DIREITO DA CONCORRÊNCIA E SUA RELAÇÃO COM A TRIBUTAÇÃO RODRIGO MAITO DA SILVEIRA Doutor e Mestre em Direito Econômico Financeiro pela USP. Professor de Direito Tributário do Insper e do Curso de Direito Tributário Internacional do Instituto Brasileiro de Direito Tributário - IBDT. Membro do Instituto de Pesquisas Tributárias - IPT, do IBDT e da International Fiscal Association - IFA. Conselheiro do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo/SP (biênios 2006/2008 e 2010/2012). Advogado. ÁREA DO DIREITO: Comercial/Empresarial; Tributário RESUMO: Este artigo tem por foco o Direito da Concorrência e seus pontos de contato com a tributação e analisa se a Lei 8.884/1994 é capaz de regular os efeitos concorrenciais decorrentes de causas fiscais, levando em consideração decisões proferidas pelo Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade). PALAVRAS-CHAVE: Tributação - Concorrência. ABSTRACT: This article is focused on Antitrust Law and its connections with taxation and examines whether the Law 8.884/1994 is able to regulate the competitive effects derived from tax causes, taking into account decisions made by the Administrative Counsel of Economic Defense (Cade). KEYWORDS: Taxation - Competition. Sumário: 1. Considerações introdutórias - 2. Direito da concorrência brasileiro - 3. Livre iniciativa x livre concorrência - 4. A Lei 8.884/1994 e sua aplicação a situações relacionadas à tributação: 4.1 As condutas restritivas da concorrência; 4.2 As estruturas restritivas da concorrência - 5. Precedentes do Cade em matéria tributária: 5.1 Imunidade tributária como fator de vantagem competitiva; 5.2 Incentivo fiscal como fator de vantagem competitiva; 5.3 Guerra fiscal e efeitos anticoncorrenciais. 1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS1 O Direito da Concorrência tem por objetivo regular as relações de mercado, controlando-as estruturalmente e em nível comportamental,2 de forma a coibir o exercício abusivo de poder econômico e a evitar práticas anticompetitivas pelos agentes do mercado. É, pois, o ramo do Direito que regula práticas comerciais e operações que possam interferir no equilíbrio da concorrência e das forças de mercado. A ideia subjacente ao Direito da Concorrência repousa no fato de que o exercício do poder econômico pelos particulares, enquanto expressão política da atividade econômica, impõe a necessidade de regramento pelo Poder Público, na medida em que pode resultar em prejuízo da coletividade.3 Em verdade, embora seja livre o exercício do poder econômico, o abuso desse poder, em decorrência da ausência de limites objetivos, levando ao desequilíbrio das relações econômicas do mercado, passa a ser caracterizado como ilícito. Assim, considerando que o direito (ao livre exercício de posição dominante) cessa onde começa o abuso, é função do Direito da Concorrência zelar para que essa extrapolação seja coibida ou evitada.4 Há que se ressaltar, sob outro enfoque, a existência de entendimento doutrinário segundo o qual o poder econômico é uma necessidade, desde que promova a eficiência econômica, o que justificaria, então, a competição.5 Indo além da concepção tradicional, Forgioni pondera que o Direito da Concorrência “(...) já não é visto apenas em sua função de eliminação dos efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser encarado como um dos instrumentos (...) de que dispõe o Estado para conduzir o sistema” econômico.6 7 Em linhas gerais, o Direito da Concorrência visa regulamentar a competição, não contemplando apenas a repressão do abuso de poder econômico. Ao contrário, com uma preocupação mais ampla, o Direito da Concorrência destina-se à proteção dos participantes do mercado, dos competidores (produtores, comerciantes, prestadores de serviços etc.) e consumidores, e, finalmente, do interesse coletivo de conservação do próprio mercado.8 As regras jurídicas integrantes do Direito da Concorrência destinam-se a apurar, reprimir e prevenir as várias modalidades de abuso do poder econômico, visando impedir a monopolização de mercados e favorecer a livre iniciativa, em prol da coletividade.9 De forma mais específica, as normas concorrenciais visam combater condutas e estruturas que venham a ser reputadas incompatíveis com o livre mercado e o seu regular funcionamento. Enquanto as condutas dizem respeito a práticas comerciais, as estruturas correspondem a manifestações do poder econômico (monopólios, cartéis etc.) que, pelas suas características, podem ensejar práticas abusivas. Por seu turno, o Direito Tributário cuida do fenômeno da tributação, desde o momento em que são previstas as normas básicas para o exercício do poder de tributar, até o instante em que o tributo deixa de existir, por conta do pagamento ou de outra causa extintiva. Com efeito, a ciência do Direito Tributário é o ramo didaticamente autônomo do Direito, integrado pelo conjunto das proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos.10 Embora didaticamente concebido como autônomo, em verdade o Direito Tributário encontra pontos de ligação com outros ramos do Direito, e em matéria de concorrência, essa ligação ocorre não apenas com o próprio Direito da Concorrência, mas também com o Direito Financeiro. O presente artigo tem por objetivo indicar alguns pontos de contato entre o Direito da Concorrência e a atividade de tributação, tomando como pressupostos as seguintes constatações: a) os tributos afetam a alocação de recursos, já que, recaindo sobre renda, consumo e patrimônio, e tratando-se, em qualquer caso, de legítima expropriação, pelo Estado, de riqueza dos particulares, reduzem a renda e o patrimônio dos contribuintes, e incrementam o preço dos bens (materiais ou imateriais) consumidos, interferindo diretamente na formação dos preços de bens e serviços;11 e b) a neutralidade tributária é utópica, pois embora esse princípio (da neutralidade tributária) esteja escorado na ideia de que a tributação não deve afetar o comportamento dos agentes econômicos, em respeito aos princípios da livre concorrência e da isonomia,12 o que ocorre é que, invariavelmente, causas de natureza tributária (decorrentes de atos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como dos próprios contribuintes) provocam distorções concorrenciais de todo tipo. Sem a pretensão de esgotar tema tão amplo, as linhas seguintes apresentam reflexões e críticas sobre como vêm sendo construídos, tanto pela doutrina, como também pelos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC, os alicerces teóricos para análise da relação entre concorrência e tributação. 2. DIREITO DA CONCORRÊNCIA BRASILEIRO A Lei 8.884/1994, ao exercer a função de prescrever normas para reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros, nos termos do art. 173, § 4.º, da CF/1988, visa essencialmente à proteção dos consumidores e à manutenção do mercado,13 preocupando-se tanto com as condutas quanto com as estruturas14 restritivas à concorrência. Pode-se dizer que o Brasil adota um sistema híbrido, prevendo a Lei 8.884/1994 determinados atos que ensejam a caracterização do ilícito, seja pelo seu objeto ou pelo seu efeito.15 De forma geral, porém, a lei brasileira de defesa da concorrência segue a regra da razão (rule of reason), partindo da premissa de que cada caso é único, devendo ser avaliadas as suas peculiaridades,16 deixando-se de lado, assim, a regra da condenação per si (per se condemnationem), pela qual o fato de existir um monopólio, por exemplo, já seria suficiente para impor restrições a essa manifestação de poder econômico.17 Não é necessário, para a caracterização do ilícito, que haja posição dominante, da mesma forma que a posição dominante, isoladamente considerada, não enseja a caracterização de ilícito. É neste sentido que, ao analisar a posição dominante derivada de vantagem competitiva (em caráter genérico), Forgioni conclui que, no Brasil, não se pune a posição dominante em si, sendo indispensável, para a caracterização do ilícito concorrencial, a verificação do objeto ou efeito concorrencial negativo, em prejuízo da livre concorrência e da livre iniciativa.18 Nessa mesma linha de raciocínio, Ferraz Junior assevera que, no Brasil, a legislação pertinente não pune os agentes econômicos por condutas em si danosas à concorrência, mas sim em razão dos efeitos negativos dessas condutas para a livre concorrência.19 É importante constatar que a Lei 8.884/1994 considera como infração todo e qualquer ato que cause ou possa produzir danos à ordem econômica, mesmo que o efeito não seja alcançado. O cometimento das infrações independe igualmente de culpa,20 bastando a intenção ou a mera tentativa.21 Em conclusão, o arcabouço legislativo voltado à defesa da concorrência, no Brasil, encabeçado pela Lei 8.884/1994, estabelece de forma pormenorizada as infrações à ordem econômica relacionadas a práticas (condutas) anticompetitivas, da mesma forma que impõe controle quanto à concentração de agentes econômicos, tendo como princípio o fato de que as estruturas, na medida em que levem ao incremento significativo de poder econômico em um dado mercado relevante, ensejam, presumidamente, o uso abusivo de posição dominante, em detrimento da livre concorrência e do próprio mercado. 3. LIVRE INICIATIVA X LIVRE CONCORRÊNCIA Na abordagem da defesa da concorrência e da relação entre livre iniciativa e livre concorrência é possível situar, de um lado, (a) o princípio da livre iniciativa como corolário da liberdade individual, de empresa e atuação dos agentes de mercado, e, de outro lado, (b) o princípio da livre concorrência, englobando valores como o bem-estar do consumidor, a função social da propriedade e a repressão ao abuso do poder econômico.22 Sendo informada por liberdade de fins e de meios, a livre iniciativa é a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, viabilizando a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, bem como a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados.23 A livre iniciativa pode ser ainda entendida como direito fundamental de concorrer, atuando criativamente no jogo do livre mercado.24 Todavia, a livre iniciativa, em sua feição de liberdade econômica, não se trata meramente de uma afirmação do sistema capitalista de produção,25 já que é fundamento tanto da ordem econômica como do Estado Democrático de Direito. O princípio da livre concorrência, ao seu turno, constitui baliza (mas não fundamento) para a ordem econômica. A livre concorrência também leva à ideia de liberdade, a qual, contudo, encontra limites nos demais princípios que regem a ordem econômica, tais como a soberania nacional, a propriedade privada, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de pequeno porte. A livre concorrência convive, pois, com a possibilidade de legítima interferência do Estado.26 Daí ser interessante a afirmação de Schoueri, de que “a livre concorrência pressupõe a livre iniciativa, mas com ela não se confunde, já que, enquanto a primeira inexiste sem a segunda, a recíproca não é verdadeira”.27 Ferraz Junior, ao contrário, afirma que a livre concorrência nem sempre conduz à livre iniciativa e vice-versa.28 Tanto quanto o princípio da livre concorrência, a livre iniciativa não é uma liberdade de caráter absoluto, mas uma liberdade regulamentada. Essa consideração tem total pertinência no âmbito do exercício do poder de tributar pelo Estado, já que constitui uma forma de limitação do direito de propriedade, em prol da arrecadação de recursos para o atendimento de finalidades públicas. Nessa linha de ideias, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência pressupõem a liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, que somente é legítima enquanto exercida no interesse da justiça social.29 Isto significa que tais liberdades são garantia de funcionamento do mercado e do desenvolvimento de atividades econômicas pelos seus agentes, embora no contexto maior de que os interesses da sociedade devem prevalecer. A Lei 8.884/1994 incentiva a livre concorrência (e, por consequência, a livre iniciativa), aceitando como válidas as manifestações de poder econômico, embora combata as manobras tendentes à eliminação das competições, que representem o uso abusivo desse poder, especialmente quando vise à dominação dos mercados, à eliminação dos demais competidores e ao aumento arbitrário dos lucros.30 É dizer: uma vez que a livre iniciativa pode manifestar-se como poder econômico, é preciso coibir o seu abuso, tanto no que toca a condutas quanto em relação às estruturas lesivas à livre concorrência. Entra em cena o Estado, como agente regulador, para, na forma da lei, reprimir o abuso do poder econômico.31 Ainda que apresente feições de liberdade, a livre concorrência relaciona-se mais fortemente com a ideia de isonomia, podendo ser visualizada como decorrência do princípio da igualdade, na medida em que garante oportunidades iguais a todos os agentes, para que possam concorrer em condições de igualdade. É essencial que exista isonomia entre os competidores de mercado, sendo, por isso mesmo, repudiados os monopólios e os privilégios, pois se tratam da antítese da livre concorrência.32 4. A LEI 8.884/1994 E SUA APLICAÇÃO A SITUAÇÕES RELACIONADAS À TRIBUTAÇÃO Apoiando-se a defesa da concorrência, no Brasil, na indicação das condutas (práticas desleais) e no controle das estruturas (concentrações tendentes à dominação dos mercados), importa verificar em que sentido a tributação ou outras variáveis a ela relacionadas poderiam ensejar desequilíbrios concorrenciais passíveis de prevenção ou repressão.33 Cabe registrar que a análise quanto à aplicação da legislação de defesa da concorrência tem por foco os efeitos anticoncorrenciais decorrentes de causas tributárias, e não as causas em si mesmas, até porque os órgãos de defesa da concorrência não têm competência para afastá-las, mas tão somente detém poder de controlar ou mitigar os seus efeitos que sejam lesivos ao funcionamento do mercado (ou seja, à livre concorrência). A apreciação e repressão de efeitos anticoncorrenciais decorrentes de causas de natureza tributária pelos órgãos do SBDC não representam uma ofensa à competência do Poder Judiciário quanto à declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas tributárias ou ao reconhecimento de práticas ilícitas, pelos contribuintes, relacionadas ao cumprimento de obrigações tributárias. Os órgãos do SBDC não têm competência para eliminar as causas de natureza tributária que porventura causem efeitos danosos para a concorrência. Mas isso não quer dizer que não possam e devam mitigar tais efeitos. Assim, por exemplo, é possível que os órgãos do SBDC concluam, a partir de uma consistente análise e investigação, que determinada causa de natureza tributária (v.g. incentivo fiscal, sonegação, coisa julgada), quando associada ao comportamento de um ou mais agentes econômicos específicos, afeta a livre concorrência. O que é relevante para fins de aplicação das normas do SBDC no campo da tributação é o efeito anticoncorrencial, e não essencialmente a sua causa. Da mesma forma que, ao julgar um acordo de preços praticado entre agentes econômicos que atuem em um mesmo mercado como uma prática danosa à concorrência, os órgãos do SBDC não questionam a legitimidade do direito de contratar,34 também na seara da tributação devem ser focados apenas os efeitos anticoncorrenciais porventura oriundos de causa de natureza tributária, sem que isso implique o afastamento dessa causa. Por outro lado, um ato de concentração não precisa ser ilícito para que possa ser controlado pelos órgãos do SBDC. O efeito anticoncorrencial que se visa afastar não necessariamente decorre de ato ilícito. É possível dizer que as práticas ilícitas são mais suscetíveis de ensejar efeitos anticoncorrenciais, mas tal afirmação está longe de ser uma regra. O que deve ficar claro é que o controle de efeitos lesivos para a concorrência não pode depender exclusivamente da licitude ou da ilicitude da causa que lhes deu origem. Dito de outra forma, o SBDC alcança as questões tributárias (causas), sejam elas referentes a práticas lícitas ou ilícitas, em virtude essencialmente dos seus eventuais efeitos danosos à concorrência. As normas de Direito Econômico, tais como aquelas de natureza concorrencial, devem ser interpretadas sob um enfoque macroeconômico ou de forma macrológica, como bem ponderou Ferraz.35 De acordo com tal perspectiva, as normas de Direito Econômico não têm por objetivo fazer justiça entre dois indivíduos. Tampouco pretendem oferecer meras duas possibilidades, apontando a validade ou a invalidade de um determinado comportamento. Ao contrário das normas dos demais ramos do Direito, aquelas pertencentes ao Direito Econômico têm por foco um universo de relações. Assim, por exemplo, as normas concorrenciais são erigidas sob a premissa de que há uma tendência natural dos agentes econômicos de buscarem o monopólio (concentração), sendo então necessário suprimir as práticas que possam levar à concretização dessa tendência, em prejuízo da livre concorrência e do próprio mercado. Daí porque a macrológica das normas concorrenciais indica que a sua aplicação a situações concretas passa por uma análise do contexto, no qual a resposta quanto à validade do comportamento dos agentes econômicos jamais será, à primeira vista, positiva ou negativa (sim ou não), mas será dependente das circunstâncias existentes.36 Não raras vezes há situações em que as normas concorrenciais, cujo propósito é resguardar interesses coletivos (livre concorrência), aparentemente entram em choque com normas de outros ramos do Direito que asseguram direitos individuais. Todavia, esse conflito aparente deixa de existir quando se busca analisar macrologicamente a situação concreta. Nessa linha de ideias, não há porque temer pela ingerência das normas do SBDC sobre os efeitos lesivos para a concorrência que tenham respaldo em causas de natureza tributária. A compreensão dessa dinâmica de controle da concorrência é essencial para o próprio avanço dos estudos nessa seara, especialmente quando se tem em conta que não apenas causas de natureza tributária (sejam elas válidas ou não) podem repercutir negativamente para o equilíbrio de mercado.37 4.1 AS CONDUTAS RESTRITIVAS DA CONCORRÊNCIA De um lado, as práticas restritivas da concorrência podem ser classificadas a partir da perspectiva do sujeito que incorre na conduta contrária à legislação concorrencial, em (i) unilaterais, quando realizadas por uma única empresa, ou (ii) coordenadas, quando duas ou mais empresas agem em conjunto. De outro lado, tais práticas classificam-se em (i) horizontais, na hipótese de afetarem concorrentes de um mesmo mercado (v.g. cartéis), ou (ii) verticais, se envolverem diferentes mercados em uma mesma cadeia produtiva (fornecedor-produtor-consumidor) (v.g. acordos relativos a preços de revenda, restrições territoriais, restrições aos tipos de clientes que podem ser atendidos, discriminação de preços e venda casada).38 O art. 20 da Lei 8.884/1994 dispõe que constituem infração à ordem econômica as condutas que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos: (i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa: mediante interferência no modo de agir de outra empresa (restrição à livre iniciativa) ou no número de concorrentes (restrição à livre concorrência); (ii) dominar mercado relevante de bens ou serviços: garantindo, ao agente dominador, melhores condições de competição, em direção ao monopólio do mercado; (iii) aumentar arbitrariamente os lucros: por meio da prática de preços abusivos ou do aumento de participação do mercado, em detrimento dos elos seguintes da cadeia de consumo e, em última análise, dos consumidores; (iv) exercer de forma abusiva posição dominante: sobrepondo o interesse individual ao interesse coletivo, a partir do uso inadequado de poder econômico. Note-se que as condutas reputadas como infrações à ordem econômica são aquelas cujos efeitos, independentemente de serem alcançados, se enquadrem em alguns dos incisos do art. 20.39 Na seara tributária, podem ser consideradas como condutas contrárias à ordem econômica aquelas que ferem diretamente a lei, como o contrabando e a sonegação, propiciando, com isso, indevidas vantagens concorrenciais para o agente que as pratica.40 Note-se que a redução ou eliminação do ônus dos tributos pode eventualmente caracterizar limitação, falseamento ou qualquer forma de prejuízo à livre concorrência ou à livre iniciativa, conduzindo o agente econômico beneficiário a uma posição de vantagem em relação aos seus concorrentes, interferindo no equilíbrio de mercado. Essa afirmação é especialmente ampla, sendo de rigor, como contraponto, a constatação efetiva do efeito lesivo que a vantagem comparativa decorrente de causa fiscal provoca na concorrência. O art. 21 da aludida lei, escorando-se nos efeitos suscitados pelo art. 20, relaciona, em caráter exemplificativo,41 condutas consideradas como infrações à ordem econômica. O quadro abaixo destaca, a partir de um esforço interpretativo passível de ressalvas de toda a ordem, práticas, dentre aquelas indicadas pelo art. 21, que, de forma mais evidente, apresentem possíveis relações com questões tributárias: Como se vê, as práticas consignadas na tabela acima podem estar ligadas indiretamente a causas de natureza tributária, ficando sujeitas não apenas às penalidades próprias da legislação fiscal, como também, eventualmente, a depender da efetiva constatação de que houve efeito negativo para a livre concorrência, àquelas contempladas na Lei 8.884/1994 (arts. 23 a 27). Em outras palavras, a identificação da causa tributária, para fins de posterior caracterização como infração à legislação concorrencial em virtude do exercício abusivo de posição dominante, do aumento arbitrário de lucros, do domínio de mercado relevante ou de ato lesivo à livre concorrência e à livre iniciativa, depende de uma análise aprofundada da situação concreta, em conformidade com a regra da razão. Cumpre mencionar que, para a maior parte das condutas lesivas à concorrência, há a preocupação quanto à eventual prática de preços predatórios (prevista nos incs. IV, V, X e XVIII do art. 21),42 excessivos (inc. XXIV) ou que conduzam ao aumento arbitrário dos lucros. Trata-se, pois, de condutas que podem igualmente ensejar os efeitos arrolados no art. 20. Para fins de caracterização da imposição de preços excessivos ou do aumento injustificado de preços (e lucros), o parágrafo único do art. 21 da Lei 8.884/1994 prescreve que, além de outras circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes, devem ser considerados: “I - o preço do produto ou serviço, ou sua elevação, não justificados pelo comportamento do custo dos respectivos insumos, ou pela introdução de melhorias de qualidade; II - o preço de produto anteriormente produzido, quando se tratar de sucedâneo resultante de alterações não substanciais; III - o preço de produtos e serviços similares, ou sua evolução, em mercados competitivos comparáveis; IV - a existência de ajuste ou acordo, sob qualquer forma, que resulte em majoração do preço de bem ou serviço ou dos respectivos custos”. No que toca ao preço predatório, a Res. Cade 20/1999 o conceitua como sendo “a prática deliberada de preços abaixo do custo variável médio, visando eliminar concorrentes para, em momento posterior, poder praticar preços e lucros mais próximos do nível monopolista”.43 A adoção de preços predatórios tem por objetivo, num primeiro momento, excluir concorrentes rivais do mercado por meio da venda de produto ou serviços abaixo do seu respectivo custo de produção (underselling), e, numa segunda etapa, após a eliminação ou neutralização dos concorrentes, viabilizar a cobrança de preços monopolísticos.44 45 A prática do preço predatório exige que a empresa incorra em perdas substanciais ou, ao menos, que reduza seus lucros na esperança que essas perdas serão recuperadas no futuro, por meio do exercício de poder de mercado. Daí porque as condições do mercado considerado se revelam como um ponto fundamental para a caracterização dessa conduta, pois sua viabilidade está atrelada ao fato de o agente possuir parcela substancial do mercado ou a possibilidade de adquirir essa parcela.46 A mera venda a preços abaixo do custo, isoladamente, não constitui infração à ordem econômica, sendo essencial, ainda, o propósito de produzir o efeito lesivo à concorrência.47 48 49 Nessa mesma linha de raciocínio segue o relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico - OCDE50 sobre precificação predatória. Além disso, ao contemplar várias abordagens (metodologias ou fórmulas matemáticas) de análise dos custos praticados pelas empresas para fins de caracterização de preços predatórios, indica ser praticamente um consenso, em todas elas, que os tributos, como regra, compõem os custos, à exceção daqueles que não influenciem tais custos.51 É se indagar, nesse contexto, se a obtenção de vantagem de natureza tributária implicaria infração à ordem econômica ou, ao contrário, se porventura seria decorrência de eficiência econômica obtida pelo agente (nos termos do § 1.º do art. 20), hipótese em que a sua conduta, ainda que danosa à concorrência, seria escusável, ou melhor, lícita. Se o agente econômico incorpora aos seus lucros o ganho decorrente de uma vantagem tributária (v.g. coisa julgada em matéria tributária, regime especial ou isenção), sem repassá-lo aos seus clientes, não há como se presumir a configuração de uma prática restritiva à concorrência, já que inexiste, nesta hipótese, aumento arbitrário de lucros, mas tão somente uma redução do custo fiscal. Note-se que não há qualquer infração à ordem econômica no incremento dos lucros da empresa, ainda que isso leve, indiretamente, a uma condição de posição dominante no futuro. Como mencionado, não se pune a posição dominante em si mesma, mas tão somente o seu uso abusivo. Paradoxalmente, se o agente não repassar para os preços a vantagem fiscal, não haverá como se identificar de plano a prática de conduta restritiva à concorrência, o que somente poderá ser apurado posteriormente, por conta de eventual aquisição de domínio de mercado ou uso abusivo de posição dominante. Por outro lado, se o agente econômico repassa no preço de seus produtos e serviços a vantagem de natureza tributária que obteve, reduzindo-o, isso significa que conseguirá competir em melhores condições (com base em preço) em face dos seus concorrentes, sem que isso, necessariamente, implique infração à ordem econômica. Nessa segunda situação, o agente econômico não obtém vantagem financeira direta ao repassar para a cadeia de consumo o benefício fiscal por ele obtido. Entretanto, de forma indireta, esse mesmo agente poderá adquirir maiores fatias do mercado em que atua, ao praticar preços mais baixos que os de seus concorrentes. Somente se isso levar (ou puder levar) ao domínio do mercado é que haverá margem para se caracterizar a prática de ato lesivo à concorrência. Seja em um caso, seja em outro, quer nos parecer que somente se for constatado, a posteriori, que em virtude da vantagem tributária (causa) foi produzido efeito lesivo à concorrência (ofensa à livre iniciativa e à livre concorrência, domínio do mercado relevante, aumento arbitrário de lucros ou uso abusivo de posição dominante) é que a prática será passível de sanção à luz da legislação concorrencial. A investigação por parte das instituições do SBDC levará em conta os custos de produção do agente com o qual os demais concorrentes não conseguem competir, sempre que haja nítidos indícios de que ele impõe preços predatórios (ou mesmo abusivos).52 Neste momento, então, será possível perceber se a vantagem tributária é justificativa do preço mais baixo que aquele praticado pelos concorrentes. A constatação dos custos incorridos pelo agente não deixará de considerar que a variável tributária é distinta para ele em relação aos demais concorrentes, de tal forma que, ainda que aparentemente ocorra a prática de um preço reputado como predatório, haveria na verdade uma justificativa plausível (ou não) para que o preço seja mais baixo que aquele praticado pelos concorrentes, bem como seria possível concluir que a fixação desse preço não se deu em patamar inferior aos respectivos custos de produção, já que estes foram reduzidos a ponto de permitir a redução do preço. Se para fins tributários a neutralidade é um objetivo, ainda que utópico, em matéria de defesa da concorrência deve ser tomado como pressuposto o fato de que variáveis decorrentes da atuação do Estado (seja legislando, julgando ou regulando), na medida em que produzam efeitos na concorrência em função das desigualdades que geram, não podem obstar a constatação de práticas cujos efeitos sejam lesivos à ordem econômica.53 Gozando as leis de presunção de constitucionalidade, e tendo o contribuinte obtido ordem liminar ou coisa julgada que o beneficia em termos tributários, não há como sustentar que a sua conduta almejou necessariamente restringir a concorrência. Trata-se, neste ponto, de benefício - mas não de eficiência obtido pelo agente-contribuinte, respaldado pelo Direito (lei ou decisão judicial). Sendo regra o tratamento tributário isonômico, não há motivo que permita afastar a apreciação de efeitos lesivos à concorrência e a condenação das práticas respectivas, quando um agente obtenha para si benefício fiscal que, em tese, os demais concorrentes poderiam obter. Não se ataca, de plano, o benefício fiscal em si, mas os efeitos que o seu aproveitamento por um determinado agente pode causar para a concorrência, em um mercado específico. Nos casos em que não se possa cogitar de tratamento isonômico, por conta da existência de razão para a desigualdade em termos tributários (o que ocorre com maior vigor no campo da extrafiscalidade), tal situação servirá como um impeditivo para que, em função dessa causa tributária, se considere o desequilíbrio concorrencial como suscetível de ensejar repressão, porquanto o tratamento tributário toma como pressuposto esse mesmo desequilíbrio. É de se supor que, em tais hipóteses, a justificativa do tratamento tributário desigual seja compensar outras deficiências competitivas que o agente possui em relação aos seus concorrentes ou, alternativamente, promover um efeito cuja relevância se sobreponha à distorção concorrencial decorrente. Se inexistente ou não evidenciada essa razão, a possibilidade de aplicação de sanção concorrencial estará aberta. Na hipótese de planejamento tributário, ao seu turno, é de se presumir que o agente econômico buscou, de forma legítima, antes da ocorrência do fato gerador, uma estrutura negocial que evitasse a incidência total ou parcial de um ou mais tributos. Porém, independentemente da validade ou da legitimidade do planejamento tributário, se os seus efeitos forem reputados como lesivos à concorrência, em virtude de um melhor desempenho do agente econômico em detrimento dos seus concorrentes, é perfeitamente possível cogitar da atuação dos órgãos do SBDC, para re-estabelecer o equilíbrio de mercado. De outro lado, o caráter excepcional da justificativa de eficiência econômica (prevista no § 1.º do art. 20) não se presta para validar a vantagem comparativa oriunda de causa de natureza tributária quando tal causa não seja decorrente de ato intrínseco do próprio agente econômico. A noção de eficiência econômica está atrelada à existência de benefício em prol do mercado gerado por determinada conduta do agente econômico. É essencial que a vantagem comparativa (v.g. redução da carga tributária suportada) seja resultante de eficiência do agente econômico, e não de atos estatais (tais como normas tributárias que contemplem benefícios a determinados contribuintes, decisões judiciais ou administrativas, provisórias ou definitivas). Por se tratar a eficiência econômica de incremento, melhoria ou ganho, somente poderá ser invocada quando for atribuível ao agente econômico em razão de mérito próprio, e jamais quando decorra de ato estatal (norma ou decisão administrativa ou judicial), ainda que provocado, ou de ato ilícito (sonegação). Os planejamentos tributários, por se caracterizarem pela auto organização das atividades do contribuinte, sem qualquer dependência de atos estatais, devem ser reputados, em princípio, como condutas potencialmente aptas a denotarem eficiência econômica, desde que, naturalmente, ofereçam algum benefício para o mercado. Pode um planejamento tributário, ao invés de ser benéfico para a concorrência, gerar desequilíbrio no mercado. Em tal circunstância, será mandatório o controle do comportamento do agente de mercado pelo SBDC, em função dos efeitos lesivos à concorrência que porventura forem gerados pelo referido planejamento. No caso de sonegação fiscal, em que resta evidente uma conduta contrária à legislação, a ilicitude da causa de natureza tributária não impede que, diante da constatação de práticas delas decorrentes que levem aos efeitos arrolados no art. 20 da Lei 8.884/1994, se conclua pela viabilidade de repressão do ato lesivo à concorrência. A sonegação fiscal é uma nítida forma de concorrência desleal,54 sendo perfeitamente passível de penalização à luz da legislação concorrencial, na exata medida em que se verifiquem efeitos danosos à concorrência. Neste particular, não se pode confundir a prática de preço predatório com a concorrência desleal (oriunda de sonegação fiscal ou de outra causa tributária), embora não se negue a possibilidade da primeira decorrer da segunda.55 Há também de se cogitar que, em virtude da sonegação (evasão) fiscal, o agente econômico possa praticar o aumento arbitrário dos lucros, que não necessariamente corresponde a lucro excessivo. Ferraz Junior lembra que o “aumento arbitrário de lucros refere-se não apenas ao lucro objetivado (ainda que escamoteado) por meios artificiais que não os das leis de mercado (lucro monopolista), mas também o que se dá por violação da lei (concorrência proibida)”. Assim, sendo a sonegação fiscal ato contrário à lei, fica evidente o seu caráter arbitrário. Por outro lado, o caráter abusivo da sonegação se desvincula da comprovação de lucro no balanço da empresa, bastando provar a existência de indícios consistentes de evasão fiscal, que teria ensejado a obtenção de vantagem competitiva.56 É possível que a lei tributária, no campo da extrafiscalidade, adote a presunção de que a ausência de regularidade fiscal (por conta de sonegação ou simples falta de pagamento de tributos) é por si só suficiente para concluir pela existência de lesão à livre concorrência. Nesta hipótese, os efeitos danosos à concorrência, em virtude da ilicitude da causa tributária, são presumidos, mas não puníveis para fins tributários, sendo tão somente condicionantes da exigência prévia de regularidade fiscal. A eventual aplicação da legislação de defesa da concorrência, ao seu turno, não prescinde da comprovação desses efeitos. Diante das considerações acima suscitadas, conclui-se que: (i) a obtenção de vantagem de natureza tributária pode implicar infração à ordem econômica, a depender de os seus efeitos serem lesivos ou não à concorrência; e (ii) a variável tributária pode ser entendida como vantagem competitiva decorrente de eficiência econômica, isenta de eventual condenação por lesão à concorrência que dela resulte, desde que seja atribuível ao agente econômico em razão de mérito próprio e, obviamente, não decorra de ato ilícito (ainda que a licitude não seja relevante para averiguar a sujeição da conduta às normas de defesa da concorrência). É perfeitamente possível aos órgãos do SBDC, seja por iniciativa própria (de ofício), seja por provocação de partes interessadas (concorrentes prejudicados), diante de situações em que causas de natureza tributária possam, associadas a condutas de agentes econômicos, produzir efeitos danosos à concorrência, tomar medidas no sentido de preveni-las ou mesmo reprimi-las. Como mencionado anteriormente, não se trata, por via transversa, de declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade da legislação tributária ou revogar decisões judiciais favoráveis a um determinado agente, mas simplesmente da análise de condutas que, respaldadas em causas tributárias, (i) limitem, falseiem ou prejudiquem a livre concorrência ou a livre iniciativa; (ii) resultem em dominação de mercado relevante; (iii) gerem aumento arbitrário de lucros; ou (iv) viabilizem exercício abusivo de posição dominante.57 4.2 AS ESTRUTURAS RESTRITIVAS DA CONCORRÊNCIA Os atos de concentração podem consistir no aumento de poder econômico de um ou mais agentes que atuam em um mercado relevante específico,58 por meio de aquisição de ativos, fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário. Na medida em que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, e enquadrando-se em situação de controle a que se refere o § 3.º do art. 54 da Lei 8.884/1994,59 os atos de concentração devem ser submetidos à apreciação do Cade, sendo possível a sua aprovação se atendidas as condições previstas nos §§ 1.º e 2.º desse mesmo dispositivo. As concentrações classificam-se em: horizontais, quando envolverem agentes econômicos que atuem no mesmo mercado relevante, verticais, no caso em que os agentes atuam em mercados relevantes complementares, correspondentes a atividades concatenadas de um processo produtivo específico, e, por fim, conglomeradas, que abarcam os atos relacionados a agentes atuantes em mercados relevantes dissociados entre si.60 As concentrações podem também ser motivadas por causas tributárias, da mesma forma que a sua aprovação, ao gerar melhores condições de competição, pode permitir uma otimização do ônus fiscal. Exemplo da primeira situação ocorre quando uma empresa deficitária, com elevado prejuízo fiscal, decide incorporar uma empresa lucrativa, de tal forma a beneficiar-se pela redução do valor de imposto de renda (IRPJ) e contribuição social sobre o lucro (CSL) a pagar sobre os rendimentos gerados pela empresa incorporada, em razão da possibilidade de compensá-los com o prejuízo da empresa incorporadora. Não se despreza o risco de tal situação ser reputada abusiva pelas autoridades fiscais e ser desconsiderada para fins tributários. Entretanto, a causa tributária encontra-se presente, como uma justificativa da concentração. Na segunda situação, a variável tributária não aparece como causa da concentração, mas como uma decorrência dela. A depender da estruturação dos negócios e operações do agente, a concentração poderá torná-lo menos exposto aos efeitos regressivos dos tributos cumulativos incidentes na cadeia de consumo. Independentemente de haver ou não razão tributária, ou das consequências dessa natureza que possam ser aferidas em razão da concentração, o respectivo controle, pelo Cade, deverá ser realizado sempre que presentes as condições previstas no art. 54, caput e § 3.º, da Lei 8.884/1994. 5. PRECEDENTES DO CADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA Em algumas poucas ocasiões o Cade analisou casos em que a alegação de prática de atos lesivos à concorrência tinha ligação com a tributação dos agentes econômicos envolvidos. Segue um breve relato desses casos. 5.1 IMUNIDADE TRIBUTÁRIA COMO FATOR DE VANTAGEM COMPETITIVA Na Averiguação Preliminar n. 08000.013472/95-51, foi apreciada a acusação de prática de preços predatórios, formulada em 09.08.1993, mediante denúncia realizada junto ao Ministério Público, pelo Sr. Milton João Tomazini, proprietário da Organização Hoteleira Fonte Colina Verde Ltda., contra o Senac Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, na condição de proprietário-administrador do Grande HotelEscola Águas de São Pedro. Os dispositivos legais tidos como violados foram o art. 20, I (limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa) e art. 21, V (criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços) e XVIII (vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo), da Lei 8.884/1994. Em resumo, no que diz respeito à seara tributária, a acusação de prática lesiva à concorrência escorou-se na alegação de que o Grande Hotel-Escola Águas de São Pedro, ao desempenhar serviços de hospedagem para a realização de eventos, estaria aproveitando-se do fato de que o Senac, seu administrador, goza de tratamento tributário mais favorável (imunidade, cf. art. 150, IV, c, CF/1988), para cobrar preços inferiores pelos serviços de hospedagem prestados, eliminando, com isso, os seus concorrentes, dentre eles a Organização Hoteleira Fonte Colina Verde Ltda., de propriedade do acusador. Invocando o conceito de preços predatórios tal como definido na Res. Cade 20/1999, bem como o entendimento de que, para que se tenha infração à ordem econômica, a conduta atacada deve implicar lesão à concorrência, domínio de mercado ou aumento arbitrário dos lucros (art. 20, I a III, da Lei 8.884/1994), o Conselheiro rel. Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer, em seu voto, concluiu que não houve, no caso, prática de preços predatórios, diante da inexistência de barreiras à entrada no mercado hoteleiro. Além disso, suscitou-se que houve aumento expressivo da oferta de serviços hoteleiros na década de 1990, com a entrada de novas empresas nesse mercado, o que conduziu, naturalmente, à prática de preços reduzidos, o que não pode ser considerada uma conduta ilícita. Em outras palavras, não haveria racionalidade econômica para a prática de preços predatórios em um mercado cujo cenário evidencia crescimento potencial de ofertas decorrente da entrada de novos agentes de mercado. Com respaldo em pareceres da Seae e da SDE, o Conselheiro Relator constatou que não haveria, por parte da acusada, poder de mercado capaz de ensejar a prática de preços predatórios, tendo a redução de tarifas sido uma consequência do crescimento da oferta no segmento. Com isso, concluiu-se pelo arquivamento dessa Averiguação Preliminar em vista da não configuração de infração à ordem econômica. Cumpre destacar que o parecer da Seae indicou que a caracterização de preço predatório se faz mediante a comprovação prática de preços inferiores aos custos (variáveis médios), da constatação de que o agente acusado tenha capacidade suficiente para suprir toda a demanda desviada de seus concorrentes, e pela verificação da impossibilidade ou dificuldade de novas empresas ingressarem no mercado analisado. Entretanto, essa caracterização não contemplaria a existência ou não de benefícios fiscais em favor do agente acusado, isto é, a imunidade tributária não se incluiria entre os elementos capazes de contribuir para práticas restritivas de preços predatórios. Nesse contexto, apenas seria reputada como lesiva à concorrência a prática de preços em patamar inferior ao custo, por agente que detenha poder de mercado, e desde que se possa provar que o objetivo dessa conduta foi a de eliminação dos concorrentes.61 Em outra oportunidade, no Processo Administrativo 08012.000 668/98-06,62 o Cade foi provocado a se manifestar sobre denúncia de prática de preços predatórios, em situação muito similar à anteriormente relatada. O Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos no Estado do Rio Grande do Sul - Sinprofar formalizou representação, em 08.01.1998, contra o Serviço Social da Indústria - Sesi, por prática de preços predatórios na venda de produtos farmacêuticos, em razão de sua condição de entidade imune a impostos (art. 150, IV, c, CF/1988). Além dos dispositivos da Lei 8.884/1994 suscitados como violados no caso anteriormente relatado (art. 20, I a III, e art. 21, V e XVIII), também teria havido infração, segundo o Sinprofar, ao inc. IV (limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado) do art. 21. No trâmite desse processo, o parecer da Seae indicou que o setor de drogarias e farmácias é bastante competitivo, inexistindo barreiras à entrada, sendo que um ofertante, isoladamente considerado, não deteria poder de mercado capaz de afetar o ambiente concorrencial. Por sua vez, o parecer da SDE demonstrou que as vendas das farmácias do Sesi/RS representavam apenas 15% em relação ao total do mercado geográfico considerado (Estado do Rio Grande do Sul), e, mesmo assim, as vendas de medicamentos somente eram feitas em favor dos funcionários de empresas associadas. Ademais, a comercialização de produtos a preços mais baixos que os de mercado por farmácias/drogarias do Sesi, por si só, não poderia ser considerada predatória, já que, para tanto, seria necessário constatar que as vendas foram efetuadas em patamar abaixo do preço de custo. Importante registrar, ainda, que o parecer da SDE consignou entendimento pelo qual é possível, em tese, reconhecer a prática de preços abaixo da concorrência por conta da imunidade tributária. Entretanto, no caso em questão, convenceu-se a SDE que não restou demonstrada a existência de conduta predatória passível de punição pelo SBDC. Com base nos referidos pareceres, o Cade, sob a relatoria do Conselheiro Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer, houve por negar provimento à representação formulada pela Sinprofar contra o Sesi/RS, já que este não teria condições de vir a dominar o mercado. Em seu voto, o Conselheiro rel. Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer indicou como precedente, para fundamentar a sua posição, a decisão do Cade no Processo Administrativo 08000.004542/97-13, de relatoria do Conselheiro Thompson Andrade, julgado em 29.11.2000, no qual foi investigada a mesma conduta, imputada ao Sesi de Santa Catarina em face da denúncia formulada pelos Sindicatos do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos de Florianópolis, Tubarão e Região, Criciúma, Itajaí e Joinville, tendo se concluído que a comercialização de produtos a preços mais baixos que os de mercado não configura uma conduta anticoncorrencial. Extrai-se do voto do Conselheiro Thompson Andrade seguinte trecho: “Ocorre que, por se tratar de discussão acerca de legalidade do Sesi comercializar medicamentos para a população, baseando-se em um suposto desvio de atribuições legais e estatutárias de uma entidade assistencial, deverá ser submetida à apreciação pelo órgão competente do Poder Judiciário e não pelo Plenário do Cade, que tem como finalidade principal 'a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica', conforme previsto no art. 1.º, caput, da Lei 8.884/1994. O mesmo ocorre com a questão dos benefícios tributários que possui natureza de ordem eminentemente fiscal, sem relevância para este Conselho. Apenas a título elucidativo, restou demonstrado que o Sesi não possui imunidade quanto aos impostos sobre a comercialização e produção (ICMS e IPI), que são justamente os impostos que estão embutidos no preço final ao consumidor. O fato do Sesi não recolher outros tributos, como Cofins e IRPJ, constitui-se, indubitavelmente, em vantagem competitiva auferida pelas farmácias do Sesi. Entretanto, esta vantagem é conferida pela lei, cabendo ao Cade a investigação sobre os prováveis danos à concorrência e aos consumidores, decorrentes ou não desta vantagem, provocados por meio de condutas ofensivas à ordem econômica, como por exemplo, a prática de preços predatórios, objetivando o domínio de mercado. Para caracterizar a infração caberia a demonstração de que o Sesi estaria se beneficiando das isenções tributárias para praticar preços abaixo do custo, com o fito de eliminar a concorrência, vindo futuramente a monopolizar o mercado.” Dois pontos do trecho acima transcrito merecem reflexão. Em primeiro lugar, ao contrário do que parece, o Cade não se esquivou de analisar a eventual infração à ordem econômica, mediante a prática de preços abusivos, em decorrência de diferencial competitivo oriundo de imunidade tributária. Apenas deixou claro que não é de sua competência avaliar a validade ou não desses benefícios. Em segundo lugar, em que pese ser aceita a ideia de que, em tese, os tributos podem levar à prática de conduta abusiva no mercado, tal situação deve ser comprovada, evidenciando-se, inclusive, o nexo de causalidade entre o tratamento fiscal favorecido e a precificação predatória com vistas ao domínio do mercado. Por outro lado, discordamos, em função das considerações efetuadas nos itens anteriores, bem como de outras ponderações a serem feitas ao longo deste trabalho, da afirmação de que a matéria fiscal não deve ter relevância para as análises do Cade. Seja como for, em casos desse tipo seria prudente uma investigação mais aprofundada com base na prerrogativa estabelecida no art. 36 da Lei 8.884/1994,63 contando-se, por exemplo, com o apoio técnico da Receita Federal do Brasil.64 5.2 INCENTIVO FISCAL COMO FATOR DE VANTAGEM COMPETITIVA Na Consulta 08700.002380/2006-35, formulada em tese por Phillips da Amazônia Indústria Eletrônica Ltda., Panasonic do Brasil Ltda., Sony do Brasil Ltda. e Semp Toshiba S/A, indagou-se ao Cade se o uso, por empresa concorrente (mais especificamente a “LG” - não qualificada no processo), de vantagem comparativa advinda de benefício fiscal poderia configurar infração à ordem econômica, especialmente do art. 21, V, da Lei 8.884/1994. Em linhas gerais, trata-se de benefício fiscal originalmente concedido pelo Estado do Amazonas para favorecer novos entrantes no setor de fabricação de televisores na Zona Franca de Manaus, com base na Lei 2.390/1996, e consistente na restituição de 100% do ICMS no caso de se atingir determinado patamar de produção. Não sendo extensivo aos concorrentes já instalados naquele Estado, que gozavam de restituição de 50% do ICMS nos termos da Lei estadual 1.938/1989, a referida restituição de 100% do imposto passou a constituir uma fonte de desequilíbrio, mormente quando, com a edição da Lei 2.826/2003, cujo propósito foi o de unificar ambos os regimes tributários com base no primeiro (restituição de 50% do ICMS) e eliminar o tratamento diferenciado, foi revogada a Lei 2.390/1996, mas assegurada a opção de as empresas então entrantes continuarem no regime que lhes foi originalmente concedido. Em outras palavras, conforme alegaram as empresas consulentes, a Lei amazonense n. 2.826/2003, em seu art. 50, acabou dando continuidade ao tratamento tributário diferenciado para as empresas já consolidadas no mercado e aquelas que eram entrantes no setor. O Ministério Público Federal, em seu parecer neste processo de consulta, propugnou o seguinte: “Desde logo, é de se consignar que eventual infração à ordem econômica, no caso, não poderia ser cometida pela empresa LG, beneficiária dos incentivos fiscais, uma vez que estaria agindo com amparo na lei vigente. Tampouco caberia ser imputado ao Estado do Amazonas a prática de infração antitruste, já que tal hipótese se afigura impossível na espécie, dado que a edição de lei não constitui medida capaz de ser enquadrada como passível de ser sancionada pela via da legislação de combate às infrações contra a ordem econômica. A apreciação do questionamento posta (sic) à apreciação do Cade, portanto, deve dar-se pela via da possibilidade de lei estadual contrariar princípios que vigem no âmbito da ordem econômica, como os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. Em outras palavras, haveria o Cade de manifestar o seu entendimento sobre se a Lei do Estado do Amazonas n. 2.826/2003 vem estabelecendo no mercado um ambiente de desequilíbrio de forças, que, em síntese, proporciona uma situação de vantagem de um determinado agente e econômica (sic), e em detrimento dos demais. A conclusão parece óbvia: a existência de um duplo regime fiscal para empresas do mesmo mercado relevante acaba por estabelecer uma vantagem econômica, por ação do Estado, maléfica ao ambiente de concorrência que deve pautar a ação dos agentes econômicos. De fato, vigem no país os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, sendo a intervenção do Estado no domínio econômico - direta ou indireta - permitida apenas em caráter excepcional, visando sempre minorar eventuais distorções do mercado; jamais com o objetivo de perpetuar situações de desigualdade entre agentes econômicos, de maneira desarrazoada. Nesse sentido, com grande propriedade lembra Eros Roberto Grau o princípio da neutralidade do Estado ao fenômeno concorrencial. No presente caso, a perpetuação de regime amplamente mais benéfico para uma única empresa, após superada a justificativa para a sua concessão - consolidação de agente econômico no mercado - cria um desequilíbrio de fato neste mercado, cujas consequências podem, eventualmente, inviabilizar um ambiente sadio de concorrência.” Concluiu o Ministério Público Federal no sentido de que a situação relatada não constitui infração à ordem econômica, embora seja recomendável ao Estado do Amazonas a extensão do regime tributário aplicável às empresas entrantes também para as demais empresas concorrentes, ou, então, a revogação integral desses benefícios, a fim de dar cabo ao tratamento tributário desigual aplicado aos agentes econômicos do setor de fabricação de televisores. Ao se pronunciar sobre a questão, o Cade, com base no voto do Conselheiro rel. Luis Fernando Rigato Vasconcellos, houve por não conhecer da consulta, determinando o seu arquivamento, por entender que não se tratava de questionamento em tese, mas sim de consulta específica sobre conduta em andamento, na medida em que foi identificada a empresa LG como potencial agente praticante de ato lesivo à concorrência. Além disso, foi delimitado temporalmente na consulta o período de vigência do benefício fiscal concedido pelo Estado do Amazonas em favor da LG. Diante disso, seria necessária a análise de conteúdo probatório da conduta lesiva à concorrência, o que não foi produzido pelas empresas consulentes, razão pela qual, à falta de condições de procedibilidade, a consulta não poderia ser conhecida. Curiosa e paradoxalmente, porém, o aludido voto consignou o posicionamento, acatado pelo Cade, por maioria, de que também não haveria condições de se converter a consulta em procedimento investigativo de prática danosa à concorrência, em razão do benefício fiscal concedido pelo Estado do Amazonas, porquanto, com base no Parecer do MPF, não fora caracterizada qualquer infração à concorrência. Para justificar esse posicionamento, embora reconhecendo existirem dúvidas a respeito do tratamento fiscal diferenciado conferido pelo Estado do Amazonas e sobre a possibilidade de as empresas consulentes dele tirar proveito, o Conselheiro Relator sustentou que a concessão de incentivos fiscais pressupõe existir alguma desigualdade entre os agentes de mercado capaz de justificar o tratamento diferenciado, e que a adoção de medidas fiscais pode, com vistas a reduzir barreiras à entrada em mercados concentrados, ser pró-concorrência. Adicionalmente, consta do voto que, independentemente da análise concorrencial, a questão suscitada é de natureza tributária, devendo ser melhor endereçada a outros foros, citando, como exemplo, o Poder Judiciário. Respeitadas as questões prejudiciais e formais, entendemos que havia condições de o Cade ter se aprofundado na questão suscitada, a partir de um processo investigativo mais abrangente. Isso porque, conforme sustentamos anteriormente, é necessário que se identifique a razão pela qual seria válido o tratamento tributário diferenciado. Na hipótese de tal razão não ser apurada, é perfeitamente possível que, a partir da constatação de exercício abusivo de posição dominante, aumento arbitrário de lucros, domínio de mercado relevante ou ato lesivo à livre concorrência e à livre iniciativa,65 que o agente seja condenado por prática lesiva à ordem econômica. Não nos parece ser razoável alegar que a conduta estava respaldada por lei, a qual goza de presunção de constitucionalidade, e que, portanto, a conduta seria válida não apenas do ponto de vista tributário, mas também do ponto de vista concorrencial. Sendo constatados efeitos lesivos à concorrência, sem que haja justificativa plausível para o tratamento tributário diferenciado, não se pode deixar de aplicar a legislação de defesa da concorrência. Os princípios constitucionais atrelados à defesa da concorrência não podem sucumbir a interesses políticos não orientados por razões de ordem pública que, valendo-se de instrumentos de natureza tributária, não apresentem uma justificativa legítima para provocarem distorções. Dir-se-á, em sentido contrário, que o Poder Legislativo é autônomo para dispor, respeitadas as competências constitucionais, sobre o tratamento tributário diferenciado. Entretanto, tal raciocínio é falacioso na medida em que desconsidera a ordem jurídica como um todo, supondo que uma política pública específica pode chocar-se com legislações de outras searas, sem que isso tenha consequências. De se concluir que o Cade perdeu uma importante oportunidade de aprofundar na análise dos eventuais efeitos anticoncorrenciais que um incentivo fiscal, seja legítimo ou não, gera para um determinado mercado relevante, bem como se seriam passíveis de repressão com base na Lei 8.884/1994. 5.3 GUERRA FISCAL E EFEITOS ANTICONCORRENCIAIS A partir de uma primeira acepção, o fenômeno da guerra fiscal ocorre basicamente quando dois ou mais entes federados procuram atribuir prevalência à sua competência de tributar uma determinada situação, em detrimento da competência dos demais entes políticos, com base numa interpretação muitas vezes equivocada das normas constitucionais que lhe atribuem essa competência. Trata-se, neste caso, do exercício irregular de competência tributária (por um ou por outro ente tributante), em que a maior vítima é o contribuinte, que pode ser duplamente tributado em razão de um mesmo fato gerador. Exemplo desse tipo de guerra fiscal baseada no exercício irregular de competência é aquela relacionada ao local da incidência do Imposto Sobre Serviços - ISS, em que Municípios onde se situam os estabelecimentos prestadores e aqueles onde se situam os tomadores julgam-se igualmente dotados de competência para exigir o referido imposto, em detrimento da legislação aplicável e muitas vezes com base em equivocado entendimento jurisprudencial sobre a matéria. Há ainda que se mencionar outra concepção de guerra fiscal, cujas raízes são políticas de incentivos (isenções, reduções de alíquota ou base de cálculo, concessões de créditos caracterizadoras de um financiamento indireto) adotadas pelos entes federados para atrair empresas para os seus respectivos territórios, visando, com isso, à geração de empregos e ao crescimento da economia local. Trata-se da disputa decorrente da intervenção estatal, por meio da tributação, visando influenciar a decisão dos investidores quanto à localização de atividades produtivas.66 Neste caso, os incentivos são concedidos à revelia das normas constitucionais delimitadoras da competência tributária. Os efeitos dessa última noção de guerra fiscal para a concorrência foram analisados pelo Cade em consulta formulada pelo Pensamento Nacional de Bases Empresariais - PNBE. Na resposta a essa consulta, de lavra do Conselheiro Marcelo Calliari, o Cade concluiu, com suporte em simulações numéricas que indicam que incentivos fiscais podem conferir grande vantagem às empresas beneficiadas, com expressivo aumento de lucros, que a guerra fiscal gera efeitos sobre a concorrência e o bem-estar da coletividade, além do que: “a) Retira o estímulo ao aumento constante do nível geral de eficiência da economia, permitindo uso menos eficiente dos recursos e afetando negativamente a capacidade de geração de riquezas do país. b) Protege as empresas incentivadas da concorrência, mascarando seu desempenho, permitindo que mantenham práticas ineficientes e desestimulando melhoras na produção ou inovação. c) Permite que empresas incentivadas, ainda que auferindo lucros, possam 'predatoriamente' eliminar do mercado suas concorrentes não favorecidas, mesmo que estas sejam mais eficientes e inovadoras, em função do enorme colchão protetor de que dispõem. d) Prejudica as demais empresas que, independentemente de sua capacidade, terão maiores dificuldades na luta pelo mercado, gerando com isso mais desincentivo à melhoria de eficiência e inovação. e) Gera incerteza e insegurança para o planejamento e tomada de decisão empresarial, dado que qualquer cálculo feito pode ser drasticamente alterado - e qualquer inversão realizada pode ser drasticamente inviabilizada com a concessão de um novo incentivo. f) Desestimula, por tudo isso, a realização de investimentos tanto novos quanto a expansão de atividade em andamento. (...).”67 Vale dizer, contudo, que a resposta a tal consulta não indicou, de forma pontual e precisa, quais seriam os dispositivos que dariam ensejo à caracterização de infração à ordem econômica em razão da existência de incentivos fiscais concedidos irregularmente pelos Estados. Embora o Cade possa, nos termos do art. 7.º, X, da Lei 8.884/1994, requerer aos entes federados “medidas necessárias ao cumprimento desta Lei”, não ficou claro qual seria a postura do órgão em situações concretas em que venham a ser analisadas infrações concorrenciais oriundas de causas fiscais. Melhor dizendo, não restou esclarecido quem seria o agente infrator, qual a infração específica e quais as sanções aplicáveis. Acreditamos que, no âmbito do SBDC, não são passíveis de repressão os incentivos fiscais em si, mas os efeitos que eles causem. Não há como imputar o cometimento de infração à ordem econômica aos entes federados, no desempenho de sua função legislativa ou executiva. Ao contrário do que sustentam alguns doutrinadores,68 o art. 15 da Lei 8.884/199469 não abrange as pessoas jurídicas de direito público enquanto agentes normatizadores (seja o Poder Legislativo, seja o Poder Executivo), mas apenas quando estiverem desempenhando atividades econômicas em concorrência com agentes privados. Em conclusão, a manifestação do Cade a respeito dos efeitos anti-concorrenciais da guerra fiscal, embora escorada em bem fundamentada resposta, não enfrentou a questão crucial - até o momento não debelada, como visto nos casos acima citados - sobre em que termos seria aplicada a legislação de defesa da concorrência a situações envolvendo causas de natureza tributária. 1. O presente artigo contempla algumas ideias de um estudo mais amplo, consignado em tese de Doutorado defendida junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2009, sob o título Tributação e concorrência, cuja publicação, pela Editora Quartier Latin, encontra-se no prelo. 2. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15. 3. Cf. SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de direito econômico. 4. ed. São Paulo: Ed. LTr, 1999. p. 117 e 248. 4. Cf. SAYEG, Ricardo Hasson. Práticas comerciais abusivas. Bauru: Edipro, 1995. p. 87. 5. Trata-se da linha teórica desenvolvida pela chamada “Escola de Chicago”, da qual provém o paradigma da análise econômica do Direito (Economic Analysis of Law). 6. FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2005. p. 194. 7. Acerca da possibilidade e a necessidade de compatibilizar o Direito da Concorrência como garantia institucional e como instrumento de política econômica, associando-o à atividade regulatória, vide: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). São Paulo: Malheiros, 2001. p. 101-153. 8. Cf. BAPTISTA, Luiz Olavo. Origens do direito da concorrência. Comércio internacional e tributação. Coord. Heleno Taveira Tôrres. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 38-39. 9. Cf. OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e economia da concorrência. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 29. 10. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 15-16. 11. Nesse sentido, vide: FREITAS PEREIRA, Manuel Henrique de. Fiscalidade. Coimbra: Almedina, 2005. p. 66 e ss. 12. Cf. SCAFF, Fernando Facury. ICMS, guerra fiscal e concorrência na venda de serviços telefônicos prépagos. Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 126. São Paulo: Dialética, 2006. p. 78. 13. Essa ideia é corroborada por Coelho, conforme se depreende das seguintes lições: “No passado, considerava-se que a repressão às práticas empresariais incompatíveis com o regime econômico era feita em favor dos empresários concorrentes, vítimas do abuso de poder econômico. A liberdade de competição era o valor fundamental a se prestigiar, em nome dos interesses dos agentes atuantes no mesmo mercado. Registrava-se, é certo, o efeito indireto da tutela da liberdade de competição em benefício dos consumidores, pois, na medida em que se coibissem os monopólios, oligopólios e abusos, presumia-se que a livre concorrência levaria todos os agentes econômicos a praticar preços inferiores (competitivos) e a investir constantemente na qualidade de seus fornecimentos. Alguma doutrina destaca o atendimento aos interesses dos consumidores, na fundamentação da tutela jurídica da concorrência. Fábio Konder Comparato, por exemplo, considera que a evolução da repressão à concorrência desleal e ao abuso de poder econômico aponta para a definição dos interesses do consumidor como o princípio diretor máximo, anotando que em todos os países as medidas legais antitruste foram complementadas pelas leis de economia popular (...). Há, por outro lado, quem considera o efeito anticoncorrencial pressuposto básico da legislação antitruste, que, assim, não seria aplicável aos casos em que o atingido pela prática restritiva da concorrência é o consumidor. A rigor, a legislação antitruste visa tutelar a própria estruturação do mercado. (...)” (COELHO, Fábio Ulhoa. Direito antitruste brasileiro: comentários à Lei n. 8.884/1994. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 4 - grifos nossos). 14. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit. p. 17. 15. Cf. FORGIONI, Paula A. Op. cit., p. 147-148. 16. A regra da razão está consignada como pressuposto na Portaria Conjunta Seae/SDE 50/01, que trata do procedimento para análise de atos de concentração econômica horizontal. 17. Nessa linha, vide: SALOMÃO FILHO, Calixto. Op. cit., p. 17. 18. Para a autora: “A lei brasileira (...) não condena o domínio de mercado pelo agente econômico, desde que derivado de 'processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores', ou seja, resultante de vantagem comparativa. Assim, nada há de ilícito na conduta de empresa que conquista 'parcela substancial do mercado relevante' simplesmente por ser mais eficiente que seus concorrentes. Entretanto, é fato que as autoridades antitruste mantêm uma vigilância maior sobre o comportamento das empresas que detêm posição dominante. Essa postura se justifica porque é o comportamento do agente econômico 'mais forte' que, com maior probabilidade, poderá afetar (prejudicar) a concorrência. Seu ato, na medida em que ele próprio tem capacidade para determinar o ambiente concorrencial, coloca em risco, de forma mais acentuada, a segurança do mercado” (FORGIONI, Paula A. Op. cit., p. 348-349). 19. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Práticas tributárias e abuso de poder econômico. Revista de Direito da Concorrência. Brasília, n. 9, jan.-mar. 2006. p. 134-135. 20. A desnecessidade de culpa para caracterização da infração se justifica pelo fato de que as ações dos agentes estão pautadas na racionalidade econômica, isto é, na perspectiva de benefícios da ação, e, ainda, pelo fato de que a análise da infração deve ter como fundamento o desvio entre o resultado (efetivo ou potencial) a conduta e o resultado lícito esperado à luz dos princípios constitucionais aplicáveis. Assim a caracterização da infração estará baseada na existência do dano, ou ameaça de dano à ordem econômica e nexo de causalidade (cf. MARQUES, Fernando de Oliveira. Comentários aos artigos 20 a 22. Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômicos - Comentários à Lei 8.884/1994 e estudos doutrinários. Marcos da Costa, Paulo Lucena Menezes e Rogério Gandra da Silva Martins (coords.). Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 203-213, p. 209). 21. Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Livre iniciativa e direito concorrencial. Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômicos - Comentários à Lei 8.884/1994 e estudos doutrinários. Marcos da Costa, Paulo Lucena Menezes e Rogério Gandra da Silva Martins (coords.). Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 69-75, p. 70. 22. Cf. GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste: o combate aos cartéis. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 87. 23. Cf. REALE, Miguel. Aplicações da Constituição de 1988. Forense, 1990, p. 14, apud MENEZES, Paulo Lucena. Comentários aos artigos 1.º e 2.º. Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômicos - Comentários à Lei 8.884/1994 e estudos doutrinários. Marcos da Costa, Paulo Lucena Menezes e Rogério Gandra da Silva Martins (coords.). Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, nota 20, p. 142. 24. Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Obrigação tributária acessória e limites de imposição: razoabilidade e neutralidade concorrencial do estado. Princípios e limites da tributação. Roberto Ferraz (coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 715-735, p. 727. 25. Cf. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 224. 26. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). São Paulo: Malheiros, 2001. p. 93-94. 27. SCHOUERI, Luís Eduardo. Livre concorrência e tributação. Grandes questões atuais do direito tributário. Valdir de Oliveira Rocha (coord.). São Paulo: Dialética, 2007. p. 241-271, vol. 11, p. 244. 28. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Op. cit., p. 125-138. 29. A esse respeito, Bruna pondera que “livre iniciativa e livre concorrência são, pois, princípios intimamente ligados. Ambos representam liberdades, não de caráter absoluto, mas liberdades regradas, condicionadas, entre outros, pelos imperativos de justiça social, de existência digna e de valorização do trabalho humano. Assim, o que a Constituição privilegia é o valor social da livre iniciativa, ou seja, o quanto ela pode expressar de socialmente valioso. Da mesma forma, a livre concorrência é erigida à condição de princípio da ordem econômica não como uma liberdade anárquica, mas sim em razão de seu valor social. A extensão de tais liberdades dependerá de sua análise conjugada com os demais objetivos e princípios, não só da ordem econômica mas da Constituição como um todo” (BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Ed. RT, 2001. p. 136). 30. Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Livre iniciativa e direito concorrencial. Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômicos - Comentários à Lei 8.884/1994 e estudos doutrinários. Marcos da Costa, Paulo Lucena Menezes e Rogério Gandra da Silva Martins (coords.). Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 69-75, p. 72. 31. Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Obrigação tributária acessória e limites de imposição: razoabilidade e neutralidade concorrencial do Estado. Princípios e limites da tributação. Roberto Ferraz (coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 715-735, p. 727-728. 32. Cf. SCAFF, Fernando Facury. Op. cit., p. 71-80. 33. Areeda & Kaplow, citados por Bruna, apontam três elementos que devem ser levados em conta quando se procura averiguar se o nível de concorrência em determinado mercado está ou não aquém do “desejável”: a) conduta dos concorrentes; b) o seu desempenho; e c) a estrutura do mercado (cf. AREEDA, Philip & KAPLOW, Louis. Antitrust analysis - Problems, text, cases. 4th edition. Boston: Toronto, Little, Brown & Company Limited, 1988, p. 42, apud BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Ed. RT, 2001. p. 64-65). A análise com base na conduta dos concorrentes e no seu respectivo desempenho pode deparar-se com elementos relacionados à tributação, porquanto, no que diz respeito à conduta, a adoção de planejamentos fiscais pode significar a busca de vantagem comparativa em face dos demais concorrentes, da mesma forma que, quanto ao desempenho, a capacidade gerencial e a adoção de estratégias fiscais tendentes à redução de tributos podem produzir o mesmo efeito. A análise estrutural, por outro lado, pode ser igualmente influenciada por fatores tributários. 34. Embora o direito de contratar também albergue o direito de não contratar, é interessante perceber que, em determinadas situações, o poder econômico pode influenciar no exercício desses direitos, gerando desequilíbrios concorrenciais. Sobre o assunto, recomendamos a leitura de: GONÇALVES, Priscila Brolio. A obrigatoriedade de contratar no direito antitruste. São Paulo: Singular, 2010. p. 284. 35. FERRAZ, Roberto. A macrológica do direito econômico. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 142, p. 80-86. São Paulo: Malheiros, 2006. 36. Idem, ibidem, p. 81-82. 37. A título de exemplo, também a relação das normas de propriedade industrial com as normas do Direito da Concorrência reflete problemática similar àquela que ora se investiga neste trabalho. 38. Cf. OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Op. cit., p. 33-56. 39. Cf. FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Lei de Proteção da Concorrência - Comentários à Lei Antitruste. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 89. 40. Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Op. cit., p. 125-138. 41. O caráter exemplificativo do rol do artigo 21 decorre da impossibilidade de tipificação exaustiva de todas as condutas que poderiam configurar infração contra a ordem econômica (cf. MARQUES, Fernando de Oliveira. Op. cit., p. 203-213, p. 209). 42. Cf. FAGUNDES, Jorge; KANCZUK, Fabio. Preços predatórios: testes e avanços recentes. Revista do Ibrac, vol. 13, n. 2, p. 37-61. São Paulo: Ibrac, 2006. p. 51-52. 43. Dessa mesma Res. Cade 20/1999 extrai-se que “o exame desta prática requer análise detalhada das condições efetivas de custos e do comportamento dos preços ao longo do tempo, para afastar a hipótese de práticas sazonais normais ou de outras políticas comerciais da empresa, além da análise de comportamento estratégico, avaliando-se as condições objetivas de ganhos potencialmente extraordinários posteriores suficientemente elevados e capazes de compensar as perdas decorrentes das vendas abaixo do custo”. 44. Não se pode confundir preço predatório com dumping (venda de determinado produto ou serviço para o mercado externo abaixo do preço praticado no país de origem). Para Oliveira e Rodas, “a distinção entre o dumping e o preço predatório vai muito além do fato de serem atribuições de órgãos diferentes. O padrão de prova do preço predatório é mais rigoroso. De fato, não basta demonstrar que o acusado está vendendo mais barato do que seu preço em outro mercado. A jurisprudência internacional sugere a necessidade de adoção de um critério refinado de custo como parâmetro de comparação, a verificação se efetivamente o suposto predador tem condições com sua prática de deslocar seus concorrentes do mercado e de recuperar os prejuízos presentes mediante preços de monopólio no futuro. Em contraste com o antidumping, a preocupação da ação contra o preço predatório é o bem-estar do consumidor” (OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Op. cit., p. 73-74). 45. A jurisprudência internacional apresenta raros casos de condenação por prática de preço predatório, justamente porque é improvável que a sua adoção traga resultados compensatórios, além do fato de que os consumidores acabariam sendo beneficiados. De forma mais específica, as razões pelas quais a prática de preço predatório é improvável seriam: “a) em primeiro lugar, no momento em que uma empresa 'predadora' supostamente expulsa do mercado uma empresa 'vítima' e começa a praticar preços de monopólio, os lucros extraordinários por ela auferidos passam a atrair concorrentes potenciais. A entrada poderia inclusive ser facilitada pela eventual utilização das instalações deixadas pela empresa 'vítima'; b) em segundo, a prática do preço predatório por uma empresa dominante implica no sacrifício de parte da receita auferida a partir de parcela majoritária do mercado em troca da obtenção dos lucros provenientes de uma parcela minoritária deste mesmo mercado. Nessas condições, a relação custo/benefício pode não compensar a adoção da prática; c) em terceiro, uma empresa predadora tem à sua disposição estratégias melhores para expulsar o concorrente, tais como a aquisição da empresa concorrente. Esta estratégia não apenas exclui do mercado o competidor, mas também as suas instalações, dificultando a entrada de ingressantes potenciais; d) finalmente, a resistência de uma empresa vítima aumentaria os custos desta estratégia por uma empresa 'predadora', desacreditando-a junto a credores e investidores”. Destaque-se que não há casos de condenação de agentes no Brasil por prática de preços predatórios, tendo o Cade refutado alegação nesse sentido no julgamento do caso: Labnew-Merck (Processo Administrativo 080000.013002/95-97, j. 30.05.2001, rel. Mércio Felsky) (cf. OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Op. cit., p. 61-71). 46. O Cade já decidiu que somente pode ser acusado de prática de preço predatório a empresa que detenha poder de mercado, na medida em que, em princípio, preço baixo é resultado da concorrência e favorece ao consumidor. Do voto do conselheiro-relator, Antônio Fonseca extrai-se que: “1. As práticas definidas nos vários incisos do art. 21 da Lei 8.884/1994 não se aperfeiçoaram se o agente não detém poder de mercado, nos termos do art. 20, § 2.º, da mesma Lei. 2. No caso a denúncia é de preço predatório. Em princípio, o preço baixo é resultado da concorrência e favorece ao consumidor. Para essa prática se tornar ilegal é preciso que tenha por efeito excluir um concorrente. Quem pratica preço predatório, i.e., abaixo do custo passa por um momento inicial de prejuízo que é compensado num momento futuro após a exclusão do concorrente. Somente se lança nessa aventura arriscada quem efetivamente detém poder de mercado. 3. A empresa denunciada é de pequeno porte. O mercado de lareira e churrasqueira é caracterizado pela pulverização de concorrentes. Embora mal instruídos, os autos revelam que não restou comprovado domínio de mercado. Faltando esse pressuposto, não há que se falar em prática anti-concorrencial. 4. Nego provimento ao recurso” (Voto na Averiguação Preliminar 08000.018467/95-06, de 16.07.1997, Representante: Hot House Indústria Metalúrgica, Representada: Metalcorp Ltda. Cf. FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Lei da concorrência conforme interpretada pelo Cade. São Paulo: Singular, 1998. p. 717). 47. Cf. Portaria Seae 70/2002. 48. Em sentido contrário, defendendo a irrelevância do elemento volitivo para fins de caracterização da infração em comento, vide: TAVARES, Daniela Diniz. Reflexões referentes à redução de custos decorrente da informalidade na economia brasileira e a prática de preços predatórios. Revista do Ibrac, vol. 12, n. 3, p. 159-199. São Paulo: Ibrac, 2005. p. 173; PEIXOTO, Bruno Vilhena Lana. Preços predatórios: elementos para caracterização como infração da ordem econômica. Revista do Ibrac, vol. 9, n. 1, p. 53-76. São Paulo: Ibrac, 2002. p. 70-71. 49. Por outro lado, o Cade já confirmou, em tese, haver prática de preço predatório quando levada a efeito pela adoção de subsídio cruzado, aduzindo que “a venda injustificável de produto abaixo do preço de custo, compensando-se o prejuízo pela margem de lucro obtida na comercialização de outro produto, constitui, em tese, infração à ordem econômica” (Voto no Processo Administrativo 08000.020787/96-62, de 22.10.1997, Representante: Associação Brasileira de Indústria de Panificação, Representada: Associação Brasileira de Supermercados. DOU 05.11.1997. Cf. FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Op. cit., p. 720-721). 50. A OCDE (Organization for Economic Co-operation and Development) foi instituída pela convenção internacional de 14.12.1960, tendo iniciado as suas atividades em 01.10.1961. Atualmente, esta organização congrega 30 países e seu objetivo é auxiliar no desenvolvimento e aperfeiçoamento da economia de mercado por meio da troca de experiências de diferentes países e da coordenação de políticas nacionais e internacionais. 51. Destaca-se o seguinte trecho das conclusões do relatório: “Predatory pricing refers to the use of shortrun price-cutting in an effort to exclude rivals on a basis other than efficiency in order to gain or protect market power. It has been of concern to competition policy officials since the passage of the first antitrust laws and continues to be so in many jurisdictions. Competition policy officials often receive complaints of predatory pricing by self-described 'prey' and private actions continue to be filed where they are permitted. Moreover, with the recent movement to deregulate or privatize many dominant firms, there is concern that predatory pricing practices will become more frequent in the future. Interest in predatory pricing rules has also heightened recently because of its possible application to international trade in that clearly thought-out competition rules could help illuminate or even supplant rules governing dumping. Predatory pricing, however, is a complex form of anticompetitive conduct. It requires the perpetrator to incur substantial losses or at least to forego present profits in the hope that those losses can be more than recouped in the future through the exercise of market power. Thus market conditions play a key role in determining whether price predation is a feasible tactic for a firm to employ. The predator must have a very substantial share of the market or at least the capacity to acquire such a share. In addition, entry conditions must be such that market power can be exercised for some period of time following a predatory episode in order to provide recoupment for the predator's 'investment'. To the extent that a predator mistakes market conditions his self-inflicted losses will not be regained and in this sense predation can be said to be self-deterring” (p. 75) (cf. OECD. Predatory pricing. Paris: OECD, 1989 (99p.). Fonte: www.oecd.org/dataoecd/7/54/2375661.pdf. Acesso em: 18.09.2008). 52. Cf. CRETELLA JÚNIOR, J. Op. cit., p. 73. 53. Defendendo que apesar de legais da perspectiva tributária, condutas empresariais amparadas em leis ou liminares podem ser questionadas junto ao SBDC, em razão de seus potenciais efeitos anticoncorrenciais, vide: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Tributos, liminares e concorrência. Valor Econômico (Brasil), Caderno Legislação e Jurisprudência, edição de 23.02.2006. 54. Não se está aqui a adotar a concepção de concorrência desleal tipificada como conduta ilícita no tocante à violação de direitos de propriedade intelectual a que se refere a Lei 9.279/1996. Emprega-se o termo concorrência desleal, neste contexto, como prática aética em termos de concorrência, na medida em que a inadimplência tributária, esta sim um ilícito, favorece o agente econômico que a adota, em detrimento daqueles que cumprem rigorosamente a legislação fiscal. 55. É válida a percepção de que “em países em desenvolvimento, como o Brasil, é comum a ocorrência de mercados duais em que um segmento informal descumpre a legislação, como normas de segurança e de meio ambiente, ou muitas vezes simplesmente não paga impostos. Trata-se de situação injusta, na qual a 'competitividade' de algumas empresas deriva do desrespeito à lei. Neste caso, cabe maior rigor da autoridade, bem como disposição de racionalização e simplificação da legislação. Não raro, é a própria complexidade e irrealismo da legislação que estimula seu descumprimento. Neste sentido, uma reforma tributária desburocratizante poderia, entre outros benefícios, melhorar a concorrência dos mercados”. E ainda “a concorrência desleal pode se referir de fato a práticas de concorrentes domésticos de forma a caracterizar o preço predatório (...)” (OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Op. cit., p. 72-73). 56. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Op. cit., p. 125-138. 57. No passado, Martins sustentou que o Cade não poderia impedir a fruição (ou neutralizar os efeitos nos preços) de incentivos fiscais ou subsídios financeiros concedidos pelo Poder Público, em vista da autonomia financeira das entidades federativas, nos termos do art. 60, § 4.º, I, da CF/1988 (cláusula pétrea relativa à forma federativa de Estado), mesmo que tais incentivos fiscais gerem privilégios que interfiram na concorrência. Nas palavras do autor, “as hipóteses (...) a serem examinadas pelo Cade decorrem de comportamento aético e abusivo das empresas e não de um processo estimulador, aberto a todas as empresas, mesmo que, como consequência, aqueles que aceitaram o desafio, no tempo, possam beneficiar-se dos estímulos ofertados pelas unidades federativas, pois são estes a contrapartida dos investimentos” (Cf. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Incentivos, subsídios e concorrência fiscal danosa. Revista de Direito Econômico, vol. 31. Brasília: Cade, 2000. Versão eletrônica). Em outra oportunidade, ao analisar os efeitos lesivos para a concorrência causados pela sonegação fiscal, o mesmo jurista manifestou-se no sentido de que o espectro de aplicação do art. 173, § 4.º, CF/1988 não se limitaria apenas às hipóteses mencionadas na Lei 8.884/1994, dando a ideia de que a livre concorrência deveria ser igualmente protegida no campo da tributação (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Obrigações acessórias no interesse da fiscalização e da livre concorrência entre empresas - Direito assegurado ao fisco pelas leis suprema e complementar. Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 105, p. 125-138. São Paulo: Dialética, 2004. p. 130). 58. Cf. FORGIONI, Paula A. Op. cit., p. 464. 59. “Art. 54. (...) § 3.º Incluem-se nos atos de que trata o caput aqueles que visem a qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário, que implique participação de empresa ou grupo de empresas resultante em vinte por cento de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais).” (Redação dada pela Lei 10.149, de 21.12.2000.) 60. Cf. FORGIONI, Paula A. Op. cit., p. 467-468. 61. Entendimento nesse sentido também foi consignado no seguinte julgamento: Cade; Averiguação Preliminar 08012.002480/98-85. 62. Também no mesmo sentido foi a questão suscitada e a conclusão do Cade no Processo Administrativo 08012.006746/97-41, em que figuravam como Representantes a Aberc e o Sinderc, e como Representado o Sesi (nos estados de SP, RJ, MG, RS, SC e PR), e cujo objeto era a análise de prática lesiva à concorrência em razão de imunidade tributária em favor do Sesi, no segmento de fornecimento de alimentação. Por outro lado, na Averiguação Preliminar 08012.006665/2001-99, o Cade adotou posicionamento na mesma linha, atestando que o aproveitamento de benefício fiscal, por si só, não constitui infração concorrencial. 63. “Art. 36. As autoridades federais, os direitos de autarquia, fundação, empresa pública e sociedade de economia mista e federais são obrigados a prestar, sob pena de responsabilidade, toda a assistência e colaboração que lhes for solicitada pelo Cade ou SDE, inclusive elaborando pareceres técnicos sobre as matérias de sua competência.” 64. Destaque-se que o Cade já se valeu de apoio técnico de outros órgãos governamentais, como em caso (Ato de Concentração 08012.007861/2001-81) no qual se propugnou pelo cancelamento de Compromisso de Preços motivado em caso de dumping, em que houve uma interação com a Câmara de Comércio Exterior - Camex, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior - MDIC (cf. DOMINGUES, Juliana Oliveira. Concorrência e defesa comercial. Desafios atuais do direito da concorrência. Orgs. Pedro Zanotta e Paulo Brancher. São Paulo: Singular, 2008. p. 147-167, p. 153-158). 65. Sobre a ofensa à livre concorrência e à livre iniciativa em razão da concessão de benefícios fiscais para atrair empresas para determinada região, Abreu ponderou o seguinte: “Uma crítica bastante pertinente que se faz à utilização dessa prerrogativa tributária extrafiscal dirige-se à concessão de benefícios fiscais a determinadas empresas que venham a se estabelecer em determinado lugar do país, negando-se a extensão do benefício àquelas que, explorando o mesmo ramo de atividade, já se encontrassem sediadas há algum tempo na mesma região. É absolutamente lógico que, com menores custos para produção e circulação de suas mercadorias, as empresas beneficiadas estarão em muito melhores condições de produzir e comercializar seus produtos do que as demais. A situação fica ainda mais ilógica quando atentamos para o fato de que a empresa recém chegada não tinha vontade de investir naquela região até a proposta de concessão dos incentivos fiscais e, por isso, sai extremamente beneficiada. As empresas que ali se instalaram antes demonstraram, em alguma época, vontade de investir naquele lugar, independentemente de qualquer benefício e, a partir de agora, assistem ao Poder Público financiar parte dos custos operacionais de uma empresa concorrente, saindo sensivelmente prejudicadas. Intervenções assim são manifestamente inconstitucionais por violação à livre iniciativa e à livre concorrência, pois prejudicam o agente econômico privado que, desprovido dos mesmos benefícios, tem mais custos operacionais para a produção e a circulação de seus produtos do que a empresa beneficiada, e poderá ver-se obrigado a fechar suas portas naquela localidade. Antes de promover redução de desigualdade regional ou aumento do emprego, tal atuação gera instabilidade econômica naquela região e afasta novas empresas. O fantasma de serem alijadas do mercado por outras concorrentes beneficiadas estará sempre lá para afugentar novos investimentos” (ABREU, Rogério Roberto Gonçalves de. Livre iniciativa, livre concorrência e intervenção do estado no domínio econômico. RT 874/70-100. São Paulo: Ed. RT, 2008. p. 96-97). 66. Cf. ALVES, Maria Abadia da Silva. Guerra fiscal e finanças federativas no Brasil: o caso do setor automotivo. Dissertação. Campinas: Unicamp, 2001. p. 30. 67. Cade. Processo de consulta n. 038/99. Disponível em: www.cade.gov.br/temp/Download_D00000028755.pdf. Acesso em: 27.09.2008. 68. V.g. LOSS, Giovani Ribeiro. A análise dos incentivos fiscais estaduais pelo Cade. Revista do Ibrac, vol. 8, n. 2, p. 59-75. São Paulo: Ibrac, 2001. p. 69-70. 69. “Art. 15. Esta lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.”