O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Os recursos são remédios. Umas vezes, eficazes;
outras, nem por isso. Se a justiça fosse uma
aritmética, uma prova dos nove seria suficiente
para aquilatar da bondade das decisões. Mas a
justiça é um discurso, muitas vezes redundante,
que
precisa
muitas
vezes
de
outros
discursos,
redundantes,
que
também
eles
credibilizem
os
primeiros. Se me permitem uma ideia da justiça
próxima daquela que poderia ter um tal Josef K.,
ouso dizer, ainda que o não deva sustentar, que
o trânsito em julgado de qualquer decisão traduz
a natureza da humanidade que somos: incerta e
efémera. Nessa ideia, ou melhor, nesse sentido
que estará entre a ética e a estética, a justiça
seria um recurso em contínuo em busca, não de um
tempo
perdido,
mas
impossivelmente
equívocos,
de
definitiva.
aparentes
ou
reais,
uma
verdade
Muitos
que
a
dos
justiça
gera, resultam do esquecimento da sua natureza:
ela é prosaica e terrena. O que nos vão vendendo
é
a
ilusão
absolutos
e
inscreve
a
de
de
uma
justiça
alguns
absurdos.
banalização
dos
fantasiada
É
aí
que
recursos,
de
se
dos
recursos terrenos, tema ou temor que hoje aqui
nos traz.
Daqui
a
muitos
anos,
quando
for
outro
o
paradigma judiciário, o historiador desse tempo
não deixará de ficar surpreendido com a extensão
1
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
das atribuições do Ministério Público na área
dos recursos, nomeadamente na área dos recursos
penais. E se se ficar pela letra da lei, pelo
seu conteúdo e pelo seu propósito, não deixará
de escrever que o legislador desse passado já
longínquo teria feito do Ministério Público um
recorrente compulsivo. Mas se avançar na análise
histórica, na análise dos números e dos casos, o
historiador
concluirá,
surpreendido,
que
o
com
certeza
Ministério
novamente
Público
foi,
apesar da lei, um tímido e discreto recorrente.
Um recorrente que teria utilizado, sem audácia e
sem estratégia, essa legitimidade, quem sabe se
excessiva, para recorrer disto e daquilo, aqui e
acolá. Provavelmente, o meio mais eficaz para
paralisar as instituições, e continuo ainda a
dar
voz
ao
enriquecê-las
meu
com
imaginado
historiador,
competências
que,
será
parecendo
dádivas, apenas robustecem as inércias.
O artigo 401º, nº 1, alínea a), do actual Código
de Processo Penal, estabelece que o Ministério
Público
quaisquer
tem
legitimidade
decisões,
ainda
para
que
recorrer
no
de
exclusivo
interesse do arguido.
Não se trata de uma disposição inovadora.
O
Código
de
Processo
Penal
de
1929,
no
seu
artigo 647º, 1º, dizia o mesmo, ainda que com a
2
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
diferença ligeira de se reportar ao exclusivo
interesse da defesa.
Em ambas as disposições, o poder concedido ao
Ministério Público em matéria de recursos penais
é o mais amplo possível.
É natural que o seja, já que concedido a uma
magistratura
que
se
deve
reger
por
opções
de
segurança
do
estrita legalidade.
Funcionará
sistema,
como
uma
válvula
permitindo
que,
de
para
além
do
imediatismo dos interesses em causa, razões de
harmonia
e
concertação
judiciária
possam
ser
levados à consideração de uma outra instância.
Mas o que fazer com tal poder? Como o exercer
com ponderação e eficácia?
No antigamente, nesses anos de desconfianças, o
próprio Código, e outra legislação, impunham ao
Ministério Público que, em certas circunstâncias
e
relativamente
a
certos
crimes,
interpusesse
recursos.
Eram
os
recursos
obrigatórios,
área
especialmente visada na avaliação funcional dos
magistrados de então.
Assim, o Ministério Público tinha a obrigação de
recorrer –
Das decisões que não declarassem o impedimento
do juiz, nos casos em que o mesmo lhe tivesse
sido oposto (§§ 1ºs dos artigos 647º e 110º);
3
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Das
sentenças
finais
nos
processos
em
que
o
juiz, agente do Ministério Público ou escrivão
fossem
ofendidos,
presença
e
no
por
actos
exercício
cometidos
das
suas
na
funções,
sua
ou
fora delas, mas por causa das mesmas (artigos
647º, § 1º e 116º);
Das decisões que aplicassem penas maiores fixas
(§§ 1º do artigo 647º, único do artigo 473 e
artigo 526º);
Das decisões proferidas contra a jurisprudência
fixada
pelo
Supremo
Tribunal
de
Justiça,
em
tribunal pleno (artigos 647º, § 1º e 670º);
Sempre que o superior hierárquico lho ordenasse,
mesmo que se houvesse conformado com a decisão
(§ 2º do artigo 647º);
Das decisões proferidas contra o Estado, sempre
que
não
contrário
houvesse
ordem
superior,
(artigo
230º,
nº
1,
escrita,
alínea
f),
em
do
Estatuto Judiciário);
Das
decisões
absolutórias
em
processo
de
transgressão por abertura de poços dos concelhos
de
Lisboa,
Oeiras,
Cascais,
Sintra
e
Loures
(artigo 12º do Decreto-Lei nº 30448, de 18 de
Maio de 1940).
Mas entendia-se, então, que não chegavam estas
imposições que resultavam da lei.
Por via hierárquica, para além da possibilidade,
como vimos, de ser ordenada a interposição de
4
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
recurso
em
considerado,
cada
caso
individualmente
estabeleceram-se,
de
uma
forma
genérica, recursos obrigatórios.
Estar-se-ia, aqui, perante uma forma de direcção
institucional
em
que
se
privilegiaria
a
conjuntura.
Por exemplo:
Das
decisões
absolutórias
em
processos
por
exercício da indústria de agentes de emigração
ou de passagens e passaportes sem a necessária
autorização (imposição de 1923);
Das
decisões
absolutórias
proferidas
nos
processos por crimes de emigração clandestina,
designadamente
de
aliciação,
engajamento
ou
colaboração na obtenção de documentos -contratos
de trabalho, cartas de chamada ou equivalentespara emigração (imposição de 1959);
Das decisões que não aceitassem a definição de
açaimo exposta nas Instruções da Direcção-Geral
dos
Serviços
Pecuários
para
a
execução
do
Decreto-Lei nº 29441 (imposição de 1940).
Para
além
destes
recursos
de
interposição
obrigatória, por força da lei ou de determinação
hierárquica,
a
hierarquia
definia
algumas
situações em que aconselhava a interposição de
recursos.
Era aconselhada a interposição de recurso:
5
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Sempre
que
estivesse
autoridade
em
(despacho
causa
do
o
prestígio
Procurador-Geral
da
da
República de 14 de Fevereiro de 1949);
Das
sentenças
proferidas
em
processo
correccional pelo juiz substituto (Circular de 9
de Março de 1935);
Sempre
que
se
discutisse
a
necessidade
de
licença para a realização de quaisquer obras ou
trabalhos
a
que
se
referia
o
artigo
282º
do
Regulamento dos Serviços Hidráulicos, de 19 de
Dezembro de 1892 (Circular de 26 de Fevereiro de
1948);
Nos
processos
pelo
uso
e
detenção
de
armas
proibidas quando se declarasse que a competência
para
elas
não
pertencia
aos
tribunais
comuns
(Circular de 23 de Julho de 1949).
Não tenho elementos que me permitam falar sobre
o modo como esse aconselhamento se repercutiria
na actividade dos magistrados.
Mas face à expressividade da hierarquia então
existente, aliás adequada ao contexto político
da época, será legítimo admitir que tivesse sido
interposto um número significativo de recursos
em resultado dessas orientações.
Justificando
nomeadamente
esta
a
dos
solução
legislativa,
recursos
obrigatórios,
escrevia, em 1934, Luís Osório:
6
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
“O
Ministério
Público
não
é
propriamente
um
acusador, mas um representante da sociedade que
tem interesse em que a justiça seja feita, e
fazer
justiça
pena.
Assim,
pode
o
ser
absolver
recurso
pode
ser
ou
baixar
a
interposto
a
favor do réu, o Ministério Público deve recorrer
de certas decisões em que é preciso um exame
mais cuidadoso do processo; o ter-se conformado
com a decisão não o impede de recorrer.”
É
curioso
anotar
esta
associação
entre
a
obrigatoriedade do recurso e a necessidade de
uma análise mais cuidada de certas matérias, o
que
nos
levaria
para
considerações
que
estão
fora do propósito deste texto.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13
de Março de 1957, estabeleceu que aos recursos
interpostos por dever de ofício (§ 1º do artigo
647º
e
§
único
do
artigo
473º
do
Código
de
Processo Penal) não era aplicável o disposto no
artigo
690º
do
Código
seja,
interposto
o
Ministério
Público
apresentar
alegações
de
Processo
recurso
não
Civil,
ou
obrigatório,
o
estava
(Bol.,
obrigado
63-383),
aliás
a
na
sequência de um outro acórdão do mesmo Tribunal,
de
21
de
Novembro
de
1941
(Revista
de
Legislação, ano 74º, pág. 381, e ano 73º, pág.
296).
7
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Sustentava-se
que,
sendo
o
recurso
interposto
por imperativo da lei e não por discordância com
o
decidido,
nunca
seria
possível
exigir
ao
recorrente invocar razões para a alteração da
decisão em recurso.
Os tempos mudaram.
Exceptuando
o
disposto
no
artigo
3º,
nº
1,
alínea o), do Estatuto do Ministério Público,
que estabelece que deve ser interposto recurso
“sempre que a decisão seja efeito de concluio
das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha
sido proferida com violação de lei expressa”, e
o disposto no artigo 446º, nº 1, do Código de
Processo Penal, que estatui que “o Ministério
Público
recorre
obrigatoriamente
de
quaisquer
decisões proferidas contra jurisprudência fixada
pelo
Supremo
Tribunal
de
Justiça,
sendo
o
recurso sempre admissível”, a lei não determina
a obrigatoriedade de outros recursos.
Seria interessante analisar, em outro momento,
em que medida a autonomia do Ministério Público
não se compagina com essa obrigatoriedade legal
ou com um seu possível alargamento.
Por outro lado, também não existem determinações
hierárquicas que, de um modo genérico, imponham
a interposição de recursos.
Nem por aconselhamento foram dadas orientações
ou suscitadas interrogações.
8
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Escreveu, o outra vez citado Luís Osório, que “o
Ministério Público é a parte que maior poder de
recurso tem.”
Um
poder
assim
relativamente
ao
coloca
seu
sérias
exercício,
questões
ou
melhor,
à
gestão do seu exercício.
Num estado de abandono legal e hierárquico, cabe
a cada magistrado o risco da dispersão funcional
nesta matéria.
Uma
política
dela,
criminal,
passa,
e
tanto
necessariamente,
se
por
tem
falado
uma
prévia
definição de algumas linhas sobre as situações
em
que
o
Ministério
Público
deveria
ter
uma
particular atenção para o recurso penal.
Apesar
desse
poder,
disponibilizados
os
elementos
apontam
para
estatísticos
um
exercício
relativamente mitigado.
Em
2003,
o
Ministério
Público,
no
âmbito
dos
inquéritos, das instruções e dos processos-crime
classificados,
interpôs
1460
recursos
para
os
tribunais da Relação: 272 no Distrito Judicial
de Coimbra; 238 no Distrito Judicial de Évora;
489 no Distrito Judicial de Lisboa; e 461 no
Distrito Judicial do Porto.
Tendo
em
âmbito,
conta
foram
que,
naquele
interpostos
ano
9287
e
no
mesmo
recursos,
constata-se que a percentagem dos que couberam
9
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
ao
Ministério
Público
corresponde
a
15,7%
do
total.
Daqui
decorre
que
o
Ministério
Público
foi
recorrido em 84,3% dos aludidos recursos.
Se
consultarmos
os
elementos
estatísticos
referentes a 2001, verifica-se que o Ministério
Público interpôs 1491 recursos, mais 31 do que
em 2003.
Nesse
ano,
nos
tribunais
da
Relação,
deram
entrada 6876 recursos penais, pelo que se pode
concluir
que
os
interpostos
pelo
Ministério
Público corresponderam a 21,6% do total, sendo
recorrido em 78,4%.
Se
recuarmos
elementos
um
pouco
mais
estatísticos
verifica-se
que
o
e
consultarmos
referentes
Ministério
a
Público
os
1996,
interpôs
1938 recursos, mais 478 (+32,7%) do que em 2003.
Nesse
ano,
nos
tribunais
da
Relação,
deram
entrada 5151 recursos penais, pelo que se pode
deduzir
que
os
interpostos
pelo
Ministério
Público corresponderam a 36,7% do total, sendo
recorrido em 63,3%.
Não vos querendo cansar com outras enumerações,
deverá acentuar-se, no entanto, que, havendo um
aumento
constante
dos
recursos
penais
interpostos, há uma diminuição sistemática dos
que são interpostos pelo Ministério Público: em
10
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
números
globais
e,
obviamente,
em
termos
percentuais.
Cada vez menos recorrente, o Ministério Público
vai tornando-se cada vez mais recorrido.
As razões para este desencontro aritmético não
serão fáceis de encontrar.
Poderá dizer-se que a credibilidade das decisões
judiciais
recorríveis
aumentou
junto
dos
magistrados do Ministério Público. E digo-o sem
ironia.
Poderá
também
disponibilidade
dizer-se
dos
que
o
interesse
magistrados
do
ou
a
Ministério
Público em recorrer tem diminuído.
Poderá
ainda
magistrados
do
adiantar-se
Ministério
que
Público
faltará
o
aos
estímulo
para o desenvolvimento de uma tarefa que exige
um particular empenho.
Sejam quais forem as razões, a verdade é que
devem tornar-se preocupações.
Tendo a contabilidade, não temos os conteúdos.
De
que
tipo
de
decisões
recorreu?
Com
que
argumentos? Encontra-se alguma articulação entre
os diversos magistrados no que diz respeito à
actividade recorrente do Ministério Público?
O que se possa dizer é empírico.
11
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Correndo esse risco, não será ousado afirmar que
essa actividade não foi sistemática nem obedeceu
a qualquer razão de estratégia criminal.
Se analisarmos o mapa dos recursos por comarcas
e
círculos,
que
só
encontram-se
poderão
ser
desvios
quantitativos
justificados,
à
falta
de
outros elementos, pela maior ou menor apetência
dos respectivos magistrados para a interposição
dos recursos.
A título de exemplo:
No Círculo Judicial de Seia, em 2003, para 1384
processos
comuns,
sumários
e
sumaríssimos
iniciados, foram interpostos 15 recursos, o que
corresponde a 1,08%.
No
Círculo
processos
Judicial
iniciados,
de
Aveiro,
foram
para
2262
interpostos
19
recursos, o que corresponde a 0,83%.
Ou
seja:
63,4%
havendo
nos
uma
processos,
variação,
para
verificou-se
mais,
apenas
de
uma
variação de 33,3% nos recursos.
Muito sumariamente, no que tange aos recursos
interpostos
pelo
Ministério
Público
nos
tribunais da Relação para o Supremo Tribunal de
Justiça, segundo os elementos que pude recolher,
constatou-se
que,
em
2003,
em
Coimbra,
foi
interposto 1, em Évora, 4, no Porto, 6.
Não foram muito diferentes os números em outros
períodos.
12
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Também
aqui
o
Ministério
Público
foi
um
recorrente mitigado, mas, e digo-o outra vez sem
ironia,
não
deixou
de
ser
um
recorrido
esforçado.
E,
no
entanto,
é
preciso
realçá-lo,
em
385
recursos interpostos pelo Ministério Público, na
1ª
Instância,
que
foram
julgados
em
2003,
verificou-se que 240 (62,3%) tiveram provimento
e 145 (37,6%) estiveram sujeitos ao insucesso.
Mas se nos reportarmos a 1992, em 1452 recursos
interpostos pelo Ministério Público e julgados
nesse ano, 971 (66,8%) obtiveram provimento e
481 (33,1%) não o obtiveram.
Os
recursos
são
garantias
com
dimensão
constitucional.
O Ministério Público não pode entender a redução
dessas
eficácia
garantias
da
em
justiça
nome
ou
de
por
uma
causa
pretensa
de
uma
discutível inflação recursória.
É
preciso
volatilidade
não
da
esquecer
que
jurisprudência
é
a
própria
que
induz,
significativamente, os recursos.
Não sendo o Ministério Público um contribuinte
estimável dessa pretensa inflação, a verdade é
que, como recorrido, tem um trabalho acrescido.
Também aqui temos os números, que são muitos,
mas não temos os conteúdos.
13
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Não se tenha medo, porém, de esclarecer que em
muitas
das
respostas
(quantas?)
o
Ministério
Público limita-se a aderir à bondade da decisão
recorrida.
A monitorização das intervenções do Ministério
Público em sede de recursos é uma exigência.
Sem ela, não teremos a percepção do que se faz e
daquilo que seria de fazer.
Abordando a carta temática dos recursos, dir-seá que é natural que, em 1997, 25% dos recursos
interpostos
dissessem
para
os
respeito
a
tribunais
da
crimes
emissão
de
Relação
de
cheques sem cobertura, e que 12% desses recursos
dissessem
respeito
a
crimes
de
condução
de
veículo em estado de embriaguez, e que, em 2003,
12% dos recursos dissessem respeito a crimes de
condução de veículo em estado de embriaguez e 3%
a crimes de cheque sem cobertura.
É
também
natural
sistematicamente,
que,
cerca
de
dos
1997
30%
a
dos
2003,
recursos
interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça
fossem
respeitantes
a
crimes
de
tráfico
de
estupefacientes.
Estas percentagens, e a sua evolução, condizem
com as percentagens respeitantes aos tipos de
crimes constantes das acusações deduzidas pelo
Ministério
Público
nestes
14
períodos
e
às
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
percentagens
de
arguidos
condenados,
em
1ª
instância, em penas significativas de prisão.
Não há, nessa vertente, nada de anormal.
O
que
seria
interessante
conhecer,
independentemente dos crimes em causa, seriam as
razões substanciais ou adjectivas dos recursos.
Os
diversos
relatórios
anuais
do
Ministério
Público nada esclarecem sobre esta matéria.
E não há outras abordagens sedimentadas destas
questões.
Talvez no futuro, possam vir a ser criados novos
parâmetros
sejam
de
apenas
avaliação,
numéricos,
parâmetros
mas
que
que
nos
não
permitam
também divagar sobre a alma dos recursos.
Seria
uma
área
em
que
a
colaboração
com
as
diversas Faculdades de Direito ajudaria a que a
justiça repensasse alguns dos seus problemas e
também alguns dos seus fantasmas.
Em 1998, num texto intitulado “O princípio da
igualdade,
a
medida
da
pena
e
o
Ministério
Público”, o Dr. Simas Santos escrevia que “um
dos princípios fundamentais do direito penal é o
da
igualdade
problema
das
conexo
penas
filósofos
nas
que
do
decisões
das
de
disparidades
tem
justiça
na
preocupado
direito
em
sociedades democrática.”
15
quase
e
o
aplicação
juristas
todas
e
as
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Em
2004,
na
Revista
Criminal,
em
artigo
Portuguesa
do
mesmo
de
Ciência
autor
e
do
Professor Manuel Matos, sobe a “Medida Concreta
da
Pena,
Tráfico
no
de
Supremo
Tribunal
Estupefacientes”,
de
Justiça,
foi
escrito
no
que
“... a posição que o Ministério Público assume
quanto à pena concreta é um importante preditor
da sentença, as suas recomendações relevam, em
geral, no resultado final. Dada a sua estrutura
organizacional,
boas
o
condições
Ministério
para
Público
contribuir
está
em
para
a
disseminação de recomendações que vierem a ser
elaboradas.”
A coerência na aplicação das penas tem sido uma
preocupação
constante
internacionais,
sendo
em
várias
repetidas
as
instâncias
orientações
para que a igualdade se cumpra.
Não poderá omitir-se que no processo decisório
convergem, não poucas vezes, factores exteriores
que afectam essa igualdade.
As mensagens passadas pela comunicação social, a
atitude do público, o contexto social local, são
elementos que podem ponderar na fixação da pena.
Também
factores
interiores
ao
próprio
decisor
não serão despiciendos em tal ponderação.
Creio
que
Público
será
precisa
nesta
de
área
que
estruturar
o
Ministério
uma
sólida
estratégia de actuação no âmbito dos recursos.
16
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
A segurança e a credibilidade da justiça passam
por
um
tratamento
idêntico
para
idênticas
situações.
Diz-nos o conhecimento do dia-a-dia judiciário
que
a
desigualdade
das
penas
e
das
medidas
concretamente aplicadas é uma realidade da qual
nos apercebemos com facilidade.
A aplicação da medida de inibição de conduzir é
um dos exemplos mais flagrante que neste momento
se poderia dar.
A amplitude das molduras penais, possibilitando
a
adequação
diversos
da
pena
elementos
concretização,
em
conformidade
que
importam
traduz
um
com
à
os
sua
enriquecimento
na
administração da justiça, mas não pode tornar-se
num veículo de desigualdades.
A concretização da pena não é, nem pode ser, um
exercício de subjectividades.
Naquilo
que
ao
Ministério
Público
cabe
como
defensor da legalidade, o que também quer dizer
como
defensor
da
igualdade,
a
tal
ampla
legitimidade em matéria de recurso deverá ser um
importante instrumento de igualização do arguido
perante a pena.
Tendo os meios, é pena que se possam perder as
oportunidades.
17
O MINISTÉRIO PÚBLICO – DE RECORRENTE A RECORRIDO
Dissertei
aqui,
modestamente,
claro,
enquanto
magistrado do Ministério Público.
Gostaria de terminar falando enquanto cidadão.
Valerá a pena recorrer?
O cidadão responde com certeza que sim.
É esta evidência que todas as análises, todos os
discursos
e
todos
os
propósitos
legislativos
deverão ter em conta.
Nota:
ao
falar-se
nos
recursos
obrigatórios
omitiu-se,
deliberadamente,
qualquer referência aos recursos para o Tribunal Constitucional.
18
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Dr. Alípio Tibúrcio Ribeiro