VII Colóquio Internacional Marx e Engels.
Ressineti, R. T; Costa, A. C. Pós-graduanda em educação, Unesp - Rio Claro. GRUPO
DE PESQUISAS E ESTUDOS MARXISMO, EDUCAÇÃO E CULTURA.
GT7: Educação, Capitalismo e Socialismo.
UM MOSAICO DE POLÍTICAS, POR UMA ESCOLA EFICIÊNTE, EFICAZ E COM
FLUXO: situando a progressão continuada no escopo das políticas públicas para o
ensino fundamental na década de 1990.
INTRODUÇÃO
O presente artigo resulta de uma pesquisa em andamento cujo tema é a Política
Educacional da Progressão Continuada no Estado de São Paulo e suas possíveis
correlações com o analfabetismo funcional. Utilizamos o conceito de analfabetismo
funcional promovido pela Unesco a partir da década de 1960.
Na acepção difundida por esse organismo, analfabetismo funcional
diz respeito à impossibilidade de participar eficazmente de atividades
nas quais a alfabetização é requerida; remete, portanto, aos usos
sociais da escrita e a tipos e níveis variáveis de habilidades de acordo
com as demandas impostas pelo contexto (RIBEIRO, 2001, p. 206).
A política educacional baseada em ciclos da Progressão Continuada foi aprovada
no Estado de São Paulo pelo Conselho Estadual de Educação (CEE) em 1997 e
implantada pela Secretaria de Estado da Educação (SEE) em toda a rede estadual de
ensino fundamental em 1998, com o intuito de resolver o problema dos altos índices de
evasão e repetência dos alunos. No âmbito nacional, a política de Progressão
Continuada constituiu-se numa resposta a estes dois problemas citados, apresentando-se
à sociedade como política de afirmação do ensino fundamental para pessoas na faixa
etária de seis a quatorze anos, garantindo-se o acesso e a permanência na escola, bem
um incentivo da conclusão dessa etapa do ensino básico, como direito público subjetivo
(BRASIL, 1996).
Com o avanço da Psicologia da Educação aprofunda-se o debate sobre os
mecanismos cognitivos envolvidos na aprendizagem e, nesse âmbito, a importância da
avaliação diagnóstica, a qual o Estado de São Paulo adotou como procedimento padrão.
Salientamos que a Progressão Continuada requer mudanças no currículo, na
reorganização das turmas, tempo, bem como do espaço escolar, enfim, uma
reorganização do trabalho pedagógico. Tais mudanças na organização do trabalho na
escola, demandam investimentos públicos, reestruturação da infraestrutura física e
logística e reforma pedagógica (DIAS, 2004).
Inicialmente, analisamos que a deliberação do CEE (Conselho Estadual de
Educação) fundamenta-se em dois argumentos para aprovar a Lei da Progressão
Continuada: o psicológico (auto-estima dos alunos) e econômico (desperdício):
Por um lado, o sistema escolar deixará de contribuir para o
rebaixamento da auto-estima de elevado contingente de alunos
reprovados. [...] Por outro, a eliminação da retenção escolar e
decorrente da redução da evasão deve representar uma sensível
otimização dos recursos para um maior e melhor atendimento de toda
a população. A repetência constitui um pernicioso “ralo” por onde são
desperdiçados preciosos recursos financeiros da educação (SÃO
PAULO, 1997, p. 825, grifos nossos).
Se a preocupação principal do Estado se refere a economia de gastos e elevação
da auto-estima dos alunos, como demonstram os documentos oficiais, necessariamente,
não indentificamos uma orientação expressa para o investimento numa reestruturação da
escola para acomodar a nova organização do trabalho escolar em ciclos, que seria a base
da progressão continuada, com preservação da qualidade do ensino. Assim indagamos
se haveria, de fato, uma polarização entre a repetência e a elevação da auto-estima dos
alunos e se haveria uma compatibilidade entre os objetivos de elevação da qualidade do
ensino e o de economia de gastos.
Objetivamos contribuir para uma discussão mais ampla sobre se a progressão
continuada se constitui num ganho para a classe trabalhadora ou se seguiria a orientação
das agências internacionais balizadas pela doutrina neoliberal para o estabelecimento de
politicas educacionais, cujo objetivo seria maximizar o fluxo de alunos concluintes do
ensino fundamental obrigatório pela escola pública, sem os eventuais prejuízos da
reprovação – tanto para os alunos, quanto para o Estado, e partindo do pressuposto de
que o sucesso das instituições como a escola, pode ser obtido por meio de critérios
como a eficiência, que é a maximização do uso do espaço escolar com minimização dos
custos, e alto fluxo da assim chamada clientela escolar, passando pelo sistema e se
certificando.
Nosso objetivo específico é analisar uma das múltiplas facetas que concorrem para
o novo fenômeno da escola pública, que é o analfabetismo funcional, buscando
problematizar, nesse momento o aspecto referente ao fato de que os alunos estão sendo
aprovados e chegam ao nono ano do ensino fundamental sem a habilidade de
compreensão e interpretação dos textos escritos, fundamental para o aprendizado das
demais disciplinas do currículo. Nosso referencial teórico-metodológico é o
materialismo histórico dialético, o qual nos auxilia compreender a prática educativa e os
elementos que a constituem, de forma a apreender a sua materialidade de forma mais
completa. No âmbito do método, constituimos como pressuposto de que o fenômeno do
analfabetismo funcional é síntese de múltiplas determinações. “Daí a necessidade de
distinguir entre essência e aparência, entre o fundo relativamente permanente e a
superfície variante das coisas, se converte em um problema teórico e prático”
(NOVACK, 2005, p. 95).
O QUE OS DADOS OFICIAIS NÃO REVELAM
De acordo com as estatísticas e publicações disponibilizadas pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) podemos perceber que aumentou a taxa líquida de
escolarização das crianças no ensino fundamental, de 80,1% em 1980, para 95,4%, em
1999 (quadro 1), que pode ser considerado, a princípio um avanço, numa conjuntura de
crescimento demográfico da população:
QUADRO 1
Fonte: MEC/INEP/ Censo Escolar 1980/2000. Edudata Brasil; IBGE, Censo Demográfico.
Podemos inferir que o aumento da taxa de escolarização do ensino fundamental
em 1980 pode ser resultante da reforma da educação, Lei 5.692/ 1971, em que a
obrigatoriedade do ensino brasileiro estendeu-se de quatro para oito anos, e instituiu-se
a terminalidade dos estudos na 8ª série, não mais na 4ª, embora, naquele momento
histórico não houvesse, ainda uma legislação punitiva para os pais e responsáveis que
não matriculassem os filhos na escola, tampouco para os entes federados, cujos órgãos
responsáveis pelo provimento da educação formal não garantissem as vagas.
A maior taxa líquida de ingresso de crianças na escola foi no ano de 1999, de 95,3
%, mantendo-se até o ano de 2000. Tais dados estatísticos oficiais podem ser explicados
como consequências da Constituição de 1988, que elevou o direito a educação ao estado
de “direito público subjetivo”, para o nível fundamental, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, lei 8.069 de 1990, em que se estabelecem penalidades para o Estado e os
reponsáveis em caso de evasão escolar e propõe mecanismos de controle da evasão e da
repetência na escola, articulada à ação dos Conselhos Tutelares, a LDB 9394 de 1996,
que além de ratificar aquela legislação mais geral, institui a progressão continuada nos
capítulos da Educação Básica, ao propor, por um lado a flexibilização da organização
do trabalho escolar e, por outra, a flexibilização das formas de aferição do rendimento
escolar e da promoção. No período de 1994 a 2002, Fernando Henrique Cardoso
empreendeu campanhas nacionais de grande difusão, como a “Tá na hora da escola,
todo mundo na escola”, com vistas a conclamar a população a enviar as crianças de 7 a
14 anos à escola e, a instituição do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.
Tais políticas educacionais focalizadas na faixa etária de 7 a 14 anos foram
empreendidas a partir da orientação dos Organismos multilaterais como o Banco
Mundial (BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e a Organização
das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO) (OLIVEIRA,
2000). De acordo com tais orientações, ficou estabelecido que o Brasil impulsionaria as
políticas educacionais dando ênfase à educação básica. A partir da Conferência de
Jomtien, toda a Reforma do Estado dos anos de 1990 no Brasil se deu submetida às
diretrizes das agências internacional, tornando-se meta do governo universalizar o
ensino fundamental, erradicar o analfabetismo e reduzir a repetência e evasão, tendo
como ferramenta a lei da Progressão Continuada.
Fernando Henrique Cardoso sanciona o Programa “Toda Criança na Escola” (lei
nº 9.553/97), com característica de política neoliberal focalizada, não só do ponto de
vista da faixa etária, como do regional também:
A elevação na taxa líquida de matrículas no ensino fundamental público, no
período de 1990, apresentado no quadro 1, foi um esforço por parte do Estado, para dar
uma resposta à sociedade brasileira e à comunidade internacional mediante um quadro
de analfabetismo infantil e de adolescentes, comprometedor da imagem do país.
Entretanto, para além da aparência, a essência do problema era que se corria o risco de o
país contar, na década de 2.000, com um significativo contingente de trabalhadores
analfabetos absolutos, numa conjuntura em que as forças produtivas exigem uma
formação mínima para que os trabalhadores sejam treináveis, para serem melhores
aproveitados, pelo capital, pois a força de trabalho é a única mercadoria capaz de
produzir valor ao ser consumida, conforme apresentamos no quadro 2:
QUADRO 2
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 1992/2009.
Ademais, na década 1990 havia, além desse índice de crianças analfabetas
absolutos, ainda os altos índices de repetencia e evasão escolar, que deveria introduzir
no mercado de trabalho, nas décadas seguintes, um contingente ainda maior de
trabalhadores que eram alfabetizados no sentido técnico do termo, dominavam a leitura
e a escrita, porém, nao eram capazes de realizar interpretações de textos.
Enfim, as estatísticas mostram que houve, de fato, um sucesso por parte do
governo federal nas gestões de Fernando Henrique Cardoso, no que tange ao aumento
do ingresso de crianças na escola, entretanto, o problema da evasão e da repetência
permaneceu e esses dados não mostram.
Mediante esse problema, o Estado, mais uma vez, busca iniciativas de baixo custo
e que tenham efeitos estatísticos positivos, como soluções de aparência, para problemas
reais. Esse foi o caso da política da Progressão Continuada, implementada como política
oficial em todo o território nacional a partir de 1997, por meio da Lei de diretrizes e
bases da educação nacional. O artigo 23º propõe as medidas de flexibilização da
organização do trabalho escolar, tais como “séries anuais, períodos semestrais, ciclos,
alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na
competência e em outros critérios” (BRASIL, 1996); e de flexibilização da aferição de
desempenho escolar como estabelece o artigo 24º, parágrafo V:
V – a verificação do rendimento escolar observará os seguintes
critérios:
a) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com
prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos
resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais;
b) possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso
escolar;
c) possibilidades de avanço nos cursos e nas séries mediante
verificação do aprendizado;
d) aproveitamento de estudos concluídos com êxito;
e) obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos
ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem
disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos; (Idem,
ibidem, grifos nossos).
Conforme o quadro 3 pode-se observar que tais medidas realmente diminuiram as
taxas de evasão e repetência porque impuseram barreiras que restringiram o poder dos
professores de aprovação, bem como multiplicaram as chances de aprovação dos
alunos.
QUADRO 3
Fonte: MEC/INEP/Censo Escolar
Em uma palavra, o governo Fernando Henrique Cardoso empreendeu um processo
de massificação do ensino, sem transgredir a natureza do Estado mínimo neoliberal de
normatizador, avaliador, fiscalizador e fomentador de políticas (FIORI, 1999) ao
fomentar o acesso e a permanência na escola, fazendo uso de uma legislação
criminalizadora dos responsáveis pelas crianças que não garantissem a frequência dos
filhos à escola, dos Estados e municípios que não lograssem êxito em garantir vagas e,
finalmente, do patronato que se utilizasse de força de trabalho infantil, além de medidas
propositivas, como a criação do FUNDEF, para garantir um financiamento mínimo do
ensino de nível fundamental, a realização de campanhas de matrícula, dentre outras
políticas destacadas anteriormente. A lei da Progressão Continuada, instituída para
erradicar o problema da evasão e da repetencia obteve êxito, conforme pudemos
observar no quadro 3.
Entretanto, há uma contradição, mediante o esforço do governo de fomentar o
acesso e a permanência na escola pública estatal, compartilhamos com a ideia que o
analfabetismo funcional aumentou e agora acomete estudantes certificados.
A PROGRESSÃO CONTINUADA E O ANALFABETISMO FUNCIONAL
Se partirmos do pressuposto de que a escola enquanto instituição determinante e
determinada pela sociedade não é imune a Nova Organização do Trabalho (ARENDT,
1981; ANTUNES; ALVES, 2004; ROSA 1999), requerendo trabalhadores com
competências necessárias para o instável mercado de trabalho, não podemos deixar de
considerar que existe uma correlação ente a política da Progressão Continuada e as
novas demandas de formação dos trabalhadores na conjuntura capitalista deste século.
De fato, FREITAS (2002) analisou detalhadamente como a Progressão Continuada
produz na classe trabalhadora um efeito de acomodação ao status quo, a partir da
internalização da condição de excluído, por meio de um conjuto de procedimentos
objetivos articulados.
Para a conformação desse novo tipo de trabalhador, polivalente, multifuncional e
flexível, há que se empreender um novo projeto de educação; o objetivo desse novo
projeto é o de preparar a classe trabalhadora para aprender a aprender, no contexto de
um mercado de trabalho instável, para ser facilmente adaptável e treinável. Isso ocorre
por meio de um currículo que se organiza em torno do eixo das competências, por
vezes, em detrimento dos conteúdos (DUARTE, 2001; FREITAS, 2002).
Tendo em vista que se implantava um currículo sob o eixo das competências, as
avaliações em todos os níveis passam a aferir a aquisição destas. Nesse quadro, os
critérios de avaliação do sucesso e do fracasso escolar tem novos referentes, tais como
aquisição ou não de competências. Em outras palavras, se antes o que reprovava os
alunos era a falta de conteúdos escolares, cuja seleção, organização, ensino e avaliação
cabia ao professor, hoje, o critério de reprovação são as competências, definidas pelo
Estado em diretrizes e parâmetros curriculares, organizadas sob a mediação do livro
didático ou do ensino apostilado e avaliada oficialmente pelo Estado, embora o
professor possa aplicar suas avaliações na classe, sem poder de reprovação.
No quadro das políticas de fomento do acesso e permanência dos alunos na escola,
a progressão continuada cumpriu um importante papel, coroando todo um processo de
acomodação de um grande contingente de crianças advindas da classe trabalhadora
(população privilegiada das escolas públicas estatais). O sistema escolar se modificou
no sentido de instituir como fundamentos a eficiência, a eficácia, a economia e o fluxo,
criou uma forma inédita de organização do trabalho pedagógico que não é nem a escola
em ciclos, nem a seriação anual, mas uma bricolagem entre as duas formas, com novos
conteúdos de ensino, as competências e novas formas de avaliação, flexibilizadas, sob a
forma de avaliação diagnóstica e contínua.
Nessa perspectiva, realmente a política da Progressão Continuada democratizou o
acesso, a permanência e a certificação na escola formal. Entretanto, a existência do
fenômeno do analfabestismo funcionoal nos aponta que esta mesma escola ainda não
logrou êxito na tarefa fundamental de democratização do conhecimento, que é o quesito
necessário para uma real democratização do ensino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
De acordo com as considerações apontadas em nossa análise, observamos que as
reformas educacionais realizadas até o momento, não estão em consonância com a
formação integral e intelectual da classe trabalhadora, uma vez que, como já apontamos
em momentos anteriores, tais reformas caminham mais no sentido de certificação,
valendo-se apenas como um mero registro, mantendo assim a classe trabalhadora
alienada de seus direitos e muitas vezes sendo até mesmo privada de exercer o seu papel
de cidadã na atual sociedade globalizada/ capitalista.
Em uma sociedade crivada por duas classes antagônicas, na qual a escola
transfere, veicula a ideologia da classe dominante, reformas na instituição escolar não
lograrão êxito, sem primeiramente conseguirmos “romper com a lógica do capital”:
Limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas
interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez,
conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação social
qualitativa. Do mesmo modo, contudo, procurar margens de reforma
sistêmica na própria estrutura do sistema do capital é uma
contradição em termos. É por isso que é necessário romper com a
lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma
alternativa educacional significativamente diferente (MESZÁROS,
2008, p. 27, grifos do autor).
A escola, é um lócus importante de constituição dos indivíduos em cidadãos, e
esse processo não se dá sem a mediação dos conteúdos. No entanto, a passagem pelo
ambiente físico escolar não implica necessariamente na aquisição de conhecimentos,
por esse fator podemos identificar que a medida da progressão continuada, tal como está
posta nas escolas públicas, limita-se a superficialidade, não atingindo assim, a essência
do não aprendizado, do analfabetismo funcional, e consequentemente, impossibilitando
que ele seja verdadeiramente solucionado.
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Telma Ressineti - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas