da lide, relacionando
apenas alguns dos réus e não fornecendo seus endereços. Foi alegada, ainda,
a inexistência de pedido de nulidade,
apenas protestou o autor.
Primeiro, no que tange à falta de
certidão do Registro de Imóveis, entendo não ser caso de acolher a preliminar,
porque o autor acostou aos autos, inicialmente, a escritura de partilha amigável
que foi anulada pela Egrégia Superior
SENTENÇAS
Instância, onde consta a descrição da
área e o respectivo registro. Embora não
esteja tecnicamente correto, vê-se que,
em tese, teria se revertido ao patrimônio do espólio. A certidão veio aos autos
à fl. 340, comprovando a propriedade
do espólio-autor.
Em segundo lugar, a falta de menção dos nomes de todos os réus deveuse à dificuldade encontrada pelo autor
diante das centenas de pessoas que lá
residiam e às constantes mudanças dos
proprietários. Tal deficiência foi suprida
com a publicação de edital. Quanto aos
endereços, estava implícito na inicial que
os requeridos residiam na área em litígio, até prova em contrário.
Quanto à inexistência de pedido,
também rejeito a preliminar. Embora não
esteja a inicial tecnicamente perfeita, os
fatos foram narrados com clareza, bem
como dados os fundamentos do pedido,
dentre eles foi citado o art. 145 do CC,
que trata da nulidade dos atos jurídicos.
Então, embora tenha o autor protestado,
compreende-se o alcance da sua pretensão, ou seja, o requerimento de nulidade. “Não se considera pedido genérico o
que, embora deficientemente formulado,
permite correta compreensão do seu alcance.” (“RJTJSP” nº 95/277)
Ilegitimidade passiva. Alegaram que
os requeridos são parte ilegítima por
serem terceiros de boa-fé, pois a dita
fraude ocorreu há mais de 50 anos. Essa
preliminar confunde-se com o próprio
mérito da causa e com ele será decidida.
Prescrição aquisitiva. Alegaram que
detém a posse pacífica, mansa e
ininterrupta pelo tempo hábil a gerar
usucapião. Da mesma forma, confunde-se com o mérito da causa e com ele
será analisada.
47
Falta de citação de todos os
litisconsortes. Foi alegada a nulidade do
feito por falta de citação de todos os
litisconsortes necessários, inclusive as
esposas dos réus.
Rejeito a preliminar. A nulidade só
é declarada se houver prejuízo para a
parte. Entretanto, no caso dos autos,
com a citação por edital, esse prejuízo
eventual desapareceu. Os interessados
e ocupantes da área foram, então, regularmente citados e exercitaram seus
direitos, oferecendo contestações dentro do prazo legal.
Nulidade da citação por edital. Os
requeridos alegaram a nulidade da citação feita por edital, eis que pessoas
conhecidas.
Rejeito a preliminar. Ora, este processo está em tramitação desde 10-02-71. Até
ocorrer a citação por edital, não se encontravam formas viáveis e eficazes para
o chamado de todos os interessados a
juízo. Vinham aos autos notícias de que
centenas de famílias estavam ocupando a
área, o que trazia grande dificuldade ao
Oficial de Justiça executar a ordem judicial. Então, nesses casos necessário se faz
a busca de soluções, a fim de evitar que
as demandas se eternizem, sem chegar a
lugar nenhum. Apropriada a jurisprudência citada pelo autor, às fls. 849/850, que
muito bem se amoldou à dinâmica dos
conflitos sociais, como se vê: “Válida é a
citação por edital no caso de invasão de
área de terras por favelados, dado o caráter
coletivo dos interesses e para assegurar
às partes o respeito aos princípios constitucionais do processo”. (acórdão unânime da 5ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça de São Paulo)
Desse modo, rejeitadas todas as preliminares, passo à análise e julgamento
48
do mérito. Trata-se de ação de nulidade
de escrituras públicas, cumulada com
reivindicação, movida pelo espólio de
F. R., em virtude de decisão judicial que
anulou escritura originária, em decorrência do reconhecimento da paternidade de outros três herdeiros e julgou
procedente a petição de herança.
Conforme consta dos autos, F. R.
faleceu, em estado de solteiro, em
24-05-09, deixando bens a inventariar,
ou seja, a fração de terras descrita na
inicial, que recebera por morte de seus
pais P. R. e C. R. Deixou uma única filha
reconhecida, R. R., mãe de C. R., ao qual
coube herança do avô, como herdeiro-neto, representando a mãe pré-morta.
Antes, porém, de saber do reconhecimento de R., consta que havia um
testamento nuncupativo, onde apareciam
outros filhos naturais. Este testamento
foi anulado por decisão judicial de
29-10-25, antes da partilha no inventário, quando, então, J. R. e outros irmãos
do de cujus passaram a se comportarem
como herdeiros e venderam seus direitos hereditários.
Em 08-02-27, C. R., através de escritura pública, por seu bastante procurador, vendeu para A. B. a área de terras
que lhe coube por herança do avô. C.
ratificou a venda no ano de 1937. Em
08-04-27, ingressou em juízo – com a
medida cautelar de protesto judicial contra M. Z., G. Z. e outros, alegando,
entre outras coisas, ter sido coagido e
induzido por A. P., que conseguiu uma
procuração em causa própria, ocasionando a venda das terras que recebera
por herança.
Em 13-12-37, através de escritura
pública de partilha amigável, o casal de
SENTENÇAS
C. R. recebeu a fração de campo ora em
litígio, cuja partilha veio a ser anulada
posteriormente. Em 25-01-38, B. J. S., C.
R., J. S. P., L. R., C. R., F. P. S. e F. R.
cederam todos os seus direitos hereditários referentes aos bens deixados por
morte de F. R.
Em 23-07-60, foi ajuizada ação de
investigação de paternidade, cumulada
com petição de herança e protesto, cuja
citação inicial foi efetivada em 25-07-60.
A final, esta ação foi julgada parcialmente procedente, sendo reconhecidos
como filhos de F. R. as pessoas de C.,
L. e C. R. e anulada a escritura de partilha amigável feita ao casal de C. R.
Estes, em suma, são os fatos versados nos presentes autos. No mérito, a
ação improcede, eis que fulminada pela
prescrição nas suas modalidades extintiva e aquisitiva.
Com efeito, no que concerne à prescrição extintiva do direito à ação de
petição de herança, por parte dos herdeiros que vieram a ser reconhecidos
por sentença, não resta a menor sombra
de dúvida de que está inquestionavelmente consumada. Ora, F. R. faleceu
em 24-05-09. A partir do evento morte,
passou o fluir o prazo prescricional para
que os herdeiros ou sucessores, que
tivessem reconhecida essa qualidade, reivindicassem os bens que se encontrassem indevidamente com qualquer pessoa. Na época, a prescrição ordinária
operava-se em 30 anos, ou seja, por
força do art. 177 do CC de 1916, cujo
prazo posteriormente foi reduzido para
20 anos, por força da Lei nº 2.437, de
07-03-55. Saliente-se que os prazos
prescricionais quanto a direitos reais
ainda era e é menor.
SENTENÇAS
Desse modo, quando foi ajuizada a
ação de investigação de paternidade, a
petição de herança, com ela cumulada,
já estava prescrita, eis que ajuizada
somente no ano de 1960. A propósito,
alegou o autor que o acórdão que deu
pela nulidade da escritura de partilha
amigável reformou a decisão de 1º grau,
afastando a prescrição e fazendo coisa
julgada. Tal afirmativa não é correta.
Naquela ação, não houve argüição
de prescrição em contestação. Logo,
como se tratava de direito patrimonial,
obviamente, não poderia ter sido reconhecida pelo julgador, por isso, afastada que foi pela Superior Instância. Desse
modo, não houve decisão sobre o mérito
neste particular. Por outro lado, a presente ação não se trata de execução do
acórdão, como afirmado em contestação, pois, se assim fosse, estaria o autor
reivindicando diretamente o imóvel.
Entretanto, primeiro requer a anulação
de todas as escrituras subseqüentes à
anulada e, em conseqüência, reivindicar o imóvel que entende lhe pertencer.
Quando da anulação do noticiado
testamento, cabia aos então pretensos
herdeiros ajuizar a competente ação para
verem reconhecida a paternidade e o
conseqüente direito à herança. Mas, ao
contrário, passaram a fazer cessão de
direitos hereditários, sem que ainda tivessem reconhecida a qualidade de herdeiros. Por isso, em tese, afastei a falta
de interesse processual dos autores
devido à falta de capacidade para ceder, no entanto, no mérito, seus direitos
restaram prescritos até mesmo pela
usucapião, conforme será analisado.
Tem de ser salientada, contudo, a
controvérsia existente sobre o tema, tanto
49
na doutrina como na jurisprudência. Há
posições divergentes no que diz respeito se a petição de herança é uma ação
de natureza real ou pessoal, o que
implica na mudança do prazo prescricional, na forma do art. 177 do CC, e, até
mesmo, se é prescritível, ou não. Alguns doutrinadores entendem que a
petição de herança somente é atingida
pela prescrição aquisitiva.
Ora, neste caso, qualquer que seja a
forma de prescrição, como passo a
analisar, não resta dúvida de que atinge
os direitos do autor. Com efeito, sumulou
o Egrégio Superior Tribunal Federal a
respeito da prescrição: “É imprescritível
a ação de investigação de paternidade,
mas não o é a de petição de herança”.
(Súmula nº 149)
“A Lei nº 2.437, de 07-03-55, que
reduz prazo prescricional, é aplicável às
prescrições em curso na data de sua
vigência (1º-01-56), salvo quanto aos
processos então pendentes.” (Súmula nº
445)
Como se vê, com a aplicação desta
última súmula citada, os três herdeiros
reconhecidos judicialmente ainda tiveram reduzido o prazo para a petição de
herança, eis que a vigência da Lei nº
2.437/55 foi anterior ao ajuizamento
daquela ação. Saliente-se estou levando
em conta o prazo da prescrição ordinária por ser mais favorável aos herdeiros.
Miguel Maria Serpa Lopes, tratando
sobre o tema, toma uma posição eclética
em relação às correntes que procuram
definir a natureza jurídica e a prescrição
da ação. Diz ele: “... a ação de petição
de herança é visceralmente real, por
outro lado, o seu precípuo objetivo,
condição sine qua non do seu efeito
50
reivindicatório, é o reconhecimento,
principalmente se baseado no parentesco, possui uma eficácia ex tunc, jamais
contestada. Ao se reconhecer que o
autor, na ação de petição de herança, é,
v. g., filho do de cujus, esse reconhecimento remonta à época do seu nascimento, do mesmo modo que, ao se
reconhecer válido um testamento posteriormente descoberto, a qualidade de
herdeiro necessariamente remonta ao
momento da abertura da sucessão e não
ex nunc. Ora, o disposto no art. 1.772,
§ 2º, é relativo a um estado de comunhão ainda subsistente; supõe uma
partilha ainda não feita e refere-se expressamente ao fato de estar um ou
mais herdeiros na posse de certos bens
do espólio.
“Enquanto perdurar a comunhão
hereditária, a posse do herdeiro não é
apta a produzir a prescrição extintiva,
dada a sua qualidade de comunheiro.
Por isso, não se aplica o art. 177, mas,
sim, o preceito do § 2º do art. 1.772,
que não é um lapso prescricional propriamente dito, mas uma situação que
se identifica com o usucapião, pois, decorrido o lapso de 20 anos, consolidase a situação do herdeiro possuidor,
que se transformou completamente.
“O argumento de não ser o autor
parte na comunhão hereditária e, por
isso não haver fundamento para lhe
estender o disposto no § 2º do art. 1.772,
peca pela base, ante a força
retrooperante da sentença, ao lhe reconhecer a qualidade de herdeiro, seja a
partir da sucessão, se se tratar de um
herdeiro testamentário, seja a partir do
próprio nascimento, se aquela qualidade decorrer de outra – a do parentesco.
SENTENÇAS
Por outro lado, impõe-se considerar a
estreita correlação entre a ação de petição de herança com a de partilha,
podendo esta ser paralisada por efeito
daquela, dado consistir o seu objetivo
em tornar o réu evicto em relação aos
herdeiros hereditários por ele detidos a
título de herança”. (“Curso de Direito
Civil”, vol. I, 7ª ed., p. 530/531)
Antes de passar a analisar a prescrição aquisitiva, convém salientar também
a posição do Prof. Wagner Barreira, em
matéria referente a natureza, foro e
prescrição da ação: “Haverá acerto em
se afirmar ser a ação de petição de
herança naturalmente prescritível? Parece que não. Na verdade, em relação a
ela há uma imprescritibilidade natural,
ou básica – apesar de se achar proclamado na Súmula nº 149 da jurisprudência do STF ser ‘imprescindível a ação de
investigação de paternidade, mas não o
é a de petição de herança’. Pois ela, em
rigor, também não prescreve. E assim
sucede porque o que fundamenta é o
domínio ou a propriedade que da herança tem o herdeiro no Direito brasileiro. A ele a herança cabe como direito
seu, desde a abertura da sucessão. É o
que se acha estabelecido no art. 1.572
do CC e está agora confirmado no inc.
XXX do art. 5º da CF de 1988.
“Ora, se da herança o herdeiro tem
domínio, ou propriedade, sobre ela tem
ele o direito de usar, gozar e dispor,
irrestritamente, consoante indica o art.
524 do mesmo Código. E tendo, assim,
tais direitos, por certo, também tem o
de não dispor, não gozar ou não usar.
E esses direitos o acompanham pela
vida inteira, até que das coisas objeto
da sucessão alguém adquira direito, por
SENTENÇAS
usucapião. Sobre tais coisas, portanto,
até que se opere o usucapião, tem
domínio o herdeiro desapossado. Isso
deixa ver, no tocante à ação de petição
de herança, que com ela não se dará
prescrição extintiva enquanto outrem não
adquirir por prescrição aquisitiva o todo
ou parte dos bens que formam a herança”. (“RT” nº 659/28)
Ora, mesmo que se acolhesse a
posição dos doutrinadores que entendem imprescritível a ação, não há como
deixar de ser reconhecida a prescrição
aquisitiva em favor dos requeridos que,
por conseqüência, atinge frontalmente a
propriedade do autor. Pois, como já foi
dito, a sucessão de F. R. foi aberta em
24-05-09, deixando uma única filha reconhecida, R., que por sua vez teve um
filho, C. R., que recebeu toda a herança
de seu avô. Portanto, a posse recebida
por C. não estava maculada por qualquer vício. O protesto judicial realizado
em 08-04-27 não tem o condão de interromper a prescrição ou tornar os
adquirentes de má-fé, porque, em 1937,
o próprio C. R. ratificou a escritura de
venda realizada a A. B. no ano de 1927.
A alegada extorsão feita por A. P. para
obter a procuração restou inócua, em
face da ratificação.
De outra parte, C. R. acabou transferindo a A. B. e este a seus sucessores
singulares a posse e propriedade que
detinha como único herdeiro de F. R.
Todos os adquirentes, por sua vez,
entraram na posse da área, de forma
mansa, pacífica e com justo título. Então, quando da anulação da escritura de
partilha amigável decretada pelo Egrégio Tribunal de Justiça, em decorrência
da ação ajuizada no ano de 1960, já
51
havia decorrido tempo hábil para gerar
usucapião em favor dos adquirentes,
mesmo levando em consideração o
prazo de 30 anos previsto pelo art. 550
do CC, alterado pela Lei nº 2.437/55.
Assim, desnecessária a perquirição
da boa-fé, alegada pelo autor, quando
se tem presente que a posse dos autores e seus antecessores soma mais de
30 anos, sempre com ânimo de donos
e de forma ininterrupta. Tal situação faz
com que o possuidor adquira o domínio, independente de título e boa-fé,
que, nesta circunstância, se presume.
Assim, decidiu o Egrégio Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, Apelação nº
67.993, Ac. 10-04-86: “Usucapião. Matéria de defesa. Ministério Público. Título
aquisitivo nulo. Existência de transcrição no Registro Imobiliário. Intervenção
do Ministério Público somente se torna
obrigatória quando se cuida de ação de
usucapião prevista no art. 944 do CPC,
não se justificando quando o direito ao
usucapião é simplesmente alegado como
matéria de defesa. Não há que se falar
em falsidade ou nulidade de título
dominial quando já consumada a prescrição aquisitiva extraordinária (CC, art.
550), que prescinde de título e boa-fé.
O usucapião existe em Direito não apenas para titular a propriedade de quem
não dispõe de título algum, mas igualmente para sanar o título existente de
qualquer dúvida ou discussão, mesmo
quando o possuidor já conte com título
dominial devidamente transcrito no Registro Imobiliário”. (in “Posse e Usucapião”, Humberto Theodoro Júnior, 1991,
p. 427)
É o que se vê no presente caso. Os
proprietários estão de posse de títulos
52
devidamente registrados, no entanto,
sobre eles paira dúvida ou discussão.
Tal situação, porém, exige uma solução, como diz Caio Mário da Silva Pereira, que diante da necessidade de que
todas as relações jurídicas gozem de
tranqüilidade, em benefício da harmonia social, o legislador estabeleceu os
prazos prescricionais (“Instituições de
Direito Civil”, 7ª ed., p. 482). De fato,
as relações jurídicas não podem ficar
ameaçadas por tempo indeterminado.
Nesse sentido, abordando o usucapião extraordinário, ensina o Prof. e Des.
Tupinambá Miguel Castro do Nascimento: “Desta forma, desnecessita o
usucapiente, neste tipo de usucapião,
possuir qualquer título; se possuir, é
demasia que não prejudica. Essencial e
sobranceiro é o fato da posse ligada à
sua duração. Na primeira edição, afirmamos que, no usucapião extraordinário, ‘a
posse pode se qualificar de má-fé, ou
seja, aquela em que o possuidor não
ignorava o vício ou o obstáculo impeditivo da aquisição do imóvel’. Nossa afirmativa não alcançou o pretendido. O
que se sustenta é que, com sede nas
regras do usucapião de longo tempo,
não interessa e se afasta mesmo qualquer indagação sobre a ciência ou ignorância do possuidor de vício ou obstáculo impeditivo para adquirir o bem. Não
cabe às partes nem ao Juiz o exame da
SENTENÇAS
fé, se boa ou má. É elemento dispensado e não examinado”. (“Usucapião,
Comum e Especial”, 5ª ed., p. 111)
Assim a posse e propriedade está
consolidada
nas
pessoas
dos
contestantes, sendo irrelevante as alegações de ter J. R. efetuado venda, quando, em verdade, não era herdeira. Ora,
o decurso do tempo se encarregou de
sanar toda e qualquer irregularidade ou
nulidade de títulos, em decorrência das
prescrições extintivas ora reconhecidas
em favor dos réus.
Diante do exposto, julgo improcedente a presente ação ordinária de
nulidade de escrituras públicas, cumulada com reivindicação, condenando o
autor ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo
em 20 % sobre o valor corrigido da
causa, a ser dividido proporcionalmente
entre os réus, diante da pluralidade de
réus, trabalho exigido, eis que julgada
antecipadamente a lide, bem como zelo
dos profissionais, na forma do art. 20,
§ 3º, do CPC.
Em virtude do benefício da assistência judiciária concedida ao autor, fica
este isento do pagamento das custas e
honorários, na forma da Lei nº 1.060/50.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Espumoso, 23 de outubro de 1991.
Antônio Carlos Ribeiro, Juiz de Direito.
53
Processo nº 3.910 – Ação de Investigação de Paternidade
Autores: C. W. S. e R. S. S.
Réus: I. P. A. e A. R. R. A.
Juiz prolator: Carlos Frederico Finger
Paternidade e maternidade socioafetiva.
Impossibilidade
de
ser
investigada (vindicada) a paternidade
e a maternidade biológica. Princípio da
aplicação da proteção integral e melhor
interesse da criança. Sentença de improcedência aos pais biológicos.
Vistos, etc.
C. W. S. e R. S. S. ajuizaram ação de
investigação de paternidade (a demanda foi ajuizada originariamente sob
nomen juris de “ação declaratória de
nulidade de registro de nascimento
cumulada com pedido de liminar de
guarda de menor impúbere”.) contra I.
P. A. e A. R. R. A., alegando que a
autora R. deu à luz a uma criança do
sexo feminino, em 26-08-96.
Em razão de tratamento psiquiátrico
a que estava sendo submetida a requerente antes mesmo do parto, a criança
foi entregue pelo pai biológico a uma
terceira pessoa chamada O. M., que por
sua vez veio a entregá-la ao casal requerido. Restabelecida emocionalmente
da moléstia a qual foi acometida, a
requerente, juntamente com seu esposo, procurou localizar a criança, não
logrando êxito junto a O. M., vindo a
saber o seu paradeiro apenas certo tempo após.
Em 18-06-97 foi ajuizada “ação de
regularização de guarda de menor”, que
foi extinta sem julgamento do mérito
por impossibilidade jurídica do pedido
(art. 267, VI, do CPC), decisão esta que
transitou em julgado sem irresignação
das partes.
Quando receberam a posse da criança, de forma inadvertida, os requeridos
providenciaram no registro da menor,
em verdadeiro procedimento de “adoção à brasileira”, vedada pelo ordenamento jurídico vigente, mas permanecem na posse da criança até os dias de
hoje.
Por fim, requereram os autores o
deferimento imediato da guarda da
menor T., sua filha, e ao final a declaração de paternidade dos autores com
relação à criança T., com a confecção
de novo registro de nascimento, além
do deferimento da guarda definitiva da
menor. Juntaram documentos e requereram a concessão da assistência judiciária gratuita.
Foi determinada a emenda da inicial, tendo os autores nominado a ação
como investigação de paternidade, formulando os pedidos antes mencionados.
O pedido de guarda provisória foi
indeferido na fl. 94, tal como opinado
pelo Ministério Público nas fls. 81/82.
Citados, os requeridos contestaram
reconhecendo terem procedido de forma irregular por ocasião da formalização do registro de nascimento de T.
Salientaram, como restou demonstrado
54
no transcorrer da ação anterior de guarda, que só agiram dessa forma em razão das instruções dadas por C. e O. M.
Pela prova testemunhal emprestada ficou claro que a requerente não queria
a criança, tanto que tentou asfixiá-la,
sem contar que antes mesmo do seu
nascimento a rejeitava.
Mencionaram que devem prevalecer
os laços afetivos em detrimento do vínculo biológico, preservando-se o interesse da menor. Além disso, a requerente sofre de psicose afetiva, o que
pode levá-la a cometer outros atos “fora
da normalidade”. Irresignaram-se contra
o pedido de guarda formulado na inicial e pediram a final improcedência da
demanda.
Manifestaram-se novamente os autores reiterando suas razões iniciais. Manifestaram-se os requeridos nas fls. 116/
117 reconhecendo o pedido dos autores quanto à paternidade da criança,
mas reiterando o requerimento de improcedência da ação e manutenção do
seu vínculo sobre T.
Instadas a se manifestar, as partes
não requereram a produção de outras
provas. O Ministério Público lançou parecer nas fls. 122/123 opinando pela
procedência da investigação de paternidade com a conseqüente desconstituição do registro de nascimento irregular
da menor e a lavratura de outro, porém
com a manutenção da guarda de T. em
poder dos requeridos, por ser medida
que atenderá aos seus interesses. Os
autos vieram conclusos. É o relatório.
Passo a fundamentar. A situação
posta em causa, deveras complexa em
razão dos reflexos que serão gerados
por esta decisão, propõe duas ordens
de questões.
SENTENÇAS
A primeira delas diz respeito ao
reconhecimento da paternidade (e maternidade) dos requerentes com relação
à criança nascida em 26-08-96, chamada T. R. A. A segunda refere-se à situação fática criada pelos próprios autores, destaque-se, com a colocação da
criança em poder dos requeridos.
O ponto relativo à filiação biológica
de T. reveste-se de simplicidade ímpar,
na medida em que, nas fls. 116/117, os
requeridos, por seu procurador, reconheceram expressamente serem os autores
da demanda os pais biológicos de T.
Este reconhecimento (de paternidade e maternidade), feito mediante provimento judicial declaratório, ensejaria
como corolário a retificação do registro
de nascimento da criança, devendo nele
constar o nome dos verdadeiros pais e
mais os dados da declaração de nascido
vivo da fl. 14.
Contudo, impossível o reconhecimento judicial do primeiro ponto indicado
(declaração de paternidade e maternidade) sem a abordagem de um segundo problema, bem mais delicado e
complexo.
Com efeito, trata-se de definir a situação fática de T. R. A., que vive com
o casal requerido desde tenra idade,
fato incontroverso nos autos. Assim,
necessárias algumas digressões de caráter doutrinário.
Uma primeira observação possível é
a de que, em processos de Direito de
Família, nos quais a disputa se desenvolve em razão de um filho, ou, como
no caso em tela, em torno do estabelecimento da filiação, o que trará como
conseqüência a provável alteração da
posse da criança, hodiernamente a visão do operador do direito deve ser
SENTENÇAS
substancialmente distinta daquela tradicionalmente adotada. Vale dizer, não
obstante a demanda posta ao crivo judicial consagre, também, interesses e
pretensões dos adultos que litigam, titulares de direitos respeitáveis e dignos
de consideração, que não menos verdade sobreleva na hipótese o interesse da
criança envolvida, sobretudo porque a
decisão a ser tomada terá reflexos diretos sobre a sua situação fática, comprometendo, de uma forma mais ou menos
intensa, a sua identidade.
Por isso, necessário destacar que,
entre nós, de acordo com o escólio de
Heloísa Helena Barbosa (“Novas relações de filiação e paternidade”, in “Repensando o Direito de Família: anais do
I Congresso Brasileiro de Direito de
Família” (coord.: Rodrigo da Cunha
Pereira); Del Rey, Belo Horizonte, 1999,
pp. 138 e ss.), a Constituição Federal
de 1988 representou importante marco
na trajetória do Direito Civil pátrio,
provocando um verdadeiro abalo estrutural do sistema jurídico, estabelecendo
uma nova ordem, promovendo a determinada “constitucionalização do Direito
Civil”, trazendo profundas mudanças em
especial ao Direito de Família.
Segundo a emérita professora, a CF/
88 lançou dois princípios estruturais
daquilo que denomina de “nova filiação”:
o primeiro, da plena igualdade entre os
filhos (insculpido no art. 227, § 6º); e o
segundo – que é o que mais interessa
no caso em comento – consiste na
adoção pela Constituição Federal da
doutrina da proteção integral da criança e do adolescente (art. 227 da CF), os
quais passaram a ter reconhecidos e
garantidos direitos próprios a sua condição de pessoas em desenvolvimento.
55
Portanto, as relações envolvendo pais
e filhos devem necessariamente respeitar tais direitos e premissas, não sendo
possível que se faça qualquer leitura da
filiação, maternidade ou paternidade, se
não com as lentes da doutrina da proteção integral, tendo como objetivo único
atender o melhor interesse da criança.
Conseqüência imediata da plena
adoção da doutrina da proteção integral
da criança e do adolescente é a admissão, em termos jurídicos, da denominada paternidade afetiva, que emerge da
relação socioafetiva entre pais e filhos,
quando ausente o vínculo biológico.
A paternidade socioafetiva (aí incluída, evidentemente, a maternidade),
decorre da velha noção de posse do
estado de filho, que se caracteriza pela
reunião de três elementos clássicos, a
saber: a nominatio, que implica utilização pelo suposto filho de patronímico
do pai; a troctatio, demonstrada no tratamento deferido ao pai pelo filho; e a
reputatio, representada pela fama ou
notoriedade social da reputação.
A posse de estado de filho seria,
assim, decisivo elemento para sobrepor-se ao sistema baseado na mentira jurídica de pura aplicação da presunção
pater is est, consagrada pelo Código Civil
de 1916 (art. 338, I e II), servindo como
bússola na determinação da verdadeira
paternidade, qual seja, a paternidade
biológica num primeiro instante, e a
paternidade socioafetiva, na atualidade.
Há muito, a sabedoria popular já
reconhecera tal vínculo: “pai é quem
cria, dá o pão, amor e ensino”. O Direito, e em especial o de Família, obrigou-se a reconhecer tal fato social instalado, e esse acolhimento deu-se através
da doutrina da proteção integral: o
56
melhor pai ou mãe nem sempre é aquele
que biologicamente ocupa tal lugar, mas
a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo.
Não existe, sempre, um instinto maternal que tudo explica.
Cumpre sinalar, sob este aspecto,
que o reconhecimento da paternidade
afetiva acabou, nos tempos atuais, por
consagrar uma verdadeira relação jurídica que tem por base o afeto, único
em muitos casos, capaz de permitir a
realização dos direitos fundamentais da
pessoa humana, em especial da criança.
Maria Berenice Dias, em feliz síntese,
destaca que “como cabe ao Direito regular a vida, e sendo essa uma eterna
busca da felicidade, impossível que não
se reconheça o afeto como um vínculo
que não serve só para gerar a vida, eis
que, conforme diz Sílvio Macedo, o amor
é um valor jurídico.” (DIAS, Maria Berenice, “Efeitos Patrimoniais das Relações
de Afeto”, in “Repensando o Direito de
Família: anais do I Congresso Brasileiro
de Direito de Família” (coord.: Rodrigo
da Cunha Pereira); Del Rey, Belo Horizonte, 1999, p. 57).
Considerados todos os aspectos
doutrinários trazidos é que se passa a
abordar a espécie posta em causa. No
caso em tela, R. (mãe biológica) ainda
durante a gravidez teve diagnosticada
doença psíquica, identificada como sendo psicose afetiva. O quadro mórbido
fez com que certas precauções fossem
adotadas já ao início, tanto assim que
mesmo antes do parto, R. já tinha o
acompanhamento de sua sogra, conforme relatou a testemunha S. C. (fl. 66).
Havia, já ao tempo da gestação, uma
rejeição (decorrente da doença, frise-
SENTENÇAS
-se) de R. pela criança que estava para
nascer, o que veio a se confirmar com
o nascimento de T.
Em vista dos problemas psíquicos
da esposa, C. acabou entregando a filha
aos cuidados de O. M. e sua mulher,
seus vizinhos. Segundo informou O. à
fl. 61, C. (pai biológico da infante),
entregou-lhe a criança após a mesma
ter passado, antes, por outras três famílias. Posteriormente, O., não tendo condições de criar a infante, entregou-a ao
casal requerido, que a mantém sob a
sua guarda até hoje.
A criança nasceu em 26-08-96, e
passado quase um ano é que seus pais
biológicos se dispuseram a encontrá-la
(junho de 1997), achando-a sob os
cuidados e carinho dos demandados,
com quem se encontra desde os 40 dias
de idade, de acordo com o declarado
por O. M. Hoje, como perceptível, a
menina encontra-se com três anos e nove
meses de idade, perfeitamente integrada à família A., reconhecendo, por certo, I. e A. como seus legítimos pais.
Percebe-se, portanto, para o bem ou
para o mal, que existe uma situação de
fato consolidada e que não deve ser
alterada em respeito ao interesse da
criança T. Ela reconhece em I. e A. os
seus pais, únicos que teve até o momento. Retirá-la do convívio dos demandados é contra-indicado, sob pena
de esbulhar o seu interesse de pessoa
em desenvolvimento. É arrebatar-lhe o
único pai e a única mãe, o único carinho e afeto que teve até hoje.
Temerário afigura-se o afastamento
de uma menina de pouco mais de três
anos do convívio dos seus pais afetivos,
aqueles que a acolheram desde os
SENTENÇAS
quarenta dias de idade, mormente se
considerarmos que não existe qualquer
vínculo afetivo entre T. e os requerentes. Presumo que a menina sequer os
conhece.
Abordada a questão que efetivamente
mereceu abordagem, qual seja a posse
da criança T. e o reconhecimento dos
seus pais verdadeiros, volta-se ao primeiro ponto desta fundamentação que
se refere à questão registral de T., registro este falsamente levado a efeito
pelos demandados.
Diante das idiossincrasias do caso
concreto, muito embora entenda que a
forma dos atos jurídicos deva sempre
ser considerada e atendida para que
tenhamos a tão invocada segurança
jurídica, também entendo que esta questão não se mostra tão relevante a ponto
de desmerecer o superior interesse da
criança disputada. É certo que os demandados efetuaram o falso registro.
Sabiam não ser os pais biológicos da
menor, mas assim agiram consagrando
aquilo que a doutrina comumente tem
chamado de “adoção à brasileira”, na
crença de que a criança que lhes fora
entregue por O. M. estava sendo rejeitada pelos pais biológicos.
A conduta dos autores em “dar” a
criança a terceiros é tão questionável
quanto a dos requeridos. Se, como alegam, era tão forte a intenção de manter
T., por que razão não a entregaram aos
cuidados da avó paterna, que, segundo
a testemunha S. C., auxiliou R. e C. nos
cuidados com a menina nos primeiros
dias de vida, sobretudo em função da
rejeição da mãe pela filha? Por que não
a deixaram sob os cuidados de qualquer
outro parente próximo, ao invés de es-
57
tranhos? Esse aspecto da relação entre os
autores e a filha não vem elucidado e
desprestigia o pedido inicial.
O próprio comportamento do autor
C. parece não revelar todos os dados da
realidade, na medida em que tratou de
entregar a filha para estranhos pouco
tempo após o nascimento, o que, convenhamos, refoge da normalidade; ou
ao menos não é o comportamento que
se espera de um pai que se disse zeloso
e preocupado com a filha de tão tenra
idade.
Ao que tudo indica, C. nada fez para
recupera a criança no meio tempo em
que sua esposa estava com os sintomas
da psicose afetiva. Conclusão que se
extrai dos elementos constantes nos
autos é a de que os autores entregaram
a criança para que fosse “adotada” por
qualquer daqueles que com ela permaneceram, de sorte que a infante acabou
sendo acolhida no lar dos requeridos.
Isso transparece nos depoimentos colhidos e trazidos aos autos como prova
emprestada, sem irresignação das partes.
Depreende-se dos fatos, também, que
houve um arrependimento posterior dos
autores que, ante o estabelecimento de
fortes vínculos afetivos entre a criança
e seus pais afetivos, não pode agora ser
levado em conta e supervalorizado,
prejudicando a pessoa que mais deve
ser protegida neste complexo caso – T.
Nem mesmo o fato de os autores
serem os pais biológicos de T. suplanta
a paternidade-maternidade afetiva dos
requeridos, justamente porque adotar essa
solução seria, como antes se referiu,
destruir a sua identidade. Por este motivo, com a vênia Ministerial, impõe-se a
58
improcedência da demanda, inclusive
com a manutenção do falso registro de
nascimento levado a efeito pelos demandados (fl. 30).
Em face do exposto, julgo improcedente a ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de guarda movido por C. W. S. e R. S. S. contra
I. P. A. e A. R. R. A..
Condeno os requerentes no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios ao patrono dos de-
SENTENÇAS
mandados, os quais arbitro em 05 URHs,
considerados os critérios do art. 20, § 4º,
do CPC.
A exigibilidade dos encargos sucumbenciais ficará suspensa já que vai deferida a gratuidade judicial aos autores
(art. 12 da Lei nº 1.060/50).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Santa Bárbara do Sul, 16 de maio de
2000.
Carlos Frederico Finger, Juiz de Direito.
59
Processo nº 01296087388/11864 – Ação de Anulação de Casamento
8ª Vara de Família e Sucessões
Autor: R. C. C.
Ré: J. J. M. C.
Juíza prolatora: Catarina Rita Krieger Martins
Ação anulatória de casamento. Improcedência por não ter restado demonstrado erro essencial, já que houve prévia
união estável.
Vistos os autos.
Alega o autor haver casado com a ré
em 29-10-94; não tiveram filhos; afastou-se do lar conjugal através de cautelar de separação de corpos em 13-09-95;
ingressou com ação de separação litigiosa, sendo proposta reconvenção pela
ré, trazendo inverdades em diversos
recursos utilizados, demonstrando a
mentira compulsiva como um defeito
de caráter; logo após o casamento, o
autor contatou com a verdadeira personalidade da ré, contumaz na mentira,
chegando a forjar documentos; defeito
de caráter este anterior ao casamento,
sendo que possuía diversos cartões de
crédito, parecendo ter renda compatível
com isso, dizendo-se ser fazendeira, possuir um imóvel, no entanto, declara nas
fichas cadastrais das lojas empregos diversos e simultâneos que não exercera.
Aduz restar caracterizada conduta
imoral e desonrosa, pré-existente ao casamento e desconhecida pelo autor, que
se o soubesse, não teria assumido tal
compromisso. Fundamenta seu pedido
nos arts. 218 e 219, I, do CC. Requer a
procedência da ação com a anulação do
casamento por erro essencial quanto à
pessoa da ré. Juntou documentos.
Extinta a ação, foi dado provimento
à apelação, prosseguindo o feito. Citada, a ré contestou alegando serem
inverídicas as afirmações do autor, eis
que, conviveram em união estável por
longo período antes do casamento,
havendo pleno conhecimento de um
sobre o outro: conheceram-se em 1983,
eram colegas de estudo; iniciaram namoro e, após 03 anos de convívio diário, assumiram relacionamento mais
sério, passando a residir juntos em diversos locais, junto a familiares; trabalhavam juntos em diversas atividades,
daí a enumeração de atividades laborais
diversificadas; os bens foram adquiridos
com a colaboração de ambos; após
quase 09 anos de união, solidificaram-na, casando em 1994, sob o regime de
comunhão universal de bens; festejaram
a formatura da contestante junto a familiares; foi surpreendida pelo alvará de
separação de corpos obtido pelo autor,
deixou-a sem atendimento material,
obrigando-a ingressar com ação de alimentos. Juntou documentos.
Apresentou peça reconvencional,
alegando que, embora o casamento
tenha perdurado por apenas 01 ano,
viveram em união estável por período
aproximado a 09 anos, não tiveram filhos, litigam através de várias ações,
são inverídicos os fundamentos alegados pelo reconvindo, injúria à
reconvinte.
60
Requer o divórcio do casal, sendo
atribuída culpa ao reconvindo, a partilha equânime dos bens, alimentos de
03 salários mínimos até a efetivação da
partilha dos bens, retorno ao uso do
nome de solteira.
O autor ofereceu réplica à contestação e contestou o conteúdo da peça
reconvencional, alegando descaber partilha de bens se anulado o casamento e
a impossibilidade de alimento, sem ter
havido alteração quanto à possibilidade
e necessidade dos mesmos, já decididos
anteriormente, requer a improcedência
da reconvenção. Manifestou-se a
reconvinte.
De acordo com parecer do Ministério
Público, foi nomeada curadora ao vínculo a defensora pública, que se manifestou pela extinção do feito pela impossibilidade jurídica do pedido, considerando a fragilidade das alegações do autor,
quanto ao erro da pessoa da ré.
Manifestaram-se as partes e foi determinada a produção da prova pericial,
vindo laudo das fls. 185/188, sobre o
qual falaram as partes. Vieram novos
documentos e prova testemunhal emprestada de outra ação que tramitou
entre as partes. Encerrada a instrução,
as partes apresentaram memoriais, reiterando as alegações. A ré postula a
litigância de má-fé. Veio parecer do Ministério Público pela improcedência do
pedido inicial e do pedido reconvencional. Relatei.
DECIDO
Versa o presente feito sobre pedido
de anulação de casamento sob a alegação de erro essencial quanto à pessoa
da ré. Atribuiu-lhe, o autor, conduta
desajustada, voltada para a mentira,
SENTENÇAS
personalidade anti-social, afirmando que,
se conhecesse a “reputação”, a índole e
a “personalidade” da ré, jamais teria com
ela convolado núpcias.
Os documentos acostados (fls. 175/
182), noticiam envolvimento afetivo do
autor com pessoa do mesmo sexo, bem
como ser o mesmo portador de HIV.
O contrato de locação (fl. 220), tendo o autor como locatário, data de
11-11-93 e indica o mesmo endereço
apontado na documentação (fl. 224),
constante de notas fiscais de energia
elétrica, esta em nome da ré e indicando o respectivo consumo nos períodos
de 11-11-93 à 02-12-93 e de 02-12-93 à
06-01-94. Tais provas documentais demonstram o convívio do casal em período que precedeu as núpcias, eis que,
tão logo o autor locou o apartamento,
em novembro, a conta de energia elétrica já esteve em nome da ré, enquanto
o casamento somente ocorreu em outubro de 1994. Demonstram não só que
residiam juntos nesse período, como
também, que a ré também respondia
por despesas dessa moradia, isso já 01
ano antes do casamento. Ré esta que
hoje recebe acusações sobre desordem
financeira e fraudes, tudo com total desconhecimento pelo marido quando do
casamento.
Assim, mesmo que existentes os problemas de personalidade imputados à ré,
estes não seriam desconhecido do autor,
condição esta indispensável para a fundamentação legal que embasa o pedido.
O restante da prova documental
(declarações, cartões, fotos) e a prova
oral trazida aos autos indicam um bom
relacionamento do casal. No entanto,
diante do fundamento fático apresentado pelo autor, a prova cabal vem a ser
SENTENÇAS
a pericial, eis que a acusação é de
desajuste de personalidade, pré-existente ao casamento, que teria tornado a
vida comum insuportável.
Em sentido inverso ao pretendido pelo
postulante, o laudo pericial, fls. 185/188,
aponta não encontrar na ré “características de personalidade do tipo anti-social”.
Aponta-lhe estrutura frágil e esforços
defensivos não muito adaptados para
sustentar uma precária auto-estima. E,
conclui que, “a periciada apresenta alguns sintomas psíquicos e, também, algumas limitações adaptativas sem que se
possa classificá-la numa categoria
diagnóstica específica. Não só não apresenta uma estrutura anti-social de personalidade como evidencia lhe faltar alguns
recursos básicos para tal funcionamento”.
Dessa sorte, os desajustes atribuídos
à ré não poderiam ser do conhecimento
do
autor,
embora
o
convívio
pré-existente às núpcias, pois, inexistentes. Frágil e inconsistente a prova
apresentada pelo autor, não logrando,
este, comprovar suas alegações.
A despeito da fragilidade, melhor
prova apresenta a parte adversa, quando junta registro de ocorrência no qual
o autor é apontado como “namorado”
de outro homem portador de HIV, fatos
que indicam num mesmo sentido e
contrário ao pretendido na peça inicial.
Improcede, assim, a pretendida anulação de casamento, primeiro pelo convívio pré-existente às núpcias, no mínimo de 01 ano, que impede o desconhecimento quanto à outra pessoa, requisito fundamental para o alegado erro
essencial; segundo, pela ausência dos
desajustes atribuídos a ré, que tornassem a vida comum insuportável, conforme conclusão do laudo pericial.
61
Tramita entre as partes ação de separação litigiosa, que restou suspensa
em razão da propositura da presente
ação. Na reconvenção, pleiteia, a reconvinte, a decretação do divórcio com
atribuição de culpa ao reconvindo, a
partilha equânime dos bens, o pensionamento de três salários mínimos até o
recebimento dos bens e o retorno ao
uso do nome de solteira.
O presente feito tramita desde 1996,
enquanto o alvará de autorização para
afastamento do varão do lar conjugal
data de 13-11-95 (fl. 19), tendo tramitado outros feitos entre as partes, nesse
período.
Os litigantes manifestam a impossibilidade do retorno à vida em comum,
isto também restando absolutamente
incontroverso pelas diversas ações envolvendo-os, demonstrando a animosidade existente.
Não tiveram filhos. A reconvinte não
pretende alimentos além da data do
recebimento dos bens, ademais, a fixação da pensão alimentícia deve atender
antes ao binômio possibilidade–necessidade do que à culpa na separação. Não
pretende, a reconvinte, permanecer com
o nome de casada.
Certa está a falência do casamento.
No entanto, de nenhum efeito a análise
da culpa do varão do lar conjugal,
comprovado, sobejamente, o lapso temporal necessário à dissolução do vínculo matrimonial.
Em sendo o regime de bens o da
comunhão universal, a partilha abrangerá os bens adquiridos por ambos até
a data da separação de corpos, em 50%
para cada cônjuge, apurado através de
liquidação de sentença, se houver necessidade.
62
Adequado que a reconvinte receba
auxílio financeiro até a efetiva entrega
dos bens, sendo este fixado como alimentos e no valor de dois salários
mínimos mensais, valor que se apresenta razoável à sua situação financeira e
à do reconvindo. A divorcianda retornará
ao uso do nome de solteira.
Cabível a aplicação, neste feito, da
pleiteada litigância de má-fé, forte no
art. 17, II, do CPC, pois o autor tanto
alterou a verdade dos fatos como omitiu outros relevantes, principalmente em
relação à convivência anterior ao casamento, em período superior ao comprovado nos autos e não contestado
pelo autor, de modo que o fato
constitutivo do direito pleiteado, erro
essencial sobre a pessoa, fica fragilizado
posto que contraditório à situação fática
verificada, esta por laudo pericial, tendo, o autor, tempo suficiente antes do
casamento para conhecer, se assim fosse, a conduta imoral e desonrosa que
tentou atribuir à requerida.
Pelo exposto, julgo procedente o
pedido formulado por R. C. C. contra J.
J. M. C. nesta ação de anulação de
casamento.
Pelo exposto, julgo procedente a
reconvenção proposta por J. J. M. C.
contra R. C. C.
Decreto o divórcio entre R. C. C. e
J. J. M. C. Declaro dissolvido o vínculo
matrimonial existente entre ambos.
SENTENÇAS
Fixo os alimentos em favor da requerida no valor equivalente a 02 salários
mínimos mensais, até a efetiva partilha
dos bens, com depósito em conta bancária a ser informada nos autos, até o 5º
dia útil do mês subseqüente ao vencido.
Os alimentos retroagirão à data da intimação ao autor quanto à reconvenção.
Condeno o autor ao pagamento das
custas e honorários advocatícios, que
fixo em 10 URHs, forte no art. 20, § 4º,
do CPC, na ação de anulação de casamento.
Condeno o reconvindo ao pagamento
das custas e honorários advocatícios, que
fixo em 10 URHs, forte no art. 20, § 4º,
do CPC. Condeno o autor ao pagamento da pena por litigância de má-fé, fixando para tanto o percentual de 1%
sobre o valor da causa, devidamente
atualizado, conforme Lei nº 9.668, de
23-06-98.
A requerida voltará a usar o nome
de solteira. Com o trânsito em julgado,
expeça-se mandado de inscrição ao
Registro competente.
Em razão do aqui decidido, certifique-se na Ação de Separação Judicial
tombada sob o nº 01295080475, arquivada administrativamente. Oportunamente, arquive-se com baixa.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 14 de março de 2001.
Catarina Rita Krieger Martins, Juíza
de Direito.
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Nº de Ordem 117/00 – Ação Ordinária de Deserdação
8ª Vara de Família e Sucessões
Autores: I. P. e outros
Rés: S. F. V. e outras
Juíza prolatora: Catarina Rita Krieger Martins
Deserdação. Ação declaratória julgada procedente porque provada a injúria, ofensa e humilhação à testadora.
Vistos os autos.
Os autores relatam que são irmãos
e sobrinhos de O. P. F., a qual faleceu
em 19-05-97 e deixou um testamento,
confirmado em 11-12-97, no qual a de
cujus deserdou, expressamente, sua filha S. e suas netas M. L. e E., ora rés,
por motivo de ofensa moral, injúria e
desamparo na velhice, instituindo como
herdeiros os autores, estabelecendo a
divisão de seu patrimônio entre os
beneficiados, bem como indicou inventariante. Informam que a ré S.,
costumeiramente solicitava empréstimos
financeiros ao seu pai, J. O. F., esposo
da de cujus, conseguindo, dessa forma,
juntamente com seu marido, constituir
patrimônio imobiliário razoável.
Tal situação era recriminada pela mãe
de S., o que gerou desentendimento
entre as duas. Com o passamento do
progenitor, iniciou-se um litígio entre
mãe e filha sobre os bens do espólio,
em razão de a filha querer auferir vantagens. Pretendem provar, com a presente ação, que as rés agiram ou omitiram-se no seu dever de assistência e
amparo em relação à de cujus, que
acabou por ser tratada e amparada, até
seus momentos finais, pelos irmãos e
vizinhos. Após seu falecimento, as rés
não compareceram sequer ao velório,
nem ao sepultamento. Requerem a procedência da ação e demais ônus sucumbenciais. Juntaram documentos.
Regularmente citadas, as rés, inclusive o marido de S., ofereceram peça
contestacional, sustentando que jamais
esta e seu marido J. tenham-se aproveitado financeiramente do falecido esposo da de cujus J., inclusive era comerciante e chegou a empregar o sogro, J.
O fato de a sogra não ter afinidade com
J. não pode ser motivo para a
deserdação. Os empréstimos jamais
existiram, pois o esposo de S. possuía
economia própria, inclusive, alienou
imóveis em outras cidades para construir o prédio da Rua F. A.
O fato de a de cujus ter ciúmes da
filha, ter-se isolado por conta própria,
dado o seu temperamento, não significa
que a culpa seja da filha. A narrativa da
de cujus no seu “diário” não passa de
fantasias ou inverdades para punir sua
filha. Negam a ofensa moral e injúria
imputadas pela testadora. Quanto ao
abandono, embora as rés tentassem a
aproximação, a ré dificultava o relacionamento. A própria testadora rejeitava
qualquer ajuda sentimental ou financeira. Requerem a improcedência da ação.
Juntaram documentos.
Juntada petição pela companheira de
I. P., informando seu falecimento e postulando vista dos autos (fl. 317). Veio
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réplica, às fls. 318/319, reiterando que
a discussão gira em torno das atitudes
das rés, e não de seu patrimônio. Determinada a regularização processual das
demais rés, veio instrumento de mandato à fl. 328. Os autores informam o
falecimento de I. e I. P., postulando a
habilitação de seus sucessores. Manifestou-se o Ministério Público pelo depoimento pessoal das partes.
Realizada audiência de instrução e
julgamento, foi colhido o depoimento
pessoal da ré S. e homologada a desistência do depoimento das demais rés,
bem como a dispensa do depoimento
pessoal dos autores. Foram ouvidas as
testemunhas arroladas. Encerrada a instrução, o debate foi substituído por
memoriais. As partes apresentaram memoriais. Veio parecer ministerial, opinando pela procedência da demanda. É
o relatório.
DECIDO
De menor relevância ao feito da
forma de aquisição dos bens por parte
do genro da de cujus, ainda mais quando as queixas apontadas por esta como
início dos desentendimentos com a filha originam-se, exatamente, pela legalização dos bens adquiridos em conjunto com o sogro em nome apenas do
genro. Considere-se, aqui, que S. era
filha única, e todos os bens adquiridos
por seus pais, em princípio, recairiam
em seu patrimônio. Era questão de tempo, de paciência e, provavelmente, de
um pouco de tolerância.
O. P. F. faleceu em 20-05-97 (documento da fl. 27). Deixou testamento datado de 15-05-97, contendo este cláusula de deserdação de sua filha S. F. V.
e suas netas, filhas desta, M. L. V. M. e
SENTENÇAS
E. F. V., fundamentada em ofensa moral, injúria e desamparo na sua velhice.
Testamento devidamente registrado. Os
herdeiros instituídos ingressaram com a
presente ação, dentro do prazo legal.
Consta dos autos ter havido acentuado conflito entre mãe e filha na partilha
dos bens deixados, quando do falecimento do esposo e pai, respectivamente,
tendo a partilha sido homologada em
27-11-89 (documento da fl. 221). A filha
discutiu, inclusive, sobre bens móveis:
uma velha máquina de lavar roupa, uma
cama de casal, um roupeiro e três butijões
de gás, ocasionando pedido de remoção
da mãe como inventariante, sendo que
esta, além de meeira, era herdeira testamentária de 25% da parte disponível (documento da fl. 229).
Consta, também, que S. era filha
única do casal. O falecimento de J. O.
F. ocorreu em março de 1985 (documento da fl. 121). Dentre os escritos
particulares de O., temos o da fl. 79,
datado de abril de 1986, no qual ela
dispõe sobre o local a ser enterrada,
junto do já falecido marido, salientando
da seguinte forma: “não coloquem mais
ninguém nesta cova, lacrem bem”.
Faz ela, também, queixas à neta M.
(fls. 80/85), através de uma carta datada
de 17-02-97. Nos demais, vê-se grande
mágoa existente da mãe para com a
filha, descrevendo diversos incidentes
havidos como a retirada do telefone pela
neta E., que teria cortado pessoalmente
o respectivo fio com uma tesoura (fl.
90), e a sua transferência de residência
em razão da insuportabilidade das situações criadas pela vizinhança com a
filha, genro e essa neta.
Em determinado momento (fl. 105),
ela escreve: “Deus te perdoe S., porque
SENTENÇAS
eu já te perdoei, te desejo tudo de bom,
muita saúde, muitas alegrias na vida e
por mais que tu me odeias, eu não
consigo te querer mal, tua mãe”.
Os atos fúnebres de O. correram
todos por iniciativa, custas e responsabilidade de outros parentes, que não as
rés, inclusive a autorização para colocá-la no jazigo junto do falecido marido,
que ficou sob a responsabilidade de
seu irmão I. P., conforme documentos
das fls. 117/129.
A testemunha T. C. R. (fl. 376) relata
haver encontrado O. “aos prantos”, em
razão de a neta haver cortado os fios do
telefone, retirando-o. Afirma que, depois do falecimento de J., a filha e as
netas se afastaram de O., que sofria
com isso. Afirma, também, que O. era
muito amável e carinhosa e se dava
“demais” com os parentes.
As testemunhas ouvidas afirmam que
O. sempre esteve em juízo perfeito e
era uma pessoa querida, tendo bom relacionamento com os demais parentes.
A testemunha T. M. Z. S. (fl. 378) declara que o relacionamento entre O., a
filha e as netas fora interrompido por
coisas que ocorreram pela vida inteira,
mas que O. tinha vontade de se
reaproximar, tendo contatado com a neta
M. L., quando da mudança desta, pretendendo dar-lhe suas jóias, que não
foram aceitas.
Afirma que O. aguardou pela filha,
durante todo o Dia das Mães, em maio
de 1997, dizendo que a perdoaria se ela
a visitasse, mas isso não ocorreu. O. já
sabia de sua doença. Nunca viu as rés
visitando O. no hospital, esta fora acompanhada dos irmãos e cunhada. Sabe
que S. fora avisada quando da hospitalização da mãe e, novamente, quando
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esta entrou em coma, tendo respondido
“tomara que morra”. O. ficou hospitalizada por 08 dias. O testamento foi feito
antes da última hospitalização.
A testemunha O. G. S. (fl. 379) declara ter ouvido S. dizer que não tinha
condições de perdoar a mãe. Salienta
que O. derramou “muitas lágrimas no
ombro” da depoente, quando morava
no mesmo prédio de S. Ela sentia muita
falta da família, não tendo conhecido os
dois bisnetos. O. chorava na janela do
apartamento, tentando ver a neta M. L.
A ré S. (fls. 380/381) confirma a interrupção no relacionamento com a mãe,
tanto pela depoente quanto pelas suas
filhas, alegando ter isso ocorrido em
razão de a mãe tentar vender o veículo
de seu pai para um sobrinho.
Não mais a visitaram depois da viuvez, tendo esta 70 e poucos anos de
idade, nessa ocasião. Estiveram no hospital, mas sua mãe estava “completamente
dopada”, não as tendo reconhecido, tendo sido chamada por assistente social do
hospital. Retornou por mais duas vezes,
e ela “continuava dopada”. Não compareceram no velório e enterro. Não ajudou financeiramente durante a doença
da mãe, sequer soube da doença. Confirma o incidente do telefone havido com
E., dizendo que a mãe tinha condições
de aquisição e que havia sido emprestado durante a doença do pai.
Pela prova carreada aos autos, resta
certo que a única filha S. e as netas M.
L. e E. interromperam o relacionamento
com O. após o falecimento de J., esposo desta, que teria ocorrido em março
de 1985, sendo que ela faleceu em maio
de 1997, com 83 anos de idade. Portanto, O. viveu por 12 anos como viúva,
a partir de seus 71 anos de idade, e sem
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contato com suas descendentes. O intenso sofrimento dela com tal fato evidencia-se tanto pelos depoimentos das
testemunhas como pelos relatos dos seus
escritos particulares. Nem mesmo o
passar do tempo e o acentuar da velhice da mãe atenuou as desavenças ou
abrandou os corações da filha e netas.
Nenhum gesto de aproximação tiveram.
As dificuldades nas relações, até
mesmo de boa vizinhança, foram tantas,
que O. viu-se obrigada a mudar do
apartamento próximo do apartamento
em que residiam sua filha e neta. O fato
de M. L., atualmente, residir distante
não a exime dos fatos atribuídos, eis
que, apesar das queixas feitas pela avó,
nenhum movimento fez em direção a
uma reaproximação. Ainda relatado na
prova oral que a testadora não logrou
conhecer os bisnetos, que, certamente,
são filhos da neta que reside distante,
guardando grande tristeza por isso.
Impressiona, sobremodo, O. haver
esperado durante todo o último Dia das
Mães pela visita da filha, afirmando que
ainda a perdoaria se tal ocorresse; a
retirada do telefone pela neta E., cortando o fio com uma tesoura; a avó na
janela de seu apartamento na esperança
de avistar a neta M. L., que, posteriormente, mesmo ao transferir residência
para Brasília, recusou a doação das jóias
pela avó; a filha responder, diante do
aviso da coma da mãe, “tomara que
morra”; a ausência durante a hospitalização de O. e aos atos fúnebres, dificultando até a colocação de seus restos
mortais junto dos do marido.
Até mesmo a discussão no inventário do pai, sendo que S. afirma haver
tido conhecimento dos termos das petições ofertadas, tornou-se ofensiva à
SENTENÇAS
mãe, incluindo bens móveis de baixo
valor e de uso do casal. O sofrimento
demonstrado por O. era imenso. Para
isso, certamente, mais contribuía o fato
de serem suas únicas descendentes.
Nenhuma dúvida existe de que a atitude das rés era dolosa, era com a intenção de ofender, humilhar, achincalhar a
testadora, no que lograram êxito.
A enfermidade de O., já com 83
anos de idade, levou-a a diversas
hospitalizações, e não logrou esta ver
sua filha e netas a visitá-la. Sequer preocupam-se a filha e as netas com as
despesas de tratamento médico-hospitalar e realização dos atos fúnebres da
mesma. A testadora foi injuriada pelas
rés e abandonada, totalmente desamparada, na sua viuvez, velhice e grave
enfermidade.
Cabível,
assim,
a
deserdação das rés, justificada nas atitudes em relação à testadora, impondo-se
seja mantido o desejo da de cujus,
expresso no testamento.
Pelo exposto, julgo procedente o pedido formulado por sucessores de I. P.
e outros contra S. F. V., J. M., E. F. V.
e M. L. V. M., na presente ação ordinária
de deserdação. Declaro as rés S. F. V.,
E. F. V. e M. L. V. M. deserdadas dos
bens deixados por O. P. F., forte no art.
1.745, incs. I e IV, do CC brasileiro.
Condeno as rés ao pagamento das custas
processuais e honorários advocatícios,
que fixo em 20% do valor da causa
devidamente corrigido.
Oportunamente, arquive-se com baixa.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 18 de dezembro de
2000.
Catarina Rita Krieger Martins, Juíza
de Direito.
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Medida Cautelar Inominada
8ª Vara de Família e Sucessões
Autora: C. P. M., representada por seus pais
Juíza prolatora: Catarina Rita Krieger Martins
Interrupção da gravidez negada, porque não-demonstrado o risco à saúde
da mãe ou malformação do feto.
Vistos os autos.
C. P. M., representada por seus pais,
ingressou com a presente medida cautelar inominada, pleiteando a interrupção da gestação.
Alega haver sofrido acidente com
traumatismo grave em membro inferior,
no dia 05-01-00, ficando internada por
16 dias no Hospital M. D., quando foi
submetida a 07 cirurgias, todas sob
anestesia geral. Realizou diversos exames laboratoriais e foi submetida a tratamento com uso de diversa medicação,
bem como o emprego de radiação
ionizante para investigação diagnóstica.
Passada a fase crítica, surgiram sintomas
que resultaram no diagnóstico da gravidez.
Os médicos externaram a preocupação e os riscos que adviriam desta gravidez por terem os tratamentos coincidido com o período entre a quarta e
sétima semana, fase de desenvolvimento embrionário.
Aduz que, pelo risco iminente, os
médicos aconselharam a interrupção da
gestação, eis que não podem prever
como nascerá a criança, mas têm certeza quanto às seqüelas irreversíveis e
deformações que advirão. Alega, ainda,
a necessidade de preservar sua vida por
estar-se recuperando de um quadro clí-
nico gravíssimo. Essa interrupção deve
ser feita imediatamente. Requer autorização para a interrupção da gestação, o
que deve ser feito até o dia 15-04-00.
Juntou documentos, fls. 08/109. Manifestou-se o Ministério Público pela realização de audiência.
Consta o presente pedido de interrupção de gestação em razão de risco
de deformação fetal pelo tratamento a
que foi submetida a mãe durante as
primeiras semanas da gestação, tendo
sido vítima de acidente. O tratamento a
que se submeteu a paciente resta comprovado pela farta documentação acostada aos autos. No entanto, de maior
valia é o constante da avaliação médica
feita, fls. 108/109, que, por se apresentar clara, torna desnecessária a oitiva
dos subscritores.
Tal documento descreve o tratamento aplicado na paciente C., e assim relata: “... Portanto, temos a considerar os
riscos inerentes ao começo da gravidez
(fase de desenvolvimento embrionário),
coincidente com os tratamentos supramencionados... Há de ser considerado
ainda o tempo total de exposição nas
várias cirurgias corretivas (horas) ... A
literatura médica não contempla caso
semelhante quanto ao uso maciço de
drogas as mais variadas, múltiplas vezes
em curto espaço de tempo, em fase
embrionária incipiente. Se considerarmos isoladamente algumas drogas como
a heparina, paracetamol e penicilina,
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podemos considerá-las seguras para o
emprego na gestação.
“... O grande risco temido diz respeito à embriopatia gestacional ou
neonatal (malformações congênitas ou
que possam surgir na infância), o que
realmente não pode ser afastado completamente e com segurança”.
Nos termos dessa avaliação médica,
temos o grande risco de malformação
do feto, no entanto, nenhum exame
existe comprovando haver a malformação e a extensão desta. Há possibilidade dessa ocorrência. Bem salienta
esse relatório que esse grande risco não
pode ser afastado completamente e com
segurança. É de perguntar-se: existe segurança e completo afastamento de possibilidade de riscos de malformação de
fetos nas demais gestações que se desenvolvem?
O pedido refere-se à autorização de
interrupção de uma gestação pela ausência de garantia de estado normal do
feto. A situação parece estar ao inverso.
A interrupção poderia ser pela certeza
de uma malformação irreversível e sem
condições de vida. Não pelo risco. O
risco é uma constante do próprio viver.
Tirarmos a vida para evitar o risco? E
com a chancela do Judiciário? Dessa
sorte, poderíamos autorizar muitas mortes, tendo por objetivo evitar graves
riscos?
Observo que os próprios médicos
referem que algumas das drogas utilizadas podem ser consideradas seguras para
emprego na gestação. Os médicos não
afirmam sobre a existência de malformação e nem quanto ao mencionado risco
de vida da requerente, como referido no
petitório inicial. Aos especialistas da saú-
SENTENÇAS
de é que cabe a análise da gravidade do
caso apresentado, eis que o julgador há
de decidir com base na prova técnica
apresentada, por ser pessoa leiga na área
da saúde, sendo sua formação profissional na área do Direito.
Assim, não vindo prova da malformação e falta de condições de vida do
feto, bem como de risco de vida da
gestante, não há como se pensar em
uma autorização judicial para o ato
pretendido. A inconveniência de uma
gestação na idade em que se encontra
a gestante, bem como dada a sua situação atual de pessoa em recuperação de
lesão, não autoriza, legalmente, o aborto, se para isso não deram certeza os
especialistas da área que a tratam. Não
há como o Judiciário avocar a si a atribuição de dizer sobre os riscos de vida
de alguém ou a impossibilidade de
condições de vida e certeza na
malformação embrionária. Isso, se existente, seria de ser afirmado e comprovado através dos técnicos da área própria.
Ademais, se estivesse caracterizado
o risco à gestante, estaríamos diante de
uma norma permissiva do Código Penal, mostrando-se desnecessária a autorização judicial para a prática do aborto.
É que se a própria lei prevê como causa
excludente de culpabilidade, entendo
que o Poder Judiciário não necessita
avocar para si, antecipadamente, o poder
de autorizar a prática do aborto. Se
presentes os permissivos legais, simplesmente o aborto poderia ser realizado,
sem qualquer punição ao médico, ante
a excludente de culpabilidade. Por outro
lado, a forma inversa como se apresentam os fatos – possibilidade de risco ao
SENTENÇAS
feto – não está dentre as elencadas pelo
legislador para eximir a culpa, podendo
uns sustentarem que há lacuna penal e
outros, o ato ilícito em si.
No caso em tela, não se tem como
certa a presença de acentuada anomalia. Não se trata, pois, de lacuna legal
a ser preenchida, face à ausência do
primeiro e maior requisito (presença de
anomalia). A própria literatura médica
não contempla este caso e talvez jamais
irá contemplá-lo se, ao nos depararmos
com tal situação, entendermos que devemos simplesmente autorizar o aborto,
eximindo a responsabilidade por um ato
ilegal e, quiçá, a culpa por uma gravidez indesejada, ou evitar o ônus de
dedicar maior atenção a um ser humano que poderá, ou não, apresentar características especiais.
Não se está a falar na possibilidade
de utilizar tal situação como teste genético, pelo fato de que não está atestado quanto à efetiva anomalia do feto.
Nem está a se questionar quanto à moralidade ou não do ato. Pelo contrário,
estar-se-ia autorizando a prática de
crime contra a vida, dado o avançado
estágio embrionário e a inexistência de
certeza quanto à má-formação aventada. Observe-se que o feto já conta 16
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semanas de vida e nada se comprovou
quanto a essa possível malformação. Carecem de avanço os estudos genéticos
atuais por não demonstrarem o problema alegado? Ou será a inexistência do
mesmo?
A intenção do legislador ao vedar a
prática do aborto, de forma generalizada, é justamente para assegurar o direito à vida, que é o bem jurídico de
maior importância a ser tutelado. E está-se decidindo quanto à vida de um ser
humano, que merece a devida proteção
legal. A lei não está a autorizar o pedido, e a própria Medicina não nos dá
a certeza de que o feto venha a apresentar anomalias, caso este em que o
enfrentamento da questão poderia ser
diverso.
Pelo exposto, julgo improcedente o
pedido formulado por C. P. M., representada por seus progenitores, nesta ação
cautelar inominada, forte no art. 267,
VI, do CPC. Declaro a autora carecedora de ação pela impossibilidade jurídica
do pedido. Custas pelos requerentes.
Oportunamente, arquive-se com baixa.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 14 de abril de 2000.
Catarina Rita Krieger Martins, Juíza
de Direito.
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Processo nº 7.244/045/95 – Ação Declaratória
3ª Vara
Autor: José dos Santos
Réu: Banco do Brasil
Juiz prolator: Clademir Missaggia
Ação declaratória parcialmente procedente. Aplicação do art. 192, caput,
da CF. Impossibilidade de cobrança de
juros a maior do que o permissivo constitucional.
Vistos os autos.
I – Tratam os presentes autos de
ação declaratória proposta por José dos
Santos contra Banco do Brasil S. A., qualificados.
Alega o autor que é sogro do Sr.
Delmo Jacobsen, o qual mantém conta-corrente com o réu, cujo saldo devedor
é de R$ 18.266,49, assinou contrato de
abertura de crédito rotativo entre as
partes na condição de testemunha, mas,
mais tarde, constatou que foi enganado,
pois percebeu que seu nome constava
como avalista, e não como testemunha.
Salientou, ainda, que o documento foi
adulterado, invocou ainda a regra do
art. 192, § 3º, da CF/88 e a Súmula nº
121 do STF, para limitação dos juros.
Requereu a procedência da ação para
declaração de ineficácia do aval ou sua
limitação do valor contratado e a limitação dos juros.
O réu apresentou contestação negando a adulteração e, no que concerne aos juros, disse que a regra invocada
não é de eficácia plena, sendo que a
Súmula nº 121 é inaplicável ao sistema
financeiro. Veio a réplica. Relatei.
DECIDO
II – A ação procede em parte. Vejamos. Não procede a alegação de adulteração. O autor é sogro do contratante.
No documento da fl. 13 consta, sem
qualquer “rasura”, o compromisso do
autor como avalista. Ademais, é relevante o fato de este documento ter sido
emitido posteriormente a data do contrato (documento tido como adulterado). A má-fé do autor, aliás, é evidente,
pois forneceu todos os dados para preenchimento de sua ficha cadastral, entregando ao réu toda a documentação
necessária para tanto (fls. 40 à 45). Alterou, pois, dolosamente, a verdade dos
fatos.
Diante do documento da fl. 13, fica
sem qualquer sentido pretender ficar
vinculado ao valor original do contrato,
pois assinou como avalista para garantir
a renovação do contrato.
No que concerne à limitação dos
juros, entretanto, tem razão o autor. É
sabido que o funcionamento de um novo
sistema financeiro, moderno e competitivo em nosso País, é uma das condições fundamentais para que enfrentemos com sucesso os impasses sociais e
econômicos. O sistema em vigor é totalmente contrário ao que se concebe
por modernidade. Chamá-lo de arcaico
é pouco. Segundo o IBGE, em 1960, o
setor financeiro detinha 6,8% do PIB,
SENTENÇAS
enquanto o setor agropecuário (que
juntamente com a mineração é a base
da riqueza de qualquer nação) recebia
22,5% da produção gerada pelo trabalho de todos os brasileiros.
Em 1988, o quadro se modifica radicalmente: os bancos apropriavam-se
de 14,5% do PIB, enquanto o setor
agrícola ficava com apenas 8,7%. Somando-se as perdas deste período,
podemos ter uma idéia da brutal transferência de recursos para o setor financeiro. Assim, resta claro que esta estrutura oligopolista e cartorial do sistema
financeiro tem de ser desmantelada, sob
pena de ser obstaculizado perenemente
nosso desenvolvimento social. Segundo
Fernando Guasparini, autor da emenda
que introduziu o art. 192, § 3º, que tinha
a cobrança dos juros reais a taxa de
12% ao ano, é o Banco Mundial quem
informa que as instituições financeiras
no Brasil representam um verdadeiro e
real oligopólio. Segundo os técnicos, a
natureza oligopolista do setor bancário
brasileiro explica-se pela política de
fusões que foi favorecida pelo Banco
Central no fim da década de 1960.
As mesmas fontes apontam nosso
sistema financeiro como pouco competitivo. Para se ter uma idéia, nos Estados
Unidos há pelo menos 14 mil Bancos
onde os cidadãos podem recorrer aos
serviços. Conclui o relatório que em 1987
os Bancos apropriaram-se de 11 bilhões
e 200 milhões de dólares. Para que se
possa imaginar a gravidade do problema, a previsão orçamentária para 1990
previa um despêndido de 0,26% para a
manutenção do Poder Legislativo e 0,77
para o fomento da agricultura, enquanto 64% dos recursos tributários destina-
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vam-se ao pagamento de juros aos
encargos financeiros da União. Eis as
distorções que transformaram o Estado
brasileiro em instrumento de drenagem
de recursos do povo brasileiro para um
reduzido grupo de entidades e para
outros especuladores.
Há estimativas de que nos anos 50,
durante o governo Kubitschek, os salários constituíam cerca de 60% da renda
nacional, sendo que hoje não ultrapassam de 37%. Assim, 23% da renda transferiram-se das mãos de quem realmente
produz para outros setores da população. Não é só. Ostentamos o título de
campeões mundiais na cobrança de juros
reais a curto prazo. Em 1989, os juros
reais no Brasil foram de 42,73%, enquanto em segundo lugar ficou a
Indonésia com 14,36%, isto é, apenas
2% acima da taxa aceitável.
A questão dos juros não é só econômica, mas, sobretudo, de ordem ética. De regra, despreza-se a ética nos
debates econômicos. Mas, é preciso
assentar que sem ela, atividade econômica perde sua eficiência. Ética não é
mera atitude individual na escolha do
bem, mas um instrumento que torna
mais produtivas as relações sociais do
trabalho. Diz-se que os juros devem ser
cobrados, sob pena do capital permanecer nas arcas, para a inútil sensação
de posse e poder de seu dono, mas
sempre nos limites da ética e da razoabilidade. Ao ser colocado em circulação o dinheiro se reproduz em bens,
cria empregos, gera recursos tributários
que, por sua vez, promovem e aperfeiçoam o homem na educação, na saúde
e na cultura. Não resta dúvida que com
os juros menores será possível pagar
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melhores salários, liquidar a inflação e
eliminar, de uma vez por todas, o déficit estrutural do orçamento da União.
O argumento, várias vezes repetido,
de que a limitação de juros reais em
12% ao ano retira das autoridades monetárias um importante instrumento de
política monetária, segundo Gasparini,
não é verdadeiro. Disse que, para
desaquecer a demanda e impedir a
formação de estoques especulativos,
pode o governo aumentar a taxa de
imposto sobre operações financeiras, por
exemplo, que onerando os custos financeiros tem efeito monetário idêntico
ao aumento das taxas de juros, sem ter
a desvantagem de transferir recursos para
o setor financeiro, mantendo sua ineficiência e sua alta taxa de lucratividade,
e, conseqüente, concentração de renda.
Alegava-se que a fixação da taxa de
juros em 12% poderia trazer graves
conseqüências, tais como o desvio de
capitais para black e o ouro. Todavia,
penso que não devemos ceder a tais
argumentos “terroristas” e permitir esta
usura desenfreada, que enriqueceu os
banqueiros, grandes empresários de
outros setores e os especuladores, em
detrimento, inclusive, dos trabalhadores
e pequenos e médios agricultores e
empresários, estes em situação pré-falimentar. “Se for o caso, cabe ao Estado
impor uma política para evitar os efeitos patológicos da limitação dos juros”.
Não cabe ao Juiz negar vigência a norma
constitucional oriunda de Poder Constituinte originário.
São conhecidos casos de empresários e agricultores que são levados ao
suicídio em decorrência desta política
suicida. Segundo Luiz Bresser Pereira,
SENTENÇAS
“essa tendência para se elevar injustificadamente as taxas de juros na economia brasileira faz parte da luta entre o
capital bancário e o capital rentista contra
o capital industrial e comercial. Quanto
maiores forem as taxas de juros, maior
será a participação na renda das instituições financeiras e dos rentistas, em
prejuízo, naturalmente, das atividades
produtivas”.
A questão posta no “plano jurídico”
é de simples solução, sendo a autoaplicabilidade de clareza solar. Há duas
espécies de juros. Os moratórios, devidos em decorrência do atraso na devolução do capital, e os compensatórios,
que representam o fruto do capital
mutuado incidente desde o momento
de sua entrega ao mutuário. Antes de
uma avaliação sobre a norma constitucional é preciso fazer uma recapitulação
do ponto de vista histórico.
Diz o art. 1.062 do CC, que entrou
em vigor em 1º-01-17, que: “A taxa de
juros moratórios, quando não-convencionada, será de 6% ao ano”.
Reza o art. 1.063 que: “Serão também de 6% ao ano os juros devidos por
força de lei, ou quando as partes os
convencionarem sem taxa estipulada”.
Preceitua o art. 1.262 do CC que: “É
permitido, mas só por cláusula expressa,
fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou
de outras coisas fungíveis. Esses juros
podem fixar-se abaixo ou acima da taxa
legal, com ou sem capitalização”.
Assim, como se percebe facilmente,
é facultada a fixação acima ou abaixo
da taxa legal, ou seja, do patamar de
6% ao ano. Todavia, em conseqüência
da grande quebra de 1929, os cafeicultores brasileiros, e, com eles, todos os
SENTENÇAS
empreendedores, se viram diante de
brutal recessão, acompanhada de deflação, e os possuidores de capital partiram para agiotagem pura e simples, o
Governo Provisório adotou providência
saneadora.
Veio a famosa “Lei de Usura”, Decreto nº 22.626, de 07-04-33, que proibiu
estipular, em quaisquer contratos, taxas
de juros superiores ao dobro da taxa
legal, ou seja, estabeleceu-se o limite em
12% ao ano. Ainda, esta lei proibia a
capitalização, salvo anualmente.
Em 31-12-64 veio a Lei nº 4.595, que
regulamentou o sistema financeiro. Diz
o art. 4º, IX, desta lei que: “Ao Conselho Monetário Nacional compete limitar, sempre que necessário, as taxas de
juros, descontos, comissões e qualquer
outra forma de operações e serviços
bancários...”
Devido a tal dispositivo, adveio a
discussão sobre a vigência ou da Lei de
Usura quanto às instituições que integram o sistema financeiro. A matéria
restou pacificada com a Súmula nº 596
do STF, a saber: “As disposições do
Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às
taxas de juros e aos outros encargos
cobrados nas operações realizadas por
instituições públicas ou privadas, que
integram o sistema financeiro nacional”.
Simplificando: os comerciantes, os
industriais, e etc. estariam ainda sujeitos
a Lei da Usura, e os bancos poderiam
cobrar os juros que bem entendessem.
Como se vê, para os comerciantes e
industriais sequer interessa se a Constituição é ou não auto-aplicavél no que
concerne à taxação dos juros, uma vez
que ainda vige a “Lei de Usura”. Como
é sabido, esta não foi a única vez que
73
o Supremo Tribunal Federal cedeu aos
interesses dos banqueiros.
Para pôr fim a qualquer dúvida a
Assembléia Nacional Constituinte, no 1º
turno, em 12-05-88 aprovou a Emenda
nº 1.948, que resultou no atual art. 192,
§ 3º, por 314 votos a favor e 112 contra,
sendo que 34 se abstiveram. Para o 2º
turno houve uma série de tentativas de
supressão de tal emenda, tudo sendo
comandado pelo lobby das instituições
financeiras. Sendo derrotados, restava a
última esperança que era a emenda Luís
Roberto Ponte, Deputado do PMDB-RS,
que remetia a questão para a lei complementar, o que significaria a postergação
indefinida da vigência do limite de 12%.
Foram derrotados. A emenda Ponte também foi rejeitada, isto é, não foi conseguido 236 votos favoráveis, pois deveria
ser aprovada com no mínimo 50% dos
votos, já que se tratava do 2º turno.
Quando parecia certo que a usura
iria começar a acabar neste País, os
banqueiros contavam ainda com Saulo
Ramos, que em 06-10-98, um dia após
a promulgação da Constituição Federal,
emitiu Parecer de nº SR-70, que homologado pelo Presidente Sarney foi publicado no Diário Oficial do mesmo dia
e passou a sobrepor-se sobre a norma
constitucional. No mesmo dia, o Banco
Central do Brasil, através da Circular nº
1.365, notificou as instituições financeiras. Para tentar conter tal absurdo, o
Partido Democrático Trabalhista (PDT),
em 12-10-88, ajuizou ação direta de
inconstitucionalidade do ato normativo
perante o Supremo Tribunal Federal,
que negou a liminar. O resultado desta
ação todos sabem: improcedente por
06 a 04. Estranho, entretanto, que aquele
74
Tribunal tenha levado mais de 02 anos
para julgar a ação.
Há dois argumentos principais, a
nível jurídico, contra a auto-aplicabilidade do dispositivo em questão a saber: a) a nebulosidade do conceito de
juros reais; e b) que, do ponto de vista
técnico, o parágrafo deve ligar-se ao
caput do artigo e, neste caso, o caput
remete a lei complementar a regulamentação do sistema financeiro e, assim, a questão da definição do que seja
juro real.
Vejamos a regra, in verbis: “As taxas
de juros reais, nelas incluídas comissões
e quaisquer outras remunerações, direta
ou indiretamente referidas à concessão
de crédito, não poderão ser superiores
a 12% a. a. A cobrança desse limite será
conceituada como crime de usura, punido em todas suas modalidades nos
termos que a lei determinar”.
A norma em questão possui todos
os requisitos para ser aplicada de imediato, ou seja, contém o suficiente para
sua aplicação imediata. Em primeiro
lugar, o preceito em questão não remete ao legislador ordinário sua complementação, usando as fórmulas conhecidas como “nos termos da lei”, “a lei
disporá”, “será regulamentado em lei
complementar”, etc.
Ademais, como assentou o Ministro
Paulo Brossard, ao proferir o voto na
ADIn nº 4-7/600: “Por isto, o fato de
uma norma constitucional ser declaradamente não bastante em si, não importa em dizer que ela não produza
nenhum efeito até ser vivificada pela lei
ordinária...”
Ora, se a Constituição veda a cobrança de juros a taxa superior a 12%
ao ano, é obvio que lei inferior não
SENTENÇAS
poderá dizer diferente. Segue, o eminente Ministro: “Mas vamos supor que
tecnicamente o parágrafo devesse ser
artigo e que sob o ponto de vista de
técnica legislativa ele seja censurável. O
intérprete deve guiar-se pelo enunciado
da norma ou a ele sobrepor esta ou
aquela regra da arte de bem redigir leis?
Parece-me que, seja qual for a mácula
que tecnicamente a norma possa apresentar, o exegeta deve dar à norma
constitucional a sua medida e dela extrair o resultado inequivocamente desejado”.
Ou ainda, “nesse particular configura-se como de extrema artificialidade o
argumento de ser regra ainda depende
de lei não seria regra jurídica constitucional bastante em si. Tem sido escrito
(em pareceres encomendados por associações bancárias) que o caput do art.
191 fala de sistema financeiro a ser
regulado em lei complementar de tal
jeito que, quando no § 3º se escreveu
que as taxas de juros reais não poderão
ser superiores a 12% ao ano, terá ficado
claro que também essa primeira parte
do § 3º depende de lei complementar.
“Como se vê, mero artifício retórico,
que o papel aceita sempre. Num mesmo artigo de lei ou da Constituição,
podemos ter várias regras, independentes uma das outras. O que o parágrafo
tem de comum com o caput é que, por
força de alguma lógica formal de organização extrínseca dos assuntos, os tópicos do caput (matéria geral nele tratada) é, também, matéria dos artigos.
Isso nem sempre, aliás, acontece. Depende da maior ou menor organização
mental do Redator, ou Redatores da
norma. Muito contingentemente: no
momento da redação.
SENTENÇAS
“Vamos a um exemplo: na CF/88 o
art. 212, caput, trata de percentuais da
receita dos impostos para a aplicação
no ensino, entretanto, o 4º muda de
assunto – fala de programas suplementares de alimentação e assistência à
saúde, previstos no art. 208, VII, com
financiamento proveniente de outros
recursos. Mas, mesmo que a lógica do
Redator, ou Redatores, seja mais perfeita, nada impede que a regra do parágrafo seja restrita do que consta no
caput. (“RT” nos 649/108 e 109).
“Outra objeção argüida é quanto à
nebulosidade do conceito do juro real.
Ora, juro real é remuneração do capital.
Não se deve confundir juro com correção monetária. Segundo José Afonso da
Silva (“Curso de Direito Constitucional
Positivo”, 5ª ed., 1989, p. 693), juros
reais são aqueles que constituem valores efetivos e se constituem sobre toda
desvalorização da moeda; é o ganho
efetivo, não apenas o modo de corrigir
a desvalorização da moeda. Enfim, juro
real é a parcela de taxa de juros que
excede a taxa de inflação do período
em questão”.
Ainda, aduz-se que face à inexistência de índice oficial que meça a inflação, a norma não é de eficácia plena.
O Sr. Ministro com maestria rebate tal
argumentação: “Ora, na ausência de
índice oficial existente índices razoavelmente idôneos, como o INPC (ou IPC)
do IBGE e o IGP e o IGPM da Fundação Getúlio Vargas. Mas quando nenhum desses critérios servisse, há outro, ainda que este talvez não fosse do
agrado das instituições financeiras – a
correção monetária ou o seguro contra
a inflação ou que tenha, aplicável à
poupança popular”.
75
Como se vê, questão dos juros provou mais uma vez que não basta o
povo inscrever os direitos nas leis é
preciso, ainda, uma mobilização política
para sua efetivação prática.
Conforme Millôr Fernandes: “Para
este País sair do buraco tem que começar pela ética. A limitação dos juros em
12% a. a. pode ser o começo”.
O réu invoca a lição de Araken de
Assis sustentando que as decisões do
Supremo Tribunal Federal são vinculativas. Ora, pelo nosso ordenamento
jurídico o Juiz está vinculado à lei e não
a decisões, seja de que corte for. Sustentar tal tese, é desconsiderar o princípio da separações dos poderes. É
inadmissível, que órgão jurisdicional
possa editar norma de caráter geral e
vinculante. Tal exegese afronta um dos
princípios básicos do estado democrático de direito.
Não poderia passar despercebida a
invocação da análise de Maria Berenice
Dias, em artigo publicado no Jornal do
Comércio sobre a questão, pois parte
de premissa equivocada e de uma visão
maniqueísta, data venia, pois adota tese
de que, ao salientar que os devedores
são homens “desonestos” já que “maus
pagadores”. Esquece-se que em épocas
de crise econômica milhares de cidadãos ficam desempregados e com as
falências e concordatas milhares de
pessoas tornam-se devedores sem querer sê-lo, não por “desonestidade”, mas
devidos a fatos que ocorrem independentemente do querer individual. Esta
visão “maniqueísta” deixa certo que o
credor é necessariamente correto.
A contraposição credor/devedor =
honesto/desonesto deita raízes nas
concepções que Gramsci chama de
76
senso comum, que é irmã gêmea de
outras concepções do senso comum,
as quais dita e repetida abundantemente chega adquirir status de científica e de verdade absoluta e intocável
no imaginário popular. Dentre estas,
destaco as seguintes: “pobre é pobre
porque é vagabundo”/“o rico é rico
porque poupou”/“quem não trabalha
é porque é vagabundo, pois serviço
existe”.
Há algum tempo atrás dizia-se: “Os
empregados não tinham necessidade de
sobremesa nem folga aos domingos,
porque não estando acostumados a isso,
não sentiam falta”.
O problema não é, necessariamente,
a adesão a tais valores, mas sua consideração como “critério decisório”. Mais
ainda: é “devastador” quando assim se
procede para, invocando tais valores e
os “costumes” impostos pela realidade
SENTENÇAS
da conjuntura econômica, revogar norma constitucional oriunda de Poder
Constituinte originário.
A capitalização também é vedada e
isto decorre da interpretação lógica da
norma constitucional.
III- Isso posto, julgo parcialmente
procedente a presente ação para declarar nulas as cláusulas que admitem a
cobrança de juros acima de 12% ao ano
e sua capitalização, inclusive anual, com
base no art. 192, caput, da CF/88.
Condeno o autor ao pagamento de
70% das custas e o réu aos 30% restantes. O autor pagará a quantia de R$
1.000,00, a título de honorários advocatícios, e o réu a quantia de R$ 300,00.
Condeno o autor ao pagamento de R$
2.000,00 pela litigância de má-fé.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Alvorada, 31 de agosto de 1995.
Clademir Missaggia, Juiz de Direito.
77
Processo nº 00103695988 – Ação Declaratória
1ª Vara da Fazenda Pública – 2º Juizado
Impetrante: Maria de Lourdes Olsefer
Autoridade: Estado do Rio Grande do Sul
Juiz prolator: Cláudio Luís Martinewski
A Emenda Constitucional nº 20 não
impõe alteração no status dos Notários e
Registradores, inclusive no tocante à aposentadoria compulsória, pois, do contrário, seriam – também – vitalícios, hipótese recusada pelo sistema constitucional
vigente. Sentença de improcedência.
RELATÓRIO
Maria de Lourdes Olsefer, qualificada na inicial, ingressou com a presente
demanda declaratória contra o Estado
do Rio Grande do Sul, visando à expedição de ordem impeditiva da expedição de ato de aposentadoria da autora
e, ao final, declaração do direito de
permanecer no exercício de suas funções delegadas de Oficial do Registro
de Imóveis da Comarca de Encantado.
Em síntese, alega que, por estar na
iminência de completar 70 anos de
idade, será aposentada compulsoriamente, o que contraria o sistema normativo
constitucional e infraconstitucional, porquanto não é servidora pública, mas,
sim, detentora de delegação vitalícia na
forma do art. 236 da CF e da Lei nº
8.935/94. Colaciona doutrina, jurisprudência e atos administrativos no sentido
do sustentando.
Deferida a antecipação de tutela (fls.
284/286), foi citada a parte-ré, que
contestou, afirmando que o entendimento esposado na inicial não encontra
guarida no Supremo Tribunal Federal,
no Superior Tribunal de Justiça e no
próprio Tribunal de Justiça do Estado,
consoante precedentes que cita. Após a
réplica, opinou o Ministério Público pela
improcedência do pedido.
MOTIVAÇÃO
O feito merece julgamento antecipado, posto que a questão de mérito prescinde de dilação probatória. A controvérsia objeto da demanda, que é a de se
definir se juridicamente os Notários e
Oficiais de Registro estão sujeitos à aposentadoria compulsória, como decorre dos
próprios termos da inicial e da contestação, não se revela de simples desate.
Contudo, tendo-se presente que o
Direito é uma integração normativa de
fatos segundo valores, na síntese realeana,
onde os três elementos não apenas se
correlacionam, mas se dialetizam, penso
que a abordagem do intérprete deve
necessariamente incursionar sobre “todos” os elementos que o compõem,
dentro de uma visão do ordenamento
jurídico enquanto sistema, onde toda e
qualquer norma jurídica só encontra seu
sentido e validez quando interpretada
como parte de um todo, o ordenamento
jurídico.
Ressalte-se, no entanto, que por
norma jurídica deve-se entender não propriamente a lei, que é apenas um dos
veículos normativos, nem com os artigos, parágrafos, alíneas da lei, nem
78
mesmo com os enunciados dos artigos,
parágrafos e alíneas da lei, mas, sim, a
significação construída a partir dos referidos enunciados prescritivos, que se
encontram dispersos em todas as unidades normativas do sistema, compondo
os critérios dispostos na hipótese descritiva com o conseqüente da norma,
sem perder a unicidade própria do sistema.
Pois bem, diante de tais premissas,
verifico que nem a inicial, nem os trabalhos doutrinários, atos administrativos
e precedentes jurisprudenciais citados,
que embasam a pretensão inicial, enfrentam uma questão que, a meu sentir,
na referida formação da norma jurídica
individual e concreta, se impõe, que é
a retratada no enunciado do art. 25 da
Lei nº 8.935/95, cuja verba é a seguinte:
“Art. 25 – O exercício da atividade
notarial e de registro é incompatível com
o da advocacia, o da intermediação de
seus serviços ou o de qualquer cargo,
emprego ou função públicos, ainda que
em comissão”.
Diante de tal mensagem legislada,
impõe-se uma indagação: se os Notários e Registradores não são funcionários
públicos, mas, sim, profissionais públicos do Direito, agentes particulares em
colaboração com o Poder Público, porque o próprio subsistema normativo
invocado e que pretendeu normatizar a
atividade impôs a incompatibilidade com
cargos, emprego ou função públicos,
ainda que em comissão?
A meu sentir, a referida unidade
normativa encerra e, conseqüentemente, dialetiza uma forte intenção de valor, estabelecendo um critério axiológico,
que necessariamente deve compor a
SENTENÇAS
norma individual e concreta. E tal valor
se traduz em que, por intermédio de
uma restrição, não à atividade, mas ao
sujeito a quem se atribui a titularidade
da atividade, procura-se preservar a
função ou atividade de tudo aquilo que,
em determinadas circunstâncias, possa
vir em prejuízo da função ou ofício
público delegado.
Esse mesmo valor, esse mesmo conteúdo axiológico coincidentemente é o
que se verifica na questão da idadelimite para o exercício do cargo ou função pública (CF, art. 40, II). Embora
esta seja uma regra que se encontre
inserta em enunciado que se dirige aos
servidores titulares de cargos efetivos
da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, aparentando ser uma questão restrita ao servidor público, na verdade, é uma regra de administração
pública, que visa a preservar a atividade pública, que, no caso, tem seu exercício delegado à atividade privada, mas
que, nem por isso, perde sua característica essencial.
O fato, outrossim, de não constar do
ordenamento jurídico regulamentar,
expressamente, a hipótese de aposentadoria compulsória, como forma de extinção da atividade, e até mesmo ter
sido rejeitada emenda que tencionava a
inclusão expressa de tal hipótese, não
são elementos jurídicos suficientes a
ensejar as conseqüências pretendidas,
posto que, como se referiu, a norma
jurídica é construída a partir dos critérios dispersos em várias unidades normativas vigentes no sistema, seja de
forma expressa ou implícita, não pelo
que se deixou de inserir ou o que virá
a sê-lo.
SENTENÇAS
Nesse sentido, já era há muito a
preleção da doutrina, na pena de Carlos
Maximiliano: “Com a promulgação, a lei
adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata
e até substitui o conteúdo respectivo
sem tocar nas palavras; mostra-se, na
prática, mais previdente que o seu autor.
Consideram-na como ‘disposição mais
ou menos imperativa, materializada num
texto, a fim de realizar sob um ângulo
determinado a harmonia social, objeto
supremo do Direito’. Logo, ao intérprete
incumbe apenas determinar o sentido
objetivo do texto, a vis ac potestas legis;
deve ele olhar menos para o passado do
que para o presente, adaptar a norma à
finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva”. (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, Rio de Janeiro, 1984, pp. 30-1)
De outro lado, um sistema normativo, quando regula toda uma atividade,
sobretudo complexa, como é o caso
concreto, necessita enfeixar um sem-número de normas, regrando, um a
um, todos os fatos decorrentes da referida atividade, definindo natureza, fins,
competência, atribuições, responsabilidade, forma de ingresso, exercício, deveres, direitos, enfim, como se afirmou,
todos os fatos que são passíveis de interferência em relações intersubjetivas
que deles decorrerão.
Tarefa que é dificultada quando se
mesclam atividades ou funções públicas
com privadas, pretendendo-se inaugurar um novo sistema, como é o caso
concreto, fazendo nascer naturalmente
o dissenso, sobretudo porque, no mais
das vezes, opera-se com conceitos
79
estratificados em um e em outro âmbito, aspirando-se, a partir de determinados elementos que são realçados, a fazer
prevalecer a definição ou idéia de que
a atividade, a partir desta ou daquelas
características, se situa num ou noutro
âmbito, para daí extrair-se as conseqüências pretendidas.
Ocorre que, se efetivamente se ostenta de certa importância a definição
jurídica da atividade notarial e registral,
para o caso versado, não é a natureza
da atividade elemento que baste para
definir a questão da aposentadoria compulsória do sujeito delegado, posto que
esta se refere não diretamente à atividade em si, mas ao sujeito titular da atividade delegada, sendo apenas um dos
tantos feixes normativos referidos, ressaltando daí a questão da incompatibilidade aludida, que também se refere
ao sujeito titular da atividade delegada.
As restrições e incompatibilidades,
portanto, embora atinjam os sujeitos
titulares do exercício da atividade delegada, que se faz de forma privada (CF,
art. 236), não transmudam ou afetam a
natureza da atividade em si, que permanece pública. Possuem elas, portanto,
finalidades diversas, voltadas à função
estatal ou pública delegada.
Esses elementos são indissociáveis,
pois, como bem refere Celso Antônio
Bandeira de Mello: “Delegação é a outorga, a transferência, a outrem, do exercício de atribuições que, não fora por
isto, caberiam ao delegante. Ou seja: os
‘serviços’ notariais e os de registro (que
melhor se diriam ‘funções’ ou ‘ofícios’,
como em seguida se aclarará) correspondem, em si mesmos, a uma atividade estatal, pública. A circunstância de
80
deverem, por imperativo constitucional,
ser desempenhados por terceiros, longe
de destituir-lhes tal qualidade, pelo contrário, confirma-lhes dita natureza, pois:
Nemo transferre potest plus quam habet”.
(“RDI” nº 47/198)
Outrossim, importante salientar, ainda, sobre o tópico, que, em se tratando
de situação fático-jurídica estratificada
anteriormente à Constituição vigente,
como é o caso dos autos, o sistema fez
um recorte normativo específico, cujo
plano expressional está no enunciado
do art. 51 do ordenamento tratado, in
verbis: “Art. 51 – Aos atuais Notários e
Oficiais de Registro, quando da aposentadoria, fica assegurado o direito de percepção de proventos de acordo com a
legislação que anteriormente os regia,
desde que tenham mantido as contribuições nela estipuladas até a data do
deferimento do pedido ou de sua concessão”.
Assim, aos efeitos de se resguardar
um sistema harmônico e coerente, nada
mais razoável que, se asseguradas as
vantagens relativamente a determinado
sistema de proventos regidos por legislação anterior, que esta também seja a
referência normativa para as demais
conseqüências decorrentes. Não é permitido, nem mesmo ao legislador ordinário, obrar contra princípios que levem a uma interpretação irrazoável e
desproporcional do sistema, que conceda as vantagens, mas suprima os demais vínculos normativos implicados,
devendo, portanto, ao menos em relação aos delegados investidos anteriormente à atual Constituição, prevalecer o
entendimento segundo o qual lhes é
aplicável a aposentadoria compulsória.
SENTENÇAS
Reafirma a dualidade de ordenamentos
jurídicos o enunciado do art. 50 do diploma legal em tela, quando, em relação
às serventias estatizadas, as mantém nas
mesmas condições até a vacância.
É nesse sentido que vislumbro o
precedente colacionado em sede de
contestação, cuja ementa bem sintetiza
o julgado: “Serviço notarial e registral.
Aposentadoria compulsória do titular por
implemento de idade. 1. A falta de comunicação da interposição do agravo
ao juízo a quo, prevista pelo art. 526 do
CPC, constitui mera irregularidade, pois
prejudica apenas a própria parte-recorrente, que perde a oportunidade de
obtenção da decisão pretendida através
de juízo de retratação. Precedentes do
Superior Tribunal de Justiça. Preliminar
de não-conhecimento do recurso afastada.
“2. Os Notários e Registradores enquadram-se no conceito de servidores
públicos em sentido amplo, inclusive
para efeito de aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade, pois exercem
atividade pública por delegação, os
ofícios são criados por lei, ingressam
por concurso público, os emolumentos
cobrados são fixados por lei e estão
submetidos a fiscalização do Poder Judiciário (art. 226 e parágrafos da CF).
Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
“3. A nova redação conferida ao art.
40 da CF pela Emenda Constitucional nº
20/98 não alterou a questão, especialmente em relação aos antigos Notários
e Registradores, cuja delegação ocorreu
antes da Constituição Federal de 1988 e
da Lei nº 8.935/94, recebendo, além de
emolumentos, as vantagens pessoais de
SENTENÇAS
tempo de serviço e submetidos a regime especial de aposentadoria pela previdência pública estadual (art. 51 da Lei
nº 8.935/94). Decisão do primeiro grau
reformada. Agravo provido”. (AI nº
599430212, TJRGS, 1ª Câmara de Férias
Cível, Rel. Des. Paulo de Tarso Vieira
Sanseverino, julgado em 13-09-99)
No mesmo sentido, têm sido igualmente os vários julgados do Superior
Tribunal de Justiça, desde 1995 até o
ano próximo passado, incluindo julgado sob a égide da Emenda Constitucional nº 20 (AGMC nº 2.445, ROMS nos
7.859, 7.865, 8.057 e 5.286, AGRMC nos
992 e 658), tendo o primeiro precedente citado, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 14-03-00, assentado que:
“Agravo regimental. Constitucional. Administrativo. Cartório. Oficial Registrador. Compulsória. Emenda Constitucional nº 20. 1. A Emenda nº 20 não impõe
alteração no status dos Notários e Registradores que, por força do art. 236 da
CF, exercem atividade de caráter privado, por delegação do Poder Público,
sujeitos – evidentemente – ao regime
de previdência de caráter contributivo e
à aposentadoria nos termos estabelecidos legalmente, inclusive no tocante à
compulsória, pois, do contrário, seriam
– também – vitalícios, hipótese recusa-
81
da pelo sistema constitucional vigente.
Ocupam cargos efetivos.
“2. A despeito da alteração introduzida pela Emenda Constitucional nº 20,
os agentes Notariais e Oficiais Registradores são (1) servidores públicos lato
sensu, (2) submetidos às regras administrativo-constitucionais quanto ao provimento do cargo e, portanto, (3) sujeitos, também, às normas de caráter geral
da função pública, exercida por delegação, inclusive no tocante à aposentadoria, pois filiados ao regime de previdência de caráter contributivo, a teor do
disposto nos arts. 236 e seus parágrafos
e 40 e seus parágrafos da CF. 3. Agravo
regimental improvido”.
DECISÃO
Julgo improcedente o pedido contido na inicial, revogando a antecipação
de tutela deferida e decretando a extinção do processo, forte no art. 269, I, do
CPC. Condeno a parte-autora nos ônus
da sucumbência, em custas e honorários, estes arbitrados em 10 URHs, com
base no art. 20, § 4º, do CPC.
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 29 de dezembro de
2000.
Cláudio Luís Martinewski, Juiz de
Direito.
82
Processo nº 00104981874 – Mandado de Segurança
1ª Vara da Fazenda Pública – 2º Juizado
Autora: Lojas Renner S. A.
Réu: Diretor do Departamento da Receita Pública Estadual
Juiz prolator: Cláudio Luís Martinewski
Mandado de Segurança. Direito a
crédito relativo ao ICMS em operações
destinadas ao ativo permanente, consumo, entrada de energia elétrica e serviços de comunicação. Segurança parcialmente concedida.
RELATÓRIO
Lojas Renner S. A., qualificado na
inicial, propôs a presente demanda de
segurança em face ao Diretor do Departamento da Receita Pública Estadual,
visando à suspensão da exigibilidade
do crédito tributário, nos termos do art.
151, IV, do CTN, e seja garantido à
impetrante, nos termos dos arts. 155, §
2º, I (princípio da não-cumulatividade);
155, § 2º, a contrario sensu (direito aos
créditos de ICMS em quaisquer hipóteses que não as de isenção e não-incidência) e 150, II (princípio da isonomia), da CF, o exercício do direito líquido e certo aos créditos de ICMS, relativos a quaisquer operações de entrada
de bens destinados ao ativo permanente e ao consumo; de entrada de energia
elétrica; e de recebimentos de serviços
de comunicação efetuadas pelas filiais
localizadas neste Estado, postulando, alternativamente, em face ao art. 150, III,
b, da CF (princípio da anterioridade) e
art. 97, II, do CTN (princípio da legalidade), pelo menos até 31-12-00 ou
edição de lei ordinária estadual. Pede
ainda a abstenção de atos pela autoridade coatora e o depósito judicial da
quantia objeto da discussão.
Em síntese, refere que é empresa
que realiza operações de entrada de
bens ao ativo fixo, de energia elétrica,
serviços de comunicação e de uso e
consumo, geradores de crédito, que, pelo
advento da Lei Complementar nº 102/
2000 e Decreto Estadual nº 40.217/2000,
vieram a ser restringidos, ferindo os
princípios da não-cumulatividade, isonomia, anterioridade e legalidade. Deferida a liminar, foram prestadas as
informações, advindo parecer ministerial
pela denegação da segurança.
MOTIVAÇÃO
Versa sobre mandado de segurança,
visando ao reconhecimento do direito a
crédito relativo ao ICMS nas operações
de entrada de bens destinados ao ativo
permanente e ao consumo, entrada de
energia elétrica e recebimento de serviços de comunicação, pretéritas e vindouras, efetuadas pelas filiais da empresa-impetrante localizadas neste Estado,
ou, alternativamente, o exercício de tais
créditos até 31-12-00, ou ainda até a
edição de lei ordinária estadual, e, conseqüentemente, a suspensão da exigibilidade dos créditos respectivos a tais
operações, nos termos do art. 151, IV,
do CTN. Pede, também, a abstenção da
SENTENÇAS
autoridade coatora da prática de atos
relativamente ao objeto desta demanda.
Sustenta, em síntese, que as modificações introduzidas pela Lei Complementar nº 102/2000, ao estabelecer diferimento e restrição de créditos, para as
operações acima referidas, restaram por
violar o princípio da não-cumulatividade
(CF, art. 155, § 2º, I), o princípio da
isonomia (CF, art. 150, II), o princípio da
anterioridade (CF, art. 150, III, b) e da
legalidade tributária (CF, art. 97, II).
A autoridade apontada como coatora, a sua vez, em judiciosas informações, afirma, preliminarmente, descabimento do mandado de segurança, por
ausência de ato coator, carência de ação
em relação à parcela do pedido por
impossibilidade jurídica do pedido, em
relação à parcela do pedido por ausência de interesse processual e decadência do direito de ação em relação à
parcela do pedido. No mérito, após
referir o âmbito de incidência da lei
complementar, entende não violados os
princípios alegados na inicial, manifestando-se pela denegação da ordem, o
que contou com a aquiescência do
Ministério Público. Estes, pois, os lineamentos da questão controvertida.
Pois bem. Inicialmente, às preliminares. Segundo a autoridade apontada
como coatora, o mandado de segurança
seria incabível, porque há ausência de
ato coator, o que leva à configuração
de que o objeto da demanda é lei em
tese, o que é vedado, bem ainda porque a pretensão é meramente declaratória, pretendendo-se um alvará genérico, e há a necessidade de dilação probatória, em relação aos pretensos créditos, de forma a evidenciar a utilização
83
dos bens na atividade-fim da empresa.
Tal preliminar, no entanto, não se sustenta.
Conforme decorre do exposto na
inicial, o objeto imediato da demanda
visa à expedição de ordem para que seja
garantido à impetrante o exercício dos
créditos ICMS, relativos a operações de
entrada que elenca, em suas filiais, de
forma irrestrita, ou, pelo menos, alternativamente, até 31-12-00 ou até a edição
de lei estadual disciplinadora da matéria,
bem ainda que a autoridade coatora se
abstenha da prática de qualquer ato,
atacando o objeto da demanda.
Nada há de abstrato e genérico no
pedido, nem ataca a lei em tese, antes
revela pedido de criação de normas
individuais e concretas, “por inconstitucionalidade material incidental da normas gerais e abstratas introduzidas pela
Lei Complementar nº 102/2000”.
Nesse sentido, veja-se que o referido pedido determina especificadamente
o critério: (I) pessoal; (II) espacial dos
sujeitos pretensores dos créditos, ou seja,
as filiais elencadas na inicial, com as
respectivas inscrições estaduais; (III) o
critério material: entradas de bens destinados ao ativo permanente e ao consumo, de energia elétrica e recebimento
de serviços de telecomunicações nos
referidos estabelecimentos, e o critério;
(IV) quantitativo; e (V) temporal: valor
correspondente ao crédito mensal nas
referidas entradas.
Desta forma, ao contrário do afirmado pela digna autoridade coatora, trata-se de valor preciso e especificado, que,
nem por isso, como é próprio da sistemática de apuração dos créditos relativos ao impostos não-cumulativos, afasta
84
a possibilidade de que os desbordamentos das normas individuais e concretas introduzidas pela demanda judicial possam ser, como todo e qualquer
crédito que não é objeto de demanda,
devidamente fiscalizados e, até, eventualmente, não homologados pela autoridade fiscal.
Inexigível, outrossim, pretender-se o
exercício “prévio” do contraditório acerca dos créditos em sede de qualquer
demanda, seja a mandamental, seja nas
de cognição ampla, posto que se está
em face à relação jurídica continuativa,
cujos efeitos – creditamentos – decorrem da própria dinâmica da técnica de
compensação em decorrência da nãocumulatividade (CF, art. 155, § 2º, I).
Impor-se o contraditório, nesse lineamento, seria inócuo, posto que ou se
reduziria qualquer demanda a uma ínfima parcela dos créditos, tornando
estático o que é dinâmico, ou ensejaria
que se eternizassem as demandas, o
que é inconcebível.
Daí que o que se opera jurisdicionalmente, em tal peculiar relação, é o
efeito declaratório, visando a dirimir a
controvérsia acerca de incerteza em torno
do conceito normativo incidente sobre
a relação jurídica material, no caso, a
possibilidade de creditamento relativo a
determinadas operações, o que, em
absoluto, é vedado em sede de mandado de segurança, posto que o efeito
declaratório é efeito presente em toda e
qualquer demanda (“Toda e qualquer
ação e, pois, todas as sentenças proferidas em processo contencioso, ou em
procedimento de jurisdição voluntária,
contém eficácia declaratória, em grau
de intensidade mais ou menos acentuado. O Juiz, enquanto tal, ao proferir
SENTENÇAS
sua sentença, terá de aplicar, no caso
concreto, algum preceito normativo e
portanto genérico...” in “Curso de Processo Civil”, Ovídio A. Baptista da Silva,
Sérgio Fabris, 1991, Porto Alegre, I/123)
A ordem in natura, própria da demanda mandamental, embora seja eficácia preponderante, não é única e é
dependente da declaratória.
Ademais, a meu sentir, soa a ilogismo que, se no âmbito da norma primária dispositiva o próprio contribuinte
pode criar o ato-norma de formalização
instrumental, que ocorre no “lançamento por homologação”, se exigisse que
na norma secundária ou norma de atuação judiciária outra fosse a exigência.
Outrossim, não há que se falar em ato
da autoridade coatora, posto que se está,
como titula a inicial, em face a mandado de segurança preventivo, cuja tônica
não é ato concretizado, mas, sim, a
ameaça, também, tutelada pela ação
constitucional (CF, art. 5º, XXXV e LXIX).
E tal ameaça, no caso concreto, é
evidente, posto que, se de um lado,
sendo o regime de creditamento do ICMS
mensal, operado escrituralmente pelo
próprio contribuinte, que deduz os créditos que entende cabíveis, criando a
norma individual e concreta perante a
autoridade tributante, e, de outro lado,
existindo o Decreto Estadual nº 40.217,
de 28-07-00, veiculador de enunciados
e normas contrárias à norma creditícia
pretendida pela parte-impetrante, em o
contribuinte efetivando a criação, a norma individual e concreta, segundo seu
entendimento, deverá a autoridade fiscal, por força do referido decreto e do
enunciado constante do art. 142, parágrafo único, do CTN, proceder o ato-norma administrativo de lançamento e
SENTENÇAS
ato-norma administrativo sancionatório,
o que, por si só, é suficiente para ensejar o manejo da demanda preventiva.
Nesse sentido são os arestos colacionados na inicial, aos quais agrego à
presente motivação (REsp n os 188.308-MG, 90.089-SP e 40.055-SP, STJ, e MAS
nº 1998.04.01.027955-9-RS, TRF 4ª-Região). Quanto à carência de ação, por
impossibilidade jurídica do pedido de
abstenção de prática de ato de ofício,
igualmente, não se sustenta a posição
da digna autoridade coatora.
Em sendo juridicamente possível o
pedido de ordem in natura, nos termos
postulados, de criação de norma individual e concreta, isenta de incertezas
quanto aos creditamentos possíveis,
decorrência natural é a de que, nessa
perspectiva, não possa ser a empresa-impetrante autuada. Nesse sentido, se
a ordem postulada, como é o caso concreto, “cinge-se a abstenção de autuação acerca do objeto da demanda mandamental, veículo criador da norma
individual e concreta”, inexiste a possibilidade de autuação para quem age ao
amparo da referida ordem e, por conseguinte, não há impossibilidade jurídica do pedido.
No tocante à preliminar de carência
de ação por falta de interesse processual, igualmente, é de se afastar a pretensão. Com efeito, inquestionável que
a autoridade apontada como coatora,
como explicitam os próprios termos das
suas informações, entende como inviável o modo pelo qual pretende a parte-impetrante creditar-se em relação a créditos do ICMS sobre bens destinados ao
seu ativo fixo.
Desse modo, relativamente a este
cúmulo da demanda, não é, em princí-
85
pio, a divergência acerca do crédito em
si que se encontra instalada, mas, sim,
o próprio modo de realização de crédito. De um lado, o creditamento único e
integral, e de outro, o creditamento
parcelado, o que basta para o reconhecimento da existência de litígio ou lide
a ser dirimida judicialmente.
Não bastasse tal aspecto – daí a
ressalva acima de “em princípio” –, “há
ainda aspecto não enfocado nas informações”, relativo ao que se enuncia
como sendo “cancelamento” de saldo
de crédito remanescente, constante da
alteração do art. 20, § 5º, inc. VII (“VII
– ao final do 48º mês contado da data
da entrada do bem no estabelecimento,
o saldo remanescente do crédito será
cancelado”), que por certo conflita com
o teor do invocado em tal tópico, ensejando plenamente o interesse de agir
em juízo. Por fim, quanto à alegada
decadência em relação à parcela do
pedido, relativamente ao bem de uso e
consumo, descabe.
Se é certo que entre a data da vigência da Lei Complementar nº 99/99,
que deu nova redação à Lei Complementar nº 87/96, no tocante a tal tópico, e a data da impetração da presente
demanda foram ultrapassados os 120
dias previstos no art. 18 da Lei 1.533/
51, não é menos certo, como já se
referiu, que se está em face a demanda
de segurança preventiva, cujos fatos
decorrem de relação jurídica tributária
continuativa, onde a ameaça de lesão
se renova e se faz presente a todo
instante, obstando a consumação do
referido prazo.
Nesse sentido, precedente do Superior Tribunal de Justiça: “Não se opera
a decadência em writ preventivo, pois
86
que a lesão temida está sempre presente, em um renovar constante”. (REsp nº
46.174-0-RS, 1ª Turma, Rel. Min. César
Rocha, julgado em 23-05-94, “DJU”, de
20-06-94, p. 16.062)
No mérito, tenho que o cerne da
questão situa-se em se saber: (I) se o
conceito de princípio ou regra da não-cumulatividade é constitucional; (II) se
a despeito de ser constitucional, qual o
âmbito normativo conferido à lei complementar previsto no art. 155, § 2º, XII,
c, da CF; e (III) qual a estrutura, função
e conteúdo do princípio ou regra da
não-cumulatividade.
O ICM(s) foi instituído no sistema
tributário brasileiro com a Emenda Constitucional nº 18, de 1º-12-65, que, quanto ao princípio ou regra em discussão,
em seu art. 12, § 2º, dispôs que a não-cumulatividade se daria pelo abatimento, em cada operação, “nos termos do
disposto na lei complementar”, do
montante cobrado nas operações anteriores. Do mesmo modo, previu a Constituição de 1967, ao enunciar a unidade
normativa, no art. 24, § 5º, remetendo
o abatimento aos termos do disposto
em lei, o que também sucedeu com o
enunciado do art. 23, II, da Emenda nº
1 à Constituição de 1967, que voltou a
qualificar o veículo legal de lei complementar.
Em síntese, o princípio ou regra
nasceu constitucional, mas o próprio
sistema, de forma expressa, tratou de
delegar materialmente, sem limitações,
os termos do abatimento ou da compensação à complementaridade. Havia,
pois, uma conformação hierárquica fundante de validade conferida ao veículo
normativo inferior, sem delimitações, o
que, no entanto, é diverso do que ocor-
SENTENÇAS
re no sistema inaugurado pela Constituição vigente, cujo enunciado não fez
incluir a delegação que, até então, ornava os enunciados constitucionais, a
saber: “Art. 155 – Compete aos Estados
e ao Distrito Federal instituir: I – Imposto sobre: a) Omissis;
“b) operações relativas à circulação
de mercadorias e sobre prestações de
serviços de transporte interestadual e
intermunicipal e de comunicação, ainda
que as operações e as prestações se
iniciem no exterior; (...) § 2º – O imposto previsto no inc. II atenderá ao seguinte (redação dada pela EC nº 03/93):
I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação
relativa à circulação de mercadorias ou
prestação de serviços com o montante
cobrado nas anteriores pelo mesmo ou
outro Estado ou pelo Distrito Federal;”
Veja-se que as únicas hipóteses de
afastamento da regra ou princípio, ao
contrário do até então sistematizado, a
própria Constituição veicula em seu inc.
II, daí a doutrina afirmar que “o primado da não-cumulatividade é uma determinação constitucional que deve ser
cumprida, assim por aqueles que dela
se beneficiam, como pelos próprios
agentes da Administração Pública” (grifei) (Paulo de Barros Carvalho, “A Regra-Matriz do ICM”, tese de livre-docência, apresentada na Faculdade de Direito da PUC-SP, 1981, apud “ICMS”, Roque Carraza, Malheiros, 1999, p. 197),
sendo no mesmo sentido a preleção de
Roque Antônio Carraza: “Na apuração
do total do ICMS a recolher, compensa-se ‘o que for devido em cada operação
relativa à circulação de mercadorias ou
prestação de serviços com o montante
cobrado nas anteriores pelo mesmo ou
SENTENÇAS
por outro Estado, ou pelo Distrito Federal’ – CF, art. 155, § 2º, I. É evidente que
esta regra só encontra limitações na própria Constituição. Melhor dizendo, não
pode ser restringida nem por lei complementar, nem por lei ordinária, nem por
convênio, nem, muito menos, por ato
administrativo. As restrições à não-cumulatividade do ICMS estão contidas
no art. 155, § 2º, II, a e b da CF...”
(grifos meus) (“Curso de Direito Constitucional Tributário”, Malheiros, 1999,
nota 31, p. 539).
Sacha Calmon Navarro Coêlho: “A
Constituição de 1988 inovou em relação
à de 1967... Na Constituição de 1988
houve mutação profunda, equiparável à
do ISS, que veremos em seguida, quando estudarmos os impostos municipais.
A Constituição não delegou à lei complementar estatuir o perfil da nãocumulatividade; a ela apenas conferiu
o disciplinamento adjetivo do regime de
compensação do ICMS” (grifos meus)
(“Comentários à Constituição de 1988”,
Forense, 1999, p. 405).
Misabel Abreu Machado Derzi: “Diferentemente do que acontece nos países
em geral da Comunidade Européia, onde
o princípio da não-cumulatividade não
vem consagrado em norma da Constituição, no Brasil, as normas fixadas pela
referida Lei Complementar são formais,
visando a disciplinar o regime de compensação do imposto, jamais podendo
configurar redução e amesquinhamento
daquele mesmo princípio” (“Distorções
do Princípio da Não-Cumulatividade no
ICMS – Comparação com o IVA Europeu”, in “Temas de Direito Tributário”,
Belo Horizonte, 1998, p. 144).
Ives Granda da Silva Martins: “À
evidência, no caso das normas constitu-
87
cionais, supratranscritas, salta aos olhos
de qualquer intérprete de mediana cultura jurídica que o princípio da não-cumulatividade opera-se por mecanismos de compensação que, em suas linhas-mestras, estão no próprio texto supremo. Diz, claramente, a Carta Magna
que o que for devido se compensará com
o montante cobrado nas operações anteriores. Tal enunciado não necessita de
explicitação” (grifos meus) (“O Princípio da Não-Cumulatividade para Bens
do Ativo Permanente em Face da Lei
Complementar nº 102/2000”, in “O ICMS
e a Lei Complementar nº 102”, Dialética,
p. 109).
Daí a crítica veemente de Sacha
Calmon e Eduardo Maneira, em comento específico, no sentido de que “a
recente Lei Complementar nº 102, de
11-07-00, que alterou dispositivos da Lei
Complementar nº 87, de 13-09-96, representa uma violação à consciência
nacional, na medida em que põe e dispõe em matéria de não-cumulatividade
do ICMS ‘desconstitucionalizando’ o
princípio, cuja raiz é eminentemente
constitucional” (“Os Retrocessos da Lei
Complementar nº 102, de 11-07-00”, in
“O ICMS e a Lei Complementar nº 102”).
Outrossim, o fato de que, no mesmo
conjunto de enunciados, logo a seguir,
a mesma Constituição confira à lei complementar, dentre outros, o disciplinamento do regime de compensação do
ICMS, o que representaria apenas um
deslocamento tópico, sem alteração do
sistema até então vigente, não merece
prosperar.
Em que pese o âmbito normativo ou
função atribuída pelo sistema constitucional tributário às leis complementares
seja complexo, situando-se dentre os
88
temas que ainda hoje suscita acirrado
debate teórico, envolvendo vários questionamentos, dentre os quais a própria
extensão da normatividade das referidas leis – acerca da qual duas correntes
disputam a prevalência de seus postulados: a dicotômica (Geraldo Ataliba,
“Normas Gerais de Direito Financeiro”,
“RDP” nº 10/45; Paulo de Barros Carvalho, “O Campo Restrito das Normas Gerais de Direito Tributário”, “RT” nº 433/
297; Roque Antônio Carraza, “Curso de
Direito Constitucional Tributário”, Malheiros, 1998, p. 513) e a tricotômica
(Hamilton Dias de Souza, “Normas Gerais
de Direito Tributário”, e José Bushatsky,
“Direito Tributário”, p. 27) –, bem como
que, a par de tal âmbito, o sistema constitucional tributário utilize o mesmo
veículo normativo para outras hipóteses
que seriam tópicas (Sacha Calmon
Navarro Coêlho, “Comentários à Constituição de 1988”, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 64) e que nada tem a ver
com a complementação da Constituição, como é o caso da instituição de
tributos (CF, arts. 148 e 154, I), uma
realidade é inafastável: “No sistema constitucional brasileiro, a lei complementar
tem limites de fundo e limites de forma,
como já sustentara Pontes de Miranda,
com relação ao regime instituído pela
emenda parlamentarista” (José Souto
Maior Borges, “Lei Complementar Tributária”, São Paulo, RT, 1975, p. 54).
Tal preleção, embora escrita no sistema
constitucional anterior, continua plenamente válida.
Decorrendo, como decorrem, no
plano vertical, do exercício da atividade
legislativa plenamente vinculada a rígidos critérios constitucionais de repartição de competências legislativas, não se
SENTENÇAS
pode olvidar que essas leis são puramente complementares das normas constitucionais. Não podem, portanto,
distorcer o sentido do preceito complementado, mudando o sentido da Constituição, posto que isso desbordaria de
sua competência e implicaria verdadeira mutação constitucional por via indireta (José Afonso Silva, apud nota 7, p.
55, in “Lei Complementar Tributária).
De outra vertente, como já afirmado
pelo Min. Moreira Alves: “Constituição
não se interpreta por lei infraconstitucional, mas a lei infraconstitucional é
que se interpreta pela Constituição”,
donde se conclui, com base no mesmo
autor, que quem vai dizer o conteúdo
e extensão da compensação, enquanto
desdobramento do princípio ou regra
da não-cumulatividade, é a interpretação da própria Constituição, e não a lei
infraconstitucional.
Daí que o conteúdo material-ontológico conferido ao disciplinamento da
compensação é, no dizer de Sacha
Calmon, “adjetivo”, situando-se, exemplificativamente, quanto à definição de
períodos de apuração, definição de créditos excluídos, por não estarem afetados às atividades específicas do sujeito
passivo, etc. (“Comentários...”, p. 406).
Nada além.
Colocadas tais premissas, conclui-se
que o conceito normativo do princípio
ou regra da não-cumulatividade, cujos
efeitos jurídicos se encontram na técnica de compensação, é constitucional,
não podendo, sobre ele, dispor a regra
infraconstitucional, cujos limites devem-se circunscrever à forma de compensação, incluindo-se aí as questões de fiscalização e arrecadação tendentes a
evitar dupla dedução, coibição de eva-
SENTENÇAS
são, etc. (“constitui, assim, grave equívoco supor que a Constituição Federal
autorize o legislador infraconstitucional
ou administrador, conforme as conveniências e os interesses arrecadatórios
do Fisco, a estornar, reduzir, amputar
ou reduzir créditos relativos a operações anteriores tributadas. O estorno restringe-se aos créditos relativos a operações de circulação de mercadorias –
não-prestação de serviço –, na hipótese
de isenção ou de não-incidência. ‘Inexiste qualquer exceção na Constituição
para as operações normais, que não
gozam de incentivo’ ”) (Misabel Derzi,
op. cit., p. 146).
Em assim sendo, o que cumpre então definir é – como acima assinalado
–, o conceito constitucional do princípio ou regra da não-cumulatividade e
sua respectiva técnica, a compensação,
definindo estrutura, conteúdo e função.
Nesse sentido, vê-se que a análise do
discurso constitucional, a partir da definição do critério material que qualifica a
repartição de competência – em que pese
parte da doutrina ainda vincada em preconceito advindo de quadra anterior ao
atual texto constitucional –, expressa a
classificação segundo a qual os tributos
são diretos ou indiretos, classificação que
o sistema normativo positivo antes de
rejeitar, acolhe, como decorre, em nível
normativo infraconstitucional, do enunciado do art. 166 do CTN.
Nessa senda é que, igualmente, em
nível constitucional, vislumbro o referido princípio ou regra, que é reconhecido, em outras palavras, pela doutrina:
“A não-cumulatividade, por sua vez,
pressupõe uma ‘repercussão jurídica do
tributo’, por meio da qual o imposto
não deve ser suportado pelo contribuin-
89
te (apenas pelo consumidor)” (Misabel
Derzi, op. cit., p. 109), daí se lhe atribuindo o epíteto de “imposto de mercado”, com característica de “neutralidade” que não deve distorcer a formação
dos preços nem a livre concorrência.
Tal princípio ou regra – prossegue
a mesma doutrina – não autoriza que o
ICMS onere o contribuinte de iure. Ao
contrário, por meio do princípio da não-cumulatividade, garante-se que o contribuinte, nas operações de venda que
promova, “transfira” ao adquirente o
ônus do imposto que adiantará ao Estado e, ao mesmo tempo, possa ele
“creditar-se” do imposto que suportou
nas operações anteriores.
Nesse lineamento, se de um lado
ressalta que se o contribuinte (comerciante, industrial e produtor) não deve
suportar qualquer parcela do ICMS relativo às operações anteriores, para que
os produtos cheguem ao seus destinatários – os consumidores – de forma
“neutra”, de outro, resulta que os referidos contribuintes, em determinadas
hipóteses, como é o caso de operações
de aquisição de bens de uso e consumo, não agem como elos da cadeia
plurifásica, mas, sim, como consumidores finais, devendo, portanto, suportar
os ônus econômicos do imposto. E tal
assertiva não resguarda qualquer resquício de divisão de crédito em financeiro ou físico. Apenas afirma que o
imposto relativo a tais operações não
geram créditos compensáveis. Ponto.
Não há razoabilidade alguma em
que a sociedade, como um todo, na
face reversa do princípio da indisponibilidade dos bens públicos, arque com
ônus, como por exemplo, de café e
medicamentos – que foram listados pela
90
parte-impetrante (fl. 11) – que não
guardam qualquer relação com a
atividade-fim da empresa. Nesse caso,
há relação de consumo tanto quanto as
demais.
E ainda que possa a mesma empresa restar por embutir no preço dos seus
produtos, enquanto custo operacional,
o crédito não-admitido, tal possibilidade não altera, nem contorna o princípio
ou regra, posto que tal repercussão
econômica não estará inserida a título
de tributação, o que poderá ser plenamente identificado na medida do cumprimento do princípio da transparência
da tributação disposto no enunciado
constante do art. 150, § 5º, da CF.
Desse modo, concluo que, em relação a tais créditos, decorrentes de aquisição de bens e consumo, a única inconstitucionalidade existente é que os
admite, a contar de 1º-01-03, devendo,
portanto, nesse aspecto, ser denegada a
segurança. Vale notar que, em relação
a tal natureza de bens, sequer é alcançado pelo princípio da anterioridade,
dado que resulta de alteração efetivada
pela Lei Complementar nº 99/99, de
21-12-99, como bem lembrado pela
digna autoridade coatora.
No que se refere aos bens do ativo
permanente, à exceção da previsão de
cancelamento do crédito, ao final do
48º mês, previsto no art. 20, § 5º, inc.
VII, da Lei Complementar nº 102/2000,
a única inconstitucionalidade existente
é a da exigência sem submissão do
princípio da anterioridade.
Com efeito, em face ao princípio ou
regra da não-cumulatividade, a amortização não elimina a existência do crédito, apenas parcela a dedução possível
quanto ao ICMS devido no período. Por
SENTENÇAS
tal técnica de fracionamento acumula-se
o crédito, sem negá-lo, adequando-se
um crédito, que, na verdade, é diferenciado, erigindo-se à estrutural – que
decorre de investimentos em aquisição
e modernização dos ativos – e que se
refletirá, economicamente, ao longo de
determinado período, até que se refaça
o investimento, de sorte que o crédito
é incorporado na cadeia plurifásica ao
longo de determinado período de tempo, que, desde que não negue qualquer
parcela do crédito, é possível de ser
adotado como formalização da compensação.
Nesse sentido, a lei complementar
está atuando ontologicamente no âmbito que lhe é conferido pelo sistema
constitucional, disciplinando, pois, a
forma de operacionalização da compensação, e o fez com razoabilidade, não
descaraterizando os créditos em período que os tornassem virtuais, à exceção, como se disse, da parte final, que
se refere ao cancelamento de saldo, este,
sim, inconstitucional, pois obrando
materialmente fora do âmbito de sua
competência. De outro lado, não vinga
a pretensão da inobservância do princípio da legalidade tributária, pois que
careceria a lei complementar de eficácia
decorrente da ausência de lei ordinária
estadual.
Nessa seara, clássica a lição de José
Souto Maior Borges que divisou, quanto
à eficácia das leis complementares, dois
grupos básicos: (I) as que fundamentam
a validade de atos normativos (leis ordinárias, decretos legislativos, convênios); e (II) as que não fundamentam a
validade de outros atos normativos,
preleção que, a despeito de ter sido
efetivada sob a égide da Constituição
SENTENÇAS
anterior, permanece, em suas linhas
gerais, plenamente válida (“Lei Complementar Tributária”, pp. 52 e ss). Nesse
esteio, somente as primeiras careceriam
da referida integração.
Interessante notar, nesse sentido, que
o referido autor incluía a questão da
realização da regra da não-cumulatividade, pela técnica da compensação ou
abatimento, dentre o primeiro grupo,
consoante se vê nas fls. 85/86 da sua
obra, o que, no entanto, pelas mesmas
lições, não pode ser mantida no atual
sistema. Com efeito, em linha de coerência com o sustentado para efeitos do
reconhecimento do conceito constitucional da não-cumulatividade, vê-se que,
ao contrário dos sistemas constitucionais anteriores, o atual, ao dispor sobre
o âmbito de competência da lei complementar acerca do ICMS, não delegou, antes demarcou materialmente, ontologicamente, em vários itens, um a
um, o que deveria ser disciplinado em
termos de normas gerais, conferindo-lhe um dos critérios de identificação da
condição de lei nacional, que refuta
dupla regulação.
Sendo, ademais, concorrente a competência legislativa da União, enquanto
ente legislativo nacional, e dos Estados,
relativamente a Direito Tributário (CF,
art. 24, I), inexiste hierarquia entre as
esferas de competência, de molde que
a produção normativa dos Estados não
se subordina à da União, cujo único
efeito será o de suspender a eficácia de
lei estadual, no que for contrário (CF,
art. 24, §§ 2º e 4º).
Por fim, no tocante aos créditos
decorrentes de entrada de energia elétrica e utilização de serviços de telecomunicações, penso, no entanto, que a
91
Lei Complementar nº 102/2000, ao restringir o crédito em seu critério temporal, para 2003, em relação aos contribuintes fora das exceções que traça, viola
os princípios da não-cumulatividade e o
da anterioridade.
Tirando raríssimas exceções, que
apenas confirmam a regra, a energia
elétrica e o serviço de telecomunicações
representam, sem qualquer resquício de
dúvida, elementos essenciais à atividade
industrial, comercial ou produtiva, no que
representa na cadeia plurifásica já referida, cujo único limite possível só poderá decorrer de eventual afastamento que,
“faticamente”, se faça de tal cadeia, como
por exemplo, “o uso privado”, em desvio às finalidades próprias do contribuinte. Fora tal perspectiva, o ICMS pago na
operação anterior, se não gerar crédito
ao industrial, comerciante e produtor, por
certo representará acréscimo ou aumento de preço, quebrando a neutralidade
que lhe é própria, com todas as conseqüências de distorção na formação dos
preços, livre concorrência, etc., que o
princípio ou regra da não-cumulatividade
visa a evitar.
Outrossim, decorrendo, como de fato
decorre, aumento da carga tributária, em
face à não-possibilidade de creditamento, vigente no mesmo ano da sua restrição, viola tal norma o princípio da
anterioridade (CF, art. 150, III, b), que,
ao contrário do sustentado pela digna
autoridade coatora, não se restringe a
elementos do critério quantitativo (base
de cálculo e alíquota), mas abrange o
sistema de compensação, posto que o
princípio não se limita aos aspectos da
estrutura lógico-formal do imposto, mas,
sim, encerra um valor, próprio dos princípios, e que, no caso em tela, enfatiza
92
a proteção do contribuinte contra a
“surpresa” de alterações tributárias ao
longo do exercício e que resta por afetar o planejamento das atividades empresariais (Luciano Amaro, “Direito Tributário Brasileiro”, São Paulo, 1999, p.
120).
Este, pois, o conteúdo axiológico do
princípio, inserido dentre o rol das
garantias dos contribuintes, que não
pode, como acima já se alinhou, ser
interpretado a partir do ângulo de visão
do CTN, norma infraconstitucional que
é, como proposto. Desta forma, o “paralelo do parafuso” não se ajusta, posto
que o sistema normativo não prevê um
princípio que limite a eficácia legal da
supressão das isenções, exemplo ademais, que antes confirma o que aqui se
aduz, posto que a isenção, como sabido, pode operar em qualquer dos critérios lógico-formais da regra-matriz dos
tributos, e não apenas base de cálculo
ou alíquota (Paulo de Barros Carvalho,
“Curso de Direito Tributário”, São Paulo, 1999, pp. 446 e ss.).
Sob a mesma ótica, calha notar que
referido princípio, no âmbito tributário,
segundo sinto, expressa o que parte da
doutrina alça a “sobre princípio” no sentido de que rege toda e qualquer porção
da ordem jurídica, que é o “princípio da
certeza jurídica”, na conotação de “previsibilidade” de tal modo que os destinatários dos comandos jurídicos hão de
poder organizar suas condutas na conformidade dos teores normativos existentes, que, inclusive, interpenetra não
menor princípio, que é o da “segurança
SENTENÇAS
jurídica” (op. cit., pp. 145/146), ainda que
restrito ao ano de vigência da instituição
do aumento da carga tributária.
DECISÃO
Concedo, parcialmente, a ordem para
reconhecer à parte-impetrante o direito
de: (I) crédito de ICMS relativamente às
operações de entrada de energia elétrica e de serviços de comunicação, efetuadas pelas filiais da mesma elencadas
na inicial; (II) de crédito relativamente
a eventual saldo de crédito existente ao
final do 48º mês de entrada de bens
destinados ao ativo permanente das filiais da empresa-impetrante, elencadas
na inicial; (III) suspender a exigibilidade de crédito tributário relativamente ao
creditamento decorrente da entrada de
bens para o ativo fixo das filiais da
empresa-autora, até 31-12-00; e conseqüentemente (IV) determinar a abstenção da autoridade-coatora de praticar
atos contrários à presente norma individual e concreta, objeto da presente
decisão.
Revogo, parcialmente, a liminar,
relativamente aos créditos decorrentes
das entradas de bens de uso e consumo. Decorrido o prazo recursal, sem
apresentação de recurso voluntário, remetam-se os presentes autos ao Egrégio
Tribunal de Justiça aos efeitos do art.
475, II, do CPC.
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 22 de novembro de
2000.
Cláudio Luís Martinewski, Juiz de
Direito.
93
Processo nº 103683026/33872
Autora: B. S. P.
Réu: G. C. P.
Juiz prolator: Diógenes V. Hassan Ribeiro
Separação e culpa. O exame da culpa, ou do responsável pela separação,
deve ser perquirido somente em situações verdadeiramente excepcionais, cabendo, em regra, não ser questionado
nas ações de separação. O princípio da
ruptura substitui o princípio da culpa.
O exame da necessidade é que importa
para o fito de haver condenação, entre
os separandos, a alimentos.
Vistos, etc.
Trata-se de ação de separação judicial cumulada com guarda de filhos e
alimentos entre as partes acima
nominadas, qualificadas nos autos.
Sustentou a autora ser casada com o
réu desde 04-12-82, pelo regime da
comunhão universal de bens, tendo
nascido três filhos, A., em 1984, A., em
1985, e G., em 1987.
Narrou que o casal conviveu em harmonia por quase 16 anos, mas, a partir
de 1998, tendo o réu se encantado por
outra mulher, iniciando um relacionamento extraconjugal com uma ex-colega de trabalho, C. D. A., deu motivo a
uma série de desentendimentos até
culminar com o seu afastamento do lar.
Assim, por infração ao dever de fidelidade e de coabitação, violou os deveres
do casamento, tornando insuportável a
vida em comum.
Os filhos encontram-se com a autora, desde a separação, devendo ficar
sob a sua guarda.
Requereu a regulamentação da visita. Mencionou dispensar alimentos a si
própria, temporariamente, diante de
auferir renda bruta de R$ 1.600,00. O
réu, recebendo entre R$ 4.000,00 e R$
5.000,00 brutos, deveria pagar alimentos da ordem de doze salários mínimos,
pois já vinha contribuindo com a quantia mensal de R$ 1.300,00. Relacionou
as despesas dos filhos, que atingiam a
cifra de R$ 1.798,50, mencionando a
existência de outras despesas. Dizendo
que havia bens a serem partilhados
oportunamente, postulou a procedência
da ação, com a decretação da separação, a fixação dos alimentos, da guarda
e das visitas. Juntou documentos.
Fixados alimentos provisórios em
30% da remuneração líquida do réu (fl.
79), foi designada audiência de tentativa conciliatória, sem êxito, ocasião em
que a autora juntou outros documentos.
Em contestação, admitiu estarem corretos os fatos elencados nos itens 1 a 4.
Os demais fatos, entretanto, não
corresponderiam à realidade. Disse ter-se afastado da residência do casal em
novembro de 1998, diante da deterioração do relacionamento, em razão das
viagens profissionais que realizava.
Evitando que os filhos presenciassem discussões, optou por retirar-se do
lar, mas sempre manteve todo o apoio
moral e financeiro aos filhos. O seu
relacionamento com C. D. A. é posterior à separação.
94
Não se opõe ao pedido de guarda
dos filhos pela autora. Concordou, ainda, com a proposta de visitação da
inicial. Insurge-se, contudo, com relação ao pensionamento postulado, pois
a residência do casal permaneceu com
a autora e os filhos e ele, réu, teve de
alugar apartamento para residir, pagando, de aluguel e de condomínio, o valor
de R$ 670,00, possuindo outras despesas. Impugnou o pedido do item 28 da
inicial. Pediu a manutenção do pensionamento provisório fixado, de 30%, e
concordou com a partilha posterior.
Juntou documentos. Houve réplica.
Realizada a instrução, o debate foi convertido em memoriais escritos.
No parecer ministerial, o Dr. Promotor de Justiça opinou pela procedência
da ação, com a consideração de ser o
réu o culpado pela separação, assim
como a fixação de pensão em 40% da
renda do réu. É o relatório.
Estão incontroversos os aspectos da
guarda dos filhos, pedida pela mãe,
com a qual concordou o pai, da visitação, pois a proposta feita na inicial foi
aceita na contestação, da existência de
bens do casal, que serão partilhados
oportunamente, bem assim da própria
separação, pois há consenso de ambas
as partes com relação à dissolução da
sociedade conjugal.
A controvérsia está no que concerne
à culpa pela separação e no valor dos
alimentos. A autora imputou a culpa
pelo término do casamento à conduta
infiel do réu e ao fato de ele ter abandonado o lar. Postulou, outrossim, alimentos, para os filhos, dispensando para
si, temporariamente, da ordem de doze
salários mínimos, enquanto que o réu
SENTENÇAS
concordou em pagar alimentos no valor
equivalente a 30% da sua renda líquida,
excluindo-se a incidência da pensão
sobre a parcela do FGTS, eis indenizatória em caso de rescisão do contrato
de trabalho.
O exame da culpa. Discutir a culpa,
na separação, é um tema que deve ser
abandonado. Já existem inúmeros textos de doutrina que preconizam a dispensa desse exame. Perquirir da culpa
significa buscar saber mais do que simplesmente verificar o que está aparente
no casamento. Existem razões psicológicas, inconscientes, que decretam a
falência do casamento, antes de os
cônjuges perceberem esse fato.
Examinar a culpa na separação é
algo abominável, verdadeiramente absurdo, somente existente em legislações
ultrapassadas, que por isso mesmo não
acompanham a evolução da sociedade.
Ora, se dois seres se unem porque
têm vontade de conviverem, seja pelo
casamento formal, seja pela união estável, apenas têm em conta nesse momento a disposição afetiva e o intento
de construção da realidade conforme os
sonhos, quiçá arquitetados desde a infância: realizar-se na vida, tendo uma
família. Esses os pressupostos do casamento, a vontade e o afeto.
A abominação da culpa, como regra,
revela-se no ponto de que é instituto
que tem a finalidade de impor uma
vindita, uma pena, ao outro. Mostra-se,
assim, a fragilidade dessa instituição
“culpa” na separação.
Se um casamento durou dois meses,
um ano, cinco anos, dez anos, ou vinte
anos, certamente esse tempo não foi de
tristezas, mas, sim, em sua maior parte,
SENTENÇAS
de alegrias e de satisfações. Os filhos,
o patrimônio, o tempo convivido, as
viagens, o lazer, as brincadeiras, o prazer, tudo isso e mais são esquecidos. O
que importa é a satisfação da vingança.
Dessa forma, embora superado o casamento, o litígio descamba para muita
mágoa e, então, os ex-cônjuges não são
felizes, nem para si próprios, nem para
os outros. Não são felizes com os filhos,
nem com os outros seus. Apenas guardam mágoas, ressentimentos, porque
aquele contrato do casamento foi, aparentemente, violado pelo outro. E o
cônjuge que procura no outro o culpado pela derrocada do casamento envelhece, frustrado, odiando, quiçá doente,
senão nos seus órgãos, ao menos da
alma. Não conseguirá ser feliz com outro
ser, porque está amargurado.
Para saber quem é o cônjuge culpado impor-se-ia o exame da consciência
e, especialmente, o exame da inconsciência, o que somente poderia ser realizado com uma prova pericial, cansativa e demorada, na área da psicanálise
e na área da psicologia. Fosse esse o
caso, até haveria algum proveito, pois
os separandos aproveitariam e fariam,
quem sabe, uma terapia e, talvez, até
não se separassem.
Nesses termos coloca o tema da culpa
a eminente Desembargadora Maria Berenice Dias: “Vincular a separação ao rígido
pressuposto da identificação de um responsável da identificação de um responsável justificava-se no sistema originário
do Código Civil, que consagrava a
insolubilidade do vínculo matrimonial, que
sequer o desquite desfazia, e mesmo assim
só era admitido ante a comprovação de
causas taxativamente previstas na lei.
95
Após a consagração do divórcio, é
de se reconhecer a dispensabilidade da
imputação de culpa pelo rompimento
do vínculo afetivo. Mas cada vez mais
vêm a doutrina e a jurisprudência –
atentando na realidade social e muito à
frente da estática legislação – desprezando a perquirição da culpa para
chancelar o pedido de separação, como
já tive a oportunidade de sustentar em
sede doutrinária e em vários julgamentos, no sentido de que basta um dos
cônjuges ter por insuportável a vida em
comum para dar ensejo ao rompimento
do casamento, sendo despicienda a comprovação da culpa de qualquer deles pelo
fim do vínculo afetivo. Essa postura
acabou prevalecendo ao menos no Tribunal gaúcho, que abandonou a vã
tentativa de punir alguém, passando a
considerar dispensável a perquirição da
culpa, sempre de difícil comprovação,
uma vez que a separação de fato já
revela a falência da arquitetura conjugal, não sendo preciso avançar em outra motivação, pois traduz a ruptura do
afeto e do amor.
Como assevera Luiz Edson Fachin,
‘não tem mais sentido averiguar a culpa
como motivação de ordem íntima, psíquica. Objetivamente é possível inferir
certas condutas, não raro atribuídas, de
modo preconceituoso, mais à mulher que
ao homem. A conduta, porém, pode ser
apenas sintoma do fim’’.
“Basta a simples manifestação de vontade de um para ensejar o término do
casamento, sem a necessidade de imputar ao outro a responsabilidade pelo fim
do amor, e nem mesmo para fins alimentares se mantém a necessidade de
perquirição da culpa. Não é pressuposto
96
para sua concessão a ‘inocência’ do par,
bastando comprovar a necessidade de
um de perceber e a possibilidade do
outro de alcançar-lhe alimentos, como
forma de preservação da dignidade da
pessoa humana, mesmo que esta pessoa
não tenha sido digna na sua relação
interpessoal” (Maria Berenice Dias, “Casamento: Nem Direitos nem Deveres,
só Afeto”, Porto Alegre: “Revista da
AJURIS”, 2000, nº 80/207-208) (grifos
da autora).
A mesma linha de raciocínio é desenvolvida pelo eminente Desembargador, aposentado, Breno Moreira
Mussi: “A dinâmica da vida pode reservar a frustração do empreendimento. Muitas vezes, a realização pretendida passa a ser angústia, infelicidade,
sofrimento. O amor involui, em face
das mais variadas circunstâncias. Destrói os sonhos.
“O amor transforma-se em desamor,
sem apego a qualquer regra. Raramente
de apenas um golpe. O mais comum é
o somatório de pequenos detalhes,
isoladamento incapazes de representar
algo.
“Em outros tempos, era comum a
manutenção de casamentos e uniões falidos, íntegros na fachada, mas vazios
de conteúdo. Mantinha-se o inexistente... Ainda hoje acontece.
“A lei ajuda tal procedimento, ao
insistir no princípio da culpa, pelo qual
são infligidas sanções ao descumpridor
da obrigação, onde o aspecto subjetivo
tem especial relevo, em face da volição
que motivou a falta de atendimento aos
deveres” (Breno Moreira Mussi, “Destruindo aquele que se Ama – Nova
Realidade do Direito de Família”, org.
SENTENÇAS
por Sergio Couto, Rio de Janeiro: COAD:
SC Editoria Jurídica, 1998, p. 24).
É do mesmo entendimento Rodrigo
da Cunha Pereira, nesses termos: “Os
ordenamentos jurídicos contemporâneos apresentam uma tendência de
substituição do princípio da culpa pelo
princípio da ruptura, embora em grande parte dos países do sistema romano-germânico coexistam ainda esses dois
princípios.
“Com a evolução do conhecimento,
as transformações da família, e a revelação por Freud da existência do sujeito
inconsciente, as motivações do desenlace conjugal não podem mais ser consideradas apenas na objetividade enumerada pelos textos normativos.
“Assim, não podemos ficar estacionados nas concepções dos ordenamentos
jurídicos germano-românicos, cuja
codificação é tradução de concepções
filosóficas e m o r a i s j á u l t r a p a s s a d a s . E s ã o e x a t a mente essas concepções que autorizam a permanência
desses princípios.
“Para que nos aproximemos do ideal
de Justiça, de liberdade e libertação dos
sujeitos, acertando o passo com a
contemporaneidade, faz-se mister repensar e redirecionar o estigmatizante princípio da culpa em nosso ordenamento
jurídico, para estancá-lo como já o fez a
Alemanha” (Rodrigo da Cunha Pereira,
“A culpa no Desenlace Conjugal”, “Direito de Família – Aspectos Constitucionais,
Civis e Processuais”, 1999, Coordenação
Teresa Arruda Alvim Wambier e Eduardo de Oliveira Leite, São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1999, 4/338).
Dessarte, a correta e atual interpretação do art. 19 da Lei do Divórcio, é
SENTENÇAS
de que somente cabe o exame em circunstâncias excepcionais, pois os alimentos somente são devidos pelo dito
“cônjuge responsável” se o outro cônjuge deles necessitar. No caso dos autos, não há necessidade de alimentos
pela autora, que tem uma renda líquida
entre R$ 1.500,00 e R$ 1.600,00, razão
pela qual descabe examinar a culpa.
Não bastasse isso, a autora não conseguiu trazer aos autos elementos probatórios convincentes de que a responsabilidade pela ruptura é do réu. Veja-se, a respeito, o significativo depoimento pessoal dele: “Desgaste é quando termina o amor, acaba o encantamento com a pessoa. Nesse casamento,
eu nunca fui olhado como uma pessoa
boa, eu nunca fui admirado por ninguém. Esse sentimento, a minha ex-esposa conseguiu passar para os meus
filhos. Hoje eu tenho problemas graves
de relacionamento com os meus filhos,
porque eles têm a mesma idéia que a
mãe tinha de mim... Nada do que eu
queria fazer, se fazia. Só tinha uma
maneira de eu não me incomodar: fazer
as coisas que ela gostava que eu fizesse, aí eu não me incomodava. Cada vez
que eu tinha que contrapor alguma coisa,
eu sempre era tido como uma pessoa
que não sabia de nada, nunca sabe
nada... Exacerbou depois. Antes eu tinha problema com o meu filho mais
velho, muita disputa pelo poder da casa,
com as meninas eu tinha um relacionamento melhor” (fls. 245-246).
Então, a par de a autora não ter
conseguido demonstrar o alegado adultério, pois a respeito não há qualquer
elemento nos autos, além das suas alegações, há essa versão do réu, que
97
parece estar mais em acordo com a
verdade, porque é o que normalmente
ocorre no seio de uma família, em que
um cônjuge desfruta de uma posição
superior em relação ao outro. Como o
réu viajava muito, em razão das suas
atividades profissionais, representante
comercial da área de medicamentos, a
autora passou a desfrutar de uma posição privilegiada no comando da casa.
Outrossim, também em razão dos
afastamentos profissionais do réu, o filho mais velho passou a disputar com
o pai a hegemonia sobre a residência.
Assim, sem que as partes percebessem, nem os filhos, porque não racionalizaram as dificuldades vividas, no
sentido de poderem resolvê-las sem
maiores conseqüências, o casamento
descambou para a insatisfação diária e,
daí, para a sua falência, tudo é uma
questão de tempo.
Dessarte, desnecessário revela-se
buscar saber qual é o cônjuge responsável pela separação, no caso dos autos. Mas, feito tal exame, com base nas
provas produzidas, não há elementos
nos autos que indiquem qual dos cônjuges deve ser considerado o culpado.
Portanto, ocorrendo a ruptura do casamento, com o afastamento da residência do casal pelo réu, não se podendo, só por isso, atribuir a ele a responsabilidade pela separação, pois o afastamento se deveu ao fato de ele querer
evitar os desgastes decorrentes, especialmente aos filhos, de acolher a separação tendo em conta simples ruptura
do casamento, pelo afastamento dos
cônjuges, especialmente tendo em conta ser do interesse de ambos a separação.
98
O exame dos alimentos. Os alimentos aos filhos estão bem postos, pois
fixados em 30% da renda líquida do
réu, para os três filhos, notando-se que
a autora e os filhos prosseguiram residindo na residência do casal, enquanto
que o réu teve de mudar-se e paga
aluguéis. Assim, além do percentual fixado de pensão, há pensão dita in
natura pelo fato de a autora e os filhos
residirem no imóvel do casal, sendo que,
50% dele pertence ao réu.
Não se pode, então, aumentar o pensionamento para percentual superior,
pois o fato de o réu ter saído da residência do casal representou uma redução das despesas domésticas, mas acrescentou a ele outras despesas com a
busca de um novo local para residir,
além das outras despesas normais.
Desse modo, até a concretização da
partilha, ulterior como querem as partes,
de considerar-se que a ocupação da residência do casal com exclusividade pela
autora e pelos filhos é pensão in natura.
Todavia, com relação à exclusão do
FGTS da incidência do percentual alimentar, é de deferir-se, pois se trata de
verba indenizatória trabalhista, sobre a
qual não cabe a incidência de pensão.
Tocante aos ônus sucumbenciais, a
iniciativa da ação foi da autora, era imprescindível e houve a procedência do
pedido de alimentos e do pedido de
separação. Por tais razões, deve ser
SENTENÇAS
suportada com exclusividade pelo réu,
independentemente, repito, do exame
de culpa ou de responsabilidade pela
separação.
Isso posto, julgo procedente a ação
ajuizada e decreto a separação das partes
e dissolvo a sociedade conjugal, pela
ruptura do casamento. Condeno o réu
a pagar alimentos aos filhos no valor
equivalente a 30% sobre o total da
remuneração líquida do requerido, considerados como descontos apenas os
obrigatórios de imposto de renda e
previdência oficial, incidente sobre o
13º, gratificação de férias e eventuais
verbas rescisórias, excluído o FGTS, que
deverão continuar sendo descontados
em folha de pagamento e creditados na
conta da autora.
A visitação aos filhos fica como
exposto na inicial e na contestação.
Condeno o réu nas custas processuais
e nos honorários advocatícios dos patronos
da autora, estes no equivalente a oito
URHs (OAB/RS), atento ao trabalho
desenvolvido, inclusive considerando
que houve audiência de instrução, com
coleta de prova oral.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Transitada em julgado, expeça-se
mandado e baixem-se, nada sendo requerido.
Porto Alegre, 05 de junho de 2001.
Diógenes V. Hassan Ribeiro, Juiz de
Direito.
99
Ação Socioeducativa nº 1.382 – Juizado Regional da Infância e da Juventude
da Comarca de Osório
Autor: Ministério Público
Réu: Adolescente S. R. B.
Juiz prolator: Gilberto Pinto Fontoura
Medida socioeducativa descumprida.
Aplicação de outra medida, de grau mais
elevado, obedecendo ao princípio de
ressocialização.
Vistos, etc.
O Ministério Público ofereceu representação contra o adolescente S. R. B.,
de 17 anos de idade, brasileiro, solteiro,
filho de M. D. B. e de S. R. B., residente
e domiciliado na Rua M. J. M., nesta
cidade de Osório, pelo ato infracional
de desobediência (art. 330 do CP), por
deixar de cumprir medida protetiva consistente em obrigatoriedade de freqüência escolar.
Destaca a representação que, em
razão da prática de ato infracional, obteve remissão mediante condição de
medida socioeducativa de advertência e
protetiva de obrigatoriedade de freqüentar a escola, devidamente aceita e homologada pelo juízo, deixando, no entanto,
de freqüentar as aulas, daí a figura típica
do ato infracional de desobediência.
Recebida a representação, foi ouvido,
ocasião em que admitiu ter cursado até
a 5ª série do ensino fundamental, iniciado a 6ª série mas interrompido os estudos em 1999, pois precisava trabalhar.
Referiu que não estava trabalhando e
pretendia cursar o supletivo (fl. 51).
Designado o Defensor Público,
aportou a defesa prévia (fl. 53). Com
regular instrução, ouviu-se as testemu-
nhas arroladas (fls. 56/57 e 64). O debate
da prova se deu através de alegações
escritas, tendo o Ministério Público
postulado a procedência da representação com a conseqüente aplicação de
medida socioeducativa de liberdade
assistida. Por seu turno, o Defensor
posicionou-se pela improcedência, por
não ter o adolescente se negado a estudar, tanto que demonstrou intenção
de cursar o supletivo e que precisava
trabalhar para sobreviver. Relatei.
DECIDO
Enquadrar a conduta (omissão) do
adolescente como ato infracional de desobediência pelo descumprimento de
medida protetiva consistente em obrigatoriedade de freqüência escolar é questão muito controvertida. No caso em
exame, a aplicação da medida protetiva
decorreu de prática de outro ato infracional que resultou em remissão concedida pelo Ministério Público, com apoio
no art. 126 do ECA, aceita pelo adolescente e devidamente homologada pelo
Judiciário na forma do art. 181 do mesmo
Estatuto, conforme se vê pelos documentos das fls. 05 e 22.
Note-se que, em fase de controle do
cumprimento da medida protetiva, tendo aportado notícia do descumprimento (fl. 27), foi advertido para as conseqüências, quando comprometeu-se, novamente, retornar para a escola (fl. 31).
100
Em que pese o comprometimento de S.,
evadiu-se da escola (fls. 43 e 45), resultando, então, na representação pela
desobediência.
Ressaltei que a questão é controvertida, pois, de regra, a medida protetiva
decorre de situação de risco (art. 98 do
ECA), que independe de ato infracional,
e, nesse caso, seria demasiado entender
que o não-atendimento da proteção –
por quem já está em situação periclitante
– poderia acarretar-lhe imposição, agora, de medida socioeducativa – já que
esta sim pressupõe ato infracional.
Mesmo assim, na hipótese em julgamento, é necessário compreender que
o ato infracional imputado a S. decorreu
de sua relutância em cumprir a ordem
legalmente emanada – qual seja, a de
voltar aos bancos escolares.
Gize-se que a Doutrina da Proteção
Integral, que estabeleceu prioridade absoluta para as crianças e adolescentes,
assegurando direitos, mas também por
evidente, impôs obrigações, dentre outras, tem o Estado/Sociedade de prover
meios à educação (arts. 4º, 53 e 54 do
ECA). Por sua vez, os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular
seus filhos na rede regular de ensino,
com o que forçoso concluir não estar
ao livre-arbítrio do adolescente e da
família, pelo menos no que concerne
ao ensino fundamental, estudar ou não.
É obrigação. O ensino fundamental é
obrigatório, nos termos da CF, art. 208,
e para que tal seja possível, isto é, para
que não se alegue falta de recursos
financeiros, a mesma Carta Política
obrigou aplicação de significativa parcela do orçamento na educação (art.
212).
SENTENÇAS
No mesmo rumo vai toda política de
educação, disciplinada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei
nº 9.394/96, que traça como princípios o
dever da família e do Estado para o
preparo e exercício da cidadania e sua
qualificação ao trabalho (art. 2º). A mesma
Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
em seus arts. 5º e 6º, bem aponta para
a obrigatoriedade de freqüência escolar,
in verbis: “Art. 5º – O acesso ao ensino
fundamental é direito público subjetivo,
podendo qualquer cidadão, grupo de
cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou
outra legalmente constituída, e, ainda, o
Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo”.
“Art. 6º – É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos 07 anos de idade, no
ensino fundamental.”
Indiscutível, pois, se é dever do Poder
Público oferecer condições para educação do povo, por certo decorre a obrigação da criança até adolescente freqüentar
a escola. Desse modo, a partir dos 07
anos, e enquanto adolescente, 18 anos,
certa a obrigação de freqüência escolar
no ensino fundamental. Por tudo, merece
ser julgada procedente a representação.
Face ao exposto, julgo procedente a
representação, para aplicar a S. R. B. a
medida socioeducativa de liberdade
assistida, por ter infringido o art. 330 do
CP, de modo que nesse programa possa
repensar sua conduta e portar-se em
conformidade com o Direito.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Osório, 19 de abril de 2001.
Gilberto Pinto Fontoura, Juiz de Direito.
101
Processo nº 29149 – Ação Ordinária de Indenização
1ª Vara Cível
Autora: Derotilda Maria Vasconcellos Ribeiro
Réu: Município de Guaíba
Juiz prolator: Gilberto Schäfer
Responsabilidade civil do Município
por “valeta” aberta em via pública. Sentença procedente.
Vistos.
Derotilda Maria Vasconcellos Ribeiro move ação ordinária de indenização
contra Município de Guaíba. Informa a
autora que no dia 11-12-94 faleceu seu
filho João Batista Vasconcellos Ribeiro
em decorrência de uma pneumonia
lombar com insuficiência respiratória
resultante de um acidente.
Relata que no dia 03-12-94 a vítima
pilotava sua motocicleta pela Av.
Lupicínio Rodrigues em direção à Av.
Recife, por volta da 01h, quando projetou-se para dentro de uma valeta
destinada ao escoamento de esgoto
pluvial. Ressalta a inexistência, na época, de iluminação pública adequada e
sinalizadores no término da avenida,
bem como da existência da referida vala,
caracterizando o descaso da Administração Direta. Informa, ainda, já ter ocorrido outros acidentes no local.
A vítima conforme inicial e documentos juntados recebia R$ 200,00
mensais além de R$ 150,00 relativos a
“bicos” que executava, dos quais ajudava nas despesas do lar, bem como
na assistência à autora, que é pessoa
idosa e com problemas de saúde. Com
seu falecimento, ficou a mesma desamparada.
Requer a procedência da ação com
conseqüente reconhecimento da responsabilidade da requerida com ressarcimento dos gastos hospitalares e funerário e condenação ao pagamento de
danos morais orçados em R$ 250.000,00,
prestação alimentícia no valor de 03
salários mínimos, além de honorários
advocatícios em razão de 20%. Pediu
assistência judiciária gratuita. Junta procuração (fl. 08), documentos (fls. 09/13
e 17/26) e fotografias (fls. 14/16).
Citada, a parte requerida contestou,
alegando que a vítima obrou com imperícia e imprudência aliada a alta velocidade desenvolvida. Aduz que não
houve comprovação da habilitação do
condutor e que a passagem existe há
mais de 25 anos e que é bem iluminada
e sinalizada.
Impugna os documentos juntados e
os valores requeridos a título de pensão
alimentícia e dano moral, bem como o
pedido de ressarcimento das despesas
hospitalares por falta de comprovação
no feito. Junta procuração à fl. 34 e
comunicação de ocorrência (fl. 35).
Houve réplica (fls. 45/45) e juntada
da habilitação do condutor à fl. 46. Com
vista o Ministério Público opinou pela
não-intervenção (fls. 48/49). Designada
audiência de conciliação, resultou
inexitosa. Naquela ocasião, foi deferida
a perícia no local do fato. Juntados os
quesitos, foi designada audiência para
102
oitiva da requerente. Apresentado o
laudo pericial, concluiu como causa a
falha humana.
Na audiência de instrução, houve
inspeção judicial e colheita da prova
oral. Declarada encerrada a instrução.
Formatados os debates. Vieram conclusos. Relatei.
DECIDO
Responsabilidade objetiva. Antes de
mais nada, cumpre salientar que é caso
de aplicação da responsabilidade objetiva, na forma do disposto no art. 37, §
6º, da CF/88: “As pessoas jurídicas de
direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes,
nessa qualidade causarem a terceiros,
assegurado o direito de regresso contra
o responsável nos casos de dolo ou
culpa”.
“O dano sofrido pelo indivíduo, a
responsabilidade objetiva, deve ser
visualizado como conseqüência do funcionamento do serviço público, não
importando se esse funcionamento foi
bom ou mau. Importa, sim, a relação de
causalidade entre o dano e o ato do
agente público” (Carlos Mário da Silva
Velloso, “Responsabilidade Civil do Estado”, “Revista Jurídica” nº 161, 1991, p.
132).
Georges Vedel, ensina que o dano
causado pela administração ao particular “é uma espécie de encargo público
que não deve recair sobre um só pessoa, mas que deve ser repartido por
todos, o que se faz pela indenização da
vítima, cujo ônus definitivo, por via do
imposto, cabe aos contribuintes”
(Georges Vedel e Pierre Devolvé, “Droit
SENTENÇAS
Administratif”, p. 502, apud Carlos Mário
da Silva Velloso, “Responsabilidade Civil do Estado”, “Revista Jurídica” nº 161,
1991, p. 135).
Por isso o dispositivo constitucional
manteve a responsabilidade objetiva da
Administração, sob a modalidade do risco administrativo, não chegando, porém,
aos extremos do risco integral (STF, RE
nº 35.136-SP, “RTJ” nº 08/146; “RDA” nos
55/261 e 97/177; TFR, “RTFR” nº 36/163;
“RDA” nos 42/253 e 58/319; “RT” nos 193/
514 e 220/502, entre outros).
Para Almiro do Couto e Silva (pp. 05
e ss.), a noção de responsabilidade
objetiva, como foi posta na Constituição
brasileira vigente, tem dupla vantagem.
Para o professor, por um lado, ela dá
tratamento unitário à responsabilidade
extracontratual do Estado, eliminando a
distinção tradicional entre responsabilidade por atos lícitos e ilícitos. Por outro
lado, supera as diferentes espécies de
responsabilidade conhecidas, como culpa individual, por falha ou culpa do
serviço, por risco, pela distribuição desigual dos encargos públicos. Na realidade, busca-se uma conceito mais lato,
mais amplo, para a proteção do cidadão.
Verificado o dano, a vítima terá
apenas de demonstrar que é indenizável
(que não é, por exemplo, incerto ou
eventual) e a existência de nexo de
causalidade. É dispensável, pois que
comprove ou alegue, por exemplo, a
culpa do agente do Poder Público. O
Estado é que, para eximir-se da responsabilidade ou atenuá-la, terá de provar
a culpa exclusiva ou concorrente da vítima ou de terceiro, ou a ocorrência exclusiva ou concorrente de força maior,
SENTENÇAS
conforme o caso. A culpa só teria pertinência na ação de regresso, ou na
denunciação da lide, segundo algumas
correntes doutrinárias.
A responsabilidade assumiu, assim,
um conceito diferente da responsabilidade civil do direito privado, apesar de
inúmeros pontos de contato. Mesmo
após a entrada em vigor do Código de
Defesa do Consumidor, a idéia de culpa
continua sendo o elemento determinador
da responsabilidade civil, consistindo no
seu elemento central. Na responsabilidade extracontratual do Estado só excepcionalmente é levada em consideração, pois a regra é a responsabilidade
objetiva. Por isso, no caso em tela, trataremos não da culpa, mas do nexo de
causalidade.
Nexo de causalidade. A causa do
dano coloca-se como pressuposto necessário da responsabilidade do Estado,
devendo ser demonstrada a causalidade
entre o serviço público e o dano sofrido
pelo autor. Entre o evento e o resultado
deve haver uma relação de causa e efeito
(relação de causalidade real). Mas o que
podemos entender por causa? O Supremo Tribunal Federal parece preferir a
teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção
do nexo causal, conforme acórdão
paradigmático (STF, 1ª Turma, 12-05-92,
Rel. Moreira Alves, “RTJ” nº 143/270,
“RT” nº 688/230).
O fato que deu origem a esse processo de reparação de danos foi um
assalto provocado por um bando de
marginais, integrado por dois evadidos
de prisões estaduais, que penetrou na
residência de uma conhecida família
curitibana, dominando-a completamen-
103
te e conduzindo a esposa até o estabelecimento comercial, de onde se apossou de jóias, levando terror àquelas
pessoas, agredindo o varão e causando
elevado prejuízo.
O acórdão recorrido, quanto à existência do nexo de causalidade, declarou: “No que concerne ao nexo de causalidade, verifica-se que um dos componentes do bando – Nicolau Verenicz
– na qualidade de preso condenado,
fugiu, em 13-09-83, do Hospital de
Guarapuava, para onde fora provisoriamente removido para suposto tratamento de saúde, tendo, cerca de 21 meses
depois, em 21-06-85, participado da referida atividade criminosa.
“Sua fuga ocorreu, como é bem de
ver, de defeito do sistema penitenciário
estadual, configurada pela conduta negligente dos respectivos funcionários
encarregados da guarda do preso. O fato
de este encontrar-se recolhido temporariamente a uma casa de saúde não importava na redução da vigilância, sabido
que se tratava de preso perigoso.
“O prejuízo sofrido pelos lesados
apresenta conseqüência direta da conduta desses funcionários que, ao se
descuidarem do seu dever de vigilância,
deram causa a que o preso, tempos
depois da fuga, se associasse a outros
elementos igualmente perigosos e, na
qualidade de mentor, líder ou chefe do
bando, organizasse o roubo, fato este
referido na denúncia criminal e confirmado na instrução. Estabelecido tal vínculo de causalidade entre a conduta do
Poder Público e o dano, a conseqüência é o dever de indenizar”.
A essa noção de nexo de causalidade, responde o Sr. Rel. Min. Moreira
104
Alves para quem “em nosso sistema
jurídico, como resulta do disposto no
art. 1.060 do CC, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do
dano direto da interrupção do nexo
causal. Não obstante aquele dispositivo
da codificação civil diga respeito à
impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual,
inclusive a objetiva, até por ser aquela
que, sem quaisquer considerações de
ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a
da equivalência das condições e a da
causalidade adequada (cfe. Wilson de
Melo da Silva, “Responsabilidade sem
Culpa”, nos 78 e 79, pp. 128 e ss., Ed.
Saraiva, São Paulo, 1974).
“Essa teoria, como bem demonstra
Agostinho Alvim (“Da Inexecução das
Obrigações”, 5ª ed., nº 226, p. 370, Ed.
Saraiva, São Paulo, 1980), só admite o
nexo de causalidade quando o dano é
efeito necessário de uma causa, o que
abarca o dano direto e imediato sempre
e, por vezes, o dano indireto e remoto,
quando, para a produção deste, não
haja concausa sucessiva.
“Daí dizer Agostinho Alvim (1.c): ‘Os
danos indiretos ou remotos não se excluem, só por isso; em regra, não são
indenizáveis, porque deixam de ser efeito necessário, pelo aparecimento de
concausas. Suposto não existam estas,
aqueles danos são indenizáveis’.
“No caso, em face dos fatos tidos
como certos pelo acórdão recorrido e
com base nos quais reconheceu ele o
nexo de causalidade, indispensável para
o reconhecimento da responsabilidade
objetiva constitucional, é inequívoco que
o nexo de causalidade inexiste, e, por-
SENTENÇAS
tanto, não pode haver a incidência da
responsabilidade prevista no art. 107 da
Emenda Constitucional nº 1/69, a que
corresponde o § 6º do art. 37 da atual
Constituição.
“Com efeito, o dano decorrente do
assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão, não
foi o efeito necessário da omissão da
autoridade pública, que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele,
mas resultou de concausas, como a
formação de quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de 21 meses após a evasão.”
(“RTJ” nº 143, p. 283).
Conforme o Prof. Roberto Brebbia
(“Hechos y Actos Jurídicos”, tomo nº 1/
88-103, §§ 7º, 16) tanto a doutrina da
causa próxima e direta, como a da causa
eficiente tratam de selecionar, entre todas as condições de um resultado, uma
de particular relevância que consideram
causa. É importante destacar que a doutrina busca selecionar uma idéia de causa que permita o surgimento da idéia
de “concausa”.
“Como importante conotação da tese
da causalidade adequada em seu aspecto doutrinário, deve destacar-se que, para
que a conexão seja adequada entre o
fato e o resultado, é necessário que
exista essa mesma relação entre os distintos elos (eslabones) da cadeia causal,
quando o evento não se encontra vinculado imediatamente à ação, isto é,
não basta que a ação seja idônea para
produzir um resultado, senão que é necessário, ademais, que essa regularidade exista em cada etapa da série causal
(Antolisei, Orgaz, Larenz).
“Não haveria tal adequação entre as
distintas etapas de um processo causal,
por exemplo, no caso em que o agente
SENTENÇAS
fere a vítima, e esta falece posteriormente no hospital, em virtude de um
erro médico; na hipótese, haveria relação adequada entre a agressão e a lesão,
porém não entre aquela ação e a morte.
“Estas circunstâncias anteriores,
concomitantes ou posteriores à ação, que
influem sobre o processo causal interrompendo-o ou simplesmente o desviando de seu curso normal, tomam o nome
de concausas. Exatamente uma das mais
importantes e proveitosas conseqüências da aplicação da teoria da causalidade adequada no campo da responsabilidade civil está em que fornece as
pautas que permitem encontrar soluções
coerentes em casos de distorção da relação causal.
“O conhecimento ou a possibilidade
de conhecimento que teve o agente dos
fatores existentes no momento do ato,
e a previsibilidade das circunstâncias
anômolas produzidas por tais fatores
devem ser imputadas à ação do sujeito.
Não assim, porém, se as circunstâncias
anteriores ou concomitantes que não
poderiam ser conhecidas, e as supervenientes imprevisíveis que desviaram a
série causal, já que estas não integraram
a ação” (grifo nosso) (Yussef Cahali,
“Responsabilidade Civil do Estado”, p.
99).
Por isso é que se pode ter como
rompido o nexo de causalidade entre
antecedentes e conseqüentes no caso
do presidiário que burla a guarda do
hospital onde estava recolhido e vem a
praticar, em liberdade, muitos meses
após, novos delitos (o Professor Mário
Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, pp. 514 e ss., nos explica a
opção do legislador civil português pela
formulação da causalidade adequada,
105
onde o legislador faz apelo à idéia de
probabilidade do dano. “Depois de se
assinalar a obrigação de indenização, o
escopo de reconstituir a situação em
que o lesado se encontraria, se o facto
constitutivo do direito não houvesse sido
praticado – art. 562 –, põe-se o problema da distinção entre os danos que
devem considerar-se conseqüência do
facto lesivo e os que se teriam produzido independentemente da sua verificação – art. 563. Como se opera com
uma situação hipotética do lesado.”)
A culpa da vítima, a contribuição de
terceiro e a força maior devem ser
compreendidas a partir desta noção de
causa, que sempre se permite utilizar
para balancear a responsabilidade. No
RE nº 68.107-SP, encontramos decisão
nesse sentido, conforme se lê: “Responsabilidade civil. Ação contra a União
Federal. Culpa parcial da vítima. Redução da indenização. II – A responsabilidade objetiva, insculpida no art. 194 e
seu parágrafo da CF/46, cujo texto foi
repetido pelas Cartas de 1967 e 1969,
arts. 105-107, respectivamente, não importa no reconhecimento do risco integral, mas temperado. III – Invocada pela
ré a culpa da vítima, e provado que
contribuiu para o dano, autoriza seja
mitigado o valor da reparação.”
Do voto do Min. Thompson Flores
se extrai: “Não obrigou, é certo, à vítima e aos seus beneficiários, em caso de
morte, a prova da culpa ou dolo do
funcionário, para alcançar indenização.
Não privou, todavia, o Estado, do propósito de eximir-se da reparação, que o
dano defluíra do comportamento doloso ou culposo da vítima.
“A contrario sensu, seria admitir a
teoria do risco integral, forma radical
106
que obrigaria a Administração a indenizar sempre, e que, pelo absurdo levaria
Jean Defroidmont (‘La Science du Droit
Positif’, nº 339) a cognominar de brutal
(in “RTJ” nº 55/52-3).
“Nenhuma dúvida há de que essa
responsabilidade do Estado não se
condiciona à culpa ou dolo do agente
causador do dano. O dolo ou culpa
deste só pode interessar nas relações
entre o Estado e o funcionário, para a
ação regressiva. Outra questão é a da
existência de culpa da vítima, que pode
ser exclusiva, ou não.
“O acórdão recorrido considerou a
culpa da vítima, para atenuar a responsabilidade do Estado. Certo, se houvesse culpa exclusiva da vítima, não responderia o Estado. Caracterizada a culpa parcial da vítima, a decisão admitiu
a atenuação da responsabilidade do
Estado. Essa interpretação do preceito
constitucional não importou negativa de
sua vigência” (in “RTJ” nº 55/53-4, voto
do Sr. Min. Eloy da Rocha).
Também outras decisões cujas ementas aqui reproduzimos: “4547 – Acidente de trânsito com morte da vítima.
Atropelamento de particular por veículo
oficial. Culpa da vítima. Art. 36, § 6º, da
CF/88. 1. Comprovada a culpa exclusiva da vítima, pode o Estado eximir-se
da obrigação de indenizar, pela teoria
do risco administrativo.” (TRF-1ª Região,
AC nº 90.01.14733-DF, 4ª Turma, Rel.
Juiz Leite Soares, “DJU”, de 15-04-91)
(“RJ”, “Responsabilidade Civil”, VI – II
Ementário, p. 149)
“4557 – Responsabilidade Civil do
Estado. Descaracterização. Morte de
suspeito por ocasião de diligências
policiais. Fato decorrente de tiroteio
iniciado pelo próprio procurado. Inde-
SENTENÇAS
nização não devida. Culpa exclusiva da
vítima. Inaplicabilidade do art. 107 da
CF/69. Declaração de voto” (TJSP, AC
nº 121.141-1, 3ª Câmara, Rel. Des. Toledo César, julgada em 24-04-90) – (02
659/76) (“Revista Jurídica”, “Responsabilidade Civil”, VI – II Ementário, p.
151); (Nesse caso, parece se tratar de
legítima defesa. A legítima defesa putativa não é excludente da responsabilidade estatal, pois nela não se detecta
culpa exclusiva da vítima. Forma-se na
mente do agente público, por erro de
percepção dos fatos, uma agressão que,
se fosse verdadeira, justificaria os atos
praticados (art. 1.540 do CC).
“4562 – Responsabilidade Civil do
Estado, art. 107 da CF/69. Teoria do
risco administrativo. 1. A CF/69, art. 107,
adotou a teoria do risco administrativo,
e não a teoria do risco integral. 2. O
risco administrativo, ao contrário do
integral, não induz a que a Administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano sofrido pelo particular; significa, apenas, que a vítima fica
dispensada da prova da culpa da Administração, podendo esta, todavia, demonstrar a culpa total ou parcial do
lesado no evento danoso, com o que
ficará eximida total ou parcialmente da
responsabilidade de indenizar.” (TRF-1ª
Região, REO nº 90.01-16485-4-BA, 4ª
Turma, Rel. Juiz Nelson Gomes da Silva, “DJU”, de 02-04-91) (“Revista Jurídica”, “Responsabilidade Civil”, VI – II
Ementário, p. 151)
Dessa forma, admite-se a análise das
causa e da concausa do dano.
Da causalidade no caso concreto.
Percebe-se no caso que temos duas
causas que concorreram para o acidente. De um lado, o motoqueiro que agiu
SENTENÇAS
em excesso de velocidade, não tomou
as cautelas exigidas, especialmente com
um veículo perigoso como a moto (sobre o perigo do veículo, ver laudo).
De outro lado, temos o Poder Público, que sinaliza mal uma rua, que forma
abruptamente um “T”, onde se acumula
areia. Esse “T” não pode ser visualizado
adequadamente, em virtude da vegetação que o cobre e da pouca iluminação
existente no local, com placas em postes à altura que dificultam a leitura.
Como se pode constatar na inspeção realizada, e confortada pela prova
testemunhal, é freqüente que caiam
veículos no valão e sofram acidente sem
o Município tomar a mínima providência, em total descaso com a vida das
pessoas.
Aliás, esse fato é amplamente demonstrado através de fotografias (fls. 14
e 17), tendo sido objeto de abaixo-assinado dos moradores daquele bairro
para o órgão executivo do Município.
O Município infringiu o dever jurídico de dar segurança no trânsito concorrendo para o evento. Não comungamos da idéia de que quando se trata de
atos omissivos, a responsabilidade seria
subjetiva como quer Bandeira de Mello,
para quem haveria negligência, imperícia ou imprudência, embora possa tratar-se de culpa não-individualizável
(faute du service). O ato omissivo para
o professor paulista seria condição, e
não causa: “Em casos que tais, o sinistro
ou a violência lesiva são causados por
um fator agente estranho ao Estado. A
omissão do Estado em debelar o incêndio, em prevenir as enchentes, em conter a multidão, em obstar o comportamento injurídico de terceiro, terá sido
condição da ocorrência do dano, mas é
107
certo que não o causou. Não se poderia
dizer que a abstenção ou morosidade
do Poder Público produziu o evento
lesivo, mas tão-só que deu azo a que
ocorresse. Então, a responsabilidade do
Estado será subjetiva. Logo, só cabe se
tiver havido descumprimento de um
dever jurídico estatal. Por inércia, morosidade ou ineficiência, quando devia
legalmente ser atuante, solerte, eficiente.
“Daí que terá lugar quando o Poder
Público for omisso ou ineficiente, inobstante a existência de um dever jurídico de atuação e segundo os limites de
eficiência normais” (Celso Bandeira de
Mello, “Responsabilidade Extracontratual
do Estado por Comportamentos Administrativos”, “RT” nº 552/13 e 14, apud
Yussef Cahali, “Responsabilidade Civil
do Estado”, pp. 284-5).
De outra banda, como já explicitado,
não podemos cair no conceito
naturalístico de causa, eis que o Direito,
como ciência normativa, agrega a causa
à idéia de dever jurídico. Assim, a
omissão é causa, quando uma pessoa
não faz o que deveria fazer.
No presente caso, dadas as suas
circunstâncias, não é difícil demonstrar
o dever jurídico que o Município tinha
em sinalizar adequadamente o local,
iluminá-lo, capinar o acostamento, colocar redutores de velocidade e colocar
uma placa “PARE”. Enfim, propiciar o
máximo de informação às pessoas.
Em visita ao local, pude comprovar
isso. Por isso, não acolho integralmente
o laudo pericial juntado aos autos, pois
não confirmado pela prova testemunhal
e pela inspeção de que “considerando
que a avenida possui iluminação pública e sinalização necessária e adequada
108
às suas características técnicas e aos
fluxos de tráfego existentes, podendo-se afirmar que as ações da Municipalidade satisfazem a legislação vigente à
época do acidente. Portanto, não praticou nenhuma infração de trânsito”.
(Código de Processo Civil: “Art. 131
– O Juiz apreciará livremente a prova,
atendendo aos fatos e circunstâncias
constantes dos autos, ainda que não
alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe
formaram o convencimento; Art. 436 –
O Juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção
com outros elementos ou fatos provados nos autos.”)
Como consta no próprio laudo (fl.
105), o acúmulo de areia e sujeira no
local também faz com que o Município
deva realizar mais seguidamente manutenção e limpeza na avenida. O fato
produz deveres tanto ao condutor como
à Municipalidade. Como pude constatar, os meios-fios são deixados de pintar, por algumas vezes, com muita areia
e vegetação os cobrindo (fl. 148).
Ainda, pode-se observar que o fato
de as placas de sinalização de velocidade se encontrarem nos postes de energia elétrica (fl. 105), portanto a uma
altura razoável, faz com que o condutor
tenha dificuldades em visualizá-la, concorrendo novamente para o fato em tela.
Por outro lado, como constante no
laudo pericial, na parte que acolho, a
vítima desenvolvia excesso de velocidade e não utilizava capacete (fl. 106), o
que acabou ocasionando graves problemas cranianos e contribuindo decisivamente para a ocorrência do fato letal.
Assim, diante dos dados do feito,
divido a causalidade do fato em tela em
SENTENÇAS
30% para a o Município e 70% para a
vítima, motorista da moto.
Do quantum indenizatório. Danos
morais. No dano moral, há que se atentar para as: a) condições das partes; b)
a gravidade da lesão e sua repercussão;
e c) as condições fáticas.
Passo a analisar o caso concreto a
partir desses elementos. O Município
tem relativa disponibilidade financeira.
Do evento resultou a morte de um filho
querido.
A jurisprudência tem buscado diversos parâmetros para fixar o dano moral
no caso de morte. No caso concreto,
adoto para a defunção o valor de 400
salários mínimos (Registro que estou
revisando posição anterior, na qual fixava tal valor em no máximo 300 salários mínimos).
O faço por entender que o sofrimento, a dor, o vazio, o desamparo e
o luto resultantes da privação da companhia, do afeto e do amparo de um
filho, subtraído tragicamente do convívio da mãe. A dor e o luto são presumidos. A morte deixa uma sensação de
vazio e de insegurança, experimentada
pela autora.
Os danos morais têm também a função de que o requerido sinta as conseqüências de seu ato, de forma que não
mais se repitam. Nesse sentido, em
consonância com os elementos encontrados nos autos e o princípio da proporcionalidade, fixo a indenização por
dano moral em 400 salários mínimos
para a autora.
Considerando que tenho que houve causas concorrentes para o dano,
conforme a divisão acima, fixo os danos
em 120 salários mínimos devidos para
a autora. Esses valores serão liquidados
SENTENÇAS
ao tempo do fato, incidindo a partir daí
juros de 6% ao ano e a correção monetária.
Lucros cessantes. A autora pleiteou
indenização pela contribuição do filho à
casa. A matéria tem passado por uma
modificação no entendimento jurisprudencial, a partir do decidido pela 4ª
Turma do STJ, no REsp nº 68.512-RJ.
Assim, entende-se que a morte de filho
menor, que trabalhava e contribuía para
o sustento da família, dá ensejo ao deferimento de pensão mensal, a título de
indenização por dano material. Entende-se que, até os 25 anos, a prestação
mensal normalmente deve corresponder a 2/3 da remuneração do falecido,
pois 1/3 certamente despenderia ele com
a sua própria mantença. Após os 25
anos, época em que a vítima provavelmente constituiria nova família, a pensão persiste, mas deve ser reduzida para
um quantitativo que pode corresponder
à metade da que até ali era devida,
estendendo-se aos prováveis 65 anos
de sobrevida da vítima, se até lá viverem os beneficiários da pensão.
Nesse sentido, também: “Responsabilidade civil. Morte de filho. Indenização. É devida a indenização pelo dano
material decorrente da morte de filho
menor, com 16 anos, que já trabalhava
e contribuía para o sustento da família,
além da reparação do dano moral. Pensão mensal fixada em 1/2 do salário
mínimo, para o tempo que transcorreu
desde a data do fato até quando o menor
teria completado a idade de 25 anos, e
reduzida essa parcela para 1/4 do salário mínimo, a partir de então, até quando atingiria a idade de 65 anos, tempo
provável de sobrevida da vítima. Nova
orientação da Turma, mantendo o limite
109
de indenização até os 65 anos de idade
da vítima (se não utilizada a tabela de
sobrevida adotada pela Previdência
Social), mas reduzindo o valor da pensão mensal a partir da idade de 25 anos,
quando provavelmente a vítima constituiria nova família e diminuiria a contribuição aos pais. Precedentes das 3ª e
4ª Turmas. Recurso conhecido e provido em parte” (REsp nº 172457-RJ, 4ª
Turma do STJ, Rel. Min. Ruy Rosado de
Aguiar, julgado em 04-08-98, “DJU”, de
12-04-99, p. 160. Decisão: Por unanimidade, conhecer do recurso e lhe dar
parcial provimento).
No caso dos autos, tenho em levar
em consideração unicamente o valor
informado na Carteira de Trabalho, das
fls. 24 e 25. Sobre esse valor, o Município deverá pagar 30% sobre 2/3 daquele valor, com atualização do mesmo
pelo IGP-M, até a idade em que a vítima completaria 25 anos. Após essa
idade, deverá pagar 30% de 1/4 do valor
que a vítima receberia até a idade de 65
anos, ou falecimento da beneficiária
antes deste termo.
Despesas com funerais. São devidos
os pagamentos com as despesas com
funerais, devidamente comprovadas à
fl. 26, nos termos do art. 1.537, inc. I,
do CC brasileiro, no valor do percentual
de concorrência para o evento.
Despesas hospitalares. Não há comprovação nos autos de que a autora
tenha arcado com despesas hospitalares
da vítima, motivo pelo qual indefiro o
pedido.
Ex positis, julgo parcialmente procedente a presente ação para:
A) Condenar o Município de Guaíba
ao pagamento de 120 salários mínimos,
a serem liquidados na época dos fatos,
110
com juros legais de 6% ao ano e correção monetária pelo IGP-M desde o
evento danoso (Súmulas nºs 43 e 54 do
STJ).
B) Condenar o Município ao pagamento de 30% sobre 2/3 daquele valor,
informado à fl. 24, atualização pelo IGPM, até a idade em que a vítima completaria 25 anos. Após essa idade, deverá
pagar 30% de 1/4 do valor que a vítima
receberia até a idade de 65 anos, ou até
o falecimento da beneficiária antes deste termo. Sobre as parcelas vencidas,
incidirão juros e correção monetária
desde o vencimento de cada uma.
Quanto ao valor por vencer, o mesmo
será pago mês a mês, em folha de
pagamento (dado o caráter alimentar dos
mesmos).
C) Condenar o Município ao pagamento de 30% das despesas, informadas à fl. 26 dos autos, com juros de 6%
ao ano e correção monetária.
D) Condenar ambas as partes a
pagarem custas e honorários advocatícios em face da sucumbência recíproca.
O Município-Réu arcará com 30%
das custas processuais, e a autora com
70% das custas processuais. O Município pagará ao procurador da autora a
quantia de 20 URHs a título de hono-
SENTENÇAS
rários advocatícios. A autora pagará a
título de honorários ao patrono do
Município a quantia de 25 URHs.
Na fixação dos honorários, levo em
conta o bom trabalho desenvolvido pelos
procuradores, fundamentando suas teses, trazendo aos autos as provas e o
ganho que tiveram. Esse arbitramento
leva em consideração o disposto no art.
20, § 4º, do CPC, especialmente estar
presente no pólo passivo a Fazenda
Pública.
Os honorários e as custas da autora,
beneficiada com a assistência judiciária,
ficam suspensos em conformidade com
a Lei nº 1.060/50.
Decorrido o prazo para recurso voluntário, em reexame necessário, proceda-se à remessa dos autos ao egrégio
Tribunal de Justiça (art. 475, inc. II, do
CPC) (art. 475 – Está sujeita ao duplo
grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo
Tribunal a sentença: I – que anular o
casamento; II – proferida contra a União,
o Estado e o Município; e III – que julgar
improcedente a execução de dívida ativa
da Fazenda Pública – art. 585, VI).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Guaíba, 23 de março de 2001.
Gilberto Schäfer, Juiz de Direito.
111
Processo nº 2.317/360 – Ação de Nunciação de Obra Nova
Vara Única
Autor: Município de Palmares do Sul
Réu: Cristiano Gonçalves
Juíza prolatora: Inajá Martini Bigolin
Nunciação de obra nova. Município.
Competência para legislar e fiscalizar a
utilização do solo urbano. Normas de
ordem pública – restrição de direito.
Terreno da Marinha. Perdas e danos.
Procedência.
Vistos, etc.
O Município de Palmares do Sul
ajuizou ação de nunciação de obra nova
contra Cristiano Gonçalves, ambos qualificados na inicial, requerendo a concessão liminar de ratificação do embargo e a final procedência, com a condenação do requerido por perdas e danos
e a retirada da construção irregular do
local. Alegou que o réu está construindo em área da Marinha, sem licença do
Município. Requereu a procedência.
Acostou documentos (fls. 05/09).
Foi concedida a liminar (fl. 02). Citouse o requerido, o qual contestou. Asseverou que o imóvel em questão foi
construído em 1989, sendo a moradia
sua e de seus familiares e apenas estava
sendo reformado. Não há demarcação
das áreas da Marinha e, ainda que
houvesse, o réu teria direito de manterse no local por ser pescador. Requereu
a improcedência. Anexou documentos
(fls. 17/26).
O Município manifestou-se, reiterando os termos da inicial, refutando a
peça contestacional e juntando documentos (fls. 27/37).
Realizou-se prova pericial, sendo juntado o laudo aos autos (fls. 49/74) Na
instrução, foi colhido o depoimento pessoal do réu e ouvidas duas testemunhas
(fls. 115 e 123/124). As partes foram intimadas para a apresentação de memoriais, tendo o réu apresentado (fls. 126/
127) e o Município se mantido silente. O
Ministério Público opinou pela procedência do pedido (fls. 129/133). É o relatório.
PASSO A DECIDIR
As provas documental, pericial e
testemunhal produzidas nos autos, conduzem à procedência da ação. Resta
incontroverso nos autos que o autor
estava procedendo a uma reforma irregular, de grande porte, a qual foi embargada pelo Município.
Ambas as testemunhas ouvidas, Reni
Leal Cardoso e José Antônio Euzébio
declararam que o réu estava realizando
uma reforma (fls. 124 e 125).
O próprio réu, em seu depoimento,
narrou que: “Em 1996, quando teve o
auto de infração e auto de embargo
pararam com a reforma, não tendo
procedido a nenhuma obra posteriormente (...) a casa do depoente fica a
100m da praia, estando em terreno da
Marinha” (fl. 115).
Destarte, a obra embargada é a reforma, a qual estava sendo executada
em área da Marinha e sem a devida
licença, além de estar sobre via pública.
112
O laudo pericial é conclusivo neste
sentido (fl. 52): “Com os fatos apresentados, podemos concluir que: a casa é
totalmente de alvenaria, está parcialmente construída sobre a Av. Atlântica, foi
construída sobre uma reserva ecológica,
patrimônio da União”.
Ademais, o teor do ofício remetido
pelo delegado da Secretaria do Patrimônio Público da União, acostado à fl. 33,
corrobora os termos do laudo pericial,
dispondo: “Entretanto, e face ao posicionamento da residência ali feito constar, verifica-se estar a mesma situada
sobre área de logradouro público, de
uso comum do povo, constituído por
praia propriamente dita de domínio da
União Federal, à vista do disposto no
art. 20, inc. IV, da CF (praia marítima),
sendo que compete aos Municípios o
disciplinamento quanto ao ordenamento territorial mediante planejamento e
controle de uso, de parcelamento e da
ocupação do solo urbano, ex vi do
contido no art. 30, inc. VIII, da CF”.
Nesta seara, o Município, no exercício da sua inquestionável competência
para legislar e fiscalizar a utilização do
solo urbano, tem o poder e o dever de
zelar para que ninguém construa ou
execute obras no leito das vias públicas. Esta competência emana do texto
constitucional em seu art. 31, inc. VIII.
No caso em tela, segundo se depreende do auto de infração (fl. 06), auto
de embargo (fl. 07), prova pericial (fl.
52) e ofício da Secretaria do Patrimônio
(fl. 33), o réu estaria construindo sem a
licença municipal e sobre o leito da via
pública.
Como é sabido as normas de ordem
pública, leis e regulamentos, são editadas em benefício do bem estar social,
SENTENÇAS
sendo que as limitações administrativas
visam proteger a coletividade. No curso
dos autos, existem provas que o réu
estava construindo em via pública,
inobservando as limitações administrativas de proteção à funcionalidade urbana, prejudicando, dessa forma, não só o
conjunto da cidade ou do bairro, como
afetando patrimonialmente as propriedades vizinhas, desvalorizando-as com
supressão das vantagens urbanísticas que
resultam das imposições de zoneamento, recuo, afastamento, altura e natureza
das edificações.
Ressalte-se que as restrições de direito administrativo são de molde a criar obrigações no tocante ao direito de
propriedade, com restrições e limitações
a este direito.
Comprovado que o réu estava construindo clandestinamente e com ofensa
à legislação local, inclusive sobre espaço destinado às vias públicas, merece
procedência a presente demanda.
No tocante à legislação local, cumpre trazer à baila o Código de Obras
Municipal, o qual em seu art. 29 prevê:
“Art. 29 – Qualquer obra, seja de reparo, reconstrução, reforma ou construção
nova, será embargada sem prejuízo das
multas e outras peculiaridades quando:
I – Estiver sendo executada sem a licença ou alvará da Prefeitura nos casos em
que o mesmo for necessário; (...)”
Portanto, a presente demanda possui total amparo legal, tanto perante à
legislação local, quanto no pertinente à
Constituição Federal e Código de Processo Civil (art. 934, inc. III, do CPC),
bem como demais leis ordinárias.
Com relação à pertinência da ação
de nunciação de obra nova, manifesta-se a jurisprudência: “Nunciação de obra
SENTENÇAS
nova. Licenciamento para obra. Município. CPC, no seu art. 934, III, assegura
ao Município o exercício do direito de
ação de nunciação de obra nova, havendo lesividade da edificação e sendo
a obra realizada em contravenção a um
preceito legal ou regulamentar. Sentença de extinção reformada. Apelo provido” (AC nº 198037137, 5ª Câmara Cível
do TARGS, Tramandaí, Rel. Rui Portanova, julgada em 30-04-98).
“Nunciação de obra nova. Construção em via pública. Laudo pericial.
Construção clandestina. Ofensa à legislação local. Recurso não-provido” (AC
nº 98.035-9, 3ª Câmara Cível do TJMG,
Comarca de Juiz de Fora, apelante, Paulo
Roberto Cancela; apelado, Município de
Juiz de Fora, Exmo. Sr. Des. Rel. Monteiro de Barros).
“Nunciação de obra nova. Construção que invade o leito de via pública.
Liminar de embargo da obra indeferido
em 1º grau, porque o fato já fora objeto
de ação perante o Juizado Especial Cível.
Naquele feito um vizinho, propôs, sem
êxito, ação reclamando estar sendo
obstruída a via pública e, por conseqüência, a sua passagem. Constatada obra,
sem licença municipal e que avença
sobre o leito da via pública, pendente
e razoável que a mesma seja embargada.
Competência e dever do Município para
legislar e fiscalizar a ocupação e utilização do solo urbano (CF, art. 31, VIII).
Agravo provido” (Agravo de Instrumento nº 598285658, 19ª Câmara Cível do
TJRGS, São José do Norte, Rel. Guinther
Spode, agravante, Município de São José
do Norte; agravados, Pedro do Amaral
e Hermínia do Amaral, 24-11-98).
No tocante à alegação do réu de
que seria pescador e, portanto, teria
113
direito de residir em área da Marinha,
cumpre ressaltar que não há nenhum
amparo legal para sua postulação. Ademais, ainda que houvesse, não veio
nenhuma prova aos autos de sua efetiva atividade de pescador. Além disso,
conforme supra-referido, além de ser
área da Marinha, a construção do réu
invadiu área pública, sendo descabidas,
portanto, suas alegações.
Nos termos esposados em epígrafe,
o embargo recaiu sobre a reforma que
o requerido estava efetuando, a qual
era de grande monta, o que se pode
verificar pela comparação das fotografias acostadas pelo próprio requerido (fls.
23/25) e aquelas colacionadas pela perita
(fls. 53/64).
Portanto, despiciendas as alegações
do réu, no sentido de que morava no
local desde 1989, visto que a nunciação
incidiu na reforma.
Destarte, o demandado deverá efetuar a retirada da obra nunciada, retornando a sua moradia ao estado anterior.
No tocante à postulação do Município
pela condenação em perdas e danos,
não vislumbro a sua configuração nos
presentes autos, razão pela qual deixo
de acolhê-la, entretanto, caso haja prova neste sentido, poderá o autor postular em ação própria.
Isso posto, julgo parcialmente procedente a ação de nunciação de obra
nova ajuizada pelo Município de Palmares do Sul contra Cristiano Gonçalves,
tornando definitiva a liminar deferida,
condenando o réu na retirada da construção nunciada, a fim de que sua residência retorne ao estado anterior.
Comino a pena de multa diária de meio
salário mínimo, para o caso de inobservância do preceito.
114
Condeno o réu no pagamento das
custas processuais e honorários advocatícios, que arbitro em 03URHs, atendendo ao preceituado no art. 20, § 4º,
do CPC, cuja exigibilidade fica suspensa, face à concessão do benefício
da assistência judiciária gratuita (art.
12 da Lei nº 1.060/50). Deixo de con-
SENTENÇAS
denar o Município nos ônus sucumbenciais, por decaído de parte mínima
de seu pedido (art. 21, parágrafo único,
do CPC).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Palmares do Sul, 13 de junho de
2000.
Inajá Martini Bigolin, Juíza de Direito.
115
Processo nº 3.691/911 – Ação Civil Pública
Vara Única
Autor: Ministério Público
Réus: Município de Palmares do Sul e outros
Juíza prolatora: Inajá Martini Bigolin
Ação civil pública. Concessão de liminar possível juridicamente. Inviolabilidade do direito de opinião e voto dos
Vereadores. Ato de improbidade administrativa consubstanciado em prejuízo
ao Erário Público. Quebra do princípio
da isonomia dos contribuintes. Privilegiamento de empresa privada em detrimento do Poder Público – vantagem
imoral e ilegal. Procedência parcial.
Vistos, etc.
O Ministério Público, com base no
Inquérito Civil nº 008/97, ajuizou ação
civil pública contra o Município de
Palmares do Sul, Ernesto Ortiz Romacho,
Domingos Saraiva Azevedo, João Tadeu
Vasconcellos da Silva, Eládio Faguaga
Torres, Nivalcir Farias Rocha, Roberto
Pinto Borges e Sociedade Nacional de
Empreendimentos Imobiliários Ltda. –
SNEI, todos qualificados na inicial.
Os réus supramencionados, na qualidade de Prefeito e Vereadores editaram e aprovaram a Lei nº 503/97, concedendo benefícios à SNEI, em prejuízo
ao Erário Público, sendo-lhe reduzido o
valor da dívida de IPTU, na época,
equivalente a R$ 1.756,456,21, pelo valor correspondente a um prédio pré-moldado de 277,22 m² e 30 lotes localizados em Quintão. A referida lei também concedeu isenção de IPTU à SNEI
por 10 anos, a contar de 1994, cessando
o benefício, quando os lotes fossem
negociados.
Requereu, liminarmente, a suspensão
da Lei Municipal nº 053/94, podendo o
Município lançar em dívida ativa e promover a execução fiscal dos créditos referentes à ré SNEI e a final procedência,
bem como a condenação dos agentes
públicos ao ressarcimento aos cofres
públicos, de forma solidária. A liminar
foi deferida (fls. 129/130). Citaram-se os
réus, os quais contestaram. Os vereadores, preliminarmente, argüiram a inviolabilidade dos seu votos. No mérito, parte
do loteamento não era passível de tributação. Não houve prejuízo efetivo, pois
a SNEI até então não havia pago os
impostos (fls. 135/142).
A SNEI, preliminarmente, questionou
a concessão da liminar. Meritoriamente,
a área não era urbana e, portanto, não
era tributável. Há ação tramitando, pretendendo a anulação de parte do loteamento. Lei posterior concedeu isenção
a outros loteadores (fls. 240/254). O
Município de Palmares do Sul ratifica as
razões da inicial, visto que o imóvel
poderia ser tributado, tendo havido
prejuízo ao Município (fls. 282/284).
O ex-Prefeito contesta ser incabível
o pedido de ressarcimento aos cofres
públicos, pois, anulada a Lei, o Município poderá cobrar os créditos da empresa loteadora. O legislador somente
116
pode ser responsabilizado em caso de
má-fé (fls. 291/295). Realizou-se audiência de conciliação, a qual restou prejudicada, sendo saneado o feito (fl. 349).
Na instrução foi colhido o depoimento
pessoal dos requeridos, e ouvidas três
testemunhas arroladas pelo autor (fls.
359/366). Os debates orais foram substituídos pela entrega de memoriais (fls.
370/377, 378/380 e 381/387). O Ministério Público manifestou-se, ratificando
os termos da inicial, postulando a procedência (fls. 388/409). É o relatório.
PASSO A DECIDIR
I – Das preliminares. 1. Da concessão da liminar. O caput do art. 1º da
Lei nº 8.437/92 dispõe: “Art. 1º – Não
será cabível medida liminar contra atos
do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de
natureza cautelar ou preventiva, toda
vez que providência semelhante não
puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal” (grifei).
O caso dos autos não se enquadra
na hipótese da vedação legal. Ademais,
o objetivo do texto da lei é a proteção
ao bem público. Neste sentido, a concessão da liminar não foi contra o
Município, pelo contrário, representou-lhe benefícios, em face da possibilidade da tributação, razão pela qual rejeito
a preliminar argüida.
2. Da inviolabilidade dos Vereadores
por seus votos a da unidade do Poder
Legislativo. A proteção prevista no art.
29, inc. VIII, da CF não se enquadra na
questão posta pela presente ação. Nesta
seara, a disciplina de Michel Temer, em
sua obra “Elementos de Direito Consti-
SENTENÇAS
tucional”, 14ª ed., p. 129: “A inviolabilidade diz respeito à emissão de opiniões, palavras e votos. Opiniões e palavras que, ditas por qualquer pessoa,
podem caracterizar atitude delituosa, mas
que assim não se configuram quando
pronunciados por parlamentar. Sempre,
porém, quando tal pronunciamento se
der no exercício do mandato...”
Ora, nos presentes autos, não se trata
do que foi dito, mas, sim, do teor dos
votos, cujas conseqüências trouxeram
prejuízos ao Erário do Município de
Palmares do Sul. Se assim não fosse,
jamais os legisladores poderiam ser
responsabilizados por nenhum de seus
atos, podendo agir sem observância aos
princípios básicos, como o da moralidade e da legalidade. No caso em tela,
houve improbidade administrativa, não
podendo os Edis acobertarem-se pelo
manto da imunidade.
No tocante à unidade do Poder
Legislativo, através da qual os Vereadores-réus pretendem a responsabilização
dos demais Vereadores, que votaram
contra o projeto da Lei nº 503/94, igualmente não merece proceder a prefacial.
Conforme se pode depreender das atas
das sessões legislativas (fls. 30/72), os
Vereadores que votaram contra o projeto de lei, não apenas manifestaram a
negativa, como a justificaram, através
da declaração de voto, ressalvando
eventuais responsabilizações.
Desta forma, não seria justo responsabilizar aqueles que, além de votarem
contra, exigiram que fosse consignada
sua negativa. Aceitar o contrário, seria
admitir que o representante do Legislativo sempre seria responsabilizado pelos atos da Casa.
SENTENÇAS
A este respeito, o Vereador Ney
Cardoso Azevedo Filho, ouvido como
testemunha, declarou que “nesse caso
específico, procedeu à declaração de
voto, por ser um assunto delicado, e
poderia haver repercussão futura, pois
a questão dizia respeito a valores, e o
Município poderia sofrer grandes prejuízos. Apesar de a Câmara aprovar, quis
resguardar seu posicionamento em contrário (...) A Câmara responde por seus
atos, mas não tem personalidade jurídica, e a declaração de voto é exatamente
para resguardar os Vereadores que não
votaram favoravelmente à aprovação.
Esclarece que os atos administrativos são
respondidos pelo Presidente da Câmara; os atos de Plenário pelos Vereadores, reiterando a questão da declaração
de voto” (fl. 365 e 365v.).
Pelas razões acima expostas, rejeito
as prefaciais levantadas pelos Vereadores, passando à análise do mérito.
II. Do mérito. A presente demanda
merece proceder. O exame dos autos
confirma os atos de improbidade administrativa praticados pelos membros do
Legislativo e do Executivo, bem como
resta indiscutível o prejuízo experimentado pelo Erário do Município de Palmares do Sul.
O ajuizamento da ação civil pública
em tela visa à declaração de nulidade
da Lei Municipal nº 503/94, cujo teor
assim dispôs: “Art. 1º – Fica o Poder
Executivo Municipal autorizado a receber em dação, como pagamento da
dívida ativa de IPTU, da Sociedade
Nacional de Empreendimentos Imobiliários Ltda., um prédio de 277,22 m²,
pré-moldado, colocado em área da Prefeitura Municipal, situada na Av. Luiz
117
Silveira, na sede do Município. Parágrafo único – O prédio acima referido, de
dois pavimentos, planta anexa, servirá
para a instalação das entidades
assistênciais da Cruz Vermelha de Palmares do Sul, Pasmental e Conselho
Tutelar.
“Art. 2º – O valor da dívida ativa é
de R$ 1.756.456,21, provenientes de lotes
localizados no Distrito do Quintão, cujo
loteamento foi aprovado com base na
Lei Municipal nº 250/53 do Município
de Osório e sob a égide do Decreto-Lei
nº 58, de 10-03-37. Parágrafo único – O
valor da dívida ativa será reduzido ao
valor do objeto da dação, como forma
de permitir a regularização do pagamento. Ficando, assim, extinto todo e
qualquer débito até o exercício de 1993,
gerando para a SNEI os efeitos da quitação dos impostos devidos (IPTU).
“Art. 3º – Ficam isentos do Imposto
Territorial os imóveis da SNEI situados
no Distrito de Quintão, pelo prazo de 10
anos, a partir de 1994, cessando a isenção, quando imóvel for objeto de compra e venda (...) Art. 6º – Fica a SNEI
comprometida a ceder 30 lotes, na quadra H, à Prefeitura Municipal de Palmares do Sul em dação de pagamento”.
O prédio pré-moldado e os terrenos, dados em pagamento, foram avaliados, posteriormente, pelo Fisco Municipal, respectivamente, em R$
118.519,87 e R$ 408,00 cada, totalizando os 30 lotes em R$ 12.240 (fl. 154).
Destarte, a rápida apreciação da lei, cuja
declaração de nulidade se pretende, já
demonstra que foram flagrantes a imoralidade e a ilegalidade praticadas pelos
réus. É injustificável o benefício concedido à SNEI. O argumento utilizado foi
118
o de que os lotes, cuja isenção e quitação se recebeu, não poderiam ser tributados, em face da sua localização e
ausência de urbanização, conforme mapa
da fl. 354.
A este respeito, cumpre ressaltar que
a responsabilidade pela urbanização era
da própria loteadora SNEI, não podendo esta utilizar-se da sua omissão para
auferir benefícios fiscais. Ademais, a SNEI
possuía lotes em área já urbanizada,
ainda que em menor número, os quais,
também, ficaram isentos da tributação.
Enquanto isso, os demais moradores
de Quintão, independentemente da localização e urbanização de seus lotes,
eram obrigados a pagar o IPTU, ou,
então, a sofrer as execuções fiscais. Mas
o absurdo não pára por aí. Ao adquirirem os lotes da SNEI, após a vigência
da Lei nº 503/94, os novos proprietários
não procediam à transferência.
Desta forma, os adquirentes do lotes
da SNEI continuavam sem pagar os
impostos, conforme declarou a testemunha Aroldo Leote Rocha: “Pelo que se
sabe, a SNEI continua comercializando
lotes. Na semana passada, conversou
com Paim, corretor de imóveis, que
informou estar comercializando lotes da
SNEI (...) Há escritório da SNEI para a
venda de lotes em Quintão, o qual está
aberto (...) A denúncia feita ao Ministério Público foi para trancar a isenção
dos impostos, foi uma representação da
comunidade que reclamava. Procurou o
Ministério Público, o qual informou que
era necessária a configuração dos fatos,
os denunciantes foram então até a Prefeitura, na qual verificaram que havia
duas filas: uma para os isentos da SNEI,
e outra para os pagantes de impostos.
SENTENÇAS
Quem era isento recebia um carimbo,
em contrapartida, naquele período, houve uma avalanche de executivos fiscais
(...)” (fl. 365 e 365v.)
A diferença de tratamento aos contribuintes foi notória. Ademais, absurdo
conceder a isenção e a quitação para
uma loteadora, cujo poder econômico
permite o pagamento, tanto assim o é,
que a SNEI continua a comercializar os
lotes, conforme declarações supra. Se
os lotes não são urbanizáveis e tributáveis, deveriam assim ter sido declarados
e, portanto, também não poderia a SNEI
comercializá-los, contrariamente ao que
pretende a loteadora, que continua a
comercializá-los sem o pagamento dos
impostos respectivos e sem o cumprimento da urbanização que lhe incumbe.
O problema gerado pelos loteadores
é de cunho nacional, sendo vergonhosas as falcatruas cometidas, sem que
haja a devida fiscalização, sendo, por
vezes, lesadas centenas de famílias, que
utilizam todo o dinheiro que conquistaram pelo seu trabalho de uma vida toda
para a aquisição de um lote. No caso de
Quintão, o problema dos loteamentos é
ainda mais expressivo, considerando-se
tratar do maior loteamento do Brasil,
sendo necessário que haja um retorno
para a população e a punição dos responsáveis, não sendo justo que o pequeno contribuinte pague pelas falcatruas do grande, que se omite.
A afirmação dos réus de que a SNEI
nunca procedeu ao pagamento dos
impostos e que, portanto, não teria
havido prejuízo concreto ao Município,
bem como a impossibilidade de pagar
o montante alcançado, é absurda. Se a
SENTENÇAS
SNEI nunca pagou, deverá sofrer execuções fiscais, para que pague. Se não
pagar, deverá ter seus bens penhorados, não apenas os de Quintão, mas os
que certamente existem em outras comarcas e em outros empreendimentos,
a fim de responder pela sua obrigação
fiscal.
Como bem asseverou o ilustre agente ministerial, se os lotes em questão
não fossem tributáveis, a SNEI sequer
deveria aceitar a dação em pagamento,
pois estaria entregando 01 prédio e 30
terrenos, gratuitamente. Além disso, para
que não houvesse a tributação, seria
necessário que os lotes fossem declarados não-tributáveis, e não como aconteceu no caso em tela, em que os valores foram constituídos em dívida ativa, no montante de R$ 1.756.456,21,
sendo quitados por menos de R$
150.000,00.
Os Vereadores agiram irresponsavelmente ao aprovarem a referida lei. Inclusive, a própria Comissão de Justiça e
Redação havia dado parecer contrário à
aprovação da lei, bem como houve
sucessivas discussões a respeito. Conforme dito pelo Ministério Público,
poder-se-ia, até mesmo, vislumbrar, além
da culpa gravíssima, uma conduta dolosa por parte dos Vereadores e Prefeito
da época, que dispuseram de receita
pública, sem qualquer consciência de
moralidade e legalidade, ignorando os
princípios básicos da administração
pública.
Verifica-se esta ausência de bom-senso pelas palavras do Presidente da
Câmara de Vereadores da época, Domingos Saraiva Azevedo, o qual, repetindo a frase que proferiu quando da
119
votação, declarou: “Voto, sim, porque
com o meu voto estarei beneficiando as
pessoas mais carentes do nosso Município” (fl. 362).
É difícil acreditar que um representante do povo, ao beneficiar uma grande empresa, isentando-lhe do pagamento
de mais de um milhão e meio, possa
estar pensando no bem-estar da população carente. No mínimo, trata-se de
hipocrisia.
O prédio dado em pagamento, irrefutavelmente, está sendo utilizado para
trabalhos sociais, sendo a sede do Conselho Tutelar, entre outros. Entretanto,
se não fosse esta sede, deveria o Município providenciar em outro local, de
maneira que estes serviços não ficariam
desabrigados. O fato de outras loteadoras
terem recebido isenção fiscal, cuja extensão é desconhecida na presente
demanda, igualmente, não justifica a
imoralidade evidenciada pelo ato dos
Vereadores e Prefeito da época. Ademais, nos termos referidos pelo Ministério Público, nada impediria a SNEI de
receber os mesmos benefícios genéricos conferidos às demais loteadores,
desde que fossem legais.
Efetivamente, não houve prova nos
autos, no sentido de que o Prefeito e os
Vereadores réus houvessem auferido
benefícios econômicos ou de outra espécie, em face da aprovação da Lei nº
504/94. Entretanto, para a configuração
do ato de improbidade administrativa,
não é necessário que haja dolo, nem
que sejam auferidos ganhos de qualquer gênero.
Nesta seara, o art. 10, da Lei nº 9.492/
92: “Art. 10 – Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao
120
Erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou
haveres das entidades referidas no art.
1º desta Lei, e notadamente: (...); VII –
conceder benefício administrativo ou
fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis
à espécie”.
A conduta culposa dos Vereadores e
do Prefeito da época é notória, agindo
imprudentemente em face da receita
pública, impedindo o Município de
Palmares do Sul de auferir os impostos
que lhe eram devidos, razão pela qual
merecem responder pelos seus atos.
Diversamente do postulado pelo Ministério Público, em sede de petição inicial, os imóveis dados em pagamento
pela SNEI ao Município de Palmares do
Sul devem permanecer com este, representando um abatimento do valor total
devido. Esses bens foram posteriormente avaliados, e, portanto, o valor da
avaliação deverá ser abatido do total
devido a título de impostos, executando-se o restante.
Saliente-se, por outro turno, nos termos da promoção ministerial, se o
Município de Palmares do Sul entender
como indevidos os impostos, poderá
revê-los, até mesmo de ofício, lançando-os corretamente, através de certidões
de dívida ativa. A forma como foi conduzida a isenção é maculada, pois os
Edis não se preocuparam sequer em
avaliar os bens que estavam recebendo
em dação, bem como não esclareceram
o valor exato dos débitos fiscais.
Destarte, houve ilegalidade e imoralidade no ato dos Vereadores e do Pre-
SENTENÇAS
feito, ora demandados, bem como restou caracterizada a prática de ato de
improbidade administrativa. A responsabilização dos Vereadores e do Prefeito da época será de cunho econômico,
de sorte que deverão responder, solidariamente, pelo prejuízo econômico experimentado pelo Erário Público de
Palmares do Sul, o qual deverá ser
quantificado em ação própria.
Saliente-se, por outro turno, que o
despacho que concedeu a liminar (fl.
129) determinou a suspensão do curso
prescricional dos débitos fiscais, de sorte
que o Município de Palmares do Sul
poderá e deverá executar o IPTU que
entender devido, desde que constituído
em dívida ativa, com relação à SNEI.
Ante o exposto, julgo parcialmente
procedente a presente ação civil pública: a) declarando a nulidade da Lei
Municipal nº 503/94, tornando definitiva a liminar concedida, bem como
declarando a conseqüente vigência dos
créditos fiscais não-prescritos, abatendo-se o valor correspondente aos imóveis recebidos em dação em pagamento; b) condenando os réus Ernesto Ortiz
Romacho, Domingos Saraiva Azevedo,
João Tadeu Vasconcellos da Silva, Eládio Faguaga Torres, Nivalcir Farias Rocha e Roberto Pinto Borges, de forma
solidária, ao ressarcimento aos cofres
públicos, do prejuízo experimentado
pelo Erário Público, a ser apurado em
demanda própria; e c) condenando os
réus no pagamento das custas processuais, igualmente de forma solidária.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Palmares do Sul, 17 de dezembro de
1999.
Inajá Martini Bigolin, Juíza de Direito.
121
Processo nº 0800199927 – Separação Judicial
1ª Vara de Família
Autora: E. K. L.
Réu: L. A. F. L.
Juiz prolator: João Ricardo dos Santos Costa
Separação judicial. Desnecessidade
de definir a culpa pelo término do casamento. Princípio da ruptura. Dignidade
da pessoa humana. Art. 226, § 8º, da
CF. Alimentos. Guarda dos filhos. Procedência parcial.
Vistos, etc.
E. K. L. ingressou com a presente
ação de separação judicial contra L. A.
F. L., ambos qualificados na inicial,
mencionando que casou com o réu em
1980, pelo regime da comunhão parcial
de bens. Tiveram dois filhos e
aquinhoaram somente os bens móveis
que guarnecem a residência do casal,
um automóvel e dois telefones. Sustenta que o réu foi o responsável pela
ruptura da vida em comum, em função
de ter saído de casa e constituído outra
família.
Refere que trabalha como balconista, e o réu é representante comercial
com empresa estabelecida, portanto, necessita de alimentos. Pede a separação
judicial, com a partilha de bens que
arrolou, e alimentos em 05 salários mínimos, sendo que 01 salário mínimo
para a autora e 04 para os filhos. Juntou
mandato e documentos da fl. 07 à 14.
Fixados alimentos provisórios em 05
salários mínimos, foi o réu citado, apresentando contestação e reconvenção.
Pede a reformulação do encargo ali-
mentar, propondo a exoneração em relação à autora e o pensionamento dos
filhos em 02 salários mínimos, sustentando que, após a separação, houve uma
redução em suas condições financeiras.
Aduz que existe uma residência a partilhar, construída com recursos do réureconvinte, e uma edificação nos fundos do imóvel que poderia ser alugada
pela autora-reconvinda para ajudar no
sustento dos filhos.
Atribui à parte autora-reconvinda a
culpa da separação, alegando que esta
lhe colocou para fora de casa. Pede a
improcedência da ação e procedência
da reconvenção. Juntou documentos e
mandato das fls. 32/58 e 64/66.
Houve réplica às fls. 68/72, com a
juntada de documentos das fls. 73/91.
Contestando a reconvenção, a autorareconvinda refere que a culpa da ruptura da vida em comum foi do réureconvinte, em função de ter praticado
adultério. Em réplica à reconvenção, manifestou-se o varão às fls. 102/108, juntando documentos das fls. 109/122. Em
audiência, inexitosa a conciliação, foram tomados depoimentos de testemunhas.
Vieram documentos bancários do
réu-reconvinte às fls. 155/231. Substituídos os debates por memoriais, as partes
ratificaram suas anteriores manifestações
(fls. 238/242).
122
O Ministério Público propugnou pela
procedência parcial da ação, com fixação alimentar somente para os filhos
em 04 salários mínimos, não incluindo
a residência na partilha de bens e não
declarando culpa pelo fim do casamento.
A sentença das fls. 253/258 julgou
parcialmente procedente a ação e improcedente a reconvenção, decretando
a separação judicial do casal, condenando o varão a pagar alimentos em 04
salários mínimos somente aos filhos,
determinando a partilha dos bens descritos na inicial. A decisão também
analisou os pedidos das partes postulando a declaração de culpa pela falência da união, firmando entendimento de
que não cabe ao Estado definir culpa
pelo termo do casamento.
Houve apelação por parte do varão,
sendo a sentença desconstituída, com o
acolhimento do parecer do representante do Ministério Público que atua no
Órgão Colegiado, que propugnou no
sentido de a decisão ter sido divorciada
dos autos, em virtude de não ter definido a culpa pela falência do casamento. É o relatório.
DECIDO
A desconstituição da sentença no
presente processo estabeleceu uma situação singular a este magistrado.
Como se pode observar, o fundamento da decisão anulatória exarada pela
Egrégia Câmara recursal foi no sentido
de que este decisor não teria analisado o pedido formulado pelas partes
ao não definir a culpa pelo fim do
casamento.
Com a devida vênia, tal pedido foi
claramente analisado do primeiro ao
SENTENÇAS
sétimo parágrafo da fundamentação do
ato sentencial (fls. 255/256), porém
aplicou-se hermenêutica no sentido de
não caber ao Estado definir culpa pelo
término do casamento. Tenho, desta
forma, que a questão teve enfrentamento, e a jurisdição foi prestada em relação à lide posta pelas partes.
A situação singular, antes referida,
está no fato de que, firmado entendimento da não-apreciação do pedido
atinente à culpa, obrigatoriamente este
magistrado seria direcionado, via exegese imposta, a decidir conforme entendimento que não é seu, violando-se,
dessa forma, a independência judicial,
que é suposto constitucional do estado
democrático de direito.
Segundo Fábio Konder Comparato:
“O magistrado deve submeter-se unicamente à lei e à sua consciência. É isto
que garante ao jurisdicionado a impessoalidade de julgamento, sem a qual
não se faz justiça”. (in “Cidadania e
Justiça”, “Revista da AMB” nº 04, pp.
89/93, ano 02)
A independência judicial talvez não
tenha logrado tanta defesa como recebeu de Rui Barbosa, também citado no
parecer ministerial (fl. 288), senão vejamos: “Quem quer que saiba, ao menos
em confuso, destas coisas, não ignorará
que todos os Juízes deste mundo gozam, como Juízes, pela natureza essencial às suas funções, do benefício de
não poderem incorrer em responsabilidade pela inteligência que derem às leis
de que são aplicadores”. (“Obras Completas”, vol. XLI/234, tomo IV)
O acolhimento da tese de que a
sentença não apreciou por completo a
causa petendi implicaria necessariamente
SENTENÇAS
definir outro entendimento à questão
da culpa. Na espécie, quatro destinos
interpretativos poderiam ser deduzidos
do contexto probatório: culpa da virago,
culpa do varão, culpa de ambos ou culpa
de ninguém. Todos os quatro entendimentos colidem frontalmente com a fundamentação da sentença. Qualquer deles adotado, objetivando suprir a nulidade apontada pelo juízo ad quem,
vulneraria a independência judicial, firmando, aí sim, nulidade insanável, inclusive pela quebra do duplo grau de
jurisdição, já que a decisão atenderia
determinação do 2º grau.
Não vislumbro outra solução que não
a reedição da decisão anulada, o que
não significa, de forma alguma, atribuir
qualquer ilação negativa ao juízo recursal que anulou a sentença. Ao contrário,
a presente decisão somente reforça o
credo deste Juiz na pluralidade e vigor
do Judiciário Gaúcho, em especial ao
seu Tribunal de Justiça, que é vanguarda brasileira tanto no âmbito jurisdicional como administrativo. Talvez a sentença desconstituída não tenha explicitado o suficiente, em sua fundamentação, os argumentos jurídicos para sustentar o entendimento externado, pelo
que tenho como cabível a extensão dos
debates.
Sinalo que o entendimento de não
atribuir culpa nas separações de casais
já vem sendo adotado por este juízo, o
que, em momento algum, implicou indeferimento de provas requeridas pelas
partes visando a demonstrar a ação
culposa do contendor, até em função
de a matéria ser, de certa forma, inédita
no debate jurídico, apesar de já ter sido
sustentada com maestria pela Desª Maria
123
Berenice Dias em decisão similar (Apelação Cível nº 70000507434, da 7ª Câmara Cível do TJRGS).
Como referido na sentença, a dinâmica humana exige dos operadores do
Direito uma abordagem multifacetária
para solução de litígios, em especial os
que envolvem relações afetivas, como o
Direito de Família.
O Código Civil é do início do século
XX, porém foi debatido e construído no
século XIX, sofrendo, portanto, toda a
influência do conservadorismo e preconceitos da época. A presença da Igreja foi contundente na imposição de um
modelo de família, moldurada por uma
moralidade baseada na culpa e sentimentos maniqueístas. Exemplificando: o
adultério, conhecido como o delito do
amor, por muitas vezes foi utilizado para
estigmatizar um cônjuge e vitimizar
outro, destruindo relações afetivas, inclusive com a prole.
Tirante a vergonhosa exceção da
legislação casuística da era Vargas, a
dissolução do casamento somente foi
admitida em 1977, com a Lei do Divórcio. Antes existia somente o desquite,
que era uma forma de regular situações
onde não mais havia relação conjugal.
“Trata-se de instituto que surgiu no
Direito Canônico para liberar dos deveres de coabitação pessoas cuja convivência se tenha tornado muito difícil,
sem que, porém, se reconheça a qualquer delas o direito a novas núpcias.”
(José Lamartine Corrêa de Oliveira e
Francisco José Ferreira Muniz, in “Direito de Família (Direito Matrimonial)”, Sérgio Antônio Fabris Editor, p. 452)
Também na concepção histórica do
divórcio, observou-se o envolvimento
124
de duas opções de ruptura da sociedade conjugal, baseadas no princípio da
culpa e no princípio da ruptura. Nos
primórdios do instituto do divórcio, este
surge como sanção a uma conduta censurável de um dos cônjuges, e não era
considerado o princípio da ruptura à
concessão do divórcio. Assim, para lograr-se a extinção do matrimônio, mister a existência de uma vítima e de um
culpado. A doutrinária acabou por reconhecer o princípio da ruptura, amenizando o instituto.
A evolução do pensamento jurídico
é bem situado historicamente por Corrêa Oliveira e Ferreira Muniz: “O princípio da culpa encontra seu terreno de
eleição no Direito francês anterior à reforma. As causas de divórcio consistiam
todas em comportamentos culposos,
violadores de deveres conjugais, considerados merecedores de censura éticosocial: o adultério, a condenação à pena
aflitiva e infamante, excessos, sevícias e
injúrias. A inexistência do divórcio por
mútuo consentimento enfatiza o caráter
sancionador do sistema.
“Neste sistema, porém, tão radicalmente inspirado no princípio da culpa,
a jurisprudência e doutrina introduzem,
gradativamente, aquilo que foi chamado de ‘deslizar’ prático do divórcio-sanção, previsto pelo Código, ao divórciofalência, que se impôs aos Juízes: ‘as
culpas conjugais só são tomadas em consideração pelos Tribunais como sintomas ou pretextos de um estado permanente de desunião’.
“Essa evolução encontra consagração legislativa no acréscimo introduzido
por lei de 02-04-41, que exigiu, para
que os fatos culposos constituíssem causa
SENTENÇAS
de divórcio, configurassem eles ‘uma
violação grave dos deveres e obrigações resultantes do casamento’, e ainda
que tais fatos tornassem ‘intolerável a
manutenção da vida conjugal’. Este último requisito evoca claramente a idéia
de fracasso matrimonial”. (obra citada,
p. 450)
Como visto, a tendência doutrinária
é no sentido de, aos poucos, abandonar
a aplicação do princípio da culpa como
afirmam os autores referidos: “O princípio da culpa não tem mais, por isso, a
sua antiga força de convencimento,
sendo matéria extremamente difícil a da
determinação do verdadeiro culpado: o
jurista aberto aos processos realizados
em matéria de psicologia do casal não
consegue mais, em boa consciência,
afirmar que o esposo condenado ao
divórcio seja verdadeiramente o culpado da dissolução do vínculo” (p. 451).
No século XXI, a demanda social
exige de todos os segmentos da sociedade uma adaptação à diversidade da
vida, notadamente a ser refletida nas
decisões judiciais. As respostas do Judiciário devem, inexoravelmente, considerar aspectos comportamentais como
inerentes à condição humana e não punir
com a espada da culpa condutas que
visam à busca da felicidade. Em não
existindo mais amor entre duas pessoas,
é legítima a busca de outro relacionamento, sem que essa conduta implique
punição àquele que deixou de amar. O
ato de amar não é um ato deliberado,
planejado ou calculado. Deixar de amar
a esposa ou o marido também não é
decorrência
de
uma
elaboração
maquiavélica. Assim fosse, mais fácil e
lógico seria planejar um idílio eterno
SENTENÇAS
com a mãe ou o pai de nossos filhos,
garantindo a eles uma composição familiar ideal.
Como dito, a imputação de culpa a
condutas que influenciam no contexto
familiar é procedimento que deve ser
superado, e com urgência. Não pela
“modernidade” ou pelo mero proselitismo “de cunho sociológico” (fl. 287),
mas porque afeta a dignidade das pessoas, e isso é lei constitucional, figurando no art. 1º, III, da Carta Magna, como
um dos fundamentos da República.
“A dignidade da pessoa humana”,
garantida na Constituição, deve atender um conceito mais amplo possível,
como bem acentua José Afonso da
Silva: “Concebida como referência
constitucional unificadora de todos os
direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade da pessoa humana
obriga uma densificação valorativa que
tenha em conta o seu amplo sentido
normativo-constitucional, e não uma
qualquer idéia apriorística do homem,
não podendo reduzir-se o sentido da
dignidade humana à defesa de direitos pessoais tradicionais...” (in “Curso
de Direito Constitucional Positivo”, RT,
7ª ed., p. 93)
Desta forma, tratando-se de princípio fundamental de norma constitucional, sua efetividade jurídica depende de
uma postura jurisdicional que a ela dê
validade e, principalmente, eficácia. Por
certo, essa efetividade implica redimensionar a hermenêutica tradicional, máxime quando a norma constitucional se
antepõe à legislação ordinária anacrônica. É bem o caso em tela. Não se trata
de revogar dispositivos legais, mas
125
adequá-los à nova realidade constitucional, tarefa inarredável dos operadores
do Direito.
Mauro Capelletti, em referência oportuna, teoriza: “E, na verdade, o intérprete é chamado a dar vida nova a um
texto que por si mesmo é morto, mero
símbolo do ato de vida de outra pessoa.
Com particular referência à interpretação judiciária dos precedentes (ou seja,
case law), Lord Radeliffe, um dos mais
influentes Juízes ingleses do nosso século, escreveu que o Juiz pode-se empenhar na mais estrita adesão ao princípio de respeitar rigorosamente os
precedentes, bem pode concluir toda
tarde sua própria jornada de trabalho
na convicção de nada haver dito nem
decidido senão em perfeita concordância com o que os seus predecessores
disseram ou decidiram antes dele.
“Mas ainda assim, quando repete as
mesmas palavras de seus predecessores, assumem elas na sua boca significado materialmente diverso, pelo simples fato de que o homem do século
XX não tem o poder de falar com o
mesmo tom e inflexão do homem dos
séculos XVII, XVIII ou XIX. O contexto
é diverso; a situação referencial é diversa; e seja qual for a intenção do Juiz,
as sacras palavras da autoridade se tornam, quando repetidas na sua linguagem, moedas de nova cunhagem. Neste
sentido limitado, bem se pode dizer que
o tempo usa a nós todos como instrumentos de inovação.
“Quase necessário notar que essa
profunda verdade não se aplica apenas
à interpretação dos precedentes: também é válida para interpretação da lei
(ou seja, da statutory law). De modo
126
mais geral, aplica-se a todo tipo de interpretação que tenha por objeto a linguagem e as palavras. E o poder
inovativo do tempo bem pode operar
com tal rapidez, que não aguarde a
passagem dos séculos para se manifestar”. (in “Juízes Legisladores?”, Sérgio
Antônio Fabris Editor, pp. 23/24)
Outra linha constitucional que não
se pode ignorar é a do art. 226, caput,
da CF, concedendo à família a condição
de entidade com “especial proteção” do
Estado, cabendo definir como ocorre a
denominada “especial proteção”. Essa
definição, no âmbito do Poder Judiciário, cabe ao Juiz fazer.
Concretamente, a aplicação indiscriminada do princípio da culpa como
regulação de questões familiares é forte
componente de ineficácia constitucional, porque fere o princípio da dignidade humana e afasta o Estado de seu
compromisso de dar especial proteção
à família.
Os arts. 231 e 232 do CC literalmente estabelecem deveres do casamento
que são formalmente garantidos pelo
princípio da culpa. No mesmo sentido,
os arts. 18 e 19 da Lei do Divórcio
impõem sanções aos cônjuges culpados
pela ruptura da vida em comum.
Analisando tais dispositivos à luz do
modelo constitucional, verte a impossibilidade de atribuição de culpa pela
falência do amor, em função da falta de
razoabilidade de exigir-se do ser humano conduta humanamente impossível,
como viver (marido e mulher) com uma
pessoa, amando outra. Indaga-se, ainda, onde fica a proteção especial do
Estado,
quando
uma
sentença
sacramenta o homem ou a mulher como
SENTENÇAS
culpados pela separação, considerando
a situação da prole? Como seria possível construir uma nova realidade familiar entre filhos e pais separados quando existe uma manifestação estatal, via
sentença judicial, imputando culpa de
genitor? Como pode o Estado, diante da
realidade constitucional que passou a
vigorar em 1988, pretender compelir
comportamentos e sentimentos aos membros da família, transformando-a em
entidade opressiva e limitadora da condição humana? Seria esta a “especial
proteção” contida no art. 226 antes citado?
Que benefício uma declaração judicial de culpa traria à auto-estima dos
cônjuges após a falência de um casamento, tanto para aquele que supostamente teria dado causa ou àquele definido como vítima? Uma decisão judicial definindo culpado e vítima pela
dissolução do casamento não estaria
impondo violência no âmbito das relações da família rompida, em flagrante
desacordo com o § 8º do art. 226 da CF?
Ou será que após o término do casamento se tornam os vínculos irrelevantes para o Estado?
Estou que não se pode aplicar os
dispositivos infraconstitucionais antes
citados sem o paradigma constitucional.
Nesse aspecto reside o grande compromisso do Poder Judiciário.
De outra sorte, não vislumbro qualquer necessidade de fundamentar na
culpa uma separação judicial como forma de aplicar encargos ao cônjuge
culpado ou benefícios ao inocente. No
caso da imposição de obrigação alimentar, existem outros parâmetros, como a
possibilidade e necessidade, dando
SENTENÇAS
manutenção ao dever da mútua assistência, que não fica revogado pela interpretação constitucional.
Aliás, muito mais justo e construtivo
que o dever da mútua assistência seja
analisado pela história conjugal do casal, minuciando o papel de cada cônjuge durante o casamento, no que diz
à construção da unidade familiar. Enfatizando-se a investigação probatória
nesses aspectos, repelir-se-ia a lamentável busca de um culpado.
Também no caso do art. 10 da Lei do
Divórcio, que define a guarda dos filhos
ao cônjuge inocente na separação, está
totalmente revogado pela preponderância do interesse dos filhos, insculpido no
art. 227 da CF e ratificado no Estatuto da
Criança e do Adolescente.
O derradeiro fundamento, para demonstrar a necessidade da aplicação do
princípio da dignidade, na sua mais
ampla forma de expressão, está na inadequação de regularem-se condutas no
âmbito familiar, com sanções aos que
deram causa às rupturas. Fomentar a
construção de uma premissa de que as
pessoas devam ser boas para não serem
punidas, ou para não se sentirem culpadas, supõe forte antagonismo à lógica de que a bondade deva necessariamente ser fundada no respeito desinteressado a qualquer ser humano, mormente se este faz parte da mesma entidade familiar. Desta forma, estou que
outra não poderia ser a hermenêutica
dada ao caso em tela.
No restante da matéria, mantendo-se
a decisão anulada, passo a reeditar os
fundamentos da sentença. A guarda dos
filhos não foi objeto do litígio, devendo
persistir com a mãe. Os alimentos, como
127
bem referiu o Parquet, devem ser fixados somente aos filhos. A parte-autora
sempre exerceu atividade remunerada,
não havendo comprovação de seus
ganhos, impedindo a apuração do
distanciamento entre a remuneração das
partes litigantes.
Tratando-se de pessoa já inserida
no mercado de trabalho, e não havendo indicativo de que esteja impossibilitada de exercer atividade remunerada, descabida sua pretensão. Não interessa aqui se a autora-reconvinda é proprietária da loja existente no imóvel
onde reside, fato inclusive que não
restou bem apurado no processo. Relevante, outrossim, é que exerce atividade remunerada, seja como dona do
estabelecimento, seja como empregada
de sua genitora.
Aos filhos, contrariamente, deve o
réu-reconvinte alcançar pensão. O valor, na mesma esteira ministerial, deverá ficar em 04 salários mínimos. Sua
movimentação bancária, trazida aos autos
pelos documentos das fls. 156/231,
demonstra que o genitor tem condições
de alcançar a quantia postulada.
Os bens a serem partilhados deverão
ser arrolados na inicial, não incluindo o
imóvel e as cotas da empresa do réu.
Destas, a autora-reconvinda abriu mão
quando se manifestou em memoriais. O
imóvel documentalmente pertence à
genitora da autora-reconvinda. O réu-reconvinte não logrou comprovar sua
contribuição para a construção da residência. Trouxe as testemunhas J. V. e D.
B., porém não acostou comprovantes
de pagamentos de compra de material
de construção ou contratação de mão-de-obra. A prova oral acostada é por
128
demais frágil para retirar a presunção de
que a propriedade pertença à genitora
da autora-reconvinda, certo de que o
terreno em seu nome está titulado.
Insubsistente a argumentação do réu-reconvinte, buscando enquadrar a autora-reconvinda como litigante de máfé, pelo simples fato de ter atribuído ao
marido a culpa pelo fim da união. A
postulação não se enquadra nos dispositivos do art. 17 do CPC.
Diante do exposto, julgo parcialmente procedente a ação e improcedente a
reconvenção para decretar a separação
judicial do casal, condenando o réu-reconvinte a pagar alimentos somente
aos filhos, em 04 salários mínimos
mensais, mediante depósitos na conta
da genitora, até o dia 05 de cada mês.
A partilha dos bens engloba os descritos na inicial, ou seja, o automóvel, os
móveis que guarneciam a residência do
casal, os telefones, excluindo-se o imóvel e as cotas da empresa do varão.
SENTENÇAS
Em face da parcial procedência, as
custas processuais ficam fixadas em 2/
3 para o réu-reconvinte e 1/3 para a
autora-reconvinda. Os honorários arbitro em 05 URHs para o procurador do
réu-reconvinte e 10 URHs para o mandatário da autora-reconvinda, levando
em conta a solução do litígio e o trabalho despendido pelos procuradores.
Suspendo a execução da sucumbência
em face da assistência judiciária gratuita
deferida à parte autora-reconvinda e
postulada na contestação pelo réu-reconvinte, que vai deferida neste ato.
Registre-se. Intimem-se.
Decorrido o prazo sem recurso, remeta-se ao Tribunal de Justiça, porque
o apelo das fls. 261/263 deverá ser válido para a presente decisão, em virtude
de não ter alterado a decisão desconstituída.
Canoas, 20 de novembro de 2000.
João Ricardo dos Santos Costa, Juiz
de Direito.
129
Processo nº 01297001552 – Ação Declaratória de União Estável Cumulada
com Partilha de Bens
2ª Vara de Família e Sucessões
Vara nº 064477
Autor: O. S.
Ré: I. P. S.
Juiz prolator: Jorge André Pereira Gailhard
Reconhecimento da existência de
união estável. Requisitos inexistentes.
Ação julgada improcedente.
Vistos, etc.
O. S., brasileiro, divorciado, pecuarista, residente na E. J. C., P. M., G./
RS, ajuizou a presente ação declaratória
de união estável cumulada com partilha
de bens contra I. P. S., brasileira, viúva,
empresária, residente na Av. I., nesta
Capital.
Narra a inicial que autor e ré conheceram-se no final do ano de 1988, e a
partir de dezembro de 1989 mantiveram
relacionamento ininterrupto por quase
06 anos. Tratava-se de uma união estável, pública e notória, com intuito de
formação de família. Todavia, por questões de foro íntimo do casal, ocorreu a
separação durante o mês de julho de
1995. Afirma que a relação do autor e
da ré sempre foi do conhecimento das
respectivas famílias, dos amigos, da
sociedade porto-alegrense, de políticos
do Estado, dos empregados das residências e das empresas. O casal participava de várias atividades sociais, o
que era noticiado em colunas sociais de
jornais.
Alega que a união revestiu-se de
continuidade e publicidade, comparti-
lhando-se os sentimentos e a colaboração para aumentar o patrimônio. O casal
realizou várias viagens, a passeio e a
negócios, inclusive para o exterior, hospedando-se em casas de amigos ou em
hotéis. A relação do autor e da ré era
de marido e mulher, com respeito e
fidelidade recíprocos. Salienta que o
autor e a ré fizeram questão de viajar
até o interior de São Paulo, para informar à família do autor a união. O autor
freqüentava a residência dos filhos da
ré e os acompanhava em homenagens
e nas entregas de prêmios com os quais
eram freqüentemente agraciados. Nos
finais de semana, sempre que possível,
o casal permanecia no sítio de G./RS.
Ressalta que a correspondência profissional e particular do autor era endereçada à residência de Porto Alegre.
Destaca que o autor e a ré tratavam
com freqüência sobre os assuntos ligados ao patrimônio do casal, apesar da
existência de vários administradores, em
razão da diversidade dos ramos das
empresas. O patrimônio era comum,
tanto que o autor utilizava os veículos
da ré ou os veículos das empresas.
Refere que o casal sempre fez planos
para o futuro, dando continuidade ao
relacionamento, até que, por mútua
vontade, resolveram romper.
130
O patrimônio comum continuou sendo administrado pela ré, com a promessa de ser partilhado. Acordou o casal
que a ré continuaria a alcançar ao autor
as quantias que lhe fossem pedidas.
Esclarece que durante a união foi adquirido considerável patrimônio, com o
esforço comum, apesar de a maioria
dos bens estar em nome da ré. Por tal
motivo, mesmo após a separação, a ré
alcançava ao autor as quantias por ele
pedidas, o que deixou de ocorrer por
questões desconhecidas do autor, havendo suspeitas de que a ré estaria transferindo patrimônio para o nome de
terceiros.
Menciona os nomes das várias pessoas e personalidades políticas que tomaram ciência do relacionamento do
casal. Diz que todos os requisitos da
união estável, previstos na Lei nº 9.278/
96, estão presentes na relação em tela.
Existia coabitação, estabilidade, publicidade, fidelidade, finalidade e affectio
societatis. Aduz que o autor sempre foi
bem aceito pela família da ré. Porém, no
ano de 1992, foi obrigado, sob violenta
coação moral, a assinar para os advogados dos filhos de I. uma carta que lhe
foi ditada, referindo que não tinha interesse no patrimônio da ré. Caso o autor
não assinasse a carta, os filhos da ré
“proibiriam” a continuidade do relacionamento. Tal fato ocorreu no prédio sede
da empresa da família da ré.
Descreve os bens móveis, imóveis,
valores bancários, empresas, direitos e
ações que foram adquiridos na constância do relacionamento, os quais pretende ver partilhados. Pediu a procedência
da ação, com a declaração da existência
da união estável, bem como a partilha
SENTENÇAS
dos bens, além das cominações legais.
A inicial veio instruída com os documentos das fls. 31/165.
Citada, a ré contestou (fls. 176/193).
Em preliminar, diz a contestação que a
inicial é inepta, por não satisfazer os
requisitos do art. 282 do CPC. O autor
nunca concorreu para a aquisição dos
bens, havendo impossibilidade jurídica
do pedido. A alegada união estável
nunca existiu, não encontrando respaldo nos fatos e no Direito. O relacionamento se restringiu ao plano afetivo,
sem nenhuma conotação de origem
patrimonial.
Afirma que a ré nunca deixou de
residir na Av. I., ponto referencial da
família S. O autor nunca foi admitido
residir ali, não tendo nenhum valor
jurídico a existência de correspondência
dirigida ao mesmo naquele endereço.
Muito menos, a ré transferiu a sua residência para o sítio de G., embora, no
curso deste relacionamento, por vezes
lá permanecesse nos finais de semana.
O autor não pode se socorrer da Lei
nº 9.278/96, que regulamentou o art.
226, § 3º, da CF, pois o relacionamento
cessou antes da edição da referida norma
legal. Ademais, o art. 258, II, do CC
torna obrigatório o regime da separação
absoluta de bens, pois a ré já contava
mais de 50 anos de idade ao iniciar a
relação afetiva com o autor. Assim, o
eventual reconhecimento da união estável implicaria a impossibilidade da partilha dos bens. Por fim, em se admitindo a incidência da Lei nº 9.278/96,
mesmo assim seria inviável a pretensão
inicial, em razão do art. 5º, § 1º, do
referido Diploma, em virtude da aquisição de bens por sub-rogação. Pediu a
SENTENÇAS
extinção do processo, sem julgamento
do mérito, com base nos arts. 295,
parágrafo único, II, e 267, I, ambos do
CPC.
No mérito, alega que a pretensão do
autor é despropositada, restando evidenciado que o relacionamento que
existiu entre as partes em momento
algum envolveu ou poderia envolver a
administração dos negócios da ré. Esses
negócios, sabidamente, são de grande
vulto e complexidade. Inclusive, a ré
não tem qualquer intervenção pessoal
na administração das empresas de cujo
capital participa e nem exerce, em
nenhuma delas, qualquer função.
Salienta que o autor nem noção tem
do vulto dos negócios e dos bens da ré.
Pretende a partilha dos bens sem sequer conhecê-los, não só porque nunca
estiveram ao seu alcance para serem
administrados, como nunca concorreu,
de qualquer forma, para a sua aquisição. O autor procura o enriquecimento
sem causa, à custa do patrimônio alheio.
Destaca que o autor conquistou a ré
e ingressou no convívio da família, ascendendo a uma condição social jamais
por ele imaginada. Restrito ao relacionamento afetivo, o autor tomou a iniciativa de entregar à ré a carta mencionada
na inicial e anexada na contestação da
ação cautelar, como meio de consolidar
a confiança da ré. Jamais houve a alegada coação moral.
Ressalta que o autor é homem de
condições de fortuna extremamente humildes, motivo pelo qual é compreensível que a ré tenha lhe dado como
presente de aniversário um automóvel
VW Santana, de seu uso pessoal. Os
cheques ofertados pela ré se constituíam
131
em verdadeiras doações que a ré fazia
ao autor, ora sob pretexto de contribuição para as despesas do sítio de G., ora
atendendo aos pedidos de socorro financeiro do autor.
O autor residia no sítio de G. a título
de comodato, já que o imóvel pertencia
aos familiares da ré. Mesmo depois da
separação do casal, o autor continuou
residindo naquele sítio. Por tal motivo,
e para encerrar o desagradável episódio, os familiares da ré outorgaram
escrituras públicas de cessão de direito
e de dação em pagamento ao autor,
transmitindo-lhe o domínio de 05 imóveis rurais, localizados no Município de
G./RS, no valor de R$ 103.000,00. Em
uma das escrituras, o autor deu aos
outorgantes “a mais plena, geral e irrevogável quitação”. No entanto, o autor
relegou tudo ao esquecimento, propondo a presente ação.
Os bens da ré são oriundos do próprio desenvolvimento das empresas de
que ela já participava antes mesmo de
conhecer o autor, e que, por bem administradas, geram lucros, o que permite à ré não só manter um alto padrão
de vida, assim como reinvestir nas
empresas de que é acionista, ou participar de novos empreendimentos. Logo,
a aquisição patrimonial ocorrida o foi
com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.
Aduz que o autor se transformou em
beneficiário da fortuna da ré, vivendo
deslumbradamente à sombra do prestígio de I. Assim, o autor freqüentou a
alta sociedade, realizou viagens ao exterior, o que não poderia ocorrer somente com suas humildes condições de
fortuna. O fim deste relacionamento
132
afetivo significou para o autor o fim de
um sonho e o retorno para a dura realidade da vida, constituindo-se a pretensão inicial em uma verdadeira aberração jurídica.
Relaciona os bens elencados na inicial, sobre os quais a ré não tem nenhuma participação. Pediu a improcedência
da ação e a condenação do autor no
ônus da sucumbência. A contestação veio
acompanhada dos documentos das fls.
194/863. Replicou o autor (fls. 865/890).
Designada audiência de tentativa de conciliação, resultou inexitosa (fl. 941).
No despacho das fls. 948/950v., a
magistrada que então presidia o feito
determinou a realização de perícia para
fins de partilha. Este Juízo, ao assumir
a jurisdição da 2ª Vara de Família e
Sucessões, bem como a presidência do
feito, entendeu descabível a perícia nesta
fase da ação de conhecimento, designando audiência de instrução e julgamento (fls. 964v./965). Foi proferido o
despacho da fl. 974 e 974v., rejeitando
a preliminar argüida na contestação,
sendo, no entanto, suspensa a audiência de instrução e julgamento por decisão da 8ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça.
Decidido o recurso, no prosseguimento do feito, em audiência de instrução e julgamento, foram tomados os
depoimentos pessoais das partes (fls.
1.070/1.073 e 1.074/1.078) e de 14 testemunhas (fls. 1.117/1.124, 1.150/1.153,
1.163/1.164, 1.167/1.168, 1.250/1.254,
1.274/1.276, 1.300/1.303, 1.313/1.314 e
1.435/1.437). Durante a instrução, as
partes apresentaram documentos, dando-se vista reciprocamente. Declarada
encerrada a instrução, as partes apresentaram memoriais. Ouvido, o Ministé-
SENTENÇAS
rio Público opinou pela improcedência
da ação.
Em apenso, a ação cautelar de arrolamento de bens (nº 01296102450) movida pelo autor contra a ré, em caráter
preparatório. Na inicial, o autor repisa
os mesmos argumentos da ação principal, requerendo, em liminar, o arrolamento dos bens. Designada audiência
de conciliação, o autor desistiu do pedido liminar (fl. 111). Citada, a ré contestou (fls. 117/124). Ouvido, o Ministério Público opinou pela improcedência da ação. Em apenso ainda, o incidente de impugnação ao valor da causa
(nº 01250544549), julgado procedente,
no qual o valor da causa principal foi
fixado em R$ 15.000.000,00. Vieram os
autos conclusos. É o relatório.
DECIDO
I – A ação declaratória. União estável. 1. A preliminar argüida na contestação. A preliminar de inépcia da inicial
e carência de ação foi devidamente analisada e refutada no despacho da fl. 974
e 974v. Tal decisão, inclusive, tornou
sem objeto o agravo de instrumento
interposto pela ré, pelo não-enfrentamento anterior da preliminar conforme
a decisão da fl. 1.008. Ademais, os argumentos expendidos na preliminar em
tela foram repisados nas alegações de
mérito, onde merecerão análise.
Quanto ao agravo de instrumento
interposto pela ré da decisão que refutou a preliminar, foi negado ao mesmo
o efeito suspensivo, e pelo que se tem
notícia, os procuradores da ré desistiram do prosseguimento do recurso, tanto
que a instrução, com a coleta da prova
oral, transcorreu sem qualquer irresignação.
SENTENÇAS
2. O mérito. No enfrentamento do
mérito, merece destaque o parecer final
do digno Órgão do Ministério Público,
em certas passagens, face à lucidez com
que abordou a questão: “... É fato incontroverso nos autos que autor e ré
mantiveram um relacionamento afetivo
no período compreendido entre os anos
de 1989 e 1995... Como é notório, porém, só o tempo não é suficiente para
que se admita caracterizada uma união
estável... Extrai-se do exame detido dos
autos que autor e ré em momento algum,
durante
o
relacionamento,
exteriorizaram o desejo de estabelecer
um núcleo familiar... A prova colhida é
desencontrada quanto à existência de
uma coabitação... É possível que autor
e ré chegaram a residir sob o mesmo
teto, porém, em períodos espaçados e
sem referências precisas, mas jamais de
forma contínua e duradoura... Na realidade, a relação mantida pelas partes
não era transparente...
“Não restou demonstrado, de outra
parte, que o autor tenha em algum
momento orientado ou exercido qualquer espécie de ingerência sobre os
negócios de interesse da ré... No entanto, viver em união estável é muito mais
do que eventualmente partilhar o mesmo teto, viajar, participar de festas sociais, sendo que as liberalidades são
atos que decorrem do próprio relacionamento afetivo, não se prestando a
afirmar sobre a existência de entidade
familiar... Ao revés, o que havia era
uma situação cômoda para o autor, que
era praticamente sustentado pela ré. E
mais, foi o autor agraciado com um sítio
e um automóvel nessa relação”.
Do elucidativo parecer ministerial
extrai-se a melhor solução para este caso
133
concreto. A ação não merece o mínimo
acolhimento, por vários motivos. Efetivamente, nos autos está bem caracterizado que O. e I. mantiveram um relacionamento amoroso, no período de
1989 a 1995. Isto foi reconhecido pela
própria ré quando ofertou a resposta.
Inclusive, houve um equívoco de interpretação por este fato, admitido pela ré
no despacho das fls. 948/950, onde foi
destacado que “a união estável havida
entre as partes é inconteste”.
A prova demonstra, com clareza
solar, que inexistiu a união estável nos
termos amparados pela Constituição
Federal e pelas Leis nos 8.971/94 e 9.278/
96, sendo que o despacho judicial antes
mencionado não tem o condão de vincular este juízo que realizou a instrução,
ou a decisão definitiva deste feito. Está
bem definido nos autos que o relacionamento entre O. e I. não passou do
plano afetivo, do mero companheirismo.
Tratou-se de uma relação aberta, onde
o autor, homem de poucos recursos financeiros, conseguiu conquistar a simpatia, a amizade, a confiança e a intimidade da ré, mulher de notável vulto
patrimonial e personalidade por demais
conhecida neste Estado e no País.
Nos depoimentos pessoais das partes se contém toda a essência do que
realmente foi a convivência de O. e I.,
sendo que a simples leitura, principalmente do depoimento do autor, mostra,
sem qualquer dúvida, que o relacionamento do casal não tinha as características pretendidas na inicial.
De plano, verifica-se, no depoimento do autor, que, enquanto o mesmo
conviveu com a ré, apresentava-se ele
como “médico”, permitindo a manutenção de uma farsa, de uma mentira, já
134
que a este Juízo o autor disse que não
tinha curso superior (fl. 1.070). Ora, o
que se pode esperar de uma pessoa
com tal conduta, que permite atribuir-lhe título superior e profissão que não
tem? Na verdade, o autor trabalhava no
centro espírita C. X., no Bairro P., nesta
Capital, onde conheceu I. Diz-se que o
autor é médium.
Aliás, o autor admite que conheceu
a ré neste centro espírita, iniciando, a
partir daí, uma amizade e depois um
namoro. Após isso, o autor alega que o
casal passou a morar sob o mesmo teto,
na residência da ré, na Av. I., e no sítio
de G. Segundo o autor, a convivência
do casal era pública, notória, de conhecimento dos familiares e da sociedade
de Porto Alegre.
Para demonstrar que tal relação tinha os requisitos de união estável, valeu-se o autor de fotografias que mostravam momentos íntimos do casal, junto aos amigos e parentes, de comprovações de viagens, de documentos vários, na tentativa de comprovar o endereço comum e a convivência harmoniosa do casal no meio social (fls. 32/
156). Além disso, O. tentou comprovar
a relação estável com o depoimento de
testemunhas. Contudo, como adiante
será visto, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor não deixaram
transparente a união estável.
A testemunha O. S. A. disse que O.
e I. passaram a viver juntos a partir de
1989 até 1995, reconhecendo a testemunha que a ré era pessoa abastada,
“uma potência” (fl. 1.150). Ora, qual o
crédito que se pode dar a esta testemunha, já que O. é irmã do autor? Existe
isenção neste depoimento? Será que O.
SENTENÇAS
diria alguma coisa que pudesse prejudicar o irmão neste processo?
A testemunha M. M. M. também
afirmou a existência do relacionamento
entre O. e I., mas “pelas informações
que recebia tanto de O. quanto de M.
e M.” (fl. 1.163). Como se percebe, esta
testemunha não era do relacionamento
íntimo das partes e tomou conhecimento dos fatos através do próprio autor e
de terceiros, que não acompanhavam a
vida cotidiana das partes.
A testemunha E. S. G., que trabalhou
na empresa do grupo da ré, como
encartador de jornal, depois como office-boy e, posteriormente, como funcionário do Departamento Administrativo-Financeiro, afirmou que, a partir de 1990,
percebeu que a ré começou a aparecer
na empresa acompanhada de um homem chamado O. Eles chegavam juntos.
Segundo a testemunha, os funcionários
da empresa e alguns empregados da casa
da ré, principalmente o motorista dela,
N. S. M., e A., filho da cozinheira da ré,
comentavam para o depoente que O.
era companheiro de I., e que, inclusive,
ele dormia na casa dela (fl. 1.250). O
depoimento desta testemunha não tem
maior relevância. Ouvia apenas comentários de terceiros. Ademais, apenas viu
o autor e a ré juntos na empresa, o que,
por si só, está longe de comprovar uma
união estável.
De outro lado, é estranho o fato de
a testemunha E. S. G. ter mencionado
os nomes de dois empregados muito
próximos da ré, o motorista pessoal de
I. e o filho da cozinheira, sendo que os
procuradores do autor não arrolaram tais
pessoas como testemunhas, o que seria
de fundamental importância, e nem
SENTENÇAS
sequer requereram a oitiva de ofício.
Outrossim, esta mesma testemunha, arrolada pelo autor, esclareceu que O.
não era funcionário do grupo e não
exercia nenhuma função dentro da
empresa (fl. 1.250).
A testemunha S. M., ex-esposa do
autor, data venia, prestou um depoimento superficial, narrando fatos através de comentários ouvidos do próprio
autor, da filha deste e da irmã do autor,
todas pessoas sem isenção, data venia.
A testemunha afirmou que O. relatava
viagens que realizava junto com I. (fl.
1.275).
Como antes referido, não se nega a
existência de um relacionamento amoroso entre O. e I. Em uma relação desta
espécie, envolvendo pessoas maduras,
descompromissadas, tendo uma delas
alto padrão de vida, é fato bem comum
o casal compartilhar momentos de lazer, viajando juntos. Qualquer casal de
namorados procede desta maneira, o
que não implica relacionamento estável, com intuito de formação de entidade familiar. Logo, o depoimento da
testemunha em questão tem pouco significado.
Aliás, a testemunha S. M. esclareceu,
no decorrer do depoimento, que I. apresentava o autor como “Dr. O.”, mas não
dizia que era seu namorado, companheiro ou esposo (fl. 1.275v.). Tal afirmação só vem ratificar o argumento do
Ministério Público, no parecer final, ao
dizer que a relação do autor e da ré não
era transparente.
A testemunha C. N. S. S., radialista
e advogado, disse que ouviu do próprio
O. o comentário de que ele e I. tinham
vivido juntos por cerca de 05 anos. No
135
entanto, não sabe como foi o relacionamento do casal, muito menos a vida
íntima. Nunca viu o autor e a ré juntos.
Esta testemunha ouviu de terceiros a
existência do relacionamento do casal,
mencionando o nome do narrador de
futebol H. S. (fl. 1.300). O depoimento
desta testemunha nada esclarece. Não
comprova união estável. Não comprova
sociedade de fato. Não comprova nada
no sentido de uma convivência marital
séria.
A testemunha J. B. B. afirmou que
esteve na casa de I., cerca de seis vezes, para tratar de negócios com O.,
que lhe emprestava dinheiro a juros.
Também esteve no sítio de G. (fl. 1.302).
Referiu a testemunha, no depoimento,
apenas negócios financeiros, sem nada
mencionar sobre a existência de união
estável, com os requisitos de fidelidade,
coabitação, interesses e objetivos comuns, estabelecida com o objetivo de
constituição de família. O fato de negociar com O. na casa da ré não significa
que o casal vivia como marido e mulher. Como já mencionado por este Juízo,
não se nega a existência do relacionamento afetivo, nem a presença do autor
na casa da ré, o que por esta sempre
foi admitido.
A testemunha A. T. afirma que viu
o autor e a ré em apenas uma oportunidade, na casa da irmã do autor, em
São Paulo, ocasião em que I. foi apresentada como esposa de O. (fl. 1.313).
Ora, O. apresentava I. como sua esposa, porém, ela não o apresentava como
marido, namorado ou companheiro,
como afirmado por outras testemunhas.
O. fazia questão de apresentar I. como
sua mulher, mas ela não. Ademais, a
136
testemunha viu o casal somente uma
vez, o que não é o bastante para demonstrar a união estável. A testemunha
não era das relações do casal. Não pode
afirmar que tipo de relacionamento
existia entre as partes.
A testemunha F. A. S. disse que
esteve na casa de I., não recordando a
data, mas somente o ano de 1990, para
tratar de assunto financeiro com o autor. I. teria sido apresentada como esposa. A própria testemunha disse que
era o que podia informar a respeito do
relacionamento entre O. e I. Em outras
ocasiões, a testemunha telefonou para a
casa da ré, a fim de falar com O. (fl.
1.435). Com o mais profundo respeito,
este depoimento tem pouca valia. A
testemunha não conhecia o dia-a-dia do
casal. Não sabe se efetivamente O. e I.
moravam juntos. Não conheceu as intimidades do casal, nem as características
do relacionamento.
Com efeito, uma leitura atenta dos
depoimentos das testemunhas do autor
leva este Juízo à firme convicção da
não-configuração da união estável. Seus
requisitos não estão presentes no relacionamento havido entre as partes. No
aspecto da convivência duradoura, apesar de se tratar de um relacionamento
de vários anos, não há que se atribuir
efeitos de entidade familiar a esta relação intersexual, pois ausentes os outros
elementos formadores da união estável.
No pertinente à publicidade e notoriedade, é certo que a relação das partes tinha um certo destaque, isso em
razão de I. ter sido esposa de um dos
maiores empresários do ramo das comunicações e do Brasil. I. é mulher
conhecida na alta sociedade de Porto
SENTENÇAS
Alegre, no Estado e no País. Trata-se de
pessoa de destaque e de figura pública
de elevado conceito, inclusive por suas
obras sociais, junto à F. M. S. S. Assim,
é normal que a ré esteja sempre sob o
foco da imprensa e das colunas sociais,
em qualquer lugar. Quem estiver do
seu lado, por óbvio, irá merecer algum
destaque, como ocorreu com o autor.
Todavia, esta publicidade não serve
como requisito da união estável, na
forma pretendida pelo autor. Era uma
publicidade jornalística, pela notoriedade da ré, e não uma publicidade de
existência de família, de relação de
marido e mulher.
No tocante à continuidade, outro
requisito, a mesma não existiu. A prova
apresentada pelo autor não demonstrou
aquela convivência do dia-a-dia, com a
presença constante de ambos. O que O.
conseguiu comprovar foi alguma convivência nos momentos íntimos da vida
de I., junto aos seus familiares, demonstrados através das fotografias e de algumas viagens que o casal realizou. A
vida cotidiana de um casal normal, como
marido e mulher, não ficou demonstrada. O contato diuturno, a solidariedade
e cumplicidade e os sentimentos íntimos dos co-participantes não restaram
demonstrados. As testemunhas arroladas pelo autor não comprovaram este
nível de relacionamento. A maior parte
destas testemunhas ouviu comentários,
emitidos pelo próprio autor. Outras
referiram-se a negócios comerciais com
O., tratados na casa de I. em algumas
oportunidades.
O requisito de constituição de família
nem de longe existiu. Conforme admitiu
a ré em seu depoimento pessoal, bem
SENTENÇAS
como algumas das testemunhas por ela
arroladas, I. considerava O. como o seu
companheiro afetivo (fl. 1.074). A ré
mencionou que estava “carente”, em
razão do falecimento do seu marido, e
O. se mostrou um homem amoroso e
delicado. O. era um companheiro para
a ré, mas esta não tinha a intenção, com
este relacionamento, de constituir nova
família. Por isso, procurou um lugar para
se encontrar com O., fora da sua casa
(fl. 1.075).
A testemunha A. M. afirmou que os
filhos de I. consideravam o autor como
namorado da mãe. Esteve na casa de I.
em algumas oportunidades e nem sempre O. estava presente. Ele raras vezes
estava presente (fl. 1.120).
A testemunha L. A. afirmou que freqüentava e freqüenta a casa de I. com
bastante assiduidade e percebeu que o
relacionamento de O. e de I. não tinha
e nunca teve os requisitos de entidade
familiar. Eles não viviam como marido
e mulher. Não moravam na mesma casa.
O. nunca morou com I. na casa da Av.
I. Os filhos de I., seus amigos e parentes observavam este relacionamento
como o de mero companheirismo, sem
maiores conseqüências. Tratava-se de
uma relação superficial, sem grandes interesses na formação de patrimônio
comum (fl. 1.122).
A testemunha J. S. disse que ouviu
comentários, nas rodas sociais de Porto
Alegre, que o autor aproximou-se da ré
com interesse meramente financeiro (fl.
1.124).
Com efeito, um dos principais depoimentos prestado nos autos, que
descaracteriza a fidelidade de O. para
com I. e, por conseqüência, a alegada
137
união estável, foi o de E. B. P. Afirmou
a testemunha que conhece o autor
porque ele viveu maritalmente com sua
filha, B. P., de abril de 1988 a setembro
de 1995. Inicialmente, O. e B. residiram
em um apartamento localizado na Av. I.
e depois em outro situado na frente do
S. P. B. Disse que O. era um homem
simples, de poucos recursos econômicos, que se vestia de maneira bastante
humilde. O. alegou que era médico em
São Paulo, mas ficou desgostoso com a
profissão. Então, O. comentou que passou a negociar com a compra e venda
de gado.
B. é funcionária concursada do T. A.
e tem um bom salário. Tem condições
de manter-se sozinha. Ela comentava
que de vez em quando O. ajudava nas
despesas do casal. A relação de O. e B.
era um pouco tumultuada. Eles brigavam e O. acabava sumindo por alguns
dias, voltando logo depois. Admite que
sua filha era apaixonada por O., pois
ele era uma pessoa agradável e encantadora. O término da relação implicou
somente um prejuízo emocional para B.
O. dizia que era muito amigo da
família S. A testemunha até ficou desconfiada de que O. seria segurança de
I. S. Todavia, a testemunha desconfiava
do comportamento de O. e achava que
ele poderia ter outros relacionamentos
na época em que vivia com B. Percebeu que O. passou a se vestir muito
bem depois que passou a afirmar que
se relacionava com a família S. e com
I. Ele passou a andar de carro, dizendo
que o veículo era da empresa da ré.
O. nunca disse que era funcionário
da empresa da ré; por isso, a testemunha
deduziu que ele poderia ser segurança
138
de I., face às constantes visitas à ré. O
relacionamento de O. e B. era público
e de conhecimento da família, da testemunha e dos amigos. Foi B. quem
encerrou o relacionamento, em 1995.
Ela estava cansada do comportamento
de O., pois ele não tinha trabalho fixo,
em todos estes anos, bem como costumava viajar sozinho e desaparecia por
alguns dias sem dar explicações (fls.
1.117/1.119).
Tal depoimento liquida com qualquer pretensão do autor. Demonstra que
O. mantinha dois relacionamentos
afetivos concomitantemente, o que, por
si só, descaracteriza qualquer alegação
de relação estável. Se a união estável é
comparada ao casamento, a fidelidade
é um dos seus deveres, como previsto
no art. 231, I, do CC.
Pois bem. Mesmo que fosse reconhecida a união estável, o autor, de
qualquer forma, não teria direito à partilha dos bens. Em primeiro lugar, porque o acervo patrimonial e empresarial
da ré é tão vasto que o crescimento
deste patrimônio, com a aquisição de
novos bens e empresas, é evidente
produto de sub-rogação, a teor do art.
5º, § 1º, da Lei nº 9.278/96. Quando O.
conheceu I., a ré já era uma mulher
riquíssima, sendo proprietária de um
império das comunicações. De 1989, data
do início da relação afetiva, para cá, o
grupo da ré somente cresceu e multiplicou as suas atividades, o que é de
conhecimento público e notório. Assim,
o autor não teve nenhuma participação
na aquisição do patrimônio auferido ao
decorrer do relacionamento.
Neste aspecto, O. alegou ser oriundo de família de muitas posses, com
SENTENÇAS
origem em São Paulo. Apesar de não
existir bens imóveis em seu nome, tinha
dinheiro “conseguido de berço” (fl.
1.070). Contudo, o autor não fez qualquer prova para demonstrar a riqueza
da sua família. Não juntou nenhum
documento com a inicial, para tal fim.
Na réplica à contestação, também, nenhum documento aportou aos autos para
comprovar a alegada riqueza da família
ou do próprio autor.
Para tentar comprovar sua fortuna, o
autor, após o depoimento pessoal, juntou os documentos das fls. 1.180/1.193,
ou seja, matrículas de imóveis adquiridos por seu pai, que no total somam
alguns hectares de terras, cerca de 500ha,
como mencionado na petição das fls.
1.176/1.178. Ora, será que alguém que
é proprietário de 500ha de terras, em
São Paulo, com vários filhos, pode ser
considerado homem rico? De qualquer
forma, não importa aqui a fortuna do
pai de O., mas sim a do próprio O., que
a este Juízo parece inexistir.
Em segundo lugar, o autor não teria
direito à partilha porque quando teve
início o relacionamento com I., em 1989,
a ré já contava com mais de 50 anos de
idade, o que determinaria a separação
obrigatória de bens, a teor do art. 258,
parágrafo único, II, do CC. Então, se a
união estável é comparada ao casamento quanto ao regime de bens (comunhão parcial), deve preservar também
as restrições da lei para o matrimônio
civil. Se nem pelo casamento o autor
teria direito à partilha, muito menos
poderia ter pela união estável, sequer
caracterizada.
Afastada a união estável, resta a
análise do eventual direito à partilha
SENTENÇAS
em razão da sociedade de fato. Nesse
sentido, a pretensão de O. não encontra
nenhum amparo. Como acima referido,
o autor não contribuiu, de nenhuma
forma, para a aquisição do patrimônio
durante o relacionamento mantido com
a ré.
A uma, porque O. não era homem
de grandes recursos financeiros. A duas,
porque o autor não tinha emprego fixo,
nem residência fixa. Não tinha curso
superior. Trabalhava em um centro espírita, aliás kardecista, que não permite
contribuições aos médiuns. Terceiro,
porque não restou satisfatoriamente demonstrada a fortuna da família do autor,
nem deste próprio. Quarto, porque as
empresas e os bens de I. são de tamanha expressão que nem ela própria administra a complexa organização do grupo. São os filhos e o cunhado da ré,
além de outros, os administradores do
grupo. A ré, com a idade que tem, a
esta altura da sua vida, deve somente
usufruir de tal riqueza.
Várias testemunhas afirmaram que
O. jamais participou da administração
das empresas e, também, que I. não se
envolvia na administração (fls. 1.120,
1.124 e 1.167). O autor sequer interferiu
na administração dos bens da ré. Apenas usufruiu dos benefícios do alto
padrão de vida de I., recebendo, como
admitiu na inicial, quantias em dinheiro
para a sua própria sobrevivência. O autor
não era proprietário sequer de um automóvel quando conheceu I.
Assim, a alegação do autor no sentido de que emprestou à ré quantia
superior a 01 milhão e 400 mil dólares
chega a ser lastimável. Inexiste prova
documental de tal empréstimo. De ou-
139
tro lado, nenhuma testemunha presenciou tal fato. O autor imaginou que se
tornaria sócio de alguma empresa, como
admitiu no depoimento pessoal, em razão de tal empréstimo. Esta era a esperança de O. com o relacionamento?
Data venia, os empréstimos oferecidos pelo autor, em dólares americanos,
informados por algumas das testemunhas por ele arroladas, não soam como
verdadeiros. Nenhuma prova documental demonstra tais empréstimos. Há somente as afirmações das testemunhas.
No entanto, não é crível que alguém
empreste dinheiro a outrem sem obter
garantias, inclusive com títulos de crédito (cheques, notas promissórias ou outros). Se o autor tirava cópias reprográficas dos cheques emitidos por I., devia
tomar a mesma precaução com os documentos relativos aos empréstimos que
fazia.
O documento da fl. 1.404 não é
idôneo. Foi produzido de forma unilateral, pelo próprio autor. Trata-se de
um recibo simples, manuscrito por O.
Com relação à carta das fls. 127/128,
manuscrita e assinada pelo autor, pouco este documento significa para o
deslinde da questão. Em tal carta, o
autor apenas diz que tem interesse na
pessoa da ré, o que é bastante comum
nos relacionamentos amorosos, como
acontece com qualquer casal de namorados. Outrossim, a alegação de coação
moral não encontra o mínimo respaldo
na prova. Inexistem testemunhas do fato.
Ademais, a testemunha J. C. S. disse
que foi O. quem escreveu a carta e a
entregou espontaneamente à I. para
demonstrar a falta de interesse no patrimônio da ré (fl. 1.253)
140
Enfim, a união estável ou a sociedade de fato não estão comprovadas. O
ônus da prova era do autor, nos termos
do art. 333, I, do CPC. A jurisprudência
do Egrégio Tribunal de Justiça assim
orienta: “União estável. Só gera efeitos
jurídicos a união estável com características de família e reflexos no patrimônio,
com ela não se confundindo a aventura
amorosa, patrocinada pela libido e pela
cobiça” (“RJTJRGS” nº 165/404).
“Concubinato e concubinagem. Identificação da sociedade familiar. A sociedade familiar constitui-se pelo casamento ou pela união estável. Esta se
qualifica pela dedicação, colaboração e
aplicação do homem e mulher nas tarefas da comunhão de vida e de interesses para construir o progresso moral
e material unificados, não pela efêmera
da concubinagem firmada só para o
intercâmbio sexual. O direito à participação de bens radica na dissolução da
sociedade concubinária fincada na relação jurídica permanente da affectio
maritalis intuitu familiae, por isso que
não se compra o amor e nem o sexo
se indeniza.” (AC nº 591059126)
“Concubinato. União estável. Caracterização. Falta. Toda pretensão de atribuição de patrimônio passa pela comprovação escorreita e indiscutível da
existência de um relacionamento
concubinário duradouro, exclusivo, notório e estruturado dentro dos limites de
uma efetiva união estável, traduzida na
entidade familiar que a atual Constituição quer que a lei facilite sua conversão
em casamento. Mera concubinagem não
gera qualquer efeito de ordem patrimonial a qualquer um dos envolvidos.”
(AC nº 591037734)
SENTENÇAS
“Concubinato. Por si mesmo não
gera efeitos. Somente na hipótese de
um dos concubinos, pelo seu trabalho
e apoio, ensejar o crescimento ao patrimônio do outro, sem compensação
adequada, cabe cogitar-se de partilha
do acervo... Não é o caso, pois, da
simples troca de favores e gentilezas,
inerente ao próprio relacionamento
amoroso.” (“RJTJRGS” nº 135/384)
Existiu apenas um relacionamento
afetivo e interpessoal, bastante comum
nos dias de hoje. O relacionamento foi
aberto e descompromissado. Sem maiores pretensões do que a mera companhia, pelo menos por parte da ré. É
certo que o relacionamento de O. e I.
tinha, por exemplo, envolvimento financeiro, pois o próprio autor admitiu isto
na inicial, recebendo quantias em dinheiro da ré para a sua manutenção, o
que continuou ocorrendo mesmo após
o término da relação. Assim, O. foi
plenamente beneficiado com esta relação. Dela, o autor saiu com um automóvel, um sítio com casa (em G.) e
telefone celular, além das várias doações em dinheiro e roupas. Usufruiu de
viagens ao exterior e do convívio com
pessoas da alta sociedade.
Por fim, este Juízo não vislumbra a
litigância de má-fé, pois, em decorrência dos vários anos de relacionamento
descompromissado, o autor entendeu
que tinha certos direitos, postulando-os
perante o Poder Judiciário, sem lhe
assistir razão, todavia. Ademais, a Constituição Federal garante a qualquer cidadão o acesso à Justiça (art. 5º, XXXV).
II – A ação cautelar. Arrolamento
de bens. A ação cautelar foi proposta
com o caráter preparatório. No mérito,
SENTENÇAS
devem ser analisados os dois pressupostos básicos da ação cautelar, quais sejam: a plausibilidade de direito e o risco
de dano irreparável. Nenhum destes elementos está presente. Como se viu acima, inexistiu união estável ou sociedade
de fato entre as partes. Não há direito à
partilha. Portanto, não há que se falar
em plausibilidade de direito.
De outro lado, o autor não correu
nenhum risco em ver eventual patrimônio ameaçado, até porque não tinha
qualquer direito aos bens pretendidos.
E se assim fosse, o patrimônio da ré era
bastante para assegurar qualquer direito
ao final da lide principal. Nestes termos, improcede a ação cautelar, como
promovido pelo Ministério Público na
fl. 139 e 139v.
141
III – A decisão. Isso posto: a) julgo
improcedente a ação declaratória e
condeno o autor ao pagamento das
custas e dos honorários aos procuradores da ré, que arbitro em 20% sobre o
valor corrigido da causa, definido no
incidente em apenso, observado o art.
20, § 4º, do CPC; e b) julgo improcedente a ação cautelar e condeno o autor
ao pagamento das custas e dos honorários aos procuradores da ré, que fixo
em 10 URHs, tendo em vista que à
causa foi atribuído o valor de alçada,
observada a norma legal já referida.
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 17 de novembro de
1999.
Jorge André Pereira Gailhard, Juiz de
Direito.
142
Processos nos 01197351362 – Revocatória – e 01197416322 – Medida Cautelar
de Seqüestro
Vara de Falências e Concordatas – 2º Juizado
Autora: Massa Falida de Companhia Dosul de Abastecimento
Rés: Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. e Comprebem
Comércio e Transportes Ltda.
Juiz prolator: Jorge Luiz Lopes do Canto
Ação revocatória. Ilegitimidade passiva e impossibilidade jurídica do pedido. Causa jurídica da ação revocatória.
Pontos incontroversos quanto à existência do negócio jurídico objeto da
revocatória. Falta de anuência dos credores da falida com a venda dos bens
com a massa. Conceito de estabelecimento comercial. Termo legal: forma de fixação. Prejuízo à massa. Hipóteses do
art. 52 da Lei de Falências. Situação financeira da falida no período suspeito
e preço de venda dos imóveis neste termo. Análise técnica e econômica do
estado de insolvabilidade – ineficácia relativa: discussão de boa-fé de fraude.
Possibilidade jurídica do exame da
revogatória e cisão da sociedade. Mérito
da ação cautelar. Ônus da sucumbência.
I – RELATÓRIO
Vistos, etc.
1.1. A Massa Falida de Cia. Dosul de
Abastecimento, já qualificada, ingressou
com ação revocatória, em razão da ineficácia da alienação de bens pertencentes à massa, pelo rito ordinário, contra
Nacional Central de Distribuição de
Alimentos Ltda. e Comprebem Comércio e Transportes Ltda., também qualificadas.
1.2. Alega, em síntese, que a falida
Cia. Dosul de Abastecimento, então representada por seus sócios Pedro Zaffari
e Aldérico Zaffari, dentro do termo legal da falência e adotando conduta
acarretadora de evidente prejuízo aos
credores, provocando uma imensa diminuição no patrimônio da Massa Falida, celebrou, inicialmente, um pré-contrato de promessa de compra e venda
com outras avenças em 19-05-95 (fls.
39/40), posteriormente ratificado pelo
contrato de promessa de compra e venda
de imóveis, móveis e utensílios, instalações, fundo de comércio de lojas, veículos, com transferência de direitos e
obrigações em 1º-08-95 (fls. 41/44), com
a empresa Nacional Central de Distribuição de Alimentos, representada pelos sócios Teodoro Pedrotti e Neri Carlos Dal Pozzo, no qual ficou estabelecida a transferência de bens descritos
na inicial (fls. 26/33), consistindo esses
em imóveis, móveis, veículos, estoques,
instalações e fundo de comércio da primeira para a segunda, constituindo
parcela considerável desses bens em supermercados, filiais da empresa, em
regular funcionamento, pelo preço total
de R$ 20.000.000,00, valor esse muito
aquém do que efetivamente representavam.
SENTENÇAS
1.3. Acrescenta que parte desses bens
foram transferidos para a Comprebem,
empresa que integra o mesmo grupo da
Nacional e, em razão desses negócios,
houve um esvaziamento da capacidade
operacional da empresa e uma sensível
diminuição de seu patrimônio, sendo o
valor do conjunto de bens transferidos
subestimado, e, ainda, apesar de alienado, foi desprezado o valor do fundo de
comércio.
1.4. Refere, também, que o negócio
é ineficaz, pois o ato de absorção das
filiais pela Nacional foi realizado muito
tempo após a decretação da falência da
Cia. Dosul, a despeito de esse negócio
ter sido efetuado dentro do termo legal
da falência.
1.5. Entende que, em sendo válido
o negócio, as requeridas são solidariamente responsáveis por todos os créditos da Cia. Dosul existentes até a época
da conclusão dessa avença, pois teria
ocorrido uma cisão parcial desta, respondendo as primeiras por todas as obrigações anteriores à cisão, a teor do art.
233 da Lei das Sociedades Anônimas.
1.6. Por derradeiro, diz que o negócio foi realizado em fraude contra credores, com o objetivo de esvaziar, por valor
subestimado, o patrimônio da Cia. Dosul,
e, ainda, sem que fossem especificamente descritos parte dos bens alienados da
empresa que, nessa época, já estava em
estado de insolvabilidade, circunstância
conhecida e compactuada pelas requeridas.
1.7. Assim, restou caracterizado o prejuízo dos credores da falida, decorrente
da referida transação, pois a empresa
teve imensa redução em seu patrimônio, razão pela qual requer seja julgada
143
procedente a ação, com a declaração de
ineficácia das alienações dos bens descritos na inicial e conseqüente cancelamento dos registros que tenham sido
efetivados, condenando as rés nos ônus
sucumbenciais.
1.8. Ajuizou, ainda, Medida Cautelar
de Seqüestro, distribuída sob nº
01197351362, cuja liminar foi deferida e
mantida pelo Egrégio Tribunal de Justiça, sendo tempestivamente aforada a
presente ação principal.
1.9. Com a inicial foram juntados os
documentos das fls. 34/195.
1.10. Citados, os réus apresentaram
contestação às fls. 203/230, argüindo, em
preliminar, a carência de ação, por ilegitimidade ativa da autora, por entender
que a ação deveria ter sido proposta
pelo seu síndico. Disseram que adquiriram os bens de terceiros, motivo pelo
qual requereram, ainda, a integração à
lide das instituições de crédito enumeradas nos itens 15 a 17 da peça contestatória, como litisconsortes necessários. No
mérito, sustentam a legalidade do negócio entabulado, aduzindo que não houve prejuízo aos credores e, ainda, que
não houve fraude praticada contra estes.
Requerem a improcedência da ação.
1.11. Com a contestação foram acostados os documentos das fls. 231/1.054.
1.12. Às fls. 1.063/1.105, a autora
apresentou réplica, rebatendo os argumentos deduzidos pelos réus na defesa
e ratificou os termos da exordial.
1.13. O Ministério Público opinou à
fl. 1.107 pelo afastamento da preliminar
de ilegitimidade ativa, postulando pelo
prosseguimento da demanda.
1.14. Foi proferido despacho saneador às fls. 1.110/1.111, no qual foi
144
rejeitada a preliminar de ilegitimidade
ativa e indeferiu a citação de litisconsortes pretendida pelos demandados, determinando às partes a indicação, circunstanciada, de outras provas que pretenderiam produzir, inclusive em audiência, além das documentais existentes nos
autos, nesta hipótese, com a respectiva
especificação, inclusive quanto ao interesse e a finalidade a que se destinariam, sob pena de julgamento antecipado da lide.
1.15. A autora postulou a produção
de prova pericial contábil, com objetivo
de apurar o real valor dos bens transacionados e, ainda, o valor do fundo de
comércio omitido na transação (fl. 1.113).
1.16. A co-ré Nacional postulou a
produção de prova pericial para apuração da real situação econômico-financeira da falida, à época da negociação,
e, ainda, a avaliação dos bens negociados (fl. 1.114).
1.17. A co-ré Comprebem, além de
tecer considerações acerca da fixação do
termo da falência, requereu a produção
de prova pericial de auditoria; inquirição
de testemunhas e requisição de documentos aos Tabelionatos de protestos de
títulos e documentos (fls. 1.115/1.180).
1.18. A co-ré Nacional interpôs, ainda, embargos de declaração (fls. 1.181/
1.184), sobre os quais manifestou-se o
Ministério Público (fl. 1.186), desacolhidos pela decisão de fls. 1.188/1.190,
que deferiu a produção de pericial
contábil, facultando às partes a indicação de assistentes técnicos e a formulação de quesitos, os quais foram devidamente apresentados pelas partes (fls.
1.192/1.202). Quanto à prova testemunhal, a necessidade da mesma seria
SENTENÇAS
aferida por ocasião da entrega do laudo
pericial, manifestando as partes o interesse na produção desta, com a indicação da finalidade à que se destinaria,
sob pena de julgamento da lide no
estado em que se encontrar.
1.19. A co-ré Nacional interpôs agravo de instrumento (fls. 1.204/1.215)
contra a decisão das fls. 1.188/1.190,
parcialmente provido pelo Egrégio Tribunal de Justiça, para o fim de determinar a integração das instituições de
crédito na lide e, ainda, a realização de
prova pericial de avaliação, rejeitando a
preliminar de ilegitimidade ativa da autora (fls. 1.225/1.233).
1.20. Citadas, as instituições de crédito apresentaram contestação a saber:
Citibank Leasing S. A. – Arrendamento
Mercantil (fls. 1.245/1.230); Cia.
Itauleasing, sucessora de Franlease S.
A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.325/
1.328); Bozano Simonsen Leasing S. A.
– Arrendamento Mercantil (fls. 1.338/
1.340); Cia. Interatlântico de Arrendamento Mercantil S. A. (fls. 1.381/1.391),
todas elas apresentaram preliminar de
carência de ação, dizendo que a demanda não lhe diz respeito. No mérito,
sustentaram a validade dos contratos de
leasing celebrados com a falida, motivo
pelo qual reiteraram a alegação de que
a lide revocatória não lhes diz respeito.
1.21. As rés manifestaram-se sobre
as contestações (fls. 1.424/1.426 e fls.
1.428/1.429), e a autora manifestou-se
às fls. 1.431/1.438.
1.22. Houve manifestação do Ministério Público sobre as contestações, e
postulou fosse determinada a fixação
de prazo para a entrega dos laudos
periciais (fl. 1.439).
SENTENÇAS
1.23. As partes apresentaram quesitos e indicaram assistentes técnicos (fls.
1.441, 1.443 e 1.446/1.447).
1.24. A co-ré Nacional postulou a
suspensão da ação revocatória, até julgamento de ação rescisória por ela aforada, pretensão indeferida pela decisão
da fl. 1.469.
1.25. A prova pericial contábil foi
produzida, estando o laudo do perito
judicial acostado às fls. 1.486/1.819; o
parecer do assistente técnico da co-ré
Nacional encontra-se às fls. 1.837/1.889,
e o parecer do assistente técnico da
autora às fls. 1.893/1.947.
1.26. Intimadas as partes, as rés manifestaram-se sobre o laudo pericial
contábil às fls. 1.950 e 1.951, e autora
às fls. 1.952/1.958.
1.27. A prova pericial de engenharia
foi produzida, estando o laudo do perito judicial acostado às fls. 1.960/2.180;
o parecer técnico do assistente técnico
da autora encontra-se às fls. 2.183/2.186,
e o parecer do assistente técnico da co-ré Nacional às fls. 2.188/2.737.
1.28. Instadas as partes, as demandadas manifestaram-se sobre o laudo
pericial de avaliação às fls. 2.739 e 2.740,
e a autora às fls. 2.743/2.751.
1.29. O Ministério Público opinou pelo
prosseguimento da demanda (fls. 2.752).
1.30. Determinada a manifestação das
partes acerca do interesse na produção
de provas em audiência (fls. 2.753),
postulando a autora o julgamento antecipado da lide (fls. 2.755/2.756), e as
rés requereram, sem especificar a finalidade, a produção de prova testemunhal (fls. 2.757 e 2.758).
1.31. Foi determinada a abertura de
vista ao Ministério Público para parecer
145
final, posto que as questões deduzidas
são primordialmente de direito e as de
fato se encontram suficientemente elucidadas pelas provas documental e técnica produzidas nos autos (fl. 2.759).
1.32. O Ministério Público opinou
pela procedência da demanda, face à
inequívoca ocorrência de prejuízo ao
patrimônio da empresa, e, via de conseqüência, aos credores. Acrescentou
que a prova leva ao reconhecimento,
também, da intenção fraudulenta dos
negociantes, em razão da alienação dos
imóveis por valores muito abaixo dos
praticados no mercado e, ainda, em
razão da falta de especificação dos bens
móveis que integraram a negociação (fls.
2.760/2.762).
1.33. Através do despacho da fl. 2.766,
foi determinada a intimação do perito
oficial para que esclarecesse os critérios
empregados para a apuração do Fundo
de Comércio da Falida, em como aqueles utilizados com relação ao que deixou
de lucrar a autora com as vendas realizadas pelas rés, bem como informasse o
grau de solvabilidade da postulante
durante as transações levadas a efeito
com as requeridas e, por fim, verificasse
se as referidas transações, envolvendo o
ativo permanente da Massa, implicaram,
ou não, redução da atividade econômica
da falida e se tal situação resultou em
prejuízo aos credores.
1.34. A ré Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. ratificou o
seu pedido no que tange à produção de
prova testemunhal (fl. 2.767).
1.35. O perito atendeu à determinação da fl. 2.766, apresentando o laudo
das fls. 2.769/2.949, do qual foram intimadas as partes, sendo que quanto ao
146
mesmo somente a autora se manifestou,
às fls. 2.953/2.957. A ré Comprebem
sustentou que se pronunciaria quanto
ao laudo complementar “oportunamente” (fl. 2.952).
1.36. Em nova manifestação, o culto
curador das massas, às fls. 2.959/2.961,
ratificou integralmente o seu parecer das
fls. 2.760/2.762, opinando no sentido
da integral procedência da demanda.
1.37. A ré Nacional Central de Distribuição de Alimentos se manifestou à
fl. 2.962, reportando-se à manifestação
de seus assistentes técnicos, às fls. 2.963/
2.972, quanto às explanações suplementares efetuadas pelo perito do juízo.
1.38. Vieram-me os autos conclusos
para sentença.
1.39. Resumidamente, é o relatório.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Trata-se de ação revocatória que
visa à declaração de ineficácia das vendas dos bens da falida descritos na
exordial, realizadas dentro do termo legal
com prejuízo à massa, objetiva e subjetiva, cuja transferência se operou antes
da quebra e sem a anuência dos credores, regularmente instruída, na qual se
impõe o julgamento da lide no estado
em que se encontra, consoante estabelece o art. 330, inc. I, do CPC, posto
que os fatos alegados estão suficientemente comprovados pela documentação inserta nos autos, bem como pelas
perícias realizada, inadmitindo-se prova
oral no caso em exame, tanto pelo valor
dos referidos contratos de promessa de
compra e venda, como também por ser
inútil ao deslinde do litígio.
Quanto às preliminares deduzidas.
2.2. Com relação à preliminar de
ilegitimidade passiva da massa, a refe-
SENTENÇAS
rida prefacial foi afastada de plano no
despacho saneador das fls. 1.110/1.111,
matéria esta que restou irremediavelmente preclusa, posto que mantida a
referida decisão pela superior instância,
através do Agravo de Instrumento nº
598109932, de sorte que são aplicáveis
ao caso sub judice o disposto nos arts.
75 do CC, 12, inc. III, do CPC e 63, inc.
XVI, da Lei de Falências, tendo em vista
que o síndico exerce mandato legal no
interesse e em benefício da massa falida, sendo este conjunto patrimonial e
jurídico o titular de direitos e obrigações, aliás o aresto precitado é conclusivo a esse respeito, ao asseverar que:
“Agravo de instrumento. Falência. Ação
revocatória. Legitimidade ativa e passiva para a causa. Avaliação de bens negociados. Há de se reconhecer à Massa
Falida, através do síndico, e independente de discussão doutrinária, legitimidade ativa para a demanda revocatória
falencial”.
2.3. Preambularmente, é de ser ressaltado que o presente pedido é juridicamente possível, posto que, em se tratando de ação revocatória, há que se
levar em conta que os requisitos de
admissibilidade da mesma estão
embasados na prática de determinado
negócio jurídico dentro do termo legal
e na existência de prejuízo para a massa
com a realização deste ato.
2.4. Nesse sentido, são os ensinamentos do jurista maior deste país,
Pontes de Miranda, em sua obra “Tratado de Direito Privado”, parte especial,
tomo XXVIII, § 3.357, pp. 325/327, 3ª
ed., 1971, ao asseverar que: “... A declaração de ineficácia, segundo o art. 52
do Decreto-Lei nº 7.661, nada desconstitui. Os bens continuam no patrimônio
SENTENÇAS
do adquirente; apenas o valor deles está
subordinado aos efeitos falenciais. Tal
como ocorre nas espécies em que a
alienação é posterior à penhora. O art.
52 do Decreto-Lei nº 7.661 funciona
como se tivesse havido a penhora antes
do negócio jurídico ou do ato-fato de
adimplemento que qualquer dos incisos
do art. 52 atingiu...
“... A noção de ineficácia relativa
permite que se tenha por acontecido
tudo que aconteceu, porém não contra
a massa. À massa, fica o caminho como
se não estivesse fechado. O bem está
no patrimônio do terceiro, mas a massa
pode ir até lá e tirá-lo, porque, para a
massa, ele não está lá.
“... O fundamento da sanção do art.
52 do Decreto-Lei nº 7.661 não está, de
modo nenhum, na ilicitude do ato do
terceiro adquirente. O ato pode ser perfeitamente lícito; e a própria lei esclarece
que se abstrai da scientia do terceiro
(verbis ‘tenha, ou não, o contratante conhecimento do estado econômico do
devedor’) e da intenção de fraudar (verbis: ‘seja, ou não, a intenção deste fraudar credores’). Tampouco se há de basear a sanção no enriquecimento injustificado de terceiro. Nem cabe falar-se de
ilícito, nos casos de negócios jurídicos
gratuitos, e de enriquecimento injustificado, se a título oneroso o negócio.
Exatamente porque a ratio legis nada
tem com a ilicitude (haveria desconstituição, CC, art. 145, II, 1ª parte), ou com
o enriquecimento injustificado, pois justificação houve – ex hypothesi –, foi a
sanção da ineficácia relativa a que o
legislador preferiu” (omissis nosso).
No mesmo diapasão, é o ensinamento do insigne jurista José da Silva
Pacheco em sua obra “Processo de Fa-
147
lência e Concordata”, 6ª ed., Ed. Forense, p. 339, ao afirmar que: “No art. 52,
cogita a lei da ineficácia dos atos praticados pelo falido, antes da quebra.
Nos casos enumerados pelo referido
artigo, não se há de pensar em provar
a ciência pelo contratante do estado de
insolvência ou de impontualidade do
devedor, nem sequer há cabimento na
invocação ou alegação de fraude. O ato,
desde que incida um dos incisos do art.
52, é ineficaz, não produz efeito, relativamente à massa falida”.
2.5. Assim, outra não é a conclusão
que não a possibilidade jurídica do presente pedido, bem como que, em tese,
também encontra o mesmo amparo legal para sua formulação, na medida que
o interregno de tempo abrangido pela
presente ação é o do termo legal, sendo
que os negócios jurídicos em discussão
foram realizados dentro deste período,
não havendo qualquer dúvida quanto à
existência destes atos, de sorte que a
discussão fica circunscrita em haver
prejuízo à massa, ou não, com a venda
dos referidos bens, até porque é incontroverso também que esta ocorreu sem
a anuência dos credores da falida à
época em que estas se operaram (art.
52, inc. VIII, da Lei nº 7.661/45).
2.6. Note-se que outro dos pontos a
ser abordado neste tipo de ação é que
se trata de presunção juris tantum contra o negócio realizado, consoante preleciona Pontes de Miranda na obra
precitada para o reconhecimento da ineficácia do mesmo, portanto, o “ônus
processual dos réus” é demonstrar que
as vendas dos bens descritos na peça
vestibular não importaram em prejuízo
à massa no momento em que foram
efetivadas.
148
2.7. Ainda, quanto às prefaciais
alevantadas pelas Instituições Citibank
Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil
(fls. 1.245/1.256); Cia. Itauleasing, sucessora de Franlease S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.325/1.328);
Bozano Simonsen Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil (fls. 1.338/1.340); Cia.
Interatlântico de Arrendamento Mercantil S. A. (fls. 1.381/1.391) de carência de
ação por ilegitimidade passiva, cujas citações foram admitidas no feito pela
superior instância no agravo de instrumento precitado, a título de litisconsortes
passivos, visto que haveria interesse jurídico na participação das mesmas, as
quais estariam sujeitas aos efeitos da
presente ação, passo ao exame das
mesmas conjuntamente com o mérito
da causa, posto que as referidas preliminares estão intimamente relacionadas
com este, aliado ao fato de que envolvem estas a questão de fundo e se
sujeitam aos seus efeitos.
2.8. Preambularmente, é preciso
destacar que a pretensão da autora foi
voltada exclusivamente quanto às duas
primeiras demandadas, Nacional e
Comprebem, na medida em que, ao
serem atingidos os negócios jurídicos
avençados com estes réus por aquela,
os efeitos da ineficácia relativa da presente ação revocatória, em especial no
que tange às cessões de direitos entabuladas através do pré-contrato de 1905-95, envolvendo também os contratos
de arrendamento mercantil, nos quais
havia a opção pela aquisição dos bens
arrendados das instituições financeiras
supracitadas, far-se-iam sentir apenas
quanto à posição a ser ocupada pelo
arrendante nos referidos ajustes, mas em
nenhuma hipótese os efeitos imanentes
SENTENÇAS
da ação falencial atingiriam a esfera jurídica das entidades arrendadoras nos
lease-back pactuados.
2.9. Portanto, na hipótese das referidas cessões às duas primeiras demandadas dos direitos pertencentes à autora, nos contratos de arrendamento mercantil avençados com as entidades arrendadoras, serem tornadas ineficazes
frente à massa, a relação obrigacional
mantida com as instituições precitadas
permaneceria inalterada, apenas o cumprimento do contrato quanto à entrega
da prestação relativa à transferência do
domínio é que seria atribuída à massa
falida, cedente deste direito, ou as demandadas, cessionários do referido
leasing, situação esta para o caso de
improcedência da presente ação.
Aliás, nesse sentido é a promoção
das fls. 1.186/1.187 do culto curador das
massas Luiz Inácio Vigil Neto, Procurador de Justiça que atuava neste Juizado,
ao asseverar que: “Dessa forma, pouco
importa para as entidades arrendadoras
o eventual êxito da ação revocatória, pois
a sua posição na relação obrigacional
continuará a mesma. Em outras palavras,
perderá o direito de propriedade sobre
a coisa, no caso de exercício do direito
de opção contratualmente expresso, venha a ser exercido pela massa falida,
venha a ser exercido pela embargante (a
Nacional), ou a manterá esse direito na
hipótese contrária”.
2.10. Assim, se em um primeiro
momento houve o entendimento da
superior instância, no sentido de determinar a citação das arrendadoras, pois
haveria interesse jurídico das duas primeiras demandadas em saber a quem
seria dado o direito de opção para aquisição dos bens arrendados, se a elas ou
SENTENÇAS
à massa falida, num segundo instante,
se mostrou manifestamente ilegítimo o
chamamento processual acolhido inicialmente, posto que a ineficácia relativa
da ação revocatória do art. 52 da Lei de
Quebras atinge exclusivamente aos efeitos do negócio jurídico entabulado e
submetido ao crivo falencial, ou seja,
refere-se apenas quanto à cessão de
direitos feita entre a autora e as duas
demandadas, permanecendo perfeitamente válidos e eficazes os arrendamentos mercantis entabulados com as
entidades arrendadoras.
Frise-se, ainda, que os contratos de
lease-back precitados foram avençados
anteriormente ao termo legal, e, como
tal, estão os referidos pactos fora do
período suspeito, no qual se desenvolve a investigação quanto aos negócios
jurídicos lesivos à massa através das
ações falenciais, pois apenas a cessão
dos direitos atinentes à opção de compra dos bens arrendados é que ocorreu
no interregno de tempo passível de ser
examinado na presente ação. Portanto,
em face das razões anteriormente deduzidas improcede a pretensão das rés
Nacional e Comprebem contra as sociedades arrendadoras, cujo intuito daquelas era de envolver estas nos efeitos
a serem constituídos através da ação em
exame, o que se mostra juridicamente
impossível, uma vez que as arrendadoras sequer participaram do “contrato de
promessa de compra e venda de imóveis, móveis e utensílios, instalações,
fundo de comércio de lojas, veículos
com transferência de direitos e obrigações”, avençado entre a autora e as rés,
o qual é objeto do presente litígio.
2.11. A conclusão precitada decorre
não somente das causas jurídicas de
149
pedir apontadas na peça vestibular, transferência de propriedades imobiliárias realizadas após a quebra e a alienação do
estabelecimento comercial, lato sensu,
sem a anuência dos credores, fatos jurídicos estes que se enquadram nas hipóteses taxativamente previstas na norma legal antes invocada, como também
no próprio objeto da lide, cujos bens e
direitos, representados aqui pelos contratos sujeitos à ineficácia relativa da
ação falencial em tela, estão perfeitamente descritos e apontados na exordial, sendo que nesta não foram elencados os contratos de arrendamento mercantil avençados com as instituições
arrendadoras citadas no feito em exame, portanto, contra estas entidades, não
há qualquer pretensão a ser deduzida,
pois o litígio se circunscreve contra quem
deverá ocupar o pólo atinente aos arrendatários e os efeitos da ação
revocatória contra estes, pois as cessões
de direito realizadas é que estão sob o
foco da análise falencial.
2.12. Feita a análise em tela, resta
definir apenas dois aspectos quanto ao
chamamento processual das entidades
arrendadoras, realizado no presente feito: em primeiro lugar, a que título este
ocorreu; e em segundo lugar, a quem
cabe satisfazer o ônus da sucumbência
quanto à intervenção daquelas nestes
autos, na medida em que não há de ser
atribuído às mesmas qualquer comando
sentencial, seja de cunho constitutivo
negativo ou condenatório.
O primeiro ponto a ser solvido é
quanto ao tipo de intervenção de terceiro a ser atribuído às entidades arrendadoras demandadas, sendo que, no caso
em exame, entendo que a citação destas levada a efeito nos autos se deu à
150
guisa de denunciação à lide por parte
das demandadas Nacional e Comprebem,
pois esta seria a única forma processual
de trazer o litisconsorte passivo ao feito,
na forma do art. 71 do CPC, c/c o art.
70, inc. III, do mesmo diploma legal.
Portanto, definido o tipo de intervenção ocorrida no presente feito, bem
como tendo as demandadas Nacional e
Comprebem dado causa a esta, conforme deflui do requerimento constante à
fl. 230 dos autos, o qual obteve sucesso
no agravo de instrumento anteriormente mencionado, aliado ao fato de que
decaíram as rés-denunciantes da pretensão deduzida contra os denunciados,
devem aquelas arcar com o ônus processual atinente às custas e honorários
profissionais perante estes.
Pontos incontroversos: quanto à existência do negócio jurídico objeto da
revocatória; a falta de anuência dos
credores da falida com a venda dos bens
pertencentes à massa; e o conceito de
estabelecimento comercial. 2.13. No que
tange ao mérito da causa, entendo que
merece integral guarida a pretensão da
autora, tendo em vista que tanto os negócios jurídicos descritos na exordial,
como também o prejuízo à massa, decorrente das referidas transações, restaram provados no curso da lide, o que
autoriza a declaração da ineficácia daqueles atos frente à falida, posto que as
vendas em questão não tiveram a ciência e muito menos a concordância de
seus credores na época em que foram
entabuladas, o que importa na incidência do disposto no art. 52, inc. VIII, da
Lei de Falências.
Aliás, a esse respeito é o parecer do
culto curador das massas, às fls. 2.760/
2.762, o qual acolho integralmente, in-
SENTENÇAS
clusive como razão de decidir, cujos
argumentos passo a transcrever sinteticamente a seguir, de sorte a evitar tautologia: “Verifica-se pela análise do feito, que a Cia. Dosul realizou transação
com os requeridos, da espécie compra
e venda, descritas na inicial, pelo valor
aproximado de R$ 11.698.000,00, integralizado também por fundo de comércio, além de não terem sido os bens
devidamente individualizados. Na época, como sabido, a Cia. Dosul enfrentava enormes dificuldades econômicas,
tendo efetuado negócio com os requeridos, por valores muito abaixo do valor
real, conforme se depreende do teor da
perícia contábil, causando prejuízo de
milhões de reais. Ressalte-se que os
negócios foram realizados antes do
decreto falencial, quando inúmeras ações
tramitavam com a falida, encontrando-se aqueles dentro do termo legal.
“Tais circunstâncias mencionadas,
sem que se faça necessária análise mais
aprofundada, demonstram o prejuízo real
trazido aos interesses da empresa, inclusive denotando administração temerária por parte dos sócios. Com base
nisto, a teor do que preceitua o art. 52,
inc. VIII, da Lei de Falências, sem que
se perquira sobre má-fé em relação a
credores, são os atos considerados ineficazes em relação à massa. A prova
produzida é clara quanto à existência,
na ocasião, de credores, bem como de
títulos protestados. Portanto, inequívoca
a ocorrência de prejuízo ao patrimônio
da empresa, e, via de conseqüência,
aos credores. Mas, no entanto, a prova
leva ao reconhecimento, também, da
intenção fraudulenta dos negociantes.
Para tanto, traz-se à colação dois fatos
que, no mundo negocial, não podem
SENTENÇAS
ser praticados, nem sequer por comerciantes desavisados, o que, sem dúvida,
não é o caso das pessoas envolvidas.
Primeiro, a situação de se ter alienado
os imóveis por valores muito abaixo
dos valores de mercado, e, além disso,
recebendo em pagamento valor pequeno em dinheiro. Segundo, o fato de não
se ter especificado os demais bens
móveis que integraram a negociação, o
que demonstra a forma no mínimo
pouco cuidadosa da realização do negócio. A fraude aos credores, então, é
induvidosa, entendendo-se necessária a
declaração de ineficácia pretendida pela
autora...”.
Ainda, em nova manifestação, às fls.
2.959/2.961, o parecer precitado foi integralmente ratificando, tendo o agente
do Ministério Público acrescentado: “...
De se ressaltar, Excelência, meramente
procrastinatório o arrolamento de prova
oral formulado pelas demandadas, que,
com a exclusão dos valores a título de
fundo de comércio, deixam cabalmente
provada sua intenção de fraudar credores, ainda mais considerando o vulto
dos negócios realizados, os muitos títulos protestados anteriormente, os créditos fiscais não-honrados. A estimativa
para alienação inferior aos valores de
mercado, o que resta sobradamente
comprovado nos autos pela prova documental acostada, não deixa qualquer
dúvida sobre a procedência dos pedidos de ver declarada a ineficácia dos
negócios objeto de exame, até porque
não fossem lucrativos, não teriam sido
compradas lojas, com móveis e veículos, etc.”.
2.14. Dessa forma, a venda dos bens
pertencentes ao patrimônio da falida,
sem anuência dos credores naquela
151
época, importaram em prejuízo tanto ao
patrimônio da massa, que não teve condições financeiras de se soerguer após
aquelas alienações, como ao concurso
de credores, na medida em que aquele
patrimônio deixou de integrar a execução coletiva com a diminuição dos
quinhões a serem satisfeitos a estes
dentro das respectivas categorias.
2.15. É importante aqui trazer à baila
o conceito de estabelecimento comercial, questão esta magnificamente enfrentada em acórdão que trata de tema
similar referente à mesma massa falida,
cujo Relator foi o eminente Des. Osvaldo Stefanello, que, com rara acuidade
jurídica, enfoca esta questão de maneira
insofismável, como se vê a seguir: “Equivoca-se a apelante no que diz com o
‘conceito de estabelecimento comercial
ou industrial’ para efeito de falência e
arrecadação de bens. Está certo Requião,
citado, aliás, pela apelante, ao dizer que
estabelecimento comercial é a universalidade de fato constituída ‘pela complexidade de bens unitários, que são aglutinados pela vontade do empresário
‘para servir-lhe de instrumento de atividade’. (“Curso de Direito Falimentar”,
16ª ed., Ed. Saraiva, I/201)
“Porém, da lição do comercialista,
não se pode pretender limitar como estabelecimento comercial apenas os bens
diretamente envolvidos com o comércio, ou bens de mercancia. Estabelecimento comercial é constituído dos bens
de comércio sim. Mas nele incluídos
estão todos os bens que lhe dêem suporte financeiro ao estabelecimento
comercial. Ou seja, bens que não fazem
diretamente parte da atividade comercial, ou não diretamente ‘integrados à
atividade comercial da empresa falida’,
152
na palavra da apelante (fl. 130), mas
que lhe dão suporte material, inclusive
para efeito de dificuldades financeiras
que possa enfrentar o comerciante em
sua mercancia”. (Apelação Cível nº
599215597, TJRGS, 6ª Câmara Cível, Rel.
Des. Osvaldo Stefanello, 1º-03-00)
Assim, mais não precisaria ser dito,
a não ser ressaltar que o conjunto dos
bens objeto do pré-contrato de promessa de compra e venda de parte do
patrimônio da falida, avençado em 1905-95 (fls. 39/40), cuja transferência foi
concretizada através do contrato de
promessa de compra e venda de bens
imóveis, móveis e utensílios da autora
na data de 1º-08-95 (fls. 41/44), dentro
do termo legal e cerca de 01 ano e 03
meses, anterior à decretação da quebra,
efetivamente constituíam um importante aporte econômico da falida, os quais
geravam uma riqueza responsável por
cerca de 60% do seu faturamento. Portanto, este ativo primordialmente imobilizado efetivamente integrava o estabelecimento comercial da massa, pois
estava diretamente ligado à atividade
comercial desta, razão pela qual se
subsumia na universalidade de fato
caracterizadora da aviamento mercantil
da falida.
As razões jurídicas para a fixação
do termo legal a partir do primeiro protesto, em contraposição à data referente
ao início do processamento da concordata.
2.16. Note-se que, ao contrário do
que argumentam as rés em sua defesa,
às fls. 218/222, o termo legal retrotrai
até a data do primeiro protesto, portanto, é indiscutível que os negócios entabulados ocorreram neste interregno de
tempo, de sorte que estão sujeitos ao
SENTENÇAS
exame do juízo falencial através da presente ação revocatória.
2.17. Ainda, quanto à fixação do
termo legal, igualmente entendo correto
que este tenha sido fixado a partir do
primeiro protesto, pois não houve no
processo de concordata, que culminou
com a quebra da falida, concessão daquele favor legal, visto que o ato judicial que determinou o andamento daquele feito mencionado na exordial sequer é decisão interlocutora, posto que
irrecorrível, mas se trata apenas de despacho ordenatório de admissibilidade do
processamento da concordata, conforme estabelece o art. 161, § 1º, da Lei de
Quebras.
2.18. Por outro lado, o despacho
inicial do processo da concordata da
falida não importa em atestado de
solvabilidade da mesma, tendo em vista
que no mesmo apenas são examinados
os pressupostos pré-processuais e processuais quanto ao provável direito à
obtenção do favor legal, como preleciona com extrema propriedade o jurista maior deste País, Pontes de Miranda,
que, ao tratar desta questão, assevera
que: “O despacho de processamento é
de cognição não-plena” (“Tratado de
Direito Privado”, tomo XXX, 3ª ed., p.
182).
Dessa maneira, não tem o despacho
o mesmo caráter ou equivale a uma
sentença concessiva de concordata, por
conseguinte, também, não pode servir
como um atestado de solvabilidade da
falida, tanto é fato que esta situação foi
identificada no curso do processo em
questão e teve como corolário a decretação da quebra da empresa falida. Por
fim, quanto ao referido despacho que
admite o processamento da concordata,
SENTENÇAS
é oportuno trazer à colação os ensinamentos dos juristas José da Silva Pacheco e Rubens Requião que asseveram:
“Se o pedido estiver em ordem, o Juiz
determinará o seu processamento. É esse
despacho recorrível? No regime do direito anterior, decidiu-se que desse despacho não cabe agravo (“RT” nº 45/
428), ou qualquer recurso (“Revista Forense” nº 119/460)” (Silva Pacheco, “O
Processo de Falência e Concordata”, 6ª
ed., p. 653).
“No processamento preliminar da
concordata, o Juiz não profere sentença. Cabe-lhe, apenas, em despacho
deferir o pedido inicial para mandar
processar a concordata, se esse for o
caso. A sentença, esta sim, será proferida no final desta fase, após o procedimento de toda a instrução. Se o pedido estiver em termos, corretamente
instruído como deve ser, o Juiz determinará seja processada a concordata,
proferindo despacho ordenatório. Desse despacho não existe recurso.” (Rubens Requião, “Curso de Direito Falimentar”, 2º vol., Ed. Saraiva, 6ª ed., pp.
77/78)
2.19. A conclusão que se impõe
diante da situação jurídica existente é
uma só, a fixação do termo legal, tendo
por critério o primeiro protesto, é inarredável e insofismável, pois não houve
a concessão da concordata para que se
admitisse a possibilidade jurídica de o
período suspeito começar a partir da
data da distribuição da concordata, o
que traria como pressuposto ínsito nesta hipótese de que não haveria protesto
superior a 30 dias deste termo, o que
também não coaduna com a realidade
no caso em exame, nem ao menos
pode-se pretender mitigar a investiga-
153
ção judicial neste interregno de tempo,
sob o argumento de que, se o mesmo
se retrotraísse muito, traria insegurança
jurídica ao adquirente de boa-fé, posto
que o valor maior a ser preservado aqui
não é o individual, mas, sim, o concursal consubstanciado na massa de credores.
É importante destacar que, no interregno de tempo abrangido pelo termo
legal, é suficiente para a fixação deste
prazo estabelecer o marco final até
quando o mesmo será retrotraído, ou
seja, à data do primeiro protesto, pois
o exame da solvência, ou não, da falida
ante as presunções estabelecidas em lei,
quanto a este tema, militam contrariamente ao negócio entabulado, consoante esclareci anteriormente.
2.20. Em contrapartida, não há que
se discutir da conveniência ou oportunidade da fixação do termo legal, levando
em conta apenas a análise de uma das
contas do balanço, ou com fulcro em
publicações do meio empresarial, pois
somente o exame econômico-financeiro
da referida empresa é que vai revelar
sua real situação de solvência no curso
dos anos e, em especial, na época em
que foram realizados os referidos negócios jurídicos, na medida em que o
balanço patrimonial é apenas uma fotografia no tempo da sociedade comercial,
que, dependendo do ângulo favorável,
pode ocultar os índices de endividamento
da empresa e sua própria solvabilidade,
como se vê no caso em exame, no qual
a venda dos bens descritos na exordial
por preço reduzido acarretou a crise econômico-financeira que restou na quebra
da postulante.
Além do que, na fixação do termo
legal, não se discute a insolvência ou
154
liquidez da empresa falida, mas, sim, os
atos praticados por esta, que tanto podem ter sido causa da insolvência ou
decorrerem desta, sendo que em qualquer hipótese o norte é a verificação se
do negócio jurídico pactuado houve, ou
não, prejuízo à massa ou aos credores,
face ao tratamento desigual dado a estes
últimos.
2.21. No que concerne ao exame do
termo legal, as questões a serem enfrentadas inicialmente são quanto à sua
finalidade e o seu lapso de duração. A
toda evidência que este interregno de
tempo está intimamente ligado com os
atos jurídicos praticados pela falida, anteriormente à decretação da quebra e
da eficácia destes quanto à massa, pois
não se discute aqui a validade do negócio jurídico entabulado entre as partes, mas sua ineficácia relativa em sede
de ação revocatória, aliás este interstício
serve para ser verificado judicialmente,
se a referida transação trouxe, ou não,
prejuízo à massa.
Assim, o lapso de tempo precitado,
o qual alguns autores denominam de
período suspeito tem como razão jurídica a verificação judicial anteriormente
mencionada e, por isso, retrotrai a partir
do primeiro protesto até o termo final
do 60º dia deste marco, consoante estabelece o art. 14, inc. III, da Lei de
Falências, veja-se que não há qualquer
limitação legal quanto ao prazo que deva
decorrer entre a decretação da quebra
e o primeiro protesto, pois está condicionada esta investigação a este evento
pretérito certo que serve para presumir
o estado de insolvência.
Frise-se que o protesto marca a
impontualidade na satisfação de obriga-
SENTENÇAS
ção líquida, certa e exigível, o que faz
presumir o estado de insolvência, isto
é, que a empresa enfrenta crise econômica, uma vez que o seu patrimônio
líquido é negativo, na medida em que
a soma de suas coisas corpóreas e
incorpóreas (bens + direitos) é menor
do que as obrigações que assumiu (débitos), culminando com o afastamento
desta sociedade do meio produtivo, em
função de não possuir mais condições
econômicas e financeiras de prosseguir
no comércio, situação esta que não surge
com a decretação da quebra, ao contrário, já vigora de longa data, portanto,
neste período os negócios realizados
devem ser investigados com precisão e
cautela, de sorte a que não sejam lesados os credores da falida e desatendido
o princípio de ordem pública e essencial ao desenvolvimento do processo
falimentar do par conditio creditorum.
É oportuno trazer à colação a este
respeito a ementa da decisão proferida
nos autos do Agravo de Instrumento nº
582001251, cujo Relator foi o saudoso
Des. Antonio do Amaral Braga, quando
então compunha a 3ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, quando,
com rara acuidade jurídica, definiu esta
questão da fixação do termo legal, ao
asseverar que: “Falência. Termo legal.
Deve ser fixado quando caracterizada a
insolvência. Protesto de título. Pouco
importa se não foi o único. O pagamento em cartório não elide a presunção
que o protesto faz gerar. Os protestos,
protestos válidos, não têm na realidade
a menor influência na hipótese, porque
o que se quer para fixar o termo legal
da falência é a época em que se verificou a defasagem econômica da firma
SENTENÇAS
falida. Isto está em Waldemar Ferreira,
Valverde e outros autores, que agora
vou-me furtar de citar”.
Prejuízo à massa e a incidência das
hipóteses do art. 52 da Lei de Quebras,
análise quanto à situação financeira da
falida no período suspeito e ao preço de
venda dos imóveis.
2.22. No caso em exame, não há a
menor dúvida de que houve o efetivo
prejuízo aos demais credores com as
transações consubstanciadas no pré-contrato de promessa de compra e venda
de parte do patrimônio da falida, avençado em 19-05-95 (fls. 39/40), cuja transferência patrimonial foi concretizada
através do contrato de promessa de
compra e venda de bens imóveis, móveis e utensílios da autora, na data de
1º-08-95 (fls. 41/44), avençados entre as
partes e objetos da presente ação
revocatória, tendo em vista que houve
a venda de ativo imobilizado substancial da falida, o qual contribuía com cerca
de 60% do faturamento da mesma, de
acordo com a análise comparativa realizada às fls. 35/38 do período anterior
ao referido negócio jurídico e o imediatamente posterior aos pactos em exame, informação técnica esta na qual se
constata, também, a drástica redução do
quociente de solvência.
Frise-se que aquela fonte de receita,
uma vez retirada da falida, por certo foi
uma das causas determinantes de sua
derrocada econômica e quebra, visto
que, no seu ramo de atividade comercial, é de fundamental importância a
manutenção de elevado número de
imóveis (lojas) ligados ao seu objetivo
social, de sorte a atingir o maior número de consumidores e mercados, a fim
155
de obterem a necessária lucratividade
com o giro da mercadoria adquirida de
seus fornecedores, o que foi inviabilizado
pelos negócios jurídicos em exame.
2.23. É oportuno considerar, ainda,
que o fato de alguns dos imóveis que
fazem parte da presente demanda serem objeto de arrendamento mercantil
com opção de recompra pela falida
em nada invalida as assertivas
precitadas, tendo em vista que os
contratos de leaseback avençados pela
postulante autorizariam esta a consolidar o domínio sobre os referidos bens,
direitos estes cedidos para a primeira
demandada. Aliado ao fato de que o
ponto comercial relativo a estas lojas
estava sob a guarda e uso da autora,
exercendo esta suas atividades comerciais naquele local, bem como obtendo receita operacional de porte com
estas, sendo que a entrega das mesmas às rés através dos contratos analisados na presente ação falencial trouxe prejuízo econômico àquela. Situação esta que veio em detrimento da
massa subjetiva de seus credores, posto
que foi retirada a possibilidade do síndico de exercer a opção de cumprir
os referidos contratos de leasing, em
benefício daqueles, hipótese esta que
está expressamente autorizada no art.
44 da Lei de Quebras.
2.24. Outro ponto que merece ser
destacado na lide é o que diz respeito
à assunção de obrigações da falida por
parte da ré Nacional, situação jurídica
esta que em nada favorece as demandadas, ao contrário do que as mesmas
asseveram à fl. 216, no sentido de que:
“Se a falida favoreceu algum credor em
detrimento de outros, é matéria total-
156
mente alheia ao presente processo,
eventualmente reconhecida afronta ao
princípio da par conditio creditorum,
na forma do art. 52, inc. II, a única
conseqüência é a devolução do dinheiro à massa”; posto que a ação revocatória
tem precisamente o intuito de recompor
a isonomia de tratamento entre os credores da massa na sua respectiva categoria. Portanto, o negócio jurídico que
deu causa a este descompasso deve ser
atingido pela ineficácia relativa do presente feito, a fim de restabelecer as
condições de acesso ao concurso do
ativo da falida.
2.25. Aliás, no que tange aos credores da falida é preciso que se diga que
as demandadas também estavam nesta
condição à época dos referidos negócios
jurídicos de promessa de compra e
venda, portanto, aproveitaram-se desta
situação para trocarem direitos obrigacionais por imóveis do ativo imobilizado da Massa, satisfazendo sem qualquer
critério técnico alguns dos credores da
postulante, inclusive obtendo vantagem
com a dilação dos prazos para honrarem aquele passivo, sem o correspectivo acréscimo financeiro (juros).
Ademais, a ré Nacional também conseguiu desconto de um dos fornecedores pagos na ocasião (fl. 1.502), quando
já era evidente o estado de insolvência
da mesma, o que contraria os princípios
precitados referentes a concurso de
credores e é, igualmente, razão suficiente
para que os contratos objetos do litígio
sejam atingidos pela ineficácia relativa
frente à autora, retornando os referidos
bens a integrarem o ativo da falida, pois
não houve o ingresso de qualquer receita no fluxo de caixa da falida.
SENTENÇAS
2.26. Assim, em função dos fatos
anteriormente narrados, é de se concluir que: ou a demandada Nacional é
uma empresa excessivamente crédula e
benemerente, ou os negócios entabulados lhe foram desproporcionalmente favoráveis; hipótese esta que se mostra
mais crível, visto que existiam cerca de
“12.909 títulos protestados à época da
realização do negócio jurídico atacado
de créditos superiores a R$ 100.000,00
(fls. 1.479/1.480), dívidas junto às Fazendas Públicas e INSS no montante de
R$ 25.430.002,85 (fl. 1.491)”, conforme
constatado pelo perito nomeado por este
Juízo, o que é confirmado pelo assistente técnico da autora, e não é negado
pelo assistente da ré, o qual apenas
traça juízos de valor, e não técnicos,
sobre a possibilidade de discussão judicial quanto aos referidos créditos, numa
clara tentativa de descaracterizar o estado de insolvência da postulante, por
ocasião das transações levadas a efeito,
o que, aliás, foi a tópica da defesa apresentada pelas rés.
2.27. A par disso, o laudo pericial
atesta às fls. 1.498, in fine, e 1.504 que
não houve a satisfação do fundo de
comércio atinente às lojas transacionadas nos contratos objetos do litígio, cujo
valor monta em R$ 4.383.116,55, excluída aqui a loja Dosul nº 65 por impossibilidade técnica de realização do cálculo, o que aliás é ponto incontroverso
da lide, posto que confirmado pelas rés
em sua defesa, à fl. 218, ao afirmarem
que: “O fundo de comércio não fazia
parte do negócio, nem interessava à
Nacional ou à Dosul”; isto é, não interessava àquela demandada pagar pelo
mesmo, na medida em que o ponto
SENTENÇAS
comercial foi vendido com a característica intrínseca em tela, aderindo esta à
referida transação, sem que fosse dado
pelo mesmo a correspectiva prestação
monetária.
Vantagem econômica esta recebida
pelas rés em detrimento dos demais
credores da falida, acresça-se a isto a
receita projetada no valor de R$
1.964.844,63, a qual perdeu a autora
com a transação em exame, e se tem
uma idéia clara do prejuízo ocasionado
com o negócio jurídico sub judice, em
especial, relativamente aos credores que
não integraram a referida avença (fl.
1.508).
2.28. Não obstante isso, ou seja, que
as próprias rés tenham negado a aquisição do fundo de comércio, o assistente técnico das demandadas se posiciona
em sentido contrário, às fls. 1.843 e
1.851, restringindo-se a limitar este as
coisas corpóreas pertencentes à falida,
bem como afirmando que houve a aquisição do mesmo pelo simples fato de
ter sido referido isto expressamente no
compromisso de compra e venda avençado entre as partes, em 1º-08-95, argumentos estes que não subsistem a uma
melhor análise técnica e à realidade fática
comprovada pelas provas carreadas aos
autos, sendo oportuno aqui trazer à baila
as conclusões do perito nomeado por
este Juízo, a seguir: “O critério de análise e determinação do lucro líquido
mensal do estabelecimento em tela –
Cia. Dosul de Abastecimento – para as
lojas em questão, cinge-se no aspecto
simples e de fácil constatação de que os
resultados de uma empresa que apresenta dificuldades financeiras, em
concordata ou até em fase de falência,
157
não tem como significado a falta de
atratividade comercial, mas em geral e
com muita freqüência problemas
gerenciais e até de má-administração.
(fl. 2.771, in fine)
“Se assim não fosse em relação à
empresa em questão, se o fundo de
comércio desta fosse ‘fundo de fracasso’, como foi conceituado no laudo das
fls. 1.837/1.871, numa tentativa de demonstrar que as lojas em questão não
tinham atratividade e, em conseqüência, não tinham fundo de comércio, não
teria sentido a aquisição das lojas em
questão pela empresa-ré.
“O valor potencial é representado no
meio avaliatório e empresarial pela capacidade que uma determinada empresa, no seu todo ou pela individualidade
que cada filial possui, de produzir renda
máxima. Este valor pode-se situar além
ou aquém do valor econômico representado pelos seus resultados, e uma avaliação deste valor econômico se mostra,
face a este valor potencial, um negócio
oferece, ou não, atrativos para aplicação
de capitais (fl. 2.773).
“A alma do negócio seria nada menos
do que a força atrativa, que a fama dos
estabelecimentos, o prestígio das marcas, o valor das invenções, a irradiação
da simpatia e a afabilidade que os empregados exercem sobre a clientela
(Clóvis Costa Rodrigues). A freguesia é
a probabilidade que o comprador habitual terá no local antigo (Anson Marston
e Tomas Agg, fl. 2.774)”. (omissis e grifos
nossos)
No mesmo diapasão, é o parecer do
assistente técnico da postulante, à fl.
1.916, ao asseverar que: “Pretender apurar o fundo de comércio a partir do
158
resultado líquido obtido pela empresa,
e não pela sua capacidade geradora de
receita, poderia levar a equivocada e
inaceitável possibilidade de ter-se fundo de comércio negativo, o que tecnicamente seria uma aberração contábil”.
2.29. Dessa forma, desnecessário
seria fazer qualquer outro comentário a
respeito do denominado fundo de comércio, uma vez que ficou suficientemente demonstrado que este é constituído também por coisas incorpóreas,
como, por exemplo, o ponto comercial
e a clientela, as quais certamente não
foram consideradas nos negócios jurídicos levados a efeito e objetos da presente ação, na medida em que foi em
conta, tão-somente, os bens corpóreos
prometidos à venda pela falida, decréscimo este que veio em prejuízo não só
desta, mas dos credores que formam a
massa subjetiva, situação jurídica que
autoriza a presente ação revocatória, em
especial, em razão de não terem anuído
a integralidade dos credores que a transação em tela.
2.30. Ainda, a respeito do efetivo
prejuízo causado aos demais credores
da falida que não fizeram parte dos
negócios jurídicos objeto do litígio, é
preciso que se tenha presente que a
autora já se encontrava em estado de
insolvência por ocasião dos negócios
jurídicos examinados nestes autos, o que,
num primeiro momento, não foi possível ser detectado no balanço especial
apresentado quando do pedido de concordata desta, mas que foi perfeitamente identificado na análise técnica feita
pelo perito nomeado por este Juízo, o
que por si só é razão suficiente para
comprovar o dano causado à massa
SENTENÇAS
subjetiva e à quebra do tratamento isonômico entre os credores de mesma
categoria.
2.31. Quanto a este ponto do litígio,
é fundamental verificar a criteriosa análise realizada pelo perito designado neste
feito, a quem coube desvelar tecnicamente esta questão, como deflui das
assertivas a seguir transcritas: “Os quocientes acima demonstram, como já dito,
que a cobertura do passivo total só se
postava viável com a participação do
ativo permanente. Assim, com seu ativo
circulante, a empresa só poderia quitar
45,3% do passivo circulante; com o ativo circulante acrescido do realizável a
longo prazo poderia quitar 43,7% do
passivo total. Por conseguinte, o ativo
permanente teria de, em qualquer dos
quocientes, contribuir com mais de 50%
à cobertura do passivo.
“Conclui-se do exposto que inobstante o balanço demonstrar posição ainda de solvência (patrimônio líquido positivo), a situação financeira da Cia.
Dosul de Abastecimento postava-se extremamente difícil, já se vislumbrando
a necessidade de moratória (fls. 1.517/
1.518).
“O pedido foi instruído, dentre outros documentos, com o Balanço Patrimonial de 31-12-95, por onde se infere,
claramente, um estado de insolvência
(fl. 1.521). Sob o aspecto puramente
aritmético, considera-se que o patrimônio líquido manteve-se – embora em
escala decrescente – positivo, as posições acima tabuladas são de solvência
(fl. 1.522).
“Em relação às posições calculadas
em 31-12-94 (quesito f) constata-se, à
evidência, deterioração na situação eco-
SENTENÇAS
nômico-financeira da autora. Como demonstrado, o ativo circulante não cobria
mais do que 35% do passivo circulante
em 30-04-95 e, em 31-05-95, mais do
que 34%; esse ativo circulante acrescido
do realizável a longo prazo cobria o passivo total nos percentuais de 36% e 35%,
respectivamente, nas datas citadas. A dependência do ativo permanente, destarte, aumentou para 64% e 65%, respectivamente, nas duas datas.
“Ainda com referência às datas mais
próximas da negociação sub judice, verifica-se que o balancete de 30-04-95
projetava um prejuízo da ordem de R$
7.252.217,67 e, o de 31-05-95, de R$
9.248.870,74 (acumulado). Nessa projeção, fácil concluir-se que já no mês seguinte o quociente de solvência passaria
a negativo.
“Das análises expostas, consideradas
conjuntamente, denota-se que na época
em questão a situação econômico-financeira da Cia. Dosul de Abastecimento
postava-se à beira da insolvência e préfalimentar (fl. 1.528). A partir do mês
de junho de 1995, a contabilidade da
Cia. Dosul de Abastecimento passou a
demonstrar patrimônio líquido negativo
(passivo a descoberto), como adiante
demonstraremos.
“Em tal situação, concluímos, após
vários testes, não ser aplicável a fórmula de cálculo de Fatores de Insolvência
de Kanitz e decorrente aferição pelo
respectivo Termômetro de Insolvência.
Aliás, a citada situação patrimonial líquida negativa por si só, obviamente, já
caracteriza posição de insolvência (fl.
1.534).
“O quociente de solvência da empresa, embora já em descendência rela-
159
tiva a partir de janeiro de 1995, agravou-se relevantemente após o mês de
maio. Os índices médios obtidos da análise dos balancetes dos meses de janeiro a dezembro de 1995 ficaram assim
divididos: quociente médio de janeiro a
maio de 1995: 1,14 (solvente); quociente médio de junho a dezembro de 1995:
0,46 (insolvente) (fl. 2.779).
“Quanto às receitas operacionais
(vendas), saliente redução após o mês
de maio de 1995, assim evoluindo até
o final do ano. No exercício seguinte,
não houve retomada dos níveis operados no período de janeiro a maio de
1995. Das análises expostas, é de concluir-se que no período estudado houve
efetiva redução da atividade econômica
da autora Cia. Dosul de Abastecimento,
ora em regime falimentar”. (fl. 2.780)
(omissis e grifos nossos)
Igualmente, o assistente técnico da
autora reafirma as conclusões do laudo
pericial ao asseverar que: “De outra
parte, apenas com os elementos da contabilidade da autora, que como se sabe,
nem sempre espelham o real valor dos
bens do ativo permanente imobilizado,
é possível verificar que, com a transferência de 85,11% ou 85,47% do seu
permanente, a autora quitou tão-somente
63,30% ou 60,29% do seu passivo
quirografário (fl. 1.921).
“Vale dizer, com a redução de cerca
de 85% da sua capacidade de gerar receitas, em valores contábeis, a autora
reduziu apenas cerca de 60% do seu
passivo. As decorrências de tal negociação, conforme já se informou, foram o
agravante da situação financeira da
empresa e da sua posterior insolvência,
com prejuízo aos credores (fl. 1.922).
160
Conforme acima informado, o prejuízo
aos credores da autora são evidentes
diante da transferência de patrimônio
aos credores da massa falida, que tiveram as garantias dos seus créditos extintas ou, pelo menos, consideravelmente
diminuídas. (fl. 1.923)
“Mais uma vez restou claramente
demonstrado no quesito que após a
concretização do negócio com as rés o
quociente de solvência da empresa, que
até maio/95 lhe permitia pagar suas
dívidas, tornou-se decididamente negativo, caracterizando sua insolvência e
quebra. Tal situação, repita-se, deveu-se à drástica redução da capacidade de
geração de receitas, de forma desproporcional à redução das suas dívidas (fl.
1.947)”.
2.32. Portanto, em razão dos dados
técnicos anteriormente mencionados, não
é preciso ser expert para chegar à conclusão de que os negócios jurídicos entabulados entre as partes foram danosos
à falida e aos demais credores, pois, a
partir de maio de 1995, houve considerável redução patrimonial de seu ativo
permanente (investimentos, imóveis,
maquinário, etc.), cerca de 80%, cujo
corolário econômico foi a redução de
2/3 de sua atividade mercantil e receita
operacional (vendas), o que ocasionou
a impossibilidade de satisfazer as suas
obrigações de curto prazo (passivo
circulante), ou seja, os seus fornecedores, culminando por arrastar a autora
para área de insolvência, segundo “os
fatores de Kanitz”, isto é, a redução de
seus bens (coisas corpóreas) e direitos
(coisas incorpóreas) fez com que suas
obrigações ultrapassassem o somatório
daqueles e fizessem com que o patri-
SENTENÇAS
mônio líquido se transformasse em
negativo (bens + direitos – obrigações
< 0), isto é, na crise econômica que
caracteriza o estado falimentar.
A par disso, o assistente técnico da
ré discorda das conclusões do perito
oficial sem justificar o porquê, ou melhor usando o pífio argumento de que
não houve prejuízo aos demais credores, pois foram pagos 98% dos títulos
protestados (fl. 1.856), ou seja, que a
satisfação de pequena parcela dos credores quirografários, se considerados
apenas estes títulos em relação a toda
gama de categorias de credores (trabalhistas, fiscais, etc.), e mais, limitado
aqueles a alguns fornecedores, seria
suficiente para preservar o princípio do
pars conditio creditorum e evitar o dano
causado à massa subjetiva, o que não
corresponde à realidade.
Por fim, também não podem prevalecer as afirmações do assistente técnico
das demandadas de que, no período no
qual foram realizados os negócios jurídicos entabulados entre as partes e
objeto da discussão no presente feito, o
patrimônio líquido da autora era positivo, nem que a referida transação foi
vantajosa para esta, pois estas assertivas
são inconsistentes frente à realidade, pois
se isto efetivamente correspondesse à
verdade, pergunta-se: por que a concordata se tornou inviável, e a postulante pleiteou sua autofalência? A resposta
a este questionamento é uma só e já foi
dada anteriormente, a venda de grande
parte do patrimônio da autora ocasionou a inviabilidade econômica da mesma e a sua quebra.
Ademais, o assistente técnico das rés
excluiu do mês de maio de 1995 (fl.
SENTENÇAS
1.858) o valor do primeiro negócio jurídico entabulado entre as partes e objeto
da lide, quando a referida transação foi
levada a efeito neste interregno de tempo (19-05-00), em manifesta contradição aos princípios contábeis da oportunidade e da competência, dispostos, respectivamente, nos arts. 6º e 9º da Resolução do Conselho Federal de Contabilidade, de 29-12-93, a fim de constatar
a variação patrimonial e consignar as
alterações do ativo e passivo no momento em que ocorreram. Manobra esta
com o claro intuito de obter um resultado positivo para o patrimônio líquido
naquele período e distorcer a análise
patrimonial da falida, levada a efeito pelo
perito oficial, sem atentar aos parâmetros
fundamentais de confiabilidade e certeza
da contabilidade criada por Lucca
Pacciolo, nem ao princípio comezinho
da partida dobrada, isto é, a cada débito
corresponde um crédito de igual valor
no exato ponto de sua efetivação, o que
poderia passar desapercebido por este
magistrado, não fosse o fato de ser especialista em finanças empresariais pela
Fundação Getúlio Vargas, o que equivale ao grau de economista.
2.33. O último ponto a ser examinado, que também demonstra de forma
insofismável o prejuízo causado à massa de credores com os negócios jurídicos sub judice, diz respeito ao fato de
que os bens e direitos vendidos pela
falida à ré Nacional o foram por valor
inferior ao preço de mercado destes,
consoante está comprovado no laudo
de engenharia das fls. 1.960/2.002, no
mínimo no que tange aos bens imóveis
nos quais houve a fixação do valor
destes pelo perito oficial em R$
161
20.443.822,96 para aquela época (fl.
1.992), os quais acrescidos ao valor dos
móveis, utensílios e instalações no mesmo montante contratado de R$
8.302.000,00, bem como da quantia de
R$ 900.000,00 (fl. 2.190), relativa aos
veículos transacionados, mais o fundo
de comércio no quantum de R$
4.383.116,55,
importam
em
R$
34.028.939,51.
Em contrapartida, o passivo assumido por aquele demandado foi de R$
25.821.357,00 e que foi a base pecuniária da referida transação, embora não
houvesse aqui transferência de valores
para a falida, mesmo assim houve o
deságio de 24,12% sobre o preço que
deveria ter sido fixado para referida
venda, isto é, uma diferença em termos
nominais de R$ 8.207.582,51, sendo que
este montante deixou de ser acrescido
na receita não-operacional da falida,
ocasionando dano a esta, assim como
aos credores da autora, que deixaram
de obter este aporte financeiro.
Note-se que o referido deságio chegaria ao percentual de 41,51%, se considerado apenas o valor da avaliação
dos bens imóveis, à fl. 1.992, e aquele
estipulado contratualmente para estes
nos compromissos de venda avençados
entre as partes, cuja vantagem do demandado se mostra desarrazoada e prejudicial aos demais credores. Igualmente, não passou desapercebido deste
magistrado que as lojas negociadas “estão localizadas junto a grandes conjuntos habitacionais” e “não há nenhum
imóvel de características semelhantes nas
imediações das lojas mencionadas” (fl.
1.991), fatos econômicos estes que aumentam a vantagem da aquisição feita
162
e, em contrapartida, o dano da referida
transação quanto à falida e seus credores, pois torna maior o prognóstico relativo ao lucro cessante com a perda da
receita operacional destas.
2.34. Há que se ressaltar que nem
ao menos deve ser levado em conta
para o deslinde do litígio se o preço
fixado para venda dos imóveis da autora, no caso dos compromissos de
compra e venda avençados com a ré
Nacional, datados de 19-05-95 e 1º-08-95, estavam, ou não, acima do valor
fiscal, uma vez que este sabidamente é
menor que o de mercado, aliado ao
fato de que nem ao menos a integralidade do contratado foi cumprida, pois
a dívida assumida com o Bamerindus,
no valor de R$ 650.000,00, não foi satisfeita, o que aliás foi indicado pelo
assistente técnico da autora, à fl. 1.908,
e também deve ser considerado para
aferir o prejuízo causado à massa subjetiva.
Ressalte-se que alguns dos imóveis
vendidos pela autora se encontravam
com gravames naquela ocasião (fls.
2.005/2.019), o que bem demonstra o
prejuízo efetivo causado a estes credores e ao próprio concurso com os negócios jurídicos em questão, posto que
o referido passivo não foi satisfeito, comprometendo a solvabilidade da autora,
o que por certo também foi mais um
fator que serviu para dar causa à quebra desta.
2.35. Assim, o conjunto probatório
anteriormente mencionado é suficiente
para demonstrar a lesão causada aos
demais credores concursais, bem como
motivo bastante para declaração de ineficácia dos referidos negócios jurídicos,
SENTENÇAS
situação esta que deixa claro o prejuízo
sofrido pelos demais credores com a
prática dos referidos negócios, contra
os quais já militava a presunção de que
foram lesivos à massa, segundo ensina
Pontes de Miranda, quando trata das
ações revocatórias.
2.36. Portanto, ao contrário do propugnado pelos réus, os referidos negócios jurídicos trouxeram prejuízos financeiros para à massa de credores, visto
que as transações levadas a efeito além
de diminuírem o patrimônio que servia
de garantia aos credores da falida, também importaram em fluxo de caixa inferior ao que teria obtido esta, caso não
se tivesse desfeito daquela parcela significativa de seus bens, pois teve ‘receita não-operacional menor do que a previsível para este tipo de negociação
imobiliária’ na época em que foi realizada a venda dos imóveis descritos na
exordial, o que se encontra devidamente demonstrado nos autos pela documentação anteriormente mencionada, e não
foi objeto de qualquer impugnação,
tornando-se incontroverso este ponto da
lide.
2.37. Assim, deve ser levado em
conta não só se o preço dos imóveis
vendidos era o de mercado, ou não,
hipótese esta que se constata pelo mero
exame do laudo das fls. 1.960/2.002 dos
autos, na medida em que há um deságio
de cerca de 41,51% entre o preço fixado para aqueles bens nos contratos das
fls. 39/40 e 41/44 dos autos e o apurado na avaliação precitada, o que por
si só já serviria para demonstrar o referido dano comercial com as transações
em exame, mas, sim, se estes negócios
jurídicos trouxeram prejuízos financei-
SENTENÇAS
ros à falida, bem como se acarretaram
lesão aos credores da massa, em razão
de ter sido desfalcado o ativo concursal
a ser partilhado entre as diversas categorias de crédito, situações estas igualmente comprovadas através de laudo
técnico contábil, às fls. 1.487/1.535.
2.38. Releva ponderar, ainda, que as
transações realizadas entre a primeira ré
e a autora e a segunda ré e aquela se
encontram eivadas de vício de origem,
consoante dispõe o art. 52, em seus
incs. VII e VIII, da Lei de Falências,
quanto à incidência daquela primeira
hipótese normativa, pouco há a ser acrescentado, posto que, sob o prisma que
se examine a lide, os negócios jurídicos
em tela foram lesivos à massa de credores, quer quanto à venda do referido
patrimônio isoladamente considerada,
quer quanto às suas repercussões econômico-financeiras, como também o
próprio preço fixado para os referidos
bens, o qual foi inferior ao de mercado.
Portanto, ao contrário do pugnado pelas demandadas em sua defesa, não é
o fato isolado relativo à averbação da
transferência imobiliária, levada a efeito
após a quebra, que está sendo levado
em conta para decisão do litígio, mas a
repercussão dos atos praticados e danos
causados à massa, o que também serve
para retirar a eficácia destes compromissos de venda frente à falida.
Frise-se que o fato supracitado, ou
seja, a venda de alguns dos imóveis
sem prenotação anterior à quebra, conforme deflui dos registros insertos nos
autos, o que aliás é incontroverso, ou
do estabelecimento comercial sem o consentimento dos credores, por si só são
causas suficientes para a declaração de
163
ineficácia relativa da venda do referido
patrimônio, situações estas que poderiam ser conhecidas inclusive no curso
da lide e mesmo de ofício por este
Juízo, sob dois fundamento: o primeiro,
de que nesta fase do processo falimentar o interesse a ser tutelado é de ordem pública, portanto, o magistrado
pode agir mesmo de ofício na busca de
solução que atenda ao princípio do pars
conditio creditorum; o segundo, de que
os fatos em questão são constitutivos do
direito da autora e, por via de conseqüência, devem ser levados em conta para
a resolução do litígio, consoante preceitua o art. 462 do CPC.
2.39. Por conseguinte, sob o ponto
de vista que se examine a causa se
constata o prejuízo causado ao patrimônio da falida e aos credores desta, pois
houve redução do ativo sem acréscimo
financeiro ou melhoria no fluxo de caixa,
visto que não houve entrada de recursos para a Massa, o que atinge o basilar
princípio do concurso falimentar consubstanciado no tratamento igualitário
entre os credores, bem como atentando
a ordem legal de pagamento destes, em
prejuízo a privilégios especialíssimos,
como os dos credores trabalhistas e dos
tributários.
Ineficácia relativa, discussão de
boa-fé ou de fraude, possibilidade jurídica do exame da revogatória e cisão
parcial da sociedade e mérito da ação
cautelar em apenso.
2.40. É oportuno mais uma vez trazer à baila a lição anteriormente mencionada pelo jurista Pontes de Miranda,
no sentido de que, em se tratando de
ineficácia relativa a ser declarada na ação
revocatória, não há que se cogitar de
164
boa ou má-fé do adquirente de bem
pertencente à massa, cuja transação foi
atingida pela declaração de ineficácia,
aliás, esta condição jurídica está expressamente prevista no caput do art. 52 do
Decreto-Lei nº 7.661/45.
Aliás, a esse respeito é o aresto trazido à colação a seguir: “Falência. Restituição de mercadoria. Venda do estabelecimento comercial durante o termo
legal da falência. Comprador que substitui o sucedido em seus direitos e
obrigações. Administração dos bens.
Inadmissibilidade. Boa ou má-fé irrelevantes. Ausência de efeitos relativamente à massa. Art. 52, caput, da Lei de
Falências. Recurso não-provido.
No caso concreto, não há que se
cogitar da ocorrência de boa ou má-fé,
pois a lei em, nenhum momento, estabelece tal requisito, apenas dispondo
que ‘não produzem efeito relativamente
à massa, tenha, ou não, o contratante
conhecimento do estado econômico do
devedor, seja, ou não, a intenção de
fraudar credores’ (art. 52, caput, da Lei
de Falências), cabendo ao devedor a
notificação de seus credores por meio
judicial ou de Cartório de Registro de
Títulos e Documentos, com o firme propósito de cientificá-los da intenção de
negociar seu estabelecimento (inc. VIII
do mesmo artigo e diploma legal)”.
(Apelação Cível nº 205.059-1, TJSP, “JTJ”
nº 154/75)
2.41. Portanto, as condições pelas
quais foram feitos os negócios jurídicos
atingidos pela ineficácia a ser declarada, frente à massa falida, pouco importam para o deslinde do litígio, posto
que não se está questionando sob este
prisma a idoneidade dos intervenientes
SENTENÇAS
na cadeia civil de transações imobiliárias quanto aos imóveis e demais bens
móveis objeto do presente feito, ou sequer se estas foram lícitas, pois o que
interessa à causa é a prática dos referidos atos dentro do termo legal, e que
os mesmos importaram em prejuízo não
só à falida, como também à massa subjetiva de credores desta, devido ao
desfalque patrimonial que sofreu com
as referidas transações.
2.42. Dessa forma, embora fosse
despiciendo adentrar na questão atinente à revogatória disposta no art. 53 da
Lei de Quebras, pois já considerados os
negócios jurídicos em tela ineficazes
relativamente frente à massa, a fim de
que não fique nenhuma questão sem
resposta, entendo que até mesmo deveriam ser desconstituídos aqueles, pois
seria possível juridicamente o exame
desta matéria no caso em exame.
2.43. O primeiro ponto a ser abordado a esse respeito é quanto à intenção de fraudar, a qual não é flagrada
através de prova plena ou contundente
de tal prática, o que seria até mesmo
juridicamente inexigível, mas é suficiente para estabelecer a ocorrência de tal
vício e, por via de conseqüência, a
anulabilidade do negócio avençado entre
a massa falida e os réus, relevantes
indícios de que isto tenha ocorrido e o
prejuízo efetivo que tais atos tenham
causado a terceiros, o que é incontroverso no caso em tela, conforme exaustivamente demonstrado na presente
sentença.
Aliás, a esse respeito são os arestos
trazidos à colação, a seguir: “Falência.
Ação revocatória. Requisitos. Presunção
de fraude evidente. A ação revocatória
SENTENÇAS
corresponde, no âmbito do juízo falimentar, à actio pauliana do juízo cível.
São seus pressupostos o eventus damni,
que é o prejuízo para a massa, que vê
reduzido seu patrimônio em detrimento
de credores, pela fraudulenta venda de
imóvel; mais o consilium fraudis, que é
a consciência ou previsão de prejudicialidade, com ênfase na pessoa do
alienante, somada à participatio fraudis,
implementada pelo conhecimento do adquirente, ainda que presumido, da situação de insolvência do alienante. A
alienação, quando vários pedidos de
falência já se encontravam ajuizados, feita à empresa pertencente ao irmão do
alienante falido, é suficiente, per se
stante, para autorizar reconhecida a fraude”. (Apelação Cível nº 586016818, 4ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça,
Rel. Des. Jauro Duarte Gehlen, julgada
em 25-05-87)
“Falência. Transferências de bens do
devedor inadimplente no termo legal
da falência. Por isso que a transferência
de bens imóveis de uma para outra sociedade, então composta dos mesmos
participantes, no caso, marido e mulher,
foi realizada com fraude aos credores
no termo legal da falência, esses fatos
são, quando menos, ineficazes e
revogáveis e, assim, inoperantes diante
dos credores da falida, valendo, contudo, o negócio jurídico celebrado por
um dos dirigentes dessa sociedade com
estabelecimento financeiro e mediante
garantia hipotecária, por isso que evidente a inexistência de fraude para com
terceiros no caso concreto, além de não
ter sido citada para o litígio a credora
hipotecária.” (Apelação Cível nº
590031985, 4ª Câmara Cível do Tribunal
165
de Justiça do Estado, Rel. Gervásio
Barcellos, julgada em 29-04-92)
2.44. Também é oportuno trazer à
baila que a falida já apresentava elevado coeficiente de endividamento, patrimônio líquido negativo, dentre outros
fatores econômico-financeiros desfavoráveis examinados anteriormente quando da referida transação, conforme ficou evidente no laudo pericial contábil
das fls. 1.487/1.535, portanto, a venda
dos referidos bens importaram em verdadeira dilapidação do ativo da massa
e prejuízo evidente dos credores, o que
também já foi demonstrado.
2.45. Por conseguinte, deflui da
minuciosa narrativa precitada indícios
suficientes para crer que efetivamente
ocorreu o consilium fraudis, o que autoriza a decretação não só da ineficácia
como
da
nulidade
da
referida
compra-e-venda dos bens imóveis e
móveis descritos na exordial, bem como
o retorno dos mesmos ao patrimônio da
massa, consoante preconiza o art. 53 da
Lei de Quebras, fato este suficiente para
integral procedência da presente ação.
Ainda, valho-me aqui mais uma vez
do lapidar acórdão anteriormente citado, de lavra do culto Des. Osvaldo Stefanello, ao tratar de tema semelhante,
relativo à mesma massa, asseverando que:
“Daí por que não apenas com simulação
agiram os então contratantes Dosul e
Acta, mas com fraude manifesta. Para
tanto basta considerar o disposto no art.
185 do CTN – também invocável, mesmo não tenha sido adotado como suporte legal da revocatória –, segundo o qual
presume-se fraudulenta a alienação ou
oneração de bens ou rendas, por sujeito
passivo em débito para com a Fazenda
166
Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em
fase de execução. Isto em situação
normal de atividade comercial ou industrial. Quanto mais estando o comerciante, ou industrialista, em estado falimentar, como no caso estava, quando
da contratação dos serviços da Acta, a
Dosul.
“Tivesse a mencionada transação
ocorrido no mundo normal dos negócios com a contratante em situação financeira sólida, sem débitos fiscais e de
natureza outra, sem execuções fiscais
com penhora de bens, sem títulos protestados, poderia admitir-se pudesse
tratar-se de simulação inocente e
admitir-se ausência de fraude. Não,
porém, na situação em que se encontrava a Dosul, e de inequívoco e pleno
conhecimento da ora apelante, empresa
especializada em assessoria tributária,
fiscal e contábil, o reitero, conhecedora
profunda, por certo, de tais atividades,
e do Direito Tributário e Fiscal, bem
como da implicância da existência de
débitos dessa natureza.
“Não pode, pois, pretender-se possa
dar credibilidade tenha agido com simulação inocente e sem fraude no
episódio. De realçar, aliás, a respeito,
que o consilium fraudis se afere das
circunstâncias externas que envolvem a
relação fraudulenta, na forma de agir
das partes que se conluiam. Forma de
agir externa da qual se extrai a real
intenção das partes ao pactuarem. Quanto aos danos a direitos dos demais credores da massa falida, segundo elemento da fraude, quer-me parecer muita
coisa não é necessário dizer, já que
evidente, manifesto, se apresenta esse
SENTENÇAS
prejuízo ao universo de credores da
massa”. (Apelação Cível nº 599215597,
TJRGS, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Osvaldo Stefanello, julgada em 1º-03-00)
2.46. Ad argumentandum tantum
que não se pudesse taxar de relativamente ineficazes os negócios jurídicos
objeto da presente ação revocatória ou
mesmo desconstituir estes, ainda assim
entendo que seria juridicamente possível
responsabilizar os réus solidariamente
com a falida por todos os créditos existentes até 23-04-97, em virtude de interpretação teleológica quanto ao disposto
no art. 233 da Lei das Sociedades Anônimas, uma vez que a venda de cerca de
80% de seu patrimônio importa em cisão
de fato da referida empresa, e, por via
de conseqüência, aqueles para quem foi
transferida esta parcela patrimonial responderão de forma solidária pelas obrigações existentes anteriormente à divisão levada a efeito do ativo permanente,
o qual pertencia à falida e alienante dos
referidos bens, os quais também serviam
de garantia e davam sustentação econômica àquela, no sentido de que seriam
cumpridas as obrigações assumidas com
os demais credores.
2.47. Por fim, no que tange à ação
de seqüestro relativamente aos bens descritos na exordial, igualmente merece
guarida a pretensão deduzida na mesma, pois, como preconiza o insigne
jurista Galeno Lacerda, o mérito daquela causa está adstrito ao fumus boni
juris e ao periculum in mora, de sorte
que tendo o autor direito à declaração
de ineficácia das alienações dos bens
imóveis e móveis pertencentes à falida
na ação principal, de acordo com as
razões antes alinhadas, igualmente de-
SENTENÇAS
tém este o bom direito aduzido para o
seqüestro dos bens objeto do presente
litígio, o que leva necessariamente à
procedência desta ação incidental.
III – DECISUM
3.1. Ante o exposto, diante das razões antes expendidas e provas produzidas, julgo procedente a presente ação
revocatória que a Massa Falida de Cia.
Dosul de Abastecimento move contra
Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda. e Comprebem Comércio e
Transportes Ltda., já qualificadas, a fim
de declarar a ineficácia relativa das
vendas dos bens imóveis e móveis
descritos na exordial frente à Massa,
bem como determinar a arrecadação dos
mesmos, devendo estes retornarem ao
patrimônio da falida, providência que
deverá ser adotada pelo síndico.
3.2. Ainda, julgo procedente a ação
cautelar de seqüestro em apenso que a
requerente move contra as demandadas, devidamente qualificadas, a fim de
tornar definitivos os efeitos da cautela
liminar concedida.
3.3. Condeno os réus ao pagamento
das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo para ambos os feitos em 20% sobre o valor da causa,
tendo em vista o zelo profissional e
trabalho realizado pelo patrono da autora, bem como aos honorários atinen-
167
tes aos peritos nomeados por este juízo,
cujo valor final estabeleço tanto para o
perito contábil como para o esperto
engenheiro definitivamente na integralidade do adiantamento feito no curso da
lide.
3.4. Por fim, julgo improcedente a
denunciação à lide que Nacional Central de Distribuição de Alimentos Ltda.
e Comprebem Comércio e Transportes
Ltda. movem contra instituições Citibank
Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil,
Cia. Itauleasing Sucessora de Franlease
S. A. – Arrendamento Mercantil, Bozano
Simonsen Leasing S. A. – Arrendamento
Mercantil e Cia. Interatlântico de Arrendamento Mercantil S. A., também qualificadas.
3.5. Condeno as rés-denunciantes ao
pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, que fixo para a
referida denunciação à lide em 20%
sobre o valor da causa para todos os
procuradores das denunciadas, tendo em
vista o zelo profissional e trabalho realizado pelos patronos das entidades arrendadoras, os quais serão rateados entre
os mesmos na proporção igual de 5%
para cada uma das denunciadas.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 03 de novembro de
2000.
Jorge Luiz Lopes do Canto, Juiz de
Direito.
168
Processos n os 6.691-61, 6.692-62, 6.693-63 e 6.698-68 – Ação de Cobrança
Vara Única da Comarca de Júlio de Castilhos
Autor: Banco do Brasil S. A.
Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez
Processo nº 140/90 – Reconvenção
Reconvinte: Roberto Wairich Fernandez
Reconvindo: Banco do Brasil S. A.
Juiz prolator: Luiz Antônio Alves Capra
Títulos do crédito rural. Inexistência
de coisa julgada em face de anterior
arresto que proclamou a nulidade de
execuções baseadas nos mesmos títulos
objetos das ações de cobrança. Afastamento de preliminar de carência de ação
pelo não-ajuizamento de ação de prestação de contas. Caução de títulos: inocorrência do negócio no caso concreto.
Possibilidade de correção monetária no
crédito rural, bem assim, da cumulação
de multa e honorários advocatícios. Limitação dos juros remuneratórios em 12%
ao ano. Ações julgadas procedentes.
RELATÓRIO
Vistos, etc.
Banco do Brasil S. A. ajuizou ações
de cobrança contra Alexandre Wairich
Fernandez, Dora Regina Reginato
Fernandez, Roberto Wairich Fernandez
e Lucila Salles Fernandez, todos devidamente qualificados nos autos.
Das petições iniciais. Sustentou o
autor haver concedido aos réus empréstimos rurais assim especificados: I –
Processo nº 6.691-61. Réus: Alexandre
Wairich Fernandez e Dora Regina
Reginato Fernandez.
A) EPI nº 75/49, no valor de NCr$
420.000,00, formalizado através de cé-
dula rural hipotecária emitida em
11-12-75, restando como saldo devedor,
em 30-06-81, o valor de Cr$ 160.672,68.
B) EAI nº 75/500, no valor de Cr$
359.750,00, formalizado através da cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 11-12-75 e aditada em
03-01-80, ficando como saldo devedor,
em 30-06-81, o valor de Cr$ 38.038,39;
C) EAI nº 75/501, no valor de NCr$
77.600,00, formalizado através de cédula rural hipotecária emitida em 11-12-75
e aditada em 03-01-80, restando como
saldo devedor, em 30-06-81, a quantia
de Cr$ 76.890,16.
D) EAI nº 77/00162-7, no valor de
Cr$ 515.300,00, formalizado através da
cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 25-03-77 e aditada em
06-06-78 e 03-01-80, tendo como saldo
devedor, em 30-06-81, um valor de Cr$
66.864,40.
E) EAC nº 78/00232-1, no valor de
Cr$ 90.000,00, formalizado através de
cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 06-03-78 e aditada em
03-01-80 e 30-09-80, apurado um saldo
devedor, em 30-06-81, de Cr$ 58.608,98.
F) EAC nº 78/00475-8, no valor de
Cr$ 157.500,00, formalizada através de
cédula rural hipotecária emitida em
SENTENÇAS
03-01-80, tendo como saldo devedor,
em 30-06-81, o valor de Cr$ 197.748,96.
Asseverou que em 30-06-81 o débito objeto da ação de cobrança alcançava o valor de Cr$ 596.823,57, conforme
demonstrado pelos extratos e respectivas contas gráficas.
II – Processo nº 6.692-62. Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina
Reginato Fernandez, Roberto Wairich
Fernandez e Lucila Salles Fernandez.
A) EAI nº 78/00251-8, no valor de
Cr$ 477.500,00, formalizado através de
cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 09-03-78 e aditada em
03-01-80, tendo como saldo devedor,
em 30-06-81, o quantum de Cr$
421.190,84.
B) EAC nº 78/00476-6, no valor de
Cr$ 292.500,00, formalizado através da
cédula rural hipotecária emitida em
04-07-78 e aditada em 03-01-80, restando como saldo devedor, em 30-06-81, o
valor de Cr$ 453.179,07.
C) EAC nº 78/01176-2, no valor de
Cr$ 2.177.200,00, formalizado através de
cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 09-11-78 e aditada em
03-01-80, tendo como saldo devedor, em
30-06-81, a importância de Cr$ 547.985,96.
D) EAI nº 79/0314-X, no valor de
Cr$ 2.750.000,00, formalizado através de
cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 13-03-79 e aditada em
30-09-80, restando como saldo devedor,
em 30-06-81, o valor de Cr$ 3.211.524,28.
Asseverou que em 30-06-81 as dívidas alcançaram o montante de Cr$
4.633.880,15, o que se pode constatar
nos extratos e respectivas contas gráficas. Mencionou que, em virtude do
não-pagamento de prestações avençadas para 15-07-80 (EAI nº 78/251-8) e
169
31-07-80 (EACs nos 78/476-6 e 78/011762 e EAI nº 79/0314-X), considerou vencidas, extraordinariamente, todas as dívidas dos réus, na forma do art. 11 do
Decreto-Lei nº 167/67.
III – Processo nº 6.693-63. Réus:
Alexandre Wairich Fernandez e Roberto
Wairich Fernandez.
A) EAC nº 79/00459-6, formalizado
através de cédula rural pignoratícia
emitida em 28-05-79, com um saldo devedor, em 30-06-81, de Cr$ 384.980,20.
IV – Processo nº 6.698-68. Réus:
Alexandre Wairich Fernandez, Dora
Regina Reginato Fernandez, Roberto
Wairich Fernandez e Lucila Salles Fernandez.
A) EAC nº 79/01.498-2, no valor de
Cr$ 9.326.700,00, formalizada através da
cédula de crédito rural pignoratícia e
hipotecária emitida em 11-12-79, da qual
os réus permanecem devedores, em
30-06-81, das seguintes verbas: custeio
de milho – Cr$ 769.324,65; custeio de
aveia – Cr$ 616.809,87 (em ambas com
juros convencionados de 15% ao ano)
e aquisição de implementos – Cr$
347.301,35, com juros convencionados
de 21% ao ano. Restando, em 30-06-81,
um saldo devedor de Cr$ 1.733.435,87.
B) EPC nº 79/01499-0, no valor de
Cr$ 1.822.925,00, formalizada através da
cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 11-12-79, não tendo sido
feito nenhum pagamento por conta deste
empréstimo, cujo saldo devedor, acrescido dos encargos financeiros, atualizado até 30-06-81, era de Cr$ 2.141.260,18,
a saber: custeio de azevém – Cr$
1.828.384,90, com juros convencionados
de 15% ao ano, e aquisição de animais
– Cr$ 312.875,28, com juros convencionados de 25% ao ano.
170
C) EAC nº 80/00416-2, no valor de
Cr$ 6.936.000,00, formalizado através da
cédula rural pignoratícia e hipotecária
emitida em 31-03-80. Sendo que o valor
da dívida, acrescida dos encargos financeiros, em 30-06-81, era de Cr$
7.330.249,26, a saber: adubo – Cr$
4.943.287,85, com juros convencionados
(inadimplemento de 2% ao ano), e
custeios – Cr$ 2.386.961,41, com juros
convencionados de 33% ao ano.
Esclareceu que, em virtude do
não-pagamento de prestações pactuadas para 15-01, 15-03 e 30-05-81, considerou vencidas, extraordinariamente,
todas as dívidas, na forma do art. 11 do
Decreto-Lei nº 167/67. Disse que o total
do débito, em 30-06-81, importava em
Cr$ 11.204.945,31, sendo que foram procedidas amortizações com numerário
proveniente da liquidação de títulos que
os réus haviam colocado em cobrança
junto ao banco, todas por conta do EPC
nº 79/1499-0, assim especificadas:
14-01-82 – Cr$ 228.400,00; 29-01-82 –
Cr$ 361.600,00; 10-02-82 – Cr$ 69.240,00;
05-03-82 – Cr$ 830.000,00 e 11-03-82 –
Cr$ 146.040,00. Disse ter ajuizado ação
de execução objetivando o recebimento
desses débitos, sendo que, por ocasião
do julgamento dos embargos em 2º grau,
o Tribunal de Alçada entendeu que o
quantum da dívida não havia sido assentado nos processos, julgando nulas
as execuções.
Em seguida, firmou-se jurisprudência no sentido de que valores apuráveis
por simples cálculo aritmético não levam à nulidade da execução. Não obstante haver resultado frustrada a execução, as dívidas persistem até hoje e
restaram insatisfeitas, o que motiva a
SENTENÇAS
ação de cobrança, pois, embora estejam
formalizadas por cédulas de crédito rural,
títulos líquidos, certos e exigíveis na
forma do art. 10 do Decreto-Lei nº 167/
67, o fato de a execução ter sido julgada nula não lhes retira essa característica, sendo cabível o processo de execução, mas, considerados os percalços,
opta por propor a ação de cobrança.
Postulou, assim, fossem os requeridos condenados aos seguintes pagamentos: I – Processo nº 6.691-61. Réus:
Alexandre Wairich Fernandez e Dora
Regina Reginato Fernandez. A importância de Cr$ 596.823,57, valor devido
em 30-06-81, a ser convertido para o
padrão monetário vigente, com a inclusão, a partir de tal data, de correção
monetária em conformidade com o art.
1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81; juros remuneratórios de 15% ao ano conforme
convencionado, capitalizados semestralmente; juros moratórios de 1% ao ano
(art. 5º, parágrafo único, do Decreto-Lei
nº 167/67), também capitalizados; e
multa legal de 10% sobre o montante
atualizado da dívida (art. 71 do mesmo
Decreto-Lei), tudo acrescido dos ônus
sucumbenciais.
II – Processo nº 6.692-62. Réus: Alexandre Wairich Fernandez, Dora Regina
Reginato Fernandez, Roberto Wairich
Fernandez e Lucila Salles Fernandez. A
importância de Cr$ 4.633.880,15, valor
devido em 30-06-81, a ser convertido
para o padrão monetário vigente, com
a inclusão, a partir de tal data, de correção monetária em conformidade com
o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81; juros
remuneratórios de 15% ao ano com
relação aos três primeiros títulos e 18%
ao ano relativamente ao último, confor-
SENTENÇAS
me convencionado, capitalizados semestralmente (art. 5º do Decreto-Lei nº 167/
67); juros moratórios de 1% ao ano,
também capitalizados; e multa legal de
10% sobre o montante atualizado da
dívida (art. 71 do mesmo Decreto-Lei),
tudo acrescido dos ônus sucumbenciais.
III – Processo nº 6.693-63. Réus:
Alexandre Wairich Fernandez e Roberto
Wairich Fernandez. A importância de
Cr$ 384.980,20, valor devido em
30-06-81, a ser convertido para o padrão monetário vigente, com a inclusão,
a partir de tal data, de correção monetária em conformidade com o art. 1º, §
1º, da Lei nº 6.899/81; juros remuneratórios de 15% ao ano, conforme
convencionado, capitalizados semestralmente; juros moratórios de 1% ao ano,
na forma do parágrafo único do art. 5º
do Decreto-Lei nº 167/67; multa legal
de 10% sobre o montante atualizado da
dívida (art. 71 do mesmo Decreto-Lei),
acrescidos dos ônus sucumbenciais.
IV – Processo nº 6.698-68. Réus:
Alexandre Wairich Fernandez, Dora
Regina Reginato Fernandez, Roberto
Wairich Fernandez e Lucila Salles
Fernandez. A importância de Cr$
11.204.945,31, valor devido em 30-06-81,
deduzidas as amortizações anteriormente especificadas, a ser convertido para
o padrão monetário vigente, com a inclusão, a partir de tal data, de correção
monetária em conformidade com o art.
1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81; juros remuneratórios segundo as taxas convencionadas e anteriormente indicadas,
capitalizadas semestralmente (art. 5º do
Decreto-Lei nº 167/67 e conforme pactuado); e multa legal de 10% sobre o
montante atualizado da dívida (art. 71
171
do mesmo Decreto-Lei), acrescidos dos
ônus sucumbenciais.
Da contestação produzida por Alexandre Wairich Fernandez e Dora Reginato Fernandez. As contestações ofertadas pelos réus, mesmo naqueles processos em que um deles não figurava
como parte, foram idênticas, razão pela
qual podem ser abordadas em um único tópico em relação a todos os processos, dos quais ao menos um, Alexandre, é sempre réu. Em todos os feitos
ofertaram, conforme adiante será relatado, impugnação ao valor da causa. Em
relação ao Processo nº 6.693-63, a ré
Dora postulou fosse admitida como
terceiro, na condição de assistente, fulcro no art. 50 do CPC.
Aduziram, inicialmente, com fulcro
nos arts. 103 e 105 do CPC, que os
processos demandam julgamento simultâneo, eliminando-se o perigo de decisões divergentes sobre um tipo de relação de direito que é comum a todas
elas, o que já ocorreu quando, com
base nas mesmas cártulas, foi promovida a execução. Assim, em atenção aos
pontos de contato que em todas as ações
são intimamente semelhantes, postularam o julgamento simultâneo.
Sustentaram, preliminarmente, a carência de ação. Asseveraram que os
pontos cruciais das demandas ordinárias são de idênticas origens àqueles elementos especiais característicos das
execuções propostas contra os mesmos
réus, tendo por base iguais fundamentos de pedir. Na ocasião, o banco foi
derrotado, porque reconhecido como
carecedor de ação, por circunstâncias
que definiram a demanda, dentre elas,
a de ocultar o destino dado a títulos
172
que lhe foram caucionados para garantia e abatimento da dívida então contraída.
A detenção desses bens e a falta da
conseqüente prestação de contas ocasionaram os percalços processuais que
propiciaram a perda da demanda em
todas as instâncias que se seguiram à
primeira. As “ações ordinárias” (sic) têm
vinculação com as execuções, vínculos
advindos de serem elas originárias das
mesmas obrigações, das mesmas causas
de pedir e pela especial referência que
lhes faz a petição inicial em todos os
processos propostos. Esta identificação
dos processos é ponto necessário para
fundamentar as razões que geram a
carência de ação. Seus fundamentos
advém da hierarquia da coisa julgada.
Mencionaram que a questão gira em
torno de caução no valor de Cr$
19.152.208,00 (valor da época), representado por notas promissórias e duplicatas de terceiros, que foram caucionadas em mãos do credor para garantir o
abatimento da dívida. Através de despacho judicial lhe foi determinado que
indicasse o destino que dera à importância que recebera em caução, em razão
do que se pode perceber que o
insucesso da demanda não decorreu
somente simples cálculo aritmético, como
pretende incutir a petição inicial, pois
permanecem nas “ações ordinárias” (sic)
propostas em substituição às malsucedidas execuções as mesmas perplexidades com que se debateram os prolatores
da decisão de 2ª instância.
Afirmaram que o banco detém ainda
em suas mãos uma caução de Cr$
19.152.208,00, cujo destino ainda não
demonstrou, o que impede que a de-
SENTENÇAS
manda prossiga, não importa se pelas
vias do processo de execução ou da
ação de cobrança, pois obrigações garantidas por tamanhas quantias tornam
antijurídico e irracional não exigir do
credor caucionado que antes de exigir
a dívida preste contas do destino da
caução, pois o crédito coberto por esta
gera direitos e obrigações recíprocas,
cabendo ao credor caucionado o dever
de demonstrar o saldo para cuja formação e aperfeiçoamento deva concorrer
o caucionante devedor.
A caução dos títulos foi a fonte
principal do acórdão, o que foi sonegado pelo banco, que repete o ato antes
cometido e que lhe custou toda a demanda. De tal modo, impõe-se reconhecer a carência de ação, por omitirse o autor de seu dever de prestar contas antes da propositura de qualquer
das ações, obrigação inderrogável que
decorre da vontade da decisão transitada em julgado, onde se reconhece a
reciprocidade de direitos e obrigações
entre as partes litigantes.
Argumentaram que, em não sendo
reconhecida a carência de ação, é de
rigor determinar ao autor que preste contas, a fim de que reste esclarecida a situação em que se encontram os títulos caucionados em garantia, o que decorre dos
fundamentos que constituíram a base da
decisão da 2ª instância, não havendo
viabilidade de prosseguimento do feito se
o autor não der contas, havendo um saldo
a ser apurado e que deverá representar
o resultado entre o aporte de títulos e a
dívida, não podendo a demanda prosseguir sem o cumprimento da vontade
superior, transitada em julgado, qualquer
que seja o tipo da ação escolhida.
SENTENÇAS
Há uma necessidade aritmética a ser
definida por ato do banco que recebeu
os títulos em caução, pois deteve em
mãos bens de seus devedores para
administrar, sendo que pagamentos foram recebidos por conta, recursos que
a eles pertenciam foram movimentados
e as taxas inflacionárias tornam importante saber-se quanto às datas das respectivas imputações em pagamento, o
que somente pode ser respondido através da prestação de contas. Sem a prestação de contas haverá afronta às questões suscitadas na motivação do acórdão, dúvidas surgirão a respeito de
quanto possam estar os réus devendo,
com o risco de serem condenados a
pagar o que não devem.
Quanto ao mérito, asseveraram que,
prestadas as contas, no caso de não ser
decretada a carência de ação, há que se
considerar que o direcionamento das
ações ordinárias em curso será presidido sempre pelos rumos da decisão
proferida pela 2ª Câmara Cível do TARGS
(nos processos de anteriores execuções
propostas pelo autor), não se podendo
fugir de que existe um valor já determinado por sentença em mãos do credor,
valor este equivalente ou próximo ao
total da dívida: Cr$ 19.152.208,00 (reconhecido conforme fl. 07 do acórdão).
Há um reconhecimento de tal quantia
ínsito no bojo de ação trânsita em julgado, ao qual as partes e o julgador não
poderão fugir. Assim, a situação se enquadra perfeitamente nos arts. 1.009 e
ss. do CPC, com a extinção das dívidas
até onde se compensarem.
Salientaram ser responsabilidade do
credor pela retenção dos títulos caucionados se em seu poder ocorrer a pres-
173
crição, vez que já decorridos 10 anos
desde a caução prestada. Disse que os
réus são levados a imaginar que os tenha
recebido todos, o que mais razoável do
que retê-los inconseqüentemente. Tal
matéria deverá ser apreciada, com a responsabilização do credor, fulcro no art.
159 do CC.
Quanto aos encargos pretendidos,
mencionaram que afora a correção monetária, a ser apreciada na contestação,
o restante, em condições normais, encontra respaldo na legislação pertinente.
Entretanto, caberá ao julgador aferir até
onde os devedores foram induzidos à
mora (que lhes será a fonte geradora),
em face da obstinação do credor em não
lhes conferir as contas dos títulos que
lhes pertencem, detendo-os em mãos sob
caução, até os dias atuais.
Alegaram que a correção monetária
em nosso ordenamento jurídico é sempre introduzida por lei especial, sendo
que, em se tratando de créditos rurais,
é incabível a correção monetária, pois
a lei específica que institucionalizou o
crédito rural rejeitou a correção monetária do projeto de lei, sendo que, por
força de unânime parecer da Comissão
de Constituição e Justiça, foi ela rejeitada pela Emenda nº 09. Não obstante
a expressa rejeição da correção monetária, tem ela sido aplicada com base
em resoluções (atos administrativos) ou
na Lei nº 6.899/81, que não trata de
crédito rural. Questionaram a aplicação
monetária nos créditos oriundos na
agricultura e na pecuária sem a lei
própria, se para todas as outras atividades tal encargo somente foi instituído
mediante lei especial, sendo que a própria lei que os criou a rejeita. A Lei nº
174
6.899/81 não tem hierarquia para interferir em leis de ordem pública, imperativas e cogentes, com a Lei nº 4.829/65
e o Decreto-Lei nº 167/67.
Asseveraram que anexados às diversas cédulas que instruem as petições
iniciais encontram-se vários extratos de
conta, onde foram lançados encargos
de origem desconhecida, não só da lei,
como também por desconhecimento
físico das respectivas existências pelos
devedores, os quais foram rejeitados,
mediante menção apenas exemplificativa, por não representarem liquidez a
partir da qual se possa estabelecer uma
apreciação de valores com base nos
resultados neles expressos, sendo documentos de elaboração interna e unilateral do credor, não sendo aceito qualquer saldo que deles resulte, impondo-se a realização de perícia contábil.
Assim, pleitearam fosse acolhida a
carência de ação por ocultar o credor o
destino dado aos títulos caucionados ou
por falta de prestação de contas capaz
de definir o saldo, ou a compensação,
com o reconhecimento da responsabilidade do credor advinda da prescrição
dos títulos caucionados, ou, em último
caso, seja afastada a correção monetária.
Das contestações produzidas por Roberto Wairich Fernandez e Lucila Salles
Fernandez. Inicialmente, impõe-se fazer pequenos esclarecimentos, a saber:
Roberto e Lucila não são partes no
Processo nº 6.691-61, mas o são, em
conjunto, nos Processos n os 6.692-62 e
6.698-68; e Lucila não é parte no Feito
nº 6.693-63, no qual Roberto é demandado em conjunto com Alexandre. Entretanto, tal não impede que se reconheça que são idênticas as contestações
SENTENÇAS
produzidas nos Processos nos 6.692-62,
6.693-63 e 6.698-68, com pequenas
modificações que não alteram os pontos em que se fundamenta a defesa. Em
relação ao Processo nº 6.693-63, também foi ofertada reconvenção, que recebeu o nº 140/90.
Dito isso, passemos aos temas versados nas contestações. Em suas peças
de defesa, salientaram os requeridos que,
conforme esclarecido na inicial, com
pouca convicção, todas as execuções
antes mencionadas foram embargadas,
com êxito para os embargantes. Assim,
os fatos historiados pelos documentos
anexados assumem especial relevância
para o deslinde do processo e da
reconvenção, sendo que nesta se pretende responsabilizar o banco pelos
títulos que lhe foram caucionados e que
detém até hoje em seu poder, promovendo-se a compensação. O autor repete os mesmos erros que levaram à “improcedência das execuções” (sic), juntando os mesmos documentos e omitindo-se quanto aos títulos que lhe foram
caucionados, que cubririam de forma
suficiente o débito, surgindo um saldo
credor em favor dos contestantes.
A reconvenção e os demais feitos
devem ser julgados simultaneamente,
pela ampla afinidade que possuem. Os
títulos que foram caucionados alcançam
a importância de Cr$ 19.152.208,00, devendo o banco do Brasil ser responsabilizado pelos títulos que recebeu, vez
que nunca esclareceu com exatidão as
amortizações que procedeu e nem
mesmo a data de recebimento de alguns títulos, circunstâncias bem esclarecidas nas perícias já realizadas. Sendo
visada a compensação, necessária a
realização de prova pericial.
SENTENÇAS
Quanto aos acessórios, asseveraram
que os extratos anexados à inicial são
documentos unilaterais, sendo que as
perícias realizadas constataram a existência de acessórios sem a previsão cedular
e sem especificação, que encobriam a
cobrança de prêmios de seguro não
contratados. O crédito rural é regido por
regras específicas que não admitem a
correção monetária, e se for o caso de
ser reconhecida a sua incidência, tal
somente deverá ocorrer a partir do ajuizamento da ação, na forma preceituada
no art. 1º, § 2º, da Lei nº 6.899/81.
A inicial pleiteia a incidência de juros
remuneratórios, mas não menciona que,
por convenção entre as partes, em determinadas parcelas não existe tal incidência, e especifica: Processo nº 6.698-68. EAC nº 70/1498-2: foram debitadas
parcelas correspondentes a juros sobre
parte isenta do financiamento, em
31-12-80 (Cr$ 158.219,73) e 11-03-81
(Cr$ 592.097,25), o mesmo ocorrendo
na EPC nº 79/1499, com a inclusão de
juros em 31-12-80 (Cr$ 71.093,75) e
30-06-81 (Cr$ 108.305,40), assim como
na EAC nº 80/004416-2, juros em
30-06-81 (Cr$ 66.900,88);
Processo nº 6.692-62. EAC nº 78/
01.176-2: dispensa juros sobre a parcela
de Cr$ 1.395.000,00, que no entanto
foram debitados num total de Cr$
221.679,91, o que foi apreciado pela
perícia que instruiu a contestação; e
Processo nº 6.693-63: os juros remuneratórios de 15% não incidem sobre a
parcela liberada para a aquisição de
fertilizantes (Cr$ 1.520.000,00), sendo
inadmissível a pretensão sobre a maior
parcela do financiamento.
Afirmaram incabível a multa prevista
no art. 71 do Decreto-Lei nº 167/67,
175
sem a expressa convenção das partes,
sendo, de outro modo, incabível a sua
cumulação com os honorários advocatícios. Postularam, por fim, o apensamento de todos os processos movidos
pelo Banco do Brasil contra os contestantes, o que também se aplica à
reconvenção.
Da reconvenção movida por Roberto
Wairich Fernandez. Por ocasião da reconvenção, reiterou o reconvinte haver
dado, juntamente com seu irmão Alexandre Wairich Fernandez, diversos títulos em caução, somando a importância de Cr$ 19.152.208,00, sendo surpreendido pelo ajuizamento de feitos
executivos, nos quais restou reconhecida a iliquidez e a necessidade de compensação, com a realização de prova
pericial. Objetiva a compensação dos
valores representados pelos títulos entregues em caução ao reconvindo. Assim, postulou fosse reconhecida a responsabilidade deste pelos títulos caucionados, com a compensação destes e
com condenação do reconvindo ao
pagamento de eventual saldo credor em
favor de reconvinte, tudo acrescido dos
ônus da sucumbência.
Das impugnações ao valor da causa
ofertadas por Alexandre Wairich Fernandez e Dora Regina Reginato Fernandez.
Nos 04 processos foram ofertadas impugnações ao valor da causa, a fim de
que este viesse a ser corrigido na forma
estabelecida pelo art. 259, inc. I, do
CPC.
Do pedido de assistência formulado
por Dora Regina Reginato Fernandez.
Postulou a contestante Dora, em relação ao Processo nº 6.693-63, na condição de esposa de Alexandre Wairich
Fernandez, com base no art. 50 do CPC,
176
lhe fosse deferida a intervenção no
processo na condição de assistente.
Da manifestação do autor sobre as
contestações, reconvenção, assistência e
impugnações ao valor da causa. A réplica às contestações repete-se em todos os feitos, com o que possível fazer
um único relato. Salientou que a ação
está fundamentada em títulos de crédito
rural, emitidos pelos réus, não havendo
dúvidas quanto à sua existência, sendo
títulos líquidos, certos e exigíveis. Quanto
à alegação acerca da caução e da prestação de contas, salientaram que os réus
estão litigando de má-fé, pois sabem
que os fatos não se passaram na forma
como eles os apresentaram em juízo,
assim como sabem o destino que a eles
foi dado.
Igualmente, não chegou a ocorrer a
propalada caução de títulos, que é direito real, exigindo para a sua constituição, além da tradição destes, contrato
escrito (arts. 771 e 791 do CC). No caso,
os títulos haviam sido encaminhados ao
banco para serem incluídos na garantia
de composição de dívidas a ser efetivada, o que terminou não ocorrendo,
sendo que os títulos foram recebidos
em cobrança vinculada, conforme se
comprova com o respectivo borderô.
Assim, o autor era mero mandatário dos
réus na cobrança de títulos, devendo
aplicar os valores arrecadados na amortização de suas dívidas, sempre agindo
em consonância com as ordens recebidas.
Esclareceu que, dos mencionados
títulos, 02 possuem um significado especial, por representarem mais de 70%
do valor total envolvido, ou seja, aqueles de responsabilidade de Agamenon
M. Berni (Cr$ 3.120.000,00 e Cr$
SENTENÇAS
10.900.000,00). Tais títulos foram entregues francos de pagamento ao respectivo devedor, pois primeiro os réus
determinaram ao banco a prorrogação
do vencimento de tais títulos, o que
motivou parecer do jurídico; em seguida, os réus determinaram que as notas
promissórias fossem entregues ao respectivo devedor, francas de pagamento.
No que pertine aos demais títulos,
alegou que a perícia realizada na execução esclareceu a questão, sendo que
os valores arrecadados foram aplicados
na amortização das Cédulas EAC nº 77/
00821-4, EAI nº 77/00163-5 e EPC nº
74-1499-0, que não objeto das ações de
cobrança, exceção feita a esta última,
conforme denunciado no item 2 da
inicial do Processo nº 6.698-68. Logo,
não há prestação de contas ou compensação a ser procedida, sendo as alegações deduzidas meras inverdades destituídas de qualquer fundamento fático
ou jurídico, resultando patente a litigância de má-fé.
Ponderou, ao contestar a reconvenção, que, dos títulos recebidos para
cobrança, 14 foram aplicados na amortização de dívidas e 02 foram devolvidos
ao respectivo devedor, por expressa e
formal autorização do reconvinte. Disse,
quanto à carência de ação, que ela está
desprovida de seriedade, pois a única
decisão do Tribunal de Alçada foi no
sentido de declarar nulas as execuções,
apenas isso. As dívidas não foram declaradas extintas, sendo isso o que a parte
dispositiva do acórdão determinou. Repeliu, por entender que lhe traria prejuízo, a cumulação das ações.
Acerca da dívida em cobrança, asseverou que os empréstimos estão documentados em cédulas de crédito rural, tendo
SENTENÇAS
sido juntados extratos atualizados até
30-06-81, os quais não foram impugnados
especificadamente, mas, sim, genericamente, o que se mostra de nenhum valor,
pois incumbia aos réus a demonstração
dos equívocos, não havendo fundamento
para a produção de prova pericial. A teor
do que preceituam os arts. 4º e 5º do
Decreto-Lei nº 167/67, deve o financiador
abrir conta vinculada à operação, sendo
que os encargos são devidos a partir da
liberação dos recursos.
Salientou que a nulidade das execuções anteriormente ajuizadas ocorreu
fundamentalmente pela falta de esclarecimentos sobre o destino dado aos títulos entregues ao banco para a cobrança, o que está devidamente esclarecido
nesses feitos, existindo várias cartas dos
réus dirigidas ao banco reconhecendo
explicitamente os débitos, inclusive os
seus valores. Também a perícia realizada esclareceu tal aspecto. Mencionou
que os acessórios foram genericamente
impugnados, não tendo tal questão a
importância que se pretende atribuir,
sendo débitos normais na espécie de
financiamento de que se cogita.
Quanto ao Processo nº 6.692-62,
explicitou não ter havido cobrança indevida de juros quanto à Cédula nº 78/
00176-2, pois, conforme pactuado, não
incidiram juros até o vencimento da
obrigação, o que somente ocorreu após
o vencimento. Em relação ao Processo
nº 6.693-63, disse que o exame do extrato da fl. 08 de tal feito mostra que foi
contabilizada a parcela do financiamento destinada à aquisição de adubo, sobre
a qual não incidiram juros e que já foi
liquidada.
Por fim, quanto ao Feito nº 6.69868, mais especificamente em relação ao
177
EAC nº 79/01498-2, a parcela de fertilizantes (extratos das fls. 14/16) era exigível em 1º-07-80 (cláusula forma de
pagamento, fl. 11v.), razão pela qual
são devidos os juros lançados em
31-12-80 e na liquidação dessa parcela,
assim como em relação aos demais títulos. Os juros só foram exigidos após
vencida a parcela relativa a fertilizantes.
Sustentou devidos os juros, a correção monetária e a multa. Opôs-se ao
pedido de assistência por falecer interesse jurídico à requerente. No que tange às Impugnações ao Valor da Causa
nos 166/90 (6.693-63), 170/90 (6.691-71)
e 168/80 (6.692-62), sustentou-as ineptas por não indicarem o valor que se
pretende seja atribuído à causa. Quanto
à Impugnação nº 164/90 (6.698-68), afirmou que o valor correto da causa é de
Cr$ 2.371.884,34.
Do destino dado ao pedido de assistência e impugnações ao valor da causa. O pedido de assistência restou indeferido, com fulcro no art. 50 do CPC,
vez que o interesse da postulante era
meramente econômico, sem afetar a sua
esfera jurídica. Das Impugnações ao
Valor da Causa restaram apreciadas as
de nos 168/90 e 170/90. A primeira, para
alterar o valor da causa no Processo nº
6.692-62 para Cr$ 2.392.253,53. A segunda, com alteração do valor da causa
no Feito nº 6.691-61 para Cr$ 721.692,11.
As Impugnações n os 164/90 e 166/90
restaram até então inapreciadas.
Das manifestações dos réus sobre os
documentos juntados pelo autor posteriormente às contestações. Os réus Alexandre e Dora sustentaram intempestiva a
juntada de tais documentos, com fulcro
no art. 397 do CPC. Postularam a realização de perícia grafodocumentoscópica
178
na procuração juntada. Ademais, os
poderes na procuração foram conferidos
somente por Alexandre e não abrangiam
poderes especiais. Postulou, além da determinação de juntada do original, a
juntada de prova emprestada aos autos.
Foram excedidos os poderes conferidos
na procuração.
Os demandados Roberto e Lucila
sustentaram já encontrar-se revogada a
procuração, tendo sido substituída por
outra. De outro modo, falecia ao mandatário poderes específicos para praticar os atos por eles realizados, inexistindo provas de que os títulos tenham
sido entregues francos de pagamento
ao devedor.
Do despacho saneador. Entendendo
que o feito encontrava-se pronto para o
saneador, entendeu o julgador, havendo pedido de perícia contábil, fosse ele
examinado conjuntamente nos 04 feitos
envolvendo as partes. O que, atendido,
resultou em idêntico saneador. Assim,
restou afastada a conexão por serem as
partes diferentes e por encontrarem-se
os feitos em diferentes fases. Foi considerado não ser a prestação de contas
um requisito para a ação de cobrança,
relegando-se a compensação para análise posterior, com a determinação de
produção de prova pericial conjunta para
os 04 processos, assim como a oitiva de
ofício de uma testemunha.
Do prosseguimento dos feitos após o
saneador. Não obstante repelida a união
dos processos, na prática, tal veio a
ocorrer após o saneamento, pois as demandas praticamente passaram a tramitar no Processo nº 6.698-68, pois embora se tenha juntado cópia da perícia nos
demais feitos, foi nele que se realizou
audiência de instrução (fls. 448 a 453),
SENTENÇAS
posteriores manifestações das partes,
formulação de quesitos, esclarecimentos periciais e apresentação dos memoriais, que se substituíram ao debate por
expressa manifestação das partes ante o
despacho que deu por encerrada a instrução. Por ocasião dos memoriais, os
litigantes, analisando a prova carreada
aos autos, reprisaram os argumentos anteriormente expendidos, todos fazendo
questão de estender os memoriais aos
demais processos.
Relatei, passo à fundamentação. Não
obstante ter o despacho saneador repelido a conexão, diversa resultou a realidade processual, pois a perícia realizada foi una e a partir de um determinado
momento todos os atos processuais
realizaram-se em único processo, porém reportando-se a todos, o que torna
inafastável a prolação de decisão conjunta.
Das impugnações ao valor da causa
inapreciadas. Inicialmente, é de rigor
sejam apreciadas, antes de qualquer
outra questão, as impugnações ao valor
da causa que até então restaram inapreciadas, ou seja, os Processos nos 164/90
e 166/90, vez que influem decisivamente nos ônus sucumbenciais, assim como
faz-se presente critério legal para a sua
fixação. Tal questão se mostra por demais singela, aplicando-se ao caso posto em exame o comando do art. 259,
inc. I, do CPC, que prevê para as ações
de cobrança seja o valor da causa o
resultado da soma do principal e demais acréscimos.
Ao analisar a perícia produzida, cujo
original foi juntado aos autos do Processo nº 6.698-68, constata-se, às fls.
618/619, que, na Impugnação ao Valor
da Causa nº 164/90, que refere-se ao
SENTENÇAS
Processo nº 6.698-68, o valor correto
que se deve atribuir à causa é de Cr$
9.707.324,42.
Por fim, na Impugnação que recebeu o nº 166/90, que se refere ao Processo nº 6.693-63, se afigura como valor
da causa aquele que foi alcançado pela
perícia para a data do ajuizamento do
feito, ou seja, Cr$ 177.742,08. Assim,
vão fixados tais valores acima especificados para os respectivos processos, com
a
conseqüente
procedência
das
impugnações.
Da coisa julgada. As contestações
produzidas pelos requeridos trazem
como um de seus fundamentos a coisa
julgada, que teria se operado em virtude do acórdão prolatado em sede de
recurso de embargos à execução, em
relação aos mesmos títulos que embasam as ações de cobrança.
Assim, no entendimento da culta
defesa, não mais caberia discutir acerca
de determinadas matérias, já definitivamente julgadas. Mostra-se necessário, ao
exame das demais questões, sejam traçados os limites da coisa julgada, analisando-se, inclusive, acerca da existência de uma decisão heterotópica, vale
dizer, aquela em que fora do dispositivo são decididas questões que dele deveriam constar e que, portanto, também
geram a coisa julgada.
Oportuno reproduzir o contido no
art. 469 do CPC, verbis: “Art. 469 – Não
fazem coisa julgada: I – os motivos,
ainda que importantes para determinar
o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III – a apreciação de questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”.
179
Ao compulsar os autos do Processo
nº 6.698-68, aonde às fls. 339 à 340
encontra-se juntado o acórdão, para
aferir que em seu dispositivo foi dado
provimento à apelação, com a declaração de nulidade das execuções. Como
se vê, o dispositivo do mencionado
acórdão não contemplou as referências
sobre a existência de caução ou a necessidade
de
compensação,
não
acobertando tais matérias com o manto
da coisa julgada.
Não vislumbro como se possa encaixar a alusão a tais questões, como pretendem os contestantes, como parte integrante do dispositivo que se encontre
no lugar equivocado do respeitável
acórdão, pois não se faz presente a
decisão heterotópica. A questão decidida nos embargos foi acerca da iliquidez, que gerou a nulificação dos feitos
executivos. Questões incidentais como
a existência de caução e a necessidade
de compensação dependeriam de expresso reconhecimento no dispositivo
(em sentido amplo) ou de ação declaratória incidental.
O debate acerca de tais questões,
embora tenham elas sido admitidas como
verdadeiras e utilizadas como fundamento da decisão de 2º grau, não tem o
condão de gerar os efeitos pretendidos
pelos requeridos, vez que de forma inarredável esbarra nos comandos dos arts.
468 e 469 do CPC, pois a respeito delas
não provido qualquer pedido.
Em tal sentido, inclina-se a jurisprudência: “A coisa julgada incide apenas
sobre o dispositivo propriamente dito
da sentença, não sobre seus motivos ou
sobre questão prejudicial – CPC, art.
469, I e III, salvante, no alusivo a esta
segunda hipótese, se proposta ação
180
declaratória incidental”. (REsp nº 444-RJ, STJ, 4ª Turma, “DJU”, de 22-04-91,
p. 4.788).
“A coisa julgada em sentido material
restringe-se à parte dispositiva do ato
sentencial ou àqueles pontos que, substancialmente, hajam sido objeto de provimento jurisdicional, quer de acolhimento, quer de rejeição do pedido”.
(“RTJ” nº 133/1.311)
“Os motivos, ainda que importantes
para determinar o alcance da parte
dispositiva da sentença, não fazem coisa julgada. As razões de decidir preparam, em operação lógica, a conclusão a
que vai chegar o Juiz no ato de declarar
a vontade da lei.” (“RTJ” nº 103/759)
A teor do que preceitua o art. 458
do CPC, a sentença é composta por três
partes, a saber: relatório, fundamentação e dispositivo, sendo que somente
na parte dispositiva da sentença, na qual
o Juiz decide efetivamente o pedido
(lide), proferindo um comando a ser
obedecido pelas partes, é que se opera
a coisa julgada material. Disso resulta
inexistir qualquer óbice legal ou fático
para que se rediscutam as questões
atinentes à existência ou inexistência de
caução e eventual compensação, fatos
que, aliás, foram objeto de dilação probatória.
Da carência de ação em virtude da
ausência de prestação de contas. Trata-se da preliminar deduzida por Alexandre Wairich Fernandez e Dora Fernandez nos feitos em que são partes, no
sentido de que, ausente a devida prestação de contas, seria o autor carecedor
do direito de ação. Estou em que tal
prefacial não merece prosperar. É que,
além de haverem os contestantes partido de errônea premissa para funda-
SENTENÇAS
mentá-la, tem-se que a prestação de
contas não encontra-se prevista em lei
como condição para o ajuizamento de
ação de cobrança, que dela prescinde.
É equivocada a premissa em que se
fundam os contestantes, pois confundem, como se fora um único instituto,
a execução e a condenação, as quais, a
toda a evidência, são totalmente distintas. Por vezes, antes que se abram as
“portas” da execução, é mister ultrapassar a “ante-sala” em que se constitui a
condenação, o que ocorre, v. g., com os
títulos executivos judiciais.
Tal distinção foi muito bem traçada
por Antonio Janyr Dall’Agnol Junior
(“Ação Condenatória: Estrutura e Função”, “Revista da AJURIS” nº 63, fls. 27
a 35), mostrando-se oportuna a reprodução de algumas assertivas: “A experiência de todos os dias permite-nos
observar que aquele que almeja a condenação de outrem a alguma prestação
quer mais do que a declaração e menos
do que execução. De outro lado, executar é mais do que condenar. A execução implica invasão na esfera jurídica
do demandado, para de lá retirar algo
que deveria legitimamente estar no patrimônio do demandante, e não está; ou
para estigmatizar algum bem, ou alguns
bens, para transformação em espécie, a
fim de que o crédito do exeqüente reste
satisfeito. A condenação, precedida
indispensavelmente de declaração, implica algo mais do que essa, algo que
concede ao vencedor da ação condenatória ‘passaporte’ para a via executiva
(que é, pois, também diferente)”.
Logo, equivocam-se os contestantes
ao pretenderem trazer para dentro de
ação condenatória requisitos que muito
bem se prestariam para obviar feito
SENTENÇAS
executivo, pois a liquidez de que lá se
cogita deve comprovadamente acompanhar a inicial, ao passo que a liquidez
de que aqui se cogita pode restar efetivamente comprovada no curso da
demanda, vez que a pretensão deduzida
é a de constituição de título executivo
judicial.
De outro modo, não está a prévia
prestação de contas erigida em condição da ação de cobrança. De fato, existem as chamadas condições da ação,
através das quais se condiciona o direito de ação a determinados requisitos,
cuja satisfação torna-se indispensável à
obtenção de uma sentença de mérito.
São elas: a possibilidade jurídica, a legitimação para a causa e o interesse
processual. Nenhuma delas queda ausente no caso dos autos: o pedido é
admitido em abstrato no ordenamento
pátrio; há pertinência subjetiva da ação,
ou seja, os pólos ativo e passivo da
relação processual correspondem àqueles da relação de Direito material; e o
provimento jurisdicional buscado é necessário e útil ao autor.
Não seria absurdo cogitar acerca de
uma especial condição da ação, presente
em determinados casos por imposição
legal. Entretanto, de condição especial
da ação não se pode cogitar sem que ela
esteja prevista em lei, sob pena de configurar-se ato invasivo à esfera legislativa. Inexiste comando legal que imponha
ao requerente, no caso presente, a prévia prestação de contas, em razão do
que falece amparo jurídico à preliminar
deduzida, cuja rejeição se impõe.
Da caução e respectiva compensação. É imperiosa a análise acerca da
existência, ou não, da propalada caução, pois dela depende a admissibilida-
181
de da compensação, fatos de evidente
importância ao deslinde do feito e da
reconvenção.
Estou em que a prova documental
carreada aos autos desmente tenha o
negócio realizado entre o banco (requerente) e os requeridos se dado sob
a modalidade de caução, o que facilmente se pode constatar pelos documentos das fls. 44 e 45 do Processo nº
6.698-68, pois deles se pode abstrair
que os títulos ali relacionados foram
entregues em cobrança vinculada.
De outro modo, tenho que seria
inconcebível, em se tratando de títulos
ofertados em caução, dispusessem os
requeridos de plena liberdade para deles
disporem, como demonstrado às fls. 364
e 366 do Processo nº 6.698-68, mediante atos praticados por um procurador
dos demandados, a demonstrar indubitavelmente ter inocorrido a tão propalada caução, pois os próprios fatos a
desmentem.
Segundo ensina Arnoldo Wald, “Direito das Coisas”, 8ª ed., p. 249, “O
devedor pignoratício ou caucionante dos
títulos não pode praticar nenhum ato
em relação aos títulos...” Ademais, a teor
do que preceitua o art. 791 do CC, a
caução principia a ter efeito com a tradição do título, devendo ser comprovada por escrito, na forma dos arts. 770
e 771 do CC. Deve o instrumento contratual especificar o valor do débito e
descrever o título caucionado, assim
como, em sendo feito por instrumento
particular, que o seja em duplicata, ficando uma cópia para cada um dos
contraentes.
Repita-se, os documentos das fls. 44
e 45 demonstram o negócio entabulado
entre os litigantes, a saber: cobrança
182
vinculada; dito documento não encerra
qualquer manifestação de vontade no
sentido de que estivessem os títulos
sendo ofertados em caução e muito
menos especifica o valor do débito, o
que era de se exigir, em se tratando de
direito real de garantia. Assim, se tal
documento é incapaz de demonstrar
tenham os títulos sido caucionados, onde
então a prova documental exigida em
lei? Diria mais, onde o registro perante
o Cartório de Títulos e Documentos?
Se caução houvesse, com certeza
teriam os requeridos em seu poder
documento bem menos singelo do que
aquele trazido aos autos pelo credor,
meros borderôs de títulos em cobrança.
E mais, tratando-se de um direito real
de garantia, era de rigor houvesse sido
levado a registro, conforme determina a
lei (art. 771 do CC e art. 127, inc. III,
da Lei nº 6.015/73).
Na verdade, a relação estabelecida
entre os litigantes, com a entrega dos
títulos de crédito em cobrança, é incapaz de ser admitida no mundo dos
direitos reais, pois desprovida das características que deles se exigem, constituindo-se em mero direito pessoal, que
até pode ser tida como uma garantia,
mas acarretando a sua violação tão-somente efeitos de Direito Obrigacional.
Assim, a se cogitar tenha o requerente dado destino indevido às cártulas
que foram colocadas em cobrança, não
fica obstada eventual compensação pelo
dever que, em tese, se impunha de
indenizar. Entretanto, não vislumbro, ao
contrário do que se pretende nas contestações e na respectiva reconvenção,
afigure-se alguma responsabilidade do
demandante pelos títulos que lhe foram
entregues em cobrança.
SENTENÇAS
De notar que, quanto à parte deles,
se mostra oportuna e esclarecedora a
perícia (fl. 607 do Processo nº 6.698-68),
especificando que a exceção do Processo
nº 6.898-68, Cédula EPC nº 79/01499-0,
os títulos cobrados e utilizados para
amortização de débitos recaíram em
outros contratos não-vinculados às ações
ordinárias, em razão do que, inadmissível no caso presente a discussão acerca
de tais títulos, cujo resultado foi direcionado ao pagamento de outros débitos,
que não aqueles trazidos a juízo, mostrando-se inviável levá-los em consideração por duas vezes.
Porém, no que pertine às amortizações denunciadas pelo autor na peça
vestibular do Processo nº 6.898-68, pequenas correções se impõem em virtude do que foi apurado na perícia, pois
algumas das amortizações ocorreram em
datas diferentes daquelas denunciadas
pelo credor, impondo-se obedecer, em
relação à Cédula EPC nº 79/01499-0, as
seguintes amortizações (fls. 607 e 44):
14-01-82 – 94.417,00; 14-01-82 –
65.200,00; 15-01-82 – 68.783,00; 29-01-82
– 76.800,00; 29-01-82 – 284.800,00;
10-02-82 – 69.240,00; 05-03-82 –
370.000,00; 05-03-82 – 460.000,00;
11-03-82 – 65.280,00; e 11-03-82 –
80.760,00. De salientar que apenas algumas datas informadas pelo autor é
que se encontravam erradas, sendo
corretos os valores informados.
No que pertine ao título entregue
em cobrança, em que figurava como
devedor Mário Rosa, no valor de Cr$
113.664,00, o que a perícia apurou foi
a sua devolução, conforme se pode
constatar à fl. 616, dela não constando
qualquer ressalva acerca de não encontrar-se documentalmente demonstrada,
SENTENÇAS
o que não ocorre em relação aos títulos
de Agamenon Berni.
Por fim, impende apreciar questão
acerca da qual foi travado acirrado
debate nos autos, qual seja, a dos títulos em que figurava como devedor
Agamenon Machado Berni. Para solucionar tal questão, impõe-se analisar o
seguinte: a) se o procurador dos requeridos dispunha de poderes para autorizar a entrega de tais títulos ao emitente;
b) qual o valor que se pode atribuir à
contabilidade do credor, pois dela consta ter havido a devolução dos títulos,
não tendo sido registrado qualquer pagamento; e c) qual o valor que se pode
atribuir à palavra do emitente de tais
cártulas.
Solvidas tais indagações, é que se
poderá chegar a uma solução quanto à
compensação, ou não, de tais valores,
responsabilizando-se, ou não, o autor.
Tais cártulas, segundo o credor, teriam
sido entregues francas de pagamento ao
devedor, em virtude de autorização oriunda do procurador dos demandados,
mediante missiva acostada aos autos.
Quanto ao primeiro questionamento
por mim posto como necessário à solução de tal questão, afigura-se correto
afirmar que o mandatário dispunha de
poderes para agir em nome dos demandados, autorizando a entrega das cártulas
ao devedor (Agamenon). Os instrumentos de mandato das fls. 368 e 369 do
Processo nº 6.698-68 assim o demonstram. Nota-se que no documento da fl.
368 nada consta acerca de sua revogação, com o que, indemonstrado tenha
ela ocorrido, o que incumbia aos réus
demonstrar, na forma do art. 333, inc.
II, do CPC, tenho que persistia ela hígida
quando entabulado o negócio.
183
No que tange ao documento da fl.
369, embora conste na margem superior esquerda sua revogação por falta
de revigoramento, por ato do credor,
conforme esclarecido na perícia (fl. 612),
que assim procedia periodicamente. Entretanto, foi carreada aos autos do Processo nº 6.692-62 (fl. 269) missiva assinada pelo demandado Roberto revigorando tal procuração, referindo-se, inclusive, a sua data. O ato de revogação,
perpetrado pelo banco, tem pouca ou
nenhuma importância, notadamente
porque era incapaz de ocasionar a extinção do mandato, pois não se constitui em causa legalmente prevista para
tal, a teor do que preceituam os incisos
do art. 1.316 do CC. Em termos de
operacionalização interna, poderia o
requerente não atribuir mais valor ao
mandato, que, entretanto, foi “revigorado” por Roberto Wairich Fernandez.
Logo, quando assinada a carta da fl. 368
(Processo nº 6.898-68), encontravam-se
em pleno vigor os instrumentos de
mandato.
Vencida a questão atinente à vigência dos mandatos outorgados pelos
devedores, é mister seja analisado se o
mandatário dispunha de poderes para
agir como agiu, ou seja, poderia ele
autorizar a entrega, sem o pagamento,
dos títulos entregues em cobrança vinculada?
Como se vê, a carta endereçada ao
credor teve como remetente, através do
procurador Sérgio Oliveira, o autor Roberto Wairich Fernandez, que autorizou
a entrega dos títulos franca de pagamento. Assim, reduzido fica o campo
de análise ao instrumento de mandato
da fl. 369, como autorizador, ou não,
do agir do mandatário, pois o ato foi
184
praticado tão-somente em nome do
demandante Roberto. Tal instrumento
de mandato se configura como especial
na forma do art. 1.294 do CC, restringindo-se aos atos que nele são mencionados, pois os poderes vem detalhados
em seu corpo. Dentre os poderes que
foram conferidos ao mandatário, se inserem os de assinar menções, aditivos
de qualquer espécie, inclusive de substituição ou remoção de garantia, assim
como dar e receber quitação.
Ora, embora as cártulas não se constituíssem em um direito real de garantia,
na verdade encontravam-se vinculadas
em virtude da modalidade de cobrança
(vinculada), como referido alhures, em
razão do que inserido, dentro dos poderes outorgados ao mandatário, a autorização para a entrega de tais cártulas,
em razão do que o ato praticado não
desbordou dos poderes confiados ao
mandatário, inexistindo o apontado excesso.
De outro modo, segundo relatado
pelo demandado Alexandre (fl. 449 do
Processo nº 6.698-68), mantinham os
requeridos uma sociedade, da qual o
mandatário era empregado. Não se tem
notícia nos autos, pois prova alguma foi
produzida em tal sentido, de que, nessa
sociedade a que se referiu o demandado Alexandre, fosse necessária, para a
constituição de procurador, a assinatura
dos dois sócios, ônus probatório que
incumbia aos demandados e capaz de
desvestir a legalidade de que se reveste
o ato praticado pelo mandatário. Ora,
entregues os títulos em cobrança vinculada, poderiam, tanto Alexandre quanto
Roberto, autorizar a entrega dos títulos
independentemente de pagamento, seja
pessoalmente, seja através de procura-
SENTENÇAS
dor, sem que necessitassem atuar em
conjunto, ou constituir conjuntamente
dito procurador.
Assim, no meu sentir, como resposta
à primeira indagação, o que se tem é
que dispunha o procurador de poderes
para autorizar a entrega dos títulos de
crédito independentemente de pagamento. O segundo aspecto a ser apreciado
é sobre qual o valor que se pode atribuir à contabilidade do demandante
como meio de prova, tendo em vista a
referência expressa na perícia (fl. 616
do Processo nº 6.698-68) de que constariam nas anotações do autor como
devolvidos os títulos. Embora a perícia
mencione que tal devolução não está
amparada em documentos, tenho que
ocorre justamente o contrário, pois a
própria procuração antes referida é prova bastante do levantamento contábil
levado a efeito pela perícia, que atesta
a devolução das cártulas.
Por fim, quanto à credibilidade que
se possa atribuir ao depoimento da testemunha Agamenon, que alegou haver
efetivado o pagamento das cártulas, estou em que tal depoimento não merece
crédito. É totalmente estéril a discussão
acerca de haver sido determinada a oitiva de tal testemunha de ofício pelo
juízo, pois, na verdade, testemunhas
arroladas pelo autor, pelo réu ou de
ofício são testemunhas do processo, cuja
veracidade da versão ofertada deve ser
analisada em conformidade com a prova
contextualizada. O fato de a oitiva da
testemunha haver sido determinada pelo
juízo não torna o seu depoimento a salvo
da necessária análise, como se pairasse
soberano acima de qualquer suspeita.
Ao contrário, claros os interesses da testemunha no deslinde do feito.
SENTENÇAS
À fl. 536, do Processo nº 6.698-68
temos o depoimento de tal testemunha,
colhido por precatória, esclarecendo ela
que os títulos resultariam de uma operação particular de aquisição de animais
feita junto a Roberto, os quais teria pago
junto ao Banco do Brasil. De tais pagamentos, feitos com cheques de terceiros, não possui recibo, embora mencione que este lhe tenha sido fornecido,
pois, em razão do tempo decorrido, o
teria perdido. Segundo narra, o pagamento teria ocorrido no outono, dias
após a concessão de uma prorrogação.
Os títulos de crédito prescrevem em
curto lapso temporal, mas a ação de
enriquecimento ilícito que deles se pode
originar dispõe de vida mais longa. Ao
afirmar que as cártulas foram pagas,
estaria tal pessoa se isentando de qualquer responsabilidade. Dissesse que teria
recebido os títulos independentemente
de pagamento ou que não houvesse
pago, e colocar-se-ia ao alcance de
demanda ressarcitória.
Não fora o evidente interesse de tal
testemunha, pouco razoáveis suas palavras. A uma, porque não é crível que
uma instituição bancária receba pagamento mediante cheques de terceiros,
prática que, cotidianamente, se constata
ser inadmitida pelos bancos. A duas,
porque embora a testemunha afirme ter
recebido o recibo, dele não mais dispunha. A três, porque a perícia levada a
efeito na contabilidade do autor em
momento algum apurou a existência de
tais pagamentos.
Estranho, diz que pagou e não possui recibo. Disse ter pago com cheques
de terceiros, prática inadmitida nos bancos, e que, na verdade, impossibilita
que se averigúe a veracidade de sua
185
versão, o que poderia ocorrer com a
microfilmagem de cheques, se estes
fossem seus. Não sabe o período ao
certo, mas tal pagamento não foi localizado na contabilidade do banco.
Logo, ao avaliar tais aspectos, a conclusão a que se chega é no sentido de
que, pelos títulos emitidos por Agamenon Berni, não se pode responsabilizar
o autor, tendo em vista a entrega destes,
independentemente de pagamento, ao
próprio emitente, por autorização emanada de Roberto Wairich Fernandez,
através de seu procurador, não havendo
quaisquer valores a compensar, não
merecendo prosperar, de igual modo,
pelas mesmas razões, a reconvenção
movida por Roberto Wairich Fernandez.
Da comprovação de existência do
débito. Dos autos emerge encontrar-se
devidamente comprovada a existência
do débito, vez que documentalmente
demonstrado em todas as ações de cobrança pelas respectivas cédulas rurais,
cuja autenticidade em momento algum
foi refutada pelos demandados.
Assim, o que se tem individualmente é que as provas documentais carreadas a cada um dos feitos apresenta a
seguinte situação: Processo nº 6.691-61,
embasado nas Cédulas EPI nº 75/000493, EAI nº 75/00501-0, EAC nº 78/002321, EAI nº 75/00500-2, EAI nº 77/001627 e EAC nº 78/00475-8 (fls. 08 à 25);
Processo nº 6.692-62, embasado nas
Cédulas EAI nº 78/00251-8, EAC nº 78/
00476-6, EAC nº 78/01176-2 e EAI nº
79/00314-X (fls. 08 à 34); Processo nº
6.693-63, embasado na Cédula EAC nº
79/00459-6 (fls. 07 à 10); e Processo nº
6.698-68, embasado nas Cédulas EAC nº
79/01498-2 e EPC nos 79/01499-0 e 80/
00416-2 (fls. 09 à 43).
186
Por outro lado, a perícia produzida
possibilitou a apuração, levando-se em
conta o critério adotado pelo autor, ou
seja, valor do débito em 30-06-81, quanto
efetivamente era devido em tal data,
por cada uma das cédulas, cujos valores
devem ser adotados com uma única
reserva, qual seja, a de não-adoção
daqueles que ultrapassem ao pleiteado
pelo demandante em sua peça vestibular, pois se assim procedesse estaria a
alcançar um plus além do que foi pleiteado (extra petita).
De salientar que em alguns casos
impõe-se a redução dos valores pedidos na exordial, vez que foi constatado
na perícia que eles não estão calculados
de acordo com os termos pactuados, e
aqui se inserem e ficam solvidas, desde
logo, as alegações de Roberto e Lucila
acerca da indevida cobrança de juros
em determinadas cédulas ou em parcelas destas, vez que a perícia contábil
teve por norte a apuração do débito em
conformidade com o que fora pactuado, ficando este a cavaleiro de qualquer
cobrança indevida.
Processo nº 6.691-61: EPI nº 75/
00049-3 – Cr$ 141.132,29 (perícia); EAI
nº 75/00501-0 – Cr$ 74.298,33 (perícia);
EAC nº 78/00232-1 – Cr$ 56.029,76 (perícia); EAI nº 75/00500-2 – Cr$ 25.972,54
(perícia); EAI nº 77/00162-7 – Cr$
45.644,94 (perícia); e EAC nº 78/004758 – Cr$ 196.360,68 (perícia); total – Cr$
539.438,54.
Processo nº 6.692-62: EAI nº 78/
00251-8 – Cr$ 417.141,76 (perícia); EAC
nº 78/00476-6 – Cr$ 397.572,05 (perícia); EAC nº 78/01176-2 – Cr$ 451.231,67
(perícia); e EAI nº 79/00314-X – Cr$
3.187.459,75 (perícia); total – Cr$
4.453.405,23.
SENTENÇAS
Processo nº 6.693-63: EAC nº 79/
004459-6 – Cr$ 384.980,20 (valor autor);
total – Cr$ 384.980,20. Processo nº 6.69868: EAC nº 79/014498-2 – Cr$ 151.445,86
(perícia); EPC nº 79/01499-0 – Cr$
2.136.797,56 (perícia); e EAC nº 80/
004416-2 – Cr$ 7.330.249,26 (valor autor); total – Cr$ 9.618.492,68.
Observação: sem considerar as amortizações antes especificadas e que devem ser abatidas, notadamente porque
ocorreram em datas posteriores. São
esses, pois, os valores devidos em cada
um dos processos na data de 30-06-81,
sendo que em relação à Cédula EPC nº
79/01499-0 devem ser procedidas as
amortizações anteriormente especificadas.
Da incidência da correção monetária. Reconhecida a existência do débito
e inadmitida a compensação, impõe-se
apreciar acerca da incidência de correção monetária e, admitida esta, o termo
inicial para a sua fluência. A tese de
não-incidência de correção monetária nas
dívidas oriundas de financiamentos agrícolas não merece prosperar. Na verdade, suprimir a correção monetária é expropriar indiretamente o credor, pois a
correção monetária não é um plus que
se acrescenta, mas um minus que se
evita. Logo, a afastar-se a incidência da
correção monetária se estará violando o
direito de propriedade e o devido processo legal, com atropelo das garantias
constitucionais contidas nos incs. XXII,
XXIV e LIV do art. 5º da Lei Magna.
Oportuna, a propósito, a manifestação de Arnoldo Wald, in “Revista da
AJURIS” nº 60/333, “Quatro Décadas de
Evolução da Correção Monetária”, para
quem: “A ficção nominalista, de acordo
com a qual a moeda mantinha, no tem-
SENTENÇAS
po, sempre o mesmo valor, foi
desmentida pelos fatos, significando uma
verdadeira expropriação do credor em
favor do devedor”.
O crédito rural não ocupa posição
diversa, pois embora a legislação pertinente não preveja a incidência da correção monetária, também não veda. Ora,
o ordenamento pátrio, é sabido, deve
ser interpretado de forma sistemática,
com a visão do todo, e não de forma
restrita em relação a uma lei. Assim,
partindo da Constituição Federal, conforme anteriormente explicitado, e analisando o Decreto-Lei nº 167/67, não
vislumbro qualquer vedação à incidência da correção monetária nos créditos
rurais.
A reforçar tal entendimento existe a
Súmula nº 16 do STJ, vazada nos seguintes termos, verbis: “A legislação ordinária sobre crédito rural não veda a
incidência da correção monetária”. Repita-se, inexiste, em lei, qualquer vedação à incidência da correção monetária
nos créditos rurais. Não vislumbro força
ou relevância na argumentação no sentido de que a correção monetária foi
excluída do projeto pelo Relator do mencionado Decreto-Lei, notadamente porque, nem sempre, tal forma de interpretação da lei é a mais adequada.
A respeito, pertinente reproduzir
parcialmente o voto do Min. Sálvio de
Figueiredo no REsp nº 2.122-MS: “A referida lei, em que pese o seu silêncio
sobre a correção monetária, não se
apresenta destoante das demais do nosso
sistema jurídico, até porque nela não
existe nenhuma vedação à incidência
da correção monetária. A circunstância
de ter sido excluída do projeto, pelo
seu relator, a previsão de correção
187
monetária, não tem, a meu juízo, a relevância que lhe dão os que comungam
da tese da não-incidência da correção
monetária nos mútuos rurais.
“A uma, porque a mens legislatoris
nem sempre constitui orientação satisfatória na exegese dos textos legais (a
propósito, Alipio Silveira, “Hermenêutica Jurídica”, vol. I, cap. 09). A duas,
porque, como visto, doutrina e jurisprudência, ante a evolução do fenômeno
inflacionário, passaram a não mais exigir, como critério de aplicação da correção monetária, a prévia existência de
autorização legal. A três, porque, a tornar-se por base a referida exclusão,
autorizados também estaríamos a refletir sobre as razões que levaram o legislador constituinte a inserir no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias
o art. 47, II.
“Esse, com efeito, não é um raciocínio seguro e merecedor de aplauso,
em que pesem os esforços desenvolvidos pelos ilustres escolialistas que têm
se ocupado da matéria. A melhor interpretação de uma lei, como cediço, não
é a que se ocupa do seu exame isolado
e literal, mas, sim, a que se realiza dentro de um sistema lógico e racional. O
jurista, proclamou Pontes de Miranda em
seus “Comentários ao Código de Processo Civil de 1939” (vol. XII/23), ‘há de
interpretar as leis com o espírito ao nível
de seu tempo, isto é, mergulhado na
viva realidade ambiente’. Em outras palavras, ‘há que interpretar a norma de
acordo com a realidade e a teleologia do
sistema’ (Galeno Lacerda, “Comentários”,
Forense, art. 809 do CPC)”.
De tudo resulta ser cabível, no caso
posto nos autos, a incidência de correção monetária, restando fixar qual o
188
termo inicial de sua incidência. Pretende o credor ver incidir a atualização
monetária na forma do art. 1º, § 1º, da
Lei nº 6.899/81, com a incidência da
correção monetária desde a data dos
títulos, ao passo que os devedores postulam seja aplicado o § 2º do mesmo
artigo, com incidência a partir do ajuizamento da ação.
O caso posto nos autos das quatro
ações de cobrança encerra situações de
idêntica peculiaridade. É que em todas
elas se encontra o credor munido de
título que embasaria feito executivo, mas
que, nas demandas de tal natureza
anteriormente propostas, não logrou
demonstrar a liquidez dos títulos de
crédito. Tal decisão, entretanto, não
fechou ao credor a porta da execução,
da qual poderia novamente ter lançado
mão, desde que demonstrada ab initio
a liquidez de seu crédito, pois, uma vez
reconhecida a liquidez, isso não significa dizer que ela persistirá para sempre, pois pode perfeitamente ser suprida, em se tratando de contratos bancários, pela apresentação dos extratos, os
quais, diga-se de passagem, acompanharam as ações de cobrança.
Não se venha dizer que em virtude
da coisa julgada se teria criado uma
situação permanente de liquidez, pois
isso inexiste no mundo jurídico. Ademais, encontra-se sedimentado na jurisprudência o entendimento no sentido
de que os contratos de abertura de
crédito que se façam acompanhar dos
respectivos extratos bancários são aptos
a embasar feito executivo.
Não obstante dispor de remédio
processual mais expedito, o autor, talvez temeroso do insucesso em que resultaram as execuções que intentara,
SENTENÇAS
optou pelo processo de conhecimento,
com todos os percalços de que ele se
reveste. Poderia executar, mas não o
fez. Ora, estando o credor a exigir nas
ações de cobrança dívida líquida e certa,
correta se mostra, no meu sentir, a incidência de correção monetária a contar
da data de vencimento dos títulos, o
que em parte já foi atendido por ocasião da elaboração do laudo pericial,
chegando-se aos débitos apurados em
30-06-81, conforme referido alhures,
sendo o caso de incidir o art. 1º, § 1º,
da Lei nº 6.899/81.
Em tal sentido se inclina a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
e de nosso Tribunal de Alçada, verbis:
“A jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça pacificou-se no sentido de
admitir a correção monetária incidente
sobre valores de quaisquer débitos judiciais, ainda que se trate de título executivo que tenha perdido a cambiariedade” (REsp nº 6.527-RJ, STJ, 3ª Turma,
Rel. Min. Waldemar Zveiter, “DJU”, de
11-03-91, p. 2.393).
“Cabimento da ação de cobrança para
se exigir dívida de valor, líquida e certa,
inclusive confessada pelo devedor, razão
suficiente para que a correção monetária
incida a partir do vencimento do título
(art. 1º, § 1º).” (REsp nº 20.188-7-RJ, STJ,
3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter,
“DJU”, de 03-08-92, p. 11.312)
“Ação ordinária de cobrança. Correção monetária. Incidência. Na ação de
cobrança de débito representado por
títulos de crédito, ainda que o credor se
valha da via do processo de conhecimento, a correção monetária incidirá a
partir dos vencimentos dos títulos e não
do ajuizamento da ação.” (“Julgados do
TARGS” nº 90/110)
SENTENÇAS
Assim, no meu sentir, devida a correção monetária desde o vencimento dos
títulos.
Da incidência da multa e possibilidade de cumulação com honorários.
Para bem solucionar tal questão, é de
rigor seja apreciada a natureza jurídica
da multa prevista no art. 71 do Decreto-Lei nº 167/67. Tal artigo encontra-se
inserido no Capítulo das Disposições
Gerais do mencionado Decreto-Lei.
Entretanto, há um capítulo específico
tratando acerca da ação para cobrança
das cédulas de crédito rural.
Não é o objetivo da presente abordagem aferir se o Capítulo IV, que versa acerca da ação para a cobrança, encontra-se ou não em vigor. Na verdade,
trata-se de analisar a sistemática da lei.
Assim, se quisesse o legislador contemplar honorários, a eles faria inserir no
local adequado, ou seja, ao tratar da
ação para cobranças. Não o fez, sendo
que dita multa está localizada no corpo
da lei, em local totalmente diverso. Se
poderia dizer que o legislador teria sido
pouco técnico. Admita-se isso para aferir se o dispositivo contempla honorários. Definitivamente, não.
Trata-se de multa decorrente do inadimplemento, que não pode ser confundida com a verba honorária, pois,
embora se reconheça a pobreza da
interpretação literal, não se pode negar
que o vocábulo multa diz com a aplicação de penalidades, ao passo que os
honorários dizem com a remuneração
do trabalho realizado. Ora, inadimplentes os devedores, é de rigor a incidência da multa, vez que contemplada a
hipótese elencada no artigo em tela.
Por óbvio que, traçada a distinção
entre multa e honorários, é admissível
189
a cumulação destes, não apenas porque
se tratam de institutos jurídicos distintos, mas também porque, a pensar de
modo diverso, estaria este juízo contemplando o amesquinhamento do exercício da advocacia, com evidente desconsideração ao preceituado no art. 20,
§§ 3º e 4º, do CPC, como se fosse possível tarifar o trabalho dos profissionais
do Direito em percentual fixo, sem qualquer margem para a apreciação judicial,
principalmente no caso dos autos, que
envolve questão de razoável complexidade, em processo que se prolongou
no tempo, exigindo laborioso trabalho
dos procuradores dos litigantes.
A reforçar tal entendimento mencione-se a Súmula nº 616 do STF: “É permitida a cumulação da multa contratual
com os honorários de advogado, após
o advento do Código de Processo Civil
vigente”. Logo, desassiste razão ao contestante, pois plenamente cumuláveis
honorários advocatícios e multa contratual, institutos jurídicos distintos que são.
Dos juros pretendidos pelo autor. Estou em que se mostram excessivos os
juros pretendidos pela parte-autora, pois
ultrapassam ao permitido em lei. É sabido que, não obstante a chamada autonomia da vontade, o que desborda do
permitido em lei é ato nulo e, como tal,
suscetível de reconhecimento judicial,
independentemente de provocação das
partes, tal qual preceituado no parágrafo único do art. 146 do CC.
Seria demasia pretender fossem suplantados os limites legais em nome da
autonomia da vontade, restando ultrapassada, assim, a advertência posta por
Radbruch, mencionado por Fernando
Noronha in “O Direito dos Contratos e
seus Princípios Fundamentais”, Saraiva,
190
1994, p. 123, que ora reproduzo: “A
liberdade contratual do Direito converte-se... em escravidão contratual na sociedade. O que, segundo o Direito, é
liberdade, volve-se, na ordem dos fatos
sociais, em servidão”.
É evidente que não abrangendo a
nulidade a totalidade do ato, por não
atingir ponto substancial, torna-se possível a distinção da parte que lhe é
válida. Assim, no caso posto nos autos,
os juros pactuados excedentes a 12% ao
ano se revestem da eiva da ilegalidade,
devendo ser reduzidos a tal patamar.
Ora, há todo um aparato legislativo a
regulamentar a limitação de juros, sendo que na forma do art. 1º da Lei nº
22.626/33 é vedada a cobrança de juros
superiores ao dobro da taxa legal, impondo-se interpretar tal dispositivo em
conjunto com os arts. 1.062 e 1.262 do
CC, para, assim, chegar à conclusão de
que não podem exceder a 12% ao ano.
Não me parece aplicável ao caso posto
nos autos a Súmula nº 596 do STF.
Ocorre que a Lei nº 4.598/64, art. 4º,
inc. IX, que possibilitaria às instituições
financeiras a cobrança acima de tal
patamar, utiliza-se em sua redação do
verbo “limitar”, e como menciona o culto
Colega Pedro Luiz Pozza, “Revista da
AJURIS” nº 62/299, “Limitar significa
reduzir, restringir, diminuir. Tanto que
o inciso em questão, em sua parte final,
refere que essa limitação destina-se a
assegurar taxas favorecidas a determinados financiamentos. Se é assim, conclui-se que o objetivo do legislador foi,
justamente, o de restringir os encargos
praticados pelos bancos, não de conceder ao Conselho Monetário Nacional uma
carta de alforria, permitindo a cobrança
SENTENÇAS
de juros abusivos”. Assim, persiste íntegro o dispositivo acima mencionado (art.
1º da Lei nº 22.626/33), a incidir, inclusive, em se tratando de instituições financeiras.
Em tal sentido já se manifestou a 3ª
Câmara Cível do Egrégio Tribunal de
Alçada, sendo Relator o Dr. Arnaldo
Rizzardo, constante do “Julgados do
TARGS” nº 80/315, que transcrevo parcialmente: “Contrato bancário... Limitação da taxa de juros a 12%, conforme
imperativo do Direito Positivo (arts. 1.062
e 1.262 do CC e art. 1º do Decreto nº
22.626/33), porquanto o termo ‘limitar
taxas de juros’, contido no art. 4º, inc.
IX, da Lei nº 4.595/64, não significa
elevá-la, o que, a seguir-se, ainda, a
Súmula nº 596 do STF, importaria em
ofensa ao princípio da isonomia jurídica
das pessoas na ordem constitucional”.
Disso resulta viável a limitação dos
juros a 12% ao ano, vez que em conformidade com o que dispõe a Lei nº
22.626/33, em seu art. 1º, constituindo-se o que excede a tais patamares em
disposição contratual a que se atribui a
eiva da ilegalidade, o que ocorre flagrantemente no caso dos autos.
DISPOSITIVO
Isso posto, com fulcro no art. 269,
inc. I, do CPC: A) Julgo procedente o
pedido contido no Processo nº 6.691-61, para condenar os réus Alexandre
Wairich Fernandez e Dora Regina Reginato Fernandez ao pagamento de Cr$
539.438,54, valor devido em 30-06-81, a
ser monetariamente atualizado desde tal
época (art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81)
pelo IGP-M, acrescido de juros de 12%
ao ano, capitalizados semestralmente, e
SENTENÇAS
multa de 10% sobre o valor atualizado
do débito (art. 71 do Decreto-Lei nº
167/67).
B) Julgo procedente o pedido deduzido no Processo nº 6.692-62, para
condenar os réus Alexandre Wairich
Fernandez, Dora Regina Reginato Fernandez, Roberto Wairich Fernandez e
Lucila Salles Fernandez ao pagamento
de Cr$ 384.980,20, valor devido em
30-06-81, a ser monetariamente atualizado desde tal época (art. 1º, § 1º, da
Lei nº 6.899/81) pelo IGP-M, acrescido
de juros de 12% ao ano, capitalizados
semestralmente, e multa de 10% sobre
o valor atualizado do débito (art. 71 do
Decreto-Lei nº 167/67).
C) Julgo procedente o pedido deduzido no Processo nº 6.693-63, para
condenar os réus Alexandre Wairich
Fernandez e Roberto Wairich Fernandez
ao pagamento de Cr$ 384.980,20, valor
devido em 30-06-81, a ser monetariamente atualizado desde tal época (art.
1º, § 1º, da Lei nº 6.899/81) pelo IGP-M,
acrescido de juros de 12% ao ano, capitalizados semestralmente, e multa de
10% sobre o valor atualizado do débito
(Decreto-Lei nº 167/67), e improcedente a reconvenção movida por Roberto
Wairich Fernandez; de outro modo, julgo
procedente a impugnação ao valor da
causa (nº 166/90), para atribuir-lhe como
correto o de Cr$ 177.742,08, condenando o autor (impugnado) ao pagamento
das custas processuais do incidente.
D) Julgo procedente o pedido deduzido no Processo nº 6.698-68, para
condenar os réus Alexandre Wairich
Fernandez, Dora Regina Reginato
Fernandez, Roberto Wairich Fernandez
e Lucila Salles Fernandez ao pagamento
191
de Cr$ 9.618.492,68, valor devido em
30-06-81, a ser monetariamente atualizado desde tal época (art. 1º, § 1º da Lei
nº 6.899/81) pelo IGP-M, acrescido de
juros de 12% ao ano, capitalizados semestralmente, e multa de 10% sobre o
valor atualizado do débito (Decreto-Lei
nº 167/67); de outro modo, julgo procedente a impugnação ao valor da causa (nº 164/90), para atribuir-lhe como
correto o de Cr$ 9.707.324,42, condenando o autor (impugnado) ao pagamento das custas processuais do incidente.
Condeno os réus, em cada um dos
processos, ao pagamento das custas e
despesas processuais, assim como dos
honorários advocatícios do patrono do
autor, os quais vão fixados em 20% do
valor atualizado de cada uma das condenações, percentual que fixo com fulcro no art. 20, § 3º, do CPC, levando em
consideração que o trabalho desenvolvido pelo patrono do autor foi de acentuada qualidade, revestindo-se de considerável grau de zelo, sendo desenvolvido em comarca diversa daquela aonde mantém escritório profissional e, por
fim, o longo desenrolar do processo
com complexa dilação probatória.
Antes de intimar as partes da presente sentença, deverá a Sra. Escrivã
providenciar na extração de fotocópias
do Processo nº 6.698-68, com sua juntada nos três outros processos, dos atos
processuais que foram praticados apenas naquele e disserem respeito aos
demais, considerado o momento em que
começaram a ser praticados apenas naquele, sendo que deverá desconsiderar,
sob supervisão deste juízo, as cópias
desnecessárias. Feito isso e acostada a
192
cada um dos processos a sentença,
publique-se, registre-se e intimem-se,
sendo que a intimação deverá ser individualizada em cada um dos processos,
possibilitando, assim, se for o caso, a
interposição de recurso em cada um
SENTENÇAS
dos processos, pois as partes não são as
mesmas em todos eles.
Júlio de Castilhos, 28 de novembro
de 1995.
Luiz Antônio Alves Capra, Juiz de
Direito Substituto.
193
Processo nº 00101873595 – Pedido de Alvará (Falência de Marsiaj Oliveira
Incorporações Imobiliárias Ltda.)
Vara de Falências e Concordatas – 1º Juizado
Requerente: Egon Teichmann: Empreendimento Condomínio Edifício “Piazza
Navona Flat Service”
Interessado: Banco do Estado do Rio Grande do Sul S. A. – Banrisul
Juiz prolator: Luiz Carlos Gay Serpa Daiello
Pedido de alvará judicial. Contratos
bilaterais não se rescindem com a quebra – art. 43 da Lei de Falências. Cancelamento da hipoteca convencional à
habilitação. Concessão de escritura ao
promitente-comprador. Sistema financeiro da habitação. Dívida do construtor
não se transmite ao adquirente de unidade financiada. Procedência do pedido.
Vistos estes autos.
O autor, supra-identificado e já qualificado nos autos ajuizou pretensão de
receber escritura do imóvel descrito na
inicial. Sustenta que, através de instrumento particular de compra e venda,
adquiriu de Flávio Ricardo Cordeiro o
referido imóvel. Flávio Ricardo Cordeiro
adquiriu da ora falida, através de contrato de particular de promessa de compra e venda (fls. 05/11), o imóvel em
questão, tendo quitado o preço com a
incorporadora. O autor pagou o preço
avençado, mas, apesar de notificada, não
outorgou a requerida a escritura, como
se obrigara.
Postula, ainda, que o imóvel lhe seja
transferido sem o ônus hipotecário existente, tendo como beneficiário o Banco
do Estado do Rio Grande do Sul S. A. –
Banrisul. A falida, o síndico e o Minis-
tério Público concordaram com o pleito. O Banrisul não concordou com a
transmissão do imóvel ao promitente. É
o breve relatório. Passo a decidir.
Justifica-se, inicialmente, o pedido
via alvará judicial, por ser este exatamente o meio apropriado para que o
síndico pratique atos de administração
da massa, na forma dos arts. 59 e 63,
XVIII, da Lei de Falências.
O processo falimentar é de ordem
pública, atingindo os interesses e direitos de todos os credores, sendo os seus
atos de caráter indisponível e de publicidade absoluta. O cumprimento dos
contratos bilaterais, gize-se, é manifestação de cunho eminentemente unilateral por parte do síndico, após juízo de
conveniência, mediante autorização judicial, que se dá através de alvará. O
presente pleito tem fulcro no art. 43 da
Lei de Quebras, que dispõe: “Os contratos bilaterais não se resolvem pela
falência e podem ser executados pelo
síndico, se achar de conveniência para
a massa. Parágrafo único – O contraente pode interpelar o síndico, para que,
dentro de 05 dias, declare se cumpre,
ou não, o contrato...”
O síndico, em manifestação nos autos, declarou sua intenção de cumprir
com o contratado, o que apenas ratifica
194
edital mandado publicar que, antecipando-se às interpelações dos credores, já
deixava claro que cumpriria com todos
os contratos firmados pela falida e que
envolvessem imóveis já construídos.
Trataria, pois, se fosse o caso, de receber os valores devidos pelos adquirentes e, em contrapartida, de transferirlhes o domínio, na forma contratada.
A questão, pois, é de mero cumprimento dos contratos bilaterais firmados
pela ora falida. Se houve o compromisso da compra e venda da unidade em
construção, com o adimplemento do
pagamento do preço, de um lado, e a
efetiva construção e entrega do imóvel,
de outro lado, resta apenas a sua escrituração no tempo e modo prometido.
Assim, na forma do contratado na
cláusula 8ª do instrumento da fl. 10, a
escritura pública definitiva seria outorgada com os imóveis livres e desembaraçados de quaisquer ônus judiciais ou
extrajudiciais, hipotecas (legais ou convencionais), no prazo de até 06 meses
de conclusão. Embora excedido o prazo
para a escrituração, não há impedimento para que agora seja efetivada, pois
manifesta a pretensão do credor em
recebê-la, mesmo que tardiamente.
O Banrisul, manifestando-se nos
autos, não concordando com o pedido
do requerente, requer que haja a satisfação da integralidade de seu crédito
junto à falida Marsiaj Oliveira Incorporações Imobiliárias Ltda., aduzindo que
os imóveis hipotecados são garantia de
seu crédito não satisfeito pela Incorporadora (Marsiaj).
Evidente que tal manifestação encerra uma expectativa da credora, não
uma condicionante ao cumprimento do
contrato com o requerente, pois não lhe
SENTENÇAS
cabe estabelecer condições ao adimplemento de contrato entre a falida e o
adquirente do imóvel, que é juízo de
conveniência do síndico, como antes
visto.
O credor-hipotecário, na falência,
como bem salientado pelo Dr. Promotor
de justiça em seu parecer, submete-se às
regras de classificação de créditos. Por
ser hipotecário, receberá a classificação
própria à natureza de seu crédito, ou
seja, haverá seu crédito na ordem legal,
após satisfeitos aqueles que lhe precedem que, exemplificativamente, são os
de natureza acidentária, trabalhista, os
das Fazendas Públicas, etc., além das
despesas e dos encargos da massa.
A circunstância, pois, de haver hipoteca a garantir determinado crédito antes da falência, não exclui o bem hipotecado da universalidade da massa falida, destacando-o do todo e colocando-o ao dispor de apenas um dos credores. O bem será normalmente arrecadado, entretanto, para a massa que fará a
sua administração da forma mais conveniente a atender os direitos e interesses
de todos os credores, não só do hipotecário.
Descabe ao credor-hipotecário impedir que assim seja, pois seu direito é
ao crédito e respectiva classificação, e
não ao bem. Caso contrário, absolutamente desvirtuado e fraudado o instituto da falência, que trata de estabelecer
o concurso universal e atender aos credores na medida de suas preferências e
privilégios. A hipoteca, enfim, não sobrevive ao decreto falimentar, a não ser
para o efeito de qualificar o crédito como
hipotecário.
Além dessa realidade, que me parece definitiva no presente pedido de
SENTENÇAS
cumprimento de contrato bilateral de
promessa de compra e venda, merece
análise, mesmo que perfunctória, a relação jurídica estabelecida entre a incorporadora, a financiadora da construção
– e credora hipotecária – e o consumidor adquirente.
Há uma tendência de sacralização
do instituto da hipoteca, como se, após
sua formalização, tomasse vida própria
independente da obrigação que lhe
originou, que lhe deu causa e que visa
a garantir. Não é assim, e disso não se
pode afastar o intérprete. A hipoteca,
embora direito real sobre coisa alheia,
tem a função e natureza de garantia de
cumprimento de obrigação, nada além
do que isso.
A ora falida, através do instrumento
público das fls. 46/69, em 25-07-91, firmou com o Banrisul contrato de empréstimo de importância destinada à
produção de unidades residenciais, lojas e estacionamentos, dentre elas aquela referida na peça inicial, denominada
de Piazza Navona Flat Service. O contrato foi firmado dentro do âmbito do
Sistema Financeiro da Habitação, regulado pela Lei nº 4.380, de 21-08-64, e
legislação posterior. A falida pagaria o
empréstimo num prazo de 24 meses,
posteriormente prorrogado para 39
meses (fl. 106), contatos de 05-08-92.
Estabeleceram que a dívida teria
vencimento antecipado (cláusula 20ª),
na hipótese de a Marsiaj (mutuária)
alienar ou mesmo prometer à venda o
imóvel sem a anuência expressa do
Banrisul (letra d da referida cláusula).
Tendo em vista tal dispositivo, inegável que as unidades em construção
poderiam ser comercializadas, não sendo isso negócio vedado à Marsiaj. Tanto
195
que a conseqüência do descumprimento da condição imposta pelo credor (sua
expressa anuência) era a de anteciparse o vencimento da dívida da
incorporadora. Ora, uma coisa é proibir
a venda ou promessa de venda das
unidades. Outra, bem diferente, é permiti-la, como feito, exigindo expressa
anuência e, caso descumprida, dar por
vencida a dívida.
A diferença é fundamental e tem
conseqüências no negócio jurídico estabelecido com o terceiro adquirente da
unidade em construção. Se proibida
fosse, o terceiro não poderia negociar
e, se negociasse, não poderia opor-se
ao credor. Sendo permitida a venda,
como era, o negócio jurídico estabelecido com Marsiaj alcança também o
credor, tem eficácia em relação a este,
que expressamente previu a possibilidade.
A questão da expressa aprovação do
negócio com o adquirente, pelo credor,
apenas tem reflexo na relação do
Banrisul com a Marsiaj. Se aprovada,
irrelevante a venda ao contrato de
empréstimo. Se não aprovada, por não
submetida ao Banrisul, a conseqüência
seria apenas o vencimento antecipado
da dívida da incorporadora. Nada mais.
Não há noticia de que o vencimento da
dívida foi extraordinário, antecipado e,
por conseqüência lógica, sequer se
admite a hipótese de que a promessa
de venda não tivesse a aprovação do
credor Banrisul.
Ademais, mesmo que assim fosse,
tratam os autos de construção financiada nos moldes do Sistema Financeiro da
Habitação que, a seguir será visto, possui
sistemática própria. O sistema é lógico
e correto, atendendo aos princípios da
196
boa-fé contratual. Não seria lógico, nem
jurídico, que o Banrisul contratasse mútuo com a incorporadora para construção e comercialização de unidades
residenciais, autorizasse as vendas, como
acima visto, e, após induzir os terceiros
a adquirirem os imóveis, lhes impingisse
o ônus de pagar novamente a dívida da
incorporadora para com o financiador
da construção.
Observe-se que o Banrisul, em
10-08-94, firmou aditamento ao contrato
de financiamento, prorrogando o vencimento da dívida para 29 meses, contados de 05-06-93 (fl. 107), estabelecendo
o prazo de 48 horas para liquidação do
eventual saldo devedor da Marsiaj, “se
o montante das comercializações das
unidades não fosse suficiente a quitá-lo”. Ressaltada, pois, a circunstância de
que as unidades destinavam-se à comercialização pela incorporadora, servindo seu produto ao pagamento do
débito. Era dever de o financiador da
obra fiscalizar que assim fosse.
Na verdade, surpreende que ainda hoje
ocorra discussão sobre se o terceiro adquirente de boa-fé responde pela hipoteca junto ao agente financeiro credor da
construtora do mesmo imóvel. Se fosse
isso possível, por certo que se estaria
chancelando e incentivando a disseminação do crime de estelionato. A circunstância de o adquirente das unidades ficar
ciente de que o imóvel encontra-se hipotecado não modifica sua situação de contratar de boa-fé, pois recebeu do vendedor a obrigação (promessa de) escriturar
o imóvel livre e desembaraçado de todo
e qualquer ônus, inclusive aquele específico da hipoteca. A relação que se estabelece é triangular e serve à geração e
circulação de riquezas na sociedade.
SENTENÇAS
A construtora ou incorporadora
empreende a construção de um conjunto habitacional e, para custeá-lo, procura recursos junto a agente financeiro
imobiliário. Este, mediante garantia hipotecária do terreno e futuras acessões,
empresta o valor ajustado. Libera-o
parceladamente, à medida em que cumpridas as várias etapas da obra, exercendo seu poder–dever de fiscalização.
Ao mesmo tempo, permite, expressa ou
tacitamente, a comercialização pública
das unidades em construção, constatando-se isso a uma simples leitura dos
classificados dos jornais, onde as ofertas
de venda não escondem a condição de
estarem as obras financiadas por agentes financeiros da habitação.
Os receptores da oferta pública de
venda, ou seja, os consumidores finais
das unidades habitacionais, aceitam-na
e firmam os respectivos contratos, comprometendo-se ao pagamento do valor
do imóvel. O valor, registre-se, corresponde ao normal de mercado, ou seja,
não leva em conta a existência de hipoteca ao agente financeiro. A razão
disso é bastante clara, pois a venda se
realiza sem que o adquirente assuma
obrigação alguma com o agente financeiro para quitar a hipoteca. Esta decorre de dívida do empreendedor
(construtor-incorporador) para com o
agente financeiro. O adquirente, repito,
não assume tal dívida, ou parte dela,
para com o agente financeiro, e todos
na relação têm disso plena consciência.
Aliás, o sistema não funcionaria, se
assim não fosse, e, repito, todos os
envolvidos sabem que desta forma é que
funciona. Negar tal realidade configurase em reconhecer legitimidade à má-fé
contratual e entender que os adquirentes
SENTENÇAS
de imóveis com obra financiada constituem uma parcela aquinhoada da população, cujo destino e prazer é pagar dívida
alheia. Trata-se obviamente de uma incoerência, que se procurou acentuar com
a ironia da situação.
O fato é que o contrato tem a função de circular riquezas e, como afirma
Cláudia Lima Marques, “... o comércio
jurídico se despersonalizou, e os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam...” (“Contratos
no Código de Defesa do Consumidor”,
Ed. RT, 1992, p. 27). Gerou isso, mesmo no Brasil de codificação civil vetusta
e inspirada na falsa autonomia da vontade, uma nova necessidade de teorizar
o contrato à realidade atual.
Como salientou a doutrinadora mencionada, “... certo é que a decadência do
voluntarismo do Direito Privado levou à
relativação dos conceitos. O direito dos
contratos, em face das novas realidades
econômicas, políticas e sociais, teve que
se adaptar e ganhar uma nova função,
qual seja a de procurar a realização da
justiça e do equilíbrio contratual. No novo
conceito de contrato, a eqüidade, a justiça (Vertragsgerechtigkeit) veio ocupar o
centro de gravidade, em substituição ao
mero jogo de forças volitivas e individualistas, que, na sociedade de consumo,
comprovadamente, só levava ao predomínio da vontade do mais forte...” (ob.
cit., p. 50).
Nosso Direito positivo consagrou no
texto da Constituição Federal, como
objetivo fundamental da República, o
“construir uma sociedade livre, justa e
solidária” (art. 3º, inc. I, da CF), repetindo, quando do estabelecimento dos
princípios gerais da atividade econômica, que esta “... tem por fim assegurar
197
a todos a existência digna, conforme os
ditames da justiça social...” (art. 170,
caput, da CF)
Solidariedade é “sentido moral que
vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo
social, duma nação, ou da própria humanidade... relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses
comuns, de maneira que cada elemento
do grupo se sinta na obrigação moral
de apoiar o(s) outro(s)...” (“Novo Dicionário Aurélio”, 2ª edição)
Inadmissível, pois, visão individualista dos contratos, dissociados do meio
em que produzidos, no meio este que
deverá traduzir um objetivo inafastável
de justiça social, baseado na solidariedade de seus agentes. A menos que
não se queira uma sociedade organizada e, ainda, que se negue o texto constitucional, relegando-o a mero enfeite
de bibliotecas.
Seria quase desnecessário ressaltar que
todo e qualquer negócio jurídico baseiase no princípio geral da boa-fé, traduzido
no dever de conduta ético exigível de
todos quantos pretendem formar uma
sociedade livre, justa e solidária, como é
o objetivo da República Federativa do
Brasil (art. 3º, inc. I, da CF).
Impensável o contraponto disto, que
é a má-fé na base das relações sociais,
gerando o caos. Embora seja isto bastante claro, observa-se a necessidade da
repetição do princípio, para que jamais
se perca o seu rumo, desviando-se para
nefastos caminhos, em que o objetivo é
o de levar vantagem em tudo, não importando quanto possa significar em
danos aos parceiros sociais.
Ressalte-se que a boa-fé gera comportamentos às partes, tanto no que tange
198
aos direitos como aos deveres, cumprindo-lhes exercer direitos sem abusividade
e adimplir obrigações corretamente, dentro do parâmetro daquilo que é o objetivo do compromissado. Há dever, em
suma, de recíproca lealdade dos contratantes, de forma que, como conduta,
ambos devem caminhar lado a lado para
a consecução da justa expectativa que
advém do negócio. A boa-fé precede a
contratação e sobrevive ao adimplemento
da obrigação principal.
A teoria da confiança, também presente nos negócios jurídicos, por seu
turno, “pretende proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nasceram no outro contratante, o qual confiou na postura, nas obrigações assumidas e no vínculo criado (...) protege-se,
assim, a boa-fé e a confiança que o
parceiro depositou na declaração do
outro contratante...” (Cláudia Lima Marques, ob. cit., p. 63)
Acrescenta aquela autora que “... a
teoria da vontade concentrava-se no indivíduo, aquele que emite erroneamente sua vontade, concentrava-se no momento da criação do contrato; a teoria
da confiança concentra-se também em
um indivíduo, qual seja o que recebe a
declaração de vontade, em sua boa-fé
ou má-fé, mas tem como fim proteger
os efeitos do contrato e assegurar, através da ação do direito, a proteção dos
legítimos interesses e a segurança das
relações...” (p. 63)
Necessária foi esta breve digressão
sobre a teoria contratual, mesmo que
de forma superficial, para estampar e
salientar do que se está tratando nesta
complexa relação consumidor-construtor-financiador. Assim, tem-se que o
adquirente cumpre com sua obrigação
SENTENÇAS
principal de pagar o preço do imóvel,
sendo justa sua pretensão de receber o
bem livre e desembaraçado, como se
obrigara o vendedor. Esta era a sua
legítima expectativa ao contratar, com
plena ciência da construtora e do agente financiador da obra.
O vendedor-incorporador-construtor,
por seu turno, recebeu o preço, devendo cumprir com sua parte na relação.
No que tange ao adquirente, deve transferir-lhe o domínio do bem adquirido e
pago pelo consumidor. Relativamente
ao agente financeiro, deve pagá-lo, como
se obrigara. O agente financeiro, de outra
parte, efetuou o empréstimo e tem legítima pretensão de reavê-lo de seu
vendedor-incorporador-construtor, na
forma contratada. Se este não paga, pode
cobrá-lo diretamente, inclusive executando as eventuais garantias.
Não pode, contudo, exercer pretensão contra o terceiro adquirente-consumidor, pois este não é seu devedor ou
garantidor da dívida. A hipoteca inicial,
abrangendo o todo do imóvel, não
persiste, é ineficaz relativamente à unidade comercializada, pois, como antes
visto, tal comercialização foi admitida e
consentida pelo agente financeiro quando contratou com o construtor-incorporador o financiamento da construção.
Fazia parte desta primeira relação, como
condição inerente ao negócio jurídico, a
possibilidade das alienações das unidades em construção-construídas ao público em geral. Mais do que possibilidade, diga-se, era o próprio objeto mediato
do contrato que financiou a construção.
Não haveria dito financiamento, se o
objetivo não fosse exatamente o de
vender, comercializar as unidades aos
consumidores.
SENTENÇAS
Se assim era, tanto que admitida a
notória oferta pública da venda através
de publicidade, evidente que o consumidor que aceitou tal oferta, adquirindo o
imóvel, não se obrigou com o agente
financeiro, posto que contrário à natureza da oferta e do próprio negócio jurídico. Volto a salientar que também não
era este o objetivo do agente financiador
ao contratar com o construtor-incorporador. Sua pretensão era realizar seu lucro
na operação de financiamento da construção, recendo o valor emprestado, com
os acréscimos, através dos recursos captados pelo construtor, seu financiado, que
adviram da comercialização das unidades aos consumidores finais.
Não se pode, de forma alguma,
confundir o objetivo do contrato com as
garantias de seu cumprimento. Estas são
a hipoteca enquanto não comercializada a unidade e, após, os créditos da
comercialização. Aquele, o objetivo, é
exatamente o de permitir a construção
e vender, comercializar as unidades
habitacionais em construção ou construídas.
O que não se pode admitir é que o
agente financeiro, totalmente omisso e
negligente nos seus negócios, permitindo que o seu devedor não lhe repassasse os valores recebidos na comercialização das unidades, passados vários meses ou anos, volte-se contra o consumidor e passe a exigir-lhe dívida que nunca
foi dele, mediante recusa de cancelar
hipoteca. Se foi negligente, não fiscalizando como deveria, deve ele próprio,
o agente financeiro, responder pelas
conseqüências de seus atos e omissões,
e não imputá-las a terceiros.
Pode-se objetar, no entanto, como
ficaria a situação do agente financeiro,
199
que, emprestando ao construtor-incorporador, não teve solvido seu crédito.
Afinal, dirão, se tinha garantias, não pode
ver frustrada a satisfação de seu crédito
junto ao construtor-incorporador. A solução para o aparente impasse encontra-se no próprio sistema financeiro da
habitação que, com singeleza, fechou o
círculo lógico para a relação tripartite
formada e que necessariamente se faz
presente em todos os negócios jurídicos
como o dos autos.
Através da Lei nº 4.854, de 29-11-65,
que “cria medidas de estímulo à indústria de construção civil”, foi criado o
mecanismo que permitiu, com a necessária segurança jurídica às partes envolvidas, fossem atendidas as legítimas
expectativas de todos os envolvidos
nesta relação jurídica. O agente financeiro, com a certeza do retorno de seu
empréstimo. O adquirente, com a certeza do recebimento do objeto contratado, ou seja, do imóvel, pagando por
ele apenas aquilo que ele vale, sem
riscos de responder por eventuais débitos do construtor-incorporador.
Estabelece o art. 22 de mencionado
diploma legal: “Os créditos abertos nos
termos do artigo anterior pelas Caixas
Econômicas, bem como pelas sociedades de créditos imobiliários, poderão
ser garantidos pela caução, a cessão
parcial ou a cessão fiduciária dos direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado.
“§ 1º – Nas aberturas de crédito garantidas pela caução referida neste artigo, vencido o contrato por inadimplemento da empresa financiada, o credor
terá o direito de, independentemente
de qualquer procedimento judicial e com
200
preferência sobre todos os demais credores da empresa financiada, haver os
créditos caucionados diretamente dos
adquirentes das unidades habitacionais,
até a final liquidação de crédito garantido.
“§ 2º – Na cessão parcial referida
neste artigo, o credor é titular dos direitos cedidos na percentagem prevista no
contrato, podendo, mediante comunicações ao adquirente da unidade habitacional, exigir, diretamente, o pagamento em cada prestação da sua percentagem nos direitos cedidos”.
No artigo seguinte, disciplina a situação em que haja a cessão fiduciária em
garantia do crédito, onde permitido que
o devedor (construtor-incorporador)
exerça os direitos de cobrança em nome
do credor, imputando ao devedor as
responsabilidades de depositário. No
caso de inadimplemento do construtor-incorporador, pode o credor-fiduciário,
comunicando aos adquirentes das unidades habitacionais, destes receber diretamente até a satisfação total de seu
crédito, entregando o restante ao construtor-incorporador.
Posteriormente, o Decreto-Lei nº 70,
de 21-11-66, em seu art. 43, reafirma o
sistema, dizendo que os empréstimos
destinados ao financiamento da construção ou da venda de unidades imobiliárias podem ser garantidos pela caução, cessão parcial ou cessão fiduciária
dos direitos decorrentes de alienação
de imóveis, aplicando-se o disposto nos
§§ 1º e 2º do art. 22 da Lei nº 4.864/65,
supratranscritos. A novidade importante
é que tais garantias passaram a se constituir em direitos reais, como determinado no parágrafo único do artigo em
comento.
SENTENÇAS
Ora, o credor Banrisul, culposamente (negligência): a) não exerceu a tempo e modo seu direito de cobrança de
seu efetivo devedor; b) também permitiu que o construtor-incorporador recebesse diretamente as importâncias do
adquirente, sem exigir os repasses; c)
não se insurgiu quanto à venda das
unidades a consumidores, antes a incentivou, permitindo sua oferta mediante publicidade, induzindo-os a contratarem com o devedor. Quebrou, pois, o
circuito de segurança jurídica que o
sistema financeiro da habitação criou,
onerando, com sua omissão culposa,
aquele que, na relação, foi o único a
adimplir com boa-fé suas obrigações, o
adquirente da unidade habitacional.
Não há razão alguma, portanto, para
que se admita seja o adquirente da
unidade habitacional responsável por
débito de terceiro, que, volto a frisar,
em nenhum momento pretendeu contrair ou efetivamente contraiu e que, na
sistemática legal de segurança jurídica
criada, nem poderia contrair.
A questão, para finalizar, já mereceu
análise do Superior Tribunal de Justiça,
por sua 4ª Turma, no julgamento do
Recurso Especial nº 187.940-SP (98/
0066202-2), Wulf Salim e cônjuge, recorrentes, Delfim S. A. Crédito Imobiliário, recorrida, tendo como Relator o
eminente Min. Ruy Rosado de Aguiar,
cuja ementa dispôs: “Sistema Financeiro
da Habitação. Casa própria. Execução.
Hipoteca em favor do financiador da
construtora. Terceiro promissário-comprador. Embargos de terceiro. Procedem
os embargos de terceiros, opostos pelos
promissários-compradores de unidade
residencial de edifício financiado, contra a penhora efetivada no processo de
SENTENÇAS
execução hipotecária promovida pela
instituição de crédito imobiliário que
financiou a construtora.
“O seu direito de crédito, que financiou a construção às unidades destinadas à venda, pode ser exercido amplamente contra a devedora, mas contra os
terceiros adquirentes fica limitado a
receber deles o pagamento das suas
prestações, pois os adquirentes da casa
própria não assumem a responsabilidade de pagar duas dívidas, a própria,
pelo valor real do imóvel, e a da construtora do prédio. Recurso conhecido e
provido”.
A ementa já seria suficiente ao esclarecimento. Impõe-se, contudo, que
se transcreva parte da brilhante fundamentação do Min. Ruy Rosado de Aguiar, onde afirmou: “As regras gerais sobre a hipoteca não se aplicam no caso
de edificações financiadas por agentes
imobiliários integrantes do Sistema Financeiro da Habitação, porquanto estes
sabem que as unidades a serem construídas serão alienadas a terceiros, que
responderão apenas pela dívida que
assumiram com o seu negócio, e não
pela eventual inadimplência da construtora. O mecanismo de defesa do financiador será o recebimento do que for
devido pelo adquirente final, mas não
a excussão da hipoteca, que não está
permitida pelo sistema...
“O princípio da boa-fé objetiva impõe ao financiador de edificação de
unidades destinadas à venda aprecatarse para receber o seu crédito da sua
devedora ou sobre os pagamentos a ela
efetuados pelos terceiros adquirentes.
O que se não lhe permite é assumir a
201
cômoda posição de negligência na defesa dos seus interesses, sabendo que
os imóveis estão sendo negociados e
pagos por terceiros, sem tomar nenhuma medida capaz de satisfazer os seus
interesses, para que tais pagamentos lhe
sejam feitos e de impedir que o terceiro
sofra a perda das prestações e do imóvel...”
Não há como, pois, deixar-se de
atender ao pleito de cumprimento do
contrato bilateral, pela massa, quando
plenamente adimplido pelo compromissário.
Diante de todo o exposto, acolho a
pretensão contida e autorizo a Massa
Falida de Marsiaj Oliveira Incorporações
Imobiliárias Ltda., por seu síndico, no
cumprimento do contrato bilateral que
a falida firmou com o requerente, a
outorgar escritura definitiva do imóvel
descrito na inicial, sem ônus (hipotecário ou outros que possam eventualmente estar incidindo sobre o imóvel), por
não existente no caso e, de qualquer
forma, por ineficaz em relação ao adquirente.
Expeça-se alvará para possibilitar o
ato, fazendo constar os necessários dados
dos imóveis e, como outorgado da escritura, Egon Teichmann já qualificado
nos autos, determinando ao Oficial do
Registro de Imóveis da 1ª Zona que
cancele a hipoteca incidente sobre os
imóveis objeto do presente processo.
Despesas de escrituração e registro pelo
requerente.
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 29 de março de 2001.
Luiz Carlos Gay Serpa Daiello, Juiz de
Direito.
202
Processo nº 01196154460
13ª Vara Cível – 1º Juizado
Autores: José Emílio Pessanha e Tulipas – Planejamento, Assessoria e Negócios Ltda.
Ré: Indústria de Bebidas Antárctica-Polar S. A.
Juíza prolatora: Nara Elena Soares Batista
Direito de retirada dos acionistas em
desacordo com a incorporação de sociedade comercial – arts. 230 e 270, parágrafo único, da Lei das Sociedades
Anônimas. Direito de recesso assegurado no art. 109, V, da Lei nº 6.404/76
para o sócio minoritário e dissidente de
decisão majoritária em assembléia geral. Número de ações. Procedência parcial.
Vistos, etc.
1. José Emílio Pessanha e Tulipas –
Planejamento, Assessoria e Negócios
Ltda. promovem ação ordinária contra
Indústria de Bebidas Antárctica-Polar S.
A., dizendo que adquiriram 1.407.011
ações, da espécie preferencial, da empresa Companhia Sulina de Bebidas
Antártica, e 30.040 ações, da classe ordinária, da empresa Cervejaria Serramalte
S. A., ambas pertencentes ao Grupo
Antártica de Bebidas.
Ocorre que a empresa-ré, em assembléia geral extraordinária, deliberou
a incorporação total das empresas retrocitadas, procedendo a uma operação de
troca baseada em laudos de avaliação
aos patrimônios líquidos das empresas
incorporadas, o que resultou-lhes a atribuição de 492.129 ações no capital social
da ré, respectivamente 79.544 e 412.585.
Sem interesse na operação de troca,
notificaram a incorporadora-requerida
nesse sentido, solicitando o pagamento
das ações que possuíam nas empresas
incorporadas, pelo valor patrimonial
apontado na própria assembléia. Recusa-se a ré, no entanto, ao pretendido,
impedindo-lhes o exercício do direito
de recesso, o que confronta direito
positivo vigente e a melhor orientação
jurisprudencial.
Com efeito, a edição da Lei nº 7.958/
89, que alterou inciso do art. 137 da Lei
das Sociedades Anônimas, não aboliu o
direito de retirada de sócio minoritário
nas hipóteses de fusão, cisão ou incorporação de sociedades anônimas. Em
verdade, ela tão-só excluiu o direito de
recesso na hipótese do art. 265 da Lei
nº 6.404/76 e aboliu a aplicação do
reembolso do 80%, deixando incólume
a figura da indenização em sede de
incorporação total.
Daí a presente demanda, onde objetivam, a título de indenização, no exercício do direito de recesso da sociedade-ré, os valores de R$ 1.245.180,46,
relativo às ações da Sulina, e R$
240.069,75, relativo às ações da
Serramalte, a serem atualizados desde
outubro/95. Com a inicial (fls. 02/07),
trouxeram os documentos das fls. 08/38.
2. A requerida contestou (fls. 45/75),
confirmando a incorporação das empresas em que eram acionistas os autores, mas apontando originariamente
SENTENÇAS
ao primeiro 1.388.794 ações preferenciais da Sulina e 6.664 ações ordinárias
da Serramalte, enquanto a segunda tinha 11.862 ações ordinárias e 1.030
ações preferenciais da Serramalte, bem
assim 18.377 ações preferenciais da
Sulina, o que altera o valor pedido.
Pelo plano de distribuição das novas
ações, José Emílio tem 457.197 preferenciais e 17.646 ordinárias, e a Tulipas
tem 31.400 ordinárias e 8.115 preferenciais. Alega que as três sociedades envolvidas, nos termos da legislação atinente à matéria, firmaram o protocolo
para a incorporação em 02-10-95, também, obedecidos os regramentos para a
avaliação dos patrimônios, donde que,
inexistente prejuízo aos acionistas dissidentes da deliberação da assembléia
geral, falece-lhes o direito de pedir a
reparação (art. 264 da Lei das Sociedades Anônimas).
Na incorporação da companhia controlada não há o direito de recesso vazio.
Nesse sentido, a Lei nº 7.958/89, que
deu nova redação ao art. 137 da Lei nº
6.404/76. Discorre a requerida, longamente, sobre os dispositivos da Lei das
Sociedades Anônimas revogados pela Lei
nº 7.958/89, apontando doutrina e jurisprudência no sentido de seu entendimento, qual seja de que, da revogação
parcial do art. 137, decorreu a revogação implícita do art. 230, fulcro do direito invocado pelos autores e de parte
do parágrafo único do art. 270.
Aponta, ainda, que a nova legislação objetivou, justamente, eliminar distorção do direito de retirada, que ocorria no Brasil, e que vinha em prejuízo
da preservação e da expansão da empresa, beneficiando o enriquecimento
injustificado do acionista minoritário, a
203
custa dos demais acionistas, e, por vezes, até dos empregados, com a redução ou destruição da empresa. Reforçou, por fim, a inexistência de prejuízo
dos acionistas reclamantes com a incorporação e postulou pela improcedência, juntando os documentos das fls. 76/
153.
3. Em réplica, argumentaram os
autores, por primeiro, que a requerida
não considera 10.464 ações ON da
Serramalte, adquiridas pela Tulipas, 04
meses antes da incorporação, cuja transferência entretanto retardou-se junto ao
Bradesco, só concretizando-se 02 meses
após a incorporação, o que gerou a
transformação automática em ações da
requerida.
Quanto ao mais, a lei não exige
prova do prejuízo em sede de incorporação para o exercício do direito de
recesso, em que pese esse efetivamente
tenha ocorrido, consoante os valores das
ações das incorporadas e da incorporadora. E a Lei nº 7.958/89 não alterou de
forma direta ou implícita o art. 230 da
Lei das Sociedades Anônimas (fls. 156/
201).
4. Manifestaram-se as partes, ainda,
às fls. 199/201 e 204/206. É o relatório.
Decido.
5. Procede, em parte, a presente
demanda.
6. Não concordando os autores com
a incorporação da Companhia Sulina de
Bebidas Antártica e da Cervejaria Serramalte S. A., da qual são acionistas, pela
ora requerida, pretendem que essa reconheça-lhes o direito de retirada, efetuando o reembolso do valor de suas ações
nas sociedades incorporadas. Esse reembolso querem que seja feito incluindo
todas as ações que possuem, inclusive
204
aquelas adquiridas alguns meses antes
da incorporação e que, por retardo
bancário, tiveram a transferência concretizada tão só após a assembléia geral
extraordinária que a deliberou. Proposta a demanda em abril/96, sob a égide
então da Lei nº 7.958/89, entendem que
essa não alterou o art. 230 da Lei das
Sociedades Anônimas no tocante ao
recesso. E razão lhes assiste em parte
na pretensão.
7. Já de início, verifica-se, pelo documento das fls. 16/26, que, em 31-10-95,
por assembléia geral extraordinária da
Indústria de Bebidas Antárctica-Polar
S. A., foi decidida a incorporação, por
essa, da Companhia Sulina de Bebidas
Antártica e da Cervejaria Serramalte S.
A., ambas também pertencentes ao Grupo Antártica. Verifica-se, ainda, pelos documentos das fls. 29/33, bem assim por
aquele das fls. 34, que já, no correr do
mês de novembro/95, os autores manifestavam à incorporadora-requerida a sua
dissidência, exteriorizando a opção pelo
direito de retirada e pleiteando o reembolso das ações de que eram titulares. O
que não foi aceito pela suplicada, a qual
alegou ter sido expressamente excluída
tal faculdade de recesso, em caso de
incorporação, com o advento da Lei nº
7.958/89.
8. Independente da novíssima legislação sobre a matéria – a Lei nº 9.457/
97 que, ao dar nova redação aos arts.
136 e 137 da Lei nº 6.404/76, manteve
íntegro o direito de recesso ao acionista
dissidente da deliberação de incorporação da companhia em outra –, mantenho o entendimento de que, à época da
propositura da presente demanda, quando em vigor a Lei nº 7.958/89, também
não estava modificado o direito de re-
SENTENÇAS
tirada contido na legislação pertinente
às Sociedades Anônimas. Entendimento
esse contrário àquele que exterioriza a
incorporadora aqui requerida. E que
legitima a ação dos autores.
9. Como bem acentua Nelson Eizirik,
autor gaúcho sempre afinado na legislação sobre essa matéria, em sua obra
“Reforma das Sociedades Anônimas e
do Mercado de Capitais”, Renovar/97,
às fls. 64/66, “a Lei nº 7.958/89 – Lei
Lobão –, ao dar nova redação ao caput
do art. 137 da Lei das Sociedades Anônimas e excluir os incs. VI e VIII do art.
136 como hipóteses ensejadoras do
direito de recesso, provocou enorme
discussão doutrinária sobre eventual
eliminação do recesso para as hipóteses
de incorporação, fusão, cisão e participação em grupo de sociedades”.
Entretanto, “a Lei Lobão não revogou o art. 230, que prevê o direito de
recesso na incorporação, na fusão e na
cisão, nem o art. 270, parágrafo único,
que o disciplina, no caso de deliberação de se associar a grupo de sociedades. Não houve, em tais casos, a supressão do direito para os acionistas
dissidentes, objetivando a sua promulgação, meramente evitarem a repetição,
no texto legal, das hipóteses ensejadoras do recesso”.
Filio-me inteiramente à corrente doutrinária do autor que defendeu não existir
“qualquer incompatibilidade lógica entre a Lei nº 7.958/89 e os arts. 230 e
270, parágrafo único, da Lei das Sociedades Anônimas, que pudesse amparar
a tese da revogação tácita de tais dispositivos legais”. (grifei, ob. cit.)
E, aqui, não é demais citar também
Rubens Approbato Machado, que, com
muita propriedade, discorreu sobre a
SENTENÇAS
matéria em artigo da “Revista de Direito
Mercantil”, e onde acentuou, à época,
que a própria Comissão de Valores
Mobiliários – CVM, órgão autárquico
administrativo competente –, em manifestação expressa do entendimento de
que a Lei nº 7.958/89 não revogara o
direito de retirada, determinava às sociedades de capital aberto, que pretendessem praticar incorporação, fusão e
cisão, que fizessem incluir, no protocolo ou na justificação, o valor do reembolso das ações a que teriam direito os
acionistas dissidentes.
A teor de telex que enviava às companhias, a Lei nº 7.958/89 não revogara
o direito de retirada, “ao contrário,
apenas aperfeiçoou a redação da lei
societária, pois não dispôs expressamente sobre a revogação dos arts. 225 e 230
da Lei nº 6.404/76, quando podia fazêlo” (grifei, “RDM” nº 82, fl. 146).
E, acrescento mais, teria que o fazer,
para que se entendesse como suprimido o direito de recesso em hipóteses,
por exemplo, como a da presente demanda – incorporação.
10. Realmente, tenho que, nas expressões supragrifadas, encontra-se o
cerne da questão. E esse diz com a
natureza e o fundamento do direito de
retirada, que resulta da lei, é inerente à
própria essência da sociedade, e daí
intangível, consoante aliás enunciado do
art. 109, V, da Lei nº 6.404/76: “Art. 109
– Nem o estatuto social, nem a assembléia geral poderão privar o acionista
dos direitos de: ‘(...). V – retirar-se da
sociedade nas casos previstos nesta Lei’.”
11. Com isso, para que resultasse
vitorioso o entendimento da incorporadora aqui requerida, necessário seria
que, em 1989, tivessem sido suprimidos
205
da legislação pertinente, de forma expressa ou tácita, “todos” os artigos que
disciplinam o direito de recesso. O que
inocorreu.
Os elaboradores da Lei nº 7.958 eliminaram apenas a remissão feita no art.
137 da Lei nº 6.404/76 aos incs. VI e VIII
do art. 136, quando o direito de retirada
encontra-se previsto e assegurado em
mais cinco outros mandamentos, quais
sejam os arts. 225, I, 264, §§ 3º e 4º, e
230 (para as incorporações, fusões e
cisões) e o art. 270, parágrafo único (para
a constituição de grupos societários). Ou
seja, as hipóteses legais de recesso não
se esgotavam naquelas suprimidas. O art.
137 da Lei nº 6.404/76 enuncia, em caráter
não-exaustivo e não-exclusivo, as hipóteses de retirada, por remissão ao art.
136, e esse diz sobre matérias que exigem quorum qualificado para deliberação em assembléia extraordinária. A regra geral do art. 137, entretanto, está
reafirmada nos arts. 230 e 264, para casos
de incorporação, fusão ou cisão. E incorporação é a hipótese dos autos.
12. Ainda que tivesse sido a intenção
inicial do mens legislatoris retirar o direito de recesso nas hipóteses de incorporação, fusão e cisão, ela desaparece com
a promulgação da lei, dando lugar ao
mens legis, e esse deve ser obtido pela
interpretação de todo o texto legal, onde
se inseriu a norma, e não pela interpretação isolada do dispositivo. O que no
caso conduz ao entendimento aqui adotado, de que o direito de recesso foi
mantido quando da Lei nº 7.958/89, por
se encontrar inserido no contexto da
própria estrutura da Lei nº 6.404/76.
13. Não é demais acrescentar, aqui,
que o instituto do direito de recesso
reflete a permanente tensão que existe
206
no mecanismo societário da sociedade
anônima, entre os interesses individuais
dos sócios e as necessidades de permanência e desenvolvimento da empresa.
A sociedade por ações, como sociedade
de capital, faz prevalecer a vontade da
maioria em suas deliberações.
O legislador brasileiro, talvez por isso
mesmo, desde o início, buscou de certa
forma proteger o acionista minoritário e
encontrou a fórmula justa, originária do
Direito italiano, alcançando-lhe alguns
poucos, mas bem definidos direitos e
garantias. O suficiente para que possa
fazer frente às decisões da assembléia
geral dos acionistas, mas preservando
ao máximo o princípio da maioria. Não
há possibilidades então de abuso. Daí
por que a previsão expressa desses direitos em hipóteses igualmente bem
definidas para o seu exercício. Entre
essas, a do direito de recesso em caso
de incorporação.
14. A Lei nº 7.958/89, sob a égide da
qual foi proposta esta demanda, e por
isso sendo a que deve aqui ser fundamento da decisão, não afastou as chances
de que o acionista descontente pudesse
receber o reembolso do valor de suas
ações, pois não dispôs com exclusividade sobre as hipóteses que possibilitam o
recesso. As situações que regulou não
são as únicas e exclusivas que acarretam
o direito de recesso. Daí não haver
antinomia entre ela e o art. 230 da Lei
nº 6.404/76, como bem dispõe Norma
Janssen Parente em “O Direito de Recesso na Incorporação, Fusão ou Cisão de
Sociedades” (“RDM” nº 97/67).
15. Essa a razão de procedência da
pretensão de retirada dos autores, sem
a necessidade de que o justificassem, a
não ser simplesmente pela dissidência
SENTENÇAS
com a incorporação. A lei não exige
comprovação de prejuízo para o exercício do direito de recesso. Improcede
a argumentação contestatória, por isso,
também, quanto à necessidade, para a
retirada, de que fossem menos vantajosas aos acionistas dissidentes as bases
da incorporação.
O direito de recesso do sócio dissidente não constitui uma sanção de ato
ilícito praticado pela maioria, daí não
representar o reembolso uma indenização, circunstância em que se é obrigado
a provar o prejuízo sofrido. Pressupõe,
tão-só, que o interesse do acionista foi
atingido. Bastava no caso que os autores não aceitassem a incorporação. E
isso eles manifestaram, como de início
dito, ainda no mês seguinte à decisão
da assembléia geral extraordinária.
16. Estabelecido o direito de retirada,
entendo ainda como correta a pretensão
dos autores em que o reembolso de suas
ações se dê pelos números resultantes
do laudo das fls. 87/98 – Avaliação do
Patrimônio Líquido em 18-10-95 –, devidamente atualizados. O art. 45 da Lei nº
6.404/76 trata do pagamento, aos acionistas dissidentes de deliberação da assembléia geral, do valor de suas ações.
E estabelece que esse não será inferior
ao valor de patrimônio líquido das ações,
de acordo com o último balanço aprovado pela assembléia geral.
No caso, em outubro/95, realizou-se
avaliação dos patrimônios líquidos das
três empresas – incorporadora e incorporadas –, adotando como preço básico
o balancete de 30-09-95 e a mando de
suas diretorias, com o objetivo especial
da pretendida incorporação. O trabalho
resultou no laudo das fls. 87/98, datado
de 18-10-95, e estava previsto, já, no
SENTENÇAS
protocolo de condições firmado em
02-10-95 (fls. 83/86). Foi referendado
depois na assembléia geral extraordinária de 31-10-95 (fls. 16/26).
Certo então que por esse laudo se
estabeleça o valor do reembolso das
ações dos autores. Mesmo porque a
requerida não contestou expressamente
essa pretensão quanto à base de cálculo
(já que assim não pode ser considerada
a simples consignação de forma generalizada à fl. 68, último parágrafo), nem
impugnou o cálculo constante da inicial,
ou o valor dele resultante, R$
1.485,250,41, para os dois autores, ao
menos no que diz com os valores atribuídos às ações.
17. Impugnou tão-só a requerida o
número de ações indicado na inicial,
por excessivo, o que os autores explicam na circunstância de que, em
13-06-95, a requerente Tulipas adquiriu
10.464 ações ON da Cervejaria
Serramalte S. A., com solicitação de transferência junto ao departamento de acionistas do Bradesco, em 1º-08-95, entretanto a instituição financeira retardou-se e, tão-só em 22-12-95, concretizou
a transferência, aí já com transformação
automática em ações da incorporadora.
Mas aqui razão assiste à impugnante. Com efeito, a documentação trazida
pelos autores, às fls. 164 e ss., não supre
a exigência exposta no art. 35 da Lei
das Sociedades por Ações, pela qual
considera-se regularizada a transferência de ações escriturais, tão-só quando
feita nos livros de registros da instituição depositária, à vista de documento
escrito do alienante. No caso, quando
da assembléia geral extraordinária que
decidiu pela incorporação, ensejando o
direito de recesso dos autores, a exi-
207
gência ainda não fora atendida, donde
que não concretizada a transferência.
Para efeitos do direito de recesso,
por isso, não podem ser consideradas
as 10.464 ações ON da Cervejaria
Serramalte S. A. adquiridas pela Tulipas,
daí que efetivamente resta modificado o
valor que reclama a inicial. O reembolso será tão-só por aquelas ações que a
contestante reconhece às fls. 45/46.
18. Isso posto, julgo procedente em
parte o pedido contido na inicial e
condeno a Indústria de Bebidas
Antárctica-Polar S. A. a efetuar o reembolso dos autores José Emílio Pessanha
e Tulipas – Planejamento, Assessoria e
Negócios Ltda., do valor das ações de
que eram titulares em 31-10-95, mais
precisamente 1.388.734 ações preferências da Cia. Sulina, 6.664 ações ordinárias da Serramalte (José Emílio), 18.377
ações preferenciais da Cia. Sulina e
11.862 ações ordinárias mais 1.030 ações
preferenciais da Serramalte (Tulipas),
calculado conforme o laudo de avaliação de 18-10-95, mais juros de mora de
6% ao ano a partir da citação, tudo
atualizado desde a data da elaboração
do referido laudo.
Sucumbentes os autores em parte
mínima do pedido, arca a requerida com
o pagamento das custas processuais e
dos honorários do patrono dos requerentes, que fixo em 10% sobre o valor
da condenação, considerando o elevado valor dessa condenação e a instrução simplificada do feito. Tudo a ser
apurado em liquidação por cálculo do
contador.
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 20 de outubro de 1997.
Nara Elena Soares Batista, Juíza de
Direito.
208
Processo nº 12851 – Ação de cobrança
Autora: Veloso, Denisiuk & Cia. Ltda.
Réu: Sasun Indústria de Produtos Termo-Transferíveis Ltda.
Juiz prolator: Nilton Luís Elsenbruch Filomena
Ação de cobrança. Contrato de
factoring. Cessão de crédito. Inexistência de direito de regresso cambial. Risco
do factorizador. Improcedência.
Vistos e examinados.
Veloso, Denisiuk & Cia. Ltda., já devidamente qualificada e representada, intentou presente ação de cobrança contra
Sasun Indústria de Produtos Termo-Transferíveis Ltda., também qualificada e representada, expondo ser empresa de factoring
e, decorrência dessas operações, recebeu
o cheque no valor de R$ 1.300,00, sacado
por Clarissa da Silva Dornelles, que restou sem pagamento, bem como duas duplicatas, cada uma no valor de R$ 856,00,
sacadas contra Soili Smek Ltda.–ME. Assim, busca a condenação da requerida no
pagamento importância de R$ 2.792,00.
Regularmente citada, a requerida
trouxe contestação na fl. 31, alegando
preliminar de ilegitimidade passiva,
impossibilidade jurídica do pedido e falta
de causa de pedir.
No mérito, refere que a operação é
uma simples cessão de crédito, pelo
que não pode haver o pedido de reembolso. Houve réplica e dispensa da prova
oral.
Vieram os autos conclusos para sentença, juntamente com outros tantos,
causa de invencível acúmulo de serviço
e, conseqüentemente, atraso no prestar
da jurisdição. Relatei.
DECIDO
Procedo ao julgamento do processo
no estado em que se encontra, visto ser
desnecessária a realização de audiência
de instrução e julgamento. As preliminares suscitadas confundem-se com o
mérito, no qual deverá ser analisada a
faturização eventual possibilidade de
ação regressiva.
O estabelecer do contrato firmado
pelas partes foi muito bem apreciado
pelo professor Pablo Barbieri, Professor
de Direito Comercial II, na Faculdade
de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, Argentina, de
quem transcrevo lições que entendo pertinentes ao processo em exame.
“El contrato de factoring reconoce
sus antecedentes en el Derecho
anglosajón, fundamentalmente en los
Estados Unidos de Nortemérica, teniendo
su principal desarollo a mediados de
este siglo, para ampliar sus horizontes
hacia los distintos Estados europeos a
partir de 1960...
“Su traducción al castellano ha determinado que se lo denomine también
contrato de factoraje o factoreo, y
creemos acertada la conceptualización
que se ha realizado del mismo, según
la cual ‘es el contrato por el cual una
entidad financiera (factor) se obliga a
gestionar el cobro de los créditos de su
cliente, anticipándole dicho cobro mediante un descuento sobre los docu-
SENTENÇAS
mentos de crédito que aquél entregue.
Por su parte, el cliente se obliga a
cumplir con las instrucciones del factor
respecto de con quién puede contratar
y las condiciones de pago; además, se
obliga a pagar una comisión’.
“La función económica de este contrato se puede encarar desde distintos
ángulos. Sin embargo, nos parece importante destacar que la empresa
factoreada (el cliente, em la terminologia de la definición transcripta) aumenta considerablemente la velocidad
de rotación de su capital circulante,
máxime cuando cobra decisivo valor el
hecho de que la insolvencia de los
deudores es asumida por la empresa
de factoring, en carácter de entidad
financiera, hecho por el cual percibe
una comisión y un beneficio producido
por el descuento obtenido por el pago
anticipado.
“Quien se ocupa del cobro de las
facturas cedidas es el factor (empresa
de factoring), quien incluso estará facultado a iniciar las acciones judiciales
respectivas, para lo cual el factoreado
generalmente presta su conformidad en
el contrato.
“El factor adelanta al factoreado los
montos de las facturas cedidas,
efectuando un descuento del monto a
abonar por los terceros deudores. Este
descuento es el beneficio que obtiene
la empresa de factoring por la
realización de esta verdadera operativa
de ingeniería financiera” (“Contratos de
Empresa”, Editorial Universidad, Buenos
Aires, Argentina, 1998, pp. 247-9).
De acordo com tais lições, a empresa-autora já obteve os seus benefícios
209
quando da realização do contrato, pois,
seguramente, não adiantou a demandada 100% dos créditos cedidos, mas sim
o percentual não especificado, por já
ter descontado sua despesa operacional
ou decorrente da sua atividade.
Tratando-se de cessão de crédito, a
empresa-autora tornou-se credora e
proprietária dos títulos, não podendo
agir regressivamente contra quem lhe
transferiu tais títulos.
Este é, também, o entendimento da
jurisprudência, conforme pode ser visto
no julgado publicado na “RJTJ”, 185/
285. Consta daquela decisão que o contrato de faturização caracteriza-se pelo
risco que o faturizador corre com a
aquisição dos créditos. A decisão fala
em risco porque a falta de pagamento,
pelo devedor do título, não acarreta direito de regresso contra o cedente.
Nestas circunstâncias, é acolhida a
tese da empresa-demandada, no sentido de atribuir o risco da cobrança, e
também seu insucesso, para a empresa-autora, que não pode buscar regressivamente os valores não liquidados pelos devedores mencionados, quer pelo
cheque devolvido, quer pelas duplicatas não pagas.
Diante do exposto, julgo improcedente a ação de cobrança. Pelo princípio da sucumbência, condeno a autora
no pagamento das custas processuais e
honorários advocatícios, que fixo em
10% sobre o valor da causa, devidamente atualizado.
Registre-se. Intimem-se.
Estância Velha, 30 de março de 2001.
Nilton Luís Elsenbruch Filomena, Juiz
de Direito.
210
Processo nº 01197167362 – Ação de Indenização por Danos Morais e Patrimoniais
11ª Vara – 1º Juizado
Autores: G. B. N e R. P. B.
Rés: I. O. T. e T. I.
Juiz prolator: Pedro Alexandre Cabreira Alfaro
Dano moral e patrimonial contra
agência de viagem. Inépcia da inicial e
ilegitimidade passiva rejeitadas. Prejuízo
à personalidade é indenizável. Limite da
verba indenizatória. Procedência parcial.
Examinados os autos.
G. B. N e R. P. B., já qualificados,
ajuizaram ação por danos morais e patrimoniais contra I. O. T. e T. I., dizendo, em síntese, que contrataram com as
rés a prestação de serviço referente a
uma viagem turística a Cancun, México,
cujo “pacote” previa acomodações por
07 dias, traslados e city tour; que a
relação entre as partes é de consumo,
protegida pelo Código de Defesa do
Consumidor; que pagaram à vista e antecipadamente R$ 1.000,00, cada um dos
autores; que se apresentaram para a
viagem, conforme a programação, e
houve atraso de mais de 55 horas para
o embarque, aguardadas entre o aeroporto e um hotel; que neste período
não houve informações aos integrantes
do passeio, por parte das rés, sobre o
que ocorria.
Relatam o desenrolar dos acontecimentos havidos durante o período de
espera para o embarque, com informações desencontradas e que após o atraso de 02 dias e meio desistiram da
viagem, pois chegariam ao destino apenas 03 dias antes da data fixada para o
retorno. Informam que suas atividades
profissionais não permitem viagens sem
prévio planejamento, que foram parcialmente reembolsados pela ré I. do
prejuízo financeiro sofrido, mas sofreram lucros cessantes, pois não gozaram
as férias nem receberam a renda das
suas atividades profissionais. Dizem que
há danos emocionais pela frustração da
viagem, além do desconforto e constrangimento que experimentaram
Referem que as rés conheciam previamente a impossibilidade de a viagem
se realizar, conforme a circunstâncias
ocorridas com outros turistas, divulgadas
pela imprensa local – que transcrevem
– pelo que a continuidade nas vendas
dos “pacotes” turísticos se afigura como
conduta culposa. Afirmam que incide o
Código de Defesa do Consumidor, pois
o negócio jurídico celebrado entre as
partes é contrato de consumo, do tipo
padrão ou adesão, vigendo o princípio
da boa-fé e que restaram abalados pela
conduta das rés.
Colacionam jurisprudência em amparo à tese da autonomia do dano moral
como fato gerador do dever de indenizar. Requerem a procedência com a
condenação das demandadas a indenizá-los por danos patrimoniais e morais.
Juntam documentos.
Citadas (fl. 65), contestaram as requeridas (fls. 66-74 e 80-95). A ré T.
SENTENÇAS
levanta preliminares. A primeira, de ilegitimidade passiva, por ser mera
intermediadora na compra de “pacotes”
junto à operadora de turismo I., codemandada, não podendo responder por
fatos a que não deu causa e também
porque ressarciu os requerentes de todos os valores que despenderam, pelo
que o processo deve ser extinto. A
segunda, de inépcia da inicial, pois
confusa e imprecisa, prejudicando a
defesa, em especial pela ausência de
pedido específico, induzindo à interpretação, o que é vedado.
No mérito, alega que os autores
foram os únicos a se sentirem lesados
com os problemas ocorridos, já que
todos os passageiros receberam atendimento adequado, sendo inclusive imediatamente ressarcidos quando desistiram da viagem; que, em vista do caráter
personalíssimo do dano moral, este não
pode ser analisado conjuntamente entre
as partes autoras; que as notícias
jornalísticas trazidas pelos demandantes
não guardam qualquer relação com as
circunstâncias do litígio.
Analisa o instituto do dano moral,
especialmente quanto às dificuldades de
se estabelecer a sua existência e mensuração e finaliza dizendo inexistentes
os danos extrapatrimoniais referidos
pelos autores. Requer o acolhimento das
preliminares e, em caso negativo, a improcedência da ação.
A co-ré I. contesta igualmente aduzindo preliminar de legitimidade passiva, pois, na condição de operadora
turística, não pode responder pelos atrasos de responsabilidade das companhias aéreas, sobre as quais não tem poder
de controle ou ingerência. Assim, deve
o feito ser extinto, mesmo porque quanto
211
às suas responsabilidades na viagem não
há qualquer reclamação.
Quanto ao mérito, repisa o argumento de que cumpriu com suas obrigações; que qualquer indenização, seja
material ou moral, pressupõe seja comprovada a existência do dano, o que
não ocorreu neste processo, inviabilizando a pretensão da inicial. Traz doutrina nesse sentido.
Ressalta que mesmo havendo responsabilidade objetiva do transportador, pelo
nexo causal entre o prejuízo sofrido pelo
passageiro e o agir daquele, à cristalização do dever de indenizar é necessária
a prova real da ocorrência do dano; que
a doutrina e a jurisprudência nacionais
são majoritárias no entendimento de ser
incabível indenização, sobretudo moral,
por atraso de vôo, colacionando julgados e doutrina nesse sentido; que o atraso
ocorrido foi menor do que o alegado
pelos autores e deu-se por motivo de
força maior e caso fortuito, que não
podem ser creditados à companhia aérea; que descabe a incidência do Código
de Defesa do Consumidor no exame de
matéria sub judice, pois a relação de
consumo no transporte aéreo tem norma
própria. Finaliza repelindo a pretensão
dos autores, que não fizeram prova do
que alegam, requerendo o acolhimento
da preliminar e, em caso de análise do
mérito, a improcedência da demanda.
Houve réplica onde os autores rebatem as preliminares e fundamentos de
mérito das contestações, reafirmando as
posições já esposadas na exordial. Realizada audiência, na qual, não havendo acordo, foram ouvidas três testemunhas arroladas pelos autores e dispensados os depoimentos pessoais, oportunizando-se a produção de memoriais.
212
Em razões finais (fls. 117-120), os
autores analisam a prova testemunhal,
que teria confirmado as circunstâncias
de fato narradas na inicial, e reafirmam
a incidência do Código de Defesa do
Consumidor na espécie, bem como a
existência do dano moral.
A ré I. apresentou memorial (fls. 122126) onde reafirma a preliminar argüida
na contestação e diz que a pretensão
dos autores careceria de comprovação
da existência do dano, prova da qual
não se desincumbiram. Ainda, na hipótese de acolhimento da indenização, esta
deve ser proporcional à suposta lesão e
ao valor cobrado pelo trajeto que fariam,
para que não ocorra enriquecimento sem
causa. Pede a improcedência.
A demandada T. I., intimada em audiência (fl. 144), deixou apresentar memoriais. Eis o relatório. Passo às razões
de decidir.
PRELIMINARES
Inépcia da inicial. Pela ordem lógica de prejudicialidade, examino a preliminar de inépcia da inicial. Embora
deficiente a inicial, que se perde em
longa descrição de circunstâncias que
poderiam ser narradas em poucas linhas, tornando-se enfadonha, com citações jurisprudenciais, chegando ao absurdo de 16 folhas, para um pedido
relativamente simples, não é inepta.
Fortes e bem alinhadas as razões da
ré I. nesta preliminar. Todavia, não se
aplicam, do modo como pretende, à situação dos autos. Apesar da deficiência
apontada, a inicial permite ver que as
rés venderam serviço, que a viagem não
se concretizou na data marcada, que as
requeridas não teriam tomado providên-
SENTENÇAS
cias adequadas e que de tais fatos teriam
advindo dissabores e prejuízos aos autores. Afasto, pois, essa preliminar.
Ilegitimidade passiva. Ambas as rés
se dizem ilegítimas para responderem
pela alegada lesão a direitos dos autores. A T. I. foi apenas intermediária,
segundo alega. Todavia, o intermediário também é um vendedor, aufere lucro e se compromete com o resultado
final da transação. Seria muito cômodo
intermediar um serviço que causa prejuízo, tirar lucro e depois “lavar as mãos”,
alegando que é questão entre terceiros.
A responsabilidade da vendedora é
evidente, pois não provou que seja
apenas mandatária como alega. Repele-se, portanto, essa preliminar da T. I.
A I. é, sem dúvida, a agenciadora e,
apesar de atribuir a responsabilidade à
companhia aérea, não a denunciou à
lide. Também – e principalmente – a
agenciadora tem compromisso com a
efetiva e adequada concretização do
serviço que promove e do qual aufere
lucro. Não pode, na hora em que algo
sai errado, simplesmente eximir-se, pretendendo que o consumidor vá acionar
uma desconhecida companhia de um
país distante.
Pelo menos em tese, a I. responde
pelos fatos narrados na inicial. Foi ela
quem escolheu ou aceitou a empresa
aérea que veio a ocasionar os transtornos narrados pelos autores. Rejeita-se,
igualmente, a preliminar de ilegitimidade passiva da I.
MÉRITO
Está provado que existiu o obstáculo que inviabilizou a viagem dos autores. As rés não impugnam o documento
SENTENÇAS
da fl. 45, do representante da A. no
Brasil, que noticia problema “técnico-operacional”. Os fatos, de um modo
geral, não são negados pelas rés.
Pequeno atraso na viagem, seria
tolerável. Mas os autores alegam que a
mesma atrasou 55 horas, durante as quais
ficaram em um vai-e-volta, sem sequer
ter recebido informações precisas. A
testemunha J. P., que integrava o grupo
submetido ao impasse e que chegou a
viajar, informa que a viagem foi reduzida de 07 para 04 dias (fl. 115). E.,
também integrante da excursão, diz que
a saída devia ter ocorrido no domingo
de manhã e só saíram “na terça de
tardezinha” (fl. 115).
F., viajor da mesma nau errante, narra
os transtornos da viagem, inclusive em
Cancun e no retorno. Informa que durante a espera, não havia representantes das rés para dizer o que realmente
estava ocorrendo (fl. 116).
A desistência dos autores, portanto,
foi legítima. Ninguém está obrigado a
esperar, por mais de 02 dias, por uma
viagem que tinha hora e dia marcados.
Tampouco estavam obrigados a aceitar
a redução do passeio pela metade.
Por toda a peripécia, são co-responsáveis as rés, que agenciaram, venderam e fizeram as tratativas com a empresa aérea, empresa essa que se mostrou sem condições de substituir um
avião em pane, de modo a atender,
com um mínimo de competência, os
consumidores que buscavam lazer, divertimento e descanso e não demora,
indefinição e angústia.
Não tinham os autores meios para
saber das condições da A. Quem tinha
o dever de avaliar o serviço que estava
213
colocando à venda, antes de contratar,
eram as rés, que são do ramo e que têm
contato direto com a transportadora. Os
infelizes adquirentes desse “pacote”
certamente não teriam adquirido o
mesmo se soubessem da falta de condições da transportadora. Desse modo,
as rés devem indenizar e, se for o caso,
se ressarcirem junto à transportadora, já
que não denunciaram à lide a A.
Danos patrimoniais. Os autores não
foram claros na inicial e nada provaram
quanto aos danos patrimoniais. Disseram, às fls. 06 e 07, que além do prejuízo direto (dano emergente) parcialmente reposto pela T. I., sofreram lucros cessantes, porque não viajaram nem
trabalharam durante aquela semana.
Ora, é de se presumir que os autores estavam de férias e não provaram
que o recesso fosse exclusivamente para
a viagem. Assim, de qualquer modo,
não trabalhariam, não cabendo indenização por lucros cessantes. Não há outro
dano patrimonial especificado e provado, pelo que não procede esse pedido.
Danos morais. Conforme antes referido, os autores foram submetidos à
espera e à frustração decorrente da
desistência da viagem, tudo porque as
rés contrataram o transporte com uma
empresa sem condições, que simplesmente alegou problema “técnico-operacional” (fl. 45) e atrasou a viagem por
quase 03 dias.
Os fatos contrariam a afirmação da
I. (fl. 83, item 7) de que a companhia
aérea contratada presta serviços de
qualidade. As testemunhas atestam os
transtornos vividos pelos que enfrentaram a viagem. O vôo durou 30 horas
(fl. 116). Em outra ocasião, no mesmo
214
mês em que estava programada a viagem dos autores, um avião da A. teria
tentado levantar vôo sem conseguir,
enquanto o comandante repetia “neste
avião eu não vôo” (fl. 46). Houve problemas de hospedagem, que também
foi contratada pelas demandadas, promotoras da excursão.
Não está provado e não há indícios
de que o atraso que provocou a desistência dos autores tenha ocorrido por
força maior ou caso fortuito, como diz
a I. Os indícios são de precariedade da
companhia aérea, incapaz de substituir
um avião em pane, de modo a abreviar
a espera dos passageiros.
Os danos morais, como também já
referido, consistiram na espera angustiante, sem a devida atenção por parte
das rés – que não davam informações
precisas – e na desistência da viagem,
devido ao demasiado atraso. Os autores
planejaram e prepararam-se para um
pouco de lazer, fugindo da pressão da
cidade grande, e acabaram acumulando
frustração e estresse. Esse prejuízo à
personalidade é indenizável. Não se trata
de simples atraso e sim de inviabilização
da viagem. Como é impossível mensurar
a angústia e a frustração e como não há
critério legal para a indenização do dano
moral, cabe o arbitramento.
No caso, os autores não foram claros quanto aos valores de aquisição do
“pacote”, não pediram valor certo, os
recebidos juntados pela T. I. são confusos e o valor da passagem referido pela
I., à fl. 125, não está comprovado.
Por outro lado, descuidaram os autores de provar as condições econômico-financeiras das requeridas. Referem
os autores, ao citarem julgado, indenização de 1.000 salários mínimos, o que,
SENTENÇAS
no caso seria absurdo. Há que se considerar, embora a dificuldade, o tamanho da lesão, tendo presente, também,
que a indenização não se destina a
enriquecimento fácil.
Tudo ponderado e considerado que
o abalo não foi grave, arbitra-se a indenização em 50 salários mínimos para
cada autor. Tal verba parece advertir
suficientemente as rés, não sendo excessivamente pesada, ainda que sejam
empresas de pequeno porte – por hipótese, pois não provaram os requerentes
– satisfazendo, razoavelmente, os autores. Note-se que ele é economista e ela
é médica, podendo-se concluir que o
valor fixado equivale ao salário mensal
médio desses profissionais. As rés são
solidárias, pois conjugam esforços para
angariar clientes e obter lucro.
DECISÃO
Isto posto, julgo procedente em parte
o pedido ajuizado por G. B. N. e R. P.
B. contra I. O. T. S. A. e I. V. T. L (exI. T.) e condeno as rés a pagarem aos
autores indenização por dano moral em
valor equivalente a 50 salários mínimos
(valor de hoje) para cada um dos autores. O valor da condenação será corrigido pelo IGP-M e acrescido de juros
da mora se não for pago no prazo de
30 dias a contar da intimação da sentença.
Cada parte pagará custas e honorários na proporção em que restaram
vencidas. Arbitro o decaimento dos
autores, para efeito de custas, em 1/3.
Considerando o deficiente trabalho do
procurador dos autores, fixo os honorários advocatícios devidos pelas rés aos
autores em 10% do valor da condenação.
SENTENÇAS
Na impossibilidade da calcular o
valor de que decaíram os autores e
considerando o trabalho normal dos
procuradores das rés, fixo os honorários
advocatícios devidos pelos autores a
cada uma das requeridas em 06 salários
mínimos.
Presume-se que os honorários da
sucumbência se destinam a ressarcir as
215
partes pelo que gastaram com os respectivos advogados, pelo que poderá
haver compensação dos honorários,
salvo se os procuradores provarem que
contrataram antes o recebimento dessa
verba.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Pedro Alexandre Cabreira Alfaro, Juiz
de Direito.
216
Processos n os 00100947531 e 00101166347 – Ação de Revisão Contratual e
Cautelar Inominada
13ª Vara Cível
Autor: Jorge Luís Bonetti Pinheiro
Réu: GM – Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil
Processo nº 00102114767 – Ação de Reintegração de Posse
Autor: GM – Leasing S. A. – Arrendamento Mercantil
Réu: Jorge Luís Bonetti Pinheiro
Juiz prolator: Régis de Oliveira Montenegro Barbosa
Revisão contrato leasing com indexador em dólar. Possibilidade.
Vistos, etc.
Jorge Luís Bonetti Pinheiro, qualificado na inicial, ajuizou ação de revisão
contratual combinada com compensação de créditos e nulidade de cláusulas
contratuais contra Banco GM – Leasing
S. A. – Arrendamento Mercantil, sob alegação de que ajuizou ação cautelar visando ao pagamento das prestações vincendas do contrato de leasing que firmou com o réu. Só que as prestações
se tornaram deveras onerosas, já que
contratado o índice de correção pelo
dólar norte-americano, a par de lhe ser
cobrada taxa de juros superior a 12% a.
a., acima do limite estabelecido constitucionalmente, de forma capitalizada, comissão de permanência, multas e demais encargos, tudo em desacordo com
a Constituição Federal e legislação vigente.
Postulou seja tornada definitiva a
liminar concedida na ação cautelar, bem
como sejam declaradas nulas as cláusulas abusivas que ensejaram a cobrança
dos itens supra-referidos, com a compensação dos créditos pagos a mais,
condenando o réu nos ônus da sucumbência.
Citado, o réu ofereceu contestação,
asseverando, em preliminar, inépcia da
inicial e impossibilidade jurídica do
pedido. No mérito, discorre acerca das
características peculiares do contrato de
leasing e a impossibilidade de sua revisão, bem como tece considerações
sobre a legalidade das cobranças efetuadas, tudo conforme o contratado entre
as partes. Descabível, por outro lado, a
repetição de indébito ou compensação
de valores. Postulou a improcedência
da ação, com as cominações de praxe.
Foi deferido pedido liminar incidental no sentido de que o réu se abstenha
de lançar o nome do autor em órgãos
de restrição de crédito (fl. 71). Replicou
o autor, às fls. 74/82.
Sobreveio decisão à fl. 130 que rejeitou as preliminares invocadas pelo
réu em contestação. Seguiram-se novas
e sucessivas manifestações das partes.
Em 03-03-99, o autor ingressara com
ação cautelar inominada, sustentando
que firmara contrato de leasing com o
réu, visando à aquisição de um veículo
marca Chevrolet, modelo Kadett GLS,
ano 1997/1998, a ser pago em presta-
SENTENÇAS
ções, as quais, no entanto, tendo sido
adotado o dólar norte-americano como
fator de correção, tornaram-se insuportáveis, já que de R$ 612,00 atingiram a
cifra de R$ 1.322,37, o que se deveu à
abrupta alteração do câmbio e conseqüente desvalorização do real.
Devem ser declaradas nulas as cláusulas abusivas, à luz do Código de
Defesa do Consumidor. Também foram
praticadas cobranças excessivas a título
de juros e outros encargos.
Postulou o deferimento de liminar
para depósito das prestações vincendas
tendo por base na variação do INPC e
não do dólar norte-americano, com a
procedência ao final da ação e condenação do réu nas verbas sucumbenciais.
A liminar foi deferida (fl. 27 dos autos
da cautelar). Ofertada contestação pelo
réu refutando as alegações do autor (fls.
35/43). Replicou o autor às fls. 53/60.
Em 17-08-99 o ora réu intentara ação
de reintegração de posse do veículo
objeto da presente ação, alegando mora
no pagamento das prestações. Pleiteou
a reintegração liminar, o que foi indeferido, tendo sido mantida a posse
daquele com o autor.
Após citado, o ora autor apresentou
contestação, onde alude não estarem
presentes os requisitos para a reintegração postulada. É o relatório.
DECISÃO
Julgo os feitos no estágio em que se
encontram, porquanto presente a hipótese do art. 330, inc. I, do CPC. As
preliminares suscitadas pelo réu já sofreram análise por parte do juízo e foram
afastadas, pelo que passo de pronto ao
exame do mérito da quaestio juris.
217
Pretende o autor, na presente ação
ordinária e na ação cautelar em apenso,
a revisão do contrato de leasing entabulado com a instituição ré, para que a
taxa de juros praticada não se sobreponha ao limite constitucional de 1% a.
m., também de forma a não ser capitalizada, bem como sejam expurgadas as
cobranças a título de comissão de permanência, multa e demais encargos.
Também objetiva o autor a substituição do indexador inicialmente contratado com o réu, qual seja, a variação
cambial do dólar norte-americano, face
à superveniência de onerosidade excessiva em razão da inesperada e abrupta
alta do dólar norte-americano no transcurso do período de contratação.
Cuida a espécie de contrato de arrendamento mercantil, mais conhecido
como leasing, o qual se trata de negócio híbrido e atípico, onde está embutido um conjunto de operações, tais
como promessa de compra e venda,
locação de bem móvel e mútuo.
É contrato de natureza complexa e
de discutida interpretação jurídica. Vem
regulado pela Lei nº 6.099/74, modificada pela Lei nº 7.132/83, não se configurando como mera e simples operação
de financiamento. Trata-se de modalidade de financiamento, com previsão
legal de facilitar ao arrendatário o uso
e gozo do bem, sem que necessite este
desembolsar, inicialmente, o seu valor,
mas com opção de, findo o prazo estipulado para a vigência do contrato,
uma vez pago o preço residual, adquirir
a propriedade do bem.
Arnaldo Rizzardo, em artigo publicado na “Revista AJURIS”, 35/137, considera-o como “contrato essencialmente
218
complexo, visto encerrar uma promessa
unilateral de venda, um mandato, uma
promessa sinalagmática de locação de
coisa e uma opção de compra...”.
Prosseguindo, preleciona que “não
se trata de uma simples locação com
promessa de venda, como à primeira
vista pode parecer, mas cuida-se de uma
locação com uma consignação de uma
promessa de compra, trazendo, porém,
um elemento novo, que é o financiamento, numa operação específica que
consiste na simbiose da locação, do
financiamento e da venda”.
É natural e intuitivo, pois, que os
pagamentos ajustados excedam o preço
de venda do bem, visto encartarem, a
par da totalidade dos custos, o lucro do
arrendador.
Ressalte-se, ainda, por relevante, que
outros encargos compõem, necessariamente, o valor das parcelas do contrato,
incluindo-se, nelas, o pagamento pela
depreciação do bem arrendado, enquanto em uso, os custos do arrendante, tais
como Imposto sobre Operações de
Crédito e o custo de captação do dinheiro no mercado. Não se pode desconsiderar, ainda, a necessária margem
de lucro a ser auferida pelo arrendante,
o que também não pode ser descartado.
É da jurisprudência: “Não prevendo
o contrato de arrendamento mercantil a
cobrança de juros e sua capitalização
sobre as prestações, não há lugar para
o exame da legalidade da cobrança de
taxas acima do limite de 12% ao ano”
(Apelação Cível nº 197002769, 9ª Câmara Cível do TARGS, julgada em 01-0497, Relª Juíza Maria Isabel de Azevedo
Souza).
SENTENÇAS
Ainda: “Injurídico é dispensar ao
leasing, sem se buscar sua desconsideração como tal, tratamento de financiamento, ignorando-se suas facetas próprias de negócio complexo. Impertinência da pretensão de redução de juros,
embutidos no preço inicial, onde considerados ingrediente outros” (Apelação
Cível nº 196196729, 6ª Câmara Cível do
TARGS, julgada em 01-12-96, Rel. Juiz
José Carlos Teixeira Giorgis).
Não se mostra viável, portanto, a
pretendida revisão contratual no tocante aos juros e demais encargos cobrados, restando afastado, via de conseqüência, o pleito de repetição de indébito
e compensação de valores. O mesmo
não se pode afirmar relativamente à
forma de correção das parcelas representativas do preço do veículo adquirido pelo autor junto ao réu.
Note-se que o presente caso vem
revestido da peculiaridade de que fora
eleito o dólar norte-americano como
indexador das parcelas do contrato firmado entre as partes litigantes. Neste
caso, procede a pretensão do autor.
Inexiste dúvida, por se tratar de fato
público e notório, que, por ocasião do
estabelecimento do vínculo obrigacional entre autor e réu, o País gozava de
relativa estabilidade econômica e, principalmente, cambial.
Só que, também fato notório e por
isso imune de prova, a partir de janeiro
de 1999, ocorreu variação abrupta da
taxa de câmbio, o que, via de conseqüência, ocasionou sensível alta da cotação do dólar norte-americano. A bem
da verdade, havia fundado receio de
que o País viesse a experimentar uma
“quebra financeira”, com o que iria à
SENTENÇAS
bancarrota, a exemplo do que vinha de
acontecer com alguns países do continente asiático.
Isto veio a afetar, modo contundente, os contratos cuja celebração fora eleita
a
moeda
norte-americana
como
indexador, causando verdadeiro pânico
por parte de quem optara por esta forma de correção das prestações
avençadas.
Não se pode olvidar que, à época
em que entabulado o contrato entre as
partes litigantes, vivia-se em período de
franca estabilidade cambial, sendo pouco imaginável que eventual variação da
taxa de câmbio ocorresse nas proporções em que se deu.
Isto levando em conta, torna-se lícito concluir que o fato se revestiu de
imprevisibilidade, inclusive com vistas à
incidência, no caso, da cláusula rebus
sic stantibus, rendendo ensejo à aplicação da teoria da imprevisão.
Por outro lado, a onerosidade excessiva experimentada pelo autor é indubitável, já que as prestações subseqüentes vieram a sofrer sensível aumento,
visto que de R$ 612,00 passaram para
R$ 1.322,32!
Ora, perfeitamente lógico se conclua
que, caso soubesse ou previsse o autor
a alta sensível e insuportável das prestações por força da variação da taxa
cambial, certamente não teria contratado na forma como o fez.
Tudo isso conduz à ilação inarredável no sentido de ter havido ruptura do
equilíbrio contratual, afetando o negócio jurídico em sua base, o que acaba
por vulnerar o princípio da comutatividade ínsito a este tipo de relação obrigacional.
219
Acresce, ainda, ser inquestionável,
neste caso, a aplicação do disposto no
art. 6º, inc. V, da Lei nº 8.078/90 (Código
de Defesa do Consumidor), haja vista se
tratar de nítida relação de consumo. Tais
fatos estão a justificar a pretensão do
autor em ver revisado o contrato de
leasing entabulado com o réu, na parte
relativa ao indexador eleito.
Por estas mesmas razões, desprocede
a ação de reintegração promovida pelo
ora réu, já que, neste caso, resta descaracterizada eventual mora do autor, vindo a falecer, assim, requisito essencial
para o sucesso de dita ação.
Ante o exposto: a) julgo procedente
em parte, os pedidos encartados nas
ações ordinária e cautelar inominada em
apenso, tornando definitiva a liminar anteriormente deferida, para, em conseqüência, desacolher a pretendida revisão do contrato no tocante aos juros e
demais encargos, bem como o pleito de
repetição de indébito e compensação
de valores, e declarar que, a partir da
data do ajuizamento da ação cautelar
(0303-99), deverá ser utilizado o INPC
como forma de correção das prestações
vincendas e vindouras, com origem no
contrato de leasing entabulado entre as
partes, objeto da presente ação, em
substituição ao dólar norte-americano,
já que declaro, outrossim, nula a respectiva cláusula que instituiu este indexador; e b) julgo improcedente a pretensão formulada na ação de reintegração de posse em apenso.
Em razão da sucumbência, condeno
o réu a satisfazer integralmente as custas processuais da ação de reintegração
de posse (Processo nº 00102114767),
bem como 70% das custas das ações
220
ordinária e cautelar (Processos n os
00101166347 e 00100947531, respectivamente) em apenso, e, ainda, com os
honorários do advogado do autor, os
quais arbitro, para as três ações, em
conjunto, em 06 URHs, já operada a
compensação, presente a natureza das
lides e trabalho despendido (art. 20, §
4º, c/c o art. 21, do CPC).
Transitada em julgado, expeça-se
alvará em favor do réu para levantamento das quantias depositadas no curso
da ação.
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 03 de junho de 2000.
Régis de Oliveira Montenegro Barbosa, Juiz de Direito Substituto em regime
de exceção.
Não há, pois, como vingar a pretensão da ré, uma vez que parte de premissas equivocadas, na medida em que
não leva em consideração a real natureza do contrato em alusão.
SENTENÇAS
Por outro norte, em virtude de ter a
ré incidido em mora no tocante à prestação mencionada na exordial e conforme previsão contratual, desfez-se a
avença de pleno direito, acarretando o
vencimento antecipado das prestações
subseqüentes, com o que restou evidenciado o esbulho possessório.
Ex positis, julgo procedente a presente ação de reintegração de posse,
para o fim de reintegrar a autora definitivamente na posse do veículo descrito na inicial.
Em razão da sucumbência, condeno
a ré a satisfazer as custas do processo
e honorários do patrono da autora, que
arbitro em 04 URHs, observada a natureza do feito e trabalho despendido (art.
20, § 4º, do CPC).
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 26 de maio de 2000.
Régis de Oliveira Montenegro Barbosa, Juiz de Direito Substituto em regime
de exceção.
221
Processo nº 2.156 – Ação Anulatória de Ato Jurídico
2ª Vara Judicial
Autora: V. S. O.
Réus: L. B., L. O. B. e L. O. B.
Juiz prolator: Régis de Oliveira Montenegro Barbosa
Nulidade de doação porque ocorrente prejuízo à companheira. União estável declarada.
Vistos, etc.
V. S. O., qualificada na inicial, aforou ação anulatória de ato jurídico contra L. B., L. O. B. e L. O. B., igualmente
qualificados, as duas últimas menores
impúberes, sob alegação de que a partir
de 08-01-77 a autora e o primeiro demandado passaram a ter convivência
more uxória, na forma de união estável,
tendo resultado o nascimento das duas
últimas demandadas. Após vários anos
de vida em comum passaram a ocorrer
desentendimentos entre o casal, o que
culminou com o ajuizamento, em maio
de 1992, de ação cautelar de separação
de corpos, tendo sido deferida a liminar. Seguiram-se o ajuizamento de ações
de dissolução de sociedade de fato,
cautelar de arrolamento de bens e ação
de alimentos.
Ocorre que o primeiro réu, pressentindo o malogro da relação do casal,
principiou, já no ano de 1986, a desviar
bens do patrimônio comum. Sem o
prévio consentimento da autora, fez
doação de bens imóveis às duas demandadas, mas com reserva de usufruto
vitalício a ele e com cláusula de
inalienabilidade, impenhorabilidade e
incomunicabilidade, bens estes que fo-
ram adquiridos com o esforço comum
do casal. Tratou-se de expediente para
evitar que tais bens constassem entre
aqueles a serem partilhados entre os
integrantes do casal. Sem a outorga da
autora, tais atos jurídicos estão eivados
de vício, dando azo à nulidade destes,
conforme art. 145 do CC. Colacionou
jurisprudência em prol de sua tese.
Requereu a procedência da ação,
para que sejam declarados nulos o ato
de doação objeto da Escritura Pública
nº 21.244, através da qual o primeiro
demandado doou à ré L. o imóvel objeto
das Matrículas n os 24.558 e 24.626 do
Livro 2 do Registro de Imóveis de
Cachoeirinha, bem como o ato de doação do imóvel que coube à ré L., objeto
da Escritura Pública nº 21.243, constante na Matrícula nº 677, R 5/677, para
que os mesmos voltem a integrar o patrimônio comum do casal.
Nomeado curador especial às rés
menores impúberes (fl. 42v.), foram os
demandados citados, aquelas na pessoa
do curador (fls. 44/45), que prestou compromisso (fl. 46). Ofereceu o primeiro
demandado contestação (fls. 54/59),
onde sustenta que na verdade a autora
não contribuiu para a aquisição do
patrimônio do casal, inocorrendo, portanto, o alegado “esforço comum”.
A autora apenas cuidava das filhas
do casal. Tanto é que desde 1986 não
222
tinham mais convivência conjugal. Criou
a empresa T. B., para tentar salvar a
relação, onde a demandante nunca trabalhou, a qual foi formada com bens de
propriedade exclusiva sua.
O bem imóvel doado à ré L. foi
adquirido pelo réu em 1º-10-84, com bens
que já eram de sua propriedade, enquanto que o imóvel doado à ré L. foi
adquirido posteriormente ao ano de 1986,
período em que não havia mais vida e
esforço em comum, a par de ter sido
comprado só pelo réu, sem contribuição
da autora. Não foi comprovado que a
autora contribuiu, com capital ou trabalho, para a aquisição de bens pelo réu.
As doações são lícitas e não contêm
qualquer vício. Postulou a improcedência da ação, com os consectários legais.
Ofertaram contestação, outrossim, as
rés L. e L. (fls. 76/77), oportunidade em
que asseveram não ter a autora comprovado que tenha participação efetiva
na formação do patrimônio do casal.
Pelo menos um dos imóveis doados o
foi com bens que já eram de propriedade do réu. O outro o foi após 1986,
quando não mais havia contribuição em
comum para a formação do patrimônio
do casal.
O que ocorreu foi uma antecipação
de herança por parte do réu às suas
herdeiras necessárias, com objetivo de
garantir-lhes o futuro, havendo outros
bens a serem partilhados entre o casal.
A decisão deste processo depende do
julgamento da ação de dissolução de
sociedade de fato. Pugnaram pela improcedência da ação, com as cominações de praxe.
Replicou a autora às fls. 80/83. O
feito teve sua tramitação suspensa até
decisão final na ação de dissolução de
SENTENÇAS
sociedade de fato (fl. 97), tendo sido
juntada cópia do acórdão respectivo,
transitada em julgado a decisão (fls. 126/
127).
Realizou-se audiência, onde, proposta a conciliação, esta resultou inexitosa,
tendo as partes desistido da produção
de prova oral. Deu-se por encerrada a
instrução, sendo que as partes debateram, cada uma batendo-se em prol de
sua tese. Emitiu parecer escrito o Órgão
do Ministério Público, no sentido de
que seja julgada procedente a ação. É
o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO
Restringem-se a dois os pontos
nevrálgicos da demanda a serem apreciados e que os réus erigem como fato
impeditivo, modificativo ou extintivo do
direito da autora (art. 333, inc. II, do
CPC). Um deles é o de que a partir do
ano de 1986, com a deterioração da
relação do casal, deixou de haver a
contribuição comum para a mantença e
formação do patrimônio deste, pelo que
como extinta estivesse a sociedade de
fato. O outro, no sentido de que a doação feita à filha L. envolveu imóvel
que, muito embora adquirido no ano de
1984, o foi mediante bens que já pertenciam exclusivamente ao réu, já que
preexistentes ao início do relacionamento
com a autora.
A primeira das situações postas já se
encontra sob o manto da coisa julgada,
visto que objeto de apreciação judicial
através do julgamento do recurso interposto na ação de dissolução de sociedade de fato. Assim é que, através do
ven. acórdão das fls. 129/133, verifica-se que foi reconhecida a existência de
união estável e de sociedade de fato
SENTENÇAS
entre o casal, mesmo a partir do ano de
1986, sob o argumento de que “o mau
relacionamento entre um casal certamente não descaracteriza o casamento, nem
elimina seus efeitos. O mesmo princípio
é válido relativamente à união estável”
(fl. 129). Resultou reconhecido, assim, o
período de janeiro de 1977 a junho de
1992 como de sociedade de fato entre
autora e réu.
Também ficou consignado no ven.
acórdão, em relação à existência, ou
não, de esforço comum, que “não há
necessidade seja o esforço comum traduzido por contribuição financeira de
ambos os conviventes... vêm os Pretórios decididamente se orientando em
considerar como esforço comum também aquele desenvolvido inclusive nas
tarefas do lar e com a criação e educação dos filhos...” (fl. 129).
Corolário disso é que pelo menos
um dos argumentos dos réus para considerar válida uma das doações efetivadas, a partir daí, caiu por terra.
Tem-se, assim, que por ocasião do
imóvel doado à filha L., a autora já
detinha, por direito, a meação sobre
dito bem, pelo que qualquer ato
translativo de propriedade necessariamente deveria contar com a sua outorga
(art. 235, inc. IV, do CC).
Passo à análise no que diz com o
bem de raiz doado à filha L. Sustentam
os réus que este imóvel fora adquirido
através de bens que já pertenciam ao
réu varão. Cuidar-se-ia, portanto, da
intitulada aquisição por sub-rogação. Só
que, como bem observou o ínclito representante do Ministério Público em
seu parecer conclusivo, a presunção é
que os bens constantes do patrimônio
do casal foram adquiridos pelo esforço
223
comum. A sub-rogação, como exceção,
deve restar cumpridamente demonstrada. Não logrou o réu, entretanto, afastar
a alegada presunção.
Como bem apreendeu o Dr. Promotor de Justiça, os dados da matrícula
juntada às fls. 30/31 não fecham com
aqueles da cópia de recibo de arras
acostado à fl. 62. Lá consta que já teria
sido pago pelo imóvel doado à L. a
importância de Cr$ 10.000.000,00, devendo os Cr$ 20.000.000,00 restantes, a
perfazer o preço de Cr$ 30.000.000,00,
serem pagos mediante a emissão de nota
promissória.
No último documento referido, consta
pagamento da importância de Cr$
60.000.000,00, por ocasião da assinatura
do arras, sendo que o saldo de Cr$
20.000.000,00, a perfazer o preço de
Cr$ 80.000.000,00, seria pago em momento ulterior. Estes Cr$ 60.000.000,00
teriam sido pagos através de um imóvel
de propriedade do réu e de um automóvel marca Volkswagen, ano 1980.
Efetivamente, comprovou o réu através da certidão da fl. 61 que este imóvel a que se refere o recibo arras já era
de sua propriedade ao tempo da transação. Todavia, como asseverado com
percuciência pelo digno agente ministerial, no confronto de tais dados, deve
prevalecer aquele constante na matrícula das fls. 31/32, já que exarado pelo
Oficial do respectivo Registro de Imóveis, o qual detém fé pública. Tem-se,
outrossim, que a certidão da fl. 61 faz
presumir ainda seja o réu o proprietário
do imóvel em questão. Também não
resultou comprovado que o réu deu o
mencionado automóvel em pagamento
do imóvel que posteriormente doou à
filha, ônus que lhe competia.
224
À vista de tais argumentos, tenho
por inexistente a alegada aquisição por
sub-rogação com relação ao imóvel
posteriormente doado à ré L. Tinha a
autora, pois, direito à metade de cada
um dos imóveis que foram doados às
filhas do casal.
Registre-se, derradeiramente, que a
circunstância insinuada pelas rés L. e L.
na peça contestacional de que se trataria de adiantamento de legítima desserve para tisnar a pretensão esboçada na
exordial, porquanto, também neste caso,
necessária se fazia a outorga da demandante, tendo-se presente seu direito à
meação. Nulas, assim, as doações efetivadas pelo réu L. B. em favor das
demandadas L. e L., visto que em ofensa aos arts. 145, incs. II e IV, e 235, inc.
IV, ambos do CC. Merece prosperar,
portanto, a ação.
Ex positis, com fulcro no art. 145,
incs. III e IV, c/c o art. 235, inc. IV,
ambos do CC e demais dispositivos
legais que regem a espécie, julgo procedente o pedido encartado na pre-
SENTENÇAS
sente ação anulatória de ato jurídico
e, em decorrência, decreto a nulidade
das Escrituras Públicas de doação de
nos 21.244 e 21.243, constantes às fls.
28/29 e 32/33, lavradas no Tabelionato
de Cachoeirinha, com cancelamento
dos respectivos registros efetivados nas
matrículas dos imóveis, de nos 24.558
e 24.626 do Livro 2, bem como de nº
677 do Livro 2, do Registro de Imóveis de Cachoeirinha, constantes às fls.
26/27 e 30.
Em razão da sucumbência, condeno
os réus ao pagamento das custas do
processo e honorários advocatícios ao
patrono da autora, os quais arbitro em
06 URHs, considerando a natureza da
lide e trabalho despendido (art. 20, § 4º,
do CPC).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Diligências legais.
De Porto Alegre para Cachoeirinha,
23 de setembro de 2000.
Régis de Oliveira Montenegro Barbosa, Juiz de Direito Substituto em regime
de exceção.
225
Processo nº 46.343 – Ação Civil Pública
1ª Vara Judicial – Comarca de Sapucaia do Sul
Autor: Ministério Público
Réu: Município de Sapucaia do Sul
Juiz prolator: Roberto José Ludwig
Ação civil pública. Competência funcional e em razão da pessoa. Imparcialidade do juízo. Julgamento do feito no
estado em que se encontra. Legitimidade da atuação do Ministério Público. Possibilidade jurídica de intervenção judicial. Argüição de constitucionalidade.
Desvio de verbas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental – FUNDEF. Procedência da
ação.
1. RELATÓRIO
1.1. Da inicial. O Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul, através do titular da Curadoria de Defesa
Comunitária, propôs, em face do Município de Sapucaia do Sul, a presente
ação civil pública, com base no IC Nº
02-98, tendo por escopo vê-lo compelido judicialmente a aplicar verbas que,
segundo relatório do Tribunal de Contas do Estado, deixaram de ser despendidas na educação, em ofensa aos ditames do art. 212 da Constituição de 1988
e das Leis Federais nos 9.394/96 (LDB)
e 9.424/96 (FUNDEF).
Em apertada síntese, alegou que o
descumprimento desses preceitos se consubstanciou na prática de computar indevidamente certas verbas como integrantes do percentual mínimo de 25%
previsto no art. 212 da CF/88, especialmente o denominado “retorno do
FUNDEF”, que, no sentir do autor, não
constitui tributo municipal, ao contrário
do valor retido àquele fundo, que é,
sim, receita efetiva do Município. Através desse procedimento equivocado, sustenta, causou o demandado dano à coletividade da população sapucaiense,
consistente na falta de aplicação de R$
5.791.159,02 em educação.
Pretende, assim, a condenação do
requerido a proceder à aplicação de R$
1.955.091,34 nos ensinos fundamental
(na proporção de no mínimo 60%) e
infantil (no máximo 40%), bem como a
despender outros R$ 3.836.067,68 no
ensino fundamental, dos quais 60% para
pagamento de professores e 40% em
outros itens, a critério do administrador.
Liminarmente, pediu antecipação de
tutela ao fundamento da iminência do
término do prazo para confecção do
orçamento municipal, para que o demandado fosse obrigado a aplicar as
verbas mencionadas até final deste ano
(2000), a menos que houvesse possibilidade financeira para cumprimento ainda no ano de 1999, quando ajuizada a
demanda. À inicial, acostou-se vasta documentação.
1.2. Dos provimentos iniciais. A liminar foi concedida na forma postulada.
1.3. Da resposta. Citado, ofertou o réu
contestação. Prefacialmente, argüiu de inconstitucional a Lei Federal nº 9.424/96,
226
que instituiu o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental – FUNDEF, por decorrência da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 14/96, na qual está assentado aquele diploma, por ofensa ao art.
18 (autonomia do Município), c/c o art.
60, § 4º, inc. I (princípio federativo),
bem como aos arts. 158, inc. IV, 159,
inc. V, b, e 160, caput, todos da Carta
da República.
Tachou, ainda, vários dispositivos da
Lei nº 9.424/96 como afrontosos aos
artigos mencionados e, ainda, ao art. 5º,
caput (quebra da isonomia dos entes
federativos) e do art. 30, inc. III (autonomia financeira), especialmente por
estabelecer critérios subjetivos para que
a União disponha sobre o valor mínimo
por aluno e aplique rendas do Município. Requereu, assim, a proclamação
incidental dos vícios apontados.
No mérito, asseverou estar cumprindo o art. 212 da CF/88, pois, conforme
pretende provar através de perícia contábil, aplicou, de uma receita de R$
23.718.202,97, no ano de 1998, a cifra
de R$ 8.049.769,39 na “área da educação”, desde que considerados como tais
certas aplicações que pretende ver declaradas legítimas. Subsidiariamente, argumentou que, mesmo admitindo as informações constantes da inicial, o saldo
ainda a ser aplicado seria de R$
1.714.816,07 e não o almejado. Afirmou
que não houve utilização indevida ou
irregular de verba. Quanto ao cumprimento da liminar, aduziu dificuldades
orçamentárias e de execução. Juntou documentos.
1.4. Da réplica. Houve réplica, onde
rebatidas as alegações de fato e de di-
SENTENÇAS
reito expostas na peça defensiva, e
postulou o julgamento antecipado da
lide.
1.5. Das atividades de saneamento.
Instado o réu a especificar e justificar
provas, requereu perícia e oitiva de
Auditor do Tribunal de Contas do Estado. Seguiu-se a decisão da fl. 765 e
765v., onde determinadas diligências e
ordenado ao Município-réu que demonstrasse sua divergência com os cálculos
da inicial. O demandado entendeu já
ter atendido ao despacho e insistiu no
requerimento de prova pericial e testemunhal; também aventou a existência
de interesse da União no feito. Ao
mesmo tempo, interpôs agravo de instrumento, ao qual restou agregado efeito suspensivo, tendo, porém, obtido improvimento.
Entrementes, aportou ao feito manifestação do Tribunal de Contas do Estado. O autor se pronunciou pela desnecessidade de intimação ou citação da
União. Por seu turno, após vista dos
autos, reiterou o demandado a argüição
de incompetência do juízo, declinando
para a Justiça Federal. A União, cientificada da demanda, externou desinteresse em intervir. Insatisfeito, insistiu o
réu na provocação da União a se manifestar no feito. É o relatório.
2. MOTIVAÇÃO
2.1. Das questões preliminares e de
processo. 2.1.1. Da competência. Suscitou o demandado, em mais de uma
oportunidade, a incompetência absoluta
deste Juízo e desta Justiça, declinando
para a Justiça Federal, ao argumento de
que a União teria interesse de intervir
na demanda. Sustenta, para tanto, que
SENTENÇAS
caberia àquele ente da federação, através de um dos órgãos do Ministério da
Educação, a fiscalização e o acompanhamento da aplicação das verbas
FUNDEF.
O autor discorda, admitindo, no
máximo, assistência simples. A questão
da competência se resolve em dois níveis. Em primeiro, verifica-se a competência funcional do juízo e, depois, a
competência em razão da pessoa. Ambas são de natureza absoluta, reclamando harmonização do seus critérios.
2.1.1.1. Da competência funcional.
A presente demanda, cuidando-se de
ação civil pública, rege-se por normas
especiais de competência. O escopo do
legislador consistiu em aproximar, ao
máximo, a reparação do dano contra
interesses meta ou supra-individuais do
local onde a sua lesão ocorreu. Ganhase em celeridade e na eficiência da reparação. Por isso, de modo expresso,
estabeleceu a lei norma de competência
especial, derrogatória da legislação
processual comum, verbis: “Lei nº 7.347,
de 24-07-85 (...) “Art. 2º – As ações
previstas nesta lei serão propostas no
foro do local onde ocorrer dano, cujo
juízo terá competência funcional para
processar e julgar a causa”.
Além desse claríssimo dispositivo, a
competência funcional deste juízo foi
objeto de inequívoco pronunciamento
pretoriano, consagrado em verbete específico da súmula do Superior Tribunal de Justiça, que, dessarte, estabeleceu a interpretação a ser observada no
âmbito nacional para o comando constante da lei federal acima referida: “Súmula do Superior Tribunal de Justiça.
183 – Compete ao Juiz Estadual, nas
227
comarcas que não sejam sede de Vara
da Justiça Federal, processar e julgar
ação civil pública, ainda que a União
figure no processo. Referência: CF/88,
art. 109, I; Lei nº 7.347, de 24-07-85, art.
2º; CC nº 2.230-RO (1ª Seção, 26-11-91,
“DJU”, de 16-12-91); CC nº 12.361-RS
(1ª Seção, 04-04-95, “DJU”, de 08-05-95);
CC nº 16.075-SP (1ª Seção, 22-03-96,
“DJU”, de 22-04-96).” (“DJU”, de
31-03-97)
Assim, ainda que a União figure no
processo como parte ou terceiro interessado, não se desloca a competência
para a Justiça Federal, a menos que no
foro onde ocorreu o dano esteja instalada Vara daquela Justiça.
Sobre a natureza funcional da competência não discrepa a doutrina. Em
seu festejado “Comentários ao Código
de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor”, Theotonio Negrão colaciona as seguintes notas ao art. 2º da
LACP: “Art. 2º – 1. cfe. CPC, art. 100, V,
a (acrescento, foro do local do dano).
“Art. 2º – 2. ‘A ação civil pública e
as demais propostas com base na Lei nº
7.347/85 devem ser ajuizadas no foro
do local onde ocorreu o dano a que se
refere seu art. 2º. ‘Se se trata de comarca em que não há Juiz Federal, será
competente o Juiz de Direito, cabendo
recurso para o Tribunal Regional Federal’ ’. (“RSTJ” nº 45/34) No mesmo sentido: “RJTJRGS” nº 168/223. V., porém,
nota seguinte.
“O art. 2º da Lei nº 7.347/85 harmoniza-se com o art. 109, §§ 2º e 3º, da
Constituição.” (CC nº 2.230-RO-EDcl, STJ,
1ª Seção, Rel. Min. Antônio de Pádua
Ribeiro, julgado em 09-02-93, rejeitaram
os embargos, voto unânime, “DJU”, de
228
1º-03-93, p. 2.478, 2ª Col., ementário)
Neste sentido: “RDP” nº 97/294.
“Compete à Justiça Estadual conhecer e julgar ação civil pública com
objetivo de proteção ao patrimônio
público, mesmo na hipótese de configurar-se o litisconsórcio passivo da Caixa
Econômica Federal, configurada a hipótese prevista no art. 2º da Lei nº 7.347/
85, que é a dos autos.” (CC nº 12.982-6-SP, STJ, 1ª Seção, Rel. Min. Peçanha
Martins, julgado em 18-04-95, voto unânime, “DJU”, de 12-06-95, p. 17.577, 2ª
Col., ementário)
“Comprovado o interesse da União
para intervir no feito, a competência da
Justiça Estadual em 1º grau permanece,
por força do art. 2º, com recurso, porém, para o Tribunal Regional Federal,
de acordo com o art. 108, II, da atual
CF.” (“RTFR” nº 154/23)
No mesmo diapasão, Athos Gusmão
Carneiro, na sua decantada obra “Jurisdição e Competência”: “Conforme dispõe o art. 2º da Lei nº 7.347, as ações
civis públicas devem ser propostas ‘no
foro do local onde ocorrer o dano’, competência dita ‘funcional’, o que se justifica, como acentua Hely Lopes Meirelles
(“Mandado de Segurança, e Ação Civil
Pública”, 11ª ed., p. 120), pela facilidade de obtenção da prova testemunhal e
de realização das convenientes perícias.
“(...) Em intervindo, todavia, qualquer das pessoas de direito público
referidas na Constituição Federal (art.
109, I), competente será a Justiça Federal; e se na comarca do local do dano
não for sediada a Vara do Juízo Federal,
então, ex vi do art. 2º da Lei nº 7.347/
85, a ação civil pública será processada
e julgada no juízo estadual, sob compe-
SENTENÇAS
tência federal ‘delegada, com recurso,
nesse caso, para o Tribunal Regional
Federal’ (CF, art. 109, §§ 3º, in fine, e
4º)”. (Athos Gusmão Carneiro, “Jurisdição e Competência”, 6ª ed., Saraiva,
1995, pp. 101-2)
Na mesma linha, vai o magistério
de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria
Andrade Nery, ao comentar o art. 109
da CF/88: “A LACP 2º fixa competência
do local do dano, de natureza funcional (absoluta), para processamento e
julgamento de ação civil pública. Mesmo que a União, suas autarquias ou
empresas públicas sejam partes ou
intervenientes, a ação civil pública será
julgada pela Justiça Comum estadual,
nos locais onde não houver Vara da
Justiça Federal”. (Nelson Nery Júnior e
Rosa Maria Andrade Nery, “Código de
Processo Civil Comentado”, 3ª ed., RT,
1997, p. 148)
Em suma, certa e absoluta a competência deste juízo. A controvérsia sobre
a presença da União tem relevo, apenas, para efeito de competência recursal. Havendo presença daquele ente, o
eventual recurso deverá ser levado à
apreciação do Tribunal Regional Federal, pois, então, tem-se competência
estadual restrita ao 1º grau, por delegação. Essa matéria será resolvida no item
subseqüente.
2.1.1.2. Da competência em razão
da pessoa. Reza o art. 109, inc. I, da
Carta da República que a intervenção
da União atrairia a competência da Justiça Federal. No 1º grau, como já exaustivamente analisado acima, haveria competência do juízo estadual local, por
delegação. Mas caberia recurso ao Tribunal Regional Federal.
SENTENÇAS
No caso, a União foi cientificada da
demanda através da sua legítima representação, que é a Advocacia-Geral da
União. O seu agente houve por bem
externar o desinteresse daquela pessoa
política, conforme declaração das fls.
831/2. E o fez com arrazoado que se
mostra convincente: a questão discutida
nestes autos não diz diretamente com o
FUNDEF, mas, sim, com a correta aplicação de verbas na educação, segundo
os moldes constitucionais, cuja fiscalização compete aos Tribunais de Conta
dos Estados.
Não há necessidade de que o Ministério da Educação venha a manifestar-se
neste feito, pois, consoante o seu cerne
litigioso, não se está a debater sobre
desvio ou irregularidades da aplicação
do FUNDEF, e sim sobre a observância
do art. 212 da CF/88, no que toca à
verba de retorno do FUNDEF.
Feita essa inequívoca manifestação,
insiste o Município na sua tese e pretende seja a União novamente provocada a se pronunciar sobre o seu interesse, ao pretexto de que, em contatos
diretos com o procurador do Município,
tal teria sido recomendado. Nenhuma
prova há nesse sentido, o que, ademais,
seria de regularidade discutível. É óbvio
que o Ministério da Educação, como é
público e notório, tem pleno interesse
em fiscalizar o gerenciamento das verbas do FUNDEF. Evidentemente, por
necessidades burocráticas, criou órgão
para tanto. Contudo, daí não decorre
interesse em que a União intervenha no
processo.
Reduzindo a tese ao absurdo, todos
os processos sobre os delitos de tóxico
seriam da competência da Justiça Fede-
229
ral, pois a União deveria intervir em
cada um deles, já que há um ou vários
órgãos na estrutura dos Ministérios que
têm por objeto a prevenção e fiscalização do consumo de entorpecentes. Da
mesma forma a União seria chamada
em ações de responsabilidade contra
profissionais médicos, farmacêuticos,
cujas profissões têm seu exercício fiscalizado pelos Conselhos Regionais.
Quando se trata de verbas que, em
algum momento, sejam manipuladas ou
recolhidas a fundo federal, mas repassadas a entes estaduais ou municipais,
a jurisprudência predominante tem entendido que a competência da Justiça
Federal somente existe quando a fiscalização está afeta, exclusivamente, ao
Tribunal de Contas da União. No caso,
é tranqüila a atribuição aos Tribunais de
Contas estaduais da observância dos
limites mínimos de aplicação de verbas
em educação. A vencer a tese do réu,
toda a matéria teria de ser remetida à
fiscalização do Tribunal de Contas da
União, o que sequer alegou na fase
administrativa.
2.1.1.3. Do juízo competente. Por
tudo o que se disse acima, inexiste a
menor dúvida sobre a absoluta competência deste juízo para processar e julgar esta demanda, como também de
que não há hipótese de intervenção da
União, e, assim, não se trata de competência delegada. Dessarte, o eventual
recurso terá de ser encaminhado ao
Egrégio Tribunal de Justiça do Estado.
Aliás, foi a esse Órgão que o demandado recorreu contra decisão interlocutória exarada neste feito.
2.1.2. Da imparcialidade do juízo.
Reiteradas vezes, neste feito, questionou
230
o réu a isenção deste Juízo ao argumento de que estaria orientado a devotar
demasiada atenção ao feito e conduzindo a sua tramitação de modo açodado,
sem
atender
aos
reclamos
da
parte-demandada, especialmente quanto à dilação probatória pretendida. Irregular a conduta do Município-réu. Não
opôs exceção; não suscitou o incidente
em que pudesse discutir e comprovar o
impedimento ou a suspeição; todavia,
não se pejou de pôr em debate a imparcialidade, apanágio e pressuposto da
prestação jurisdicional.
No caso, o equivocado posicionamento da Procuradoria do Município,
nestes autos, foi devidamente anotado e
mereceu crítica do eminente Relator do
agravo de instrumento interposto. Colhe-se, com efeito, da cópia do respectivo acórdão: “Da mesma forma, é oportuno e necessário registrar o modo inconveniente com que o réu interpretou
a atuação do magistrado monocrático
que, cônscio da sua investidura, nada
fez que merecesse a censura, debitando-se a pronta antecipação de tutela e
a vontade premente de prestar jurisdição às mesmas razões que empolgam o
Agente Ministerial, e, ainda, aos incessantes ataques ao Poder Judiciário, que,
assim, responde, pela sua voz, às
imprecações que lhe são arrojadas pela
demora no julgamento dos processos,
que visam ao aviltamento da função
jurisdicional” (fls. 843/4, frisei). Nada há
por acrescentar, nem retirar de tão
apropriada qualificação do ocorrido nestes autos.
2.1.3. Da oportunidade do julgamento no estado do feito. Como observado
na decisão da fl. 765 e 765v., a única
SENTENÇAS
controvérsia de cunho fático se resume
à discrepância de números da receita
municipal do ano de 1998. As demais
questões são meramente de Direito e,
como tal, dispensam produção de provas em audiência. O réu postulou perícia e oitiva de Auditor do Tribunal de
Contas.
A Colenda 3ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça deste Estado já
teve oportunidade de se manifestar sobre a necessidade de dilação probatória
neste feito. A ementa do acórdão tem a
seguinte redação: “Processual civil. Produção de prova. Ao magistrado cabe
apreciar a adequação e a necessidade
da prova vis-à-vis dos elementos contidos no feito. Deixando o agravante de
impugnar objetivamente as questões suscitadas, com base nos registros da contabilidade pública, não dá ensejo à realização de perícia contábil, que nada
ou pouca informação poderá acrescer.
Valorização do princípio da efetividade
do processo. Agravo desprovido”. (AI
nº 70000880997, TJRGS, 3ª Câmara Cível)
Em suma, entendeu aquele Órgão
Recursal que a perícia contábil seria
viável se efetivamente necessária ao deslinde do caso, o que somente ocorreria
se o Município tivesse, de modo concreto e objetivo, em termos contábeis,
impugnado as alegações constantes da
inicial no tocante aos valores da receita
do Município.
Embora o Município devesse fazê-lo, a rigor, no próprio texto da contestação, foi-lhe claramente proporcionada
uma oportunidade (suplementar) para
impugnação especificada no vergastado
despacho da fl. 765 e 765v., item 5. Ali
SENTENÇAS
constou, com todas as letras, a intimação para que o réu demonstrasse e comprovasse, num prazo razoável (10 dias),
a sua divergência para com os números
da receita levantada pela auditoria do
Tribunal de Contas do Estado, números
esses que haviam sido endossados pelo
autor e estavam expressamente afirmados na exordial.
Também se determinou ali a intimação do Município a que explicitasse a
sua inconformidade com relação a cada
um dos itens da fl. 499, com demonstração matemática, pois os dados da fl.
499 haviam sido acolhidos pelo Ministério Público (autor) como exatos, uma
vez que resultantes de auditoria da Corte
de Contas estadual. Instou-se, assim, o
réu a que viesse, mais uma vez, exercer
o seu direito de defesa e o dever de
impugnação especificada. Ordenou este
Juízo, ainda, diligências que poderiam
levar ao esclarecimento da questão fática, restrita à divergência de números
da receita.
O demandado, entretanto, desperdiçou as oportunidades concedidas. Não
atendeu aos comandos judiciais contidos no despacho da fl. 765 e 765v.,
preferindo, ao contrário, atacar essa
decisão através de agravo, onde foi
infeliz (cópia das fls. 838/446), olvidando-se do princípio da eventualidade.
Depois disso ainda teve várias vezes os
autos em carga (excedendo o prazo,
inclusive) e, também, não cuidou de
remediar a falha.
Igualmente, teve o réu vista da informação remetida pelo Tribunal de Contas (fls. 779/91), conforme certificado à
fl. 836, sem nada objetar ao nela contido. Depois teve vista dos autos outra
231
vez, mas, novamente, estava mais preocupado em transferir o processamento
do feito para outra Justiça, sem razão.
Em suma, o réu fez opções no sentido
de evitar ou procrastinar o julgamento
deste feito por este Juízo, descurando
do essencial, que é, repito, a atenção
aos fatos discutidos no processo e às
provas nele encartadas.
Ainda que assim não fosse, como se
pode ler do acórdão lavrado, a questão
atinente à divergência de valores da
receita se faz secundária em relação à
raiz da controvérsia. Nesta, predomina,
com larga vantagem, a definição sobre
se determinada verba (no caso, o retorno do FUNDEF) pode, ou não, ser lançada como receita para fins de cumprimento do art. 212 da CF/88. O Município não contestou, a rigor, a afirmativa
da inicial de que computou, sim, o
chamado retorno do FUNDEF no cálculo do limite mínimo de 25% do art. 212
da Carta da República. Deve, portanto,
reputar-se “confesso” quanto a aspecto
fundamental da lide.
Aduziu o Município que cumpriu o
ditame constitucional e que a divergência se localizaria na qualificação de certas
despesas como passíveis da cômputo
do limite constitucional. Engana-se, nesse
particular, o demandado. A divergência
fundamental dos autos diz com o chamado retorno do FUNDEF. As demais
questões podem ser resolvidas facilmente
à luz da Lei de Diretrizes e Bases e da
lei do FUNDEF.
Enfim, com lastro no decidido pela
Corte Recursal e à luz dos autos, entendo efetivamente desnecessária a perícia
contábil ou financeira postulada pelo réu,
pois praticamente de nenhuma utilidade
232
seria para o deslinde da controvérsia e
somente atrasaria a prestação jurisdicional, pela sua vastidão e complexidade.
Também nada justifica a oitiva do
Auditor do Tribunal de Contas do Estado, pois seu depoimento apenas esmiuça o conteúdo de documentos dos autos e serve, tão-somente, para ilustrar
eventos secundários relacionados à apuração da irregularidade, no que tange à
obrigação insculpida no art. 212 da CF/
88. Caso tivesse o Município trazido
elementos substanciais da sua inconformidade, talvez até fosse interessante
ouvir a testemunha. Não, porém, à luz
do comportamento processual do réu.
Cabível, assim, o julgamento do feito no
estado em que se encontra.
2.1.4. Da possibilidade de intervenção judicial na matéria. Este juízo, ao
deferir a antecipação de efeitos da tutela,
já se pronunciou sobre a viabilidade do
pedido enquanto demanda judicial, ou
seja, a possibilidade de intervenção judicial em matéria que, aparentemente, diz
com a discricionariedade administrativa.
E somente na aparência há liberdade do
administrador no manejo de verbas relacionadas à educação.
Da própria topologia do texto constitucional já se extraem importantes revelações sobre como o direito à educação se situa no ordenamento pátrio: “(...)
Título II – Dos Direitos e Garantias
Fundamentais.
“Capítulo I – Dos Direitos e Deveres
Individuais e Coletivos. Art. 5º – (...) §
1º – As normas definidoras dos direitos
e garantias fundamentais têm ‘aplicação
imediata’. Ver jurisprudência (...)
“Capítulo II – Dos Direitos Sociais.
Art. 6º – São direitos sociais a ‘educa-
SENTENÇAS
ção’, a saúde, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (NR) (Redação
dada ao artigo pela EC nº 26, de 2000,
“DOU”, de 15-02-00).
“Título VIII – Da Ordem Social. Capítulo I – Disposição Geral. Art. 193 –
A ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bemestar e a ‘justiça sociais’ (...)
“Capítulo III – Da Educação, da
Cultura e do Desporto. Seção I – Da
Educação. Art. 205 – ‘A educação, direito de todos e dever do Estado e da
família’, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Portanto, a educação é, na moldura
desenhada pelo Constituinte de 1988,
um direito social fundamental de todos,
oponível e exercitável em face do Estado, com aplicabilidade imediata, pela
remissão feita no art. 5º, § 1º. O critério
topológico não é o único a atestar a
pertinência do direito à educação aos
de natureza fundamental. Toda a doutrina o considera como tal, a partir de
opções que o Constituinte fez, como se
verá adiante.
Cuidando-se de direito fundamental
e, nessa medida, auto-aplicável, poderá
o cidadão, independentemente de condicionamentos infralegais incompatíveis
com o texto maior, exigir do Estado-Administração prestações positivas para
que o seu direito possa ter concretude,
isto é, eficácia no plano dos fatos.
SENTENÇAS
O enquadramento da educação na
categoria dos direitos fundamentais assume relevância especial no presente
caso, como facilmente se depreende da
definição daquela espécie de direitos.
Assoma particularmente feliz a conceituação oferecida pelo insigne mestre
gaúcho Ingo Wolfgang Sarlet com base
nos estudos de Alexy (“Teorie der Grundrechte”, p. 407): “Assim, com base no
nosso Direito constitucional positivo, e
integrando a perspectiva material e formal já referida, entendemos direitos
fundamentais podem ser conceituados
como aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, do ponto de
vista do Direito constitucional positivo,
foram, por seu conteúdo e importância
(fundamentalidade material), integrados
ao texto da Constituição e, portanto,
‘retirados da esfera de disponibilidade
dos poderes constituídos’ (fundamentalidade formal), bem como as que, pelo
seu objeto e significado, possam-lhes
ser equiparados, tendo, ou não, assento
na Constituição formal (aqui consideramos a abertura material consagrada no
art. 5º, § 2º, da CF, que prevê o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes do regime e dos
princípios da Constituição, bem como
direitos expressamente positivados em
tratados internacionais”. (Ingo Wolfgang
Sarlet, “Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988”, in
Pasqualine, A. et alii, Sarlet, I. W. [org.],
“O Direito Público em Tempos de Crise”, Porto Alegre, Livraria do Advogado,
1999, pp. 129-73)
Destaco, dentre as notas do conceito, a exclusão de qualquer juízo de disponibilidade dos poderes constituídos
233
sobre os direitos fundamentais. Dessarte, refogem as respectivas matérias a
qualquer discricionariedade administrativa. Inexiste espaço para os critérios da
conveniência e oportunidade. Por outro
lado, não se pode negar certa peculiaridade na eficácia dos denominados
direitos sociais, em cujo rol se inclui o
direito à educação.
A melhor doutrina distingue entre
direitos sociais prestacionais e de defesa (idem, ibidem), não sendo perfeita a
identificação entre direitos sociais e
prestacionais. Certo é, porém, que há
direitos fundamentais sociais positivos,
isto é, que geram direito a uma prestação por parte do Estado, a um agir seu
para a concretização de metas inseridas
na norma, constituindo a expressão
direta do Estado social de direito. Tais
espécies de direitos prestacionais geralmente assumem feição programática, por
situar-se a sua concretização na chamada “reserva do possível”. Não seriam,
para certa vertente doutrinária, vindicáveis judicialmente nessa medida.
Todavia, mesmo os direitos sociais
de cunho prestacional engendram uma
série de eficácias, como: a revogação
de atos normativos contrários e anteriores, independentemente de declaração
de inconstitucionalidade; vinculação do
legislador para a criação de programas
e observância das metas ditadas; inconstitucionalidade de atos normativos posteriores conflitantes; definição de parâmetros de interpretação, integração e
aplicação de normas inferiores; proibição de retrocesso; “criação de posição
jurídico-subjetiva equivalente a uma dimensão negativa dos direitos positivos,
no sentido de que “o particular poderá
234
exigir do Estado que se abstenha de
atuar em sentido contrário ao disposto
na norma de direito fundamental prestacional” (idem, p. 162).
Esta última eficácia mostra-se de
interesse para o caso dos autos, porquanto, tendo o Constituinte determinado expressamente limites mínimos de
aplicação de receita em educação, para
evidentemente serem atingidos objetivos sociais indiscutíveis, têm os cidadãos direito a exigirem do Estado que
cumpra o preceito. A norma encontrase inscrita no art. 212 da CF/88: “Art.
212 – A União aplicará, anualmente,
nunca menos de 18, e os Estados, o
Distrito Federal e ‘os Municípios 25%’,
no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de
transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.
Essa disposição tem aplicabilidade
imediata e eficácia plena. Na lição do
mestre rio-grandense Tupinambá Miguel
Castro do Nascimento, a Constituição
de 1988 fixou destinação específica de
parte da receita dos impostos em sinal
de prioridade que dá à educação: “(...)
Desta primazia, nasce uma certeza: instalou-se, no texto constitucional, como
orientação institucional, que o valor
educação é preponderante a outros
valores, quando se trata do ensino fundamental. Daí entendermos que, desenhado como princípio constitucional,
afigura-se como limitação implícita a
emendas constitucionais, qualificando-se como cláusula pétrea”. (Tupinambá
Miguel Castro do Nascimento, “Comentários à Constituição Federal: Direitos e
Garantias Fundamentais”, Porto Alegre,
Advogado, 1997, pp. 87-8)
SENTENÇAS
Com relação à eficácia deste princípio, o mesmo doutrinador assevera que:
“O não-oferecimento de ensino fundamental pelo Estado poderá ser reclamado e buscado perante o Judiciário, e o
Estado, por força de decisão judicial,
terá que ofertar em escola pública ou
em escola particular, mediante bolsa de
estudo (art. 213, § 1º)”. (Idem, ibidem)
A prioridade do ensino fundamental, opção claríssima e imutável do
Constituinte, rendeu ensejo à criação do
FUNDEF, como se percebe até mesmo
pelo nome. Com essa norma, o legislador infraconstitucional está providenciando no sentido da concretização dos
desideratos atinentes à educação. O art.
212, de cuja aplicação se cogita nestes
autos (mais que do FUNDEF propriamente dito), não representa dispositivo
dependente de regulamentação.
José Afonso da Silva, em seu clássico “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, abordou o tema no capítulo
“eficácia das normas constitucionais
socioideológicas”.
Ali advogou a plena eficácia de certas
normas socioideológicas, isto é, que expressam opções ideológico-valorativas
do constituinte. Entre os exemplos citados pelo mestre, constam várias relacionadas à educação, “incluído o art. 212”.
(José Afonso da Silva, “Aplicabilidade
das Normas Constitucionais”, São Paulo,
Malheiros, 3ª ed., 2ª tiragem, 1998, p.
193)
O já multicitado Ingo Wolfgang Sarlet dedica menção especial ao direito
social à educação, para nele vislumbrar
um perfil peculiar, destacando-o dos demais direitos sociais: “(...) g) Mesmo no
âmbito dos direitos fundamentais pres-
SENTENÇAS
tacionais típicos (direito à saúde, educação, previdência social, etc.), ‘em face
do perfil que lhes foi conferido pelo
nosso constituinte, verifica-se que a
própria prestação que constitui seu
objeto acaba, por vezes, assumindo a
feição de um direito defensivo’, inobstante não exatamente no sentido já referido. Tomando-se, por exemplo, o ‘direito social à educação’, regulado na
Constituição no art. 6º e nos arts. 205 e
ss., constatar-se-á que o direito geral à
educação abrange uma série de direitos, dos quais o direito à instrução (no
sentido de um direito a que o Estado
preste ensino, colocando à disposição
do titular do direito escolas, material
didático e professores) é apenas um
entre outros.
“O art. 206, em diversos dos seus
incisos, consagra alguns direitos de
natureza eminentemente defensiva (negativa), como é o caso da igualdade de
condições para o acesso e permanência
na escola (inc. I), da liberdade de ensino e aprendizagem (inc. II) e da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais (inc. IV). O mesmo se
poderá afirmar com relação ao art. 207
da CF, que consagra a garantia institucional da autonomia universitária”.
(Idem, p. 163)
A moldura (ou perfil) eleita pelo
constituinte vem a configurar um conjunto de normas de impacto no que
tange à educação, transparecendo a
prioridade que o legislador maior conferiu à educação. Nesse quadro, o art.
212 está a garantir a eficácia daquelas
relevantes opções, ao estabelecer os
meios financeiros de seu cumprimento.
E a disposição do art. 212 não poderia
235
estar dependente de outras normas, pois
é, ela própria, a norma garantidora da
eficácia das demais. Somente aplicando
25% de suas receitas de impostos é que
o Município poderá atender aos demais
regramentos (claríssimos) sobre educação, notadamente a fundamental. Esse
direito de todos à educação autoriza
intervenção judicial, para que se dê
cumprimento aos comandos (e pois aos
fins) estabelecidos na Lei Maior.
Rodolfo de Camargo Mancuso examinou tal temática, reconhecidamente
espinhosa, na perspectiva da crítica ao
superdimensionamento (inchamento) do
Poder Judiciário através da tutela dos
interesses supra-individuais. O professor considera a tutela dos interesses
difusos uma forma de participação democrática na esfera pública, feita através do Poder Judiciário.
Após analisar a possível hipertrofia
desse canal (e respectivo Poder) e o
conflito com o sistema representativo,
concluiu Mancuso pela legitimidade
dessa espécie de intervenção judicial,
pois se trata de atuação no seu campo
de atribuições típicas, embora qualificada e incrementada pela deficiência dos
demais Poderes: “De outra parte, hoje
se reconhece que a ação em justiça,
quando se trata de interesses supra-individuais, é uma forma de participação
comunitária na gestão da coisa pública.
“Ninguém, seriamente, pode desconhecer o quanto é difícil e complexo o
acesso do indivíduo às instâncias administrativa e legislativa: são requerimentos, démarches demoradas, lóbis, etc.,
ao passo que, para se ter acesso a um
Juiz Togado, é bastante uma petição em
forma e figura de juízo; para logo,
236
quando o caso o exija, a autoridade
judiciária determinará a tutela cabível,
sobretudo nos casos de urgência. Não
se trata de ‘inchamento’ do Poder Judiciário, porque, quando ele outorga tutela aos interesses metaindividuais, não
está desenvolvendo atividade de ‘suplência’; ‘é a sua própria’ atividade, de outorgar tutela a quem a pede e merece.
“No caso dos interesses difusos, a
intervenção jurisdicional é hoje considerada fundamental; não é que esse
Poder esteja a invadir a seara dos outros; será, antes, um sinal de que os
outros não estão a tutelar esses interesses, ‘obrigando’ os cidadãos a recorrerem diretamente à via jurisdicional”.
(Rodolfo de Camargo Mancuso, “Interesses Difusos”, 4ª ed., SP, RT, 1997, p.
114)
Não se há, pois, de qualificar o direito
social à educação como programático,
segundo a vetusta teoria, nem muito
menos tecer condicionamentos à pronta
aplicabilidade do art. 212 da CF/88.
Cuida-se de direito justiciável, pois;
sempre que a sua negação, através de
condutas omissivas ou comissivas dos
governantes, esteja a exigir intervenção
do Poder Judiciário, esta será evidentemente legítima.
Aliás, como anotado por Paulo
Bonavides, a tendência evolutiva do
Direito Constitucional consiste em que
os direitos sociais em geral, inicialmente remetidos à vala da mera
programaticidade, “tendem a tornar-se
tão justiciáveis quanto” os denominados
direitos fundamentais de primeira geração. (Paulo Bonavides, “Curso de Direito Constitucional”, 6ª ed., Malheiros,
1996, p. 518)
SENTENÇAS
Também não se há de repelir a
persecução judicial do direito ao pretexto de que existe outro remédio jurídico, qual seja a intervenção da União
ou do Estado no ente que descumprir
a regra de aplicação de recursos em
educação. A existência do remédio político-institucional apenas confirma o
vigor e a relevância do dever atribuído aos administradores. E, uma vez
desatendido, gera pretensão judicialmente dedutível, porquanto não pode
a coletividade ou os cidadãos lesados
em seus interesses metaindividuais
aguardar o acionamento do mecanismo político-institucional, de uso muitas vezes contaminado por condicionantes ligadas à coloração político-partidária ou outros influxos. Cabível e oportuna, pois, a possibilidade
de demanda judicial na matéria.
O que não cabe ao Judiciário é
detalhar a forma e o modo como o
administrador obedecerá ao comando
maior. Tal atribuição não lhe pode ser
retirada, pois coincide com o chamado
mérito administrativo. Também não
poderá invadir o espaço do legislador
local, na matéria de interesse local, ou
seja, da apreensão das necessidades
pontuais da comunidade local e seu
atendimento dentro dos parâmetros da
legalidade de nível superior.
Em tema de Direito Financeiro, portanto, não se diga que haveria invasão
da competência da Câmara de Vereadores, pois esta demanda não conterá
provimento no sentido de que tais ou
quais verbas sejam alocadas ou removidas das rubricas a, b ou c. Apenas se
fixará um comando atinente ao resultado: estabelecido o limite mínimo, o
SENTENÇAS
resultado não pode ser inferior, permanecendo as prerrogativas do legislador
e o administrador locais para estabelecer prioridades, meios e formas segundo o interesse local, que atinjam aquela
meta que foi estabelecida abstratamente
pela Constituição e que vem de obter
uma concreção nesta demanda. Por tudo
isso, o pleito se faz perfeitamente viável
e se ajusta aos moldes legais.
2.1.5. Da legitimidade da atuação
do “Parquet”. Conforme já anotado anteriormente, mostra-se induvidosa a legitimidade do Ministério Público para
fazer valer, concretamente, os preceitos
constitucionais no plano da educação.
Instrumentos há, com efeito. Pela ação
civil pública, tem o Ministério Público
federal ou estadual o direito e o dever
de agir para a consecução dos objetivos
eleitos pelo legislador maior. Poderá,
dessarte, o Ministério Público ajuizar ação
civil pública com o escopo de compelir
o Município a cumprir o preceito de
investimento mínimo em educação, porquanto numa ponta se cuida de exercer
claro direito de todos (difuso) à educação e, de outro, de fazer valer a posição
jurídica decorrente (co-respectiva) da
obrigação constitucional de inverter certo
valor mínimo em educação.
Perfeitamente cabível, portanto, que
o Parquet postule a formação de título
ou comando judicial de obrigação de
fazer, como, por exemplo, a determinação de investir recursos em educação. A
própria regulamentação da ação civil
pública o esclarece: “Lei nº 7.347, de
24-07-85:
“Art. 1º – (...) Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação
popular, as ações de responsabilidade
237
por danos morais e patrimoniais causado (redação dada pela Lei nº 8.884, de
11-06-94): I – ao meio ambiente; II – ao
consumidor; III – a bens e direitos de
valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV – a qualquer outro
interesse difuso ou coletivo (inciso acrescentado pelo art. 110 da Lei nº 8.078,
de 11-09-90); e V – por infração da
ordem econômica e da economia popular (NR) (redação dada ao inciso pela
Medida Provisória nº 1.965-12, de
02-03-00, “DOU”, de 03-03-00).
“Art. 3º – A ação civil poderá ter por
objeto a condenação em dinheiro ou o
cumprimento de obrigação de fazer, ou
não, fazer”.
2. 1.6. Da argüição de inconstitucionalidade. Inquina-se de inconstitucionalidade a Emenda Constitucional nº 14/
96 e a Lei nº 9.424, de 1996, nela embasada, por afronta a vários dispositivos
constitucionais. Não destacou o réu qual
dos artigos ou incisos da Emenda Constitucional está contaminado do vício
apontado.
Já quanto à lei, elencou alguns elementos do seu texto, que convém sejam reproduzidos: “Lei nº 9.424, de
24-12-96 (“DOU”, de 26-12-96): Art. 1º
– É instituído, no âmbito de cada Estado
e do Distrito Federal, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério, o qual terá natureza contábil e
será implantado, automaticamente, a
partir de 1º-01-98.
“§ 1º – O Fundo referido neste artigo
será composto por 15% dos recursos: I
– da parcela do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias sobre prestações de serviços de
238
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, devida
ao Distrito Federal, aos Estados e aos
Municípios, conforme dispõe o art. 155,
inc. II, c/c o art. 158, inc. IV, da CF.
“II – do Fundo de Participação dos
Estados e do Distrito Federal – FPE e
dos Municípios – FPM, previstos no art.
159, inc. I, a e b, da CF e no Sistema
Tributário Nacional de que trata a Lei nº
5.172, de 25-10-66; e III – da parcela do
Imposto sobre Produtos Industrializados
– IPI devida aos Estados e ao Distrito
Federal, na forma do art. 159, inc. II, da
CF e da Lei Complementar nº 61, de
26-12-89.
“§ 2º – Inclui-se na base de cálculo
do valor a que se refere o inc. I do §
anterior o montante de recursos financeiros transferidos, em moeda, pela
União aos Estados, Distrito Federal e
Municípios, a título de compensação
financeira pela perda de receitas decorrentes da desoneração das exportações,
nos termos da Lei Complementar nº 87,
de 13-09-96, bem como de outras compensações da mesma natureza que vierem a ser instituídas.
“Art. 6º – A União complementará
os recursos do Fundo a que se refere o
art. 1º, sempre que, no âmbito de cada
Estado e do Distrito Federal, seu valor
por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente. § 1º – O valor
mínimo anual por aluno, ressalvado o
disposto no § 4º, será fixado por ato do
Presidente da República e nunca será
inferior à razão entre a previsão da
receita total para o Fundo e a matrícula
total do ensino fundamental no ano
anterior, acrescida do total estimado de
novas matrículas, observado o disposto
SENTENÇAS
no art. 2º, § 1º, incs. I e II. (Nota: V.
Decreto nº 3.326, de 31-12-99, “DOU”,
de 03-01-00, que fixa o valor mínimo
anual por aluno)
“§ 2º – As estatísticas necessárias ao
cálculo do valor anual mínimo por aluno, inclusive as estimativas de matrículas, terão como base o censo educacional realizado pelo Ministério da Educação e do Desporto, anualmente, e
publicado no Diário Oficial da União.
“§ 3º – As transferências dos recursos complementares a que se refere este
artigo serão realizadas mensal e diretamente às contas específicas a que se
refere o art. 3º.
“§ 4º. No primeiro ano de vigência
desta Lei, o valor mínimo anual por
aluno, a que se refere este artigo, será
de R$ 300,00. § 5º – (Vetado).
“Brasília, 24 de dezembro de 1996;
175º da Independência e 108º da República. Fernando Henrique Cardoso. Paulo Renato Souza”.
Analisados os argumentos do réu
nesse tópico, conclui-se que incorreu
em equívoco, seja no plano da estratégia defensiva, seja nos próprios fundamentos. Quanto à estratégia, mostra-se
inteiramente desfavorável, à posição do
réu no processo, a eventual declaração
de inconstitucionalidade dos diplomas
instituidores do FUNDEF, porquanto, a
ser assim, o Município teria computado
como receita e aplicado valores inconstitucionais. Logo, teria de ressarcir os
valores aos outros entes que teriam sido
prejudicados com os inconstitucionais
retenção e repasse.
Tal ocorre, porque, segundo se verá
diante com mais clareza, o réu contou
para fins de receita própria o chamado
SENTENÇAS
retorno do FUNDEF, isto é, o excesso
em relação à sua parcela de contribuição
para o Fundo. Considerou como receita
sua o proveniente de terceiros, vale dizer, aquilo que, agora, impugna no plano da validade perante o ordenamento.
A impugnação ataca justamente o
ponto no qual o FUNDEF é favorável
ao Município, ou seja, o seu caráter de
fundo federal, que recolhe receitas de
outros entes, para redistribuí-las para
Municípios como Sapucaia do Sul. A
crítica endereçada à lei, por deferir
poderes de ingerência da União, por
exemplo, está atacando indiretamente a
validade dos aportes que a União e
outros entes lhe fizeram. No plano do
mérito da argüição, também não tem
razão o Município.
Em primeiro lugar, vigora o princípio de que, em sendo possível contornar a declaração de inconstitucionalidade, o julgador deverá abster-se de escolher essa via, de toda maneira excepcional. Deve-se presumir que as normas
infraconstitucionais se ajustam às de nível
superior, isto é, que se fazem compatíveis com os fundamentos destas últimas. Sempre que possível, deverá ser
preferida a solução que evite a declaração de inconstitucionalidade ou, pelo
menos, a amputação do texto da lei.
Alternativas há, como reconhece a
moderna teoria. Tanto as Cortes constitucionais, como os julgadores no controle difuso podem (e nessa medida
devem) lançar mão dos instrumentos
técnicos da interpretação, conforme a
Constituição (verfassungs conforme
Auslegung) e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Em
apertada e singela síntese, na primeira
239
hipótese o aplicador, diante de várias
interpretações do dispositivo questionado, endossa aquela que guarda harmonia com a norma superior. No segundo
caso, o intérprete declara inconstitucional apenas certa forma de interpretar
determinado texto, para afirmar, indiretamente, a norma que se mostre coadunável com os preceitos superiores do
ordenamento.
Em ambos os instrumentos, como
anotou Lenio Streck em recente curso
promovido pela AJURIS, em Porto Alegre-RS, ressalta a importância da distinção entre “texto” e “norma”. O aplicador deve ter atenção aos dois, mas o
que realmente interessa, no manejo do
Direito, são as normas compatíveis com
a letra do texto da disposição questionada e com o texto de nível constitucional.
A inconstitucionalidade constitui vício da norma, mas inflete sobre palavras ou expressões do texto que lhe
confere substrato. Quando possível afastar apenas interpretações inconstitucionais, assim deverá ser feito. Quando,
porém, tal não se mostra viável, ainda
pode ser evitada a redução do texto,
escolhendo-se uma interpretação compatível com a norma superior; e, por
fim, quando não mais se afigura possível outra alternativa, suprime-se parte
ou todo o texto da disposição, declarando-a inconstitucional.
No tocante à interpretação, conforme convém referir o magistério de Juarez Freitas, para quem se trata de um
verdadeiro princípio da hermenêutica
constitucional, o qual está indissoluvelmente vinculado à presunção da constitucionalidade e à técnica de o Juiz
240
somente declarar a inconstitucionalidade, quando rigorosamente manifesta: “De
acordo com tal princípio, o exegeta
somente pode declarar a inconstitucionalidade (material ou formal) quando
frisante e manifestamente configurada.
Não sendo dessa maneira, deve concretizar o Direito, preservando a unidade
do sistema, sem aderir a excessivos
conservadorismos, porquanto se efetiva
e cristalinamente configurada a inconstitucionalidade, não se lucra em tardar
a supressão da norma viciada. Em outras palavras, este princípio reclama contínua relativização operada pelos demais, especialmente pelo princípio da
proporcionalidade”. (Juarez Freitas, “Tendências Atuais e Perspectivas da Hermenêutica Constitucional”, in “Revista
da AJURIS”, nº 76, dez./99, II/407) (destaquei)
O ensinamento de Juarez Freitas
insere-se na moderna compreensão sistemática do Direito, segundo o qual os
valores e as normas do ordenamento
devem ser compreendidos e aplicados
sempre na perspectiva de um sistema
hierarquizado, tendo por ápice as opções axiológicas fundamentes inscritas
na Constituição. As disposições legais,
mesmo dentro do texto da Constituição,
devem ser lidas e interpretadas harmonicamente, observados princípios como
o da proporcionalidade. A respeito desse tema, notável a contribuição de
Heinrich Scholler, in “Revista da AJURIS” nº 75, set./99, I/169-86.
Há que se reconhecer, pois, a relatividade mesmo em “princípios sensíveis” como o da federação e dos direitos individuais (Freitas, idem, fl. 404),
ou em disposições aparentemente im-
SENTENÇAS
perativas e absolutas da Constituição.
Assim, nessa ótica, o princípio federativo e a autonomia dos Municípios não
devem receber leitura direta e estanque. É preciso aprofundar o exame numa
perspectiva integradora dos comandos
constitucionais, para só então descer à
exegese das normas atinentes à autonomia, por exemplo.
Nesse eixo de compreensão, nada
induz que, devidamente sopesado o
preceito da autonomia do Município em
face dos demais princípios e objetivos
do ordenamento brasileiro, seja verificável alguma hipótese de afronta à Lei
Maior, nem se mostra necessário estabelecer, dentro da normatização do
FUNDEF, alguma interpretação conforme a Lei Maior para alguma das suas
disposições. Na hipótese dos autos,
entendo que efetivamente inocorre incompatibilidade das disposições questionadas em face do Direito Constitucional.
Os pronunciamentos da Corte Suprema, até o momento, não são favoráveis à tese do réu. Nas suas raras manifestações, a interferência foi pontual
(restringindo-se a prazos) e de cunho
cautelar: “Ação direta de inconstitucionalidade. Medida cautelar. Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério. Cautelar, em parte, deferida, para suspender a eficácia das expressões que fixam prazo para o exercício, pelas unidades da Federação, de
atos compreendidos em sua competência legislativa (arts. 9º e 10, II, da Lei nº
9.424, de 24-12-96)”. (ADInMC nº
1.627-DF, STF, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Octávio Gallotti, “DJU”, de 24-10-97)
SENTENÇAS
No que tange, especificamente, aos
argumentos do demandado, porém, a
posição do Supremo Tribunal Federal
ainda não é de todo conhecida quanto
ao mérito, embora tenha sido indeferida
liminar: “ADIn (Medida Liminar) nº
1.749-5-DF, Rel. Min. Octavio Gallotti,
Partido dos Trabalhadores – PT, Partido
Democrático Trabalhista – PDT, Partido
Comunista do Brasil – PC do B, Partido
do Movimento Democrático Brasileiro –
PMDB, Partido Verde – PV, Requerentes, (CF, art. 103, inc. VIII) Mesa da
Câmara dos Deputados, Mesa do Senado Federal, Presidente da República,
Congresso Nacional, Requeridos, Dispositivo legal questionado: Art. 5º da
Emenda Constitucional à Constituição
Federal nº 14, de 1996 e Lei Federal nº
9.424, de 24-12-96, Interessado.
“Emenda Constitucional nº 14 –
Modifica os arts. 34, 208, 211 e 212 da
CF, e dá nova redação ao art. 60 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias.
“Art. 5º – É alterado o art. 60 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias e nele são inseridos novos parágrafos, passando o artigo a ter a seguinte redação:
“Art. 60 – Nos 10 primeiros anos da
promulgação desta Emenda, os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios destinarão não menos de 60% dos recursos
a que se refere o caput do art. 212 da
CF, à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental de seu atendimento e a remuneração condigna do
Magistério.
“§ 1º – A distribuição de responsabilidades e recursos entre os Estados e
seus Municípios a ser concretizada com
241
parte dos recursos definidos neste artigo, na forma do disposto no art. 211 da
CF, é assegurada mediante a criação, no
âmbito de cada Estado e do Distrito
Federal, de um Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério,
de natureza contábil.
“§ 2º – O Fundo referido no parágrafo anterior será constituído por, pelo
menos, 15% dos recursos a que se referem os arts. 155, inc. II, 158, inc. IV,
e 159, inc. I, alíneas a e b, e inc. II, da
CF e será distribuído entre cada Estado
e seus Municípios, proporcionalmente
ao número de alunos nas respectivas
redes de ensino fundamental.
“§ 3º – A União complementará os
recursos dos Fundos a que se refere o
§ 1º, sempre que, em cada Estado e no
Distrito Federal, seu valor por aluno não
alcançar o mínimo definido nacionalmente.
“§ 4º – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios ajustarão
progressivamente, em um prazo de cinco anos, suas contribuições ao Fundo,
de forma a garantir um valor por aluno
correspondente a um padrão mínimo
de qualidade de ensino, definido nacionalmente.
“§ 5º – Uma proporção não inferior
a 60% dos recursos de cada fundo,
referido no § 1º, será destinada ao pagamento dos professores do ensino
fundamental em efetivo exercício no Magistério.
“§ 6º – A União aplicará na erradicação do analfabetismo e na manutenção e no desenvolvimento do ensino
fundamental, inclusive na complementação a que se refere o § 3º nunca
242
menos que o equivalente a 30% dos
recursos a que se refere o caput do art.
212 da CF.
“§ 7º – A lei disporá sobre a organização dos fundos, a distribuição proporcional de seus recursos, sua fiscalização e controle, bem como sobre a
forma de cálculo do valor mínimo nacional por aluno.
“Lei nº 9.424, de 24-12-96 – dispõe
sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
de Valorização do Magistério, na forma
prevista no art. 60, § 7º, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias,
e dá outras providências.
“Fundamentação constitucional: art.
1º, III; art. 3º, IV; art. 5º, § 2º; art. 18;
art. 30, III; art. 34, VII, c; art. 60, § 4º,
I; art. 155, II; art. 158, IV; art. 159, I, a
e b, II, § 3º; art. 160; e art. 205.
“Decisão: Resultado da liminar: Indeferida. Decisão da liminar: O Tribunal, por votação unânime, indeferiu o
pedido de medida cautelar, nos termos
do voto do Relator. Votou o Presidente
(Plenário, 18-12- 97). Data de julgamento da liminar: Plenário, 18-12-97. Data
de publicação da liminar: pendente
Resultado do mérito: não-conhecido
“Decisão do mérito: por maioria de
votos, o Tribunal não conheceu da ação
direta , vencidos os Srs. Mins. Octavio
Gallotti (Relator), Ilmar Galvão e Néri
da Silveira. Votou o Presidente. Redigirá
o acórdão o Sr. Min. Nelson Jobim. Ausentes, justificadamente, os Srs. Mins.
Carlos Velloso (Presidente), Sepúlveda
Pertence e Celso de Mello. Presidiu o
julgamento o Sr. Min. Marco Aurélio
(Vice-Presidente) (Plenário, 25-11-99).
“Data de julgamento do mérito: Plenário, 25-11-99. Data de publicação do
SENTENÇAS
mérito: pendente. Incidentes: “Decisão
por despacho”.
“Identificação: ADIn (Medida liminar) nº 1.967-8, origem: Distrito Federal, Rel. Min. Octavio Gallotti, Governador do Estado do Rio de Janeiro (CF,
art. 103, inc. V), Requerente, Presidente
da República, Congresso Nacional, Requerido, Dispositivo legal questionado,
Interessado: arts. 1º, 2º, 3º e 6º e respectivos parágrafos, da Lei Federal nº
9.424, de 24-12-96.
“Fundamentação Constitucional: arts.
24, IX, §§ 01º e 2º; 25, § 1º, 160 e 169,
IV. Decisão: resultado da liminar: não-conhecida.
“Decisão da liminar: o Tribunal, por
votação unânime, não conheceu do
pedido de medida cautelar e determinou o apensamento destes autos aos da
ADIn nº 1.749-5-DF. Votou o Presidente. Ausente, justificadamente, o Min. Carlos Velloso (Plenário, 24-03-99). Data
de julgamento da liminar: Plenário,
24-03-99. Data de publicação da liminar: acórdão, “DJU”, de 25-06-99.
“Resultado do mérito: não-conhecido.
Decisão do mérito: por maioria de votos, o Tribunal ‘não conheceu da ação
direta’, vencidos os Srs. Mins. Octavio
Gallotti (Relator), Ilmar Galvão e Néri
da Silveira. Votou o Presidente. Redigirá
o acórdão o Sr. Min. Nelson Jobim. Ausentes, justificadamente, os Srs. Mins.
Carlos Velloso (Presidente), Sepúlveda
Pertence e Celso de Mello. Presidiu o
julgamento o Sr. Min. Marco Aurélio
(Vice-Presidente) (Plenário, 25-11-99).
“Data de julgamento do mérito: Plenário, 25-11-99. Data de publicação do
mérito: pendente.
“Incidentes: tendo sido determinado,
no acórdão da fl. 61, o apensamento
SENTENÇAS
destes autos aos da ADIn nº 1.749-5-DF,
requisitem-se estes últimos à douta Procuradoria-Geral da República, onde se
encontram. Publique-se. Brasília, 30 de
junho de 1999” (Publicado em 02-08-99).
Como se percebe da transcrição, os
dispositivos questionados são, ao fim e
ao cabo, os mesmos atacados aqui, e,
também, pelo idêntico fundamento
(ofensa à autonomia, em síntese). Enquanto guardião da Lei Maior, o Supremo Tribunal Federal não editou pronunciamento sobre o mérito, segundo
consta acima. Porém, sabe-se que indeferiu liminar, o que permite vislumbrar
alguma tendência, pois certamente anotaria inconstitucionalidades tais como as
alegadas.
Acrescento que não se dá afronta à
regra da autonomia dos Municípios, pois
a legislação do FUNDEF jamais derrogou competências para instituir ou arrecadar tributos da competência desses
entes da federação. Também não se
verifica ingerência na esfera privativa
do Município, pois a escolha da destinação dos recursos, dentro das normas
existentes, caberá ainda aos governantes locais; a fixação de limites de aplicação de verbas ocorre em várias leis
(ex.: saúde) e somente incide em inconstitucionalidade quando agredir, frontalmente, a autonomia do Município,
inviabilizando-o financeiramente ou reduzindo gravemente a margem de liberdade do governante para investimentos
segundo as necessidades locais.
Seria o caso de flagrantes invasões
da esfera de competência desse último,
mas não simples instituição de um sistema de retenções e repasses com base
em critérios de população estudantil,
com vista a uma melhor distribuição de
243
recursos para aperfeiçoamento dos níveis de educação no País.
Na legislação do FUNDEF não se
consubstancia restrição à propriedade
de verbas ou recursos dos Municípios,
e sim a instituição de um mero fundo
de natureza contábil que incide sobre
apenas parte de diversas rubricas de
receita e que está infiltrado dos objetivos eleitos pelo Constituinte para a nossa
federação: promoção do desenvolvimento, superação das desigualdades sociais
e regionais, erradicação de males como
a pobreza e o analfabetismo. Sempre
que o FUNDEF atender a tais reclamos
maiores do ordenamento brasileiro está
a obedecer à Constituição de 1988, que
os alçou a metas superiores.
O fato de o Município de Sapucaia
ter auferido substancial retorno do
FUNDEF vem exatamente corroborar a
concepção de que ele atende aos seus
objetivos e, também, aos preceitos fundamentais da Carta de 1988 no que tange
à autonomia dos entes federativos. De
notar-se que a sistemática de criação de
fundos federais e de repasses não existe apenas no campo da educação e não
pode, por si mesma, gerar inconstitucionalidade por ingerência nas esferas de
autonomia locais. Do contrário, a federação e seus objetivos seriam, sim,
inviáveis. O melhor seria, então, um
Estado único ou uma completa separação dos níveis.
É verdade que, no sistema federativo
brasileiro, há certas peculiaridades, que
motivam a se questionar o genuíno caráter de federação. A União, em certas
áreas, detém poderes excessivos. Não,
porém, no FUNDEF. Como ocorre em
qualquer federação, a autonomia das unidades não pode exacerbar-se a ponto
244
de suprimir outro dos princípios federativos, que é o da cooperação. No
âmbito da educação, as novas leis, como
a do FUNDEF, têm vindo solucionar
graves disparidades regionais e locais,
ao mesmo tempo que redistribuem importantes tarefas, como a gerência e a
fiscalização locais. A instituição de conselhos descentralizados, por exemplo,
está a demonstrá-lo.
Igualmente no que tange à fixação,
pelo Chefe do Executivo da União, do
valor mínimo por aluno, não vejo qualquer ofensa aos princípios invocados
pelo réu. Impõe-se, para que o fundo
tenha racionalidade na busca de seus
objetivos, que o critério mencionado
receba uma fixação uniforme e única. O
fundo tem, nesse aspecto, caráter nacional, pois são objetivos da nação o
melhoramento do ensino fundamental e
a correção das graves disparidades regionais (art. 3º, incs. II e III, da CF/88).
Em contrapartida, a lei contém previsão de que a União arcará com políticas e custos relevantes, além da contribuição com a chamada complementação do valor mínimo; demais disso,
procedeu-se a importante revisão do salário-educação: “Art. 1º – (...) § 3º –
Integra os recursos do Fundo a que se
refere este artigo a complementação da
União, quando for o caso, na forma
prevista no art. 6º.
“Art. 6º – A União complementará
os recursos do Fundo a que se refere o
artigo 1º, sempre que, no âmbito de
cada Estado e do Distrito Federal, seu
valor por aluno não alcançar o mínimo
definido nacionalmente.
“Art. 14 – A União desenvolverá política de estímulo às iniciativas de me-
SENTENÇAS
lhoria de qualidade do ensino, acesso e
permanência na escola promovidos pelas
unidades federadas, em especial aquelas voltadas às crianças e adolescentes
em situação de risco social.
“Art. 15 – O salário-educação, previsto no art. 212, § 5º, da CF, e devido
pelas empresas, na forma em que vier
a ser disposto em regulamento, é calculado com base na alíquota de 2,5% sobre
o total de remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, aos segurados
empregados, assim definidos no art. 12,
inc. I, da Lei nº 8.212, de 24-07-92.
“§ 1º – A partir de 1º-01-97, o montante da arrecadação do salário-educação, após a dedução de 1% em favor do
Instituto Nacional do Seguro Social –
INSS, calculado sobre o valor por ele
arrecadado, será distribuído pelo Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, observada a arrecadação
realizada em cada Estado e no Distrito
Federal, em quotas da seguinte forma:
“I – quota federal, correspondente a
1/3 do montante de recursos, que será
destinada ao FNDE e aplicada no financiamento de programas e projetos voltados para a universalização do ensino
fundamental, de forma a propiciar a
redução dos desníveis socioeducacionais
existentes entre Municípios, Estados,
Distrito Federal e regiões brasileiras;
“II – quota estadual, correspondente
a 2/3 do montante de recursos, que
será creditada mensal e automaticamente em favor das Secretarias de Educação
dos Estados e do Distrito Federal para
financiamento de programas, projetos e
ações do ensino fundamental”.
Assim, a própria lei contempla mecanismos de freios e contrapesos, para
SENTENÇAS
evitar o desequilíbrio de tarefas e custos
entre União, Estados e Municípios.
Aparentemente, pois, o sistema está
equilibrado, sem provocar qualquer
impacto negativo nas disponibilidades
dos Municípios. E não se diga que sejam
subjetivos os critérios de estabelecimento do valor mínimo, quando a própria
lei estabelece a forma de sua fixação,
onde avultam dados objetivos extraídos
por métodos estatísticos. Estatística e subjetividade jamais se podem confundir.
Frise-se que o FUNDEF constitui
inovação merecedora de encômios exatamente por concretizar a importância
que o ensino fundamental deve receber
nas esferas mais próximas do cidadão,
que são os Municípios. Evidentemente,
impõe-se acompanhamento e alguma
centralização, para que as metas seja
racionalmente buscadas e, assim, atingidas com maior homogeneidade e eficiência (inclusive menores custos). Calha como uma luva o ensinamento de
Sacha Calmon Coelho Navarro acerca
do mecanismo de repartição de receitas
tributárias, que, segundo o insigne tributarista, “não tem absolutamente nenhum nexo com o Direito Tributário”.
Aduz tratar-se de simples “relações
intergovernamentais, que de modo algum dizem respeito aos contribuintes”,
cuja regulação constou por equívoco ou
comodismo no Capítulo do Sistema
Tributário. A sua finalidade é outra: “O
sistema de repartição de impostos e o
sistema de repartição dos produtos quebraram o centralismo fiscal da União
Federal, promovendo uma melhor distribuição de recursos entre as pessoas
políticas da Federação e obrigando, de
sobredobro, o Executivo federal a dimi-
245
nuir a sua ingerência no organismo
federativo, que se agigantara durante os
21 anos da ditadura militar (1964 a 1985),
a mais longa de nossa história e, queira
Deus, a última”. (Sacha Calmon Coelho
Navarro, “Comentários à Constituição de
1988”, 6ª ed., RJ, Forense, 1996, p. 415)
(destaquei)
A revisão das proporções e quotas
de tributos para efeito de criação e
gerenciamento de um fundo como o
FUNDEF apenas tem por resultado melhor organizar o sistema de transferências, permitindo participação efetiva a
Estados e Municípios, que, de outro
modo, não teriam o manuseio de recursos importantes para setores vitais como
a educação. Assim, mesmo para quem,
como Sacha Calmon Coelho Navarro tece
críticas à hipertrofia da União no federalismo brasileiro, não há como reconhecer inconstitucionalidade, justamente, quando fundos como o FUNDEF e
respectivos sistemas de repasses vêm
para corrigir distorções.
Em apoio ao entendimento aqui esposado, colaciono os seguintes informes do Ministério da Educação (conforme Manual do FUNDEF, amplamente
distribuído): “Principais efeitos do
FUNDEF. Com o critério redistributivo
dos recursos e a garantia de uma significativa parcela do fundo para remuneração do Magistério, importantes transformações ocorreram no cenário de financiamento do ensino fundamental ao
movimentarem-se recursos dos governos com maior capacidade financeira e/
ou com um baixo nível de participação
no atendimento escolar na direção dos
Municípios em situação inversa. Com isso,
mais de 2.700 Municípios obtiveram
246
ganhos financeiros com o FUNDEF em
1998, superando 3.200 Municípios em
1999, segundo dados do Departamento
de Acompanhamento do Fundo.
“Outra expressiva mudança foi a elevação de 6% nas matrículas entre 1997
e 1998, de acordo com o censo escolar.
Anteriormente, a média de crescimento
anual era da ordem de 3%. Verificou-se,
ao mesmo tempo, importante modificação na participação dos governos estaduais e municipais no atendimento ao
ensino fundamental. Em 1997, os Municípios atendiam 40,7% dos alunos e os
Estados, 59,3%. Em 1999, essas participações foram de 49,4% e 50,6%, respectivamente. Com relação à remuneração do magistério, entre 1997 e 1998,
verificou-se uma melhoria salarial média de 13% em favor dos profissionais
em exercício nos sistemas estaduais e
municipais do país, conforme pesquisa
da FIPE-USP. No Nordeste, esses ganhos atingiram 49% na média das redes
municipais.
“Acompanhamento e controle social
do FUNDEF. Em cada Estado e em cada
Município, o FUNDEF deve ser fiscalizado por um Conselho de Acompanhamento e Controle Social, com a atribuição de supervisionar o FUNDEF e o
censo escolar. No âmbito dos Municípios, a composição mínima desse conselho é de quatro membros, representando: a Secretaria Municipal de Educação ou órgão equivalente; os professores e os diretores de escola; os pais de
alunos; os servidores das escolas.
“Um quinto membro, representando
o Conselho Municipal de Educação, é
obrigatório nos Municípios onde este
conselho exista. O Poder Executivo estadual ou municipal é obrigado a
SENTENÇAS
disponibilizar, mensalmente, ao Conselho do FUNDEF, todos os dados e informações sobre os recursos e sua utilização. O Banco do Brasil, quando
solicitado, fornece extrato bancário da
conta do FUNDEF a membros do Conselho, Deputados, Vereadores, Ministério Público e Tribunais de Contas”.
Em outras palavras, o FUNDEF veio
para beneficiar o ensino, especialmente
em Municípios como o de Sapucaia do
Sul, já podendo contar com resultados
animadores. E, ao invés de pecar por
centralismo, vem qualificado pela democratização e participação na fiscalização
das verbas endereçadas à educação.
2.2. Do mérito. 2.2.1. Do núcleo da
lide. Ainda que já tenha sido repisado,
convém enfatizar que neste feito não se
discute desvio de verbas do FUNDEF,
tema que se tornou mais freqüente na
imprensa, pela repercussão natural que
provoca. Versa a presente demanda, sim,
sobre a observância, pelo Município de
Sapucaia do Sul, no ano de 1998, do
comando insculpido no art. 212 da Carta
da República de 1988.
“Art. 212 – A União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os Estados, o Distrito Federal e ‘os Municípios
25%’, no mínimo, da receita resultante
de impostos, compreendida a proveniente de transferências, ‘na manutenção
e desenvolvimento do ensino’ ”.
A receita resultante de impostos remete ao art. 16 do Código Tributário
Nacional, verbis: “Art. 16 – Imposto é o
tributo cuja obrigação tem por fato
gerador uma situação independente de
qualquer atividade estatal específica,
relativa ao contribuinte”.
A questão do FUNDEF somente
emerge da consideração de que o
SENTENÇAS
Município-Réu, ao ser investigado, admitiu por seus agentes (e coerentemente não contestou neste feito), ter computado a verba de retorno do FUNDEF
para efeito de atendimento do comando
inscrito no art. 212 da CF/88. Com clareza meridiana deduz-se que o retorno
do FUNDEF não pode ser considerado
imposto de Sapucaia do Sul, nem resulta da receita proveniente dos impostos
do mesmo Município, pois é derivado
da receita de outros Municípios e retido
ao fundo, para depois retornar a Sapucaia do Sul por efeito da observância de
critérios expressos na legislação reguladora desse fundo contábil.
Aliás, o demandado sequer se aventura a debater essa questão básica. O
elenco de impostos é taxativo, por definição. Mesmo que o legislativo
sapucaiense inscrevesse o retorno do
FUNDEF como imposto ou o computasse como tal, padeceria de inconstitucionalidade. O fato de ter um censo estudantil favorável não é causa geradora
de imposto, e sim mero critério de
cálculo de um maior ou menor repasse,
segundo a política de redistribuição adotada. A receita de impostos advém da
ocorrência de fato gerador do contribuinte, independentemente de atuação
estatal. No retorno do FUNDEF, não há
fato gerador dos contribuintes de Sapucaia do Sul, e a verba vem às mãos do
administrador por mero ato de transferência de um mesmo fundo contábil.
Como bem o disse o Ministério
Público-Autor, se fosse possível computar o retorno do FUNDEF para obtenção
do patamar mínimo de inversão de receita em educação, haveria uma burla à
finalidade do art. 212, que consiste
exatamente em comprometer parcela
247
significativa da receita das entidades da
federação para a educação, sem dúvida
pela consciência do constituinte com
relação à gravidade dos índices nacionais (analfabetismo, evasão escolar, etc).
A prevalecer o raciocínio do Município demandado, haveria, ainda, uma
distorção, pois o Município que, tendo
mais alunos, recebesse mais verbas do
FUNDEF e as contasse para o fim do
art. 212 da CF, estaria aplicando de suas
receitas próprias bem menos que os
outros, estimulando a sua inoperância,
além de estar fruindo receitas alheias.
Com relação às dificuldades de cumprimento, cuida-se de matéria que compete ao Município resolver, dentro das
disponibilidades e da situação financeira em que vive. Tendo auferido volumoso aporte de recursos a título de
retorno do FUNDEF e os tendo computado para os fins do art. 212 da CF,
deixou de lançar mão de receitas próprias para cumprir aquele preceito.
Portanto, sobraram-lhe divisas provenientes das suas próprias receitas e,
imagina-se, deve ter formado reservas.
Agora, cumpre-lhe atender ao ditame
constitucional, aqui concretizado, com
os meios que tem ou que vá buscar
onde for possível. Ademais, passaramse vários meses desde a edição do
provimento liminar. Nesse lapso, com
certeza, caso tenha sido previdente, deve
ter tomado as medidas cabíveis para
levantar os recursos necessários.
2.2.2. Das questões atinentes a valores. O autor houve por bem, ao redigir
o seu pedido, estabelecer quantificação
do mesmo em termos monetários. Penso que até não seria preciso descer a tal
minúcia. Mas, tendo sido feito, teve o
réu oportunidade para defender-se até
248
mesmo nesse aspecto. Tem-se um pedido de condenação em aplicar R$
5.791.159,02 em educação, distribuídos
da seguinte forma: R$ 1.955.091,34 nos
ensinos fundamental (na proporção de
no mínimo 60%) e infantil (no máximo
40%), e outros R$ 3.836.067,68 no ensino fundamental, dos quais 60% para
pagamento de professores e 40% em
outros itens, a critério do administrador
Na contestação, o réu afirmou ter
cumprido o mandamento constitucional,
por ter aplicado, de uma receita de R$
23.718.202,97 no ano de 1998, a cifra
de R$ 8.049.769,39 na “área da educação”, desde que consideradas como tais
certas aplicações que pretende ver declaradas legítimas. Subsidiariamente, argumentou que, mesmo admitindo as
informações constantes da inicial, o saldo
ainda a ser aplicado seria de R$
1.714.816,07, e não o almejado. A primeira diferença diz com o total da receita obtida no ano de 1998: R$
24.470.634,89 (conforme inicial) e R$
23.718.202,97 (segundo o réu). O autor
tomou os dados atinentes à receita da
auditoria do Tribunal de Contas do
Estado, cujo resumo encontra-se à fl.
499. O réu não impugnou especificadamente as rubricas do respectivo quadro,
e podia tê-lo feito.
Ao prestar informações requisitadas
por este Juízo, o Tribunal de Contas do
Estado apurou uma diferença mínima
(míseros R$ 51,20), encontrando o valor
final de R$ 24.470.686,09 (fl. 780). A
diferença diz com a rubrica do I. V. V.
C. que não havia sido incluída anteriormente.
Da mesma informação remetida pelo
Tribunal de Contas, colhe-se a certeza
SENTENÇAS
sobre a causa real da discrepância, que
reside nas rubricas 02 e 03 do quadro
da fl. 780, ou seja, multas e juros da
dívida ativa (R$ 28.184,58) e na “Manut.
Des. Ensino 10 e 25%” (R$ 724.298,54).
Em nota, esclarece o ofício que “esta
última receita” “de acordo com informação do Município, apensado ao Expediente nº 3.525-0200/99-9 (fl. 33), a qual
segue cópia anexa, com a rubrica nº
199099.01, refere-se ao lançamento de
25% das receitas próprias de impostos
(IPTU, ISSQN, Dívida Ativa e ITBI).
“Dessa forma, considerando que o
valor constante no Balancete Orçamentário da Receita, na fonte impostos,
considera 75% desses impostos, esse
valor, mesmo sendo lançado sob o título de outras receitas correntes, deve ser
considerado como base de cálculo para
a MDE” (fl. 780).
Nenhuma linha se dignou o Município a discorrer sobre essa observação e,
enfim, sobre a causa da discrepância
apontada.
Vê-se, assim, que não tem consistência o argumento defensivo de que a
razão da diferença residiria em distinta
interpretação do que poderia ser lançado para o FUNDEF. Aliás, preocupouse o Tribunal de Contas em asseverar
que também ele entende que o dispêndio
com
serviços
médicos
e
odontológicos constitui despesa relativa
ao ensino, já o mesmo não ocorrendo
com relação ao financiamento da assistência à saúde e programas de alimentação.
Porém, retomando o cerne da controvérsia, reafirmou o Tribunal de Contas do Estado a diferença aplicada a
menor em 1998 e que deve ser reposta
SENTENÇAS
no próximo exercício, que é o valor de
R$ 5.740.024,69 (fl. 04), praticamente
idêntico ao perseguido nesta demanda
(R$ 5.791.159,02). Tenho, assim, como
certas e definitivas as informações trazidas pelo Tribunal de Contas do Estado, seja por falta de impugnação especificada e objetiva por parte do Município, seja pelo embasamento e exame
preciso feito pelos seus agentes (no inquérito e agora, às fls. 779/82), seja,
ainda, pela autoridade, responsabilidade e experiência daquela Corte e dos
seus respectivos técnicos, cuja credibilidade encontra-se acima de qualquer
dúvida.
2.3. Da solução. As razões de fato e
de direito levantadas pelo demandante
encontram ressonância na prova dos
autos e no ordenamento jurídico pátrio.
O demandado deixou de exercer as
faculdades e de aproveitar as oportunidades de defesa, bem como de prova
que lhe foram asseguradas, fazendo com
que até mesmo no secundário aspecto
relativo à quantificação a demanda
mereça prosperar.
Corrige-se, apenas, o valor final, para
que se forme o título judicial com base
na derradeira manifestação, não-impugnada, do Tribunal de Contas do Estado,
que aferiu o montante de “R$
5.740.024,69 a ser reposto pelo réu em
educação”. As proporções devem ser
ajustadas, ficando definido, assim, que
deverão ser aplicados: a) R$ 1.903.957,01
nos ensinos fundamental (na proporção
de no mínimo 60%) e infantil (no máximo 40%); e b) R$ 3.836.067,68 no
ensino fundamental, dos quais 60% para
pagamento de professores e 40% em
outros itens, a critério do administrador.
249
O ajuste numérico, por ser praticamente insignificante em face do montante devido, em nada afeta a sucumbência. Os valores acima expressos ficam sujeitos à correção monetária pelo
IGP-M desde o dia 31-12-98, data-limite
até quando deveriam ter sido investidos
e não o foram. Segundo tranqüila jurisprudência, independentemente de pedido expresso, a reposição das perdas
monetárias se impõe em atenção ao
princípio da vedação do enriquecimento (e corolário empobrecimento) sem
causa. Da mesma forma quanto aos juros,
que incidem ex lege, à taxa legal, devendo ser computados desde a citação.
Avizinhando-se o mês de junho e,
pois, da metade do exercício, o cumprimento da presente sentença deverá darse em, pelo menos, 50% até o final
deste ano (2000), ficando o restante para
o ano-exercício vindouro. Com relação
à liminar proferida, fixou-se sancionamento para a hipótese de descumprimento. Todavia, ainda não findou o
exercício de 2000, nem teve o Ministério Público-Autor iniciativa, ao que consta, em concretizar a fiscalização das
condutas tendentes ao cumprimento.
3. DISPOSITIVO
Isso posto, julgo procedente o pedido formulado no processo para: a) confirmar o provimento liminar concedido,
retificando-se, apenas a expressão numérica conforme acima esclarecido; b)
condenar o Município de Sapucaia do
Sul a proceder à aplicação da importância de R$ 5.740.024,69, nas proporções
e para as destinações seguintes: b.1.) R$
1.903.957,01 nos ensinos fundamental (na
proporção de no mínimo 60%) e infantil
250
(no máximo 40%); b.2.) R$ 3.836.067,68
no ensino fundamental, dos quais 60%
para pagamento de professores e 40%
em outros itens, a critério do administrador; c) condenar o réu a acrescentar
aos valores acima a correção monetária
segundo o IGP-M, a contar 31-12-98,
bem como juros de 6% ao ano, computados desde a citação; e d) condenar,
ainda, o réu nas custas processuais.
SENTENÇAS
Deixa-se de condenar no pagamento dos honorários, por cuidar-se de ação
civil pública movida pelo Ministério
Público. Fixo, para a hipótese de descumprimento desta sentença, multa diária de 50 salários mínimos.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Demais diligências legais.
Sapucaia do Sul, 24 de maio de 2000.
Roberto José Ludwig, Juiz de Direito
251
Processo nº 563 – Manutenção de Posse
Autores: Carolina Minda Dapper, Roque Virgílio Dapper, Olivia Dapper,
Angelino Olimar Dapper, Delci Dapper, Bonifácio Stanislau Dapper, Julia
Dapper, Jurema Erminda Schuh, Rudi Schuh, Toni Sueli Ramisch, Roque
Ramisch, Claudete Carmem Roos e Valmir Roberto Roos
Réus: Arsênio Wobeto, Alma Wobeto e Ademar Dapper
Juiz prolator: Silvio Viezzer
Servidão de trânsito aparente, embora descontínua. Possibilidade da ação
possessória. Procedência do pedido.
Vistos, etc.
Carolina Minda Dapper e outros,
qualificados nos autos, por meio de seus
procuradores, ajuizaram ação de manutenção de posse contra Arsênio Wobeto
e outros, afirmando que são proprietários de uma área de 12 hectares,
encravada, situada em Boa Vista do
Herval, e argumentando ocorrências de
turbação na posse, uma vez que os
requeridos estão impedindo o acesso à
referida área, feito, há mais de 50 anos,
por meio de uma estrada que passa
sobre a área de domínio destes.
Aduziram que há cerca de um ano
os requeridos decidiram não mais permitir que fossem realizados trabalhos
de conservação na estrada – tais como
fechar buracos e abrir valos para escoamento da água –, apesar de a estrada
possuir cercas nos dois lados e conduzir a rede elétrica que abastece a residência dos requerentes, culminando, no
mês de maio último, com a colocação
de portões de arame na estrada, impedindo completamente a passagem.
Salientaram que vêm sendo ameaçados
pelos requeridos e que esgotadas as
possibilidades de solução amigável –
tendo havido inclusive interferência do
Poder Público Municipal.
Pediram liminar de manutenção de
posse para abertura da estrada obstruída
pelos requeridos, e ao final, julgamento
procedente, condenando-se os requeridos ao pagamento dos ônus sucumbenciais. Juntaram procurações e documentos. Deram à causa o valor de R$
5.000,00.
Designada audiência de justificação
e tentativa de conciliação, as partes acordaram, em caráter provisório, no sentido de que os requeridos permitirão o
trânsito dos autores na estrada objeto
da ação, durante o período de tramitação do feito. Neste ato foi determinada
a realização de perícia. Juntados quesitos e documentos, veio aos autos o laudo
pericial (fls. 77 à 92). Manifestaram-se
as partes sobre o laudo pericial (fls. 94/
95 e 102/104). Aportou nos autos complementação do laudo pericial (fls. 109/
110), seguindo-se novas manifestações
das partes (fls. 112/113 e 115/117).
Na fase de instrução foram ouvidos
um requerido e um autor e inquiridas 09
testemunhas arroladas pelas partes. Houve desistência da inquirição de uma testemunha arrolada pelos réus, com concordância da parte adversa. Juntados
novos documentos e oportunizada manifestação das partes. Realizada inspeção
252
judicial, tomada por termo nos autos
(fls. 150/151).
Substituído o debate por memoriais.
Os autores, alegando existência de servidão de passagem, contínua e aparente, cortando as propriedades dos requeridos há mais de 30 anos; impossibilidade de abertura de outro acesso, notadamente utilizando-se a antiga estrada
vicinal, praticamente fechada por capoeira e vegetação formada pelos vários
anos de desuso, face à existência de
depressão geográfica de aproximadamente 04m, na divisa com suas terras;
e existência de posse mansa, pacífica,
contínua e ininterrupta dos autores sobre o caminho existente nas terras dos
requeridos, bem como reportando-se ao
teor das provas oral, pericial e da inspeção judicial, pediram julgamento procedente.
Os requeridos, por sua vez, argumentando, em suma, falta de justificativa legal para a manutenção da permissão de passagem por suas terras, face à
existência de possibilidade de abertura
de acesso próprio, utilizando-se da estrada pública vicinal – ao teor do documento da fl. 90 – e reportando-se às
provas produzidas, pediram julgamento
improcedente. É o relatório.
DECIDO
Inicialmente é de se estabelecer o
conceito de servidão de trânsito e a
diferença entre esta e a denominada
passagem forçada. Para tanto, observese a lição do mestre Arnaldo Rizzardo,
publicada na “Revista AJURIS” nº 30,
em março de 1984, in verbis: “Servidão
de trânsito. Conceito. A servidão de trânsito tem por finalidade estabelecer um
SENTENÇAS
prédio em comunicação com outro, ou
com a via pública, através de prédios
intermediários (Lafayette Rodrigues Pereira, “Direito das Coisas”, 5ª ed., Freitas Bastos, 1943, p. 420, § 130).
“Compreende uma extensão de área
em imóvel alheio, destinada a servir de
passagem a outro imóvel. A sua delimitação configura o caminho que é, no
conceito de Pardessus, ‘un espace de
terrain servant à la communication d’un
lieu à un autre, quelle que soit sa
longueur
ou
sa
largeur,
et
indépendamment de ce qu’il est plus ou
moins fréquenté’ (J. M. Pardessus, “Traité
des Servitudes ou Services Fonciers”,
Dixième Édition, Bruxelles Société
Typogra-phique Belge, 1841, p. 193, nº
216).
“Está enunciado no art. 705 do CC:
‘Nas servidões de trânsito, a de maior
inclui a de menor ônus, e a menor
exclui a mais onerosa’. Não expressa o
Código uma definição. Interessou-se
apenas em delimitar sua extensão.
“(...) Servidão de trânsito e passagem forçada. Distinções. A passagem
forçada, na lição de Hely Lopes Meirelles, ‘destina-se a propiciar judicialmente saída para a via pública, fonte ou
porto, quando a propriedade do autor
não a tem ou vem a perdê-la’. (“Direito
de Construir”, Ed. RT, 4ª ed., São Paulo,
1983, p. 285)
“Conforme o conceito do art. 559 do
CC, outrora, servidão legal de trânsito é
direito de vizinhança que corresponde
ao prédio uma saída para a via pública,
enquanto a servidão convencional de
passagem não supõe aquela necessidade, podendo assentar no útil, no cômodo, até mesmo no supérfluo. A distinção
SENTENÇAS
está em consonância com a jurisprudência: ‘Convém, de logo, que se frise a
distinção entre o direito de passagem
forçada regulada pelos denominados
direitos de vizinhança e a proteção às
servidões. A primeira pressupõe um prédio encravado, com indispensável necessidade de saída para a via pública,
assegurando a lei ao proprietário o direito de consegui-la sobre prédios alhei-os, possibilitando-lhe a destinação econômica. Funda-se, assim, na necessidade e na indispensabilidade. Já a servidão se coloca no cômodo e até no supérfluo’. (“Julgados do TARGS” nº 36/306;
na mesma linha, “RJTJSP” nº 69/114,
Lex Editora S. A.)
“O interesse geral da sociedade no
sentido de os prédios não permanecerem inexplorados e estéreis, em virtude
do encravamento, marca a passagem
forçada. Oportuna é a lição de
Demolombe: ‘II est d’ailleurs évident
aussi que I’intérêt général de la société
n’exige pas moins que I’intérêt privé du
propriétaire, que les fonds enclavés ne
demeurent pas inexploités et stériles; et,
sous ce rapport, on peut dire que cette
servitude est en même temps d’utilité publique’. (C. Demolombe, “Cours de Code
Napoleon”, XII/86, “Traité des Servitudes”, Tomo II, 3ª ed., Auguste Durand
e L. Hachette & Cie., Paris, 1863, nº
598)
“Para haver encravamento, impõe-se
que o prédio, confinando, ou não, com
a via pública, se apresente na seguinte
situação: ‘Não tenha saída para ela (a
via pública), nem possa buscar-se uma,
ou, podendo, somente a conseguiria mediante uma excessiva despesa; ou a saída
de que disponha (direta, indireta, con-
253
vencional ou mesmo necessária) seja
insuficiente e não se possa adaptá-la ou
ampliá-la, ou porque isto é impossível,
ou porque os reparos (com que se obtivesse uma saída não excessivamente
incômoda) requereriam por igual despesas desproporcionadas’. (Lenine
Nequete, “Passagem Forçada”, Saraiva,
2ª ed., São Paulo, 1978, p. 05)
“Em Josserand também encontramos
o significado de encravamento: ‘El
enclavamiento es la situación de un fundo que no tiene salida a la via pública
o que tiene una salida insuficiente para
su utilización; se dire en tal caso que ese
fundo está enclavado; su situación es
intolerable y le quita todo o casi todo su
valor si no interviene el legislador para
majorarla, para hacer cesar el
embotellamiento que sufre; y esto precisamente es lo que se ha hecho al instituir la servindumbre depaso en caso de
enclavamiento: el propietario del fundo
enclavado podrá exigir, mediante
indemnización, del propietario o de los
propietarios de los fundos enclavantes,
aún cuando formen parte del dominio
público, un paso suficiente hasta la via
pública’. (Louis Josserand, “Derecho Civil”, Tomo I, III/462-463, Ediciones Jurídicas Europa-América, Bosch & Cia.
Editores, Buenos Aires, 1950, nº 1.980)
“O encravamento, pois, para tipificar a espécie, não precisa ser absoluto.
Não se exige que o fundo não disponha
de nenhuma saída para a via pública.
Se uma passagem penosa, longa, estreita, perigosa ou impraticável existir, não
fica afastado o direito a outra comunicação. A finalidade da lei é tornar possível a exploração ou o conveniente
uso dos prédios, de sorte que o titular
254
do domínio com uma saída insuficiente,
e que para melhorá-la ou ampliá-la se
impõe um dispêndio excessivo, tem
direito ao acesso, pois o prédio não
deixa de ser encravado.
“É o ponto de vista dos Tribunais:
‘Aliás, é cediço, a idéia de encravamento é relativa. Segundo entendimento da
doutrina e da jurisprudência, também
se considera encravado o prédio que,
embora tendo saída ou passagem, não
seja ela segura, praticável ou suficiente.
No caso, porém, o encravamento real
existe, o que dá ao apelante direito à
passagem forçada que, stricto sensu, nem
se confunde com servidão, embora seja
havida como servidão legal, dada a possibilidade de sua coativa imposição’.
(“RT” nº 532/63).
“De bom alvitre esclarecer que a
passagem é insuficiente quando resultante de forte declive, de acesso estreito
e inseguro. Não o é no caso de aparecerem incômodos e dificuldades para o
trânsito, como um caminho longo e
sinuoso. ‘A maior comodidade e economia não justificam a reintegratória. Se o
prédio possui passagem, mesmo angustiosa, para via pública, não será ele
encravado no sentido legal.’ (“RT” nº
413/336)
“O dispêndio excessivo é configurado nas hipóteses em que o prédio
encravado está separado da via pública
por um curso de água sem ponte ou
barca, e que a travessia obriga a efetuar
pesados gastos, desproporcionais inteiramente ao valor do imóvel.
“Na servidão de trânsito, as causas
de instituição são diversas e podem assentar na utilidade ou mera facilidade.
Tanto que, na maioria das vezes, é es-
SENTENÇAS
tabelecida convencionalmente. Não requer a inexistência de outro caminho
para atingir-se um prédio distinto ou a
via pública.
“A passagem forçada do Código Civil
Brasileiro equivale à servidão de trânsito do Código de Napoleão, art. 682: ‘Le
propriétaire, dont les funds sont enclaves,
et qui n’a aucune issue sur la voie publique, peut réclamer un passage sur les
fonds de ses voisiens, pour I’exploitation
de son héritage, à la charge d’une
indemnité proportionnée ou dommage
qu’il peut occasionner’.” (grifo meu)
Observe-se, ainda, a lição de Lenine
Nequete, in “Da Prescrição Aquisitiva”,
3ª ed., ano de 1981, pp. 99 e 100, in
verbis: “Princípios que informam as servidões prediais (convencionais). Em resumo, as servidões – como as entendeu
nosso legislador – se definem como um
direito real, voluntariamente imposto a
um prédio em favor de outro, e em
virtude do qual perde o proprietário do
primeiro o exercício de algum direito
dominial ou é obrigado a tolerar que
dele se utilize o proprietário do segundo, tornando-se este último mais útil
ou, pelo menos, mais agradável.
“Informam-nas, assim, os seguintes
princípios: A) Pressupõem a existência
de dois prédios não pertencentes ao
mesmo dono e relativamente próximos
um do outro, não necessitando, porém,
que sejam contíguos.
“B) Devem produzir alguma vantagem ao prédio dominante, de maneira
a aumentar-lhe o valor ou fazê-lo mais
aprazível.
“C) Formando exceção ao direito comum, e sendo limitações da propriedade
serviente, não se presumem (CC, art. 696).
SENTENÇAS
“D) São, em regra, indivisíveis, por
isso que os serviços relativos ao seu
objeto formam um só todo e que se não
podem considerar realizados senão integralmente; assim, não é possível adquirilas, exercê-las ou perdê-las por partes;
subsistem, em caso de partilha, em benefício de cada um dos quinhões do
prédio dominante, salvo se, por natureza
ou destino, só se aplicarem a certa parte
de um, ou de outro (CC, art. 707).
“E) São direitos reais sobre a coisa
alheia, mas direitos acessórios, permanecendo ligados ao prédio dominante
de maneira inseparável: praediis
inherent; em conseqüência do que não
podem ser cedidas, penhoradas ou hipotecadas separadamente, nem destacadas do prédio dominante, para serem
atribuídas a um outro; acompanham o
imóvel em suas alienações: ambulant
cum dominio.
“F) Dizem-se perpétuas, o que decorre logicamente do seu caráter de
acessoriedade, ligando-as ao prédio
dominante de tal sorte que, enquanto
lhe trouxerem vantagem, mantêm-se
enquanto ele se mantiver. Contudo, não
sendo este um atributo essencial, faculta-se a sua modificação mediante convenção (assim como a sua extinção pelo
não-uso: CC, art. 710).
“G) O seu conteúdo, porém, não
pode nunca ser facere, isto é, uma
prestação pessoal do proprietário do
imóvel serviente: servitus in faciendo
consistere nequit; mas sempre um in
patiendo ou um in nom faciendo.
“H) A lei, afinal, não as limita em
número: as servidões convencionais que
se podem estabelecer são, assim, indefinidas, tantas quantas são as vantagens
255
que podem de alguma maneira proporcional ao prédio dominante, como, aliás, já se facultava no Direito Romano”.
A toda a evidência, o caso dos autos
subsume-se ao conceito de servidão de
trânsito. O imóvel dos autores não se
encontra encravado, tanto no sentido
legal – estrito – quanto tomando-se por
base a melhor exegese – como já foi
dito acima, a idéia de encravamento é
relativa –, haja vista que aos fundos –
ao Sul – divisa com estrada pública
municipal – estrada vicinal –, conforme
se observa no mapa acostado na fl. 92
dos autos e ao teor da resposta da
senhora perita ao quesito nº 06, constante na fl. 80 dos autos.
Ressalte-se, inobstante a alegação de
existência de desnível no terreno no
local que faz divisa com a estrada vicinal
– segundo a parte autora, de aproximadamente 04m – e a constatação do magistrado – saliente-se, na condição de
leigo, porquanto não tem conhecimentos de engenharia ou geologia – por
ocasião da inspeção judicial, no sentido
de que “há total impossibilidade de abertura de estradas devido ao declive do
terreno e à passagem de um córrego”
(fls. 150v. e 151), a senhora perita nomeada concluiu favoravelmente à abertura de acesso no local, sem, praticamente, ser necessária incursão na área
de terras pertencente ao lindeiro ao Sul
– Arsênio Wobeto – consoante conclusão existe possibilidade de abertura de
estrada mais a Oeste, conforme está indicado – em vermelho – no mapa da fl.
92 (in verbis).
Ademais, preenchidos os princípios
inerentes, elencados por Lenine Nequete,
ao teor da lição supra.
256
A existência real de servidão de trânsito descontínua e aparente nos imóveis
de propriedade dos requeridos – imóveis
servientes – em benefício do imóvel pertencente aos autores – imóvel dominante – foi suficientemente comprovada nos
autos por meio das fotografias acostadas, laudo pericial, inspeção judicial e
prova oral produzida. Vejamos.
Com efeito, está diante de servidão
de trânsito descontínua e aparente, haja
vista o teor das fotografias acostadas
com a inicial (fls. 22 e 23), bem como
aquelas obtidas por ocasião da realização da perícia (fotos nos 8 à 13 das fls.
86 à 88 dos autos).
Descontínua porquanto a servidão
de trânsito exige e tem o seu uso condicionado a atos pessoais do senhor do
prédio dominante, repetidamente e a
intervalos de tempo. Aparente porque
se revela por sinais exteriores, tais como
sulcos, trilha, porteiras e desaparecimento de grama – ao que se observa nas
fotos antes referidas.
O laudo pericial afirma a existência
de estrada particular “cortando” a propriedade dos requeridos, com extensão
de 310,50m + 68,00m, representada, com
tinta vermelha, no mapa da fl. 92 dos
autos. A senhora perita informou, em
resposta ao quesito nº 04, formulado
pelos requeridos, sobre a existência de
estrada particular, ao responder “a estrada em litígio encontra-se em mau
estado de conservação, necessitando de
melhorias com máquinas, trabalhos de
escoamento das águas do arroio (drenagem) para que seja possível a trafegabilidade com automóvel de passeio”.
Ademais, este magistrado, ao realizar a inspeção judicial, de que foi lavrado termo nos autos, constatou a efetiva
SENTENÇAS
existência de servidão de trânsito no
local. Lê-se no termo de inspeção judicial (fl. 150v.), in verbis: “Este magistrado percorreu a pé o trecho de estrada
assinalado no mapa da fl. 92 com cor
vermelha. A manutenção deste trecho
também é precária. Há locais com atoladouros e locais com ‘poças d’água’. O
referido trecho permite a passagem de
veículos. Não há cercas ou portões no
referido trecho a impedir a passagem
de veículos. Em ambos os lados da
estrada há cerca divisória da propriedade de Arsênio Wobeto. O trecho assinalado com a cor vermelha consubstancia
uma estrada de colônia, aparente”.
As partes e as testemunhas inquiridas – inclusive aquelas arroladas pelos
requeridos – são uníssonas no sentido
de que a aludida “estrada particular”
existe há muito tempo – há mais de 30
anos – e que sempre foi utilizada pelos
moradores da localidade, de forma livre
e ininterrupta. Ressaltam que os antecessores dos autores, assim como toda
vizinhança – e até pessoas estranhas –
sempre utilizaram-se da referida estrada, tanto para chegar ás terras de que
eram proprietários, como para encurtar
caminho para o centro do Município de
Santa Maria do Herval.
Edio Klementz (fls. 131 e 132) inclusive afirmou que “ainda usa a estrada
que sai na frente da casa do Arsênio,
porquanto é o único acesso para a sua
casa”.
A prova oral é cabal no sentido da
existência da servidão de trânsito, evidenciando-se, inclusive, o exercício da
posse sobre a estrada por tempo suficiente à usucapião. Observe-se as declarações, in verbis: “Aproximadamente há
20 anos o depoente mora na casa cuja
SENTENÇAS
foto consta na fl. 23 dos autos, afirmando que efetuou reformas. Informa que
há 28 anos, quando mudou-se para o
local, as terras ao Sul de sua propriedade, em que fixou residência, pertenciam, uma parte, ao Oeste, ao Sr. Alfredo
Dapper, e outra parte, a Leste, ao Sr.
Ernesto Dapper, tendo ambos herdado
de Jacó Dapper, e sendo hoje ambos
falecidos.
“As demarcações da divisa entre as
terras do depoente, dos autores e do
outro requerido foram efetuadas há aproximadamente 03 anos, de forma consensual, mediante contratação de agrimenso.
(...) Informa que desde 28 anos atrás até
aproximadamente 02 anos atrás, primeiro o falecido Alfredo e depois os filhos
deste, que continuaram no local, passam
no local (...) A rede de energia elétrica
que passa pelas terras do depoente vai
até a casa dos herdeiros de Alfredo
Dapper (...) Há 28 anos atrás Alfredo
Dapper já passava pelo local, na frente
da casa do depoente”. (declarações do
requerido Arsênio Wobeto, fl. 124)
“Há aproximadamente 30 anos, o
vizinho, Sr. Arsênio, reside no local (...)
O pai do depoente passava pela estrada
que se situa na frente da casa do Sr.
Arsênio, até antes de falecer. (...) Atualmente, quando não há chuva, é possível se chegar com veículo até à residência do depoente, passando pela estrada
que está em vermelho no mapa da fl.
92. Atualmente, somente o depoente
com a família residem em Boa Vista do
Herval (...) O depoente planta batata
inglesa, arroz e milho e também cria
gado, em Boa Vista do Herval (...)
“Confirma que efetuou o requerimento constante na fl. 121 dos autos à Prefeitura Municipal de Santa Maria do Her-
257
val, salientando que se destinava à viabilização de acordo com o Sr. Arsênio,
o que acabou não acontecendo (...) Diz
que permite a passagem dos vizinhos
por suas terras, salientando que um trecho da passagem foi bloqueada por
Ademar Dapper, permitindo a passagem
apenas a pé (...) Afirma que pelo local
passam inclusive pessoas estranhas, que
encurtam o caminho e vão para Santa
Maria do Herval.” (declarações de
Angelino Olimar Dapper, fls. 124 e 125)
“(...) A depoente era proprietária das
terras adquiridas por Arsênio Wobeto,
localizadas em Boa Vista do Herval.
Arsênio adquiriu as terras há mais de 30
anos. Há 30 anos atrás o falecido Alfredo Dapper e também Ademar Dapper
já moravam no local, sendo vizinhos de
fundos da propriedade que pertencera
a depoente. A casa em que reside Arsênio foi construída pela depoente. A
depoente morou no local até os 36 anos
de idade, conhecendo-o muito bem.
“Na época em que residia no local
havia passagem para vizinhos e, até, as
vezes, para os estranhos, defronte à sua
residência. Naquela época, pela estrada
passavam carros e também carroças dos
vizinhos dos fundos. A estrada foi aberta a base de enxada. Apresentadas as
fotos de nos 09 à 13, constantes nas fls.
87 à 89, a depoente informou que representam a estrada que na época em que
residia no local era ocupada para passagem dos vizinhos (...) A conservação
da estrada era feita pelos próprios moradores. Aquele era o único caminho
que levava até a roça dos Dapper.” (declarações de Anila Michel, fl. 126)
“(...) Residia nas terras que atualmente pertencem a Arsênio Wobeto, localizadas em Boa Vista do Herval. O
258
depoente nasceu no local e residiu ali
até 1948. Apresentadas algumas fotos, o
depoente reconheceu na foto nº 11 a
casa em que residia. Na época em que
o depoente morava no local eram vizinhos de fundos Alfredo Dapper e
Ademar Dapper, bem como antes disso,
os pais destes. Informa que a saída para
a estrada geral era feita por meio das
terras em que residia o depoente. Na
época os vizinhos saíam para a estrada
geral utilizando a passagem pelas terras
em que morava o depoente.
“Afirma que havia outro caminho,
porém este aumentava a distância em
aproximadamente 02km, por isso era
usado o caminho pelas terras do depoente (...) Desde que o depoente tem
conhecimento era possível a passagem,
pelo local, de carroças e até caminhões.
A estrada foi aberta a base de enxada.
A passagem era aparente (...) Na última
vez em que esteve no local a estrada de
acesso aos Dapper permanecia no
mesmo local.” (declarações de Erni
Michel, fl. 126v.)
“(...) Conhece a estrada que passa
pela frente da casa de Arsênio e vai até
a propriedade dos Dapper há 28 anos.
Apresentadas as fotos das fls. 87 à 89
dos autos, reconheceu o depoente a
estrada que passa entre a casa e o galpão
de Arsênio e que conhece há 28 anos.
Afirma que Angelino utilizava a estrada
para passar com o frete. Que outras pessoas passam a pé, pessoas desconhecidas, o vizinho Plínio Glemann, o próprio depoente, etc. Conheceu Alfredo
Dapper, afirma que ele utilizava a estrada (...) Sabe que existe uma cerca
que separa a estrada, em ambos os lados.
“(...) O depoente afirma que desde
que conhece a rua, ela era aparente,
SENTENÇAS
isto é, notava-se que era usada para
passagem de pessoas e também para o
transporte de produção (...) Se precisasse usar a estrada, poderia fazê-lo porque Arsênio não o proibiu (...) Informa
que a rua principal de saída da propriedade dos Dapper é aquela que passa
em frente da casa de Arsênio Wobeto.
Refere que há outra saída, porém que
esta segunda opção aumenta a distância, em mais de 02km (...) Afirma que
existe rede elétrica próximo a estrada e
que vai até a casa de Angelino Dapper.
Sabe que Angelino Dapper planta batatas em sua propriedade.” (declarações
de José Beno Kroetz, fl. 127)
“(...) Mora em Boa Vista do Herval
há aproximadamente 36 anos. Sua propriedade faz divisa com Arsênio Wobeto,
situada ao Sul da propriedade dos Dapper
(...) Conhece a estrada que se localiza em
frente à casa em que mora o Sr. Arsênio.
Afirma que esta estrada existe desde o
tempo anterior àquele que o depoente
conhece a região (...) O falecido Ernesto
usava tal estrada e também todos que
freqüentavam sua casa (...)
“Acredita que provavelmente a estrada era mantida por esforços conjuntos
de Arsênio e dos Dapper. A estrada era
conhecida por toda a vizinhança. Acredita que era aparente (...) Apresentadas
as fotos das fls. 87 à 89, referiu que correspondem à estrada sobre a qual o depoente diz ter existência desde muito
tempo atrás (...) O acesso à estrada, ao
que sabe o depoente, sempre foi liberado.” (declarações de Evaldo Land, fl. 128)
“(...) Tem conhecimento de que a
estrada existe há 15 anos (...) O caminho utilizado por Ademar para ir às próprias terras é aquele que passa na frente
da casa do Sr. Arsênio (...) Tem conhe-
SENTENÇAS
cimento de que os vizinhos que moram
longe da estrada geral também utilizavam a estrada que passa pela frente da
residência do Arsênio. Passavam a pé
por esta estrada.” (declarações de Nelson Boeff, fl. 130)
“(...) Conhece a estrada que passa na
frente de Arsênio Wobeto, entre a garagem e a casa, e sabe que existe há mais
de 30 anos e que esta estrada era ocupada para passagem de pedestres e carroças, entre os quais, o próprio depoente e
também os demais vizinhos. O falecido
Alfredo usava esta estrada. O pai de
Ademar também usava esta estrada (...)
Sabe que cada um dos usuários fazia um
pouco da manutenção da estrada que
leva aos Dapper. A estrada sempre foi
aberta, isto é, aparente (...) Até a casa
deste (falecido Alfredo) a estrada continua aberta e nunca foi interrompida,
desde o tempo em que o depoente sabe da
existência da estrada (...) O depoente
ainda usa a estrada que sai na frente da
casa do Arsênio. É o único acesso para a
casa do depoente (...) Informa que dos
lados da estrada há cerca, mas que Arsênio deixou a estrada aberta.” (declarações de Edio Klementz, fls. 131 e 132)
“(...) Conhece a estrada que sai da
frente da casa de Arsênio Wobeto e vai
até a outra estrada municipal há aproximadamente 50 anos. Neste período, a
estrada nunca foi interrompida no trecho entre a residência do Sr. Arsênio e
a residência do falecido Alfredo (...) A
maioria dos vizinhos e também estranhos que vinham de fora usavam a
estrada, pintada de vermelho e de verde no mapa da fl. 92.” (declarações de
Osvaldo Dapper, fls. 131 e 132)
“(...) Afirma que não pode informar
o tempo de existência da estrada que
259
passa pela frente da residência de Arsênio Wobeto e sai em uma estrada municipal porque ela é mais velha que o
depoente. O depoente usava a referida
estrada (...) A estrada existe no trecho
entre a casa do Sr. Arsênio e do Sr. Alfredo, falecido. Neste trecho nunca foi interrompida com pedras ou arames.” (declarações de Erico Dapper, fl. 132 e 133)
Ao teor do entendimento assente,
em se estando diante de caso de servidão de trânsito, há possibilidade, no
que se refere ao tipo “descontínua e
aparente”, de exercício de defesa por
meio de ação possessória – inclusive
interdito possessório –, assim como reconhecimento do direito real por meio
de ação declaratória de usucapião.
Há inclusive Súmula do Supremo
Tribunal Federal referindo-se à matéria
– “Súmula nº 415: Servidão de trânsito
não-titulada, mas tornada permanente,
sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória”.
Ademais, observe-se abaixo.
“Aquisição da servidão de trânsito pela
posse. A posse continuada da servidão
de trânsito constitui uma forma de seu
reconhecimento como direito, defensável pelos meios jurídicos previstos para
a tutela das servidões, conforme reiteradamente se vem expressando a jurisprudência. Desde que seja visível o uso,
perceptível ao longo do prédio serviente,
transforma-se em direito protegido pelos
interditos possessórios: ‘Materializada no
solo, visível e permanente, deve ser
mantida a posse da servidão’. (“Jurisprudência Catarinense” nº 25/281)
“Naturalmente, não está ela titulada,
pois aí não caberia discussão. Tornada
permanente, desenvolvendo o dono do
260
prédio que dela se utiliza atos sucessivos
de aproveitamento, transitando no imóvel para chegar a seu prédio, manifestada através de sinais evidentes, como sulcos, moirões, buracos, trilha, porteiras,
desaparecimento de grama, existência
de valetas, merece a tutela da lei, que a
mantém e a conserva, mesmo que não
consumado o lapso de tempo da prescrição aquisitiva (“RT” nº 152/304).
“Pois, desponta como princípio na
jurisprudência, ‘pode-se ter posse da servidão antes de se ter direito da servidão’ (“RJTJRGS” nº 33/111).
“As decisões dos Pretórios neste sentido consolidaram o entendimento de forma indiscrepante, tornando-o princípio
de direito erigido na Súmula nº 415,
nestes termos: ‘Servidão de trânsito não
titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória’.
“Lafayette Rodrigues Pereira mostrava que o Direito Romano previa já para
algumas das servidões descontínuas
interditos possessórios especiais, acrescentando que a jurisprudência de seu
tempo acompanhava a tendência do
direito que ele chamava de moderno ao
adotar as possessórias como suficientes,
por si sós, para proteger a quase-posse
das servidões, qualquer que fosse a natureza e a espécie, isto é, de caráter
contínuo ou descontínuo, afirmativo ou
negativo (obra citada, p. 292, e nota
272, § 136).
“O Tribunal de Alçada de Minas
Gerais desenvolveu a tendência, ao
assentar que ‘na doutrina e na jurisprudência tornou-se incontroverso que a
servidão de trânsito, desde que se mostre
SENTENÇAS
visível e permanente, pela natureza das
obras realizadas, é passível de proteção
possessória. Na esteira desse entendimento, é que o Egrégio Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, em acórdão de
que foi Relator o eminente Des. Aprígio
Ribeiro, assentou, com muito acerto, que
é suscetível de servidão de trânsito, e o
seu uso defensável por via de interditos, a estrada que se não revela apenas
eventualmente à passagem de viandante, mas que se manifesta visivelmente
na forma de aterros, estivamentos, cercas e porteiras, solenizando-se, assim,
por sinais objetivos e ostensivos (v. “Jurisprudência Mineira”, V/957, fascículos
5 e 6).
“Também o Egrégio Superior Tribunal Federal, depois de decidir que as
servidões de trânsito podem tornar-se
aparentes pelos sinais evidentes que se
apresentarem e contínuas, e que nessa
hipótese são prestigiadas pela lei civil
(“Minas Forense” nº 02/707), acabou por
assentar, na Súmula nº 415, que servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, se considera
aparente, conferindo direito à proteção
possessória’. (“RT” nº 412/404)
“O Tribunal de Justiça de São Paulo,
entre outras oportunidades, seguiu idêntica tese, como se vê na fundamentação
da Apelação Cível nº 203163: ‘Tratandose de mera posse de servidão de trânsito, havendo obras visíveis, como porteiras, cercas e corredor de gado, tornando-a contínua e aparente, goza de
proteção possessória, sem necessidade
de título e prova dominial’. (“RT” nº
444/88. Ainda, 484/88 e 493/53) Em
síntese, quando estabelecida com obras
SENTENÇAS
que lhe atestam a existência, a servidão
deve ser considerada como aparente e
não-descontínua, gozando, portanto, dos
interditos possessórios (“Rev. Forense”
nº 233/178).” (in Arnaldo Rizzardo, “Revista AJURIS” nº 30, março de 1984 –
grifo meu)
“Servidão aparente reconhecida em
face dos elementos probatórios colhidos no processo. Nova incursão no
campo fático da controvérsia, a que não
se presta o recurso especial (Súmula nº
07 do STJ).
“Transcrição no registro de imóveis.
Exigência somente para as servidões
não-aparentes (...) II – Não cabe, em
sede de recurso especial, incursionar no
campo fático da controvérsia, para revolver provas colhidas nos autos e serviram de base ao reconhecimento da
existência de servidão aparente (Súmula nº 07 do STJ).
“A transcrição no Registro de Imóveis só é exigível para o estabelecimento das servidões não-aparentes (art. 697
do CC). III. Recurso a que se nega provimento, indiscrepantemente.” (REsp nº
22288-0-SP, STJ, Rel. Min. Demócrito
Reinaldo, “DJU”, de 13-02-95, p. 2.219)
“(...) Agravo. Ação de manutenção
de posse. Servidão. Utilização e conservação de barragem. Desligamento de
cerca eletrificada. Liminar deferida. Preliminar. Falta dos pressupostos para liminar. Inocorrência. Os atos que impedem o exercício do direito de servidão
podem ser atacados por interditos possessórios. A colocação de cerca eletrificada sem a verificação da devida legalidade e afastamento de risco não pode
prevalecer seja qual for o procedimento judicial, pela relevância da situação,
261
diante a iminência de risco e incerteza
da segurança das vidas das pessoas e
animais. Liminar. Despacho de manutenção.
“O Juiz realizou inspeção judicial,
demonstrando pleno conhecimento da
situação, inclusive todo o histórico das
contendas judiciais, justificando a manutenção da liminar. Preliminar rejeitada. Agravo desprovido.” (Agravo de
Instrumento nº 196118897, 5ª Câmara
Cível do TARGS, Dom Pedrito, Rel. Silvestre Jasson Ayres Torres. Agravantes:
Andréa Menezes de Salles, Pedro Afonso Almeida de Salles ou Pedro Afonso
Salles. Agravados: João Antonio Machado da Rocha e Lise Florência Caiaffo da
Rocha. Julgado em 10-10-96, unânime)
“(...) Reintegração de posse. Servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se
aparente, conferindo direito à proteção
possessória (Súmula nº 415 do STF).”
(Apelação Cível nº 197083025, 4ª Câmara Cível do TARGS, Caxias do Sul, Rel.
Ulderico Cecatto, julgada em 19-06-97)
Neste passo, uma vez já afirmada a
existência da servidão de trânsito há
mais de 30 anos e a possibilidade de
defesa por meio de ação possessória,
há de se perquerir: Os autores tem o
direito de exigir a sua manutenção? A
resposta a esta indagação – que, definitivamente, define o rumo da demanda:
procedência, ou não – passa, necessariamente, pela análise dos “requisitos para
o reconhecimento da posse na servidão
de trânsito”.
A este respeito temos a lição do eminente Des. Arnaldo Rizzardo – obra citada –, in verbis: “Requisitos para o
262
reconhecimento da posse na servidão
de trânsito. Mas deve existir uma razão
forte e séria, que evidencie a real necessidade, como foi referido e será
analisado mais aprofundadamente, para
admitir a servidão de trânsito através da
posse.
“Neste sentido, há certa identificação como a passagem forçada, que
reclama um razoável encravamento do
prédio a fim de ser concedida. Se,
embora evidente a posse, o pretendente busca uma maior comodidade apenas, um encurtamento de distâncias,
tendo outra via de acesso à sua propriedade ou ao caminho público ou à fonte,
pelos mesmos princípios que regem a
passagem forçada não se estabelece a
serventia ou o uso do caminho.
“É o que pontifica na jurisprudência:
‘Não se pode onerar a propriedade
lindeira com servidão de passagem, se
o vizinho dispõe de outra para o mesmo fim, ainda que tenha de percorrer
maior distância ao servir-se de estrada
municipal para atingir sua propriedade.
A servidão de passagem existe em função da necessidade do trânsito e não
para servir à conveniência pessoal do
interessado, cuja propriedade não se
acha encravada’. (“RT” nº 398/187 )
“ ‘Não se pode onerar propriedade
vizinha com servidão de passagem,
quando se dispõe de estrada de acesso
à via oficial. A servidão de trânsito não
objetiva servir conveniência pessoal do
interessado, cuja propriedade não se
acha encravada’, embora resulte ‘encurtamento de distância’ (“RT” nº 422/177).
“ ‘Servidão de passagem. Não é de
ser deferida se a prova é conducente à
demonstração que sua necessidade re-
SENTENÇAS
side em mera comodidade para escoamento da produção.’ (“Julgados do
TARGS” nº 39/402. Idem, “RT” nos 455/
80 e 520/141; “Rev. Forense” nº 243/
147)
“Mas há pontos de vista contrários,
menos rigorosos em conceder a servidão: ‘Quando se cuida de real servidão
de passagem, assinalada por obras visíveis, da qual têm os autores quase posse
ad interdicta, como ocorre nestes autos,
o fato da existência de outra estrada em
favor do prédio dominante não obsta a
que reconheça o seu direito de uso ou
trânsito dessa outra estrada’. (“RT” nº
334/363)
“Conquanto justas as razões, cada
situação merece um exame especial, preponderando a conclusão de onerar-se o
menos possível o imóvel alheio, e somente quando o determinarem fortes exigências fáticas do prédio necessitado. Na
constituição por ato convencional das
partes seria aceitável o ponto de vista
acima. Tratando-se, entretanto, da posse como fato gerador, o gravame não
pode desvirtuar-se da natureza da passagem forçada, embora não com a
mesma rigidez de requisitos, razão que
torna irrelevante a posse se desacompanhada da necessidade do caminho.
“Fazendo frente a uma via qualquer,
ou com acesso razoável a ela pelo
próprio terreno, não se impõe o encargo, malgrado a posse existente. É o que
salienta a jurisprudência mais ponderada: ‘Se a abertura de estrada pública
extinguiria servidão regularmente transcrita, por força do art. 709, inc. II, do
CC, é manifesto que, não existindo transcrição, será inadmissível que se restabeleça uma servidão de passagem, no caso,
SENTENÇAS
quando já existe uma estrada pública,
acessível ao prédio dominante. E não
importa que o traçado da estrada pública seja mais longo, porque o autor não
pode tirar vantagem em terras alheias,
se dispõe de meio para atingir o mesmo
objetivo, sem onerar o proprietário vizinho. A servidão de caminho existe em
razão de necessidade de trânsito e não
de enriquecimento do prédio dominante’. (“RT” nº 322/218)
“Considera-se o uso que vinha sendo exercido como mera tolerância do
proprietário e não posse no sentido jurídico. (“RT” nº 441/117)
“Forte corrente da jurisprudência
inadmite, ainda, a proteção quando os
caminhos que atravessam prédios particulares não se dirigem a lugares públicos, nem a fontes ou pontes (“Julgados
do TARGS” nº 23/163), tendo-os como
simples atravessadouros se não fundados em títulos legítimos.
“A razão estaria no art. 562 do CC,
que preceitua: ‘Não constituem servidão
as passagens e atravessadouros particulares, que se não dirigem a fontes,
pontes, ou lugares públicos, privados
de outra serventia’.
“Comenta Clóvis: ‘Pondo de lado esta
questão técnica (da colocação do artigo
no capítulo das servidões), o edito do
artigo afirma que os caminhos, que
atravessam prédios particulares, se não
se dirigem a lugares públicos, se estendem meras concessões do proprietário,
se não se fundarem em títulos legítimos. Não se adquirem por usucapião’.
(ob. cit., vol. III, comentário ao art. 562)
“João Luiz Alves considera os atos
de passagem como de pura tolerância,
tendo direito a ações apenas o dono do
263
prédio atravessado (“Código Civil da
República dos Estados Unidos do Brasil”, 1º/515, 2ª ed., Livraria Acadêmica
Saraiva & Cia., São Paulo). Mas a regra
precisa ser entendida corretamente.
“Carvalho Santos, abordando a interpretação do dispositivo transcrito, diz
que foi mal redigido. O legislador pretendeu reproduzir o direito anterior, sem
alteração, para o qual não existia servidão se o caminho se dirigisse para local
onde não houvesse serventia alguma,
ou sem a menor utilidade. A redação da
norma seria esta: ‘Não constituem servidão as passagens e atravessadouros
particulares, que não se dirigem a fontes, pontes ou a lugares que não tenham serventia alguma’.
“Daí concluir-se que, se o lugar não
tem fonte ou ponte, mas tem outra
serventia qualquer, a passagem ou
atravessadouro constitui servidão: ‘Existe servidão ainda que a serventia esteja
em lugar que não seja público, mas
particular, sendo defeituosa a redução
que faz parecer que o lugar deve ser
público’. (Carvalho Santos, obra citada,
VIII/48)
“Em resumo, deixará de incidir o
ônus referido quando se dirigem os caminhos para lugar sem qualquer serventia, ou sem utilidade. Mesmo porque falece razão, então, para consentir
na passagem. Mas a necessidade
desponta-se a utilização se destina com
vistas ao trabalho, embora não situado
em lugar público”.
Temos ainda a lição de Lenine
Nequete (obra citada, pp. 110 e 111), in
verbis: “No que respeita, para concluir,
à servidão de trânsito, é de se dizer,
preliminarmente, que carecem de razão
264
os autores e os julgados que a confundem com a passagem forçada. Não é
possível – alega-se – falar em servidão
de trânsito senão quando há encravamento, à vista do que dispõe o art. 562
do CC.
“A maior ou menor dificuldade de
comunicação ou incômodos sofridos
pelo proprietário do prédio dominante
não bastam para o reconhecimento desse
ônus, que traz graves e sérios inconvenientes às propriedades rurais. É manifesta a improcedência do argumento que
limita a servidão de passagem à necessidade de prédio encravado: a passagem forçada (CC, art. 559), outrora
servidão legal de trânsito, é direito de
vizinhança que corresponde ao prédio
sem saída para a via pública, enquanto
que a servidão convencional de passagem não supõe aquela necessidade, podendo assentar no útil, no cômodo, até
mesmo no supérfluo”. (grifo meu)
Ao que se observa nas lições acima,
há dois entendimentos quanto aos requisitos para o reconhecimento da posse na servidão de trânsito. Um deles
vincula o direito ao reconhecimento da
posse da servidão de trânsito à real
necessidade de saída para via pública,
o que, na prática, a equipara ao direito
de “passagem forçada”.
Outro afirma a possibilidade de reconhecimento, havendo prova suficiente da
posse mesmo no caso de implicar mera
utilidade e, ainda mais, até consubstanciando supérfluo. Arnaldo Rizzardo aborda as duas situações, inclinando-se para
a primeira. Lenine Nequete, ao contrário,
rejeita a primeira hipótese.
O entendimento deste magistrado
afeiçoa-se mais àquele preferido por
SENTENÇAS
Lenine Nequete – excluindo-se a hipótese de deferimento de servidão de trânsito com assento no supérfluo. Com
efeito, não há de se deferir a proteção
à posse de servidão de trânsito tão-somente nos casos de encravamento,
sob pena de tornar letra morta as disposições legais pertinentes. Não obstante, há de se apurar a real necessidade e/
ou utilidade, sopesando-se também a situação fática do imóvel serviente, a fim
de onerar-se o menos possível o imóvel
alheio.
Partindo-se destas duas premissas
examinemos a situação fática consolidada. A servidão sobre as terras dos requeridos existe há mais de 30 anos – o
que restou comprovado. Ao rigor da lei,
consoante prova produzida, os autores
têm o direito de ver declarada a
usucapião da servidão – muito embora
não seja objeto do pedido, motivo pelo
qual a decisão restringir-se-á à questão
da manutenção da posse.
A aludida estrada, em que pese situar-se sobre terreno particular, é de
utilidade pública, porquanto não somente os autores a utilizam, mas também
outros moradores da localidade, entre
os quais podemos citar Edio Klementz
(fls. 131 e 132) e o próprio requerido
Ademar Dapper, ambos proprietários de
imóveis encravados – no que pertine à
situação do requerido Ademar, observe-se a localização de seu imóvel, demonstrada no mapa da fl. 92 dos autos –, os
quais teriam direito a “passagem forçada”.
Com efeito, os autores não dispõem,
no atual momento, de outra ligação –
efetivamente aberta – com a via pública. Têm a real necessidade de utilizar a
SENTENÇAS
referida estrada para ingressar em seu
imóvel – o que vem acontecendo desde
há muitos anos –, bem como para escoar sua produção – leia-se o teor da
prova oral produzida, bem como o teor
da petição das fls. 173/174 dos autos.
Exigir-se a abertura de outra saída,
aos fundos, ligando-se à estrada vicinal,
consubstanciaria decisão injusta, a onerar os autores, ressalte-se, pequenos
proprietários rurais. Ademais, dificultaria a utilização e exploração do imóvel,
haja vista as precárias condições de
trafegabilidade da estrada vicinal – leia-se o teor da prova pericial do termo de
inspeção judicial.
De outro lado, vale questionar qual
o ônus para os requeridos ante a decisão pela manutenção da posse dos
autores sobre a servidão. Evidentemente que nenhum. Com já foi dito, embora
fosse negado o pedido dos autores, o
caminho não poderia deixar de existir,
uma vez que consubstancia a única ligação do imóvel do requerido Ademar
Dapper com a via pública – in casu a
estrada geral. Por conseqüência, a decisão favorável aos autores não cria qualquer ônus ao requerido Arsênio Wobeto.
Vale ressaltar que há notícias nos
autos no sentido de que o requerido
Arsênio Wobeto não deseja fechar a
estrada, mas tão-somente impedir a
passagem dos ora autores – prova disso: as declarações de José Beno Kroetz,
constantes na fl. 127, afirmando que
não foi proibido de passar pelo local –
quiçá, por intriga pessoal com um ou
outro, por motivo não esclarecido. É de
se salientar ainda que a servidão está
perfeitamente delimitada pela existência de cerca de arame ao longo de seu
265
curso, em ambos os lados, na propriedade de ambos os requeridos. Assim
sendo, apresenta-se ilícita a tentativa dos
requeridos almejando turbar a posse dos
autores sobre a aludida estrada.
Não destoa da presente decisão o
julgado abaixo, in verbis: “Servidão de
trânsito. Remoção à revelia dos donos
do prédio dominante. Diminuição de
vantagens. Não pode ser aceita remoção de servidão de trânsito existente há
mais de 50 anos, sem anuência dos
donos dos prédios dominantes, se tal
mudança acarretou aumento considerável de distância, com agravação de
encargos e perda de tempo, para os
que da antiga estrada se serviam. A
interpretação do permissivo do art. 103
do CC condiciona-se rigorosamente à
observância de tal requisito. Apelo conhecido e provido. Sentença reformada.
“Vê-se que, além de não atenderem
os recorrentes às exigências legais e regimentais, referentes à alegação de dissídio jurisprudencial, pretendem eles o
reexame de matéria fática, o que encontra óbice na Súmula nº 07 do Egrégio
STJ. Ante o exposto, nego seguimento
ao recurso”. (Agravo de Instrumento nº
58127-6-GO, STJ, Rel. Min. Nilson Naves, “DJU”, de 25-11-94, p. 32.354)
Com corolário de todo o exposto,
impõe-se julgar procedente o pedido dos
autores. Finalmente, ante o teor do
petitório das fls. 174/175 dos autos,
impõe-se autorizar, de imediato, por
meio de medida liminar – incidental –
, a título de antecipação de tutela, uma
vez que presentes os pressupostos elencados no art. 273, caput e inc. I, do
CPC – ao teor desta decisão –, a realização de serviços de manutenção da
266
servidão de trânsito – tais como a construção de aterros; encascalhá-la; a introdução, no prédio serviente, de pessoas
para executar obras e manter em bom
estado o leito da passagem, contanto
que a sua duração e modo produzam o
menor incômodo possível –, à custa da
parte interessada, tudo com a finalidade
de permitir a sua utilização durante eventual curso da lide em sede recursal –
tudo consoante teor do art. 699 do CC.
Nota: “De outro lado, do exercício
decorrem os atos necessários para a
conservação e o uso. Ao dono da servidão, ensina Clóvis, é autorizada a realização dos seguintes atos, entre outros: o corte de árvores para abrir o
caminho; a construção de aterros e de
pontes; a introdução, no prédio
serviente, de pessoas para executar obras
e manter em bom estado o leito da
passagem (obra citada, III/254).
“Carvalho Santos endossa a lição:
‘Poderá fazer escavações e os serviços
imprescindíveis para o melhoramento da
estrada, encascalhá-la, derrubar as árvores que prejudiquem o trânsito, podendo mesmo ocupar outros lugares se fizer
preciso para a execução de tais obras,
contando que a sua duração e modo
produzam o menor incômodo possível
ao dono do prédio serviente’. (J. M.
Carvalho Santos, “Código Civil Brasileiro Interpretado”, Livraria Freitas Bastos
S. A., São Paulo, 1963, 11ª ed., IX/323)”
(in Arnaldo Rizzardo, obra citada)
Diante do exposto, julgo procedente
a presente ação de manutenção de posse
ajuizada por Carolina Minda Dapper e
outros contra Arsênio Wobeto e outros
para fins de manter e assegurar o exercício da posse dos autores sobre a servidão de trânsito existente – estrada
SENTENÇAS
particular “cortando” a propriedade dos
requeridos, com extensão de 310,50m +
68,00m, representada, com tinta vermelha, no mapa da fl. 92 dos autos –, o
que faço com fundamento nos arts. 695
e 699 ambos do CC, bem como arts.
926 e ss. do CPC.
Outrossim, defiro de medida liminar
– incidental –, a título de antecipação de
tutela, para fins de autorizar, de imediato, a realização de serviços de manutenção da servidão de trânsito – tais como
a construção de aterros; encascalhá-la; a
introdução, no prédio serviente, de pessoas para executar obras e manter em
bom estado o leito da passagem, contanto
que a sua duração e modo produzam o
menor incômodo possível –, à custa da
parte interessada, tudo com a finalidade
de permitir a sua utilização durante eventual curso da lide em sede recursal, o
que faço com fundamento no art. 273,
caput, e inc. I, do CPC.
Destarte, expeça mandado de intimação pessoal dos requeridos e de
remoção de obstáculos, ficando o(a)
Oficial(a) de Justiça autorizado(a) a
requisitar força policial – se necessário
–, a fim de assegurar o cumprimento da
presente medida liminar incidental.
Autorizo a senhora Escrivã a assinar mandado e ofícios pertinentes.
Condeno os réus ao pagamento, em
partes iguais, das custas e despesas processuais, bem como de honorários advocatícios em favor dos advogados da
parte autora, que ora arbitro em R$
1.800,00, tudo com fundamento no art.
20, § 4º, do CPC.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Dois Irmãos, 30 de dezembro de
1997.
Silvio Viezzer, Juiz de Direito.
267
Processo nº 13.574-154/98 – Ação Civil Pública
Autor: Ministério Público
Réu: Município de Horizontina-RS
Juíza prolatora: Simone Brum Pias
Ação civil pública. Legitimidade ativa do Ministério Público para demandar em matéria tributária. Nova planta
de valores dos imóveis fixados de acordo
com os ditames legais. Capacidade
contributiva respeitada – art. 145, § 1º,
da CF. Atualização decorrente de valorização imobiliária. Improcedência.
Vistos, etc.
O Ministério Público ajuizou ação
civil pública contra o Município de
Horizontina-RS, relatando, em suma, que
houve aumento abusivo da cobrança do
IPTU, a ser pago pelos munícipes em
1998, tendo em vista que a comissão
instalada pelo requerido para reavaliar
os valores venais dos imóveis aumentou estes de forma excessiva, chegando,
em alguns casos, a 300% de majoração.
Aduziu que a comissão não explicitou os critérios do art. 45 do CTM, já
que sendo excessivo o aumento, caberia ao requerido demonstrar a valorização dos imóveis, mormente frente à desvalorização destes na atual conjuntura
econômica e sensível diminuição das
transações imobiliárias.
Alegou que, não tendo o Município
comprovado a implementação dos requisitos do art. 45 da Lei nº 1.292/97,
deveria ter reajustado o IPTU pelos índices de inflação oficial. Ainda, que houve violação do art. 6º da Lei Municipal
nº 1.309/97 e do princípio constitucional da capacidade contributiva, disposto
no art. 145, § 1º, implicando confisco, já
que o pagamento exige, dos contribuintes, diminuição patrimonial.
Pediu a concessão de liminar, suspendendo a cobrança do tributo, autorizando os contribuintes a pagarem o
IPTU corrigido pelo IGP-M, e determinando a restituição dos valores pagos a
maior, com a fixação de multa diária
para o caso de descumprimento da
decisão. No mérito, pediu a procedência, com a condenação do requerido a
recalcular o valor do IPTU, de acordo
com inflação oficial de 1997, e a restituir os valores pagos a maior. Juntou
documentos.
A liminar foi deferida (fls. 195/196),
determinando a suspensão da cobrança
do IPTU, autorizando os contribuintes a
pagarem o imposto corrigido pelo IGP-M
de 1997, até final decisão, e determinando a restituição dos valores pagos a
maior, com índices superiores ao IGP-M,
em dez dias, com multa diária de 10
salários mínimos para caso de descumprimento.
Citado na pessoa de seu representante legal (fl. 199), o Município contestou,
alegando não haver relação de consumo, não sendo cabível a ação civil pública. Portanto, ilegítimo é o Ministério
Público para pleitear a revisão do IPTU.
No mérito, alegou não ter atentado
à Constituição Federal e Código Tributário Nacional e Municipal, sendo que
a comissão de reavaliação dos imóveis
268
foi criada por lei, aprovada por unanimidade pela Câmara de Vereadores, e
nomeados por portaria seus integrantes,
os quais, ao elaborarem a nova planta
de valores, observaram a capacidade
contributiva dos munícipes, prevendo
descontos e isenções.
Aduziu que os imóveis estão com
valor venal igual ou inferior a 70% do
valor de mercado, conforme laudos de
avaliação de ITBI. Pediu a extinção do
processo sem julgamento de mérito,
acolhendo a preliminar, ou a improcedência e a reconsideração da decisão
que concedeu a liminar. Juntou documentos.
Mantida a liminar (fl. 267), juntou o
Município comprovante do pedido de
suspensão da liminar, formulado junto
ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, que foi por este deferido, às fls. 302/303.
Com vista, manifestou-se o Ministério Público, em réplica, pela procedência da ação, em parecer. Instadas a especificar as provas que desejassem produzir, pediu o Ministério Público o pronto julgamento da lide, e o requerido
pediu a oitiva de testemunhas.
Designada audiência de instrução, o
Município desistiu das testemunhas arroladas, com o que foi concorde o Parquet, tendo sido homologado por este
Juízo. As partes apresentaram memoriais, tendo o Parquet pedido a rejeição
da preliminar de ilegitimidade e, no mérito, a procedência dos pedidos iniciais.
O requerido pleiteou a improcedência, ante a comprovação da legalidade
na majoração do tributo. Vieram os autos
conclusos para sentença. Relatei. Passo
a fundamentar e a decidir.
SENTENÇAS
A matéria discutida é exclusivamente de direito, estando o feito apto a ser
julgado, conforme o art. 330, I, do CPC.
A controvérsia reside na legalidade, ou
não, da majoração do IPTU, a ser pago
pelos munícipes no exercício de 1998.
O Ministério Público, antes da análise da matéria relacionada com o mérito, como defensor dos direitos difusos
e coletivos, é parte legítima para figurar
no pólo ativo da presente ação.
A respeito da matéria, assim já se
manifestou o Egrégio Tribunal de Justiça: “Ação civil pública. Matéria tributária. Legitimidade do Ministério Público.
Reajuste do IPTU. Índice inflacionário
de 1994 pelo IGP-M. Legitimidade ad
causam do Ministério Público. O Ministério Público tem legitimidade ad causam para demandar em ação civil pública, envolvendo matéria tributária, visto
que caracteriza a defesa de direitos
homogêneos, como tais entendidos os
que têm origem comum, que, por sua
vez, nada mais são do que espécie do
gênero interesses coletivos.
“Exegese do art. 129, III, da CF, c/c
o art. 81, III, do CDC. Soma-se que há
diversos diplomas legais ampliando a
legitimidade processual substitutiva, o que
reflete uma tendência moderna no sentido de facilitar a jurisdição no atacado,
porquanto possui a vantagem de alcançar idêntica solução a todos os que se
encontram em idêntica situação, com
enorme desafogo ao Judiciário, sem prejuízo da qualidade da prestação do serviço. (Apelação Cível nº 197121817, 1ª
Câmara Cível do Estado do Rio Grande
do Sul, Faxinal do Soturno, Rel. Des.
Irineu Mariani, julgada em 23-09-98, “DJ”,
de 14-05-99, p. 28)
SENTENÇAS
No mesmo sentido, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
Apelação Cível nº 197121817, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. Irineu Mariani, julgada em 23-09-98).
Afastada a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público, passo a
analisar o mérito. Necessário analisar-se, uma a uma, as alegações do autor.
I – Referiu o Parquet que a Comissão que elaborou a nova planta de
valores dos imóveis não atendeu ao
disposto no art. 45 do CTM – Lei nº
1.292/97, explicitando de forma minuciosa os critérios utilizados para a reavaliação dos imóveis, mesmo que por
amostragem.
Ressalte-se que a Comissão de Avaliação foi regularmente constituída, conforme determinado pela Lei nº 1.292/
97, sendo nomeada pelo Senhor Prefeito Municipal (fl. 211). Tal Comissão
elaborou a nova planta de valores, que
foi aprovada pela Lei nº 1.309/97.
Esta Comissão, nos termos do art. 45
do CTM, deveria ter observado os seguintes critérios: “A Comissão de avaliação deverá observar, além do disposto
nos arts. 53, 54, 55, 56 deste Código, os
seguintes critérios: “I – Quanto à construção: a) o metro quadrado de construção corrente no mercado imobiliário; b)
os valores estabelecidos em contratos
de construção; c) os preços relativos às
últimas transações imobiliárias; e d)
quaisquer outros dados informativos
pertinentes.
“II – Quanto ao terreno e às glebas:
a) o índice médio de valorização; b) os
preços relativos às últimas transações
imobiliárias; c) o número de equipamentos urbanos que serve o local; d) os
269
acidentes naturais e outras características que possam influir em sua valorização; e e) quaisquer outros dados informativos pertinentes”.
Afirmou o Ministério Público que a
Comissão não explicitou tais critérios ao
elaborar a nova planta de valores. No
entanto, o que a Lei nº 1.292/97, em
seu art. 45, exige é a observação de tais
critérios, e não a descrição de um a um.
Consoante ata da fl. 213, quando foi
colocado em discussão o projeto de lei
que estabelecia as plantas e tabelas de
valores dos imóveis urbanos da sede do
Município e Vila Cascata, houve “ampla
explanação com o mapa demonstrativo
dos novos valores. Após ampla discussão,
o projeto foi colocado em votação, sendo
aprovado por unanimidade de votos”.
Assim, verifica-se que quando da
aprovação da Lei nº 1.309/97 (fls. 42/
45) houve, sim, observação dos critérios do art. 45 da Lei nº 1.292/97, embora
naquela não tenham sido explicitados,
o que nem era exigido por esta. Nenhuma ilegalidade há, portanto, nas novas
plantas e tabelas de valores dos imóveis
urbanos da sede do Município e de Vila
Cascata, consoante se vê nas fls. 42/45,
no que tange à observação dos critérios
do art. 45 do CTM.
Afirmou o Parquet que poderia, ao
menos, ter sido demonstrada por
amostragem a observação de tais critérios, prova esta que veio aos autos através dos documentos das fls. 218 à 225,
que evidenciam que o novo valor atribuído aos imóveis referentes aos demonstrativos das fls. 218/224 estão abaixo do valor de mercado, demonstrados
pelo anúncio de vendas da fl. 225,
promovido pelos próprios proprietários.
270
Ainda, os documentos das fls. 228 e
229 revelam que o imóvel referido foi
vendido por valor bem superior à nova
avaliação do mesmo para fins de IPTU,
da mesma forma que os das fls. 230/
231, 232/233, 234/235, 236/237, 238/
239, 240/241, 243/244, 245/246, e ainda
as avaliações das fls. 248/249, 251/
255257/258, 260/261 e 263/264, que especificam em detalhes quais as características do imóvel, bem como a pontuação para fins de IPTU, evidenciando,
por amostragem, o porquê dos novos
valores. Isso sem considerar os mais
antigos, acostados nas fls. 247, 250, 256,
259, 262 e 265, que apenas foram juntados para servir de comparativo aos
documentos antes referidos, já que são
referentes aos mesmos imóveis.
Não se pode considerar o percentual de aumento, mas, sim, se os novos
valores se coadunam com a realidade e
têm razão de ser. Não tendo havido
supervalorização dos imóveis, a reavaliação não tem de ilegal ou imoral.
II – Ainda, alegou que houve violação ao art. 6º da Lei Municipal nº 1.309/
97, que estabelece as plantas e tabelas
dos imóveis, que dispõe: “Os valores
estabelecidos nesta lei serão reajustados
anualmente com base no índice oficial
da inflação”, uma vez que o tributo, em
alguns casos, foi majorado em mais de
300%.
Ocorre que tal dispositivo aplica-se
apenas àqueles em que não há nova lei,
observado o princípio da anterioridade,
e os valores são apenas corrigidos pelos
índices oficiais da inflação, o que ocorre
por simples decreto do Poder Executivo,
sem a intervenção do Poder Legislativo,
como ocorreu no caso em tela.
SENTENÇAS
Não pode o Município, por simples
decreto, aumentar o IPTU em valor
superior à sua simples atualização monetária, ex vi do art. 97, II, e § 1º, do
CTN. O § 2º do art. 97 do CTN diz
respeito somente à correção monetária
do valor venal do imóvel – base de
cálculo do imposto predial – não alcançando reavaliação econômica desse valor
venal. Diferente é o caso em exame,
onde houve lei, e não simples decreto,
podendo haver a reavaliação dos imóveis, e conseqüentemente do valor do
imposto, em patamar superior aos índices da inflação.
Conforme ensina Pinto Ferreira, as
leis, como normas fixadas pelo Poder
Público competente para reger as relações sociais de uma determinada comunidade, são elaboradas naturalmente
pelo Poder Legislativo, no regime constitucional moderno. (“Curso de Direito
Constitucional”, São Paulo, Saraiva, 1991,
p. 393)
Havendo lei, na acepção técnica da
palavra, pode, sim, ser atualizado o valor
venal dos imóveis, de acordo com o
fenômeno mercadológico, e também
com as mudanças estruturais dos mesmos, como ocorreu no caso em tela,
com a Lei nº 1.309/97.
III – Com relação à Constituição Federal, aduziu o Ministério Público que
houve desrespeito ao princípio da capacidade contributiva, previsto no art. 145,
§ 1º, segundo o qual é inútil instituir
imposto onde não há riqueza, mesmo
sendo o IPTU um imposto real. E mais,
que houve verdadeiro confisco, já que
os contribuintes apenas poderiam pagar
mediante redução patrimonial, o que é
vedado pelo art. 150, IV da Carta Magna.
SENTENÇAS
Relativamente à capacidade contributiva, é a mesma preservada na medida em que a incidência impositiva do
IPTU afete os imóveis de maior valor.
Como bem referido pelo Parquet, o IPTU
é um imposto real, que leva em consideração a propriedade, e não o proprietário.
A matéria foi examinada no Recurso
Extraordinário nº 206.970-1-MG, 2ª Turma, Supremo Tribunal Federal, em 1997:
“Naquela assentada – referindo-se ao
RE nº 153.771 – restou pacificado entendimento de que a progressividade
do IPTU, que é imposto de natureza real
em que não se pode levar em consideração a capacidade econômica do contribuinte (grifei), só é admissível, em face
da Constituição, para o fim extrafiscal
de assegurar o cumprimento da função
social da propriedade...”.
Conforme leciona Alfredo Augusto
Becker, citado por Sandra Lopez Barbon,
“o conceito de capacidade contributiva,
ao penetrar no mundo jurídico, é o
seguinte: a riqueza do contribuinte não
é a totalidade da riqueza do contribuinte, mas unicamente, um fato – signo
presuntivo de sua renda ou capital”. (“Do
IPTU”, Ed. Del Rey, 1ª ed., p. 85)
E observa a citada autora: “O princípio da capacidade contributiva, como
já estudado, é um desdobramento do
princípio da igualdade (ob. cit., p. 84).
De fato, o art. 150 da Carta Magna proíbe
‘instituir tratamento entre os contribuintes que se encontrem em situação equivalente’. A contrario sensu, não é admissível tratamento igualitário para aqueles que se encontrem em situações desiguais. E não se pode considerar que
o proprietário de um apartamento
271
condominial estritamente residencial,
esteja na mesma situação daquele que
é proprietário de uma unidade pertencente a um apart-hotel. Este desfruta de
atributos que aquele não possui. Não
podem ser tributados da mesma maneira, no que pertine ao imposto predial”.
Também Roque Antônio Carrazza
assinala que “enfatizamos que a capacidade contributiva, para fins de tributação por via do IPTU, é aferida em função do próprio imóvel (sua localização,
dimensão, luxo, características, etc.), e
não da fortuna em dinheiro de seu
proprietário. Não fosse assim, além da
incerteza e insegurança, proliferariam
situações deste tipo: pessoa hoje pobre,
mas que adquiriu caríssimo imóvel em
período economicamente faustoso de sua
vida profissional, estaria a salvo do IPTU.
Não nos parece que este seja o espírito
do dispositivo constitucional”. (“Curso
de Direito Constitucional Tributário”, Ed.
Malheiros, p. 68)
Assim, não merece ser acolhida tal
alegação ministerial. Da mesma forma
com relação ao confisco, o mesmo inocorre no caso em tela.
O Município foi dividido em diversas zonas ou setores fiscais (fl. 42), e
entre elas classificou os imóveis de
acordo com o padrão (alto, médio ou
baixo – fl. 43), classificando ainda as
construções (fl. 44).
No sentido da inexistência de confisco: “IPTU. Majoração depende de lei.
Atualização dos valores dos imóveis,
decorrente da valorização imobiliária,
mesmo que superior à própria desvalorização da moeda. O acréscimo decorrente, não pode ser considerado como
forma de confisco de bens, já que o valor
272
do tributo correspondente a uma pequena parcela, em relação ao valor do
imóvel. A atualização dos valores dos
imóveis, que se constituirão em base
para cálculo do imposto, encontra respaldo no art. 97, § 2º, do CTN. Doutrina: Hely Lopes Meirelles, “Direito Municipal Brasileiro”, 3ª ed, p. 841; Paulo
de Barros Carvalho, “Curso de Direito
Tributário”, p. 206; Regis Fernandes de
Oliveira, “Receitas Públicas Originárias”,
p. 36. Jurisprudência: “RT” nº 184/196;
“JTACESP” nº 106/251 (Apelação Cível
nº 0075001800, Londrina, Rel. Juiz Sérgio Rodrigues, 4ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada-PR, Julgada em
07-06-95, Acórdão nº 5.832, publicada
em 16-06-95) (grifei).
Se as pessoas terão dificuldades ou
não para pagar, o que até foi considerado pelo Município ao prever as isenções (art. 215 do CTM), não é tal fator
que é levado em consideração quando
se está a questionar a legalidade do
tributo, e até mesmo a moralidade dos
valores cobrados. Por tais razões, julgo
improcedente o pedido, revogando a
liminar inicialmente concedida. Sem
sucumbência pelo Ministério Público.
Nesse sentido: “Aforamento pelo
Ministério Público. Sucumbência. Inadmissibilidade. Aplicação dos arts. 17 da
Lei nº 7.347, de 1985, com a redação
SENTENÇAS
dada pelo art. 115 da Lei nº 8.078, de
1990, e art. 5º, inc. LXXIII, da CF, de
1988. É inaplicável o art. 20 do CPC
para a ação civil pública, movida pelo
Ministério Público, que for julgada improcedente, quando se não configura
malícia de parte do autor, por estar
atuando em defesa dos direitos e interesses da própria coletividade. Recurso
provido”. (Agravo de Instrumento nº
594090748, 1ª Câmara Cível do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul, Santa Maria, Rel. Des. Celeste Vicente Rovani, 13-09-94)
“Processo civil. Ação civil pública.
Ministério Público. Ônus da sucumbência. Isenção. O Ministério Público, como
defensor de interesses da sociedade, ao
ser vencido em ação civil pública, é desobrigado de pagar as despesas do processo e a verba advocatícia, ressalvada a
atuação maliciosa. Inteligência do art. 18
da Lei nº 7.347, de 24-07-86. Precedentes jurisprudenciais. Recurso provido”.
(Apelação Cível nº 595018979, 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, Canoas, Rel. Des.
Celeste Vicente Rovani, 04-10-95)
Registre-se. Intimem-se.
Horizontina-RS, 29 de fevereiro de
2000.
Simone Brum Pias, Juíza de Direito
Substituta.
273
Processo nº 00800410522 – Indenização por Danos Materiais e Morais – Trânsito
Número na Vara 23.751
Autor: Espólio de Dirceu Maldonado Santos
Ré: Agratemp – Peças e Serviços Eletrodomésticos Ltda.
Juiz prolator: Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa
Ação de indenização. Falecimento da
parte antes do ajuizamento da ação.
Conseqüente extinção do mandato outorgado ao advogado que firma a inicial. Extinção do processo por inépcia
da inicial.
Vistos, etc.
Espólio de Dirceu Maldonado Santos, representado por sua inventariante
Aracy Maldonado Santos, qualificada,
ajuizou ação de indenização por danos
materiais e morais, pelo rito ordinário,
contra Agratemp – Peças e Serviços Eletrodomésticos Ltda., com sede no Município de Gravataí, Av. Dorival Cândido Luz de Oliveira, nº 820, narrando,
em síntese, que, na madrugada do dia
21-11-98, Dirceu Maldonado dos Santos
estava na direção da Moto Yamaha/RD
135, placa 8866, transportando na carona sua namorada Nilva Teresinha Cabral
Haas, transitando pela Rua Guilherme
Shell, sentido Canoas–Porto Alegre e
quando atingia o quarteirão formado
pelas Ruas Nelson Paim Terra e Santa
Clara teve sua frente cortada pela GM
Chevy 500 L, placas ICP 0456, de propriedade da ré e conduzida por seu
empregado João Gustavo Santos Pereira, ocasião em que atingiu a motocicleta, causando lesões corporais em Nilva
e a morte de Dirceu. O fato ocorreu
porque condutor da Chevy não teve os
cuidados necessários e ingressou na via
preferencial. A vítima fatal era moço e
residia com a mãe, viúva, de parcos
recursos, a quem amparava com seu
trabalho de porteiro, onde percebia R$
223,00.
Com apoio no art. 159 do CC, inc.
V do art. 5º da CF e Súmula nº 37 do
STJ, pretende ver reconhecido seu direito de ser ressarcido dos danos materiais, quaisquer despesas envolvendo o
acidente, perda da moto e danos morais, sucumbência e gratuidade judiciária. A inicial foi instruída com procuração e documentos (fls. 06/63).
Provocada pelo despacho da fl. 64,
esclareceu a representante legal que o
titular da pretensão indenizatória deve
ser considerado o espólio de Dirceu
Maldonado Santos (fl. 66), isto em
13-10-99.
Recebida a emenda, foi a representante provocada para firmar declaração
de pobreza, para apreciação da assistência judiciária gratuita, em 18-10-99
(fl. 67). No dia 29-11-99, aportou aos
autos o pedido nos seguintes termos:
“Tendo em vista o despacho exarado
nos autos, vem o requerente juntar aos
autos a competente declaração de pobreza, para o fim de ser concedido o
benefício da assistência judiciária gratuita em favor do espólio e da representante do mesmo, nos termos da declaração em anexo. Anexo a esta petição
veio a declaração feita por Aracy
274
Maldonado dos Santos e assinada por
sua filha, Rosiclei Santos Maria, cuja declaração data de 12-05-99 (fl. 70)”.
Citação (fls. 75/76). Resposta: Argüiu
preliminar de carência de ação por não
ter o espólio legitimidade ativa para a
causa, nos termos do art. 76 e parágrafo
único do CC, c/c o inc. VI do art. 267
e incs. II e III do art. 295 do CPC. Em
outra preliminar requereu a suspensão
do processo até decisão definitiva do
feito criminal instaurado contra João
Gustavo, condutor da Chevy, conforme
inc. IV do art. 265 do CPC.
No mérito, admitiu a participação de
seu funcionário e veículo de sua propriedade no evento. Aduziu que João Gustavo não agiu com imprudência, negligência e imperícia. Foi a vítima fatal a
causadora do acidente, atuando com
culpa exclusiva quando dirigia a moto
sem sinais luminosos e em alta velocidade, retirando do condutor do veículo
da ré a previsibilidade do evento, requerendo a improcedência da ação.
Réplica (fls. 90/91). As partes prosseguiram debatendo e requereram prova oral (fls. 100 e 102). Audiência de
instrução: foram inquiridas duas testemunhas do autor e três da ré (fls. 118/
122), sendo que outra da ré foi inquirida na Comarca de Tramandaí (fl. 138)
e outra do autor foi inquirida em Porto
Alegre (fls. 148/150).
Memoriais: Pelo autor, examinou a
prova oral e requereu a procedência da
ação (fls. 156/159). A demandada reproduziu a preliminar de carência de
ação e em outra preliminar argüiu a
ausência de pressupostos de constituição e desenvolvimento regular do processo, porque a inventariante do espó-
SENTENÇAS
lio faleceu antes do ingresso deste feito,
extinguindo o mandato que fora outorgado ao bacharel que firmou a inicial,
conforme art. 1.316 do CC, requerendo
a extinção do feito com fundamento no
art. 243 e no inc. IV do art. 267 do CPC
ou a decretação da nulidade do processo a contar do falecimento da represente do espólio. No mérito, analisou a
prova oral e pediu a improcedência (fls.
164/169).
Dadas as circunstâncias, oportunizei
nova manifestação do autor, sobrevindo
o pedido de fl. 172, vazado nos seguintes termos: Tendo em vista a notícia do
óbito da Sra. Aracy Maldonado Santos,
então postulamos a suspensão do feito
pelo prazo de 30 dias, afim de que seja
oportunizada a regularização do pólo
ativo, eis que doravante impulsionará o
feito a sucessão da mesma. Assim,
emérito julgador, nos termos da exposição supra requer que Vossa Excelência
se digne em conceder prazo de 30 dias
para que seja regularizado o pólo ativo,
eis que a representante do espólio veio
a falecer (fl. 172).
Em seguida, sem que fosse apreciado referido pedido, aportou aos autos
nova manifestação do mesmo causídico,
requerendo a habilitação de Rosiclei
Santos Maria, Ione Sirlei Maldonado Santos e Luiz Fernando Maldonado Santos,
retificando-se o pólo ativo para constar
a sucessão de Aracy Maldonado Santos
(fl. 174), juntando procuração conjunta
(fl. 175), certidão de óbito (fl. 176) e
documentos de identidade (fls. 177/179).
Deferido este pedido (fl. 180), a ré
agravou na forma retida (fls. 182/188),
sobrevindo resposta dos habilitados (fls.
193/196). Relatei.
SENTENÇAS
DECIDO
A matéria que envolve os pressupostos processuais a legitimidade e regularidade de representação tem preferência sobre as demais que estão sendo
debatidas como preliminar.
Com efeito, a legitimidade da representação processual é de fundamental
importância, posto que matéria de ordem pública, por isso que pode e deve
ser objeto de conhecimento do Juiz em
qualquer fase do processo ou grau de
jurisdição, conforme explicitado no § 3º
do art. 267 do CPC. De outro lado,
operando-se vício processual insanável,
é autorizado ao Juiz a declaração, não
se lhe aplicando o princípio da preclusão (parágrafo único do art. 245 do CPC).
Como reclamou a demandada, a
outorga do mandato da fl. 06 ocorreu
em 09-02-99. Depois, para demonstrar a
necessidade da assistência judiciária
gratuita, o advogado juntou a declaração da fl. 70, em 29-11-99, mas esta
com data de 12-05-99, com a assinatura
de Rosiclei filha de Aracy.
Aracy, por sua vez, falecera em
24-07-99. A conseqüência do falecimento da outorgante é bem clara no art.
1.316 do CC: Cessa o mandato (inc. II)
pela morte... de uma das partes.
A Professora Maria Helena Diniz
comenta: I – Causas extintivas do mandato. O mandato cessará pela revogação, renúncia do mandatário, morte ou
interdição de uma das partes, mudança
de estado, término do prazo de duração
e conclusão do negócio. (in “Código
Civil Anotado”, Saraiva, 1997, 3ª edição,
p. 869)
Em seguida, arremata: IV – Morte de
qualquer dos contratantes. Por ser o
275
mandato intuito personae, cessará com
o falecimento de qualquer dos contratantes. (“RT” nos 239/237, 502/66, 225/
338 e 169/127; “RF” nos 77/509 e 134/
442; e “AJ” nos 100/149, 96/59 e 97/71)
Caio Mário da Silva Pereira assinala
que um dos caracteres do mandato é
ser ele intuito personae, celebrando-se
especialmente em consideração ao
mandatário, e traduzindo, mais que
qualquer outra figura jurídica, uma expressão fiduciária, já que o seu pressuposto fundamental é a confiança que o
gera. (in “Instituições de Direito Civil”,
Forense, 5ª edição, 1981, p. 352)
Quanto à extinção, faz o seguinte
comentário: A morte de qualquer das
partes faz cessar o mandato, que é
contrato intuito personae. (ob. cit., p.
367)
Portanto, tendo a ação sido ajuizada
em 23-09-99, sendo provocado a demonstrar a necessidade para a concessão da assistência judiciária gratuita e
juntada a declaração assinada pela filha
de Aracy em 29-11-99 (fl. 69), sendo
que a mesma Aracy falecera em 24-07-99
(fl. 176), operou-se a extinção do mandato antes mesmo do ingresso da ação.
Mesmo assim, sabendo do falecimento
de Aracy, o advogado, que sabendo não
ser mais seu representante, prosseguiu
agindo em seu nome.
Não é crível sua alegação de desconhecimento do fato, vez que teve contato com uma de suas filhas, quando foi
intimado para demonstrar a necessidade
para a concessão dos benefícios da
gratuidade. Demais disso, nos autos do
inventário negativo que tramita na 1ª Vara
Cível desta Comarca, em cujo processo
foi expedida a certidão de nomeação de
276
inventariante, foi intimada por duas
vezes para se manifestar, a fim de ultimar aquele feito, uma pela Nota de
Expediente nº 176/199, de 02-06-99, e
outra vez pela Nota nº 281/1999, publicada em 03-09-99. Nem neste, nem
nos autos do inventário, quando o
mesmo advogado tinha procuração, foi
capaz de informar o falecimento da
mandatária.
Tanto mais grave se mostra esta
circunstância que, agora, não é mais
possível salvar qualquer ato do processo, vez que a instrução foi encerrada
com produção de prova oral, sem que
este juízo e a parte contrária tivessem
conhecimento desta situação, o que
macula todo o feito.
Ademais, não se trata aqui de suspensão do feito para regularização da
representação, já que a extinção do
mandato não ocorreu durante a tramitação do processo, mas antes mesmo
dele ter início. Conseqüentemente, os
atos processuais não podem ser objeto
de convalidação. Não se trata, pois, de
atos nulos, mas de atos inexistentes,
diante da extinção do mandato mesmo
antes do ingresso da ação.
Mestre Galeno Lacerda ensina que:
As condições da ação devem ser vigiadas sempre que possível, no despacho
saneador, e, até antes, por ocasião do
despacho liminar. No Direito brasileiro,
essa investigação no saneador está
condensada na fórmula: “examinará se
concorre o requisito do legítimo interesse econômico ou moral”.
Na expressão “interesse legítimo”
reúnem-se as três condições – para que
o interesse seja “legítimo”, é curial que
haja possibilidade jurídica e legitimação
SENTENÇAS
para a causa. (in “Despacho Saneador”,
2ª edição, 1985, saFE, p. 80)
Por se tratar de princípio, e não de
regra prevendo nulidade, é que o vício
com que nasceu o processo é insanável,
pois o due process of law sempre fez
parte da estrutura da ciência do processo.
Sálvio de Figueiredo Teixeira preconiza: O outro grande princípio, na teoria das nulidades, é o devido processo
legal, na medida em que este, como um
dos pilares da ciência processual, contempla não apenas os princípios do juiz
natural (legalmente investido na função,
competente e imparcial) e do contraditório, mas, também, o princípio do procedimento regular, que reside na observância das regras e dos princípios que
informam e orientam o ordenamento
jurídico. (in “Prazos e Nulidades em Processo Civil”, Forense, 1987, p. 49)
Comentando sobre o que denominou de balizamentos do sistema brasileiro, o mesmo autor sintetiza: i) os atos
inexistentes carecem de jurisdicionalidade e jamais convalescem; m) os vícios dos atos processuais subordinamse a um sistema próprio, devendo ser
apreciados sob a ótica da ciência processual; e o) a teoria das nulidades, em
processo civil, orienta-se sobretudo por
princípios, destacando-se o do devido
processo legal e o da instrumentalidade
das formas e dos atos (ob. cit., p. 51).
As manifestações jurisprudenciais são
no mesmo sentido: “Processual. Ação
rescisória. Procuração. Não se conhece
de rescisória minguada do procuratório,
ao qual não se atende a juntada da
cópia reprográfica da procuração outorgada na ação primitiva, tanto mais que
SENTENÇAS
se denuncie a morte de alguns dos
autores outorgantes daquele antigo
mandato”. (in Superior Tribunal de Justiça, AR nº 502-AL, “DJ”, de 02-06-97, p.
23.749, 3ª Seção, Rel. Min. William
Patterson, site do STJ via Internet)
Em outro acórdão encontra-se: “Mandato. Morte. Extinção. A subsistência
excepcional do mandato, prevista no
art. 1.308 do CC, prende-se a que da
delonga possam resultar prejuízos para
o mandante ou seus sucessores”. (in
REsp nº 41.163-SP, “DJ”, de 03-04-95, 3ª
Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, site
do STJ via Internet)
O Egrégio Tribunal de Justiça já
declarou: “Apelação cível. Reexame de
pensão previdenciária. Ilegitimidade ativa. Tendo ocorrido o falecimento da
parte-autora antes do ingresso da ação,
resta caracterizada a inépcia da inicial,
na forma do art. 267, I, c/c o art. 295,
I, parágrafo único, III, todos do CPC.
Com a morte cessa a capacidade civil
extinguindo-se, por conseqüência, o
mandato outorgado anteriormente. Litigância de má-fé. Possível o enquadramento do procurador como litigante de
má-fé, quando demonstrada prática de
ato sem manifestação de vontade da
parte que alega representar. Segunda
apelação provida, prejudicada a primeira apelação e o reexame”. (AC nº
70000936377, 1ª Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul, Rel. Des. Henrique Osvaldo Poeta
Roenick, julgado em 21-06-00, site do
TJRS via Internet)
Finalmente, não há como negar que
o subscritor da petição inicial tinha
conhecimento da morte de sua
mandatária, ainda antes do ingresso desta
277
ação. Com efeito, como dito no relatório, ele foi intimado para juntar declaração da autora para demonstrar que
era necessitada para fins da assistência
judiciária gratuita, ocasião em que se
limitou a juntar declaração firmada por
sua filha Rosiclei que, embora acenado
discretamente pelo referido causídico,
não tinha autorização para assinar em
nome da mãe, conforme se vê claramente do documento da fl. 71, cuja
finalidade era outra.
Circunstância que não deixa dúvida
de que tinha ele ciência deste falecimento é a de que Rosiclei foi intimada
por mandado, em 08-06-00, para a audiência de instrução e julgamento designada para 12-06-00, conforme se vê
da fl. 126, na mesma Rua Araçá nº 1640,
Bairro Harmonia, nesta cidade. Portanto, foi intimada no mesmo endereço de
Aracy.
Não houve mudança de endereço.
Logo, não é crível que o causídico, tendo
que acompanhar o processo e juntar
elementos determinados pelo Juízo, não
tenha mais entrado em contato com
Aracy ou com sua filha Rosiclei por
longo período de quase dois anos, a
não ser que se tenha que admitir que
é normal o advogado só entrar em
contato pessoal com sua constituinte no
dia da audiência, sem que haja necessidade de preparação para enfrentamento da solenidade com as vicissitudes
que lhe são próprias.
Demais disso, tendo sido intimada
para a audiência, esta não compareceu,
mesmo tendo declarado ao Oficial do
feito que agora era ela a inventariante,
momento em que aceitou a contrafé e
deu a nota de ciente.
278
Por que o advogado não informou,
no dia da audiência, o falecimento de
sua constituinte? Por que Rosiclei não
compareceu na audiência? Estas providências certamente teriam abreviado o
processo. Forçoso é aceitar a idéia de
que não lhes interessava o encerramento do feito sem o julgamento do mérito,
pretendendo tirar proveito do que não
lhes pertencia de direito e de fato, solapando à ré até mesmo o direito de
impugnar a legitimidade da sucessão que
acabou por se habilitar somente depois
da instrução realizada.
Mesmo após a certidão do Oficial, já
na fase dos memoriais, o ex-representante voltou a quedar-se em silêncio
tumular sobre o falecimento de sua ex-constituinte, como se pode ver às fls.
156/159. O mais curioso ainda é que
cotejou as declarações de todas as testemunhas inquiridas, menos as declarações de Nilva Teresinha Cabral Haas, a
namorada de Dirceu, que estava na carona da moto e sobreviveu ao infausto
acontecimento e que mereceu especial
citação inclusive na petição inicial. Este
silêncio respeitoso não foi por acaso. É
que somente esta testemunha declarou
em juízo que Aracy havia falecido.
Sempre com maestria, Galeno
Lacerda imortalizou ensinamentos no
“despacho saneador”: A prova de que
não basta o interesse econômico, temo-la no processo simulado e fraudulento.
Aqui, abre-se um campo fecundo à
atividade saneadora do Juiz, atividade
que assume feição de autodefesa, pois
que é ele o sujeito passivo imediato da
SENTENÇAS
fraude processual. Defendendo-se, desforra a ordem jurídica da mais grave das
afrontas, aquela em que a malícia se
abisma em perverter o instrumento de
realização do direito e da justiça, em
veículo de injustiça e de má-fé. (ob. cit.,
p. 93)
Não tenho dúvida, portanto, em
afirmar que houve má-fé desde a propositura da ação, envolvendo especialmente o advogado e Rosiclei que veio
a se habilitar somente após a instrução
(fls. 174/179), procedendo de modo
temerário (inc. V do art. 17 do CPC), o
primeiro ao ingressar com a ação, e a
segunda ao deixar de provocar o juízo
acerca do falecimento de Aracy
Maldonado Santos.
Face ao exposto: 1) julgo extinto o
feito por inépcia da inicial com apoio no
inc. I do art. 267, c/c o inc. I do art. 295
e inc. III do parágrafo único do mesmo
artigo do CPC; 2) condeno o autor ao
pagamento das custas processuais e
honorários de advogado que estimo em
04 (quatro) URHs, tendo em vista o zelo
do profissional e o tempo despendido
para o seu serviço (§ 3º do art. 20 do
CPC); 3) revogo a gratuidade concedida
à fl. 72; e 4) condeno o advogado
subscritor da inicial e Rosiclei, solidariamente, ao pagamento de 02 (dois) salários mínimos como indenização em favor da ré (§ 1º do art. 18 c/c o § 4º do
art. 20 do CPC).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Canoas, 17 de maio de 2001.
Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa,
Juiz-Pretor.
279
Processo nº 08195021483 – Ação Pauliana
Número na Vara 10.647
5ª Vara Cível de Canoas
Autora: Dick Empreendimentos Imobiliários Ltda.
Réus: Ericka Helena Kindler Kirsch, Hugo Leonardo Kirsch, Eva Teresinha
Pires Kirsch, Evaldo Albino Kirsch, Hideko Shimabukuro Kirsch, Luiz Carlos
Kirsch, F. O. K., M. O. K., R. K. K. J., R. K. K. e R. S. K.
Juiz prolator: Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa
Ação pauliana. Condições da ação.
Eventus damni e consilium fraudis transmissão gratuita de bens pelo devedor,
quando já se encontrava em estado de
insolvência. Art. 106 do CC, ônus da
prova da solubilidade cabe ao devedor.
Anterioridade do crédito ao ato gratuito, caracterizada a insolvência, a anulação da doação independe de má--fé.
Procedência da ação.
Vistos, etc.
Dick Empreendimentos Imobiliários
Ltda., antiga Casa Dick Comércio de
Tecidos Ltda., por seu representante
legal, através de seu procurador, ajuizou ação pauliana contra Ericka (ou
Erica) Helena Kindler Kirsch, viúva, do
lar, CIC nº 186002470-04, Rua Pedro
Weingartner, nº 87, nesta cidade; Hugo
Leonardo Kirsch e sua mulher, Eva
Teresinha Pires Kirsch, casados, CIC nº
155437309-34, Rua Itacolomi, nº 10.289,
Curitiba-PR, Evaldo Albino Kirsch e sua
mulher, Hideko Shimabukuro Kirsch,
casados, CIC nº 164022350-91, Rua Cel.
Airton Plaisant, nº 1.599, Curitiba-PR, Luiz
Carlos Kirsch, divorciado, CIC nº
166850750-15, Rua Pedro Weigartner, nº
87, ap. 02, F. O. K. e M. O. K., menores
impúberes, representados por seu pai
Vili Alfredo Kirsch, Rua P. W., nesta
cidade, R. K. K. J., R. K. K. e R. S. K.,
menores impúberes, representados por
seu pai Ricardo Kindler Kirsch, Rua P.
W., nesta cidade, narrando que locou
para Restaurante Calçadão Ltda., propriedade de Ricardo Kindler Kirsch, imóvel na Rua 15 de Janeiro, nº 501, nesta
cidade, a contar de 1º-03-87, sendo afiançado por sua mãe Erika.
Os locativos deixaram de ser pagos
a contar de outubro de 1990, resultando
na ação de despejo que foi vitoriosa em
1º e 2º graus, tornando-se a autora credora dos locativos impagos, sendo que
as chaves do imóvel foram devolvidas
em 23-09-93.
A fiadora e principal pagadora, solidariamente responsável com a locatária, conforme Cláusula 12ª do contrato,
pretendendo não honrar com o que se
comprometera, doou aos filhos, noras e
netos demandados o imóvel constituído
de terreno e prédio de três pavimentos
situado na Rua Pedro Weingartner, nº
87, com suas instalações e benfeitorias,
além de sua parte ideal no imóvel constituído do terreno e prédio de madeira
da Rua Pedro Weingartner, nº 81, nesta
cidade, e em ambos reservando-se o
direito ao usufruto, junto ao 4º
Tabelionato de Porto Alegre, em
28-07-93, e registrada no Registro de
280
Imóveis de Canoas, em 06-08-93, após
a constituição do débito e antes da entrega das chaves do imóvel locado.
Com isto, acrescenta, a fiadora agiu
de forma fraudulenta contra seu credor, ficando insolvente e frustrando a
expectativa de receber o crédito decorrente do aluguel referido, que é anterior à data do ato impugnado, incidindo os arts. 106 e 109, e inc. II do 147
do CC.
Requereu a procedência da ação
para: (1) anular as doações feitas; (2)
cancelar as escrituras e seus registros; e
(3) sucumbência.
A inicial foi instruída com procuração e documentos (fls. 09/51). Citações:
fls. 59, 61, 63, 64, 65 e 75. Resposta: fls.
78/86. Admitiram a doação dos imóveis
caracterizados na inicial, sendo Ericka
doadora com idade avançada, com problemas de saúde, considerando ser o
momento para partilhar alguns bens em
vida, motivos que a levaram a tomar tal
atitude, mas que não caracteriza a fraude contra credores, já que as doações
ocorreram antes de sua citação nos autos
da ação de execução, pois esta foi distribuída em 15-05-95 e aquelas ocorreram em 28-07-93, enquanto a execução
contratual foi distribuída em 04-05-94.
Só tomou conhecimento do débito em
19-06-95, quando citada para a execução
contratual.
De outro lado, não participou da
ação de despejo, nem dela foi intimada,
não havendo má-fé de sua parte, nem
se tornou insolvente, sendo proprietária
de dois terrenos, sendo um terreno na
praia de Imbé e um terreno em Torres,
requerendo a improcedência da ação.
Acompanharam procurações e documentos das fls. 87/115.
SENTENÇAS
Réplica: fls. 116/123, com documentos (fls. 124/127), franqueados aos demandados que não se manifestaram
(certidão da fl. 128v.). Posteriormente,
os demandados juntaram mais dois instrumentos de mandato (fls. 139/140).
As partes prosseguiram se manifestando e admitiram ser a matéria de
Direito, comportando julgamento antecipado. Oficiou o Ministério Público (fls.
146/147). Após novas manifestações,
foram novamente os autos com vista ao
Ministério Público, cuja promoção foi
atendida, provocando a autora sobre o
prosseguimento (fl. 159v.), quando esta
reiterou o pedido de julgamento antecipado (fl. 163).
Os autos voltaram ao Ministério
Público suplicando exarar seu “parecer
final”, já que em mira o julgamento
antecipado, momento em que o Órgão
insistiu no sentido de deferir às partes
a apresentação de memoriais (fl. 164).
Vieram conclusos. Efetivamente, a
matéria é de Direito e por isso não há
razão para dilação probatória. O feito já
tem penosa tramitação de cinco anos,
não sendo compreensível a abertura de
novos prazos, o que só atrasaria ainda
mais a sua solução, razões pelas quais
entendo de exarar de logo a sentença
(inc. I do art. 330 do CPC). Relatei.
DECIDO
Rejeito a preliminar argüida pela
autora em sede de réplica, nos exatos
termos do manifestado pelo ínclito Promotor de Justiça à fl. 147, eis que na
contestação apenas houve equívoco,
quando a resposta foi em nome do
representante legal dos menores, uma
vez que deveria ser em nome das partes pelos pais representados. O defeito,
SENTENÇAS
entretanto, não chega a macular a resposta e muito menos leva à conseqüência acenada pela autora. Portanto, tenho
como respondida a ação na forma regulamentar.
No mérito, observa-se, preliminarmente, que são duas as condições da
ação revocatória: 1) eventus damni; e
2) consilium fraudis.
Os demandados admitiram lisamente
que houve as doações alegadas na inicial, o que de resto vêm demonstradas
pelas respectivas anotações nas matrículas existentes no Registro Geral do
Registro de Imóveis desta cidade (fls.
39/42).
De sua vez, a autora locou o imóvel
localizado na Rua 15 de Janeiro, nº 501,
nesta cidade, à Restaurante Calçadão
Ltda., sendo este representado pelo sócio
e demandado Ricardo Kindler Kirsch,
pai dos demandados R. K. K. J., R. K.
K. e R. S. K., cujo contrato, destinado
à atividade própria do Restaurante,
passou a vigorar em 1º-03-87 pelo prazo de um ano (fls. 31/32).
A demandada Ericka assinou na qualidade de fiadora, principal pagadora e
solidariamente responsável com o locatário pelas obrigações da avença até a
desocupação do imóvel, conforme se
vê da Cláusula 12ª (fl. 32).
A sentença de 09-12-91 (fls. 33/34)
e o acórdão de 18-03-93 (fls. 35/37)
dão conta de que o locatário deixou de
pagar os alugueres desde o mês de
outubro de 1990, sendo que a entrega
das chaves ocorreu em 23-10-93, conforme termo de entrega em cartório (fl.
38), documentos estes que não foram
impugnados.
Observo, desde logo, que os demandados R., R., R., Luis Carlos, F., M.
281
e a fiadora Ericka residem no mesmo
endereço, conforme se vê do mandado
da fl. 60 e contrato de locação em que
a co-ré E. prestou fiança, onde declarou
o seu endereço (fl. 32).
A resposta dos demandados centra-se em que a doadora e fiadora E. não
agiu com intenção de fraudar, pois não
sabia da existência da ação de despejo,
da execução e da execução contratual,
sendo que para esta última só foi citada
posteriormente ao ato das doações, e
além disto não ficou insolvente, restando-lhe dois terrenos.
Entretanto, sua linha de conduta
processual está equivocada, pois confunde “fraude contra credores e fraude
à execução”, situações que são inconfundíveis, até mesmo pela localização
legal onde são tratadas. A fraude contra
credores vem prevista na Seção V do
Capítulo II do Título I do Livro III do
Código Civil, enquanto que a fraude à
execução vem dimensionada no Capítulo IV do Título I do Livro II do Código
de Processo Civil. Os pressupostos de
uma e de outra são diversos.
A Professora Maria Helena Diniz faz
esta distinção: Ter-se-á fraude contra
credores quando a alienação de bens
lese os credores. Caracterizar-se-á a fraude à execução quando se der a alienação de bens do devedor, já comprometidos por obrigação sua, desde que esteja em curso alguma ação movida contra ele e desde que a execução recaia
futuramente sobre esses bens. Os atos
praticados em fraude contra credores, por
serem anuláveis, requerem uma ação para
o seu reconhecimento. Antes dela não
poderão os bens ser objeto de penhora,
pois, enquanto não for anulado o ato
fraudulento, prevalecerá a alienação... Na
282
fraude de execução causa-se dano ao
credor e atenta-se contra o poder jurisdicional, por subtraírem da penhora bens
que garantem as obrigações. Por tal razão o ato praticado será tido como ineficaz, não produzindo qualquer efeito
relativamente ao credor; logo, o bem
alienado sujeitar-se-á à execução. (in
“Código Civil Anotado”, 3ª edição, 1997,
Saraiva, pp. 127/127)
O fato de ter feito as doações antes
de ser citada para a execução contratual, portanto, é que legitima o exercício da ação pauliana, nos termos do art.
106 do CC, verbis: “Os atos de transmissão gratuita de bens, ou remissão de
dívida, quando os pratique o devedor já
insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, poderão ser anulados pelos
credores quirografários como lesivos dos
seus direitos”. (art. 109)
De sua vez, o art. 109 diz: “A ação,
nos casos dos arts. 106/107, poderá ser
intentada contra o devedor insolvente,
a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido
de má-fé”.
E assim mesmo é que tem entendido o Egrégio Superior Tribunal de Justiça: “Direito Civil e Processual Civil.
Embargos de terceiro. Suposta fraude
de execução. Requisito da citação válida. Fraude contra credores. Enunciado
nº 195 da Súmula do STJ. Embargos por
promissária-compradora com título registrado. Validade. Verbete nº 84 da
Súmula do STJ. Prequestionamento. Inocorrência. Verbetes n os 282 da Súmula
do STF e 5º e 7º da Súmula do STJ.
Dissídio. Dessemelhança fática. Recurso
desacolhido.
SENTENÇAS
“I – A existência de um processo de
execução, com citação válida, pressuposto para se reconhecer a fraude de
execução, distinta da regulada na lei
civil e nominada como fraude contra
credores. II – O promissário-comprador
que, em caráter irrevogável e irretratável,
recebeu o bem por meio de escritura
pública e cuidou de registrá-lo na matrícula do imóvel se equipara ao proprietário para efeito de defesa de seu direito, facultando-se-lhe manejar embargos
de terceiro. Ademais, ainda que se tratasse de contrato de compromisso de
compra e venda não-registrado, admissível seria a utilização dos embargos de
terceiro, nos termos da jurisprudência
iterativa deste Tribunal, sedimentada
pelo Enunciado nº 84 de sua Súmula.
III – A fraude contra credores não pode
ser reconhecida em embargos de terceiro, demandando ação própria”. (Enunciado nº 195 da Súmula do STJ)” (in
REsp nº 109.417-SP, “DJ”, de 26-10-98,
p. 121, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de
Figueiredo Teixeira, site do STJ via
Internet)
A ré Ericka, doadora e fiadora, nega
que tenha ficado em insolvência, alegando que possui dois imóveis. Entretanto, os imóveis referidos, como já
constou no início, trata-se de dois terrenos, sendo um na Praia do Imbé e
outro na Praia de Torres. Não trouxe
sequer a estimativa dos valores destes
bens. Sabe-se, entretanto, que terrenos
de praia não têm valor expressivo. A
prova pertence a Ericka, indubitavelmente, como se há de entender da
redação do inc. II do art. 333 do CPC.
Os Tribunais Superiores têm manejado com o mesmo padrão: “Processual
SENTENÇAS
civil. Fraude de execução. Insolvência.
Ônus da prova. Na fraude de execução,
não é do credor o ônus da prova do
fato negativo da insolvência, em face da
alienação de bens após o ajuizamento
da demanda. O encargo da prova de
solvabilidade é do demandado”. (in REsp
nº 13.988-ES, “DJ”, de 28-06-93, p.
12.886, 3ª Turma do Superior Tribunal
de Justiça, Rel. Min. Cláudio Santos, site
do STJ via Internet)
Em outra decisão, encontra-se:
“Fraude contra credores. Ação pauliana.
Ônus da prova. Incumbe ao devedor
provar a própria solvência. Tema ademais que, dando motivo, na origem,
para a admissão do recurso, não pode
ser examinado, neste caso, pelo Superior Tribunal de Justiça, porque a espécie teve solução à luz do conjunto fático,
simplesmente”. (in REsp nº 31.366-SP,
“DJ”, de 09-08-93, p. 15.229, 3ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça, Rel.
Min. Nilson Naves, site do STJ via
Internet)
Em que pese isto, a dívida foi estimada em R$ 152.025,45, valor expressivo e que, notoriamente, ultrapassa com
folga os valores agregados dos dois
terrenos constituídos de lotes de pequena metragem, como se pode observar
dos documentos das fls. 105 e 106.
Finalmente, a informação da inicial,
não-negada pelos demandados, é de que
as doações dos imóveis foram em favor
dos filhos, noras e netos de Ericka, e de
forma gratuita. Assim sendo, todas estas
circunstâncias apontam na direção alegada na inicial, isto é, de que E. se desfez
dos imóveis para fugir de sua obrigação
de pagar o débito solidário. E a afirmação tem inteira pertinência, eis que os
283
imóveis atingidos pela doação são os
principais imóveis de seu patrimônio,
sendo um deles constituído de um prédio de apartamentos (fls. 39/41), localizado na Rua Pedro Weingartener, nº 87,
servindo de residências tanto para Ericka
como para seus filhos, noras e netos e
o outro imóvel localizado na mesma rua,
e ambos localizados em zona urbana e
nobre desta cidade.
Conseqüentemente, o argumento da
resposta, segundo o qual Ericka, ao doar
seus imóveis mais valorizados, não tinha conhecimento da dívida, cai por
terra, sendo inadmissível que não tivesse conhecimento quando tudo ficou em
família.
“Serão suscetíveis de fraude os atos
jurídicos a título gratuito (doação, dote)
ou remissão de dívida (CC, art. 1.053),
quando os pratique independente de
má-fé, o devedor já insolvente, ou por
eles reduzido à insolvência”. (“RT” nos
568/43, 555/172, 434/143 e 526/176) (in
“Código Civil Anotado”, Maria Helena
Diniz, ob. cit., p. 126)
De seu turno, o Egrégio Tribunal de
Justiça do Estado vem sustentando a
mesma linha: “Obrigações. Fraude contra credores. Ação revocatória ou
pauliana. Presentes os três pressupostos
– crédito anterior, prejuízo ocasionado
e consilium fraudis, impõe-se a procedência da ação, basta a scientia fraudis
dessumível, no caso, por ser o negócio
entre irmãos. Não se exige crédito certo, senão que certa a causa geradora do
direito. Reconhecimento do débito por
parte do demandado. Ação julgada procedente com a anulação das escrituras
e insubsistência dos registros”. (in
“RJTJRS” nº 195/311)
284
Estão presentes, assim, (1) o eventus
damni e (2) o consiliun fraudis. A obrigação e o crédito efetivamente são
anteriores aos atos gratuitos.
Face ao exposto, julgo procedente a
ação para a finalidade de: 1) anular as
doações feitas por Ericka, fls. 145 a 147,
de 28-07-93 do 4º Tabelionato de P. A.;
2) tornar insubsistentes os Registros do
Registro de Imóveis de C.; e 3) conde-
SENTENÇAS
nar os demandados ao pagamento das
custas processuais e honorários de advogado que arbitro em 05 (cinco) URHs,
tendo em vista o trabalho do profissional e o tempo despendido para o seu
serviço (§ 4º do art. 20 do CPC).
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Canoas, 15 de maio de 2000.
Sylvio Antônio de Oliveira Corrêa,
Juiz-Pretor.
285
Processo Cível nº 01197980517-2212 – Ação Ordinária – Reconvenção
Autores: Sandra Mara Coelho Koch e Arthur Koch
Rés: Sucessão de Luiz Gonzaga do Prado e Noeli Costa do Prado
Juiz prolator: Tasso Caubi Soares Delabary
Ação para outorga de escritura definitiva com base em promessa de compra
e venda, irretratável e irrevogável. Ilegitimidade passiva afastada. Reconvenção
para rescisão contratual e reintegração
de posse julgada improcedente. Requisitos da outorga definitiva demonstrados.
Procedência da ação.
RELATÓRIO
Vistos, etc.
Sandra Mara Coelho Koch e seu
marido, Artur Koch, qualificados na inicial, ingressaram com a presente ação
ordinária, com pedido de antecipação
de tutela, contra Noeli Costa do Prado,
também qualificada nos autos, por si e
em representação à sucessão de Luiz
Gonzaga do Prado, aduzindo, em síntese, que através de contrato particular de
promessa de compra e venda de imóvel, adquiriram da requerida e de seu
falecido esposo o apartamento nº 503,
do Edifício Pampa, localizado na Rua
Dr. Flores, 307, nesta capital, matriculado no Registro de Imóveis da 1ª Zona
sob nº 40.849, tendo cumprido as duas
obrigações principais assumidas no referido contrato, cuja cópia anexam com
a inicial, ou seja, o pagamento integral
do preço exigido e as prestações decorrentes do financiamento imobiliário,
tendo sido imitidos na posse do referido imóvel. Com o falecimento do marido da requerida, titular da sucessão
demandada, o seguro de risco contra
morte ou invalidez permanente quitou
o valor do saldo devedor em favor do
agente financeiro.
O contrato foi celebrado mediante
cláusula de irrevogável e irretratável, e,
como no processo de inventário, a inventariante, ora requerida, se opôs à
regularização da propriedade do imóvel;
resta aos requerentes a presente ação
para que os demandados cumpram com
o contrato, outorgando a escritura definitiva, ou, por sentença, seja determinada a transferência do imóvel para seus
nomes, além de condenar os requeridos
ao pagamento de indenização por perdas e danos, correspondente ao valor da
diferença entre o montante representativo da propriedade plena do imóvel e o
de sua posse, proporcionalmente, entre
a data da citação e a data da satisfação
da pretensão.
Pedem a tutela antecipada. Transcrevem jurisprudência. Anexam documentos, dentre os quais o contrato
particular de promessa de compra e
venda de imóvel (fls. 14/16) e os recibos de pagamento do preço avençado,
além da quitação das prestações do financiamento habitacional.
A apreciação da antecipação da cautela foi diferida para após a formação
do contraditório. Citados os requeridos,
no prazo legal, apresentaram contestação e reconvenção.
Em resposta, rechaçam o pedido de
liminar, uma vez os autores não possuem
286
direito subjetivo líquido e certo capaz
de permitir a concessão da liminar pleiteada. No mérito, dizem que o documento celebrado entre as partes é pré-contrato de natureza aleatória, previsto
nos arts. 1.118 e 1.121 do CC, dependendo de contrato de compra e venda
a ser assinado futuramente, para efeito
de transferência do domínio do imóvel.
Assim, as partes contrataram uma obrigação de fazer, consistente na elaboração definitiva da compra e venda, que
não se concretizou até a morte do promitente e mutuário-varão, tendo o contrato perdido o objeto, pois o saldo
devedor que seria assumido pelos
promissários compradores desapareceu,
quitado que foi pelo seguro de vida.
Afirmam que o seguro de vida é
pessoal e constituído em favor dos sucessores da pessoa segurada, e não em
favor do agente financeiro, frente ao
qual é mera garantia para quitação do
débito. Negam direito à indenização
postulada pelos autores, porque de acordo com o art. 865 do CC, se a coisa se
perder, sem culpa do devedor, antes da
tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para
ambas as partes.
Com a quitação do saldo devedor
do financiamento, pelo seguro de vida,
contra a morte do mutuário-varão, o
contrato preliminar, objeto da lide, perdeu o seu objeto e, face à ausência da
contratação em definitivo da compra-evenda do imóvel, o pedido dos autores
tornou-se juridicamente inviável. Na
hipótese de se considerar a promessa
de compra e venda como definitiva,
aduzem que não estavam obrigados a
cumprir a sua parte enquanto os reque-
SENTENÇAS
rentes não cumprem a sua, ou seja, a
transferência do saldo devedor, que
deixou de existir pela quitação através
do seguro de vida. Pedem a improcedência da ação.
Em contra-ação (reconvenção), alegam que firmado o contrato de promessa de compra e venda entre as partes,
tendo os autores-reconvindos utilizado
o nome do de cujus durante dez anos,
sem transferir o contrato para seus
nomes; com a morte do mutuário-varão
e a quitação do imóvel, o contrato
perdeu
o
objeto,
tornando-se
inexeqüível. A propriedade imobiliária
transmitiu-se imediatamente aos sucessores do falecido. Como os autores-reconvindos continuaram ocupando o
imóvel, é justo que sejam eles compelidos a pagarem os locativos. Pedem a
procedência da reconvenção para que
os reconvindos sejam condenados a
devolverem o imóvel e a pagarem um
valor a título de locação desde o sinistro, que determinou a quitação do contrato de mútuo hipotecário.
Os autores replicaram a contestação
e contestaram a reconvenção. Nesta,
aduzem que as rés-reconvintes pretendem a reintegração de posse do imóvel
sem promoverem a rescisão do contrato
e sequer aventam a hipótese de devolver o valor recebido, devidamente atualizado, e demais gastos efetuados com
o imóvel, assim como imposto e outros.
Opõem a carência do pedido reconvencional de reintegração por ausência
dos pressupostos essenciais para a formulação do pedido: falta de prévia
notificação, incomprovação do esbulho
ou turbação e omissão quanto à devolução do valor recebido, merecendo a
SENTENÇAS
reconvenção extinção nos termos do art.
267, IV e VI, do CPC. No mérito, dizem
que sua posse é garantia por contrato
regular, em pleno vigor há mais de dez
anos, tendo cumprido sempre todas as
obrigações previstas na avença.
O pagamento de indenização pressupõe a existência de algum dano, o que
não foi demonstrado pelos reconvintes.
Não estão demonstrados nenhum dos
requisitos do art. 927 do CPC a ensejar
o pedido reintegratório. Concluem com
o pedido de extinção da reconvenção,
pelo acolhimento das preliminares, ou,
no mérito, a sua improcedência.
Houve manifestação das rés-reconvintes que insistem na tese da natureza
aleatória do contrato e no seu descumprimento em vista dos autores não terem transferido a dívida hipotecária para
seus nomes. Alegam a ilegitimidade
passiva ad causam, porque os autores
adquiriram o imóvel de José Carlos
Duarte da Costa, a quem o falecido Luiz
Gonzaga e a ré Noeli haviam vendido
o imóvel, cujos direitos foram cedidos
aos autores. Sustentam a possibilidade
de alegarem a ilegitimidade a qualquer
tempo. Anexam cópia de termo de
declarações, através do qual José Carlos
manifesta anuência com os termos da
promessa de compra e venda e pedem
a intimação do mesmo.
Nova manifestação dos autores, onde
aduzem que a cada manifestação das
rés-reconvintes a defesa fica mais confusa, chegando o absurdo de alegarem
ilegitimidade passiva, apesar do instrumento de promessa de compra e venda
firmado pelos mesmos. Embora se dizendo ilegítimos para a ação, mantêm a
reconvenção, em flagrante contradição.
287
Atribuem a conduta das rés-reconvintes
a uma aventura jurídica, pedem o julgamento antecipado do processo e a condenação das demandadas como litigantes de má-fé. É o relatório.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Não obstante o pedido formulado
pelas rés-reconvintes, para oitiva de
testemunha, o processo comporta julgamento antecipado, nos termos do art.
330, eis que versa matéria de fato e de
direito que independe de outras provas
além daquelas que já integram o feito.
A serôdia alegação de ilegitimidade
passiva ad causam não merece a menor consideração, porque destituída de
fundamento legal. A prova documental,
especialmente o contrato que sustenta o
pedido dos autores, firmado pelo de
cujus e pela requerida Noeli, contrariam a invocada ilegitimidade e colocam
os demandados como partes legítimas
para suportarem a ação nos termos em
que proposta.
A alegação é destituída de convicção, posto que, não obstante se dizerem ilegítimos para a ação, em momento algum cogitam de desistência da
reconvenção. Ora, somente pode
reconvir quem for parte legítima para
responder, uma vez que é pressuposto
para a reconvenção o liame e conexão
entre a ação e a reconvenção (art. 315).
2.1. Da ação. Versa a espécie ação
ordinária através da qual os autores
pretendem compelir os demandados a
outorgarem a escritura definitiva do
imóvel prometido a venda.
Através do “contrato particular de
promessa de compra e venda de imóvel”, cuja cópia consta à fl. 14, o de
288
cujus Luiz Gonzaga do Prado e sua
consorte, a ré Noeli Costa do Prado,
prometeram vender o imóvel constituído de apartamento no quinto pavimento do edifício Pampa, com área
construída de 60,20 m², localizado na
Rua Dr. Flores, nesta Capital, matriculado sob nº 40.849, hipotecado à Companhia Real de Crédito Imobiliário, em
virtude de contrato habitacional pelo
Sistema Financeiro da Habitação, mediante as condições estabelecidas no contrato, dentre as quais o pagamento do
preço de forma parcelada, prevendo a
imissão dos promissários na posse do
imóvel e cláusula de irrevogabilidade e
irretratabilidade.
Com a inicial, os autores comprovam o cumprimento das obrigações assumidas, especialmente o pagamento do
preço, através dos recibos das fls. 17 à
19, diretamente aos promitentes, e mais
o pagamento das prestações junto ao
agente financeiro, durante dez anos.
A imissão na posse do imóvel está
provada pelos documentos das fls. 56 à
59, através dos quais se vê que o autor-varão tem licenciada atividade pela
Prefeitura Municipal, no ramo de consultório médico, no endereço do imóvel, desde 1987, assim como mantém
cadastro no mesmo local como usuário
de energia elétrica, o que não deixa
margem de dúvida de que efetivamente
os promissários-compradores foram
imitidos na posse do imóvel contratado.
Alegam os demandados que o contrato se extinguiu pela quitação do saldo devedor, pelo seguro, em face da
morte do mutuário, como que não foi
cumprida a cláusula contratual que previa a transferência do saldo devedor
SENTENÇAS
para o nome dos promissários, não
passando a avença de um pré-contrato
de natureza aleatória, subordinada a
evento futuro que não se concretizou.
Não obstante a transcrição de doutrina de Orlando Gomes para justificar
suas alegações, face às peculiaridades
do pacto firmado entre as partes, é o
mesmo autor quem ensina, verbis: “A
promessa de venda como contrato preliminar propriamente dito desapareceu
praticamente do comércio jurídico, devido à superioridade manifesta de outro
negócio jurídico que continua designado pelo mesmo nome, mas é nitidamente distinto, bem como em razão da
tendência para a ele assimilar toda promessa que não contenha o pacto de
arras penitenciais.
“Poder-se-ia denominar esse negócio jurídico distinto pela expressão compromisso de venda, a fim de evitar a
confusão reinante na doutrina, com
repercussão na jurisprudência. Costuma-se chamá-lo promessa irrevogável de
venda (grifei), valendo a qualificação
como nota distintiva, que não conduz à
sua verdadeira natureza jurídica.
“Trata-se, com efeito, de um contrato que, bem analisado, não encerra
promessa recíproca de contratar, mas,
apenas, a obrigação de, preenchidas
certas condições ou chegada a oportunidade, praticarem o ato necessário à
efetivação do intento que uniu suas
vontades.
“Concluído o compromisso, não pode
qualquer das partes arrepender-se. Ele
é irretratável (grifei). Levando-o ao
Registro de Imóveis, impede-se que o
bem seja alienado a terceiro. Imite-se
na posse do imóvel e se comporta como
SENTENÇAS
se fora seu dono. Preenchidas as condições que o habilitam a pedir o título
translativo de propriedade, obtém-se,
através de sentença, se a outra parte
não quiser ou não puder firmá-lo. Admite-se a execução coativa sob forma
específica, ocorrendo, nesse caso, a
adjudicação compulsória”.
Ora, conforme já ficou visto, o contrato firmado entre as partes foi em
caráter irrevogável e irretratável com a
imissão dos promissários na posse do
imóvel. Assim, uma vez cumpridas as
obrigações contratuais quanto ao pagamento do preço, o que também está
comprovado nos autos, e nada nesse
sentido foi alegado em contrário pelos
demandados durante a instrução, foram
adimplidas todas as obrigações assumidas, tornando o negócio definitivo.
Portanto, desfeita a confusão quanto
à natureza do contrato, através da própria lição de Orlando Gomes, eis que
na verdade não se trata de contrato preliminar, mas promessa irretratável de
venda, e muito menos de contrato aleatório, que é aquele cuja prestação a
que se compromete uma das partes
depende de evento futuro e incerto (art.
1.118 do CC), o que não é o caso sob
exame, onde o contrato é sinalagmático-comutativo, isto é, obriga ambas as
partes na mesma proporção.
O fato de prever cláusula de transferência do saldo devedor para o nome
dos compromissários (item 3, letra b)
pode significar condição, nunca a álea,
que deriva do latim, cujo sentido é sorte,
acaso, etc.
As prestações e contraprestações a
que se obrigaram as partes eram todas
certas, ou seja, tratando-se de compra e
289
venda, os promitentes comprometeram-se a dar o bem, enquanto os
promissários a pagar o preço, o que
não depende de nenhum evento futuro,
eis que as prestações desde sempre
foram conhecidas.
Desta forma, não há que se falar em
extinção do contrato por perda do
objeto, face à quitação do saldo devedor, pois pelas condições do contrato o
que as partes celebraram foi a compra-e-venda do bem comprometido, que
por questão de conveniência ou oportunidade não chegou a ser formalizada
a escritura pública, que é da substância
do ato, o que não significa que, em face
disso, pode a parte-devedora do bem
deixar de concretizar o negócio, uma
vez cumprida pela outra parte todas as
condições estabelecidas, o que, lhe confere direito à adjudicação compulsória,
para transcrever o imóvel em seu nome.
A cláusula em caráter irrevogável e
irretratável obriga os contratantes e seus
sucessores, nos termos do art. 928 do
CC, consoante se observa das jurisprudências colacionadas com a inicial, cujos
ven. arrestos estão reproduzidos nos
autos e, ao contrário do que dizem os
demandados, reporta situação semelhante a questão debatida, aos quais se acrescenta mais os seguintes julgados, que
tratam matéria da mesma espécie: “Compromisso de compra e venda. Imóvel.
Outorga de escritura definitiva. Obrigação de fazer. Quitação total do preço
perante o agente financeiro, com a morte
do promitente-vendedor. Sub-rogação
dos herdeiros nos direitos da financeira.
Inadmissibilidade, em face do art. 928
do CC e de disposição clausular.
Irrelevância de que o financiamento não
290
tenha sido transferido para o nome do
compromissário-comprador”. (TJSP, AC
nº 159.133-2, 16ª Câmara Cível, Rel. Des.
Bueno Magano, julgada em 19-09-90)
(“RJTJESP” nº 126/64)
“Compromisso de compra e venda.
Cessão de direito sobre imóvel financiado. Falecimento do promitente-vendedor antes da outorga da escritura definitiva. Obrigação que deve ser cumprida pelo espólio – irrelevância do fato
de ter sido extinto o contrato de mútuo
e quitado o débito pelo falecimento do
mutuário. Inexistência de sub-rogação
nos direito do agente financeiro pelos
herdeiros. Se o promitente-vendedor e
cedente de todos os direitos referentes
a imóvel financiado vem a falecer antes
de a escritura definitiva vir a ser outorgada em face da financeira, esta obrigação deve ser cumprida pelo espólio, pela
viúva-meeira e pelos herdeiros (grifei).
Não constitui embaraço ao cumprimento da obrigação o fato de ter sido
quitado o crédito da financeira e extinto
o contrato de mútuo pelo falecimento
do cedente, pois seu espólio não se
sub-roga nos direito do agente financeiro que recebeu o saldo restante da seguradora, não podendo exigir do cessionário o pagamento desse saldo, nem
rescisão do contrato de cessão”. (AC nº
129.533-2, 16ª Câmara Cível, TJSP, Rel.
Des. Bueno Magano, “RT” nº 630/113)
Os autores além de cumprirem com
as obrigações diretamente com os
promitentes-vendedores,
igualmente
cumpriram, durante mais de dez anos,
com as obrigações perante o agente
financeiro, pagando as prestações do
financiamento habitacional, em cujo
valor está embutido o preço do seguro
SENTENÇAS
que permitiu a quitação do saldo devedor. Assim, a extinção do contrato pela
quitação do saldo somente foi possível
em virtude do cumprimento regular da
obrigação também perante a seguradora. Em que pese o seguro estar em
nome do varão-promitente, de há muito
o contrato de fato já não mais lhe
pertencia, eis que cedido aos autores.
Desta forma, não havendo sub-rogação dos herdeiros no direito da
financeira, conforme lição inserta nos
arrestos transcritos, não podem os requeridos invocar direito próprio para
deixar de cumprir o contrato.
Os requeridos foram solicitados a
cumprirem a obrigação, voluntariamente, inclusive através de pedido formulado nos autos do inventário, onde o
imóvel sequer foi arrolado, tal a consciência de que o imóvel não mais integrava o espólio, porém se negaram a
fazê-lo. Natural que sendo os autores
compelidos a ingressarem judicialmente
para o cumprimento da obrigação, a
recusa vem em prejuízo dos autores que
não podem dispor plenamente dos direitos de proprietários, havendo, sem
dúvida, um diferencial na qualificação
do título entre a posse a título de contrato particular e o domínio pleno através da competente escritura levada a
registro no Álbum Imobiliário.
Este referencial representa uma perda ou prejuízo aos autores, que estão
impedidos do exercício pleno sobre o
imóvel por obra dos requeridos que se
negam a regularizar o direito. Este diferencial estimo em um terço do valor do
imóvel, pois inegável que a mera posse
a título particular não tem o mesmo
valor que o domínio pleno, que está
SENTENÇAS
sendo sonegado aos autores pelos requeridos.
2.2. Da reconvenção. Em reconvenção, postulam os reconvintes a rescisão
do contrato e a reintegração na posse
do imóvel objeto de contrato particular
de compra e venda.
Evidente que para que haja a rescisão do contrato necessário o descumprimento das obrigações assumidas, o
que, conforme ficou assentado durante
o exame da ação, não pode ser atribuído aos autores-reconvindos, que cumpriram regiamente com as obrigações
contratadas, não só diretamente com os
promitentes, pelo pagamento do preço
ajustado, como com o agente financeiro, através da quitação das prestações
durante dez anos.
O fundamento do pedido de rescisão, falta de transferência do saldo
devedor para o nome dos promissários,
não pode constituir motivo para a rescisão do contrato, uma vez cumpriram
eles com todas as obrigações contratuais. Aliás, a transferência estava vinculada ao pagamento da parcela prevista no item b e a imissão na posse
do imóvel.
A parcela foi regularmente paga e
independente da transferência os
promitentes imitiram os promissários na
posse do imóvel, conforme ficou visto
durante o exame da ação, com o que,
lícito admitir que a transferência do saldo
devedor não se constituía em obrigação
principal ou condição de validade do
contrato, do contrário, certamente, os
reconvintes já teriam notificado os autores reconvindos para cumprirem a
obrigação, o que não ocorreu, não
podendo agora, após terem estes pago
291
o financiamento habitacional durante dez
anos, rescindir o contrato sem se
prontificarem a restituir o valor que os
autores despenderam, a pretexto de
perda do objeto sem culpa dos contratantes.
Não se pode desconhecer ou fechar
os olhos a uma realidade do sistema
financeiro habitacional, qual seja a existência dos conhecidos “contratos de
gaveta”, aos quais a jurisprudência vem
reconhecendo como legítimos, emprestando-lhes validade, tantas são as
onerações dos contratantes para o
refinanciamento do saldo devedor, que
acabam os contratos permanecendo em
nome do mutuário originário. Além disso, os reconvintes não buscaram colocar os reconvindos em mora, para extrair desta as conseqüências que lhes
permitiria rescindir o contrato.
Nesse passo, a posse dos reconvindos
é legítima, uma vez transmitida pelos
próprios promitentes em razão de contrato particular de promessa de venda
com cláusula de irrevogabilidade e
irretratabilidade, onde todas as obrigações foram cumpridas pelos contratantes, inexistindo causa para a rescisão.
Diante disso, não procede a reconvenção.
3. DISPOSITIVO
Pelo exposto, julgo procedente a
ação para o fim de condenar as requeridas, sucessão de Luiz Gonzaga do
Prado, representada pela inventariante
Noeli do Prado, bem como esta, em
nome pessoal, a outorgarem a escritura
definitiva do imóvel objeto do contrato,
o apartamento nº 503, do Edifício Pampa, localizado no quinto pavimento do
nº 307 da Rua Dr. Flores, Centro de
292
SENTENÇAS
Porto Alegre, matriculado sob nº 40.849,
no prazo de trinta dias, sob pena de
multa diária equivalente a um salário
mínimo, bem como condenar as requeridas a indenizarem as perdas e danos
aos autores, consistente no diferencial
entre o valor correspondente ao domínio pleno do imóvel e a posse derivada
de contrato particular, que arbitro em
um terço do valor do imóvel, a ser
liquidado por arbitramento, tomando por
base a estimativa fiscal para lançamento
do IPTU; julgo improcedente a reconvenção.
Face ao julgamento de mérito, onde
existente mais do que a mera verossimilhança do direito invocado, indepen-
dente do trânsito em julgado, antecipo
a tutela pleiteada para o fim de excluir
o imóvel objeto da questão do inventário da sucessão de Luiz Gonzaga do
Prado, intimando-se para tanto a inventariante.
Condeno as rés-reconvintes nas custas da ação e da reconvenção e em
honorários advocatícios que arbitro em
20% do valor atribuído às demandas, já
consideradas ação e reconvenção, consoante o disposto no art. 20, § 3º, do
CPC.
Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 06 de abril de 1998.
Tasso Caubi Soares Delabary, Juiz de
Direito.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
Processo Cível nº 01197980517/002212 – Embargos de Declaração
Autores: Sandra Maria Coelho Koch e Arthur Koch
Rés: Noeli Costa do Prado e Sucessão de Luiz Gonzaga do Prado
Juiz prolator: Tasso Caubi Soares Delabary
RELATÓRIO
Vistos, etc.
Os autores, ora embargantes, face à
sentença de folhas, que julgou procedente a ação e improcedente a
reconvenção, dispondo quanto à ação o
seguinte: “Julgo procedente a ação para
o fim de condenar as requeridas, sucessão de Luiz Gonzaga do Prado, representada pela inventariante Noeli do
Prado, bem como esta, em nome pessoal, a outorgarem a escritura definitiva
do imóvel objeto do contrato, o apartamento nº 503 do Edifício Pampa, localizado no 5º pavimento do nº 307 da
Rua Dr. Flores, Centro de Porto Alegre,
matriculado sob nº 40.849, no prazo de
trinta dias, sob pena de multa diária
equivalente a um salário mínimo, bem
como condenar as requeridas a indenizarem as perdas e danos aos autores,
consistente no diferencial entre o valor
correspondente ao domínio pleno do
imóvel e a posse derivada de contrato
particular, que arbitro em um terço do
valor do imóvel, a ser liquidado por
arbitramento, tomando por base a estimativa fiscal do lançamento do IPTU;
julgo improcedente a reconvenção.
“Face ao julgamento de mérito, onde
existe mais do que mera verossimilhança do direito invocado, independente
do trânsito em julgado, antecipo a tutela
pleiteada para o fim de excluir o imóvel
SENTENÇAS
objeto da questão, do inventário da
sucessão de Luiz Gonzaga do Prado,
intimando-se para tanto a inventariante”; opõem os presentes embargos de
declaração para suprir omissões da sentença consistente em: 1) determinar às
rés-embargadas à inclusão do imóvel
no inventário de Luiz Gonzaga do Prado, mencionando a obrigação de outorga de escritura pública aos demandantes;
2) atender a parte final do pedido contido no item 6.5. da inicial para que, em
caso de recusa pelas rés em outorgar a
escritura definitiva, que a sentença supra a vontade das partes, ordenando ao
Registro de Imóveis da 1ª Zona que
registre a decisão, operando a transmissão da propriedade do bem aos autores; e 3) que disponha sobre o pedido
de condenação, a título de indenização,
do pagamento dos honorários advocatícios contratados pelos autores-embargantes com seus patrocinadores,
consoante contrato de honorários anexo aos autos.
FUNDAMENTAÇÃO
Conheço dos embargos posto que
tempestivamente manifestados. Segundo o art. 535, inc. I, do CPC, cabem
embargos de declaração quando omitido ponto a que o Juiz ou Tribunal devia
pronunciar-se.
Em relação ao primeiro ponto dos
embargos, relativo ao deferimento da
tutela antecipada asseguratória, quando
foi determinada a exclusão do bem do
inventário para evitar que seja partilhado aos herdeiros e acabe obstaculizando
a decisão, tenho que não merece reparo, pois o pedido formulado pelos autores de suspensão do inventário acarretará embargo à conclusão do procedi-
293
mento sucessório, podendo advir prejuízo aos herdeiros e eventualmente a
terceiros, relativamente a outros bens
que integrem a herança, não parecendo
a melhor forma de assegurar o cumprimento do julgado, não vendo onde possa
a fórmula utilizada pelo juízo prejudicar
direito dos autores-embargantes.
Aliás, o propósito da tutela antecipatória, de garantir os efeitos do cumprimento da obrigação, está perfeitamente
ressalvado pelo comando contido na
sentença, sem prejuízo para o curso
normal do inventário. O próprio pedido
constante no item 6.2 da inicial é explícito quanto a isso, verbis: “A concessão
de tutela antecipada/asseguratória com
o intuito de garantir os efeitos do cumprimento da obrigação de outorgar a
escritura
pública
definitiva
aos
demandantes, sustando o inventário do
imóvel, objeto de ação, e a conseqüente partilha do bem ou mesmo a transmissão aos herdeiros ou a terceiros”.
Sustar o inventário do imóvel é excluí-lo do rol dos bens partilháveis.
Outra não poderia ser a solução, uma
vez acolhido o pedido, ficou definido
que o imóvel não mais pertencia à sucessão, eis que comprometido através
de instrumento particular com cláusulas de irretratabilidade e irrevogabilidade, pendendo, tão-somente, a formalização da escritura para a transferência do domínio. Sendo assim, quanto ao item primeiro dos embargos,
entendo inexistir omissão ou contradição a ser suprida, mantendo o comando sentencial.
Relativamente ao item segundo, referente ao pedido para que a sentença
substitua a vontade das partes, caso as
rés se recusem a formalizar a escritura,
294
efetivamente a sentença omitiu, considerando, especialmente, que foram as
rés condenadas à obrigação de fazer a
escritura definitiva, para o que foi fixado prazo de trinta dias, mediante multa.
Partindo do pressuposto de que não-cumprido o julgado em sua primeira
parte, a sentença substituirá a vontade
dos compromitentes-vendedores, constituindo-se em título hábil para operar a
transferência do domínio junto ao Registro de Imóveis, com caráter de adjudicação compulsória.
Já referente ao terceiro item dos embargos, relativo à condenação das rés
ao pagamento dos honorários contratados com seus patrocinadores, através
do contrato anexado aos autos, a título
de indenização, independente da sucumbência nestes autos, tenho por improcedente, uma vez o referido contrato de honorários é omisso quanto ao
valor da sucumbência, presumindo-se
que compete à parte-contratante, como
forma de ressarcir-se do valor despendido, com o que haveria dupla oneração
às rés ao mesmo título, condenação
pelos honorários contratados a título de
SENTENÇAS
indenização e na sucumbência, por imposição do art. 20 do CPC.
DISPOSITIVO
Posto isso, conheço dos embargos de
declaração para suprir a omissão
tão-somente do item segundo, ou seja,
para determinar que não atendendo as
rés a condenação de prestarem a escritura
pública de transferência do imóvel litigioso no prazo fixado na sentença, independentemente da multa fixada, ficam os
autores autorizados a levarem a sentença
a registro no Álbum Imobiliário, ordenando ao Registrador que opere a transmissão da propriedade do imóvel litigioso
aos autores, atendidos os requisitos fiscais, improcedendo quanto aos outros dois
pontos embargados, ou seja, referente à
tutela antecipatória, ficando mantido o
comando sentencial, assim como o indeferimento de condenação, a título de indenização, pelo valor dos honorários
contratados com seus patrocinadores.
Intimem-se.
Porto Alegre, 30 de abril de 1998.
Tasso Caubi Soares Delabary, Juiz de
Direito.
295
Processo nº 11.092-61/95 – Ação de Reparação de Danos
Autora: I. L. F. G.
Ré: E. S. B. L.
Juíza prolatora: Vanise Rohrig Monte
Dano moral decorrente de notícia
veiculada pela rádio da cidade. Ação
julgada parcialmente procedente.
Vistos, etc.
I. L. F. G. ingressou em juízo com
ação de reparação de danos contra E. S.
B. L., ambos qualificados à fl. 02, para
obter reparação material e moral em
conseqüência dos danos advindos da
veiculação, na emissora de rádio, de
entrevista que expôs sua vida íntima e
que foi concedida por seu marido.
Alegou que, em 10-01-94, a requerida levou ao ar entrevista concedida
por seu marido J. T. G., vulgo “C.”, do
qual se encontra separada de fato, na
qual o mesmo assumiu o fato de ter
contraído o vírus da AIDS, contaminando-a, ao mesmo tempo em que denunciava “C.” como “culpada”, alertando aos
que tivessem mantido relações sexuais
com a mesma para que procurassem
um médico, antes de contaminarem toda
a cidade.
No dia seguinte, 11-01-94, na programação diurna da emissora, a entrevista foi notícia novamente, desta vez
com os locutores enfatizando o nome
da requerente, inclusive dizendo que a
aguardavam para a edição do programa
naquele dia e citando artistas portadores do vírus. Disseram que a intenção
não era fazer sensacionalismo com a
desgraça alheia, pois não se esperava
que ele fosse dizer o nome de outras
pessoas no ar, o que não é ético. Continuaram a tecer comentários, dizendo
que a intenção do entrevistado era atingir a esposa, como de fato ocorreu, pois
a reportagem “estourou como uma
bomba” na cidade de H.
Na época, a autora trabalhava como
doméstica e estudava no colégio A. F. A
partir do fato supranarrado, a mesma passou
a ser tratada de forma diversa, com as
pessoas esquivando-se de sua companhia,
sendo preterida em ofertas de emprego e
hostilizada pelo filho, que era discriminado na escola e pelos amigos.
Os efeitos psicológicos e morais
suportados e ainda sofridos pela requerente, mesmo sem ser portadora do vírus
HIV, diante da irresponsabilidade com a
qual agiu a emissora, ao veicular matéria que injuriou e difamou a autora e
sua família, permitem que a mesma
possa pleitear indenização por danos
morais e materiais.
Requereu a citação da emissora;
indenização com base na situação econômica da ré, na função punitiva e,
principalmente, em função da gravidade, da natureza e da repercussão dos
fatos em sua vida. Requereu, ainda, o
depoimento pessoal do representante
legal da rádio, a procedência da ação e
a condenação da ré ao pagamento de
indenização por danos morais e materiais, custas e honorários advocatícios,
bem como o benefício da assistência
judiciária gratuita (fls. 02 à 13).
296
Instruiu a inicial com os documentos das fls. 14 à 22. Foi deferida a assistência judiciária gratuita (fl. 24). A ré
foi devidamente citada (fl. 26 e 26v.).
Na contestação alegou, prefacialmente,
cerceamento de defesa, eis que a autora
não anexou fita magnética contendo a
gravação do programa, impossibilitando
que se comprove a autenticidade das
transcrições feitas na inicial.
Em sede de preliminar, alegou inépcia da inicial, pois a autora convivia
com o marido, podendo a separação de
fato ser um disfarce para envolver a
emissora de rádio; falta de causa de
pedir, eis que não trouxe aos autos
nenhuma comprovação de prejuízo
monetário sofrido, quem sabe tentando
enriquecer com uma indenização ilícita;
incapacidade de ser parte, porque a
emissora apenas transmitiu a opinião de
J. G., tendo alertado o mesmo de sua
responsabilidade sobre o que iria relatar, a rádio só tentou alertar a sociedade
para o problema da AIDS, portanto quem
deveria estar no pólo passivo da ação
era J. G.
No mérito, disse não se ter verificado injúria e difamação, uma vez que a
emissora nada falou sobre a autora,
simplesmente quis avisar a população
local sobre uma epidemia que poderia
ocorrer; a rádio convidou a requerente
para dar a sua versão dos fatos; a prova
que norteia o processo, a fita magnética, foi obtida através do Judiciário, para
embasar ação de separação e de busca
e apreensão de menor, foi usada para
fim diverso; a autora continua freqüentando seu curso e residindo na cidade,
o que prova não ter sofrido os alegados
prejuízos.
SENTENÇAS
Alegou a prescrição ou a decadência, nos termos do art. 29, §§ 2º e 3º, da
Lei nº 5.250/67, e o fato de a autora ter
demorado 01 ano e 04 meses para se
sentir injuriada, ofendida e pleitear indenização. Requereu a citação de J. G.
para compor a lide, a extinção do feito
ou a improcedência da ação (fls. 27 à
31). Instruiu a contestação com o documento da fl. 32. A ré acostou instrumento de mandato à fl. 35.
Na réplica, o autor disse, preliminarmente, não proceder a chamada à lide
de J. G., uma vez que não estão presentes as hipóteses do capítulo VI do
CPC, e a indenização pleiteada foi pelos danos causados com a divulgação
do fato narrado por J. G.; a alegada
inépcia da inicial não apontou a falta de
nenhum requisito intrínseco ou extrínseco; a ausência da causa de pedir
confundiu-se com as alegações sobre o
mérito; a ilegitimidade de parte não se
verifica, pois o pedido foi decorrente da
divulgação e dos comentários acerca da
entrevista de J. G.
No mérito, disse inexistir cerceamento de defesa, pois, em momento algum,
a ré impugnou o conteúdo transcrito,
inclusive se valendo dele para estribar
sua defesa, até porque a veiculação
partiu da ré, que deve ter o original em
seus arquivos; o uso de espaço na rádio
pelo entrevistado não retira a responsabilidade da ré; transparece discriminação social por parte da requerida pela
condição de pobreza da autora; a obrigação de indenizar decorre do fato, e
não da existência de dolo; a prescrição
indicada diz respeito ao direito de resposta, e não à composição dos danos
(fls. 37 à 39).
SENTENÇAS
Foi deferido prazo para a ré regularizar sua representação processual, o que
foi feito (fls. 41, 43, 44, 46 e 48). Foi
designada audiência preliminar e requerida a oitiva de testemunhas pelas partes (fls. 53, 56 à 58). Em audiência, a
conciliação resultou inexitosa.
A requerente agravou nos autos da
decisão que recebeu a contestação,
entendendo que o prazo era de 05 dias
em função do rito especial, a requerida
diz que na citação estava consignado
prazo de 15 dias, devendo este prevalecer. A magistrada entendeu que assistia razão à requerida e que o agravo era
intempestivo, pois deveria ter sido interposto no prazo de 10 dias a contar
do recebimento da contestação. As preliminares arroladas na contestação foram afastadas (fls. 61 e 62).
A denunciação à lide não prosperou, por não terem sido observados os
requisitos constantes do art. 282 do CPC,
tendo sido indeferida com base no art.
295, I, do CPC (fl. 63 e 63v.). Em nova
audiência, foi homologada a desistência
das testemunhas não-localizadas, foram
ouvidas as partes e cinco testemunhas
e os debates substituídos por memoriais
(fls. 65 à 68v.). Foram apresentados
memoriais pela autora às fls. 70 à 75. A
ré os apresentou às fls. 77 à 81, após
o prazo, eis que seu procurador se
encontrava com problemas de saúde,
conforme atestado médico da fl. 82.
Foram os autos da ação cautelar de
exibição de documento, existente entre
as partes, apensados a estes autos. Vieram os autos conclusos. É o relatório.
DECIDO. As preliminares suscitadas
pela ré, inépcia da inicial por falta de
causa de pedir e ilegitimidade passiva,
297
já foram todas afastadas por ocasião da
audiência preliminar, e não serão novamente analisadas. A presente ação de
indenização tem por base a veiculação
de entrevista em emissora de rádio local. De modo que tal fato é que enseja
a reparação pleiteada pela autora.
A alegação prefacial feita pela requerida de que houve cerceamento de
defesa não prospera. A base de tal alegação foi a não-anexação da fita magnética que reproduziu a entrevista, por
parte da autora, o que teria impossibilitado a adequada defesa por parte da
emissora de rádio. Entretanto, como a
entrevista e os comentários foram veiculados pela própria requerida, é óbvio
que a mesma, como emissora de rádio,
possui em seus arquivos tal material e
encontra-se a pedir o que já tem.
Além disso, a requerida, em nenhum
momento, nega que os fatos tenham-se
passado como narrado na inicial, citando, inclusive, na contestação, trechos
da entrevista, transcritos pela autora na
inicial, para embasar a sua defesa, sendo que o conteúdo da entrevista foi
confirmado pelas testemunhas, entre elas
o próprio diretor da rádio e o radialista
que fez a entrevista.
Soma-se a isto o fato de que a requerente interpôs ação contra a requerida, visando à exibição de uma cópia
da gravação da entrevista objeto deste
feito, poucos dias após o fato, tendo
conseguido este intento, conforme reconhece a ré, na contestação, afirmando, no entanto, que o fato do conhecimento do conteúdo da fita ter sido usado
para embasar ação de separação e de
busca e apreensão de menor, filho da
requerente que estava em companhia
298
do pai, implicaria não poder a autora
utilizá-lo para interpor a presente ação.
Entendo não existir tal vedação na lei,
exigindo, no entanto, a notificação da
emissora de rádio, nos termos do art. 57
da Lei nº 5.250/67, providência suprida
pela requerente, dentro do prazo legal,
com a interposição da referida ação
cautelar, que lhe possibilitou o inteiro
conhecimento da mesma, conforme
processo em apenso.
Quanto ao chamamento à lide do
entrevistado, não vejo como admiti-lo,
eis que não se enquadra nas hipóteses
constantes do capítulo VI do Código de
Processo Civil. A alegação de prescrição
ou decadência diz respeito ao direito de
resposta não exercitado pela autora, e
não ao direito de reparação de dano.
Diz expressamente o § 2º do art. 29
da Lei nº 5.250/67, citado pela requerida: “(...) § 2º – A resposta, ou retificação, deve ser formada por escrito, dentro do prazo de 60 dias da data da
publicação ou transmissão, sob pena de
decadência do direito”.
Embora a requerida não tenha referido que o art. 56 da Lei nº 5.250/67
dispõe que a ação para haver indenização por dano moral deve ser proposta
dentro de 03 meses da data da publicação ou transmissão que lhe der causa,
sob pena de decadência, cumpre referir
que este dispositivo foi revogado implicitamente, pelo inc. X do art. 5º da CF
de 1988, que igualou, sem ressalvas, os
efeitos por direito individual violado,
garantindo a indenização pelo dano
moral e material. Assim, segundo a
orientação pacífica da jurisprudência, o
prazo prescricional para interpor ação
para indenização por dano moral é o
SENTENÇAS
mesmo da ação por indenização por
dano material, ou seja, 20 anos.
No mérito, a responsabilidade civil da
empresa de radiodifusão decorre expressamente do § 2º do art. 49 da Lei nº
5.250/67, que prescreve: “Art. 49 – (...) §
2º – Se a violação de direito ou o prejuízo
ocorre mediante publicação ou transmissão em jornal, periódico ou serviço de
radiodifusão, ou de agência noticiosa,
responde pela reparação do dano a pessoa natural ou jurídica que explora o meio
de informação ou divulgação”.
A violação de direito ou prejuízo a
que se refere o artigo em epígrafe apenas diz respeito ao abuso no exercício
da liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Nos termos do
art. 12 da Lei nº 5.250/67, os prejuízos
decorrentes deste abuso obrigam à reparação do dano. A pessoa física ou
jurídica que explora o meio de informação responde pela reparação do dano,
com direito à ação regressiva contra o
autor da ofensa.
Cumpre comentar sobre o conflito
aparente entre o direito de informação
por parte da imprensa e o direito à
privacidade do indivíduo, ambos previstos constitucionalmente. E, ainda,
sobre o que seja o referido abuso no
exercício do direito de informação, nos
termos do art. 12 da Lei nº 5.250/67. Em
matéria publicada no “Jornal da AJURIS”
(Associação dos Juízes do Rio Grande
do Sul, em junho de 1996, nº 49, foi
abordada esta questão que pela sua
clareza e objetividade, reproduzo na
integralidade, parte do texto (p. 05),
procurando elucidar este aspecto: “Esta
questão, segundo o Promotor Público
Luís Carlos Rodrigues Duarte, gera a
SENTENÇAS
colisão de deveres jurídicos: ‘Sempre
que eles se defrontam, se está diante
deste fenômeno’, explica. Segundo o
Promotor, para solucionar o problema,
devem ser feitos exames caso a caso e
a posteriori, situação em que o analista
deve levar em conta três princípios.
Primeiro, o da intencionalidade informativa, ou seja, o jornalista não pode
estar movido por sentimentos como
despeito, ânimo ou ciúme.
“Segundo, o princípio da oportunidade informativa, situação que exige do
profissional a revelação de fatos importantes naquele momento, e a não-utilização desse material em outra ocasião,
de forma oportunista. Este item envolve
a opinião pública, que é manipulada
toda a vez que o comunicador omite
fatos relevantes. O terceiro princípio é
o da relevância social da informação.
“ ‘É inadmissível, por exemplo, que
eu tome um dado pessoal, íntimo do
indivíduo, em nome do direito de informação’, afirma o Promotor que também
é professor de Direito Penal (da Faculdade de Direito) e de Direito Penal de
Imprensa (da Faculdade de Comunicação Social) da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul . Ele cita vários casos,
entre eles, a especulação da infância de
um indivíduo, envolvido em crimes
sexuais, tentando com isso explicar a
atitude do criminoso. ‘Isso não tem
importância para o desvendamento do
fato específico imediato. Agora, se houver relevância social, o direito à informação prevalece sobre o direito à privacidade’, afirma”.
Assim, entendo que, observando tais
princípios, verifica-se que a entrevista do
dia 10-01-94, concedida por J. T. G., foi
299
levada ao ar movida pelo sentimento de
informar a população, visto que o entrevistado dizia que tinha denúncias e alertas à população. Nesta entrevista, disse
ter contaminado sua ex-mulher, mas não
declinou o seu nome. Além de ter sido
observado o primeiro princípio, foram
observados nesta ocasião, também, os
princípios da oportunidade e da relevância social da informação, não existindo
abuso do direito de informação, nos
termos do art. 12 da Lei nº 5.250/67.
Ocorre, no entanto, que no dia seguinte, 11-01-94, a ré, durante a programação diurna, voltou ao assunto, e desta
vez não observou os princípios retromencionados, incorrendo no abuso do
direito de informação, e, pelo prejuízo
causado por tal conduta, deve reparar
os danos causados.
Pois, neste dia, a emissora veiculou
novamente a referida entrevista sem
necessidade, movida pela intenção de
aumentar a audiência pelo sensacionalismo, utilizou-se da entrevista de forma
oportunista e referiu, sem necessidade
nenhuma, expressamente, o nome da
requerente, especulou sobre o fato de
o entrevistado ter agido com a intenção
de atingir sua ex-esposa, incursionando
na vida privada da autora, o que não
foi negado pela ré, sendo que o próprio
entrevistador, em seu depoimento, disse que “foi veiculado pela rádio que as
pessoas citadas por C. teriam direito de
se manifestar pelo mesmo tempo sobre
o assunto. Tal divulgação saiu em
momento posterior à entrevista” (fl. 68).
Assim, o abuso ocorreu na divulgação da entrevista e nos comentários
sobre a mesma em momento posterior
à sua realização.
300
“Ninguém pode arrogar-se o direito
de levantar a cortina da vida privada do
cidadão, comercializando ou dramatizando os seus interesses privativos ou a
sua desgraça. A ninguém é lícito vasculhar as intimidades, seja de quem for,
ainda que com o intuito de edificação
ou advertência coletiva, sem anuência
expressa do exemplificado”. (Darcy Arruda Miranda, in “Comentários à Lei de
Imprensa”, 3ª ed., revista e atualizada,
1995, Ed. RT, p. 162)
Ocorre que, conforme a doutrina e
a jurisprudência, o § 1º do art. 20 da Lei
nº 5.250/67 se aplica a todos os crimes
contra a honra, assim, no dizer de Darcy
Arruda Miranda, na sua obra retrocitada, p. 340, “quem reproduz escrito difamatório de alheia autoria, conhecendo o seu conteúdo, responde por dolo.
A iniciativa da reprodução equivale à
autoria”. Assim, o autor da ofensa é o
jornalista que fez os comentários sobre
a entrevista, no dia seguinte da mesma.
“A ninguém se outorga o direito de
reproduzir infâmias, mesmo que o fato
seja notório. Nem por ter sido arrombada e saqueada uma residência, eu tenho o direito de entrar nela e completar
o saque”. (Darcy Arruda Miranda, in
“Comentários à Lei de Imprensa”, 3ª ed.,
revista e atualizada, 1995, Ed. RT, p.
340)
Segundo o mesmo autor já citado, a
imputação de moléstias repugnantes ou
graves, incuráveis, ou não, constitui injúria, pois expõem o indivíduo ao desprezo e causam no mesmo sentimentos
de dor e de aviltamento. Quanto ao fato
de a ré ter argumentado que na divulgação da entrevista e nos comentários
posteriores não houve o animus inju-
SENTENÇAS
riandi, sendo que a intenção da rádio
era somente informar a população, inclusive citando doutrina que conceitua
o que seja tal animus, tenho que, nos
comentários sobre a referida entrevista,
a dolosidade é manifesta, pois: “Não se
concebe boa-fé em reprodução intencional de ofensa”. (ob. cit., p. 396)
“O animus injuriandi existe sempre
que o agente saiba que a imputação do
fato tem caráter de prejudicar a honra
ou a reputação da pessoa, à qual o fato
é imputado.” ( ob. cit., p. 400). O jornalista que fez os reiterados comentários sobre o assunto, divulgando o nome
da requerente, tanto sabia que o entrevistado, ao conceder a entrevista, pretendia atingir a honra de sua ex-mulher,
que chegou a dizer tal fato, expressamente, na veiculação dos comentários.
Na própria contestação (fl. 30), o contestante reproduz, fielmente, o comentário do locutor, “foi bom haver sinceridade por parte da emissora para com
seus ouvintes, mostrar a que ponto pode
chegar uma pessoa (J.) com o objetivo
de retaliações”.
“Não há mister, pois, para que o
dolo de injuriar se realce no escrito
incriminado, que o animus injuriandi
esteja íncito no fato, porquanto, uma
vez que o agente tem consciência de
que o seu conteúdo é injurioso, encerrando expressões ou palavras que poderão ferir a dignidade ou o decoro de
alguém, e assim mesmo o dá à publicidade, é porque aceita o risco de ofender...
“A respeito, doutrina Nelson Hungria: ‘Segundo a regra geral, o dolo pode
ser direto ou eventual. Se não basta
para o reconhecimento da dolosidade a
SENTENÇAS
simples consciência do caráter ofensivo
da ação, é suficiente, entretanto, que a
previsão do resultado lesivo não tenha
servido de contramotivo à ação, isto é,
basta que o agente, embora sem querer, positiva ou diretamente, o previsto
resultado lesivo, consinta ex ante no
seu advento” (ob. cit., p. 403).
Assim, a alegação da ré de que não
pretendeu causar dano à requerente,
tendo somente exercido o seu direito
de informação, não lhe exime da obrigação de indenizar os danos causados,
pois ainda que a finalidade da conduta
da ré tenha sido, realmente, de prestar
um serviço público de esclarecimento e
informação da população, agiu com
dolo, e a finalidade de seu ato será
avaliada para graduar a fixação da indenização à requerente, e não para
excluir a ilicitude de seu ato.
“Admitida a descriminante da moralidade do fim, deveria também ficar
isento de pena, por exemplo, aquele
que furtasse para fazer doação a uma
casa de caridade, ou aquele que matasse um canceroso para poupá-lo ao
sofrimento, ou eliminasse um facínora
para sossego da povoação em que vive.”
(ob. cit., p. 398). Demonstrada a responsabilidade civil da ré, cabe estabelecer o quantum da indenização, segundo as regras do direito positivo.
Do dano material. A requerente afirma ter tido danos materiais, eis que foi
preterida em empregos na cidade, pela
discriminação sofrida, face à referida
notícia. Contudo, não há elementos nos
autos que informem a existência deste
dano material, tendo, inclusive, a requerente, em seu depoimento pessoal, dito
que após a veiculação da notícia conti-
301
nuou a trabalhar em seu emprego, com
o mesmo salário, até a mudança de seus
patrões da cidade. Declarou, também,
que conseguiu emprego junto ao posto
do I., para fazer a limpeza, e que, embora a chefe do posto tenha sido questionada sobre o fato de estar empregando uma “aidética”, continuou neste emprego até janeiro de 1996, quando se
mudou da cidade para ir trabalhar na
residência de seus antigos patrões.
O depoimento do seu patrão J. A. C.
confirma que a requerente continuou
empregada mesmo após a notícia, embora estivesse trabalhando em sua casa
há poucos dias, e o fato de que foi
trabalhar novamente para ele, mudando-se desta cidade em janeiro de 1996 (fls.
66/67). Da mesma forma, M. L. Z. diz
que a autora trabalhou para ela, antes e
depois da divulgação da notícia, até a
mesma mudar-se da cidade. Confirma,
ainda, que a depoente trabalhou no posto
do I. até a mudança (fl. 67 e 67v.).
Quanto ao comércio de tapetes que
a requerente alegou ter na época dos
fatos, e ter sido abalado em função da
notícia, eis que as pessoas não encomendaram mais suas mercadorias com
medo de contaminação, entendo que
não ficou suficientemente provado o
nexo causal da veiculação da notícia
com o fato de a requerente não receber
encomendas de tapetes. As testemunhas
J. A. C. e M. L. Z. ficaram sabendo de
tais fatos somente pelo que contava a
requerente, não havendo outros elementos para aferir a existência deste alegado dano material.
Do dano moral. Atualmente é pacífico o entendimento de que o dano
moral é indenizável, principalmente em
302
razão do inc. X do art. 5º da CF de
1988. O dano referido constitui-se na
violação do direito à honra da requerente, que conforme fundamentação
acima exposta, foi injuriada pela veiculação dos referidos comentários sobre a
entrevista concedida pela seu ex-marido à ré, na qual este afirmou portar o
vírus da AIDS e ter contaminado a autora.
Para aferir o quantum a ser indenizado é necessário avaliar a extensão do
dano na vida da requerente, o seu
sofrimento psíquico; o grau de culpa do
responsável, neste caso, a intensidade
do dolo; as condições econômicas do
responsável; o fato de que a indenização deve ter também um aspecto punitivo para o ofensor, de forma que o
iniba de reiterar a conduta danosa; e
demais itens contidos no art. 53 da Lei
nº 5.250/67. Quanto ao fato de arbitrar
o valor do dano, considerando o número de vezes que foi veiculada a notícia,
entendo ser critério de menos importância, pois os critérios determinantes
são os acima referidos.
“Civil. Responsabilidade civil. Dano
moral. Arbitramento. No arbitramento do
dano moral, há que se considerar tanto
sua reparação, oferecendo à vítima uma
satisfação em dinheiro, quando a necessidade de se impor ao ofensor uma
expiação pelo ato ilícito. Caso em que
a indenização de 100 salários mínimos
satisfaz ambos os requisitos. Votos vencidos. Embargos acolhidos em parte.”
(EI nº 595002056, 2º Grupo de Câmaras
Cíveis do TJRGS, Porto Alegre, Rel. Des.
Araken de Assis, julgados em 10-04-95)
“Dano moral. Indenização. Critério
de quantificação. O critério de fixação
do valor indenizatório levará em conta
SENTENÇAS
tanto a qualidade do atingido como a
capacidade financeira do ofensor, de
molde a inibi-lo a futuras reincidências,
ensejando-lhe expressivo, mas suportável, gravame patrimonial. Embargos
Infringentes rejeitados por maioria.” (EI
nº 595032442, 3º Grupo de Câmaras
Cíveis do TJRGS, Porto Alegre, Rel. Des.
Luiz Gonzaga Pila Hofmeister, julgados
em 1º-09-95)
Os arts. 51 e 52 da citada lei limitam
a indenização por dano causado, quando ele ocorre por culpa do jornalista,
ou seja, por imprudência, negligência,
ou imperícia. Entendo, conforme já
exposto nesta sentença, que a veiculação dos comentários danosos foi feita
de forma dolosa, não se aplicando ao
caso as limitações da lei.
“É indispensável, para que se opere
a limitação, que o ato seja culposo,
porquanto, se houve dolo, não há que
se falar em limitação na reparação do
dano.” (ob. cit., p. 734)
A existência do dano moral é cabalmente demonstrada nos autos, eis que
as testemunhas são unânimes em afirmar
que a requerente foi discriminada socialmente e teve o relacionamento com o
seu filho abalado, bem como passou por
estado de depressão e tristeza. J. A. C.
disse expressamente que “a esposa do
depoente era professora, funcionária da
escola A. F., e colegas dela chegavam a
exigir que a requerente fosse despedida
da casa do casal... O depoente acredita
que as brigas com o filho da qual se
queixava a requerente foram posteriores
à divulgação da notícia” (fl. 67).
M. L. Z. afirmou que “após a notícia,
recebeu telefonemas de pessoas que lhe
perguntavam se a depoente não tinha
SENTENÇAS
medo de ter como empregada uma
portadora de AIDS. Também no supermercado chegou a ser perguntada a
respeito dos fatos, tendo respondido que
acreditava na palavra da requerente, que
dizia ser mentira tal notícia. Posteriormente, a requerente lhe mostrou os
exames com o resultado negativo... A
depoente declara que, na época, a requerente ficou bastante deprimida pelo
fato, sendo que não comia, perdeu peso
e fumava bastante... A requerente revelou que teve problemas com o filho,
que foi discriminado e, por algumas
vezes, agredido fisicamente, em função
da veiculação da notícia” (fl. 67 e 67v.).
Tais depoimentos corroboram as
declarações da autora de que foi alvo
de comentários e segregação por parte
da comunidade desta cidade, tanto na
escola onde estudava à noite, escola A.
F., como nos estabelecimentos comerciais e em todos os demais lugares públicos, sendo obrigada a andar com o
referido exame na bolsa. A depoente
era facilmente reconhecida, porque já
havia tido um restaurante na cidade,
fato que agravou a sua discriminação.
Com certeza, tais fatos foram um dos
fatores que determinaram a mudança
da autora desta cidade para I.
Por tais depoimentos é possível verificar que a humilhação e a dor psíquica sofrida pela autora foi bastante intensa e se estendeu por vários meses.
Também é possível verificar que a notícia
teve grande repercussão, sendo que o
diretor da rádio afirmou que esta tem
potência de 5 quilowatts (fl. 66 e 66v.),
e J. A. L., locutor da rádio, disse que ela
alcança vários municípios e tem grande
audiência (fl. 68 e 68v.).
303
Desta forma, entendo que a extensão do dano foi grande pela sua veiculação pela rádio e repercussão na cidade, considerando ainda que a autora
era pessoa conhecida, e que esta cidade é de pequeno porte, sendo que as
pessoas que nela residem possuem
pouca informação acerca do vírus da
AIDS, e a forma de sua contaminação,
atribuindo à rádio local total credibilidade. A indenização por dano moral tem
natureza não-patrimonial e decorre da
dor, do espanto, da emoção, da vergonha, enfim, da dolorosa sensação experimentada pela vítima em razão do ato
ilícito que sofreu. No caso, não há dúvida de que a autora sofreu pesado
dano moral na sua reputação, pelas discriminações sociais que passou a sofrer,
com reflexos no relacionamento familiar, no constrangimento de conviver
socialmente.
“Com muito acerto e percuciente
observação ressalta Hermano Duval: ‘É
óbvio que no centro da notícia está
sempre um fato humano, cuja repercussão através do rádio e do cinema, sobretudo da televisão, é muito mais sensível ao seu interessado do que através
da notícia gráfica, pois, além da forma
viva por que é apresentada, ela ainda
atinge, além das localidades do interior
onde não há imprensa alguma, mas há
receptores de rádio ou de televisão, uma
classe diversa da dos leitores, isto é, a
dos que não sabem ler! Daí, também, o
sucesso do cinema nacional no interior
do País: quem não sabe ler, vê figura...
“ ‘O reverso do direito à informação
da imprensa, isto é, a notícia, tem hoje,
portanto, um alcance espetacular; e a
própria circunstância de ela prescindir
304
de qualquer esforço por parte do ouvinte ou do telespectador torna-a particularmente preferida à comunicação
escrita, por sua vez, já superada pela
comunicação escrita colorida!
“ ‘Segue-se daí que, se o direito à
informação é amplo, é um imperativo
da hora presente, já a amplificação que
os modernos meios de difundir a notícia também o seja. E a razão é óbvia:
é que a notícia humilhante, ridícula ou
difamatória, veiculada através do rádio,
do cinema e da televisão, fere muito
mais sua vítima do que pelo jornal, que
é incapaz de transmiti-la tão ao vivo!
Deve portanto, haver um limite à publicação da notícia’ (ob. cit., p. 160).
“Indenização. Dano moral e patrimonial decorrente de publicação de
notícia na imprensa. A liberdade de
informar só tem como fronteira, como
limite, a honra e a dignidade alheias.
Porque ‘minha honra é minha vida’
(Shakespeare) e assim como não se
pode, num ato irrefletido, sacar a vida
de alguém, também não se pode, sem
as cautelas éticas, atingir a honra de
quem quer que seja. Tendo sido os
autores, pessoas humildes e pobres e
por isso constituindo a honra o único
cabedal de que dispõem, demitidos em
razão de notícia vinculada ao jornal,
sem que soubesse o diretor do jornal
identificar se eram eles os responsáveis
pelo fato publicado em artigo, cabe,
além do ressarcimento pelo dano patrimonial, o pelo dano moral. Recurso
provido em parte” (AC nº 594155061,
TJRGS, 8ª Câmara Cível, Osório, Rel.
Des. Eliseu Gomes Torres, julgada em
22-12-94).
SENTENÇAS
Quanto ao grau de culpa do agente,
entendo que o jornalista que fez os
comentários sobre a entrevista, embora
tivesse agido com manifesto dolo, pois
conhecia o conteúdo injuriante e devastador da reiteração da notícia, teve
pequeno grau de culpa, pois o fato de
convidar a requerente para contar a sua
versão da história, espontaneamente,
antes da propositura da ação, demonstra que teve a intenção de minimizar a
situação da autora, pelo menos dando-lhe a oportunidade de se manifestar na
própria rádio. Entendo que tal atitude
vem a favor do agente, e não contra,
como quer fazer crer a autora. É possível que não estivesse em condições
emocionais de falar na rádio, devido ao
abalo que sofreu, mas se tivesse ido,
talvez pudesse ter minimizado um pouco a situação.
Além disso, a intenção do jornalista
foi de alertar a população para o risco
da epidemia e de esclarecer sobre os
motivos que levaram o entrevistado a
fazer as afirmações, o que vem ao seu
favor, ao avaliar a intensidade do dolo.
Quanto à capacidade econômica do
responsável civil, entendo que é boa,
pois é uma emissora de rádio conceituada e de grande audiência, como ficou
demonstrado no processo, tendo mais
de 30 anos e possuindo como capital
social a soma que correspondia, em
15-10-81, a Cr$ 4.000.000,00, possuindo
a matriz nesta cidade e uma filial em P.
(fls. 49/52).
Considerando todos estes aspectos e
a jurisprudência, entendo por fixar a
indenização pelo dano moral sofrido pela
autora em 150 salários mínimos. Os juros
SENTENÇAS
moratórios fluem a partir do evento
danoso, em caso de responsabilidade
extracontratual (Súmula nº 54 do STJ).
Isto posto, julgo procedente em parte
a pretensão da requerente, com fulcro
no art. 49, § 2º, da nº Lei 5.250/67, c/c
o art. 5º, inc. X, da CF de 1988, eis que
não restou comprovado o dano material
alegado, para condenar a Emissora S. B.
Ltda. a proceder ao pagamento da quantia de 150 salários mínimos a I. L. F. G.,
a título de indenização pelo dano moral
causado, calculado pelo salário mínimo
vigente à época do fato, corrigido monetariamente pelos índices oficiais até a
data do pagamento, acrescido de juros
de mora de 6% ao ano, a contar da data
do evento danoso, nos termos da Súmula nº 54 do STJ.
Sucumbentes parcialmente ambas as
partes, uma vez que a autora não teve
acolhida a sua pretensão relativa ao
ressarcimento do dano material, pagará
esta o correspondente a 1/5 das custas
305
processuais, enquanto a requerida pagará os restantes 4/5.
No que tange aos honorários, a demandada pagará ao advogado da demandante 15% sobre o valor total da
condenação que lhe foi imposta, enquanto a requerente pagará ao advogado da
requerida 10% sobre o valor da pretensão não-acolhida, ou seja, sobre a diferença resultante entre o valor atualizado
atribuído à causa, acrescido de juros de
6% ao ano, a contar da data do evento
danoso, e o valor total da condenação.
Para a fixação dos honorários, considerei o disposto no art. 20, § 3º, a e
c, do CPC. Suspendo o pagamento, pela
autora, da verba decorrente da sucumbência parcial, em face de ter-lhe sido
concedido o benefício da assistência judiciária gratuita.
Registre-se. Publique-se. Intimem-se.
Horizontina, 22 de janeiro de 1997.
Vanise Rohrig Monte, Juíza de Direito
Substituta.
306
Processo nº 18.732 – Ação Ordinária de Indenização
1ª Vara Judicial
Autor: Simão Serrano Elias
Réu: Banco do Estado do Rio Grande do Sul S. A.
Juíza prolatora: Vanise Röhrig Monte
Indenização. Danos morais. Contrato de abertura de crédito em conta-corrente. Unilateral redução do limite de
crédito e indevida devolução cheques
emitidos pelo correntista. Ação julgada
parcialmente procedente.
Vistos, etc.
Simão Serrano Elias ingressou em
juízo com ação ordinária de indenização contra Banco do Estado do Rio
Grande do Sul, ambos qualificados à fl.
02, visando à condenação da requerida
a reparar, financeiramente, o dano moral
sofrido pelo autor em conseqüência de
ilícito praticado pela requerida, bem
como a condenação desta a fazer publicar na imprensa local, às suas expensas,
retratação ao ato ilegal praticado.
Alegou o autor que é correntista da
requerida há mais de dez anos, com a
qual mantinha um contrato de abertura
de crédito em conta-corrente, denominado “Super Conta”, sob nº 35.009759.06.
O limite de crédito contratado na referida conta era de R$ 10.000,00, tendo sido
renovado em 16-03-98. Não obstante, teve
o autor dois cheques de nos 707832 e
707833, nos valores de R$ 2.000,00 e R$
66,20 da referida conta, devolvidos por
insuficiência de fundos, nas datas de
08-06-98 e 09-06-98, embora estivessem
dentro do limite contratado.
Afirmou, ainda, que recebeu uma
comunicação do banco, no dia 09-06-98,
às 16h50min, via AR, na qual constava
que o limite de R$ 10.000,00 havia sido
reduzido para R$ 2.001,00, unilateralmente. Ocorre, que quando do recebimento
de tal carta, já haviam sido devolvidos os
citados cheques emitidos pelo autor.
Segundo o que o autor apurou junto
aos funcionários da agência local, o
motivo da redução do limite, unilateralmente feita, era por determinação superior, em razão de matéria, de autoria do
requerente, publicada, no jornal da cidade sobre juros bancários e pelo fato
de o autor patrocinar ações contra os
interesses da requerida.
Em razão da devolução dos cheques,
ilegalmente feita, pois não foi o autor
avisado previamente da redução do limite
de crédito de sua conta, teve o autor
prejuízos pessoais, morais e profissionais,
consistentes na vergonha e incomodação
sofridas, necessitando de reparação a ser
determinada pelo Judiciário.
Alegou que teve sua imagem pública
abalada, visto que é advogado militante na
comarca, na qual já foi Presidente da
Subseção local da OAB/RS, sendo, na época
dos fatos, instrutor do Tribunal de Ética e
Disciplina da referida Ordem. Arrolou jurisprudência sobre o tema, e apontou os
artigos da legislação e os argumentos da
doutrina que amparam sua pretensão.
Requereu, ao final, a procedência
da ação nos termos do pedido e a condenação do réu ao pagamento de custas
SENTENÇAS
processuais e honorários advocatícios em
20% sobre o valor da condenação, tudo
acrescido de juros e acréscimos legais.
Instruiu a inicial com os documentos
das fls. 12 à 35.
Antes da citação, o autor acostou
aos autos petição informando que outro
cheque, no valor de R$ 40,00, por ele
emitido contra o banco-réu sacado, em
razão da referida conta-corrente, tinha
sido devolvido por insuficiência de fundos, por duas vezes, tendo sido encerrada a conta do autor. Juntou o cheque
devolvido e o aviso de débito (fl. 44).
Novamente peticionou o autor, antes da citação, postulando a antecipação
de tutela, para que fosse determinado
ao réu que se abstivesse de inscrever o
nome do autor, ou já o tendo feito,
determinasse a sua exclusão, em órgãos
de restrição de crédito, e, ainda, junto
ao Banco Central, sob pena de multa
diária de R$ 500,00.
A antecipação de tutela foi deferida.
A ré contestou a ação, confirmando que
havia um contrato de cheque especial
firmado com o autor com limite de crédito de R$ 10.000,00, que foi reduzido em
08-06-98 para R$ 2.001,00, em decorrência do baixo saldo médio. Alegou, então,
que o autor foi cientificado da redução
por aviso de recebimento – carta AR,
entregue pelo correio, no próprio dia
08-06-98 –, porém negou-se a assinar o
aviso e emitiu os cheques nos 707831, de
R$ 5.000,00, 707832, de R$ 2.000,00, e
707833 de R$ 66,20, sabendo que ultrapassaria o limite garantido, de má-fé, para
que fosse devolvido, com intuito de provocar indenização por dano moral e
beneficiar-se financeiramente da situação.
Além disso, a ré dissertou sobre os
elementos a serem considerados no
307
arbitramento do valor do dano moral,
quais sejam: a) as condições das partes;
b) a gravidade da lesão e sua repercussão; e c) as circunstâncias fáticas.
Ao final, pediu a improcedência da
ação. Em réplica, o autor reiterou os
argumentos expendidos na inicial, refutando integralmente o alegado na contestação, inclusive requerendo a aplicação da pena de litigante de má-fé à ré,
tendo em vista que abusou do direito
de defesa, tentando imputar ao autor a
culpa dos fatos, inclusive com o planejamento da ação por parte deste.
Designada audiência, foram ouvidas
sete testemunhas, encerrada a instrução
e realizado o debate no qual o autor
pediu a procedência da ação e a ré, a
improcedência, reportando-se, cada qual,
aos argumentos expendidos na inicial e
na contestação, respectivamente. Vieram
os autos conclusos. É o relatório
DECIDO
O feito encontra-se regular e sem
nulidades, estando pronto para ser sentenciado. Trata-se de ação visando ao
arbitramento de indenização ao autor
por dano moral praticado pela ré.
Dos fatos incontroversos. O autor relatou que mantinha Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente com a
ré sob o nº 35.009759.06, conta cujo o
limite de crédito era de R$ 10.000,00,
conforme renovação trimestral do contrato realizada em 16-03-98.
O valor do limite de crédito foi então
reduzido, por ato unilateral da ré, em
08-06-98, de R$ 10.000,00 para R$
2.001,00. Tais fatos não foram contestados pela ré, que os confessou.
Dos fatos controversos. 1º fato: o autor
alegou que somente ficou sabendo da
308
redução do limite em 09-06-98, após o
encerramento do horário bancário,
motivo pelo qual já havia emitido cheques, em 09-06-98 e 08-06-98, que
extrapolaram o limite de crédito de R$
2.001,00, porém ficavam dentro do limite de R$ 10.000,00.
2º fato: tais cheques foram devolvidos por insuficiência de fundos e acarretaram inúmeras perturbações ao autor, tais como, abalo de crédito, prejuízo à sua imagem pública, profissional
e comercial, fazendo com que o autor
passasse por situação vexatória que lhe
trouxe sofrimento pessoal.
3º fato: a redução do limite de crédito feita pela ré foi motivada pelo fato
de o autor ter patrocinado ações judiciais contra os interesses da ré e por ter
escrito matéria sobre juros bancários que
foi publicada no jornal local.
Das alegações da ré. A ré alegou que
o autor sabia da redução do limite de
crédito de sua conta-corrente, ocorrida
em 08-06-98, motivo pelo qual se negou
a assinar o aviso de recebimento na carta
enviada pela ré na referida data e emitiu
os cheques de n os 707831, 707832 e
707833, propositadamente, para ensejar
a devolução dos cheques, com o intuito
de provocar o dano moral e beneficiar-se financeiramente da situação.
Das provas. A redução do limite de
crédito da conta do autor, antes de findo
o prazo contratado (três meses a partir
de 16-03-98), por ato unilateral da ré,
por si só, já é um ato caracterizador de
descumprimento de contrato e com
potencial para gerar danos ao autor. Além
disso, verifica-se que a redução foi sem
justificativa plausível, pois embora tenham
alegado que o motivo fosse a pequena
movimentação financeira da conta do
SENTENÇAS
autor, não foi esta a motivação que
constou da carta enviada pela ré ao autor,
fl. 23, e não explicou a ré o que seria
a “pequena movimentação financeira”.
Porém, ainda que houvesse motivação lícita para redução de tal limite de
crédito, o que não ficou provado existir, a ré deveria ter comunicado ao autor
o fato com antecedência. Entendo que,
mesmo que a carta tivesse chegado em
mãos do autor em 08-06-98, não teria
havido comunicação ao autor, eficiente
e antecipada, pois a redução do limite
ocorreu neste mesmo dia.
Entretanto, além da comunicação da
redução do limite de crédito não ter
chegado ao conhecimento do autor com
antecedência, tal comunicação chegou
após o fato consumado, como ficou
provado nos autos.
A carta de comunicação enviada pela
ré, fl. 23, data de 08-06-98; a data da
postagem, conforme envelope juntado
aos autos na fl. 22, data de 08-06-98; e
a data do recebimento é 09-06-98, às
16h50min, conforme documento da fl.
22, ou seja, um dia após a redução do
limite de crédito. Assim, entendo estarem comprovadas, pela prova carreada
ao processo, as alegações do autor
quanto ao primeiro fato controvertido.
A alegação da ré, de que o autor já
sabia da redução do limite antes de
receber a comunicação, não ficou provada nos autos. As testemunhas Paulo
Roberto de Biasi, Nilso Zampiva e Paulo Borges Valiati, que trabalham na
empresa-requerida, afirmaram que não
comunicaram a redução do limite do
crédito em conta-corrente diretamente
ao autor antes de ser operada tal redução. Nilso e Paulo Borges referiram que
um funcionário teria tentado fazer tal
SENTENÇAS
comunicação, porém teria falado somente com a secretária do autor, quando
este não estava em seu escritório.
Estas testemunhas concordaram que
a carta de comunicação foi enviada pela
ré no próprio dia da redução, sendo
que era uma carta com aviso de recebimento, porém “a sistemática do banco
é de iniciar a operação apenas com a
expedição da carta AR, sem aguardar o
seu retorno”, conforme declaração de
Paulo Roberto de Biasi na fl. 89-v.
Provado que o autor só teve conhecimento da redução de seu limite de
crédito após esta ter sido operada pela
ré, resta verificar se houve o dano moral
alegado.
Do dano moral. O autor emitiu cheques antes de ser comunicado da redução de seu limite de crédito que ultrapassaram tal limite, porém estavam em perfeita adequação ao limite anterior, de R$
10.000,00. Teve tais cheques devolvidos
quando colocados em compensação bancária (fls. 25/29 e 44). Em razão disto,
teve sua conta encerrada e o seu nome
cadastrado como inadimplente junto ao
Banco Central (fl. 49). Todos estes fatos
não são negados pela requerida.
Existiu, desta forma, dano moral
indenizável. Sem dúvida ocorreu abalo
de crédito, pois o autor não pode retirar
talonários de cheque junto a outras entidades bancárias, porque estava com
restrição em seu crédito junto ao Banrisul.
Também evidente que o autor teve
sofrimento e incomodações decorrentes de
tal fato, pois teve que realizar vários atos
para regularizar sua situação junto ao Banco
Central, inclusive pedindo antecipação de
tutela neste feito para alcançar tal fim. Além
disso, teve que procurar as pessoas para
as quais passou os cheques e pagá-las
309
diretamente, expondo-se à situação
vexatória, pois os cheques tinham sido
devolvidos por falta de fundos.
Comprovado que o autor goza de
boa reputação econômica e moral, conforme documentos juntados às fls. 13 à
15, e declarações das testemunhas que
prestaram depoimento nos autos.
Sem dúvida que a situação de ter que
explicar a alguém o motivo pelo qual um
cheque seu foi devolvido por falta de
fundos, quando tal ato foi provocado pela
ação da ré, é situação desagradável para
uma pessoa que possui boa reputação e
orgulha-se de ser honrada e digna.
Além disso, é pacífico o fato de que
a honra e a reputação de um advogado
são fatores determinantes para sua clientela, ainda mais em cidades do interior
do Estado onde os fatos relativos a estes
profissionais são mais facilmente divulgados e conhecidos pela população.
Para aferir o quantum a ser indenizado é necessário avaliar a extensão do
dano na vida da requerente, o seu
sofrimento psíquico; o grau de culpa do
responsável, neste caso, a intensidade
do dolo; as condições econômicas do
responsável; e o fato de que a indenização deve ter também um aspecto
punitivo para o ofensor, de forma que
o iniba de reiterar a conduta danosa.
“Civil. Responsabilidade civil. Dano
moral. Arbitramento. No arbitramento do
dano moral, há que se considerar tanto
sua reparação, oferecendo à vítima uma
satisfação em dinheiro, quando a necessidade de se impor ao ofensor uma
expiação pelo ato ilícito. Caso em que
a indenização de cem salários mínimos
satisfaz ambos os requisitos. Votos vencidos. Embargos acolhidos em parte”.
(Embargos Infringentes nº 595002056,
310
2º Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, Rel. Des. Araken
de Assis, 10-04-95)
“Dano moral. Indenização. Critério
de quantificação. O critério de fixação
do valor indenizatório levará em conta,
tanto a qualidade do atingido como a
capacidade financeira do ofensor, de
molde a inibi-lo a futuras reincidências,
ensejando-lhes expressivo, mas suportável, gravame patrimonial. Embargos
infringentes rejeitados por maioria”. (Embargos Infringentes nº 595032442, 3º
Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, Rel. Des. Luiz Gonzaga Pila Hofmeister, 1º-09-95)
Da extensão do dano na vida do
requerente. Pelas provas carreadas aos
autos, o autor teve três cheques devolvidos, nos valores de R$ 2.000,00, R$
66,20 e R$ 40,00; uma vez que o cheque de nº 707831, no valor de R$
5.000,00, foi sacado por ele diretamente
no caixa do banco.
Assim, poucas pessoas tiveram conhecimento de tal fato, não tendo o
autor logrado êxito em provar o contrário. Sendo que a testemunha Antônio
Turíbio Borges Ferreira afirmou, expressamente, fl. 87, ao relatar que viu o
autor no posto de gasolina efetuando o
pagamento do cheque de R$ 40,00 ao
dono: “ ... não sabe por que motivo o
cheque foi devolvido. O dono do posto
não fez comentário sobre o fato com o
depoente e acredita que não tenha feito
tal comentário com outras pessoas”.
Mesmo tendo sido o fato comentado
por algumas pessoas, entendo que o
autor não teve sua reputação diminuída, pois as pessoas já associavam o fato
SENTENÇAS
à conduta da ré, não atribuindo culpa
ao autor.
José Giovanoni Neto disse, textualmente, que “... se recorda que na data
narrada na inicial estava dentro da agência bancária do Banrisul desta cidade, na
fila do caixa, e ouviu comentários dos
que lá estavam de que o autor teria
colocado uma nota no jornal contra os
interesses da agência Banrisul e que por
tal motivo o banco teria encerrado a
conta do autor, ocasionando a devolução de um cheque que ele havia passado num posto de gasolina. Também
comentaram que o autor estaria com
problemas financeiros, mas o depoente
acha que isso não é verdade”. (fl. 87-v.)
Ainda, no mesmo depoimento: “Houve comentários na cidade de que o encerramento da conta do autor também foi
motivado pelo fato do autor, enquanto
advogado, patrocinar causas que contrariavam os interesses do banco e também
em defesa do Sindicato dos Bancários”.
Também são neste sentido os depoimentos das testemunhas Antônio Derby
Freitas e Sandra Maria Trindade Scorsato.
O dano maior foi, desta forma, no
âmbito do sofrimento pessoal do autor, da
sua dor psíquica, pois se depreende pelos
depoimentos prestados que o autor procurava dar explicações para o fato de ter tido
um cheque devolvido, inclusive aparentando vergonha pelo fato e revolta.
Antônio Turíbio Borges Ferreira afirmou que “... achou que o autor estivesse
com vergonha do dono do posto”. (fl. 87)
Sandra Mara Trindade Scorsato declarou que “... estava na agência bancária do Banrisul na data narrada na inicial e viu o autor sentado conversando
com o Sr. De Biasi, sendo que o autor
estava bastante alterado e nervoso,
SENTENÇAS
motivo pelo qual chamou a atenção da
depoente (fl. 88-v.), e ainda no mesmo
depoimento... lembra-se que o Sr. De
Biasi, na qualidade de gerente da agência, tentava acalmar o autor que estava
bastante brabo e alterado”.
Por tais depoimentos é possível
verificar que a dor psíquica sofrida pelo
autor foi bastante intensa. Também é
possível verificar que o fato não teve
grande repercussão na sua reputação.
Desta forma, entendo que a extensão
do dano foi média.
Do grau de culpa do responsável. Os
motivos da redução do limite de crédito
do autor não ficaram esclarecidos pela
ré, pois embora esta tenha alegado que
foi porque o autor tinha “pequena
movimentação financeira”, não esclareceu o que tal conceito significa.
Por outro lado, o autor trouxe aos
autos prova de que a redução do referido limite de crédito feita pela ré foi
motivada pelo fato de o autor ter publicado matéria no jornal local da cidade
sobre juros bancários e também porque, como advogado, patrocinou várias
ações judiciais contra os interesses da
ré, conforme documentos juntados às
fls. 16 à 19, carta da ré, fl. 23, que
menciona que o limite seria reduzido
por “determinações superiores”, e depoimentos das testemunhas.
A testemunha José Giovanoni Neto,
em seu depoimento, declarou, expressamente: “Os próprios funcionários do
banco ratificaram que o encerramento
da conta do autor se devia à nota publicada no jornal”. (fl. 87-v.)
O Sr. Nilso Zampiva, Gerente Adjunto da ré, declarou que “na ocasião em
que houve a redução do limite do valor
do cheque especial do autor, houve uma
311
determinação superior do banco, da sede
ou da superintendência de Passo Fundo,
via contato telefônico, determinando especificamente o encerramento da conta
do autor. Quando desta determinação,
nenhum outro correntista foi especificado para que houvesse a mesma operação. A princípio, a determinação superior
era de encerramento da conta, mas a
agência optou pela redução do limite do
cheque especial do autor”. (fl. 90)
Ora, o autor não estava inadimplente, não tinha título protestado, tinha
dinheiro aplicado, tinha familiares
correntistas do banco, não havia assim
motivo justo ou lógico para que fosse
determinado o encerramento de sua
conta, sendo crível que foi assim determinado pelos motivos apontados pelo
autor, aliás, os únicos existentes conforme as provas carreadas aos autos.
Desta forma, o grau de culpa da ré
é grave, pois agiu por motivação injusta
e com clara intenção de prejudicar o
autor, não ficando caracterizado nos
autos a existência de culpa concorrente
por parte do requerente.
Da capacidade econômica do agente. Quanto à capacidade econômica do
responsável civil, entendo que é boa,
pois trata-se de uma entidade financeira
sob a forma de sociedade de economia
mista, com participação do Estado do
Rio Grande do Sul, fato público e notório que dispensa provas.
Da fixação do “quantum” a ser indenizado. Considerando todos estes aspectos: 1) pequena extensão do dano na
vida pública do requerente, porém grande sofrimento psíquico; 2) alto grau de
culpa da ré e inexistência de culpa concorrente por parte do autor; 3) excelente
capacidade financeira da ré, sendo que
312
a indenização deve ter um aspecto
punitivo; e, considerando, ainda, a jurisprudência, entendo por fixar a indenização pelo dano moral sofrido pelo
autor em cem salários mínimos.
Os juros moratórios fluem a partir
do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual. (Súmula nº
54 do STJ)
O autor postulou indenização de no
mínimo duzentos salários mínimos e que
fosse a ré condenada a fazer publicar
na imprensa local, às suas expensas,
retratação do ato ilegal praticado, nos
termos constantes da sentença de mérito. No entanto, tendo este juízo entendido que a imagem do autor não restou
denegrida e que não houve repercussão social negativa para o mesmo, a
indenização vai fixada em 100 salários
mínimos e é indeferida a condenação
da ré à publicação na imprensa como
postulado pelo requerente.
Da inexistência de litigância de má-fé
por parte da ré. O autor postulou a aplicação da pena de litigante de má-fé à ré,
entendendo que esta abusou de seu direito de defesa, ao expressar na contestação que o autor sabia da redução do
limite antes da emissão dos cheques e fez
tal emissão propositadamente para ensejar a presente demanda indenizatória.
Ocorre que, embora a ré não tenha
provado tal fato, existiu base para esta
alegação, pois conforme as testemunhas
Nilso Zampiva e Paulo Borges Valiati,
fls. 90 à 91, esteve um funcionário da ré
no escritório do autor, antes da redução
do limite de crédito, para lhe comunicar
tal fato, porém foi obtido junto à sua
secretária a informação de que o autor
não estava na cidade, e a secretária recusou-se a receber a comunicação.
SENTENÇAS
Além disso, houve realmente um
saque no caixa no valor de R$ 5.000,00,
no dia 08-06-98, fl. 28. Assim, não vislumbro litigância de má-fé por parte da
ré, embora não tenha conseguido provar suas alegações.
Isso posto, julgo procedente em parte
a pretensão da requerente, com fulcro no
art. 5º, inc. X, da CF, de 1988, para condenar o Banco do Estado do Rio Grande
do Sul S. A. a proceder ao pagamento da
quantia de cem salários mínimos a Simão
Serrano Elias, a título de indenização pelo
dano moral causado, calculado pelo salário mínimo vigente à época do fato,
corrigido monetariamente pelos índices
oficiais até a data do pagamento, acrescido de juros de mora de 6% ao ano, a
contar da data do evento danoso, nos
termos da Súmula nº 54 do STJ.
Sucumbentes parcialmente ambas as
partes, uma vez que o autor não teve
acolhida a sua pretensão relativa à condenação da ré a publicar em jornal local,
às suas expensas, retratação, nem a
pretensão de ver a ré condenada a pagar
no mínimo 200 salários mínimos, pagará esta o correspondente à metade das
custas processuais, enquanto a requerida pagará a outra metade.
No que tange aos honorários, a demandada pagará ao demandante, que
atua em causa própria, 15% sobre o valor
total da condenação que lhe foi imposta,
enquanto o requerente pagará ao advogado da requerida 10% sobre o valor da
pretensão não-acolhida, ou seja, sobre
cem salários mínimos. Para a fixação dos
honorários, considerei o disposto no art.
20, § 3º, alíneas a e c, do CPC.
Registre-se. Publique-se. Intimem-se.
Soledade, 1º de abril de 1998.
Vanise Röhrig Monte, Juíza de Direito.
313
SENTENÇAS CRIMINAIS
314
315
Processo nº 3.492-278/99 (IP nº 0259/99)
Autor: Ministério Público
Réus: A. P. F. e N. M. P.
Juiz prolator: André Luís de Moraes Pinto
Crime de furto. Aplicação do princípio da bagatela. Furto de vinte peixes.
Sentença absolutória.
“O Direito, como o viajante, deve
estar sempre pronto para o dia seguinte!” (Benjamin Cardoso, Juiz da Suprema Corte Americana)
“La ley es como la serpiente, solo pica
a los descalzos.” (camponês salvadorenho)
Vistos e examinados os autos.
A. P. F., brasileiro, casado, vigilante,
com 34 anos de idade, natural de I.,
branco, filho de P. L. F. e S. M. F.,
residente na Rua L. E. R., nesta cidade,
e N. M. P., vulgo “S.”, brasileiro, casado,
soldador, natural de N. M. T.-RS, com
49 anos de idade, branco, filho de P. M.
P. e D. A. S., residente na Rua C. R.,
nesta cidade, foram denunciados pelo
Ministério Público como incursos nas
sanções do art. 155, §§ 1º e 4º, inc. IV,
do CP e art. 1º da Lei nº 2.252/54.
A peça incoativa, em síntese, assim
narra os fatos: “No dia 16-10-99, de madrugada, em M., neste Município, os denunciados, em comunhão de esforços com
o adolescente M. E. H., motivados pela
idéia de lucro fácil, subtraíram, para si, 20
peixes, avaliados em R$ 22,00, da propriedade de O. P. e Z. N. D. Nas mesmas
condições de tempo e de lugar, os denunciados corromperam o adolescente referido a praticar a infração penal descrita”.
A denúncia foi recebida em 14-12-99
(fl. 32). Interrogados, os indigitados negaram a autoria. Contestaram que estivessem no local do crime. Afirmaram
que estavam pescando, com autorização,
em uma propriedade vizinha. No tríduo
legal (fl. 36) foi apresentada defesa prévia por procurador constituído, oportunidade em que manifestada discordância
em relação aos fatos articulados na inicial. No decorrer da fase instrutória procedeu-se à inquirição das vítimas e de
sete testemunhas.
No prazo do art. 499 o Ministério
Público requereu a atualização dos antecedentes. A defesa nada postulou. Em
alegações finais, o Parquet pediu fossem os réus condenados pelo crime de
furto qualificado, por entender presentes autoria e materialidade. No entanto,
requereu a absolvição pelo delito remanescente, por não reconhecer a existência da figura típica. A defesa técnica
pugnou pela absolvição dos réus, fazendo referência à insuficiência de provas. Vieram-me os autos conclusos para
sentença. Relatei.
Passo a fundamentar. A vestibular
acusatória noticia o furto de vinte peixes, avaliados em R$ 22,00, praticado
pelos acusados. Note-se: não se está a
falar de precatórios, “laranjas”, pasta rosa,
propina, anões do orçamento, socorro a
Bancos, operação Uruguay, passeio ao
Território de Fernando de Noronha usando avião oficial, sobra de campanha,
316
prêmio de loteria, viagem-fantasma,
superfaturamento de obras, loteamento
de benesses, cargos para apaniguados,
concessão de canais de rádio e televisão,
compra de votos, reeleição, falsificação
de remédios, de troca de grei partidária
às vésperas de eleição para as mesas
diretoras do Congresso Nacional... São
R$ 80,00 e não R$ 160.000.000,00...
O incriminado reconheceu a prática
do evento, mas justificou que as frutas
se destinavam a saciar a fome de seus
filhos, tendo sido rateadas com seu sobrinho inimputável. A conduta denunciada não foi efetuada mediante violência ou grave ameaça. Não houve
perigosidade. Por esta razão, mais que
nunca, a interpretação do tipo deve
seguir uma força centrípeta, num viés
restritivista.
Questão simples e eminentemente
patrimonial (mero ilícito civil), que só
pode ser objeto do Direito Penal do
terror, insensível à realidade social, trajado como Robin Hood, exercendo o
papel de superego da sociedade. Indisfarçável, pois, a desvalia do comportamento, a irrelevância da conduta e a
insignificância da ação, e, por corolário,
imprescindível a aplicação do princípio
da bagatela criminal, uma vez que sem
fôlego para ofender o bem jurídico
protegido pela moldura do art. 155 do
diploma repressivo.
Condenar alguém por furto de peixes é, por conseqüência, aplicar-lhe pena
restritiva de direito que, se não cumprida, conduzirá à conversão em pena privativa de liberdade. É cadeia. É possibilitar a reincidência. É marcar com ferro
em brasa a certidão de antecedentes. É
fechar as portas do trabalho e das já
estreitas vias da reinserção social.
SENTENÇAS
As certidões das fls. 30-1 não
positivam maus antecedentes. Não pode
um cidadão de direitos ficar eternamente manchado por fato isolado que tenha
praticado no curso de sua existência,
designadamente a quase 30 anos. Se o
instituto da reincidência, cujos efeitos
são indisfarçavelmente mais gravosos,
sucumbe com o passar de um lustro,
não poderiam aquelas condenações sem
força para gerá-la se perpetuarem, negativando o histórico de vida do agente.
Estes entendimentos, sublinho, não
podem ser confundidos com frouxidão,
benevolência, emocionalismo casuísta ou
com condescendência a incentivar a criminalidade. Ao contrário, por distinto vértice,
tem o fito de considerar o valor social de
uma realidade fática, obstando a criação
de mais um fosso a distanciar a Justiça no
atendimento das questões verdadeiramente importantes para a sociedade.
Outrossim, não percebo interesse do
Estado (e, sobretudo, dos seus financiadores, os contribuintes assalariados – mal-assalariados) em ver impulsionada a tão
pesada e dispendiosa máquina judiciária
para apurar condutas de escassa ou
inexpressiva lesividade social, considerando que, em outro prisma, se encontram os imensuráveis acontecimentos
potencial ou realmente graves. Em tempos de pancriminalização, de helefantíase
típica, de furor repressivo, não se pode
perder de vista o caráter fragmentário e
subsidiário do Direito Penal, devendo
este se constituir na ultima ratio, e não
numa luva moldada a todas as mãos.
Nesse contexto, é mister referir
Weltzel e a sua “Teoria da Adequação
Social”, pela qual, em apertadíssima síntese, se intenta embretar (intradogmaticamente) o raio de incidência da norma
SENTENÇAS
penal. Não é possível se legitimar a
constatação do saudoso Heleno Fragoso,
apud Nilo Batista, “Punidos e Mal Pagos”, Rio de Janeiro, Revan, 1990, p. 94:
“O Direito Penal é, realmente, Direito
dos pobres, não porque os tutele e
proteja, mas porque sobre eles exclusivamente faz recair sua força e seu dramático rigor”.
Abordando tema nos moldes deste
em apreço, o jurista Amilton Bueno de
Carvalho, em conhecida obra, que obrigatoriamente suscita questionamentos e
reavaliações (“Magistratura e Direito Alternativo”), reproduz citação de Fechner,
a qual, pelo conteúdo e significado,
exige seja designada: “Somente para os
desafortunados é que a ordem jurídica
se torna problemática. Para eles, essa
ordem é exclusivamente produto do arbítrio dos poderosos. É proibido pedir
esmolas nas portas das igrejas, roubar
pão e dormir sob as pontes”.
A realidade triste de uma sociedade
maculada pela desigualdade, pela exclusão, pelo abandono e pela discriminação tem encontrado sensibilidade
pontual nos tribunais, senão vejamos:
“Furto. Crime de bagatela. Se o fato
imputado ao réu mostra-se irrelevante
socialmente, sendo o valor do bem
furtado irrisório, aplica-se o princípio
da insignificância. Apelação provida para
absolver o réu”. (Apelação-Crime nº
698132826, 2ª Câmara de Férias Criminal do TJRGS, Lagoa Vermelha, Rel. Des.
Marco Antônio Bandeira Scapini, apelante: R. C. A. P., vulgo “J.”, apelada: a
Justiça, julgada em 30-07-98, unânime)
“Crime de bagatela. Conduta atípica.
A subtração de algumas ramas de aipim
da horta da vítima, por determinar um
dano material insignificante, revela que
317
a ação incriminada descrita na denúncia
não possui peso ou vigor suficientes
para atentar contra o bem jurídico tutelado pela norma contida no art. 155 do
CP, tornando atípica a conduta do agente, ensejando a rejeição da denúncia.”
(“Julgados do TARGS” nº 69/101)
Por derradeiro, é de ser vincado o
célebre voto da lavra do Des. Léo Afonso Einloft Pereira, por ocasião do relatório no Recurso em Sentido Estrito nº
291063840: “Descriminando-se judicialmente a bagatela, não se estará
desestimulando a honestidade, pois ninguém se tornará desonesto porque o
Judiciário adstringiu o efeito do ilícito
insignificante ao antecedente policial. A
desonestidade surge pela dramaticidade
da situação socioeconômica do agente.
Não será a impunidade do fato irrelevante que fomentará o crime, mas a
pobreza do povo. É a miséria a inimiga
da aflita sociedade brasileira, não o jovem delinqüente que dela é fruto.
“Portanto, para combater delitos patrimoniais, urge que o País se empenhe
na radicação de questões como a natalidade descontrolada, a fome, a infância
abandonada, o desemprego e a pobreza em geral, e não que o Poder Judiciário reprima gravemente as infrações
patrimoniais, pois estará combatendo os
seus efeitos, ao revés de atacar as causas da criminalidade.
“Neste vendaval de cinismo e decomposição moral que afeta uma sociedade em crise, envolvendo até mesmo a
classe dirigente, sustentar-se no preceito
dura lex, sed lex que a tese do crime de
bagatela não encontra guarida no Direito
sancionador pátrio, salvante como causa
especial de diminuição de pena, no furto
e no estelionato, ou de perdão judicial,
318
ao crime do art. 176 do CP, é uma postura
sobremodo legal, mas conservadora, não-compatível, repita-se, com a realidade
nacional, a qual o julgador jamais poderá desconhecer ou ignorar”.
Arrematando, exteriorizo ainda mais
o que muito bem vincou o Des. José
Antônio Paganella Boschi em seu texto
“Justiça aos Juízes”, publicado pelo “Informativo do Instituto Transdisciplinar
de Estudos Criminais” nº 05/08: “O uso
abusivo do Direito Penal é uma prática
antiga em nosso País. O Prof. René Ariel
Dotti menciona, em suas “Notas para a
História das Penas no Sistema Criminal
Brasileiro”, que ao tempo das Ordenações Portuguesas e de seu fantástico
regime de terror um rei africano, ao
ouvir espantado a leitura do catálogo
de punições, teria manifestado a estranheza de que não se cominasse pena
‘para quem andasse descalço’ ”!
Por fim, servindo de inspiração e para
provocar oxigenada reflexão, reproduzo
neste julgamento a composição do cantor nativista João de Almeida Neto,
intitulada “A Defesa”: “Voltando de uma
caçada, dentro da noite silente, o acusado, João Vicente, cometeu a insensatez
de agarrar umas batatas de uma lavoura
lindeira, furtando pela primeira e, também, última vez. É de bons antecedentes, como a defesa supunha, pois não
falta testemunha que lhe abone o proceder, é um índio de pouca prosa, honesto, simples, pacato, que mora à beira do
mato, plantando para viver.
“Mas todos têm o seu dia de culo,
como se diz... e ele, pobre, infeliz, tentado por Satanás, pôs no bolso umas
batatas, de vinte a trinta, calculo, e no
seu dia de culo foi descoberto, no más.
E foi um ‘Deus-nos-acuda’, seu rancho
SENTENÇAS
foi revistado, veio um Sargento fardado
com pose de General, e o João Vicente
Pacheco, pacato, simples, honesto, o filho do seu Modesto, foi processado,
afinal.
“E agora, aqui me concentro nestes
versos sem beleza, para fazer a defesa de
tão pequeno ladrão; abro o código da lei,
como se diz lá por fora, e peço, sem mais
demora, a sua absolvição. João Vicente
está inocente e não merece a condena,
porque está isento de pena, pelo Código
Penal; pois nestes tempos modernos, de
roubos e negociatas, quem furta algumas
batatas é um retardado mental.
“Ou então basta uma multa, porque
o furto praticado, de tão pequeno e
minguado, coube em dois bolsos normais, e que importa à parte lesada, menos pobre em bens terrenos, umas
batatas a menos, umas batatas a mais.
Por falta de dolo ou culpa que o crime
caracterize, deixe passar o deslize até
sem multa, doutor. Vossa Excelência é
sensível, e sabe em sua nobreza que a
maior batata inglesa não vale um gesto
de amor”.
Ainda, não encontrei quaisquer elementos nos autos, precisamente na prova oral e nas certidões, a indicar tenham os argüidos corrompido o adolescente. Ao exposto, julgo improcedente
a pretensão penal e absolvo A. P. F. e
N. M. P., com supedâneo normativo no
art. 386, inc. III, do CPP. Custas pelo
Estado. Preencha-se o Boletim Individual Estatístico e remeta-se-o ao Departamento de Informática Policial.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Não-Me-Toque, 11 de outubro de
2000.
André Luís de Moraes Pinto, Juiz de
Direito.
319
Processo-Crime nº 2.317/205 – Estupro
Vara Judicial Única da Comarca de Campo Novo
Autor: Ministério Público
Réu: L. S.
Juiz prolator: Luís Antônio Saud Teles
Estupro com violência real e presumida. Vítima que resulta grávida do
próprio genitor. Ação penal julgada procedente.
Vistos, etc.
L. S., brasileiro, viúvo, montador, com
45 anos de idade na data do fato, natural
de R.-RS, filho de J. A. S. e de S. S.,
residente na Rua R., Bairro P., no Município de P.-RS, foi denunciado, pelo
Ministério Público , como incurso nas
sanções do art. 213, c/c os arts. 224, a,
225, II, e 226, II, todos do CP, pela
prática do seguinte fato delituoso: “Nos
anos de 1993, 1994, 1995 e 1996, em
diversas datas, não esclarecidas no inquérito policial, na cidade de C. N., e no
ano de 1996, em P.-RS, o denunciado L.
S. constrangeu a vítima D. F. S., sua
filha, à conjunção carnal, mediante ameaças e violências físicas, conforme auto
de exame de corpo de delito da fl. 15.
“Para submeter a vítima à prática da
conjunção carnal, o denunciado explorava o temor reverencial da filha D., e
ainda a agredia fisicamente, quando ela
se recusava a manter relações sexuais
com o acusado. A esposa do denunciado
e mãe da vítima havia falecido, de forma
que a vítima ficou à mercê do acusado.
“A violência também é presumida
pela idade da vítima, porque a ofendida
D. tinha 12 anos de idade, quando o
denunciado iniciou a prática de cons-
trangimento à conjunção carnal contra a
filha (certidão da fl. 12). Em conseqüência das relações sexuais mantidas com
o denunciado L. S., a vítima D. restou
grávida e deu à luz uma menina em
28-09-96, conforme certidão da fl. 09. O
crime foi cometido com abuso de pátrio
poder que o denunciado exercia sobre
a vítima, sua filha”.
A denúncia foi recebida em 03-08-98.
O réu foi interrogado (fls. 117/8). Confessou ter mantido relações sexuais, de
forma consensual, com a vítima, quando esta já contava mais de 15 anos de
idade. Por defensor constituído, apresentou defesa prévia na fl. 119 e arrolou seis testemunhas. Durante a instrução do processo, colheu-se o depoimento da vítima e de oito testemunhas.
Na fase do art. 499 do CPP, as partes
nada requereram. Em alegações finais,
o Ministério Público (fls. 216/29) postulou a condenação do réu, nos moldes
da denúncia. A defesa (fls. 231/3) postulou a absolvição, afirmando a atipicidade do fato. Vieram os autos conclusos. Relatei.
DECIDO
D. F. S. (a vítima) é filha de L. S. (o
réu) e de M. N. S., sendo que após a
morte da mãe, D. permaneceu residindo apenas com o pai. A persecutio criminis in judicio partiu das informações
da avó materna da vítima, que tinha
320
fundadas suspeitas de que o pai da filha
de D. era o seu próprio pai, ou seja,
que L. era o pai da filha de sua filha.
No depoimento da vítima, prestado
perante a autoridade policial (fl. 27),
esta relata que sua mãe morreu no ano
de 1993 e que, desde então, seu pai a
obrigava a manter relações sexuais com
ele, mostrando-se agressivo quando ela
com isso não consentia. Estas relações
ocorreram desde após a morte de sua
mãe, até após a época em que L. passou a conviver com J. Quando restou
comprovado que estava grávida, como
L. sabia que era o pai do filho que sua
própria filha esperava, todos se mudaram para a cidade de P.
Ouvido como indiciado (fl. 41), L.
refere que após a morte de sua esposa,
porque trabalhava como montador,
passava maior parte do tempo viajando,
sendo que, passado cerca de 02 anos
da morte de sua esposa, D. não aceitava que o depoente tivesse outra mulher, pois “chorava seguidamente e ficava emburrada”. Diante dessa situação,
acabou ocorrendo o envolvimento sexual entre o depoente e sua filha D.,
sendo que, quando deste relacionamento, D. não era mais virgem.
Até porque passava maior parte do
tempo viajando, os relacionamentos
sexuais com sua filha não eram freqüentes, e, quando retornava para casa,
D. não o deixava sair. Na época em que
o depoente passou a conviver com J.,
ainda mantinha relações sexuais com a
filha D., sendo que J. desconhecia tal
envolvimento.
Em
razão
desses
envolvimentos sexuais, D. engravidou
do depoente.
Com o recebimento da denúncia,
realizou-se o interrogatório do réu, que
SENTENÇAS
restou reduzido a termo nas fls. 117/8.
Também em juízo o réu não nega o
envolvimento sexual com sua própria
filha, mas apresenta a sua estória
permeada por circunstâncias não-referidas na fase policial.
No interrogatório das fls. 117/8, o
réu aduz que manteve relações sexuais
com D. apenas quando esta já contava
15 anos de idade. De forma contrária ao
afirmado perante a autoridade policial,
o réu agora nega a paternidade da criança gerada por sua filha D., afirmando
que nem sabia que ela estava grávida.
Relata que as relações sexuais com sua
filha duraram mais ou menos 02 meses
e ocorreram antes do nascimento de D.
(filha de D., que nasceu em 28-09-96),
quando D. ainda não tinha “barriga”.
Por fim, afirma que nunca forçou a
filha D. a praticar o ato sexual, sendo
que inclusive falava para ela que “isto
não era certo”.
Que a vítima manteve relações sexuais com seu pai não há dúvidas nos
autos. Resta saber os limites temporais
de tais relacionamentos e as circunstâncias em que eles ocorreram. A tese
ministerial é no sentido de que o réu
cometeu os fatos em continuidade delitiva, durante os anos de 1993, 1994,
1995 e 1996, ou seja, antes e depois de
a vítima completar 14 anos de idade.
Termo inicial. Embora não haja nos
autos a certidão de óbito de M. N. (mãe
da vítima), há várias referências das
testemunhas no sentido de que o falecimento ocorreu no ano de 1993. D.
refere que a primeira pessoa com quem
manteve relações sexuais foi seu pai, e
tiveram início logo após a morte de sua
mãe, quando contava 12 anos de idade
e ainda não havia menstruado, pois já
SENTENÇAS
tinha 13 anos de idade quando da primeira menstruação. Considerando que
a vítima nasceu em 06-02-81, quando
da morte de sua mãe, contava exatos 12
anos de idade.
O réu, quando ouvido na Polícia, refere
que, no tempo em que manteve relações
sexuais com a vítima, faziam “uns” 02
anos que sua esposa havia falecido. Refere também que “já no tempo em que
estava convivendo com J. ainda mantinha
relações sexuais com D.” Depreende-se
deste depoimento (diga-se de passagem:
depoimento que não restou minimamente atacado pelo réu como sendo viciado,
nulo ou fruto de abuso policial) que as
relações sexuais tiveram início antes do
convívio entre o réu e J.
J. refere dois dados temporais importantes. No depoimento prestado em
26-05-98 (fl. 44), afirma que possui com
o réu um filho de 04 anos de idade. No
depoimento prestado em 21-10-99, declara que convive com o réu há mais de
06 anos. Portanto, por força de interpretação lógica, conclui-se que J. convive
com o réu desde o ano de 1993, ou
seja, logo em seguida após o óbito da
mãe da vítima. Se o réu passou a conviver com J. ainda no ano de 1993 e
antes disso já mantinha relações sexuais
com a vítima, isto corrobora a tese
ministerial quanto ao termo inicial dos
atos descritos na inicial acusatória.
No interrogatório judicial o réu faz
afirmações inconciliáveis, pois afirma que
manteve relações sexuais com a vítima,
quando esta já tinha mais de 15 anos de
idade, pelo período de 02 meses, e
quando ela ainda não estava grávida.
Ocorre que a vítima completou 15 anos
de idade em 06-02-96 e deu à luz sua
filha em 28-09-96. Se se considerar o
321
prazo normal de gestação, conclui-se
pela impossibilidade de o afirmado pelo
réu ser verdadeiro, pois quando D. completou 15 anos de idade já estava no
primeiro ou segundo mês de gestação
da filha D. Por tudo isto é que concluo
que o réu manteve relações sexuais pela
primeira vez com a vítima quando esta
contava menos de 14 anos de idade,
ainda no ano de 1993.
Termo final. A vítima afirma que o
réu é o pai de sua filha. Portanto, a
palavra de D. aqui também conforta a
tese ministerial de que, até o ano de
1996, o réu manteve relações sexuais
com a vítima. Nas declarações prestadas
perante a autoridade policial, o réu reconhece a paternidade da filha da vítima, portanto, também aqui encontra
guarida o afirmado na inicial quanto ao
termo final dos atos sexuais entre L. e D.
Sopesando-se a palavra firme e segura da vítima, que aceita o constrangimento de sustentar que sua filha é
fruto de uma relação incestuosa; e as
palavras dúbias do réu, que perante a
autoridade policial diz uma coisa e, na
frente do magistrado, outra, é certo que
aquela prefere estas. Aqui não há lugar
para discussão no sentido de o réu ser,
ou não, o pai da filha da vítima, mas
não se pode descurar a hipótese, pois
a paternidade foi reconhecida pelo réu
quando de suas declarações à autoridade policial. Sendo, ou não, pai de D.,
a verdade é que, na época da concepção desta criança, o réu mantinha relações sexuais com D., vale dizer, no
mínimo 09 meses antes do nascimento
de D., réu e vítima ainda mantinham
relações sexuais.
Mas um fator de relevância para
determinar-se este termo final são os
322
depoimentos no sentido de que, logo
que o réu tomou ciência da gravidez de
sua filha, transferiu residência para a cidade de P., para afastar D. do convívio
dos familiares maternos. Possuía ele um
motivo para isto e o motivo era esconder
a gravidez incestuosa dos olhos da avó
materna da vítima. Dessarte, todas as
evidências apontam no sentido de que,
pelo menos, até 28-12-95 réu e vítima
mantiveram relações sexuais, pois esta é
a provável data da concepção de D.
Violência real. O tipo previsto no
art. 213 do CP possui como elementares
o constrangimento, mediante violência
ou grave ameaça, de uma mulher à conjunção carnal. Portanto, a verificação da
violência ou a da grave ameaça são
elementos indispensáveis para a tipificação deste delito.
Quanto à violência, esta pode ser real
ou ficta, pois a lei presume que aquelas
pessoas elencadas no art. 224 do CP não
podem consentir de forma válida à prática
do ato sexual. Portanto, não cabe falar-se
em cópula consensual se a mulher conta
menos de 14 anos de idade, é alienada
mental ou encontra-se em situação que
não possa oferecer resistência.
Conjugando-se estes dois artigos legais, pode-se afirmar que: a) sempre que
houver conjunção carnal com uma mulher mediante violência ou grave ameaça, configurado estará o delito de estupro; e b) mesmo sem violência ou grave
ameaça, ainda haverá estupro se a vítima
encontrar-se em uma das hipóteses do
art. 224 do CP, pois aqui presume-se a
ausência de consentimento válido.
Mais uma vez analiso os depoimentos da vítima e as palavras do réu. “…
A primeira vez que aconteceu relação
sexual entre os dois foi logo em segui-
SENTENÇAS
da que sua mãe morreu, em casa, estando somente os dois, já que sua irmã já
tinha casado. Estava indo dormir e o réu
forçou a barra, tendo batido na depoente. Não contou para ninguém, porque
tinha medo dele… Depois que seu pai
casou com J., continuou mantendo relações com ele. J. sabia, mas não fazia
nada porque senão L. batia nela… Não
contava isso para ninguém, nem para
sua irmã…” (depoimento judicial da vítima, fl. 168, mas sem os grifos)
“… Após o falecimento da mãe da
declarante, no ano de 1993, seu pai, L.
S., vinha obrigando-a a sair com ele, a
manter relações sexuais com ele; que
quando a declarante se negava a ‘sair’,
L. mostrava-se agressivo…” (depoimento prestado pela vítima na fase policial,
fl. 27, sem os grifos)
Outra é a ótica do réu. Transcrevo
parte de seu depoimento da fl. 41. In
verbis: “… Passados uns 02 anos do falecimento da esposa do depoente, a filha D. não aceitava que o depoente tivesse outra mulher, chorava seguidamente e ficava emburrada. As coisas foram
até um ponto em que acabou acontecendo o envolvimento do depoente com a
filha, ou seja, mantiveram relações sexuais…” Em juízo, no interrogatório das
fls. 117/8, limita-se o réu a aduzir que:
“… Nunca forçou D. a praticar qualquer
ato sexual, tendo, inclusive, falado para
ela que isto não era certo…”
Para o réu, a vítima quis, insistiu,
seduziu, atacou tanto que acabou determinando o relacionamento sexual,
embora soubesse que “aquilo não era
certo”. Não temo erro ao afirmar que
no processo penal todos buscamos justificar ações humanas, e, para a maioria dos atos, até existe uma justificativa
SENTENÇAS
plausível, mas que justificativa existe
para o pai que viola a sexualidade de
sua própria filha, quando até mesmo
os animais irracionais evitam o cruzamento entre parentes próximos? Será que
um pai algum dia poderá justificar, não
para os outros, mas a si próprio, o fato
de ter descoberto a nudez de sua filha,
daquela que é sangue do seu sangue?
No mínimo, nos autos o réu não
logrou justificar seu ato, pois inadmissível, impensável e inconcebível a hipótese de que um pai não consiga evitar
o envolvimento sexual com a própria
filha, ainda mais quando sabia que “aquilo não era certo”.
Mais. Do outro lado da relação encontra-se uma criança, que já aos 12
anos de idade, mesmo antes da primeira menstruação, manteve relações sexuais com o próprio pai. Ainda mais.
Menina esta órfã de mãe e que se encontrava subjugada única e exclusivamente aos mandos e desmandos do pai.
Houve violência quando dos atos
sexuais entre réu e vítima? É óbvio que
sim, pois a vítima não se cansa de referir
que: a) seu pai a agrediu; b) ficava
agressivo quando ela se negava a satisfazer a sua lascívia; e c) não podia ter
namorados, porque o pai não deixava.
Houve grave ameaça? Também é evidente que sim, pois a exploração do
temor reverencial (agravado pela circunstância de a mãe da vítima ter falecido) é inegável. A vítima encontrava-se
absolutamente à mercê do réu, sendo
que sua vida dependia única e exclusivamente de L., seu pai, seu algoz.
Quando o réu tinha o dever moral
e legal de velar pelos direitos da vítima,
abusa de sua condição pessoal para
subjugá-la e violá-la em sua sexualida-
323
de. Portanto, também é certo que houve grave ameaça.
Continuidade delitiva. “O pai de D.
é seu pai… As relações sexuais com
seu pai foram umas seis vezes. Não
tomava anticoncepcional, pois não sabia destas coisas. A primeira vez que
aconteceu a relação não fazia nem um
ano que sua (sic) mãe tinha morrido…”
(depoimento judicial da vítima, fl. 168)
Conjugando tudo o até aqui apresentado, é certo afirmar que houve uma
continuidade delitiva, pois todas as relações (seis, segundo a vítima) mantidas
entre réu e vítima ocorreram em condições de tempo, lugar e modo de execução semelhantes, que possibilitam que
os subseqüentes atos sejam havidos
como continuação do primeiro.
Sempre que o réu relacionou-se sexualmente com sua filha foi mediante violência física e/ou graves ameaças em razão
do temor reverencial, portanto, independentemente da idade da vítima, em todas
as oportunidades restou caracterizada a
ocorrência do delito de estupro. Entretanto, como a idade da vítima possui importante relevância para a fixação da pena,
há que ser considerada a existência de
duas cadeias de continuidade delitiva: a
primeira entre os atos praticados antes de
a vítima alcançar a idade de 14 anos; e
a segunda, após aquela data.
Vítima menor de 14 anos – Leis nos
8.069/90 e 8.072/90. Antes das alterações legislativas ocorridas em 1990, o
tipo básico do delito de estupro previa
penas abstratas de 03 a 08 anos de
reclusão. O Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei nº 8.069/90, buscando
o cumprimento dos objetivos traçados
pela doutrina da proteção integral, acrescentou ao art. 213 do CP um parágrafo
324
único, elevando as penas corporais previstas no caput para os limites de 04 a
10 anos de reclusão, quando a ofendida
fosse menor de 14 anos de idade.
Ocorre que restou assinalado para o
Estatuto da Criança e do Adolescente um
prazo de vacatio legis, portanto, embora
publicado em 16-07-90, somente passou
a viger 90 dias após a publicação. Durante o prazo da vacatio legis do Estatuto da
Criança e do Adolescente, foi publicada
e entrou imediatamente em vigor a Lei
dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de
25-07-90), que alterou a pena prevista no
caput do art. 213 do CP para reclusão de
06 a 10 anos, com a majoração de metade, se a vítima encontrar-se em uma das
hipóteses do art. 224 do CP.
Assim, quando o Estatuto da Criança
e do Adolescente passou a viger, surgiu
um aparente conflito de normas, pois,
alguns incautos poderiam sugerir que o
estupro praticado contra uma vítima
menor de 14 anos seria apenado de
forma mais branda que na hipótese de
a vítima contar mais de 14 anos de
idade na data do fato.
É bem verdade que o malsinado § 1º
do art. 213 do CP (introduzido pelo art.
263 do ECA) restou expressamente revogado pela Lei nº 9.281/96. Mas, no caso
dos autos, como prevalece a regra tempus
regit actum, a questão não pode ser
solucionada com a simples afirmação da
revogação havida pela Lei nº 9.281/96.
Quanto ao assunto, alinho-me entre
aqueles que afirmam que o parágrafo
único do art. 213 do CP não passou de
um dispositivo natimorto, pois a Lei
dos Crimes Hediondos, ao alterar o
apenamento do delito de estupro, revogou tacitamente as alterações determinadas pelo Estatuto da Criança e do
SENTENÇAS
Adolescente. E, aqui, não se pode deixar incorrer em peta, pois, embora o
Estatuto da Criança e do Adolescente
tenha passado a viger após a vigência
da Lei dos Crimes Hediondos, a Lei nº
8.072/90 é posterior à Lei nº 8.069/90.
Vítima menor de 14 anos – Majorante do art. 9º da Lei nº 8.072/90. Como já
afirmado acima, mesmo sem violência
real ou grave ameaça pode haver o delito
de estupro, pois o nosso ordenamento
penal não reconhece o coito consensual
se a vítima encontra-se nas hipóteses do
art. 224 do CP. O Direito é sistema e
como tal deve ser interpretado, portanto,
penso que a melhor exegese do art. 9º
da Lei dos Crimes Hediondos é aquela
que mantém a coerência sistêmica e
atribui uma utilidade a todos os dispositivos legais invocados.
Somente para explicitação, tenho que
a questão deve ser assim solvida: a)
Estupro com violência ficta (aquele em
que não há violência ou grave ameaça,
e a vítima encontra-se nas hipóteses do
art. 224 do CP): a pena é a prevista no
caput do art. 213 do CP; b) Estupro com
violência real ou grave ameaça, praticado contra vítima que se encontra nas
hipóteses do art. 224 do CP: a pena é
a do caput do art. 213, majorada de
metade por força do art. 9º da Lei nº
8.072/90; e c) Estupro com violência
real de que resultou lesão corporal de
natureza grave ou morte, praticado
contra vítima nas hipóteses do art. 224
do CP: as penas são aquelas previstas
no art. 223, caput e parágrafo único,
aumentadas de metade em qualquer das
formas qualificadas, também por força
do art. 9º da Lei nº 8.072/90.
Por que não incide a causa de aumento do art. 9º da Lei nº 8.072/90 nos
SENTENÇAS
casos de estupro com violência ficta? A
resposta é óbvia, pois, em Direito, não se
admite o bis in idem, e, se se considerasse a menoridade da vítima tanto para
reconhecer a existência da violência ficta,
como para determinar a majoração da
pena, haveria aqui uma dupla valoração
penal para a mesma circunstância.
Corolário. Após todo o exposto, resta
a conclusão de que o réu praticou o
delito de estupro contra a sua filha, em
continuidade delitiva, com violência real
e grave ameaça, durante os anos de
1993, 1994, 1995 e 1996. Resta agora a
fixação das penas.
Fixação das penas. A) Primeira investida sexual. Vítima menor de 14 anos
de idade (de 1993 até 05-02-95). L. S.
não registra antecedentes (certidões das
fls. 52 e 214v.) e sua conduta social vem
abonada nos autos pelas testemunhas T.
(fl. 152) e O. (fl. 182). Demonstrou não
possuir qualquer espécie de freios morais ao buscar a satisfação de seu ímpeto
sexual com a própria filha, e isto é sintoma mais que suficiente a demonstrar
uma personalidade desviada.
Os motivos do delito são normais à
espécie, e as circunstâncias serão
valoradas como causas de aumento da
pena. As conseqüências são por demais
relevantes, pois, mesmo que D. (filha da
vítima) não seja filha do réu, esta criança
para sempre carregará a pecha de ser
fruto de uma relação incestuosa. E mais,
os danos que o ato tresloucado do réu
já geraram para o desenvolvimento sadio de sua filha continuarão sendo verificados por toda a adolescência da
menina e, quiçá, em sua vida adulta.
Quanto ao comportamento da vítima,
não consigo vislumbrar nos autos nenhum ato que se possa atribuir à D.
325
como determinante do delito. Somente
alguém vil, abjeto, execrável e ignóbil
poderia sugerir que, quando uma criança chora ou senta no colo do pai e
suplica carinho, está dando azo ou provocando a prática de um delito contra os
costumes. O próprio réu afirma que sabia
que aquilo não era certo. Como tinha
consciência do fato que estava praticando; como era inteiramente capaz de determinar-se de forma contrária; como lhe
era exigível conduta diversa, é certo que
a sua culpabilidade somente pode ser
graduada como intensa.
Dessarte, pela análise dos parâmetros ditados pelo art. 59 do CP, fixo a
pena-base em 06 anos e 06 meses de
reclusão. Influenciam na fixação da pena
duas circunstâncias bastante relevantes
que constituem causas de aumento da
pena: o fato de o réu ser ascendente da
vítima (art. 226, II, do CP) e a menoridade da vítima (art. 9º da Lei nº 8.072/
90). Segundo a regra insculpida no parágrafo único do art. 68 do CP, o Juiz
deve aplicar apenas uma das causas de
aumento da pena, se estas encontram-se na parte especial (e as causas de
aumento existentes na legislação extravagante são consideradas como estando
na parte especial).
Como a causa que mais aumenta é
o fato de a vítima não ser maior de 14
anos, utilizo a circunstância de o réu ser
pai da vítima como agravante genérica,
e não como majorante. Assim, porque o
delito foi cometido por ascendente contra descendente (art. 61, II, e, do CP),
agravo a pena-base em 02 meses de
reclusão. Como inexiste outra circunstância agravante ou atenuante, a pena
provisória resta fixada em 06 anos e 08
meses de reclusão.
326
Não considero a confissão do réu,
porque a confissão em seu sentido técnico não houve. O réu não nega a prática
dos atos sexuais, mas não reconhece o
estupro. Isto não é confissão. O delito foi
praticado contra pessoa que encontrava-se nas hipóteses do art. 224 do CP, ou
seja, contra vítima menor de 14 anos de
idade, portanto, incide a causa de aumento prevista no art. 9º da Lei dos Crimes
Hediondos, que determina a majoração
da pena provisória por metade. Dessa
forma, a pena definitiva para o primeiro
estupro praticado pelo réu contra a vítima
D. é de 10 anos de reclusão.
B) Última investida sexual. Vítima
maior de 14 anos de idade (de 06-02-95
até 1996). A fixação da pena para os demais
fatos somente teria relevância para poder-se confrontar eventual hipótese de concurso material, mais benéfico que o reconhecimento da continuidade delitiva. Como
é certo que a ficção da continuidade é
mais favorável ao réu (a pena mínima para
cada um dos fatos seguintes seria de 09
anos de reclusão: art. 213 mais art. 226, II,
ambos do CP), deixo de proceder aos
cálculos e procedo à imediata análise da
pena pelo delito continuado.
Continuidade delitiva. Sobre a hipótese debatida nos autos, possível se
apresenta a aplicação do disposto no
caput do art. 71 do CP, pois a série de
estupros praticados pelo réu contra sua
filha podem ser entendidos como única. Em razão da quantidade de atos
praticados pelo réu (seis, segundo a
vítima), a majoração da pena vai fixada
na ordem de 1/4. Assim, como a pena
definitiva restou fixada em 10 anos de
reclusão para o fato mais grave, o reconhecimento da continuidade delitiva
a eleva em 1/4, e, então, a pena a ser
SENTENÇAS
cumprida pelo réu é de 12 anos e 06
meses de reclusão.
Art. 92, II, do CP. Como o réu abusou sexualmente de sua própria filha,
resta mais que evidente que não possui
ele capacidade de exercer o pátrio poder
sobre a vítima. Entretanto, este efeito da
condenação perde relevância prática,
pois os documentos existentes nos autos demonstram que o réu já foi destituído do pátrio poder que detinha sobre a filha D.
Isso posto, julgo procedente a denúncia para condenar o réu L. S., como
incurso nas sanções do art. 213, caput,
do CP, c/c o art. 9º da Lei nº 8.072/90,
na forma do art. 71, também do CP, no
cumprimento da pena privativa de liberdade de 12 anos e 06 meses de
reclusão e na incapacidade para o exercício do pátrio poder sobre a vítima.
Nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei nº
8.072/90, o regime de cumprimento da
pena será o integralmente fechado.
Como o réu apresentou-se a todos os
atos do processo e inexistem causas a
determinar a sua segregação provisória
(até mesmo o clamor social já não é tão
intenso, pois os fatos ocorrem já há alguns anos), possibilito que apele em
liberdade. Com o trânsito em julgado da
sentença condenatória, lance-se o nome
do réu no rol dos culpados, oficie-se ao
TRE, expeça-se a Ficha Pj-30 e o BIE,
forme-se o PEC e expeça-se de forma
incontinenti o mandado de prisão. Após
a remessa do PEC à Vara das Execuções
Criminais de Três Passos, arquive-se com
baixa. Custas pelo réu.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Campo Novo, 07 de julho de 2000.
Luís Antônio Saud Teles, Juiz de Direito.
327
Processo-Crime nº 00102150456 – Homicídio Simples
Inquérito Policial nº 1.445/99-100.315A
Autor: Ministério Público
Réu: R. A. S.
Origem: 2º Juizado da 1ª Vara do Júri – Comarca de Porto Alegre
Juiz prolator: Mário Rocha Lopes Filho
Homicídio simples. Delito de trânsito. Vítima que fica presa às ferragens do
automóvel. Inocorrência de dolo eventual. Desclassificação do delito.
Vistos, etc.
1. R. A. S., brasileiro, casado, vigilante, filho de J. A. S. e de C. A. S.,
residente na Rua W. M., Bairro R. B,
nesta Capital, foi denunciado pelo Agente do Ministério Público, por infração
ao art. 121, caput, na forma do art. 14,
inc. II, ambos do CP, com suporte no
inquérito policial supramencionado,
porque: “No dia 22-08-99, por volta das
16h15min, na Av. A. C., Bairro P., nesta
Capital, o denunciado, conduzindo o
automóvel Voyage, deu início ao ato de
matar a vítima F. O. L., atropelando-o e
a arrastando-o por aproximadamente
05km, produzindo-lhe as lesões descritas no boletim de atendimento do Hospital Cristo Redentor.
“O fato não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, posto que o mesmo foi detido pela autoridade policial, e também devido ao imediato socorro médico prestado ao ofendido”.
A denúncia foi recebida em 26-10-99,
e o acusado, preso em flagrante homologado, após regular citação, foi interrogado, forneceu sua versão sobre o fato e,
através da Defensoria Pública atuante nesta
Vara, ofereceu defesa prévia no tríduo de
lei (fls. 27v., 172v./176 e 182/183).
A instrução colheu os informes de
três testemunhas arroladas na inicial acusatória e três testemunhas de defesa,
homologando-se, com a anuência da
defesa, a desistência da inquirição da
testemunha faltante. Além disso, foi
substituída a inquirição das testemunhas
arroladas em defesa prévia por declarações abonatórias, conforme postulação
da defesa e despacho da fl. 207.
Durante a instrução, adveio o passamento da vítima, motivando, por essa
razão, o aditamento à denúncia pelo
Ministério Público, imputando ao acusado a sanção descrita no art. 121, caput,
do CP, conforme promoção das fls. 237/
238.
Recebido o aditamento em 02-06-00
(fl. 238v.), foi o réu reinterrogado, reaberto o prazo para apresentação de
alegações preliminares, concluindo-se a
instrução com a inquirição de duas testemunhas – uma delas por precatória
expedida para a Comarca de Passo
Fundo, em virtude de o Corregedor-Geral da Brigada Militar ter fornecido
o novo endereço da referida testemunha, por não mais integrar os quadros
daquela instituição, conforme se vê à fl.
241 –, tendo a defesa reiterado os depoimentos das demais testemunhas inquiridas em juízo (fls. 245/250 e 255).
328
Registre-se, por pertinente, ter sido
concedida a liberdade provisória ao imputado, mediante os compromissos de
estilo, antes mesmo do início da instrução criminal (fl. 142v.). Declarada encerrada a instrução, no prazo do art.
406 do CPP, o Órgão Ministerial propugnou pela pronúncia do acusado, e
a defesa, por seu turno, pela desclassificação do delito ao réu atribuído. É, em
síntese, o relatório.
2. Decido. 2.a. Preliminarmente, cumpre ser registrado ter sido expedida carta
precatória para a comarca de Passo
Fundo, em razão de haver o Corregedor-Geral da Brigada Militar, conforme
o Ofício nº 994/H/COR, da fl. 241, informado o desligamento da testemunha
L. R. D. dos quadros daquela instituição, sendo, portanto, despiciendo o
comentário tecido pelo insigne magistrado da Comarca deprecada, à fl. 255.
Por outro lado, antes de aferir a
respeito da conduta de R. A. S., a quem
é imputada a prática de homicídio simples com dolo eventual, por pertinente,
permito-me acrescer o seguinte: 2.b. A
problemática do trânsito. 2.b.1. Introdução. É bom fique registrado, desde o
início, que os delitos de trânsito são
aqueles que mais preocuparam e continuam preocupando não só os legisladores, a sociedade, como também – e
principalmente – a mídia. Houve uma
época em que os jornais e os noticiários
de televisão preocupavam-se, dia após
dia, com o número das mortes ocorridas nas estradas, especialmente durante
o período de veraneio.
Sem mais delongas, é correto registrar que esta neurose coletiva trouxe
motivação ao legislador, levando-o, em
razão disso, a nos apresentar, através da
SENTENÇAS
Lei nº 9.503, de 23-09-97, em vigor, a
partir de 23-01-98, o novo Código de
Trânsito Brasileiro. Aparentemente, com
a nova legislação, todos os problemas
ficariam resolvidos, mas na verdade, ao
contrário, a novel legislação, além de
nos trazer conceitos duvidosos e de difícil representação no âmbito do processo, a rigor, com a superveniência da Lei
nº 9.714/98, novamente, em contradição
ao sistema vigente e aos objetivos da
nova lei, foi consagrada a impunidade.
É fácil lembrar-nos dos tempos passados, onde o sonho de consumo dos
jovens era um automóvel Volkswagen,
o famoso “Fusca”, com rodas de magnésio, cuja velocidade não ultrapassava
os 120km/h. Hoje, trafegamos pelas ruas,
e o famoso “Fusca” é uma raridade. Os
automóveis de mil cilindradas atingem
velocidade superior a dos fuscas antigos, e tudo isso, somado à falta de
educação específica da população brasileira, leva, necessariamente, a este caos
em que vivemos atualmente.
Seria também necessário indagar
quais as razões que nos levaram a
abandonar as estradas de ferro, onde o
transporte da produção e de pessoas
era mais seguro, optando pelo transporte via rodoviária, com os caminhões,
feito através de estradas esburacadas,
sem conservação e mal sinalizadas.
Poderíamos também cogitar da problemática do valor do frete, que literalmente paralisou o Brasil há dias atrás,
isso sem deixar de referir, e quem sabe
indagar, as razões pelas quais parte dos
motoristas profissionais costumam dirigir embriagados ou tomando remédios
para não dormirem e, assim, cumprir o
horário estabelecido para a entrega da
carga transportada.
SENTENÇAS
Por fim, chegamos ao final do milênio
sem resolver o problema do trânsito, pois
as fábricas produzem mais automóveis,
cada vez mais modernos, as estradas não
possuem verbas para a sua manutenção,
e não há educação nem prevenção, muito
menos fiscalização adequada. Evidentemente, em um aspecto, houve uma aparente melhoria, mas para os cofres do
Estado, com multas pesadas impostas aos
motoristas infratores.
2.b.2. O Código de Trânsito Brasileiro
e a Lei das Contravenções Penais. Inicialmente contrariando o entendimento dos
Tribunais Superiores, a Turma Recursal
Criminal do Rio Grande do Sul, de forma
unânime, em relação à contravenção do
art. 32, e, majoritariamente, quanto à do
art. 34 da Lei das Contravenções Penais,
vem sustentando não mais poderem coexistir, harmonicamente, tais infrações
com os arts. 306 e 309 do CTB.
De um lado temos delitos de mera
conduta, onde a presunção militava em
favor da sociedade, e de outro, temos
a necessidade de demonstração do dano
potencial ou do perigo de dano, respectivamente, os arts 306 e 309 do CTB.
No entender da Turma, como já se
preconizava no Código Penal de 1969,
referido por Marcelo Linhares, em sua
obra “Contravenções Penais” (ob. cit.,
Ed. Saraiva, 1980, p. 293), e mais recentemente o Ministro Cernichiaro (REsp nº
34.332, STJ, 6ª Turma , “DJU”, de
02-08-93, p. 14.295), mesmo nas contravenções precisávamos da possibilidade
concreta do perigo de dano a outrem.
Não há mais espaço no Direito brasileiro para a condenação por presunção; aliás, se para o mais, que é o
crime, precisamos da demonstração de
dano potencial ou perigo de dano, para
329
o menos, que é a contravenção, não se
pode admitir venha tal circunstância em
prejuízo do agente. A omissão legislativa permite a discussão, na doutrina, a
respeito dos conceitos de ab-rogação
(Damásio de Jesus) e derrogação, e, por
isso, novamente somos obrigados a questionar o legislador, por não se ter apercebido do problema, transferindo essa
responsabilidade, como no mais das
vezes, ao tão criticado Poder Judiciário.
Afinal, como poderíamos definir dano
potencial e perigo de dano? Essa terminologia equivocada permite a crítica que
muitos fazem a respeito do Código de
Trânsito Brasileiro, dentre eles, Fabrício
Pozzebon, na obra “Crime e Sociedade”, organizada pelo Dr. Cezar
Bittencourt (Juruá Editora, 1999).
A Turma Recursal Criminal do Rio
Grande do Sul vem entendendo que
dano potencial e perigo de dano, respeitadas opiniões em contrário, são
conceitos assemelhados e que não comportam outra interpretação, que não a
de que, para a existência dos delitos
onde se exige a figura, o perigo de
dano necessita ser real, efetivo, concreto, e não uma mera possibilidade abstrata (AC nº 71000000315, de 23-04-99).
Podemos, assim, cogitar de que alguém, embriagado, dirija seu veículo
pelas ruas e, se não proporcionar uma
situação de perigo concreto de dano,
não poderá ter sua conduta analisada
nos lindes do art. 306 do CTB. Por fim,
à exceção dos delitos de homicídio (art.
302) e de lesão corporal culposa (art.
303), do ato de dirigir embriagado (art.
306) e participar de competição não-autorizada (art. 308), com a exposição
de outrem a dano potencial ou perigo
de dano, todas as demais infrações
330
incluem-se dentre os delitos de menor
potencial ofensivo, sobre os quais incide a Lei nº 9.099/95.
2.b.3. Os crimes de trânsito e o dolo
eventual. Aquela neurose coletiva já
referida possibilita que alguns “objetivando prevenir a impunidade” cogitem
da aplicação do dolo eventual aos delitos de trânsito. De forma simplista,
justificam a penalização por homicídio
doloso, tendo como argumento preponderante o fato de alguém dirigir embriagado e em velocidade acima da permitida, esquecendo-se do que, na realidade, significam, doutrinariamente, o dolo
eventual e a culpa consciente.
Para simplificar esse raciocínio, presumem o assentimento para o resultado
danoso, sem qualquer elemento probatório a demonstrar tivesse tal circunstância passado pela cogitação do agente.
Esta afirmação não prescinde a lembrança do mestre Nelson Hungria que,
em sua obra “Comentários ao Código
Penal”, ao fazer uma análise a respeito
dos dolos direto, indireto, e dolo alternativo, ao se referir ao dolus eventualis,
tratando da determinação da vontade,
disse o seguinte: “Também não é
indeterminada a vontade no dolo eventual: quando a vontade, dirigindo-se a
certo resultado, não recua ou não refoge da prevista probabilidade de outro
resultado, consentindo no seu advento,
não pode haver dúvida de que esse
outro resultado entra na órbita da vontade do agente, embora de modo secundário ou mediato. A menção expressa que faz o Código ao dolo eventual,
para equipará-lo ao dolo direto (em que
o resultado é querido de modo principal ou imediato), plenamente se justifica: não obstante a justeza do raciocínio
SENTENÇAS
de que ‘quem se arrisca, quer’, tem-se
pretendido, em doutrina e na jurisprudência, identificar o dolus eventualis com
a culpa consciente (luxúria ou lascívia,
do Direito Romano), isto é, com uma
das modalidades da culpa stricto sensu.
“Sensível é a diferença entre essas
duas atitudes psíquicas. Há, entre elas,
é certo, um traço comum: a previsão do
resultado antijurídico; mas, enquanto no
dolo eventual o agente presta anuência
ao advento desse resultado, preferindo
arriscar-se a produzi-lo, ao invés de
renunciar à ação, na culpa consciente,
ao contrário, o agente repele, embora
inconsideradamente, a hipótese de superveniência do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão
de que este não ocorrerá. Eis a clara e
precisa lição de Logoz, que merece transcrição integral: ‘... a diferença entre essas
duas formas de culpabilidade (dolo
eventual e culpa consciente) apresenta-se quando se faz a seguinte pergunta:
‘por que, em um e outro caso, a previsão das conseqüências possíveis não
impediu o inculpado de agir?’.
“A esta pergunta, uma resposta diferente deve ser dada, segundo haja dolo
ou culpa consciente. No primeiro caso
(dolo eventual), a importância inibidora
ou negativa da representação do resultado foi, no espírito do agente, mais
fraca do que o valor positivo que este
emprestava à prática da ação. Na alternativa entre duas soluções (desistir da
ação ou praticá-la, arriscando-se a produzir o evento lesivo), o agente escolheu a segunda. Para ele o evento lesivo foi como que o menor de dois
males. Em suma, pode dizer-se que, no
caso de culpa consciente, é por leviandade, antes que por egoísmo, que o
SENTENÇAS
inculpado age, ainda que tivesse tido
consciência do resultado maléfico que
seu ato poderia acarretar.
“Neste caso, com efeito, o valor negativo do resultado possível era, para o
agente, mais forte que o valor positivo
que atribuía à prática da ação. Se estivesse persuadido de que o resultado
sobreviria realmente, teria, sem dúvida,
desistido de agir. Não estava, porém,
persuadido disso. Calculou mal. Confiou em que o resultado não se produziria, de modo que a eventualidade,
inicialmente prevista, não pode influir
plenamente no seu espírito. Em conclusão: não agiu por egoísmo; não refletiu
suficientemente’ ”.
Coerente, ainda, alusão à Fórmula
de Frank, feita pelo mesmo mestre, dizendo o seguinte: “A primeira delas
assim decide: a previsão do resultado
como possível somente constitui dolo
se a previsão do mesmo resultado como
certo não teria detido o agente, isto é,
não teria tido o efeito de um decisivo
motivo de contraste. É esta a fórmula
denominada da ‘teoria hipotética do
consentimento’, a que o próprio Frank
acrescentou esta outra (chamada ‘teoria
positiva do consentimento’): se o agente se diz a si próprio: seja como for, dê
no que der, em qualquer caso não deixo
de agir, é responsável a título de dolo”.
Ambas as fórmulas deverão servir
de orientação para o Juiz, mas é óbvio
que, para sua aplicação aos casos concretos, terá ele de guiar-se pelo conhecimento das circunstâncias do fato, para
retraçar os motivos do agente.
É o que bem acentua M. E. Mayer,
com a sua teoria da motivação: “Para distinguir essas duas espécies de culpabilidade (dolo eventual e culpa consciente),
331
deve indagar-se como o agente se comportou ao prever o resultado, tendo-se
em vista, para tal fim, o complexo total
de seus motivos. Mais: assumir o risco é
alguma coisa mais que ter consciência de
correr o risco; é consentir previamente no
resultado, caso venha este, realmente, a
ocorrer” (grifo aposto).
E, referindo o Ministro Campos, ao
comentar o art. 15, inc. I, do CP pretérito, disse: “O dolo eventual é, assim,
plenamente equiparado ao dolo direto.
É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale tanto
quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente ratifica ex ante, presta
anuência ao seu evento” (“Comentários
ao Código Penal”, I/113-115, tomo II,
Ed. Revista Forense, 1995).
Magalhães Noronha, por sua vez,
refere, simplificando as diferenças de
dolo direto e dolo eventual “... que o
primeiro é a vontade por causa do resultado; o outro é a vontade apesar do
resultado” (“Direito Penal”, Ed. Saraiva,
1982, I/147).
Aníbal Bruno refere que o agente
no dolo eventual “prevê o resultado
apenas como provável ou previsível,
mas, apesar de prevê-lo, age, aceitando
o risco de produzi-lo; a vontade não se
dirige propriamente ao resultado, mas
apenas ao ato inicial, que nem sempre
é ilícito, e o resultado não é representado como certo, mas só como possível.
Mas o agente prefere que ele ocorra, a
desistir do seu ato” (“Direito Penal”, tomo
II, pp. 73/74).
Paulo José da Costa Júnior alude que
no dolo eventual “ao representar mentalmente o evento, o autor aquiesce,
tendo uma antevisão duvidosa de sua
realização. Ao prever como possível a
332
realização do evento, não se detém. Age,
mesmo à custa de produzir o evento
previsto como possível. Assume o risco,
que é algo mais do que ter consciência
de correr o risco; é consentir previamente no resultado, caso este venha a ocorrer. Integram o dolo eventual: a representação do resultado como possível e a
anuência do agente à verificação do
evento, assumindo o risco de produzi-lo” (“Curso de Direito Penal”, I/87, 1992).
E ainda: “Saliente-se, contudo, que a
vontade, e não a representação, constitui a essência do dolo eventual. A decisão de agir, mesmo com a possibilidade da realização do evento, é uma situação psicológica característica, impregnada de volição. Constitui de qualquer
modo uma decisão da vontade diante
do evento previsto como possível, ainda que indiferente ou até incômodo.
Prever o evento e não se abster da
conduta equivale a querer. O dolo, no
entanto, é algo de positivo, que não pode
ser configurado negativamente (não recusar o evento, não se abster da conduta,
etc.). Sendo o dolo eventual elemento
integrante da parte mais grave da culpabilidade, embora menos intenso que o
dolo determinado, não pode ser expresso
em termos aproximativos ou negativos. O
agente haverá de emitir um juízo afirmativo: o evento poderá verificar-se. Se o
juízo assertório do autor, ao prever o
evento, confia na sua habilidade ou na
boa fortuna para que ele não se verifique,
estaremos no campo da culpa consciente.
Tanto vale não prever um evento, como
prever que ele não se verifique.
Os elementos integrantes do dolo
eventual são dois: a representação do
resultado como possível e a anuência
do agente do evento, assumindo o risco
SENTENÇAS
de produzi-lo. Tais elementos não podem ser extraídos da mente do autor,
mas deduzidos das circunstâncias do fato.
Em caso de dúvida por parte do julgador, deverá concluir pela solução menos rigorosa: a da culpa consciente”
(“Comentários ao Código Penal”, Ed.
Saraiva, 1996, pp.75/76).
Por último, Eugênio Raúl Zaffaroni e
José Enrique Pierangeli referem: “O dolo
eventual, conceituado em termos correntes, é a conduta daquele que diz a
si mesmo ‘que agüente’, ‘que se incomode’, ‘se acontecer, azar’, ‘não me
importo’. Observe-se que aqui não há
uma aceitação do resultado como tal,
mas, sim, sua aceitação como possibilidade, como probabilidade”.
E acrescenta: “O limite entre o dolo
eventual e a culpa por representação é
um terreno movediço, embora mais no
campo processual do que no penal. Em
nossa ciência, o limite é dado pela
aceitação ou rejeição da possibilidade
de produção do resultado e, no campo
processual, configura um problema de
prova que, em caso de dúvida sobre a
aceitação ou rejeição da possibilidade
de produção do resultado, imporá ao
tribunal a consideração da existência de
culpa, em razão do benefício da dúvida: in dubio pro reo” (“Direito Penal
Brasileiro”, Ed. RT, pp. 501/502).
Talvez o problema esteja na equiparação do dolo eventual com o dolo
direto, circunstância inocorrente, por
exemplo, no Código italiano, sendo
pertinente a lembrança de que (...) no
meio dos escritores, há quem condene
esta forma indireta de dolo (Souza Neto,
“O Motivo e o Dolo“, 2ª ed., Freitas
Bastos, sem referência de data). Afinal,
de tudo, depreende-se que assumir o
SENTENÇAS
risco é colocar-se, conscientemente, em
situação de perigo que poderia ter sido
evitado, anuindo o agente, de forma
clara e insofismável, com o previsível
resultado danoso.
A partir de tais argumentos, surgem
duas questões de igual importância: com
a devida vênia, a primeira delas diz
respeito ao equívoco da atual interpretação a respeito do dolo eventual, banalizada, permitindo, com a simplificação e analogia indevida, o cometimento
de injustiças; a outra está relacionada
com o vácuo legislativo, pois a nova
legislação, ressalvado o gravame das
penalizações administrativas, do ponto
de vista repressivo ou punitivo, pouco
ou nada, considerando-se a Lei nº 9.714/
98, foi acrescentado.
2.b.4. A questão da embriaguez.
Embora não seja o caso dos autos, por
não haver prova de que estivesse o réu
embriagado, é importante seja revisada a
questão da embriaguez, cuidada expressamente pelo legislador penal, quando
reconheceu que a culpabilidade se mantém nos casos de ebriez preordenada,
voluntária e culposa, e, embora punível,
esta situação merece algumas indagações.
O Código Penal, excepcionando a
teoria da atividade, onde imputabilidade
do agente é examinada ao tempo da ação
ou omissão, adotou a teoria da actio libera in causa para os casos de embriaguez preordenada, voluntária e culposa,
segundo a qual a conduta criminosa do
agente é aferida no momento imediatamente anterior ao da inimputabilidade pela
intoxicação, em que o sujeito se dispôs,
dolosa ou culposamente, a embriagar-se.
Com acerto é aplicada a teoria na
embriaguez preordenada, pois o agente
se coloca em situação de inconsciência
333
ou incapacidade de autocontrole propositadamente, a fim de praticar delito.
Entretanto, o mesmo não acontece
com a embriaguez culposa e voluntária,
segundo afirmam Alberto Silva Franco e
outros, in “Código Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial”: “Situação inteiramente diversa, contudo, sucede com a
aplicação da teoria da actio libera in
causa, em relação à embriaguez voluntária e à embriaguez culposa. Naquela,
o agente ingeriu bebida alcoólica para
ficar bêbedo, ou, pelo menos, ao ingeri-la, assumiu o risco de atingir a ebriez;
nesta, o agente não pretendia embriagar-se, mas, por imprudência ou negligência, chega àquele estado, que lhe
era previsível e, deste modo, evitável.
“Numa e noutra situação, o agente
não tinha em mente, ao tomar a bebida
alcoólica, a prática de fato criminoso, o
qual vem, contudo, a cometer no período em que estava submetido à intoxicação alcoólica. O legislador, fazendo
uso de uma verdadeira ficção jurídica
(deu por imputável que, na realidade,
não o era), considerou-o, nas duas hipóteses, como portador tanto de capacidade de entender o caráter ilícito do
fato, como da capacidade de determinar-se conforme esse entendimento.
Transferiu, por isso, o juízo da imputabilidade do tempo da ação ou da omissão para um momento precedente, ou
seja, para o da ingestão da bebida alcoólica ou da substância equivalente.
“É evidente que a deslocação no
tempo desse juízo não bastou para camuflar a consagração legislativa de uma
hipótese de imposição de pena, por pura
responsabilidade objetiva, o que colide
francamente com o princípio do nullum
crimen sine culpa, apresentado como
334
idéia-força de toda a reformulação da
Parte Geral do Código Penal. Permanece, pois, em matéria de embriaguez,
aquela eiva, aquele resquício de responsabilidade objetiva do Código Penal
de 1940, num código que pretende ser
moderno, expungindo todos os vestígios de responsabilidade sem culpa”
(Walter Marciligil Coelho, “Erro de Tipo
e Erro de Proibição no Novo Código
Penal”, in “O Direito Penal e o Novo
Código Penal Brasileiro”, 1985, p. 82).
“De nenhuma valia, para afastar tal
entendimento, é a alegação de que a
conduta criminosa será dolosa se o
agente se embriagou voluntariamente,
ou culposa se veio a embebedar-se por
negligência ou imprudência. Não há
confundir o elemento psicológico da
embriaguez com o dado de subjetividade, que acompanha a ação ou a omissão. Da mesma forma, inservível o argumento de que é necessário verificar
se o embriagado atuou com dolo, ou
com culpa, isto é, se quis a prática do
fato delituoso, ou se o provocou por ter
faltado ao dever objetivo de cuidado,
que a situação concreta lhe impunha.
“Num estado de ebriez plena, não é
possível distinguir dolo de culpa. Como
observa Giuseppe Bettiol, ‘dolo e culpa,
em limites diversos, pressupõem a normalidade da relação psicológica, normalidade que deve ser excluída, se o agente atua com condições de incapacidade
penal’ (“Diritto Penale”, 1982, p. 446).
“Destarte, ‘se o fato delituoso praticado em estado de embriaguez que
conduz à incapacidade de entendimento e de autogoverno não era sequer
previsível, para o agente, no momento
em que estava sóbrio, não há culpa e
só se pode admitir que estamos diante
SENTENÇAS
de hipótese anômala de responsabilidade objetiva. Essa deplorável solução foi
adotada pela lei vigente em nome de
mais eficaz repressão à criminalidade’
(Heleno Cláudio Fragoso, “Lições de
Direito Penal”, 1987, p. 209).
“É de discutir-se, no entanto, se a
disciplina legal sobre a embriaguez
voluntária ou culposa não fere o inc.
XLV do art. 5º da CF, que estabelece o
princípio da personalidade da pena. Uma
leitura literal do texto conduz à idéia de
que o legislador constituinte pretendeu
apenas fixar o princípio de que nenhuma pena poderá passar da pessoa do
delinqüente, isto é, nenhuma responsabilidade de caráter penal poderá ser
debitada a pessoa estranha, como autor,
co-autor ou partícipe, à prática do fato
criminoso. O sentido e o alcance do
dispositivo constitucional vai, no entanto, além. Uma outra ilação mostra-se
subjacente ao preceito constitucional que
minus dixit quam voluit.
“Se a pena não pode passar da
pessoa do delinqüente, é fora de dúvida que deva ter, com ele, estreita correlação, deve pertencer-lhe, deve atingi-lo como pessoa, enquanto centro de
agir e de decisão. Desta forma, ninguém poderá, em verdade, responder
por fato delituoso que não seja expressão de seu atuar, que não seja uma
afirmação sua. Isso significa, nessa perspectiva, que todo agente deverá ser
punido apenas e exclusivamente por fato
próprio, por fato seu, enfim, por fato de
sua responsabilidade pessoal. O caráter
pessoal da responsabilidade penal implica, no dizer de Giuseppe Bettiol (ob.
cit., p. 56), que o fato criminoso só
possa ser atribuído a um agente ratione
personae, isto é, ‘não pela simples ve-
SENTENÇAS
rificação de um nexo material ou objetivo entre uma ação e um evento lesivo
(critério mecânico), mas na base de uma
imputação humana, a qual se traduz
num juízo de reprovação’.
“Assim, a responsabilidade pessoal
pressupõe a existência de uma conduta
que seja própria do agente: em síntese,
‘exclui toda responsabilidade penal pelas ações de outros e toda responsabilidade por fatos cometidos sem os pressupostos subjetivos que fundamentam a
responsabilidade
penal’
(Enrique
Bacigalupo, “Manual de Derecho Penal”,
1984, p. 31). Prescindir da existência
dessa vinculação pessoal, de modo que
o fato criminoso seja posto, objetivamente, a cargo do agente, é de todo
inadmissível. Em conclusão, a embriaguez voluntária ou culposa, enquanto
hipótese de responsabilidade pelo mero
resultado, contraria a letra e o próprio
espírito da Constituição Federal” (Alberto Silva Franco e Outros, “Código Penal
e Sua Interpretação Jurisprudencial”, Ed.
RT, 1995, pp. 332/333). Como se disse,
embora não seja o caso dos autos por
não vir demonstrada a embriaguez, esta
lembrança é manifestamente pertinente.
2.b.5. A Lei nº 9.099/95 e o Código
de Trânsito Brasileiro. Por imposição
legal contida no art. 291 e parágrafo
único do CTB, aplicam-se as disposições dos arts. 74, 76 e 89 da Lei nº
9.099/95. O art. 74 trata da composição
civil, o art. 76, da transação penal, e o
art. 89, da suspensão condicional do
processo.
Há quem sustente serem inaplicáveis aos arts. 306 (embriaguez ao volante) e 308 (participação em competição
não-autorizada) do CTB os arts. 74 e 88
da Lei nº 9.099/95. Esse é o entendi-
335
mento de Luiz Flávio Gomes, que considera absurda tal cogitação, por se tratar de delitos contra a incolumidade
pública e de outrem (Luiz Flávio Gomes, “Boletim do IBCCrim.” nº 61, dez./
97, p. 04).
Ao mesmo tempo que pretende reprimir a conduta, estabelece uma norma que permite sua despenalização,
permitindo a conciliação, se for possível, a transação penal, que na verdade,
para alguns, é pena sem processo, e a
suspensão condicional do feito, mediante as condições de estilo (art. 89).
Pode-se dizer, para finalizar, que, com
as restrições mencionadas, à exceção
do homicídio culposo, aplica-se a Lei nº
9.099/95. Por fim, ainda que o máximo
da pena seja superior a 01 ano, entende-se necessária a representação da vítima
nos delitos de lesão corporal culposa, à
luz do art. 88 da Lei nº 9.099/95.
2.b.6. Aspectos controvertidos. Para
finalizar, é possível chamar a atenção
para algumas situações especiais: com o
Código de Trânsito Brasileiro, majorou-se a pena do homicídio culposo, estabelecendo um mínimo de 02 e um
máximo de 04 anos de detenção, ao
invés de 01 a 03 anos como estabelecido no Código Penal.
Aliás, a respeito a crítica de Rui
Stocco, ao referir que a legislação permite tratamento diferenciado para delitos assemelhados (“Código de Trânsito Brasileiro: Disposições Penais e
Suas Incongruências”, “Boletim do
IBCCrim”, São Paulo, ano 5, nº 61, pp.
01/10, dez./97). Por outro lado, é
importante a invocação da lesão corporal culposa no trânsito, cuja pena
foi estabelecida entre 06 meses a 02
anos de detenção.
336
Tal circunstância gerou uma brincadeira: se acontecer um acidente de trânsito, com lesões, o melhor é dizermos
que pretendíamos provocá-la pois aí poderíamos ter a punição na forma do art.
129, caput, do CP, que prevê uma pena
de 03 meses a 01 ano de detenção. Já
foi referida a questão do dolo eventual.
Por fim, é possível dizer que nada
mudou em relação aos delitos de trânsito; especificaram-se algumas condutas, estabeleceram-se punições que, com
a nova redação do art. 44 do CP, jamais
serão aplicadas, pelo menos como foram originalmente concebidas.
Esta, na verdade, é a crua realidade,
pois, a teor do disposto no art. 44, inc.
I, do CP, que prevê para o crime culposo, qualquer que seja a pena aplicada, a substituição da privativa de liberdade por uma ou duas penas restritiva
de direitos, amenizando, assim, o rigor
da pretensão punitiva do Estado.
Ora, ao contrário do rigor propalado
pela mídia, estamos mais uma vez diante
da impunidade consagrada numa legislação permissiva e, certamente por isso,
já se pretende nova alteração do Código
de Trânsito Brasileiro com maior
“flexibilização”, beneficiando claramente
os motoristas infratores.
2.b.7. O Código de Trânsito Brasileiro e Direito Penal mínimo. Aqui uma
discussão pertinente, relacionada, em seu
cerne, com o Direito Penal mínimo,
pregado pelo Dr. José Carlos Dias, então Ministro da Justiça, que sugeriu a
revogação – e estamos de acordo – da
Lei dos Crimes Hediondos, esta mais
uma reforma pontual do Sistema Repressivo Brasileiro.
Muito antes do questionamento a
respeito de ser a favor ou contra, em-
SENTENÇAS
bora esta seja uma discussão onde se
revela a tendência para o próximo milênio, é de ser considerada a motivação
determinante para que tal hipótese passe
a ser cogitada pelo legislador ou por
aqueles que detêm os destinos da nação. Não se trata de ser a favor ou
contra, é uma discussão crescente a
revelar a tendência para o próximo
milênio.
Será a solução? Se for esta a adotada
pelo legislador, corresponderá aos
anseios da sociedade? Não seria razoável cogitar-se de um estudo mais
aprofundado, criterioso, responsável, ou,
pelo menos, uma campanha de
conscientização e esclarecimento da
população, que não mais agüenta a
imposição vertical de tanta legislação?
Tais indagações são pertinentes, pois
as decisões a serem tomadas importarão em alterar toda a sistemática vigente, como já se fez na reforma do art. 44
do CP, reforma esta realizada tendo
como suporte preponderante o fato de
o Estado não ter condições de gerir
adequadamente o sistema penitenciário,
nem ter interesse político de assim proceder e que consagra, de fato e de
direito, o pensamento liberal aqui discutido. Não se trata, portanto, de uma
reforma de base, consciente, lastreada
no passado, no presente e pensando no
futuro, mas, sim, no nosso entendimento, mais uma reforma pontual do legislador. Agiu corretamente? Estes são os
questionamentos; quais as soluções?
2.c. O caso concreto. No caso dos
autos, à vista de todo o processado, não
se vislumbra o animus necandi na
conduta do acusado. O réu, quando
interrogado em juízo, afirmou estar trafegando seu veículo a uns 40, no má-
SENTENÇAS
ximo 50km/h, quando escutou um leve
barulho no carro, na frente, e não viu
nada de anormal, seguindo para casa
normalmente, quando então, ao passar
por uma parada de ônibus, as pessoas
que ali estavam gritaram para ele parar;
ato contínuo, ele parou o carro, viu a
pessoa “enfiada” dentro do carro e pegou
seu celular para chamar a polícia. Ainda, asseverou não ter visto a vítima, não
ter ingerido bebida alcoólica e saído do
carro para visualizar a altura em que se
encontrava na Av. P. A. (fls. 173/176).
J. A. R. V., policial militar que efetuou o flagrante, inquirido em juízo,
afirmou ter dito o réu que a vítima “saiu
do nada, na Av. A. C., com um pedaço
de pau na mão e veio em direção ao
carro dele, bateu no carro dele e seguiu”. Asseverou ter em seguida telefonado para a D. L. T., uma senhora
informando que a vítima teria tentado
assaltar-lhe em frente ao supermercado,
tentativa inexitosa quando da chegada
do supermercado não, contudo, na segunda investida, quando teria vítima lhe
tomado uma vassoura. Segundo o depoente, teria sido nesse momento que
o réu atropelou a vítima, que estaria
fugindo do local. Por último, disse que
o réu inicialmente mencionou ter sido
assaltado e tinham levado seu veículo
(fls. 246/249).
L. R. P. O., testemunha inquirida por
precatória na Comarca de Passo Fundo,
asseverou ter dito o réu a ele que não
parou no local do atropelamento, porque achou se tratasse de um assalto;
ainda, disse que corpo da vítima ficou
rente ao chão e não dava para vê-la da
posição do motorista (fl. 255). Por outro
lado, N. A. O. e V. A. P. afirmou não
ter o réu o hábito de beber; ainda, A.
337
R. N., embora não houvesse presenciado o ocorrido, asseverou ter dito o réu
a ele não ter visto a pessoa embaixo de
seu carro e, quando a viu, parou (fls.
205/206).
Por fim, S. M. M. C. S. disse que a
vítima lhe pegou pelo braço na entrada
do supermercado, pedindo lhe fosse
dado R$ 1,00 e, então, como não atendeu ao solicitado, ela teria dito: “então
vou te matar a pau”. Ainda, afirmou não
ter visto para que lado o rapaz saiu (fl.
203). De todo o asseverado, depreende-se não fornecer a prova oral produzida elementos a permitir a conclusão
estivesse o imputado anuído com o
resultado morte da vítima quando do
fato delituoso, mormente ao se vislumbrar o laudo de exame para verificação
de embriaguez alcoólica e tóxicos, dando conta da inexistência de embriaguez
e uso de substâncias psicotrópicas, acostado à fl. 170.
Todos afirmam que o réu não viu,
ou não tinha condições de ver, a vítima
presa junto às ferragens, quando prosseguiu com o carro em andamento; aliás,
essa a sua versão, convergente com a
prova judicializada.
Esta é a circunstância e, por isso,
nem de longe pode ser reconhecida
como dolo eventual, sendo coerente,
por essa razão, a redistribuição do feito
a uma das varas criminais, em razão da
competência material.
3. Ante o exposto, julgo improcedente a denúncia e, com base no art.
410 do CPP, determino a redistribuição
do processado.
Intimem-se. O réu, pessoalmente.
Porto Alegre, 09 de outubro de 2000.
Mário Rocha Lopes Filho, Juiz de Direito.
338
Processo nº 7.809/009
Autor: Ministério Público
Réu: J. K.
Juiz prolator: Volnei dos Santos Coelho
Delito de homicídio culposo. Demonstrada a culpa do condutor. Sentença
condenatória.
Vistos, etc.
J. K., já qualificado, foi denunciado
pelo Ministério Público pelo seguinte
fato delituoso: “No dia 03-10-97, por
volta das 23h30min, na estrada que liga
G. V. à cidade de E., nesta Comarca, o
denunciado J. K., conduzindo o automóvel VW-Santana, ano 1989, agindo
de forma imprudente e negligente,
matou, culposamente, o motociclista A.
R., de 23 anos de idade.
“Por ocasião do fato, o denunciado
trafegava no sentido E.–G. V. Por dirigir
desatentamente e desenvolver excessiva velocidade para o local, acabou por
colidir na traseira da motocicleta Honda
CG-125, ano 1983, tripulada pela vítima
A. R., que trafegava no mesmo sentido.
Em função da colisão, o motociclista,
que conduzia o veículo regularmente e
na sua mão de direção, quase no acostamento, foi projetado para a frente e
para o alto, perdendo o capacete e
sofrendo traumatismo craniano, que lhe
causou a morte, ut auto de necropsia
da fl. 13.
“Após o fato delituoso, o denunciado deixou de prestar imediato socorro
à vítima, fugindo do local para evitar a
prisão em flagrante. A vítima, socorrida
por terceiras pessoas, foi levada ao
nosocômio, mas acabou falecendo poucos minutos após o acidente”.
O Ministério Público deixou de apresentar proposta de suspensão, fundado
na incidência da causa de aumento prevista no § 4º do art. 121 do CP. A denúncia foi recebida em 19-02-98 e determinada a citação do réu e sua intimação para interrogatório (fl. 70, v.). O
réu foi interrogado (fl. 73). O defensor
constituído apresentou a defesa prévia
(fl. 76), arrolando testemunhas.
Na instrução, foram ouvidas 08 testemunhas (fls. 121/124 e 129/130). Houve inspeção judicial no local do fato,
conforme relatório da fl. 134. Ao final
da instrução, habilitou-se o assistente
da acusação. Os debates orais foram
substituídos por alegações escritas, objetivando as partes melhor apreciação
do conjunto probatório, o que foi deferido. Não se vislumbra prejuízo às partes; pelo contrário, puderam melhor
debater a causa.
O Ministério Público pediu a condenação, aduzindo que a acusação restou
comprovada (fls. 139/146). O assistente
de acusação ratificou as alegações do
Parquet, pedindo a condenação (fl. 148).
A defesa pediu absolvição (fls. 150/154).
Sustentou que não há elementos suficientes para a condenação. É o relatório.
A materialidade está demonstrada
pelo auto de necropsia das fls. 16/17 e
pela prova testemunhal colhida. Em
SENTENÇAS
relação à autoria, restou apontado o
acusado como tendo cometido homicídio culposo e não prestado socorro à
vítima. O réu nega o fato a ele imputado. Declarou que colidiu com seu veículo na traseira da motocicleta conduzida pela vítima. Disse que a motocicleta encontrava-se com o farol e sinaleira
desligados. A vítima não usava capacete, sendo essa a causa dos traumatismos
que levaram à sua morte. Nega tenha
agido com imprudência ou negligência.
Procurou demonstrar a culpa da vítima.
No entanto, em matéria penal, não
há compensação de culpas. Necessário
verificar, se dentre as várias causas do
evento, alguma concausa foi produzida
pelo réu. Em caso positivo, tendo o réu
também dado causa ao evento por ação
ou omissão, importa verificar se, afastada a conduta do réu, dentro da eliminação hipotética, deixaria de ocorrer o
fato lamentável, o que leva a considerá-la causa.
Ora, se o réu não tivesse colidido na
traseira da motocicleta e derrubado a
vítima, o evento morte não teria ocorrido. Portanto, a conduta do réu é uma
causa. Eliminando-a desaparece o resultado. Certo que o denunciado deu causa, perquirir-se-á, então, se agiu com
culpa ou dolo. Este, à evidência, não
ocorreu. De fato, o réu deu causa ao
evento. Resta saber se o fato praticado
decorreu de culpa. Certo o nexo causal
entre resultado morte e a conduta do
réu.
A testemunha L. R. D. M. (fl. 121)
relatou que “viu quando uma moto e
um carro de cor escura que vinham no
sentido contrário, quando o veículo que
vinha atrás da moto, com velocidade
339
superior, acabou colidindo, juntando a
moto e esta ficou presa do veículo e o
motoqueiro caiu”.
M. V., outra testemunha (fl. 122), disse
que “viu o momento da colisão, que o
motoqueiro ficou segundos em cima da
moto, e após passou por cima do capô
e caiu do lado esquerdo do motorista.
Confirma que está correto o levantamento topográfico que a moto vinha no
sentido E.-G. Tem certeza de que o motoqueiro não veio da Rua M. M.”
Corroborando com aqueles testemunhos, há a prova pericial que aponta
que o ponto de impacto foi “na parte
frontal traseira” da motocicleta (fl. 32).
Assim, o réu deslocava-se na mão de
direção da vítima. Em determinado
momento, colidiu com a frente de seu
veículo na traseira da motocicleta. Ato
contínuo, a vítima caiu, passando por
cima do capô do carro do denunciado,
e a moto ficou presa embaixo do veículo, tendo sido arrastada por vários
metros.
A tese defensiva de que a vítima
estava parada no meio da estrada ou
teria ingressado de súbito na pista, vindo de uma rua perpendicular à pista de
rolamento onde se deslocava o acusado, ficam afastadas pelo testemunho de
M., conforme transcrito acima, que disse ter certeza que a vítima não veio da
Rua M. M. e que vinha na direção E.
para G. Logo, não estava parada e não
entrou de súbito na frente do réu como
quer ele alegar.
Para tal evento ocorrer, dois veículos se deslocando no mesmo sentido, e
o condutor ignorar aquele que vai à sua
frente, colidindo em sua traseira, é preciso que haja dolo ou esteja o motorista
340
que colidiu em completa desatenção ou
em velocidade incompatível, não dominando seu veículo.
A tese de que não viu o veículo na
sua frente por não tê-lo enxergado, pois
estava com farol e sinaleira desligados,
não procede. Isso é negado pelo testemunho de M. na polícia (fl. 34), onde
relatou que o farol dianteiro da moto
estava ligado, quanto à sinaleira, afirmou que não tinha como ver, dado que
vinha em sentido contrário. L. (fl. 121)
ainda referiu em seu depoimento em
juízo que havia iluminação pública no
asfalto. Tudo isso demonstra que a causa
da colisão, derrubando a vítima de sua
motocicleta, foi o empreendimento de
velocidade excessiva, levando à impossibilidade de contornar a situação e evitar
o evento.
Assim foi o depoimento de M. F. (fl.
123): “No momento em que o depoente
viu a motocicleta, o réu procedeu à
frenagem do veículo. Não lembra se o
réu chegou a reduzir o veículo, acha
que fez isso. Se girasse para esquerda
colidiria com o veículo que vinha pela
esquerda, e que provavelmente não dava
para tirar para direita, que foi tudo muito
rápido”.
Observando-se a foto da fl. 58, vê-se
que a pista tem um largo acostamento.
A fotografia mostra três pessoas andando
no acostamento, o que dá a idéia de ser
larga o suficiente para o réu desviar pela
direita e evitar a colisão na parte da
traseira da moto. Desse modo, se havia
um veículo à esquerda como informou a
testemunha M., havia a possibilidade de
contornar pela direita. Isso só não seria
possível em razão de velocidade excessiva ou incompatível.
SENTENÇAS
Além disso, conclui-se que o réu
estava em alta velocidade, observando-se o conjunto probatório. O levantamento topográfico mostra que o veículo
do réu freou 16m e arrastou a motocicleta por 85m. Logo, do ponto de impacto até a parada do veículo e da motocicleta, foram percorridos 128m, conforme dados da fl. 57 daquele levantamento.
É de considerar que uma motocicleta embaixo de um veículo é causa para
frená-lo, ainda que suspenda uma roda
dianteira, e não é causa para impedir
que seja freado, ao contrário do sustentado pela defesa. Assim, a grande distância percorrida pelo carro do réu com
uma motocicleta trancada e arrastada
embaixo, só tem explicação na alta
velocidade desenvolvida.
Por outro lado, a foto da fl. 30 mostra
o estado da dianteira do veículo do réu.
Houve severo estrago. Ressaltando que
vinha na mesma direção e sentido da
motocicleta, a velocidade que esta ia
deve ser descontada. Se o réu andasse
a 70 km/h como alegou e a vítima a 40
km/h ou 30km/h, a velocidade resultante é também 30 ou 40 km/h, o que
é incompatível com os estragos no
veículo da foto da fl. 30. Logo o réu
estava em velocidade bem acima do
que alegou.
Soma-se ainda o fato já referido de
o réu ter colidido na traseira de quem
vai à sua frente, o que é indicativo de
que a única explicação para o evento
está na velocidade imprimida pelo acusado, que era elevada, fazendo com que
perdesse o controle da situação, causando a colisão e a queda da vítima no
solo com os traumatismos que causaram a sua morte.
SENTENÇAS
A defesa disse que estava em velocidade moderada e o fato de ter andado
em torno de 100m após a colisão é obra
do inexplicável, fruto da fatalidade. Ora,
tal argumento embora inteligente, próprio
do patrono do réu, não procede. O fato
não é obra do acaso nem decorre algo
inexplicável. O fato só se deu motivado
por uma velocidade empreendida pelo
réu, muito acima do moderado.
Sem dúvida, o réu imprimiu uma
velocidade tal que não pôde parar ou
desviar seu veículo, colidindo na traseira da moto. Na verdade, embora demonstrada a elevada velocidade desenvolvida pelo réu, pouco importa se veio
a 150 ou 40 ou 70 km/h, como disse.
O certo é que, na situação, no momento exato, deveria ter diminuído a velocidade, o que lhe permitiria evitar o
evento e, como não evitou, resta que a
velocidade que manteve era excessiva
para a situação. Entendo que desimporta a real velocidade imprimida. Importante é saber se com a velocidade que
se conduzia evitou, ou não, o fato. Não
evitando, evidenciou-se a incompatibilidade dela.
Ora, se estivesse a 180 km/h e, com
uma manobra, evitasse o fato, a velocidade não deixaria de ser 180 km/h, no
entanto nenhuma repercussão teria, o
que mostra que a velocidade é sempre
tida como imprudente, se não evitado o
fato danoso. Ou seja, compete ao motorista reduzir a velocidade até que tenha condições suficientes para contornar a situação. É o que faria o homem
médio, o pater familias.
À evidência, a imprudência não se
caracteriza pelo fato de o carro estar em
velocidade superior àquela indicada nas
341
placas de sinalização das estradas. A
imprudência reside em causar dano ao
andar em velocidade acima daquela que
o pater familias andaria, na mesma situação e condições, a fim de não causar
evento danoso. Ou seja, imprudente é
quem anda em velocidade superior
àquela que tornaria possível evitar o
fato lastimável.
Assim, em determinadas condições
do veículo e da estrada, se exige de
qualquer motorista adequar a velocidade de seu automóvel a fim de dirigi-lo
de forma segura, não gerando lesões ou
mortes. Se assim não o faz, por acreditar que não ocorrerá ou que poderá
evitar o fato danoso, e não evitando,
vindo a ocorrer, comete crime culposo.
No caso, o réu colidiu na parte traseira da motocicleta enquanto essa andava no mesmo sentido, derrubando a
vítima e gerando o evento morte. A
velocidade empregada era incompatível
com a situação. Era superior àquela
recomendada e que empreenderia o
homem médio prudente. Se estivesse
em velocidade adequada não teria ocorrido o fato. Teria desviado o veículo
para a direita ou freado o carro, não
colidindo e matando a vítima. É essa a
conclusão a que se chega pelo conjunto
probatório.
Desse modo, por assim agir, não
evitando o fato, houve-se o réu com
imprudência e negligência. Imprudente
por andar em velocidade acima da recomendada para o momento, vindo a
bater na traseira da motocicleta da vítima, colidindo e derrubando-a, causando a sua morte. Negligente por não ter
guiado com a atenção devida de forma
a perceber o deslocamento de veículo
342
à sua frente. Com a desatenção e a
velocidade que imprimia não pode evitar
o fato, gerando o evento danoso.
Assim, o réu deu causa ao evento
culposamente. As demais concausas não
importam para imputação do fato ao
réu. A eventual concausa gerada pela
vítima não afasta a responsabilidade do
acusado. Não há compensação de culpas. A participação da vítima é verificável
e considerada na análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP.
Quanto ao fato de estar, ou não, a
vítima usando capacete, não há elementos. Isso, todavia, como dito, não afasta
a culpa do réu pelo evento. Se a vítima
estava sem capacete, mais se impunha
a obrigação de evitar a colisão, pois as
chances de sua conduta de derrubá-lo
e resultar a morte eram maiores. Além
do que o fato de estar usando, ou não,
o capacete desimporta, por não haver,
como já dito, compensação de culpas.
Portanto, não prosperam as teses defensivas. Restou provado que a morte da
vítima resultou de ato imprudente e
negligente do réu, impondo-se a condenação.
Quanto à omissão de socorro, o réu
não nega o fato. Justifica-se, dizendo
que ficou apavorado. Percebeu que a
vítima já estava sendo socorrida e procurou seu pai e foi ao hospital posteriormente. Procurou então afastar a causa
de aumento da pena, fundado no pavor
que foi acometido, por ter sido a vítima
socorrida por terceiro e pelo fato de ter
ido ao hospital. Disse ainda que a vítima, pelo quadro, não sobreviveria, o
que afastaria a omissão.
No entanto, a vítima não morreu
instantaneamente, logo era devido o
SENTENÇAS
socorro pelo réu. Se sobreviveria, ou
não, a vítima, desimporta para a incidência da causa de aumento. Tanto era
exigível que terceiros prestaram socorro. Não pensaram na possibilidade, ou
não, de a vítima sobreviver. Descabe o
raciocínio se ia, ou não, sobreviver. A
lei não defere ao causador do dano a
possibilidade de conjecturar da sorte
daquele que acabou de sofrer o fato.
Exige inconteste e de pronto a prestação do socorro. Só elide a responsabilidade a morte imediata, onde o socorro
não é exigido, por óbvio. Não é o caso.
Devia e podia o réu socorrer a vítima.
Não o fazendo, incidiu a causa de aumento da pena.
Referiu a testemunha L. “que o
motorista do veículo que colidiu com a
moto, ao atingir o quebra-mola, engrenou marcha-ré, a depoente ficou aliviada, achando que o motorista ia auxiliá-los no acidente, mas, tão logo a moto
se desprendeu do veículo, ele foi embora, saindo em velocidade normal, a
depoente juntou os documentos do
motoqueiro”. (fl. 121)
A testemunha M. relatou que “A moto
foi arrastada pelo carro. Diz que passou
o quebra-mola com a moto embaixo.
Chegou a passar o quebra mola, parou
o veículo e deu ré, o depoente achou
que ele fosse prestar socorro, mas ele
fugiu do local”. (fl. 123)
Justificou o réu que estava apavorado e por isso foi embora. No entanto,
embora apavorado, atinou em empreender marcha-ré para desvencilhar seu
veículo da motocicleta e ir embora, como
noticiaram as testemunhas L. e M. (fls.
121 e 122), deixando a vítima à sorte e
à bondade de quem nada tinha a ver
SENTENÇAS
com a situação criada por ele. À evidência, quem está tomado de pavor, o fica
em todos os sentidos. Não atinaria empreender a marcha-ré, manobra necessária para livrar o veículo. Tal manobra
exige raciocínio. Visualizou a situação e
desvencilhou o carro. Isso mostra claramente que o réu estava consciente.
Assim, tinha o réu condições psicológicas para prestar socorro, sem perigo
algum à sua segurança. Na essência, o
que levou terceiros a auxiliar a vítima
jogada no asfalto, faltou para o réu:
solidariedade humana. Procurou apenas
sair daquela situação, egoisticamente,
pensando só em si. Típico comportamento punido pela lei. Objetiva o legislador inibir o comportamento egoístico
para impor o auxílio e solidariedade.
O § 4º, ao contrário do afirmado
pela defesa, obriga o causador do fato
ao pronto auxílio, por isso prevê a
sanção. O auxílio dado por terceiro não
elide a responsabilidade do réu, quando, podendo, deixa de prestar auxílio.
É o caso. O fato de ir posteriormente ao
hospital na companhia do pai, o que
ficou amplamente demonstrado na instrução pela defesa, só está a indicar o
arrependimento posterior e o reconhecimento de que no momento devia e
podia prestar auxílio.
A visita posterior à vítima, para saber seu estado no hospital, em nada
altera a situação, uma vez que a infração se consumou no momento em que
deixou o local do fato sem prestar o
auxílio devido. Assim, impõe-se a condenação por homicídio culposo na forma majorada pela omissão de socorro.
No caso, é de se reconhecer a meno-
343
ridade do réu, uma vez que contava
com 18 anos à época do fato.
Pelo exposto, julgo procedente a
denúncia para condenar J. K., já qualificado, como incurso nas penas do art.
121, §§ 3º e 4º, do CP.
Passo a individualizar a pena. Considerando as circunstâncias judiciais do
art. 59 do CP, tem-se que: a) a culpabilidade é elevada. É extremamente reprovável a conduta do réu que, com
seu veículo, portando-se de forma imprudente e negligente, ceifou uma vida.
A sociedade exige maior rigor em tais
casos. Daí acarretar exasperação da
pena. Além disso, o réu é mentalmente
hígido, e tinha plena consciência do
caráter ilícito do fato, ou seja, trafegar
em alta velocidade. Podia e devia agir
de modo diverso; b) o réu não apresenta antecedentes; c) a conduta social,
assim consideradas as suas relações com
a família e a sociedade, vem em favor
do réu; d) personalidade normal; e) os
motivos foram a imprudência e negligência, determinantes em delitos como
o em tela; f) as circunstâncias ensejam
exasperação da pena pela forma que se
deu o fato: o réu colidiu na traseira da
motocicleta da vítima fazendo com que
ela passasse por cima do capô de seu
carro. Situação que exige maior reprimenda pela violência e sofrimento causado à vítima, que foi jogada por cima
do capô do veículo do réu, caindo no
asfalto, gerando os politraumatismos
acusados no auto de necropsia; g) as
conseqüências são normais a tais delitos; e h) a defesa não logrou demonstrar que a vítima tenha colaborado de
qualquer forma na ocorrência do fato.
344
Sendo a maioria das circunstâncias
judiciais favoráveis ao réu, fixo a pena-base em 01 ano e 03 meses de detenção. Presente a atenuante da menoridade, art. 65, I, do CP, diminuo a pena em
01 mês de detenção. Ausentes circunstâncias agravantes. Resta a pena provisória em 01 ano e 02 meses de detenção. Presente a causa de aumento pela
omissão de socorro, aumento a pena
em 1/3, torno-a definitiva em 01 ano,
06 meses e 20 dias de detenção.
Substituo a pena aplicada por duas
penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviço à comunidade, junto ao H. S. R., conveniado, e
interdição temporária de direitos, suspendendo a habilitação para dirigir
veículos, de acordo com os art. 43, IV
e V; 44, § 2º; 46 e 47, inc. III, todos do
SENTENÇAS
CP, pelo tempo da pena (art. 55 do CP).
Deixo de aplicar o sursis (art. 77 do
CP), por entender insuficiente para reprimir e prevenir o delito.
Em caso de aplicação de pena privativa de liberdade na forma do art. 44,
§ 4º, do CP, o réu deverá iniciar o
cumprimento da pena no regime aberto, com base no art. 33, § 2º, alínea c,
e § 3º, c/c o art. 59, parte final, ambos
do CP.
Após o trânsito em julgado, forme-se o PEC, lance-se o nome do réu no
Rol de Culpados, extraia-se o BIE e PJ30 e comunique-se o TRE.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Getúlio Vargas, 30 de novembro de
1999.
Volnei dos Santos Coelho, Juiz de
Direito Substituto.
345
ÍNDICE
346
347
SENTENÇAS CÍVEIS
A
Ação civil pública. Improbidade administrativa. Cargo público exercido de
forma irregular ...........................................................................................................
11
Ação civil pública. Liminar. Nulidade de lei municipal. Inviolabilidade de
voto dos Vereadores. Improbidade administrativa consubstanciada em prejuízo ao Erário Público. Princípio da isonomia dos contribuintes .................
115
Ação civil pública. Legitimidade ativa do Ministério Público para demandar
em matéria tributária. Reajuste do IPTU. Capacidade contributiva ...............
267
Ação civil pública. Legitimidade ativa do Ministério Público. Competência
funcional e em razão da pessoa. Verba de retorno do FUNDEF (art. 212 da
CF). Argüição de inconstitucionalidade ................................................................
225
Ação de cobrança. Contrato de factoring. Cessão de crédito. Inexistência de
direito de regresso cambial .....................................................................................
208
Ação de cobrança. Títulos de crédito rural. Execuções anteriores. Coisa
julgada. Comprovação de existência do débito. Cumulação de multa e honorários. Limitação dos juros em 12% a. a. .......................................................
168
Ação pauliana ou revocatória. Fraude contra credores. Insolvência do devedor. Doação sem efeito ...........................................................................................
279
Ação pauliana ou revocatória. Fraude contra credores. Legitimidade passiva.
Ineficácia relativa. Termo legal. Denunciação da lide .....................................
142
348
SENTENÇAS
Acionista. Vide Sociedade anônima.
Aposentadoria compulsória. Notário e Registrador. Atividade pública delegada ..................................................................................................................................
77
Arrendamento mercantil. Leasing. Revisão de contrato. Indexador em dólar.
Possibilidade ...............................................................................................................
216
Ato jurídico. Nulidade. Doação de imóvel a menor impúbere ......................
221
Autorização judicial. Interrupção da gravidez. Risco à saúde da mãe ou má
formação do feto .......................................................................................................
67
C
Casamento. Ação de anulação. Não demonstrado erro essencial. Prévia união
estável. Improcedência do pedido ........................................................................
59
D
Dano moral. Notícia veiculada pela emissora de rádio, de entrevista que
expôs vida íntima .....................................................................................................
295
Dano moral. Crédito em conta-corrente. Unilateral redução do limite de
crédito e indevida devolução de cheques emitidos pelo correntista ...........
306
Dano moral e patrimonial. Agência de viagem. Pacote turístico. Prejuízo à
personalidade. Limite da verba indenizatória .....................................................
210
Deserdação. Vide Inventário.
Doação. Revogação por ingratidão .......................................................................
30
E
Emenda constitucional nº 20/98 ............................................................................
77
Escritura pública. Anulação cumulada com reivindicação movida pelo espólio. Prescrição aquisitiva e extintiva .....................................................................
39
Escritura pública. Falência. Contratos bilaterais. Promessa de compra e venda
não se rescinde com a quebra ..............................................................................
193
SENTENÇAS
349
Extinção do processo. Ação de indenização. Inépcia da inicial. Mandato.
Extinção. Morte ..........................................................................................................
273
G
Gravidez. Interrupção ...............................................................................................
67
Gravidez. Vide Autorização judicial.
I
ICMS. Mandado de segurança. Direito a créditos em operações relativas ao
ativo permanente, consumo, entrada de energia elétrica e serviços de comunicação. Princípio da não-cumulatividade ............................................................
82
Improbidade administrativa. Vide Ação civil pública.
Inventário. Deserdação. Provada a injúria, ofensa e humilhação à testadora
63
Investigação de paternidade. Cumulada com pedido de guarda. Paternidade
e maternidade socioafetiva. Princípio da aplicação da proteção integral e
melhor interesse da criança ....................................................................................
53
J
Juros. Limite constitucional. Auto-aplicabilidade. Lei da Usura. Instituição
financeira .....................................................................................................................
70
L
Lei nº 6.404/76, arts. 109, V, 230 e 270, parágrafo único .............................
202
Lei nº 7.672/82 ..........................................................................................................
18
M
Menor. Medida socioeducativa descumprida. Aplicação de medida de liberdade assistida. Princípio da ressocialização ........................................................
N
Nulidade. Vide Ato jurídico.
99
350
SENTENÇAS
Nunciação de obra nova. Construção em via pública. Licenciamento para
obra. Competência do Município ..........................................................................
111
O
Obra nova. Vide Nunciação de obra nova.
P
Pensão. IPE. Cancelamento para filhas solteiras ................................................
18
Promessa de compra e venda. Outorga de escritura definitiva. Promessa
irretratável de venda. Imóvel objeto de inventário ...........................................
285
R
Registro de nascimento. Retificação referente ao sexo. Transexualismo. Intervenção cirúrgica. Possibilidade ..........................................................................
34
Responsabilidade civil do Município. Indenização. Acidente de trânsito devido a “valeta” aberta em via pública. Morte de filho menor ......................
101
S
Separação judicial. Exame de culpa. Substituição do princípio da culpa pelo
princípio da ruptura. Alimentos. Guarda dos filhos .........................................
93
Separação judicial. Princípio da culpa. Alimentos aos filhos ..........................
121
Servidão de trânsito. Descontínua e aparente. Possibilidade de manutenção
na posse ......................................................................................................................
251
Sociedade anônima. Acionista. Sócio dissidente. Retirada em desacordo com
a incorporação de sociedade comercial ...............................................................
202
U
União estável. Sociedade de fato. Concubinato. Caracterização. Ação declaratória. Requisitos inexistentes. Partilha de bens ...............................................
129
SENTENÇAS
351
SENTENÇAS CRIMINAIS
A
Acidente de trânsito. Homicídio. Dolo eventual. Inocorrência. Desclassificação do delito ..............................................................................................................
327
Acidente de trânsito. Homicídio culposo. Culpa do condutor .......................
338
E
Estupro. Ação penal. Violência real e presumida. Vítima grávida de
genitor .........................................................................................................................
319
F
Furto. Princípio da bagatela. Sentença absolutória ............................................
315
352
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